1 UBERLÂNDIA PERSONALIDADE E SIMBOLIZAÇÃO Antonio Muniz de Rezende Será que vocês vão me ouvir? Será que vou conseguir falar? Estou tão emocionado que não sei como vai ser. Emocionado por vários motivos, a começar pela presença dos amigos mais antigos, como a Maria Inês e...o Joaquim. O Joaquim, foi meu aluno em 1955, lá em Juiz de Fora. Ele era menino... E, no entanto, a bondade dele fez comque não se esquecesse de mim; e quandoficou sabendo de nossa reunião, veio me dar o presente de sua presença aqui, hoje. Vou pedir também à Celma que se levante. Ela é minha prima, neta da tia Maria do Vale, irmã da vovó Henriqueta. Ela me trouxe uma triste notícia lá de Tupaciguara: eu tinha a intenção de filmar a casa onde nasci ...e a Celma acaba de me informar que a casa não existe mais. Por isso estou quase de luto. Mas vamos visitar outros lugares de minha infância! Celma é a presença de toda a minha família. E para não perder a oportunidade, possocontar que mamãe nasceu aqui em Uberlândia. Só que naquela época a cidade chamava-se São Pedro d´Uberabinha. Enfim ...vou tentar falar, apesar de tudo, aproximando-me de vocês o mais possível. Como estou com ogravador e o microfone nas mãos, vou me permitir sair da mesa e chegar mais perto de vocês. A Izabel que está aquipresente faz parte de nosso grupo láem Campinas e está acostumada com meu estilo. Aliás, há um pequeno detalhe importante que vou tornar público aqui. Eu digo que ela é minha secretária, e ela diz que não, que é apenas “prestadora de serviços”. Mas quanto serviço ela me presta! Coordenando a organização prática de nossos grupos, verificando a presença e recebendo a contribuição, etc. Mas há um pequeno detalhe mais importante: como continuo sendo professor, prefiro não dar uma aula magistral. Não vou falar para vocês ouvirem, mas conversar com vocês. Isto significa que tenho um roteiro nas 2 mãos, e vocês podem interromper-me a hora que quiserem. Inclusive o Joaquim. Ele não é da área, mas é interessante uma pessoa de outra área fazer perguntas. “Não estou entendendo, o que mesmo você está querendo dizer?” Meu pressuposto agora é este mesmo: uma conversa com vocês. Do que a Maria Inês disse há pouco, eu gostaria de retomar um aspecto bem preciso: tornei-me psicanalista praticamente quando me aposentei na Unicamp. Ao me aposentar comoprofessor universitário, comecei minha formação psicanalítica lá na Sociedade de São Paulo – com bastante idade e não menos experiência. Você, por exemplo, com quem fez sua análise? – Com Dona Judith Teixeira de Carvalho Andreucci! – Não me diga! Quer dizer que somos irmãos de divã!? Eu gosto de usar esta expressão, especialmente em alguns contextos. Por exemplo, Rubem Alves, falecido há pouco tempo, também era meu irmão de divã. Comecei minha análise mais tarde, com mais idade e isto me ajudou muito. Costumo dizer o seguinte: nasci freudiano como todo mundo. Mas como morei na Europa durante muitotempo, tornei-me lacaniano, como muita gente lá, naquela época. E quando fui fazer minha formação em São Paulo, tornei-me kleiniano, como a maioria dos colegas. E lá na própria Sociedade, aos poucos, fui me tornando bioniano. Aqui, eu quero parar um pouquinho e dizer por que Bion. A esse propósito reconheço um aspecto extremamente delicado. Acho que Bion, vindodepois de Freud, de Lacan, de Melanie Klein, de Jung ...trouxe uma contribuição que renovou a psicanálise. Não é só uma questão cronológica, por ter vindo depois. Ele veio depois e renovou. Rapidamente vou dizer em que pontos. Onde e quando Freud falava do Ego ... Lacan falava do sujeito ...Winnicott falava do self ...Bion prefere falar da Personalidade. Onde e quando Freud falava do Inconsciente recalcado, Bion prefere falar do Inconsciente incognoscível. Onde e quando Freud falava da sexualidadede Édipo, 3 Bionprefere falar da verdadede Édipo e de sua verdadeira identidade. Onde e quando Freud falava do recalcamento, Bion prefere falar do inominável inaccessível. Não vou continuar, mas queria mostrar-lhes como Bion inovou em pontos extremamente delicados e fundamentais. Ouso dizer o seguinte: com Bion, a psicanálise não é mais a mesma. E há um pequeno detalhe para o qual sempre chamo a atenção: a questão do recalcamento. O Inconsciente de Freud, em grande parte era o recalcado... ou o lugar do recalcamento. Bion vai muito mais longe e cita, por exemplo, Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e aterra do que pode suspeitar a nossa vã filosofia”. Vejam bem: não é apenas o recalcado! Há muito mais coisas “entre o céu e a terra”. E Bion continua citando Milton,noParaiso Perdido, ao falar do “infinito, informe, inominável”. Noutras palavras, Bionnão nos põe em contato apenas com esse mundoinconsciente-próximo-familiar, mas nos põe ...perante ... (não digo em contato) ...peranteo mistério do mundo. E aí, um nome a ser citado é o do próprioEinstein! Einstein, interlocutor de Freud na época ... e que se tornou um dos grandes interlocutores da psicanálise, a respeito da física quântica (eo relativismo espaço-temporal). Às vezes fico na janela de meu quarto olhando para o céu e perguntando: O infinito tem fim? Não tem fim? Um dos paradoxos mais evidentes é que pensamose vivemos como se ...estivéssemos em casa ... no infinito!!! E se eu perguntasse: qual o centro do infinito? Como o infinito não tem contorno, à semelhança de uma circunferência ...(cujos pontos são equidistantes de um ponto interior chamado centro...), no caso do infinito, levando em conta a relatividade espaço-tempo, o centro do infinito, relativamente a mim ...éesse lugar onde me encontro. O centro para mim, é onde estou. Não há referência externa... Tudo isso para criar um certo clima: a psicanálise de Bion leva em conta tudo isso! 4 Agora vou dizer de outra forma, talvez um pouco mais delicada: Bion não é um autor fácil. É muito rico. Eu até diria: sua leitura torna-se mais difícil porque supõe que você saiba do que é que ele está falando. Nem sempre cita suas fontes. Vou dar um exemplo: Bion cita uma frase de Locke ...supondo que o leitor saiba do que está falando. Ou então ...um exemplo mais simples ainda: na Bíblia está dito que Deus criou o céu e a terra. Em hebraico: BereschitbaraElohim... Bion cita a Bíblia muitas vezes, achando que nós sabemos do que é que ele está falando. De novo: Deus ...soprou!Só que sopro em hebraico si diz Ruah, em grego Pneuma, em latim Spiritus. Falamos pois de uma pneumo-pato-logia e uma pneumoterapia como de uma terapia da alma, pressupondo um sentido que nos vem lá de longe! Vou mudar de assunto. Até agora quis mostrar como Bion é um homem culto, de uma cultura impressionante, e que, por isso mesmo, torna-se um desafio para o leitor. Você precisa ser culto para ler Bion. E eu posso dar mais um detalhe: quais são os aspectos históricos mais significativos de sua vida? Por exemplo: qual o nome de Bion? WilfredRupprechtBion. Filho de pais ingleses, descendentes de franceses, emigrados da França para a Inglaterra. Mas nasceu na Índia. Seu pai era engenheiro e foi contratado para construir uma estrada de ferro na Índia. Bion nasceu lá e teve uma babá indiana que, falando inglês, lhe contava histórias dr seu país. Vocês sabem o nome da epopeia hindu? Mahabárata ...com um capítulo intitulado BaghavadGita, a Canção Sublime. Nessa canção, há um episódio em que o ser humanochamado Arjuna dialoga com o ser superior chamado Krishna. Arjuna cheio de problemas pergunta: o que que eu faço? Krishna responde: “Se não mudar de nível, você não vai entender. Mude de nível! Olhe com outros olhos! Olhe de cima para baixo e você vaientender!”. Bion diz a mesma coisa aos psicanalistas! E eu termino minhaIntrodução, convidando vocês a também mudarem de nível, para adotar o vértice da psicanálise bioniana.Alguma pergunta? P – É preciso ser intelectual para entender Bion ... R – Atenção: eu não falei do intelectual, mas de uma pessoa culta, a par dos grandes problemas. E um dos problemas trazidos por Bion é a respeito 5 do que seja pensar. Resumindo muito, Bion começa falando de um aparelho perceptivo sensorial, passa a falar de um aparelho perceptivo emocional, continua com um aparelho cognitivo-conceitual e, só em seguida, fala sobre o pensamento. E acrescenta com muita firmeza que “os sentimentos preparam o pensamento”. Ele não é intelectualista, mas culto ...em contato com várias culturas da Europa, da Ásia e da América ... donorte e do sul. A tal ponto que é considerado por muitos como um “cidadão do universo”. Passo agora à nossa segunda parte,com a pergunta: Quais as grandes contribuições de Bion? Para responder começaria dizendo que dei todoumcurso com otítulo PERSONALIDADE E SIMBOLIZAÇÃO na psicanálise de Bion. Quero colocar esse texto à disposição de vocês. Nesse volume, vocês terão acesso a uma contribuição ainda maior, com o desdobramento de vários outros aspectos. Pessoalmente escolhi trabalhar alguns deles para ajudar vocês. O ideal seria que todos já tivessem lido meu texto. Isso me permitiria caminhar mais depressa. Por outro lado, vou fazer aquio lançamento desse meu livro com o título “Bion e o futuro da psicanálise.Aexpansão do universo mental”. Nesse livro, eu menciono uma bibliografia bastante vasta a respeito de Bion.Vocês vão poder consultá-la. A pergunta agora é esta: quais as grandes contribuições de Bion? Como disse, uma delas é a respeito da Personalidade. Vou repetir: Onde e quando Freud falava de Ego, Lacan de sujeito, Winnicott de self ...Bion prefere falar de Personalidade. Este é um assunto delicado por vários motivos. Um deles é que não podemos confundira posição de Bion com o personalismo da psicologia ... emesmo da filosofia, como no caso de Emmanuel Mounier. Por isso vou ser muito didático com vocês, dando-lhes logo a definição bioniana de personalidade: “A personalidade é uma estrutura de relações marcantes de natureza emocional—afetiva, que desde o início a caracterizam, 6 diferenciando-a de outras personalidades assim igualmente constituidas, e com as quais se relaciona”. Perceberam a ênfase? É na personalidade como sujeitodasrelações! Se eu me relacionar com a Aida, minha prima, dando-lhe as mãos ...só nesse gesto nós evocamos muitas coisas que vocês nem imaginam. De repente, penso no Geraldo (marido dela) ...penso no Antonio(irmão do Geraldo) ... penso no tempo em que eles moravamemItuiutaba ... penso no frei Henrique nosso primo ... Entenderam? As pessoas se relacionam num nível em que também as histórias tornam-se comuns. Mas que histórias? Aquelas que nos tocam. Não é qualquer história não, mas as que nos tocam. Até que ponto? Até ao ponto de nos deixarem marcados. Um autor de nome Vigotski refletiu bastante sobre as “marcas do humano”, que ele sintetizou como sendo bio-psíquico-sócio-culturaishistóricas. Um colega da Unicamp, chamado Angel Pino Sirgado publicou um livro sobre esse assunto, com o mesmo título. Um livro que todos vocês deveriam ler. Pessoa é um sujeito humano, com uma história que deixou marcas, a tal ponto que à pergunta “quem é você?”, podemos responder contando essa história marcante. Aliás,esta é a pergunta a que tentamos responder quando nos deitamos no divã de um psicanalista. “Quem sou seu?”. Não é uma pergunta fácil de responder! E para vocês não esquecerem, uma das perguntas mais bonitas a respeito de nossa identidade é a seguinte: “Quem é quem, com quem, para quem”.São três perguntas relativas à nossa história, fazendo-se ...desde o início. Atenção! O que estou querendo dizer? O mesmo que Mallarmé num verso que escreveu a respeito de Allan Poe. Em francês: “Telqu´enluimêmeenfinl´éternitélechange!”Em português : Tal como nele mesmo enfim a eternidade o transforma. Allan Poe faleceu, e o poeta lhe dedicou um soneto com essa frase extraordinária, dizendo mais ou menos o seguinte: “Antes de morrer, nós ainda podemos mudar”. Somente na morte não mudamos mais. É por isso 7 que a psicanálise não desiste de ajudar as pessoas ...antes da morte... descobrindo mais alguma coisa, possibilitando a mudança de muitas outras. P – Mesmo depois da morte ...ainda fica a lembrança que cada um tem de outra pessoa.Por exemplo, a lembrança que você tem de Dona Judith não é a mesma que seu colega irmão de divã! R – Só que com isso você está levantando outra questão extremamente delicada a respeito dos que ficam! Por isso mesmo, estou tentando escrever um artigo bastante difícil, comotítulo: “Elaboração antecipada do luto por minha própria morte”. A isso, muitos chamam de “preparação para a morte”. E há muitas outras perguntas. Fiquei bastante comovido no dia de meu aniversário. Porque ao falar desse assunto eu estava procurando uma palavra que dissesse a mesma coisa do ponto de vista poético. E eu encontrei a palavra ACABAMENTO. O artista dá acabamento à sua obra. O que é dar acabamento? É chegar tão perto quanto possível da perfeição... e poder mostrar numa exposição. Só que, no dicionário, a palavra acabamento também significa terminar – encerrar. Será que a morte é nosso acabamento-terminal? Não necessariamente. Por que? Porque meus filhos estão ai... e podem dar continuidade. Donde também a ideia de testamento... dando continuidade mesmo depois da morte. O que é o testamento? A continuidade em outra geração. E isto é também poético até onde pode ser. Quem conhece Pablo Neruda? Ele escreveu “Confesso que vivi”, contando a história dele... por assim dizer depois da morte. Isso é lindo. No dia do meu aniversário, prometi que ia escrever minha autobiografia. E há alguma coisa que de alguma forma transcende a morte. Minha experiência desse ponto de vista é muito delicada. Por que? Porque, na velhice, eu também tenho uma nova versão de mim mesmo, e por isso falo de “uma elaboração antecipada do luto por minha própria morte”. Etc. etc. 8 Mas eu vou um pouco mais longe com Bion. Ele nos fala de três modelos: 1º modelo, científico-filosófico; 2º modelo, estético-artístico; 3º modelo, místico-religioso. E, na perspectiva mística, vindo da Índia, ele tem uma intuição a respeito de depois da vida. Fiquem sentados, porque vou dizer uma coisa muito seria para os hindus. Eles dizem o seguinte: É mais importante “não-ser” dentro do ser, do que “ser” fora do ser. A morte para os hindus é a reintegração das partes no todo. Como é que isso se dá? Eles nem se preocupam. Uma maneira de dizer isto em linguagem poética é a seguinte: Deus soprou e comunicou vida a outros seres; Deusaspira e recolhe a vida... Nossa vida é o sopro de Deus......dada e recolhida.Esta é uma maneira de falar dos hindus. Uma reintegração com perda da identidade. E Bion nasceu na Índia! Entre nós cristãos, com influência judeo-grego-latina a expressão é a seguinte: “E Deus será tudo em todos... sem perda da identidade”. Para aceitar isso, é preciso ter fé? Sim, é preciso ter fé. Mas não é uma fé ingênua. No caso do Bion, ele fala inclusive de uma fé científica. Desculpem, pois acabei fazendo uma digressão, na hora certa... com a ajuda de sua pergunta. Vou agora retomar rapidamente a noção de personalidade. Quando me deitei no divã de Dona Judith, a pergunta era bem esta: “Quem é você, Rezende?”, ela me perguntou. E eu naquela época estava com o self engrandecido (cf. Kohut) e queria me apresentar: “Dona Judith, eu fiz um doutorado sobre São Tomás de Aquino”. Ela sorriu e me disse: “Eu prefiro Santo Agostinho!” Por que? Porque São Tomás, na tradição de Aristóteles, valorizava a razão, chegando a demonstrar racionalmente a existência de Deus. A razão e a fé: a razão a serviço da teologia. (Ratioancillatheologiae”). E Santo Agostinho contava a história dele... Vejam nas Confissões de Santo Agostinho, ele mesmo conta. 9 O que estou querendo dizer é que a questão da identidade é a primeira grande questão de toda análise. E a resposta é a história de nossos relacionamentos... a começar pelo Édipo... isto é, com nossos pais! O famoso édipo, a cujo respeito Freud acrescenta que é estruturante da personalidade. Uma relação triangular muito mais rica do que pode parecer à primeira vista. Na próxima aula lá em Campinas eu vou retomar esse assunto. O que é o édipo? Um triângulo (que inclusive nos faz pensar na Santíssima Trindade, a cujo respeito os teólogos falam de Relações Subsistentes!). Édipo: Filho, Pai e Mãe ...são 3. Mas... pressupondo uma união que chamo de cópulasimbólica fecunda. Nós todos somos filhos de uma cópula simbólica, desde o início, e para o resto da vida. Essa relação inicial é uma primeira “característica”,cuja marca biológica fica bem no meio do nosso corpo com o nome de “omphalos” ou umbigo. O que é o umbigo? A marca do cordão umbilical! Uma marca da união primitiva do bebê com a mãe! E não da mãe estéril... mas da mãe fecunda. Dai a beleza da própria palavra “conhecimento”. Na Bíblia está escrito que Adão conheceu Eva! Este conhecimento... a palavra vem do latim “cognitio”. Ora, em grego mulherse diz “.....”, guiné! “Adão conheceu a mulher”. Isso é lindo: o conhecimento, da parte do homem, é a penetração no mistério da mulher. E quando falo de mistério é porque em grego... o verbo myo significa fechar, e sterasignifica útero. Mistério é oútero fechado da virgem. E o conhecimento? É a “intuição” como penetração masculina no mistério da mulher! Atenção, pois não estamos falando apenas da genitália. Estamos falando da identidade: na cópula simbólica, a dupla toma conhecimento da identidade um do outro. E é por isso que em todo casamento há um belíssimo desafio: será que um compreende o outro? Será que um entende o outro? Mas deixem-me valorizar um pouco mais o que acabei de dizer, em relação ao conhecimento...o conceito e a intuição! A intuição épenetração, em que o espermatozoide penetra o óvulo. E o que 10 acontece? Há uma concepção. E qual o fruto da concepção? O conceito! O que dizemos a respeito da mente é uma transposição do que acontece no útero. Nossa mente funciona como um útero que, uma vez fecundado, produz um conceito. A esse propósito Bion cita Kant dizendo: “Conceito sem intuição é cego; intuição sem conceito é vazia”. E o discurso o que é? É a organização dos conceitos de maneira inteligente e... viva. Quem escreveu um livro com esse título significativo (“O discurso vivo”) foi André Green. Vou contar um pouquinho da história da psicanálise. No ano de 1953, eu morava em Roma. E, neste ano, aconteceu em Roma o Congresso de Psicanálise das Sociedades de Línguas Romanas – que ficou conhecido como Encontro de Roma.Nesse congresso, Lacan rompeu com a IPA – publicando um texto que ficou conhecido como Rapport de Rome, com o título “Functionetchamp de la parole et dulangage” (Função e campo da palavra e da linguagem). Ao romper com a IPA, Lacan propôs que a psicanálise adotasse a metodologia das ciências da linguagem. E a partir dai os psicanalistas lacanianos tornaram-se linguistas também. Qual foi a crítica que André Green lhes fez? Ele mostrou que uma coisa é analisar o discurso sem vida, outra analisar um discurso comvida. E de onde vem a vida do discurso? Da parte emocional e afetiva. Ora, eu estou comentando a definição de personalidade! A personalidade é uma estrutura de relações marcantes de natureza emocional-afetiva, que desde o início a caracterizam... diferenciando-a de outras personalidades, com as quais entra em relação. Acho que é o bastante até aqui, como introdução ao tema de nosso Encontro. 11 Mas deixem-me resumir ainda mais, para sintetizar: o que é uma sessão de análise? Uma investigação a respeito da personalidade do paciente. Quem é você? Você sabe? Será que posso ajuda-lo um pouco mais? Vou fazer uma brincadeira a meu próprio respeito: vocês repararam que não estou lendo. Vocês repararam como estou falando seguindo uma lógica mental? Isso é Bion. Ele nos ensina a pensar! Aliás, outro livro meu tem por título “WilfredBion, uma psicanálise do pensamento”. Portanto não tenham medo de pensar. OK! Indo um pouco mais longe, Bion nos dala de “pensamentos à procura de pensadores”. Os pensamentos vêm procurando você; se você não os acolhe, eles vão embora. Não deixem seus pensamentos ir embora. Anotem, escrevam. Façam por assim dizer uma reserva, um tesouro de ideias guardadas dentro do coração. Vou agora mudar de parágrafo. Já falei sobre a personalidade, agora vamos juntos pensar sobre a simbolização. O que é a simbolização? Esta questão é muito importante. Uma das grandes contribuições de Lacan é precisamente a distinção que estabelece entre o Real, o Imaginário e o Simbólico. Se pegarmos a primeira letra dessas palavras, de baixo para cima, nós temos RIS. Mas, nos diz Lacan, o importante é a gente ir até lá em cima para descer novamente do Simbólico até o Real passando pelo Imaginário – SIR. O que isto quer dizer na perspectiva lacaniana? “O simbólico é a norma que preside a estruturação das estruturas”. A tal ponto que uma multiplicidade mal estruturada na verdade é patológica. Vou exagerar muito: o real não estruturado simbolicamente é psicótico. A psicose é uma relação prejudicada entre nós e o real. O imaginário não organizado simbolicamente vira neurose. O que é a neurose? É o imaginário não simbolizado. E o simbólico mal organizado é a própria esquizofrenia. Psicose, neurose, esquizofrenia... por falta de simbolização. 12 Se o poeta disse que “Navegar é preciso”, aqui nós acrescentamos: “Simbolizar é preciso”. Não simbolizar é correr o risco de uma patologia mental – tanto no nível do pensamento como dos afetos. Ao contrário, como o simbólico é a norma que preside a estruturação das estruturas... opróprio imaginário simbolizado vira ... arte, por exemplo! Vira poesia. Vocês conhecem o verso do Olavo Bilac sobre as estrelas? “Ora, direis, ouvir estrelas? Por certo perdeste o senso... E no entanto...” Me deu vontade de citar outro poema do Olavo Bilac sobre a língua portuguesa: “Última flor do Lácio, inculta e bela És a um tempo esplendor e sepultura Ouro nativo que na ganga impura A bruta mina entre cascalho vela” Ao citar Olavo Bilac, aproveito para prestar homenagem às minhas professoras do curso primário, lá em Tupaciguara. Foi com elas que aprendi essas poesias que declamo até hoje. Especialmente dona Lourdes Mendes de Carvalho... Deixem-me ir em frente. Prestem atenção porque vou dar agora uma definição de símbolo que não é muito conhecida. A questão do símbolo é tão importante que há várias teorias a seu respeito. O que vou apresentar é uma definição psicanalítica inspirada em Bion, em Melanie Klein, com fundamentação filosófica em Merleau-Ponty. Vou primeiro enunciá-la e depois explicar com calma. O que é a simbolização? “O símbolo é uma polissemia encarnada, estruturando-se dinamicamente, na dialética da imanência com a transcendência”. Entenderam? É muito rico, e cada uma dessas palavras merece um comentário. Querem ver? “Uma polissemia”. O que significa “poli-semia”? 13 Significa muitossentidos. Há símbolo onde há poli-semia. E para haver símbolo,é preciso que esta polissemia realize as outras condições. Por isso mesmo perguntamos: o que é o contrário do símbolo na ausência da polissemia? É a univocidade – com um sentido só. Uma univocidade característica da psicose. O psicótico é unívoco, vendo um sentido só e não percebendo outros! O símbolo é polissêmico, o psicótico mono-sêmico. Na nossa linguagem mais popular, é como diz o Chico Anísio: “Ele só pensa naquilo”. O psicótico fica preso, sem saída. E como seria o tratamento do psicótico? Mostrando-lheoutras alternativas! Gente... é mais sério do que vocês podem estar pensando: o psicótico sofre sem perspectiva de cura, até porque ele mesmo não vê, nem acredita que possa ter saída.O psicótico não brinca de psicose... elesofre! E, em alguns casos, com perigo de vida. É muito sério! Dai para nós a pergunta: é possível tratar da psicose psicanaliticamente? Sim, mediante simbolização.Não sei se vou conseguir transmitir a vocês a importância terapêutica do processo simbólico! P – Todos nós precisamos nos tratar. R – Muito bem. O que você está dizendo é muito profundo... porque, segundo Bion, todos temos a partepsicótica de nossamente ao lado da parte sadia. Mais profundamente ainda,todos nós somos seres vivos e mortais, com possibilidade de haver saúde e doença. Dito de forma ainda mais radical: não somos deuses!... E já que disse esta frase, posso continuar falando um pouco em estilo sartreano. “Você não é deus e a culpa é sua!”. Esta é uma fantasia persecutória, na tomada de consciência da finitude. Só que, em seguida, Sartre retoma o assunto, corrigindo: “Você não é deus, e não há nenhuma culpa nisso”. Você não tem que ser deus, mas tem que se humanizar. “O existencialismo é um humanismo!”. Nosso 14 desafio não é virarmos deuses, mas nos humanizarmos tanto quanto possível. Continuando pois: O símbolo é uma polissemia “encarnada”... que toma corpo. Como isso é sério! Finalmente esta frase significa que nosso corpo encarna nossa mente! Nós somos mente e corpo, e nossa vida mental encarna-se em nosso corpo. Polissemia... encarnada... estruturando-se dinamicamente... A estrutura dinâmica é a própria vida. Nós falamos de vidamental... desde o início... E isso nos faz pensar em Melanie Klein. Ela é quem melhor estudou a vida infantil desde o início... A relação mente-corpo está presente no ventre materno, e a criança registra... a ponto de Freud falar de memóriasfetais. Uma expressão bonita... apesar de difícil de entender. Todos nós temos memórias fetais. Quais? Muito provavelmente até hoje eu ainda tenho “lembranças” no meu inconsciente fetal. Polissemia encarnada... estruturando-se dinamicamente... nadialética da imanência com a transcendência. O que isso quer dizer? Imanência quer dizer que “Há sentido aqui... agora”. Transcendência quer dizer que “Há sentido, não só aqui, nem só agora”. A questão do sentido transcende o aqui-agora! Ela acontece no momento, mas não se esgota no momento! DaíBion ter algumas expressões surpreendentes e difíceis. Querem ver? “Sem memória, sem desejo, sem compreensão”. Imanência e transcendência. Tanto há sentido aqui-agora, como fora daqui e além d’agora! Por isso o título do meu livro “Expansão do universo mental”. O que é a psicanálise? Um tratamento simbólico da univocidade psicótica! Um tratamento por meio do qual tentamos expandir o universo mental, encontrando saídas e alternativas. Acho que vou parar... há muito mais coisas a dizer... mas não posso dizer tudo! Há muito mais coisas além daqui e d´agora. Muito mais coisas depois e noutros lugares. Quem sabe d’outra vez... a gente fale mais. 15 Agora vocês é que vão falar. P – Vou pedir para o Rezende falar-nos um pouquinho sobre a concepção arcaica do símbolo segundo Melanie Klein. É muito bonito... R – Vou começar lembrando que existe na Internet um site da Febrapsi... no qual vocês podem encontrar todo um curso que ministrei com o título A odisseia de todos nós: a concepção de símbolo segundo Homero eMelanie Klein. Vocês podem chegar em casa e abrir esse texto. Qual a importância desse assunto? É a sua origem em Homero. A seu respeito há uma frase famosa em que se pergunta: “Foi a Grécia que gerou Homero, ou foi Homero que gerou a Grécia?”. Homero é tão importante que acaba sendo colocado na origem da civilização helênica. E ele escreveu a Odisseia, inspirada na definição arcaica de símbolo, tal como a encontramos no dicionário grego do Bailly: “O símbolo era um objeto primitivamente uno, que duas ou mais pessoas repartem entre si, no momento em que vão separar-se. Cada uma conserva seu fragmento. Mais tarde, muito tempo depois, quando se reencontram, elas se servem de seu fragmento para se fazerem reconhecer. Ao se reconhecerem, recompõem a união primitiva, recebendo um nome novo, com uma função igualmente renovada”. Esta é a noção de símbolo segundo Homero... e retomada por Melanie Klein. E há um filme com a mesma temática. Dois irmãos que se distanciam. Mas a mãe havia posto no pescoço de cada um a metade de um medalhão. 20 anos depois eles se reencontram. Ao verem a metade do medalhão, se reconhecem. “Então você é meu irmão!””... Falei de propósito de 20 anos, porque, segundo Homero na Odisseia,foi este o tempo que Ulisses ficou longe de Penélope. Na volta, seu filho Telêmaco já estava com 20 anos! Esse é o pedido que a Maria Inês me fez – de apresentar a noção arcaica do símbolo, usada por Homero e Melanie Klein. Não se esqueçam de entrar no site da Febrapsi: A odisseia de todos nós. 16 P – Ao ouvi-lo fiquei muito comovida até porque meu pai também é de Tupaciguara. Esse fato me fez pensar também na questão da identidade... inclusivena identidade do psicanalista. E me lembrei que o senhor escreveu um livro sobre a identidadedopsicanalista. Minha pergunta é se o senhor não poderia falar um pouco sobre esse assunto: a identidade do psicanalista! R – É uma pergunta delicada. A melhor resposta para mim seria dando o exemplo do próprio Bion. Querem ver como é que ele fala? “De acordo comO, em direção a O”. Ou,dito de maneira um pouco mais crítica: “Não confundamos o analista que é e o pseudo analista”. E aqui-agora vou fazer mais uma homenagem a Dona Judith. Quando comecei minha análise, meio eufórico, ela sorriu e me disse: “Rezende, todos nós começamos engatinhando. Engatinhe... e um dia você vai ficar de pé!”.Resumo assim o pensamento de Dona Judith. O importante é não pretendermos apresentar nosso diploma de “analista de verdade”. Digo isso sem deixar de mencionar uma situação quase dramática. É quando você abre um consultório e põe na porta “Consultório de Psicanálise”. Qualquer um pode chegar e perguntar: “De verdade... ou supostamente?” Qualquer um! E só a experiência poderá dar uma boa resposta. Mas... já que falei assim, podemos dizer de maneira mais dinâmica que a resposta à sua pergunta depende também do paciente. Não é só o analista que está em questão... é a dupla. Uma dupla pode ser mais verdadeira que outra. E um de nossos sofrimentos acaba sendo frequentemente este: com alguns pacientes dá certo, com outros não dá. E nós precisamos ter suficiente humildade para reconhecer: com este não deu certo! P – Gostei muito. Seu exemplo é uma boa resposta para nós. Você é psicanalista. Agora... haja cultura! R – Atenção. Quero fazer um pequeno comentário a essa última frase: haja cultura! Porque é uma das bênçãos na minha vida: saí de Tupaciguara, fui para São Paulo. De São Paulo para a Europa, o Canadá, a 17 América do Norte, visitando também países da América do Sul. Esta é uma benção de Deus, e eu recomendo a todos vocês: viajem e leiam! Eu aprendi muito com os outros. P – Minha gratidão para com a vida é de muito antes de eu praticar a psicanálise. Mas agora, ao encerrar meu segundo relatório eu cito uma frase do Rezende sobre a escrita psicanalítica, citando também o David Zimerman. Eu gostaria de relembrar e compartilhar com os colegas: “Confiar significa fiar-junto. Fiar o quê? O fio do tecido que é o texto de nossas vidas. Também na situação analítica nós fiamos e desfiamos junto com o analisando o fio que ele teceu”. R – Obrigado. E já que você falou em gratidão, eu lembraria que este é um dos grandes temas da psicanálise. A tal ponto que não hesito em afirmar que o melhor livro de Melanie Klein tem por título “Inveja e Gratidão”. E sobre a questão do fio-confiar, recomendo o livro da Julia Kristeva No Princípio era o amor. Mas você me deixou comovido também ao mencionar o nome do David Zimerman... Ele era como um irmão para mim. E eu digo com certo humor: um irmão mais novo. Três anos mais novo ...e já se foi. Falar do Zimerman me deixa comovido. Ele era o analista com quem eu queria fazer minha segunda análise. Trabalhamos juntos tanto aqui no Brasil como em Portugal. Eu tenho em meu escritório um pôster com o retrato do Bion, e o nome dos palestrantes lá na Universidade de Lisboa: Carlos AmaralDias, David Zimerman e eu mesmo. Talvez assim eu possa pensar que um dia poderei tambémlembrar o nome de todos vocês que participaram desse encontro emUberlândia. Obrigado a todosvocês pela atençãogenerosa. E aguardem o texto dessa conversa que oportunamente lhes será enviado. Assinado: Antonio Muniz de Rezende