A identidade do analista:
função e fatores*
Antonio Muniz de Rezende**, Campinas, BRASIL
* Comunicação feita em Ribeirão Preto, como apresentação antecipada de um livro a ser publicado com este mesmo
título.
** Membro da Sociedade Psicanalítica de São Paulo.
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1. Um assunto que está sempre voltando à nossa ordem do dia é o da identidade
do psicanalista. Isso acontece tanto em razão de necessidades institucionais (de seleção
e formação de candidatos, reconhecimento e promoção de membros), como em função
do senso de responsabilidade e busca de autenticidade profissional por parte de
psicanalistas mais antigos, em auto-análise. No comentário (no. 88) de seu artigo
"Sobre a arrogância", o próprio Bion (1984-1) levanta essa questão e fala, por um
lado, do "analista que é", como analista real ou de verdade; e, por outro, do "analista
que não é" e, por isso mesmo, deve ser considerado um pseudo-analista. Eis o texto:
"Melanie Klein acreditava que em todos os analisandos se poderiam detectar
mecanismos psicóticos e que estes últimos precisariam ser desnudados para que
a análise fosse satisfatória. Estou de acordo com isso - não há postulante à
análise que não tema os elementos psicóticos nele existentes e não creia poder
atingir um ajustamento satisfatório, sem que se analisem esses elementos. Uma
solução desse problema é particularmente perigosa para quem estiver engajado
em dar formação: o indivíduo busca lidar com dito medo tornando-se
candidato, de sorte que o fato de ser aceito para formação possa ser tomado
como um atestado oficial de imunidade passado por aqueles que melhor se
qualificam para sabê-lo. Com a ajuda do próprio psicanalista, poderá seguir
fugindo de se defrontar com o seu temor, e terminar por vir a ser um PSEUDOANALISTA".
De maneira forte e corajosa, Bion levanta a questão da identidade do analista no
contexto de uma análise da parte psicótica da mente do analisando. Ela precisa ser
bem analisada, para que um candidato possa ser considerado formado, sem que sua
aceitação pela instituição se transforme num "atestado oficial de imunidade passado
por aqueles que melhor se qualificam para sabê-lo".
Um leitor assíduo da obra de Bion não terá dificuldades em reconhecer que
semelhante preocupação esteve nela presente o tempo todo, como sinal de uma
atenção especialmente voltada para a formação de futuros e atuais psicanalistas. Nesse
sentido, é perfeitamente possível fazermos um levantamento de aspectos mencionados
por ele e cujo conhecimento talvez se torne bastante útil, tanto para a auto-análise de
analistas mais antigos, como para o discernimento e reconhecimento de candidatos e
membros nos vários momentos de sua formação. Afinal, como reconhecer um
"analista que é", e como ajudá-lo a tornar-se um "analista de verdade"?
2. Para responder a essa pergunta, gostaria de distinguir, com Bion (1962), as
funções e fatores que entram na configuração da função analítica. Aliás, estou aqui
tomando função analítica como nome da configuração resultante da corre1 62 ■
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lação das seguintes funções: função alfa, reverie, compaixão, capacidade de nomear,
capacidade de negar, at-one-ment, Being ou Ser O.
2.1. "O analista que é", no exercício da função analítica característica de sua
identidade, deve possuir uma função alfa suficientemente desenvolvida.
Por função alfa, Bion (1994) entende a capacidade de transformar elementos
beta em elementos alfa, de tal forma que possam surgir os objetos psicanalíticos
propriamente ditos, a serem trabalhados durante a análise, em relação direta com o
domínio dos sentidos.
A alusão ao domínio dos sentidos conota a distinção entre a realidade sensorial e
a realidade psíquica (Bion, 1970). Desse ponto de vista, é a função alfa que permite
olhar uma coisa e ver outra, ouvir uma coisa e escutar outra. No contexto de uma
análise da psicose, a função alfa pode ser considerada uma primeira etapa no processo
de simbolização ("importante para o desenvolvimento do Ego", como muito bem nos
mostrou Melanie Klein).
No contexto de uma teoria sobre o processo de pensar, os elementos beta não
são pensáveis. Para poderem entrar no circuito do pensamento, precisam ser
transformados pela função alfa que, como tal - "como trabalho alfa" - abastece as
reservas de pensamento (a começar pelos pensamentos do sonho, como veremos
melhor ao falarmos da reverie, como segunda função integrante da função analítica).
Para sabermos se estamos diante de um "analista que é", podemos começar
investigando os sinais da presença de sua função alfa. Isso pode ser feito
especialmente com o exame da maneira como o analista lida com pacientes que ficam
presos no sensório, num discurso realista-histórico, relativo a fatos brutos, em sua
materialidade. Trabalhei durante muito tempo com um paciente assim: ele passava
praticamente toda a sessão contando o que acontecera nos últimos dias, com ênfase
nos aspectos objetivos e práticos.
Do ponto de vista da contra-transferência, era como se me desafiasse o tempo
todo a exercitar minha função alfa, para suprir a ausência da sua. Um pensamento e
uma linguagem concreta constituíam um obstáculo à minha própria capacidade de
simbolização, pelo menos em seu aspecto de espontaneidade. Eu tinha que me
observar (ao mesmo tempo que observava meu paciente), para não me deixar
contaminar pela projeção maciça e constante de elementos beta, conservando-me, ao
contrário, atento em captar elementos alfa "por trás" dos elementos beta que ele me
trazia.
No seu texto sobre a Evidência, Bion (1976) dá um exemplo precioso de como
ele mesmo demorou a perceber o que havia de elementos alfa por trás dos elementos
beta que o paciente lhe comunicava. Quando os percebeu e os devolveu ao paciente,
este também pôde pensar o que estava acontecendo, noutro nível.
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2.2. A segunda função integrante da função analítica é a reverie. Como
aprofundamento e desenvolvimento da função alfa, ela pode ser descrita como capacidade de lidar com o material onírico trazido pelo paciente, como primeira
amostra de sua vida psíquica. A comparação simbólica entre a função alfa e a reverie
poderia ser expressa da seguinte forma: assim como a função alfa está para os
elementos beta transformados em alfa, assim também a reverie está para os elementos
oníricos a serem trans-formados em objetos psicanalíticos. Segun do Bion (1994), os
elementos alfa começam a ser utilizados nos pensamentos oníricos, graças ao trabalho
de "sonho alfa" - como "transformação em sonho".
Para dizer em que consiste esse trabalho, Bion introduz uma observação genial,
ao dizer que o terreno em que se desenvolve a reverie é o campo dos sonhos e dos
mitos. E acrescenta que o sonho é como um mito do indivíduo, e o mito como um
sonho da humanidade (Bion, 1984).
A questão que se coloca, desse ponto de vista, é se o analista é dotado de reverie
a ponto de reconhecer, no trabalho de sonho do paciente, os sinais de sua vida
psíquica, a começar pela identificação do mito que o paciente está sonhando a seu
próprio respeito.
Como se pode ver, a reverie é um aprofundamento da capacidade simbólica do
analista que já começara a aparecer na função alfa, como primeira etapa no processo
de simbolização.
O exemplo clássico nos é trazido por Melanie Klein (apud Bion 1984-1), ao
falar da reverie materna como capacidade de a mãe sonhar os sonhos do bebê. Não
sendo capaz de falar, o bebê-infante por assim dizer, desafia a mãe a adivinhar o que
se passa com ele, e que poderia ou precisaria ser posto em palavras. Não por ele, mas
por ela.
Será que o analista-mãe é dotado de reverie suficiente para "ouvir uma coisa e
escutar outra", quando o paciente-bebê lhe conta seus sonhos? Muitos acham que a
resposta estaria na capacidade sonhadora do próprio analista. Creio ser mais correto
dizer que um analista é dotado de reverie, quando capaz de elaborar seus próprios
sonhos, indo além do sentido manifesto. Noutras palavras, a reverie psicanalítica,
como função, não seria uma mera capacidade de sonhar, mas de interpretar seus
próprios sonhos, assim como os do paciente. Desse ponto de vista, Freud (1900)
continua sendo o melhor exemplo de um analista dotado de reverie como
desenvolvimento da capacidade simbólica. E não é por acaso que ele próprio nos fala
do simbolismo dos sonhos, conotando no analista uma capacidade suficiente para
interpretar simbolicamente os sonhos de seus pacientes.
2.3. A terceira função integrante da função analítica é a compaixão ou compadecimento.
Podemos falar a seu respeito, no prolongamento da reverie, primeiramente
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como função onírica, aproveitando uma sugestão de Aristóteles, ao dizer que o teatro
são as paixões em ação, e o sonho uma peça montada no teatro do inconsciente. Ou
então, podemos entender a compaixão como uma especial capacidade de comunicação
afetiva entre a mãe e seu filho infante.
No primeiro caso, a compaixão significa a capacidade de representar as paixões
"no teatro do inconsciente". Gosto de encarar o sonho dessa forma, como uma peça de
teatro na cena do inconsciente do sonhador, na qual ele representa todos os papéis, a
começar pelo de "paciente", isto é, de alguém que está tomado por alguma paixão.
O que há de extraordinário nesse "teatro do inconsciente" é que o sonhador é, ao
mesmo tempo, diretor e ator, no desempenho de todos os papéis, na fala de todos os
textos, na execução de todos os atos, no contexto de todas as cenas. Mais uma vez fica
patente a concentração de sentidos na experiência simbólica de que o sonho é uma
amostra preciosa.
Em princípio, poder-se-ia dizer que todo sonhador é um bom artista no teatro do
inconsciente. No entanto, talvez devêssemos reconhecer que, na realidade onírica, um
sonhador pode ser mais hábil no desempenho de determinados papéis, isto é, ao
encarnar com mais freqüência o personagem de determinada paixão, de preferência a
outras. Os sonhos recorrentes mostram, por assim dizer, a preferência do sonhador por
determinados papéis, no desempenho de determinadas paixões. Um colérico terá
freqüentemente sonhos de raiva, um amoroso terá sonhos de amor, e assim por diante.
O importante, no dizer de Freud (1900), retomado por Lacan, é reconhecer que o
sonhador, na verdade, é o sujeito do inconsciente, e, como tal, dá preferência ao tema
do desejo e de sua frustração. A frase de Freud, dizendo que o sonho é uma realização
alucinada do desejo, me parece preciosa para entendermos o que possa ser a
compaixão como integrando a função analítica. Um analista precisa ser capaz de
aceder ao desejo do sujeito do inconsciente, a ponto de intuir em que sentido esse
último mobiliza seus diversos personagens - do sonho - em vista da satisfação de um
desejo que a realidade frustrou.
Nesse mesmo sentido, Bion (1984-1) nos diz que o pensamento tem tudo a ver
com a frustração - a começar pelos pensamentos do sonho - em relação com a
frustração do desejo de satisfação. E ele acrescenta que o pensamento é que permite
transpor o fosso entre a frustração e a satisfação, assim como também permite transpor
o fosso existente entre um problema e sua solução. Nesse sentido, fala-se com toda
razão dos "pensamentos do sonho", ou do sonho como forma de pensamento, na
preparação da ação que transpõe a lacuna existente entre um desejo frustrado e sua
realização.
A outra maneira de entender a compaixão, no prolongamento da reverie, seria
reconhecendo que essa última só é possível graças à compaixão, isto é, como
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um conhecimento por conaturalidade afetiva. Semelhante maneira de compreender a
compaixão é importantíssima para a psicanálise, especialmente a kleiniana, pois
significa o reconhecimento de que o amor também conhece, e de que a mãe conhece o
não-dito de seu filho infante, principalmente por estar afetivamente unida a ele, a
ponto de "sentir" o que ele está sentindo.
Para Bion (1994), esse sentido da compaixão deverá expandir-se ainda mais no
que ele chamou de at-one-ment, como comunhão entre a mente do analista e a do
paciente, como efeito da presença da realidade última. Por enquanto, é importante não
identificarmos compaixão e at-one-ment, embora reconhecendo que a primeira prepara
o segundo.
É especialmente neste sentido que os kleinianos costumam falar da sensibilidade
do analista - isto é, de um analista capaz de sentir o que o paciente está sentindo, sem
conseguir dizê-lo. Talvez possamos acrescentar que a compaixão é um pressuposto
para a continência do analista (como diremos mais abaixo), para receber e transformar
as projeções do paciente.
Como saber se um analista é dotado de compaixão? Uma primeira resposta bem
kleiniana seria a seguinte: se ele tiver elaborado suficientemente a posição esquizoparanóide, especialmente em sua última defesa que, segundo Melanie Klein é o
abafamento das emoções. Reconhecer que a própria emoção proporciona
conhecimento, bem como entendimento da mensagem que o paciente está transmitindo
exatamente na condição de "paciente", é provar que, antes de ser analista, esse
indivíduo foi e continua "paciente", a ponto de saber, por experiência própria, o que é
que seu paciente pode estar sentindo em termos de paixão e emoção. O analista sabe o
que é a raiva, o ódio, o amor, a tristeza, a esperança ... não apenas por ouvir dizer, mas
por ter experimentado e saber até onde as paixões nos podem levar. Especialmente,
torna-se capaz de entender o que é a atuação, diferentemente da ação. A atuação é
binaria, passando diretamente da paixão à ação, enquanto a segunda é ternaria,
passando da paixão à ação por meio do pensamento.
Um dos sinais da compaixão do analista é não ser ele precipitadamente
moralista, aprovando ou condenando, simplesmente porque algo é feito com paixão ou
sem paixão. O que vai ser examinado não é simplesmente a presença ou a ausência de
paixão, mas a presença ou a ausência de pensamento.
2.4. A quarta função que dá seqüência ao processo simbólico é a capacidade de
nomear a situação vivida pelo paciente. Isto é - como acaba de ser dito - a capacidade
de o analista pensar, junto com o paciente, para que nem um nem outro acabem por
atuar sob o efeito das paixões em ação.
É pensando que o analista pode observar e nomear a experiência vivida. Um
exemplo que gosto de dar é o de Bion, dizendo a seu paciente: "Isto que o senhor está
sentindo é o que eu chamo de inveja". Nesse exemplo, "inveja" é o
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nome do sentimento que o paciente está experimentando, e que o analista conhece
muito bem.
E deveria ser sempre assim: não um nome qualquer, mas o nome adequado que
a teoria psicanalítica permite utilizar. Nesse sentido, a própria teoria psicanalítica
surge como função integrante da função analítica. Ela pode ser "nomeada" como "a
capacidade de o analista nomear psicanaliticamente a experiência que está sendo
vivida pelo paciente".
Esse ponto de vista é uma das características do pensamento de Bion, ao nos
dizer que a teoria é indispensável à função analítica, para definir a identidade do
analista. Sem teoria analítica correspondente e adequada, não podemos distinguir entre
um "analista que é" e um "pseudo-analista". Segundo Bion, a teoria analítica é o nome
do objeto psicanalítico (percebido pela função alfa, a reverie e a compaixão). E seria
ilusão pensar que a experiência não precisa ser nomeada, ou que ela pode ser nomeada
de qualquer jeito.
Aliás, é a esse propósito que Bion (1994) nos fala de "uma ciência da psicanálise e de uma psicanálise da ciência". Existem teorias psicanalíticas e teorias que não
são psicanalíticas. A começar por aquelas que o paciente constrói a respeito de si
mesmo e dos outros (sem esquecer as teorias que o próprio analista pode construir
sobre si mesmo e sobre o paciente). Como direi a respeito do elemento "razão", há
muita racionalização no discurso do paciente, e um sinal da função analítica do
analista é a sua capacidade de distinguir entre as teorias que o paciente formula sobre
si mesmo, bem como sobre a análise, e as verdadeiras teorias psicanalíticas formuladas
pelos verdadeiros teóricos da psicanálise. Desconhecer a teoria psicanalítica é
impossibilitar o tratamento psicanalítico das situações psicanalíticas.
No entanto, a quinta função nos obriga a ir mais longe ainda; por um lado, com
a atitude investigatória e, por outro, com a capacidade negativa. Noutras palavras, a
quinta função nos obriga a irmos além do conhecimento teórico (K) e mesmo do
conhecimento científico, na direção de um pensamento que nasce da frustração diante
de O e permite o desenvolvimento da capacidade negativa. Negativa de K, e aberta à
experiência de O (em at-one-ment e Being).
2.5. A capacidade negativa, integrante da função analítica, é um dos temas
característicos da psicanálise bioniana. Nem sempre os próprios analistas dão a
impressão de haverem entendido o que ela seja na sua correlação com as outras
funções.
Bion (1984-3) começa lembrando que em toda definição há afirmação e negação. Definir é, ao mesmo tempo, dizer o que uma coisa é e o que ela não é. Não
reduzir uma definição a seus aspectos somente positivos é mesmo uma das condições
para a elaboração da posição esquizo-paranóide em sua tendência a ser tão somente
positiva (ou positivista).
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Indo mais longe, com Melanie Klein, a simbolização nos leva a reconhecer que
o objeto total não é apenas seio-bom, nem somente seio-mau, mas seio-bom-e- mau,
(como pude desenvolver em meu livro Ser e não ser, sob o vértice de O).
E Bion desenvolve ainda mais a dimensão simbólica do pensamento, ao falar
sobre as "transformações" que ocorrem no uso de modelos analógicos. Indo bem mais
longe que as equações simbólicas do psicótico, o "analista que é" é capaz de comparar
sem equacionar, isto é, capaz de afirmar a semelhança sem se esquecer da diferença. O
melhor exemplo, também segundo Bion (1994), nos é dado pela teologia, na sua
maneira de usar a analogia entis: Deus é ser, o homem é ser, mas o ser do homem não
é igual ao ser de Deus. Afirmar a igualdade pura e simples seria operar uma redução
simbólica que, além de falsa, seria também psicótica, não discernindo entre
"invariante" e "variáveis". (Esse parece ser um dos aspectos psicóticos do ateísmo, na
psicanálise da experiência religiosa).
Indo às últimas conseqüências, e inspirando-se na teologia negativa de Mestre
Ekhart, Bion nos fala de uma psicanálise negativa, isto é, capaz de reconhecer que o
espaço do negativo é infinitamente mais vasto que o do positivo, tanto do ponto de
vista do conhecer como do dizer. Daí, segundo Ekhart, a distinção entre Deus e a
Deidade e, segundo Bion, a distinção entre os fenômenos psicanalíticos e a Realidade
Última da mente. O que a teologia diz sobre Deus não diz a Deidade; assim também o
que a psicanálise diz sobre a mente não diz a Realidade Ultima. A conseqüência é que
também em psicanálise (como na mística) se vai privilegiar a experiência da presença
na forma de uma união com Deus (para a teologia) e de uma experiência deat-onement (para a psicanálise bioniana).
2.6. A sexta função analítica é At-one-ment. De acordo com a analogia do
modelo da teologia negativa, ao reconhecer que nossas teorias não dizem o que há a
dizer, acabamos por reconhecer que existe uma outra forma de experiência que a
teologia chama de "comunhão" (ou de união através da graça e da caridade) e que a
psicanálise de Bion (1984-3) valoriza a partir do uso analógico do modelo místico.
Talvez o primeiro elemento a ser considerado, tanto num caso como no outro,
seja a fé, isto é, uma adesão no escuro, como nos é dito por São João da Cruz, muitas
vezes citado por Bion. A adesão ao objeto se dá não em nome das teorias, isto é, dos
nomes que lhe são dados, mas da própria experiência irredutível ao dito.
Aliás, a fé se apoia na caridade. Noutros termos, o conhecimento aqui se apoia
no amor, numa evidência amorosa, muito mais do que numa evidência cognitiva. E
essa é a dimensão mais surpreendente do "aprender com a experiência". Uma
experiência no sentido de um contato verdadeiro com a vida mental, tanto do paciente
como do próprio analista. At-one-ment é união, é contato, é experiência do outro, no
que tem de mais próprio, isto é, de mais diferente.
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Talvez somente nesse nível, e em função de At-one-ment, se possa falar de uma
experiência psicanalítica da inter-subjetividade (como condição de análise da
transferência e da contra-transferência). Semelhante experiência começa por ser
amorosa, mas logo se perfaz como experiência de ser. Somente o amor é unitivo, mas
não há maior união do que a união no próprio ser. Daí a sétima e última função,
BEING que, por dizer respeito ao ser, não é mais uma função entre as outras, mas a
forma mais elevada da própria função analítica, integradora das demais.
2.7. BEING, ou "ser O". Bion responde (1994) finalmente à questão inicial a
respeito da identidade do analista. O "analista que é", é um "analista que é O", por
identificar-se a O tanto em sua própria mente como na mente do paciente: "em direção
a O, de acordo com O". E essa é a condição para o desenvolvimento e a expansão de
ambos. Não mais apenas "estar com os terminais abertos para captar os sinais da
presença de O, venham eles de onde vierem", mas transformar-se em O, a tal ponto
que a atividade analítica seja, por assim dizer, a própria atividade de O em nós.
Nesse caso, Bion nos fala de um "analista real" (1984-1) Mais uma vez o
modelo místico-teológico nos ajuda, ao falar da graça (como hábito entitativo, ou
maneira de ser). E é o que nos permite reconhecer na psicanálise de Bion uma
dimensão não apenas mística, por analogia com a teologia, mas ética, e profundamente
ética, na medida em que "Ser psicanalista" é também condição prévia para o exercício
da função analítica, tanto na clínica como na formação de outros analistas. Somente
um analista "que é" está em condições de evitar a acusação de improbidade ética, por
apresentar-se como sendo, quando, na verdade, não o é.
O pseudo-analista é anti-ético, exatamente porque não tem condições de "fazer"
o que só é possível a quem "é". Ao contrário, "o analista que é", é também
profundamente ético, (uma vez que "ética" é uma palavra derivada do verbo grego
"eimi" que significa "ser", ou "eu sou"). Por isso, "o analista que é", um analista real, é
também um analista de verdade, como poderemos ver oportunamente. Sua ação praxis - deriva de seu ser, e o manifesta.
3. Os fatores que entram na configuração da função analítica serão considerados
aqui a partir da relação do "analista que é" com os elementos de psicanálise, da
maneira como Melanie Klein a eles se refere no texto citado no início deste artigo, ao
falar dos "elementos psicóticos" presentes na mente daqueles que se apresentam para a
análise. Como tais, esses elementos são fatores da psicose.
No sentido em que vou referir aqui, eles são fatores da identidade do analista, e
podem ser particularmente considerados como fatores de despsicotizaRevista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 3, n. 1, julho 1999
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ção da mente do analista, por meio de uma análise que vá tão fundo quanto possível.
De acordo com Bion (1984-2) os elementos de psicanálise são igualmente sete: a
relação continente-contido, a oscilação das duas posições PEP-PD, os vínculos de
amor, ódio e conhecimento, a razão, a idéia, sentimento e dor, a relação narcisismosocialismo.
3.1. A relação continente-contido, como fator característico da função ana
lítica, mereceu especial atenção da parte de Bion (1984-1), levando em conta as
grandes intuições de Melanie Klein a respeito do mecanismo de identificação
projetiva. No tocante à identidade do "analista que é", trata-se de saber se ele é
dotado de boa continência para acolher, transformar e devolver tudo o que o
paciente nele projeta. Caso isso aconteça, a análise poderá transcorrer como um
processo normal de aprendizagem e crescimento.
De acordo com Melanie Klein, o modelo é sempre o da relação mãe- bebê, e o
contexto o da tolerância ou intolerância à frustração. Havendo tolerância, o bebêpaciente tem condições de pensar, com vistas à transformação da realidade frustrante,
seja externa ou interna. Não havendo tolerância, o expediente utilizado para evitar a
frustração poderá ser a fuga. E essa se dá mediante a projeção num outro, a mãeanalista, dos objetos maus internos, percebidos inicialmente como se fossem
elementos beta, inassimiláveis.
Se tiver boa continência, a mãe-analista acolhe o projetado e o elabora, fazendo
exatamente aquilo que o bebê-paciente intolerante não tinha condição de fazer: isto é,
pensar, preparando uma ação capaz de modificar a realidade frustrante.
Ainda de acordo com Melanie Klein, Bion reconhece que pode haver uma
identificação projetiva normal, realista, como processo normal de aprendizagem em
seus três tempos de introjeção, projeção e reintrojeção. Mas pode haver também uma
identificação projetiva excessiva, característica de uma mente psicótica, com excessiva
dificuldade em lidar com a realidade e incapaz de suportar suas frustrações.
Para ser bom continente, a mãe-analista precisa primeiro ser "forte" o suficiente
para não se abater com o peso de tudo o que nela for projetado; e deverá ter suficiente
"amor" para não se afastar, mantendo-se antes em contato, a ponto de manter sua
compaixão em vias de transformar-se em at-one-ment; finalmente, deverá ter uma
capacidade "simbólica" suficientemente desenvolvida.
Na realidade, essas qualidades da mãe-analista (fortaleza, amor e sabedoria) lhe
são garantidas em grande parte, senão totalmente, pela sua própria análise pessoal, na
qual deverá ter analisado e elaborado a oscilação das duas posições PEP-PD.
3.2. Comecemos reconhecendo que um pseudo-analista não analisou sufi
cientemente essa oscilação. Novamente, Melanie Klein é a principal fonte de Bion,
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para dizer que um pseudo-analista não é bom continente, porque não elaborou
adequadamente as defesas típicas da PER
Uma leitura bion-kleiniana desse capítulo nos permite dizer que elas são sete e
devem ser apresentadas na seguinte ordem: cisão, projeção, negação, idealização,
onipotência, onisciência, abafamento das emoções.
Qualquer atitude esquizo do analista impedirá que ele seja bom continente. E se,
por sua vez, costumar fazer identificações projetivas no paciente, o analista estará não
só invertendo os papéis, mas impossibilitando a sua continência para as projeções do
paciente.
Particularmente, o "analista que é" estará muito atento à idealização de si
mesmo como fruto da negação de seus aspectos negativos e afirmação parcial de seus
aspectos positivos, o que o leva também a adotar uma postura onipotente e onisciente
em relação ao analisando.
O máximo seria se a mãe-analista tivesse abafado suas emoções a ponto de não
poder experimentar compaixão e, antes, reforçasse uma sorte de insensibilidade (ou
hebetude, segundo Bion), falsamente identificada com a abstinência recomendada por
Freud.
Como é fácil de ver, um analista que não elaborou a PEP está muito mais para
um "pseudo-analista" do que para um "analista de verdade". Mas isso vale também em
relação à PD.
De maneira peculiar, a análise da PD permite elaborar a negatividade (enquanto
a análise da PEP permite elaborar particularmente a positividade). A experiência do
negativo permite lidar com a catábasis e as diversas formas de mudança catastrófica.
Dito de outra forma, permite lidar com a presença da morte na nossa vida, uma vez
que somos seres vivos e mortais.
Nesse sentido, a elaboração da PD é particularmente favorável ao desenvolvimento do pensamento, no reconhecimento da falha-falta (ou da falta-falha) em
vista de um sentimento de culpa reparatória. Caindo em si e pensando, o "analista que
é" cuida de reparar, juntamente com o paciente, as falhas que certamente aparecem e
das quais tomam consciência durante a análise.
Isso acontece especialmente em função da presença dos bons objetos internos
com os quais ele mantém e fortalece seus vínculos, a ponto de querer "voltar" para
restabelecer os vínculos anteriormente atacados ou desfeitos. No pensamento e na
recordação, a ação reparadora se inspira na gratidão, de que ela se torna a
manifestação mais verdadeira. O reencontro com os outros (dos quais a PEP o havia
feito distanciar-se) é celebrado numa comemoração que, de fato, é celebração de uma
nova aliança.
Segundo Melanie Klein, a elaboração da PD é um dos aspectos mais importantes do processo de simbolização, indispensável para o desenvolvimento do Ego.
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A pergunta aqui é a seguinte: será que o analista que aí está elaborou adequadamente as duas posições? Caso contrário, ainda estaremos lidando com um
pseudo-analista.
3.3. O terceiro elemento-fator que permite identificar um analista são precisamente os vínculos de amor, ódio e conhecimento. E é interessante que Bion (19842), depois de Melanie Klein, fale aqui de vínculos, no prolongamento do que dissemos
sobre as duas posições: a PEP ataca os vínculos, a elaboração da PD os restabelece.
Observa-se igualmente, que Bion alude apenas ao amor e ódio, quando poderia
evocar todas as outras paixões (pressupostas pela função de compaixão). Parece-me
ser essa uma maneira de ele considerar que, de fato, amor e ódio fazem uma síntese de
todas as outras paixões, e estão diretamente relacionados com o conhecimento ou,
mais precisamente, com o reconhecimento. Resumidamente, talvez pudéssemos dizer
que, na análise da PEP, precisamos elaborar todas as nossas manifestações de ódio; e
na análise da PD, precisamos elaborar todas as nossas manifestações de amor.
De qualquer forma, haveremos de reconhecer a ambivalência da agressividade
que tanto pode ser destrutiva como construtiva, dependendo do contexto em que se
encontrem: da pulsão de morte ou da pulsão de vida.
Daí depende a natureza dos vínculos que o analista mantém com as pessoas em
geral e com o paciente-analisando em particular. Existem boas alianças, mas existem
também alianças perversas. As más precisam ser desfeitas, as boas precisam ser
fortalecidas. Que tipo de aliança o analista mantém com o paciente-analisando?
Isso vai aparecer especialmente na maneira como se estabelece o vínculo K, isto
é, de conhecimento, na relação analítica. Embora se possa dizer que a análise busca
um melhor conhecimento do analisando a respeito de si mesmo e por parte do analista,
Bion não se cansa de repetir que a verdade sem amor é crueldade (assim como amor
sem verdade é mera ilusão). Há, portanto, uma dinâmica interna entre os vínculos, e
será indispensável analisar que tipo de vínculo o analista estabelece com o analisando,
mesmo ou principalmente quando se propõe a conhecê-lo, ou ajudá-lo a conhecer-se.
Como relatarei na terceira parte desse estudo, o que cura não é tão somente a verdade
conhecida, mas a verdade enquanto amada.
Aliás, isso diz respeito também ao nível em que se coloca este conhecimento:
em K, em -K, de K para O, com possibilidade de ser também de O para K? E o que
significa, nesse contexto, todo o conhecimento psicanalítico, mesmo que seja na forma
de uma ciência da psicanálise (Bion, 1994).
3.4.0 quarto elemento-fator nos permite elaborar um pouco mais essa ques1 72 ■
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A identidade do analista: função e fatores
tão. Trata-se da razão. Como é que a razão intervém no processo analítico enquanto
formador do analista que é?
Uma primeira observação é no sentido de reconhecer que o conhecimento (K)
pode ser não só útil mas necessário ao processo analítico. Falando a respeito da
capacidade de nomeação, já pude insistir na necessidade de o analista ser capaz de
nomear a experiência feita pelo paciente em análise. Mas, em se tratando de um
pseudo-analista, o que está em foco é muito mais o uso (em "psi") que tanto o analista
como o paciente podem fazer da razão. Aliás, talvez fosse mesmo melhor falar aqui de
"racionalização" e não apenas de razão. E Bion insiste em dizer que se trata de um uso
abusivo da razão em proveito da paixão.
E como se, ao invés de colocar a paixão a serviço da razão, o analisando
colocasse a razão a serviço da paixão, completando sua atuação com um reforço
racional. "Fiz, e tive razão de fazer do jeito que fiz. Com ódio ou com amor eu não sei,
mas com razão!"
Aliás, são muitas as formas de atuação em nome da razão, a começar pela
atitude daqueles que se dispensam de conhecer a verdadeira teoria psicanalítica e
fazem suas próprias teorias a respeito de si mesmos e dos outros. Existem muitas
teorias ad hoc, feitas de encomenda, pour le besoin de la cause.
Um pseudo-analista, com suas muitas formas de racionalização, não deve ser
confundido com um analista de verdade, que respeita a razão, inclusive a ponto de
reconhecer seus limites. É o que pode acontecer, graças à ajuda do quinto elementofator: idéia e pensamento.
3.5. Idéia é um fator importante, na medida em que os limites da razão e do
conhecimento (K) permitem o surgimento do pensamento, especialmente como
resposta à frustração, e preparação para a ação.
Mas há também perigos a evitar: o primeiro, na direção da idealização (conotando onisciência e onipotência); o segundo, no sentido de analista e analisando
ocuparem-se muito mais das idéias do que das pessoas. Nesses termos, não hesito em
falar de uma "psicose filosófica", exatamente na medida em que o filósofo psicótico se
interessa muito mais pelas idéias do que pelas pessoas, evidentemente em detrimento
dessas últimas. Aqui faz particularmente sentido a frase de Bion: verdade sem amor é
crueldade. Ficar no mundo das idéias pode ser uma forma de desconhecimento odioso
das pessoas com todos os seus problemas.
Em sentido contrário, isto é, com uma boa análise, talvez possa acontecer o que
parece ter acontecido com Bion (1984-1) ao dizer, primeiro, que a psicanálise é a
praxis de uma determinada filosofia; e em segundo lugar, que essa filosofia pode
muito bem ser uma philo-sophia, isto é, um pensamento amoroso que faz bem a todos,
a começar pelo próprio analista.
3.6. Mas falar de um pensamento amoroso não é falar apenas de amor (e
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Antonio Muniz de Rezende
ódio), mas também de sentimento e dor, como forma especial da paixão que traz um
"paciente" para a análise.
Em seu texto sobre "O modelo médico", Bion (1970) insiste na diferença entre
dor física e dor mental, com ênfase na angustia e na mudança de vértice (do sensorial
para o psíquico), com todas as conseqüências decorrentes para a clínica psicanalítica.
Uma delas é relativa à necessária experiência que o analista real deve ter feito da
dimensão psicótica de sua própria mente. Quem, segundo ele, não experimentou a dor
decorrente de uma vivência psicótica, talvez não tenha condições para entender o
sofrimento de um paciente com medo de ficar louco de uma vez, com perda da razão e
da identidade.
A outra é relativa a uma real expansão do universo mental, a ponto de mudar a
própria concepção de tempo e espaço, para poder tratar da angústia. Acho
extremamente significativo que Bion tenha tomado como exemplo exatamente a
angústia (no prolongamento das reflexões de Freud em "Inibição, sintoma e
angústia"), quem sabe a ponto de podermos dizer que o grande sofrimento é mesmo a
angústia, e todos os outros são como derivações dela.
Tudo isso é tão importante que podemos falar de uma nova concepção de espaço
e de tempo, um espaço e um tempo mentais, em cujo contexto, tão somente, faz
sentido falar de um tratamento psicanalítico da angústia.
De qualquer forma, esse sexto elemento-fator tem tudo a ver com a função de
compaixão do analista para com o paciente. E uma de suas expressões mais
significativas é exatamente o sétimo elemento, como passagem do narcisismo ao
social-ismo.
3.7. Esse sétimo elemento-fator tem-me parecido cada vez mais importante,
tanto do ponto de vista da análise do analisando como da análise do analista.
O "analista que é" certamente não pode ser narcisista, e muito menos funcionar
como Eco de um paciente Narciso. Como já pude trabalhar em outro contexto, o
perigo que corre um pseudo-analista é o de funcionar como espelho para o paciente
narcisista, devolvendo-lhe apenas aquilo que foi projetado, sem elaboração nem
transformação, de forma que tudo fica mimeticamente na mesma.
O pior é que o paciente narcisista é também sedutor, fazendo de tudo para que o
pseudo-analista funcione como um contra-narciso não analisado. A contratransferência narcísica não passa de um reforço do narcisismo do paciente.
A salvação de um paciente narcisista é a quebra do espelho. Mas isso só poderá
acontecer, se o analista tiver analisado seu próprio narcisismo, a começar pela
dimensão onipotente e onisciente inerente à sua própria idealização narcisista.
A quebra do espelho pode ser tanto mais sofrida quanto mais profunda for a
ferida narcísica. E podemos ver como o tratamento do narcisismo é também
1 74 ■
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A identidade do analista: função e fatores
um aspecto da elaboração da PD, no reconhecimento de que, sem mudança catastrófica, isto é, sem passagem pela morte, não haverá ressurreição.
Mas aqui a mudança catastrófica do narcisismo deve ser considerada como via
de acesso ao social-ismo. E eu pessoalmente acho que essa é uma dimensão pouco
explorada na psicanálise contemporânea, no sentido de se reconhecer, com Bion, que o
tratamento de Edipo diz respeito não apenas à sexualidade, mas também ao seu
relacionamento com a verdade e ao exercício de uma cidadania adulta.
É o que me leva a dizer que o "analista que é" não pode deixar de analisar com
seu paciente a relação entre ética e cidadania, como uma dimensão expandida da
mente de ambos. Ao contrário, um pseudo-analista tende a permanecer na
problemática de um indivíduo isolado e infantilizado, com o risco de não conseguir
realizar o "animal político" que todos somos.
Resumindo muito e sintetizando todos os aspectos desse último elemento-fator,
podemos dizer, com Bion, que num mundo pequeno, mesmo os pequenos problemas
ficam grandes, mas num mundo grande, mesmo os grandes problemas ficam
relativamente menores. E essa parece ser a maneira mais verdadeira de lidar com a
angústia, em especial a angústia de um narcisismo fechado em si mesmo, na frente do
espelho.
Como já pude mostrar em outro trabalho, do outro lado do espelho é que se
encontra a salvação de Narciso, graças à experiência do outro, dos outros, e do Outro.
E essa experiência é, ao mesmo tempo, de amor e simbolização, na descoberta de
outros afetos e de outros sentidos. Amor de um outro que ama, e simbolização de
sentidos não unívocos.
É também o que cria espaço para a liberdade, na intersubjetividade, por meio da
experiência de uma verdade amada, com possibilidade de ser compartilhada, num
verdadeiro consenso simbólico.
Um "analista que é", além de ser um "analista real", torna-se finalmente um
"analista de verdade".
4. Em que consiste a experiência psicanalítica da verdade? Trabalhei esse
assunto num livro intitulado A questão da verdade na investigação psicanalítica
(Rezende, 1999), cujo conteúdo pode ser resumido da seguinte maneira:
4.1. Na linguagem de Bion, a experiência da verdade na análise pode ser
nomeada a partir do vértice de O: "em direção a O, de acordo com O". Na linguagem
filosófica contemporânea, podemos falar de uma etapa de desconstrução (em direção a
O), seguida por uma outra de reconstrução (de acordo com O).
A desconstrução consiste em analisar (de acordo com a etimologia grega da
palavra analysis), para "desfazer" a estrutura de uma personalidade tal como se
apresenta no primeiro dia de análise. Aliás, essa maneira de proceder psicRevista Latino-Americana de Psicanálise- FEPAL, v. 3, n. 1, julho 1999
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Antonio Muniz de Rezende
analiticamente corresponde aos dois sentidos da palavra verdade em grego -alétheia isto é, como "desvelamento" e como "não-esquecimento".
A experiência terapêutica da verdade como desvelamento comporta cinco etapas
principais, que são o desnudamento das defesas encubridoras, o desmascaramento do
falso self, a quebra do espelho de Narciso, o iconoclasmo edípico na mudança de
valores e, por último, a mudança catastrófica no desabamento de um mundo.
A experiência da verdade como não-esquecimento comporta gratidão e amor à
verda de, criatividade e agressividade construtiva, expansão simbólica do universo
mental e, finalmente, uma nova maneira de Ser.
4.2. Semelhante experiência psicanalítica da verdade mereceu de Bion alguns
comentários importantes e significativos. Em várias passagens de sua obra
( Bion, 1994 ), ele cita um trecho da carta que o Dr. Johnson escreveu a Bennet
Langton:
Não sei se ver a vida tal como ela é nos dá muita consolação. Mas a consolação
que advém da verdade, se é que existe alguma, é sólida e durável. E aquilo que
pode derivar do erro é falaz e fugidio assim como sua origem.
E o que nos leva a acrescentar juntamente com Hanna Segal (1998) que
"se todas as ciências buscam a verdade, a psicanálise tem essa originalidade de
o fazer de forma terapêutica".
Em outras palavras, segundo ela e segundo Bion, a busca da verdade, no caso da
psicanálise, tem função terapêutica, proporcionando não apenas conhecimento e
"consolação", mas bem estar e saúde mental.
Bion, no entanto, não deixa de acrescentar que, se a verdade cura, não é tanto
enquanto conhecida, mas enquanto amada - uma vez que alguém poderia conhecer a
verdade e odiá-la, até mesmo porque conhecida.
Finalmente ele mostra sabiamente como semelhante experiência terapêutica da
verdade é vivida na análise na forma de uma experiência emocional compartilhada
(Bion, 1984-1). O "common sense", característico da situação analítica, é um consenso
ao mesmo tempo simbólico e amoroso (além do imaginário especular da situação
narcísica).
4.3. Comecei esta comunicação lembrando como a questão da identidade
do analista volta constantemente à pauta de nossas meditações. Gostaria de ter
minar "cogitando" a possibilidade de fazermos, para uso pessoal e até mesmo
coletivo, uma espécie de questionário-roteiro (uma Grade?) que nos ajudasse a
pensar e repensar - {Second Thoughts) -na nossa própria identidade e na daque1 76 ■
Revista Latino-Americana de Psicanálise - FEPAL, v. 3, n. 1, julho 1999
A identidade do analista: função e fatores
les que, de alguma forma, contam conosco, seja como pacientes seja como analistas
em formação.
Não o farei aqui, mas retomarei, para terminar, as palavras de Bion a respeito da
Grade: "Eu fiz a minha; mas cada um poderia fazer a sua". Por ora, contento-me em
sugerir aos interessados um material - bioniano - que me parece precioso, para ser
utilizado na fase da reconstrução generosa, depois de uma desconstrução corajosa.
(Coloco-me à disposição de todos para uma eventual troca simbólica, em vista do
"common sense" como experiência emocional compartilhada - na busca da verdade).
Referências bibliográficas
BION, W.R. (1962). Learning from experience. Heinemann Medical.
______ (1970). Attention and Interpretation. London: Tavistock Publications.
______ (1976). Evidence. Bulletin 8, British Psycho-Analytic Society.
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______ (1984-2). Elements of Psycho-Analysis. London: Karnac Books.
______ (1984-3). Transformations. London: Karnac Books.
______ (1994). Cogitations. London: Karnac Books.
FREUD, S. (1900). A interpretação de Sonhos. Rio de Janeiro. Imago Editora.
KLEIN, M. (1957). Envy and gratitude, a study of unconscious sources. London, Tavistock Publications.
SEGAL, H. (1998). Entrevista à revista Veja.
REZENDE, A.M. (1999). A questão da verdade na investigação psicanalítica. Campinas: Papirus
Editora.
______ (1999). Ser e não ser sob o vértice de O. Taubaté: Cabral Editora Universitária.
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