1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Antonio Alves Bezerra O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E SEUS TEMAS: 1981-2001 DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2011 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Antonio Alves Bezerra O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA E SEUS TEMAS: 1981-2001 Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História – História Social, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Izilda Santos de Matos. DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2011 3 BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ _____________________________________________ 4 Para João Pedro e Marco Antonio, Na esperança de construírem um país melhor! 5 AGRADECIMENTOS Sou profundamente grato a minha orientadora profa Dra. Maria Izilda Santos de Matos, pela orientação competente, pertinência de seus comentários e sugestões feitas à pesquisa ao longo desta caminhada. Agradeço, também, pela colaboração segura, pela confiança demonstrada na construção desse trabalho e ainda pela motivação quando me faltava ânimo para continuar. Minha gratidão pela paciência e pela significativa contribuição na minha formação acadêmica. Sou grato à profa Dra Heloisa de Faria Cruz, pelas observações e sugestões feitas no exame de qualificação, que procurei incorporá-las no trabalho e, também, pelas sugestões apontadas na disciplina Seminário Avançado II ministrada pela professora no primeiro semestre do curso de doutorado na PUC/SP, o que me possibilitou o redimensionamento do objeto de pesquisa e do corpo documental utilizado na pesquisa. Sou grato à profa Dra Célia Reis Camargo, pelas observações e sugestões feitas no exame de qualificação, que busquei incorporá-las no presente trabalho. Tive a oportunidade de tê-la como co-orientadora na iniciação científica, como integrante da banca de qualificação e defesa do meu mestrado e, agora, nesta tese de doutorado. Obrigado professora Célia por ter estado presente em todas as etapas da minha formação acadêmica, me permitindo chegar até aqui. Sou grato, ademais, aos professores do Programa Pós-Graduados em História da PUC/SP, pelos saberes socializados em cada aula e pelo respeito demonstrado aos temas de pesquisa que eram desenvolvidos por cada aluno do Programa. 6 Ao prof. Dr. Candido Moreira Rodrigues, do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso, com quem mantive diálogos significativos ao longo da pesquisa, tendo oferecido importantes contribuições ao trabalho desde a sua fase inicial. À profa Ms. Hivana Mara Zaina Martins, da Faculdade Santa Izildinha, pelo acompanhamento do meu estágio de docência no Ensino Superior. À Joana e Nara Letycia da Comissão Pastoral da Terra – CPT nacional, pela presteza em disponibilizar por meios eletrônicos os Cadernos Conflitos no Campo, os quais viabilizaram parte significativa dessa pesquisa. Ao Luiz Alberto Zimbarg, historiógrafo do Centro de Documentação e Memória da UNESP – CEDEM, que me auxiliou com dedicação no preparo de equipamentos fotográficos para que eu pudesse fotografar os volumes do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, viabilizando a pesquisa de campo. Ao Marcelo Zelic, Coordenador do Projeto Armazém Memória, por possibilitar-me a consulta de todas as edições do Jornal Sem Terra on line quando algumas informações se fizeram necessárias nos momentos da análise da documentação. À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior, pela concessão da bolsa que financiou parcialmente meu curso de Doutorado. Aos colegas de turma, com quem pude socializar tantos saberes ao longo dessa caminhada. Aos colegas de trabalho, especialmente às professoras Tânia Monteiro de Paiva e Hilma Celestino Scaramuzzi. Sou muitíssimo grato pelo carinho e 7 compreensão das mesmas e de outros colegas envolvidos direta ou indiretamente na construção desse trabalho. Aos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pela força, coragem, perseverança e esperança de mudança, qualidades essenciais para aqueles que acreditam na possibilidade da construção de um mundo mais digno e humanizado. Muitíssimo obrigado pela aprendizagem, pelos exemplos de vida e dedicação em pró da reforma agrária e de outras causas sociais. De forma mais que especial manifesto eterna gratidão a minha companheira Valdirene Machado, pelo carinho, apoio, sabedoria e compreensão, ações indispensáveis para que eu chegasse ao término de mais essa etapa da minha vida. Agradeço-lhe imensamente, meu amor, pela paciência em suportar minhas ausências, mesmo estando tão perto. Pelo esforço em me motivar a não desistir, pelas palavras de incentivos ditas em horários tão sublimes, fazendo com que meus medos fossem superados no sentido de chegar até aqui. Val, obrigado por tudo! Por fim, agradeço aos amores da minha vida: Marco Antonio e João Pedro, meus filhos, pela alegria, sabedoria, sensibilidade e pelos sorrisos notáveis do amanhecer ao anoitecer, ingredientes indispensáveis para superar os meus medos ao longo desses anos. Seus carinhos e afetos contínuos me fizeram perceber que a construção de uma tese é tão somente um trecho de tantos outros caminhos que terei que trilhar no mágico e incerto exercício de educar uma criança. Obrigado meus filhos, por tudo, sobretudo pelo amor recíproco. 8 RESUMO O presente trabalho estuda os materiais produzidos e veiculados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no período de 1981 a 2001, desvelando a trajetória histórica e política do MST assim como de suas lideranças, aqui personificadas na figura dos trabalhadores rurais sem terra, sendo suas experiências narradas não como vítimas, mas como sujeitos históricos imbricados na luta contra o processo de exclusão social ao qual foram submetidos historicamente, constituindo-se a reforma agrária na principal bandeira de reivindicação. A pesquisa desenvolvida revela que o JST registrou ao longo de sua trajetória as ações de intervenção do Movimento assim como a participação de outras entidades e instituições solidárias a ele, prestando-lhe apoio no sentido de colaborar com as múltiplas necessidades dos trabalhadores rurais sem terra: a reforma agrária e a justiça social no campo. Nesse aspecto, a pesquisa enfrentou o desafio de dar visibilidade aos materiais publicados pelo JST não somente em razão deste veicular os registros do Movimento, mas pelo desejo de recuperar e historicizar suas ações, suas práticas, seus discursos e suas representações frente aos anseios dos trabalhadores sem terra. A narrativa que se segue pauta-se pela interpretação e análise de uma extensa bibliografia contemplando temas correlatos à questão da terra, aos embates políticos envolvendo os trabalhadores rurais articulados pelo MST e por organizações não governamentais que compartilhavam do projeto defendido por este Movimento. Em face dessa problemática, a pesquisa tomou como recorte temporal o estudo de aproximadamente vinte anos de publicação do JST, priorizando a interpretação e análise de seus editoriais, entrevistas com lideranças do Movimento e artigos de opinião escritos por políticos, intelectuais católicos e acadêmicos de tendência de esquerda, assim como a análise de notícias e imagens veiculadas pelo mesmo jornal. Para tanto, utilizou-se os materiais apurados e divulgados pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, no sentido de compreender a relação do discurso do Jornal com as informações trazidas pelos Cadernos Conflitos no Campo, publicados por essa entidade, particularmente aquelas condizentes aos dados de violência no campo. A pesquisa intitulada O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Seus Temas: 1981-2001 contribui para a compreensão das etapas de atuação do periódico dos trabalhadores sem terra, descortinando suas interfaces, seus objetivos, sua linguagem, suas posições políticas, seu público leitor. Traz a tona ainda o seu local de circulação e sua tiragem, informações estas que proporcionaram a construção de uma narrativa em que se assegura a possibilidade do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra ser compreendido não somente como objeto de comunicação dos trabalhadores rurais mas, sobretudo, como sujeito de luta e porta-voz do projeto de reforma agrária e justiça social para o campo e cidade defendido pelo MST. Palavras-chave: MST, Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Trabalhador Rural, Luta, Experiências. 9 ABSTRACT The present work analyses the material produced and published by the Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Landless Rural Workers’ Newspaper) during the period from 1981 to 2001, and unveils the historical and political trajectory of the MST (Movimento Sem Terra – Landless Workers' Movement), as well as of its leaders hereby personified by the figure of the rural landless worker, in that their experiences are narrated not as victims, but as historic figures devoted to the fight against the social exclusion process to which they were historically submitted to, with the land reform constituting their main claim. The survey carried out reveals that the JST (Landless Workers’ Newspaper) has during its trajectory registered intervention initiatives by the movement, as well as the participation of other entities and solidarity institutions offering support in order to collaborate with the multiple needs of the rural landless workers: the land reform and social justice in rural areas. In this regard, the survey took on the challenge of giving visibility to the articles published by the JST, not just because it would publish movement records, but to fulfill the desire to recover and historicize its actions, practices, discourses and its representations faced with landless workers’ aspirations. The following narrative is based on the interpretation and analysis of an extensive bibliography contemplating themes related to the land issue, political disputes involving the rural workers articulated by the Landless Workers’ Movement and by non-governmental organizations that took part in the project defended by this movement. Faced with this challenge, the research took a timeframe of approximately twenty years of JST publications and gave preference to the interpretation and analysis of editorials, interviews with movement leaders and articles of opinion written by politicians, catholic intellectuals and leftist academics, as well as the analysis of news and images published by the newspaper. For such, material that was selected and published by the CPT (Comissão Pastoral da Terra – Pastoral Land Commission) was used in order to understand the relationship between newspaper’s discourse and the information provided by the Cadernos Conflitos no Campo (Field Conflict Notebooks) published by this entity, particularly those regarding rural violence data. The research entitled O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Seus Temas (The Landless Rural Workers’ Newspaper and its Themes 1981-2001) contributes towards understanding the stages of operation of the landless workers’ newspaper, uncovering its interfaces, objectives, language, its political opposition and its reading public. It also reveals the location and circulation numbers. This is information that provides the construction of a narrative in order to assure that it is understood not only as an object of communication for rural workers, but above all, as a subject of struggle and a briefer for the land reform project and social justice in rural areas and cities defended by the MST. Key words: Landless Workers’ Movement, Landless Workers’ Newspaper, Rural Worker, Struggle, Experience 10 SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS..................................................................................................12 LISTA DE TABELAS.................................................................................................13 LISTA DE GRÁFICOS...............................................................................................14 LISTA DE ABREVIAÇÕES........................................................................................15 APRESENTAÇÃO.....................................................................................................17 CAPÍTULO I - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: PORTA-VOZ DAS ESTRATÉGIAS E AÇÕES DO MST....................32 1.1 BOLETIM INFORMATIVO DOS SEM TERRA.................................................33 1.2 O BOLETIM SEM TERRA, IDENTIDADE E MEMÓRIA..................................55 1.3 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.............................70 CAPÍTULO II - O MST E SEU JORNAL, UNIDOS PELA REFORMA AGRÁRIA..........................................................................................88 2.1 A TRAJETÓRIA DO MST NO ESTADO DE SÃO PAULO...............................89 2.2 COLABORADORES NA ORGANIZAÇÃO DO MST........................................98 2.3 AÇÕES: O JST E SEUS EDITORIAIS...........................................................114 2.4 TENSÕES: O JST EM UMA NOVA LINGUAGEM.........................................132 11 CAPÍTULO III - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: INSTRUMENTO DE LUTA.............................................................156 3.1 DIÁLOGOS COM LIDERANÇAS DO MST....................................................159 3.2 AS ENTREVISTAS: DESCORTINANDO TENSÕES.....................................164 3.3 REGIÃO NORDESTE: ESTADO DO CEARÁ................................................166 3.4 REGIÃO SUL: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ...................................185 3.5 REGIÃO SUDESTE: ESTADO DE SÃO PAULO...........................................198 3.6 REGIÃO CENTRO-OESTE: ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL..........207 3.7 REGIÃO NORTE: ESTADO DO PARÁ..........................................................212 CAPÍTULO IV - O JORNAL SEM TERRA EVIDENCIA A VIOLÊNCIA NO CAMPO..........................................................................................224 4.1 O MST, A VIOLÊNCIA NO CAMPO E O PODER JUDICIÁRIO.....................225 4.2 A VIOLÊNCIA NO CAMPO SE INTENSIFICA NA DÉCADA DE 1990..........254 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................280 FONTES E BIBLIOGRAFIA.....................................................................................287 12 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Lutando Pela Terra..................................................................................59 Figura 2 - Marcha para Brasília.............................................................................139 Figura 3 - Configuração das três colunas da Marcha à Brasília........................143 Figura 4 - A repressão no Campo: governo militar.............................................248 Figura 5 - Repressão no Campo: “Nova República”...........................................249 Figura 6 - “Colonos Saem da Fazenda Santa Rita, RS”......................................267 13 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 1995-2000.......................104 Tabela 2 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 2001-2006.......................105 Tabela 3 - Ocupações de terras entre 1995 e 1999..............................................107 Tabela 4 - Alguns Editoriais – 1987.......................................................................119 Tabela 5 - Editoriais – 1997....................................................................................135 Tabela 6 - Editoriais – 1998....................................................................................136 Tabela 7 - Ocupações e números de famílias: 1990-1996..................................190 Tabela 8 - Ocupações de Terra no Brasil – 1987-1991........................................259 14 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Brasil – Ocupações de terras – número de famílias: 1988-1998.....111 Gráfico 2 - Número de Conflitos de Terra – Brasil – 1985-1991.........................261 Gráfico 3 - Assassinatos de 1985 a 1991 em Conflitos de Terra no Brasil.......264 Gráfico 4 - Ocupações de Terra no Brasil: 1991-1994 - Números de Famílias................................................................................................269 Gráfico 5 - Ocupações de Terras no Brasil: 1991-1994 – Número de Ocupações...........................................................................................270 15 LISTA DE ABREVIAÇÕES BST Boletim Sem Terra BM Brigada Militar CEBS Comunidades Eclesiais de Base CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CNA Confederação Nacional da Agricultura CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CPT Comissão Pastoral da Terra CNPST Comissão Nacional Provisória dos Sem Terra CAAST Comitê de Apoio aos Trabalhadores Sem Terra CUT Central Única dos Trabalhadores CEDEM Centro de Documentação e Memória COOPAN Cooperativa de Produção Agropecuária de Nova Santa Rita DER Departamento de Estradas e Rodagem FFLCH Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas FHC Fernando Henrique Cardoso FSP Folha de São Paulo FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FMI Fundo Monetário Internacional IBGE Instituto de Geografia e Estatística INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ITESP Instituto de Terras do Estado de São Paulo IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrária INDA Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais JST Jornal dos Sem Terra MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MAST Movimento dos Agricultores Sem Terra MIRAD Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário MEC Ministério da Educação e Cultura MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONGs Organizações Não-Governamentais 16 OAB Ordem dos Advogados do Brasil PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PM Polícia Militar PC Polícia Civil PF Polícia Federal PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PT Partido dos Trabalhadores STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais UDR União Democrática Ruralista UNESP Universidade Estadual Paulista USP Universidade de São Paulo UNICAMP Universidade Estadual de Campinas PUC/SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 17 APRESENTAÇÃO A discussão dos materiais publicados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra permite trazer à luz a trajetória do MST e seus seguidores, personificados na figura dos trabalhadores rurais sem terra. A presente pesquisa os compreende não como vítimas, mas como sujeitos políticos, imbricados no processo de luta contra a exclusão social a que foram submetidos, nesse sentido, a terra é o predicado de suas ações, que, por sua vez, estão inscritas e datadas nas páginas de seu periódico (objeto, mas também sujeito). Cabe destacar que ao me deparar com esse tema, procurei isolar minhas emoções e sensibilidade frente a algumas questões que emanavam das páginas do Jornal, procurando manter certa neutralidade diante das inquietações produzidas a partir das análises das fontes. Sabendo dos riscos que correria, a pesquisa em tela deixou patente que, na maioria das vezes, as escolhas do pesquisador não são completamente neutras, tendo em vista que sua atuação não deve ser pautada apenas pela busca de verdades, mas pelas revelações que suas escolhas podem trazer, por meio da problematização e interpretação dos fatos implícitos e explícitos nos discursos veiculados pela documentação eleita para esse trabalho. Dessa forma, é preciso pontuar que, ao longo da minha trajetória, não acumulei experiências que me caracterizassem como militante do MST, entretanto, essa lacuna não significou dizer que não comungue com suas propostas e bandeiras de lutas. Como já salientado anteriormente, apesar do esforço para manter a neutralidade diante da transposição e análise da documentação no processo de construção do objeto em estudo, fui pautado por minhas raízes históricas urdidas por 18 “lembranças, memórias e esquecimentos” de um pretérito não muito distante. Na curta experiência que tive, ainda na adolescência, como “trabalhador rural” e, sobretudo, pelo fato de ser filho de uma família de trabalhadores rurais que se tornaram bóias-frias, são elementos que devem ser entendidos como premissas que nortearam a minha opção pelo tema e inserção nele. Filho de trabalhador e trabalhadora rural, desde muito cedo, aprendi no cotidiano rural a função social da terra, na maioria das vezes, desconhecida por pessoas que vivem no campo e também nas cidades. Naquele momento, ao me desenvolver enquanto sujeito social, ainda não dispunha de informação que me possibilitasse o discernimento dos termos modernos que acadêmicos e legisladores usavam para definir e qualificar o que era a propriedade da terra, o latifúndio, o minifúndio e nem a compreensão dos emblemas que se circunscreviam em seu entorno. Portanto, é nesse contexto que se dá a minha experiência inicial como pesquisador, ao desenvolver um projeto de Iniciação Científica que visava estudar o processo de mecanização de uma usina de açúcar e álcool no interior paulista, ainda quando cursava a graduação em história na UNESP, campus de Assis. No mestrado, segui me aprofundando na discussão da problemática da mecanização no campo (defendido na PUC/SP, em outubro de 2002), era a necessidade latente de continuar os estudos na mesma direção, no sentido de compreender “os caminhos e descaminhos” dos trabalhadores, que foram obrigados a deixarem o cenário de produção nos parques agroindustriais das usinas, em detrimento da modernização que tomava conta dos campos brasileiros, particularmente das terras do oeste do estado de São Paulo, região onde se desenvolveu a pesquisa. 19 Em 2003, ingressei no curso de formação de Governantes na Escola de Governo de São Paulo (instituição vinculada à USP), na qual durante os debates sobre políticas públicas, acrescentei ao meu rol de preocupações as ações do MST, enquanto Movimento Social politicamente organizado, tendo como sua principal bandeira de luta a reforma agrária. Os debates promovidos por essa instituição, naquela oportunidade, nortearam de fato as inquietações que ocupariam um lugar central na proposta de trabalho que ora apresento, tendo em vista que os conflitos acerca do acesso à terra configuram-se numa questão que merece destaque efetivo, não só da sociedade civil organizada, mas, sobretudo, do poder público1. Nesse sentido, a sociedade civil organizada e, em particular, os movimentos sociais têm buscado atestar quais medidas políticas devem ser tomadas pelo poder público nessa direção. Cabe à historiografia registrar, problematizar, questionar e organizar informações que possibilitem melhores reflexões acerca dos embates dos discursos em prol ou contra a reforma agrária no país. Esses debates tiveram maior visibilidade mediante suas publicações nas páginas do JST, sendo os materiais veiculados pelo periódico um dos objetos de análise do presente trabalho. Desde a minha inserção no curso de graduação em História, ao ter contato com parte da bibliografia existente sobre a “questão agrária” e os processos de produção no campo, percebi-se uma modificação da paisagem rural e a possível transformação dos costumes ali existentes, substituindo-os por características urbanas, ocasionando o desaparecimento da mão-de-obra dos trabalhadores rurais, antes utilizada nas fazendas. 1 Conforme Comparato, “a reforma agrária é um dever fundamental dos poderes públicos – não só do Executivo, como ainda do Legislativo. E cumpre ao Judiciário e ao Ministério Público zelar pelo constante respeito a esse mandamento constitucional”. COMPARATO, Fábio Konder. Impropriedades. Folha de São Paulo. Caderno Opinião. São Paulo, 22/07/2003. 20 Desprovidos da oportunidade do que costumeiramente sabiam fazer, os trabalhadores rurais são substituídos de forma expressiva por tecnologias modernas, de modo a não lhes conferir o aperfeiçoamento para uma possível reinserção nos processos produtivos no âmbito rural ou urbano. Fato este que motivou o estudo das tensões prementes no campo e que, de certa maneira, afetou os trabalhadores nas áreas rurais e urbanas, levando-os a alimentarem esperanças ao se inserirem nas tessituras do MST. Ademais, assinala-se que a produção bibliográfica acerca das tensões sociais envolvendo as ações do MST, no país e no estado de São Paulo, em particular, torna-se de grande relevância. Porém, o manuseio e interpretação de documentos produzidos pelo mesmo Movimento ainda revela-se precário, como é o caso do acesso ao seu Jornal, documento que o presente trabalho procura analisar2. 2 O livro A formação do MST no Brasil, de Bernardo Mançano Fernandes, referência para quem deseja estudar o MST, atenta-se em alguns momentos para a análise de alguns materiais trazidos pelo JST, sobretudo nas edições de 1982 e na edição de fev-mar de 1987. O livro “Movimento camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil”, de Carlos Alberto Feliciano, não menciona o JST como fonte de sua pesquisa. Porém, prioriza os periódicos: FSP, O ESP, O Imparcial e o Jornal de Barretos. Na tese Trajetória de Militantes Sulistas: nacionalização e modernização do MST, Débora Lerrer menciona a importância do JST como fonte de pesquisa, mas poucas vezes apropria-se de seus materiais. Ao contrário dos autores aqui citados, Claudinei Coletti, em A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, utiliza-se do JST como fonte em sua pesquisa, dando-lhe mais ênfase. Apurou-se também, na área de Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL), o trabalho de Leila Maria Franco, O MST na Folha de S. Paulo e no Jornal dos Sem Terra: análise das práticas discursivas. Embora o título do trabalho se configure a pretensão de mostrar o MST nas páginas do seu Jornal e na FSP, a leitura do mesmo revelou outra perspectiva. Do ponto de vista quantitativo a autora analisou cinco de suas centenas de editoriais, fazendo notar a “análise das práticas discursivas” do MST no interstício de quatro meses e não nos seus vinte e cinco anos de atuação. Sem a pretensão de tirar o mérito deste trabalho, nota-se que o mesmo não contemplou a trajetória do Movimento nem do periódico, restringindo-se à análise do discurso das duas fontes num curto espaço de tempo. Destaca-se também o trabalho de Alexandre Bonetti Lima, Era uma vez... Algumas Histórias: as versões sobre o MST do Pontal do Paranapanema em dois jornais diários. Apesar do autor não se apropriar das informações do JST para contextualizar suas hipóteses, recorrendo aos jornais FSP e ao Imparcial de Presidente Prudente, a sua contribuição à historiografia é singular, sobretudo do ponto de vista teórico. Pautado por um referencial que contempla visivelmente história, filosofia, psicologia social e antropologia, o autor revela como o MST se configurou no jornal regional e na FSP. Chama a atenção do pesquisador quanto a sua postura ao pleitear a leitura e interpretação de um texto jornalístico na construção de determinadas hipóteses de pesquisa. Para ele, o lugar mais adequado ao pesquisador seria o de se tornar um “leitor co-autor do jornal”. Pois, “ler suas matérias, analisar seus discursos pressupõe interpretá-los. E para interpretálos faz-se necessário utilizar-se de um conjunto de outros textos [...]” (p.20). 21 Tal prerrogativa justifica-se pelo interesse de contribuir com a história dos movimentos sociais no campo e, em particular, compreender as interfaces do Jornal do MST que, ao longo de sua trajetória, deixou marcas de suas ações e sua percepção da política vigente, viabilizando denúncias de omissão da justiça e sua ausência nos conflitos agrários, acompanhada pela atuação de forças repressoras do Estado contra as ações do MST. Além disso, evidenciou os enfrentamentos a partir das ocupações de terras públicas e particulares pelos integrantes do Movimento e as práticas de violência imputadas aos mesmos por agentes do Estado, matadores e pistoleiros de aluguel a serviço dos latifundiários. Dessa maneira, o JST registrou o desencadeamento das ações de intervenção do MST, assim como, a participação das entidades e instituições solidárias ao Movimento, que intercedem junto ao poder público visando colaborar com o desejo latente dos trabalhadores rurais: a reforma agrária e a justiça social no campo. A pesquisa em pauta procurou enfrentar o desafio de atribuir visibilidade ao JST, não apenas pelo fato deste trazer em suas páginas os registros do Movimento, mas, sobretudo, de recuperar e historicizar suas ações, práticas sociais e discursos. Deve-se compreendê-lo como um sujeito da luta, que se fez presente no dia-a-dia dos trabalhadores rurais sem terra, levando, aos mais longínquos rincões do país, denúncias das desigualdades sociais no campo, anúncios de conforto, solidariedade, animação e empenho em promover a rearticulação dos trabalhadores na luta pela reforma agrária e, conseqüentemente, pela redução das desigualdades sociais das quais eram sujeitos e não “vítimas”.3 3 A suposição de que os trabalhadores rurais sem terra são “vítimas” nos conflitos desencadeados pela posse da terra é amplamente discutido por Veloso (2006). No entanto, tal conceito não é partilhado integralmente pela presente pesquisa. Discorda-se dessa proposição por entender que os trabalhadores rurais sem terra são, sobretudo, sujeitos do processo de luta. Não obstante, ao 22 A interpretação do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra visa contribuir com a reflexão acerca da história da imprensa alternativa no Brasil, procurando trazer à tona novas possibilidades de questionamentos e reflexão em torno das representações sociais, políticas e suas interfaces, que fizeram do MST, um movimento social de projeção política nacional e internacionalmente. Para tanto, observa-se que apesar do JST não ter figurado como objeto central de investigação nas pesquisas acadêmicas arroladas na bibliografia desse trabalho, torna-se inegável a afirmativa de que, com menor freqüência, algumas destas investigações se valeram de suas matérias e publicações como fonte documental, para fins de problematização de suas hipóteses, auxiliando-as inclusive a título de exemplificação em alguns casos. Dentre outras questões, a presente pesquisa mapeia o JST - porta-voz dos trabalhadores rurais sem terra, criando condições para que o mesmo seja utilizado por outros pesquisadores, por ter registrado com pertinência a trajetória de luta dos trabalhadores e seus embates. Assim, por meio de seus editoriais e matérias, o periódico posiciona-se contra as condições precárias de vida do homem rural, detendo-se, também, a outras questões sociais e econômicas de maior abrangência na história política do país, como foi o caso das privatizações das empresas estatais, na década de 1990. buscarem esta afirmação os trabalhadores saem da condição de “vítima” e assumem lugar de protagonistas na construção de sua própria história, embora marcada por encontros e desencontros. Nesse aspecto, uma de suas prerrogativas é a busca do desmantelamento do latifúndio no Brasil, enfrentando, inclusive o desenvolvimento do capitalismo por meio de denúncias de que este promoveu as desigualdades sociais ao se enraizar nos campos e nas cidades. Ao encabeçarem ocupações de terras públicas e particulares, produtivas e improdutivas, fizeram aflorar a resistência frente às incursões dos latifundiários nos acampamentos e assentamentos. Posto isso, evidencia-se um enfrentamento de classe, propositura assumida pelo JST e pelo próprio MST. Dessa maneira, a postura declarada pelos trabalhadores rurais configura-se, por si só, numa premissa de que não são “vítimas” do processo, mas sujeitos deste. VELOSO, Marília Lomanto. As “Vítimas” de Rosa do Prado: Um Estudo do Direito Penal sobre o MST no Extremo Sul da Bahia. Tese (Doutorado em Direito), PUC/SP, São Paulo, 2006. 23 Nesse sentido, a pesquisa defende a idéia de que o JST, ao ser usado como fonte histórica, não deve ser classificado nem como verdadeiro, nem como falso. Pois “ele é tão somente uma construção que pretende ser verdadeira. No entanto, para a investigação histórica não importa saber se esta fonte é ou não verdadeira, mas sim como ela foi produzida e quais foram as suas condições de produção”4, questões estas amplamente problematizadas ao longo do trabalho. Em face dessa prerrogativa, a narrativa a seguir não se pauta pelo ideal de escrever a história do MST ou de seu Jornal, mas de contribuir com a história da luta dos trabalhadores rurais a partir da problematização e compreensão das experiências de lutas vividas por homens, mulheres e crianças. Ao imbricarem no Movimento, esses sujeitos nutrem-se por um desejo comum: a reforma agrária e a redução das desigualdades sociais no país e suas interfaces, anseios fortemente registrados nas páginas do periódico em questão. Ademais, as tensões no campo envolvendo os trabalhadores rurais sem terra, os governos e os latifundiários foram problematizadas a partir das análises dos editoriais, notícias e relatos de experiências dos trabalhadores, que ocuparam posição de lideranças dentro do Movimento. Assim, as entrevistas com essas lideranças e artigos de opinião escritos por intelectuais e políticos fizeram do MST, um movimento social articulado, conforme atestam os discursos emanados das páginas do JST. A leitura dos discursos expressos nos jornais permite acompanhar o movimento das idéias que circulam na época. A análise do ideário e da prática política dos representantes da imprensa revela a complexidade da luta social. Grupos se aproximam e se distanciam segundo suas conveniências do 4 Cf.: ALVES, Paulo. Experiências de Investigação: pressupostos e estratégias do historiador no trabalho com as fontes. In: DI CREDO, Maria do Carmo; ALVES, Paulo; OLIVEIRA, C. R. de. Fontes Históricas: abordagens e métodos. Publicação do Programa de Pós-graduação em História UNESP. Assis, 1996. p.35. 24 momento; seus projetos se interpenetram, se mesclam e são matizados. Os conflitos desencadeados para a efetivação dos diferentes projetos se inserem numa luta mais ampla que perpassa a sociedade por inteiro.5 Dessa maneira, considera-se que o Brasil, à luz do século XXI, ainda é considerado um “país que tem a pior distribuição de renda dentre todas as economias organizadas do mundo”6. Aspecto notável que motiva a continuidade e intensificação das ações e atuação do MST, enquanto movimento social de grande abrangência política, ao desejar mudanças sociais urgentes para o setor agrícola, inclusive a redução da pobreza e da miséria no campo, tendo como suporte a reforma agrária (um pouco esquecida atualmente). Esse anseio revela uma primeira tensão, visto que a sua realização implica na quebra de paradigmas ainda cristalizados em nossa sociedade, gerando desagrado a determinados setores da sociedade, inclusive os latifundiários. Por outro prisma, desde a década de 1980, observa-se uma tendência para a expansão destes movimentos sociais a partir da “natureza dos problemas enfrentados” por cada um deles, figurando, a princípio, “as Associações de Bairros, as Comunidades Eclesiais de Base, o Movimento Feminista e o Movimento Negro, bem como os Partidos Políticos”7. Pautados por experiências de lutas e gestados no calor da “transição democrática, os movimentos sociais passaram a ser percebidos como interlocutores do Estado, uma vez que este estava se democratizando e buscava mudar a sua face 5 a CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. 2 ed. São Paulo: Contexto/Edusp, 1994. p.34. 6 Entrevista com Ciro Gomes. Cf.: ISTO É. Ano 34, n.2103. São Paulo, março de 2010. p.8. 7 De acordo com Brant, cada movimento apresenta características próprias quanto à sua luta e organização, buscando amenizar as tensões no âmbito das “relações de trabalho; melhorias nas condições de vida em meio urbano; lutam contra os estigmas de discriminação sexual e étnico-racial e o último procura lutar contra as relações de poder que atingem as classes populares e o conjunto da sociedade”. BRANT, Vinícius C. Da Resistência aos movimentos sociais: a emergência das classes sociais em São Paulo. In: Idem; SINGER, Paul (Orgs.). São Paulo: o Povo em Movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/CEBRAP, 1980. p.12. 25 de repressor” 8 . Isso contribuiu, de certa maneira, para a origem do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, indicado como principal porta-voz do MST, em oposição aos latifundiários e ao projeto neoliberal que os governos brasileiros pretendiam adotar após a constituição de 1988, ganhando maior visibilidade nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002. Nascido na cidade de Cascavel-PR, em meados da década de 1980, o MST se “espacializa” pelo Brasil, mudando as características do campo e também da cidade e, sobretudo, tecendo novas possibilidades de se fazer política no país. Tendo como o desejo latente de reforma agrária, apresenta-a como porta de entrada para a implementação de novas práticas políticas, assim como conduzir os trabalhadores rurais desprovidos da terra ao exercício da cidadania. Nesse aspecto, esse trabalho apóia-se na perspectiva da pesquisa qualitativa, metodologia conhecida “entre os pesquisadores da área de Ciências Humanas a partir da década de 1980”, tendo em vista que esse princípio metodológico buscava valorizar um entendimento da realidade pelo sujeito ao “buscar a interpretação e não a mensuração, a descoberta e não a constatação”9. Dessa forma, presumi-se que o pesquisador não tem uma postura neutra na pesquisa, à medida que está constantemente imbricado com o objeto pesquisado, desencadeando interações mediadas por seus valores culturais e, principalmente, “por suas convicções políticas”10. A partir da transposição e análise dos editoriais, entrevistas, matérias e imagens publicadas pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, demonstra-se 8 Para Gohn, na década seguinte o cenário político sofre alterações significativas, sobretudo, porque o Estado aparentemente não “precisava” mais dos movimentos sociais para se legitimar como força não-repressora ou aparentar, de certa forma, o seu caráter democrático. GOHN, Maria da Glória. a Teoria dos Movimentos Sociais - paradigmas clássicos e contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.313. 9 a LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. 1 reimpressão. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1985. p.16-22. 10 Ibidem. p.5. 26 as representações sociais dos trabalhadores articulados acerca do MST, procurando-se descortinar a dialética entre o Movimento, sociedade civil e diversos segmentos do poder instituído. A documentação escolhida para essa pesquisa faz notar que o MST buscou, na maioria das vezes, um diálogo com a sociedade civil no sentido de anunciar que a reforma agrária não era um desejo unívoco dos trabalhadores rurais, mas que deveria abranger o interesse de toda a sociedade brasileira. Sendo esta última um segmento muito importante para que o Movimento pudesse aperfeiçoar e continuar com suas ações de ocupação de propriedades e espaços políticos, manifestação em praças, rodovias, etc. Não foi por acaso, que o MST ficou atento às pesquisas de opinião pública a respeito de sua atuação (assunto explicitado mais adiante). O diálogo do Movimento com a sociedade civil organizada encontrou eco nas ações de intervenção da Comissão Pastoral da Terra – CPT 11 . Esta entidade católica contribuiu muito na organização dos trabalhadores rurais, denunciando os múltiplos casos de escravização no campo, abusos generalizados com a utilização contínua do trabalho infantil nas lavouras, carvoarias e pedreiras, bem como os casos de violência física e psicológica contra os trabalhadores rurais sem terra por agentes do Estado e também pelos bandos de jagunços e pistoleiros constituídos a serviço dos latifundiários, desnudando, assim, a omissão do Poder Judiciário frente aos conflitos no campo. 11 Entidade fundada em 1975, a CPT nasceu “preocupada com a invasão do capitalismo no campo. Sua definição prévia de atuação buscava manter viva e promover a memória histórica do povo rural ao estimular a vivência criativa da sua cultura. Propõe descobrir, recolher e divulgar todas as riquezas do lavrador – contos, cartilhas, dramatizações e a expressão da fé na experiência cotidiana; buscou descobrir, analisar e divulgar as lutas, as vitórias e os fracassos das experiências de resistências do povo; nos encontros e treinamentos dos lavradores, parte sempre das experiências por eles vividas”. FESTA, Regina. Comunicação Popular e Alternativa: a realidade e as utopias. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo - SP, 1984. p.79. 27 A pesquisa ora apresentada pautou-se por um extenso levantamento bibliográfico, contemplando temas que diziam respeito à questão da terra, aos embates políticos envolvendo os trabalhadores rurais articulados em torno do MST e organizações civis que compartilhavam do mesmo projeto, assim como entidades representativas do latifúndio e também do Estado. Para construir as problemáticas da presente pesquisa, tornou-se relevante a absorção dos materiais publicados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no sentido de evidenciar suas etapas de formação e seus discursos poucos explorados pelos pesquisadores, como já observado. Porém, priorizou-se nesse trabalho a exposição e análises dos seus editoriais, de amostras das entrevistas com lideranças do Movimento nas cinco regiões do país e também com intelectuais vinculados ao alto escalão do Clero Católico, representado pela Comissão Pastoral da Terra12. Contemplou-se, ainda, uma avaliação crítica dos artigos de opinião de Juristas e professores universitários que, em sua maioria, deixaram explícito em seus textos a tendência de legitimar as ações encampadas pelos trabalhadores rurais sem terra. Na perspectiva da pesquisa documental, se problematizou várias das interfaces do JST, compreendidas como tendências que norteiam pressupostos teóricos de uma comunicação voltada para os anseios dos trabalhadores rurais sem terra. 12 Segundo Coletti, “a CPT tem feito um levantamento anual, talvez o mais completo de todo o país, sobre os conflitos no campo”, sendo algumas de suas publicações utilizadas na construção do Capítulo IV deste trabalho, sobretudo as informações que revelaram a omissão do Poder Judiciário frente aos desejos latentes dos latifundiários. Em face do exposto, a pesquisa se apropriou também dos dados a respeito dos números de ocupações, despejos e quantidade de famílias envolvidas nos conflitos (ver os gráficos ao longo do trabalho). Cf.: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.21. Ademais, lançou-se mão ainda do uso de outros materiais como as imagens veiculadas pelo JST, trechos de reportagens e de relatórios de Comissão Parlamentar de Inquérito transcritos e publicados pela mesma fonte e dados oficiais do governo a respeito do tema assentamento, publicado no site oficial do Ministério do Planejamento Agrário. 28 Em termos temporais, a pesquisa se deteve à análise de aproximadamente vinte anos de publicação do jornal em destaque, priorizando-se a interpretação de seus editoriais e entrevistas com lideranças do Movimento, juntamente com a análise de artigos de opinião escritos por políticos, intelectuais católicos e acadêmicos de tendência de esquerda, assim como, a análise de notícias e imagens veiculadas pela mesma fonte. Em face do exposto, a pesquisa intitulada O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Seus Temas (1981-2001) faz notar as etapas de atuação do periódico dos trabalhadores sem terra, descortinando suas diferentes fases, objetivos, linguagem, posições políticas, público leitor, local de circulação e sua tiragem. O primeiro capítulo, denominado O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Porta-Voz das Estratégias e Ações do MST elucida a trajetória histórica do JST, observado como veículo de comunicação, mas também como instrumento de luta para o MST. Ao longo de sua trajetória, o periódico evidenciou as tensões eminentes no campo, visando revelar as interfaces da política agrária em todo o país. Entretanto, desvelou seu comprometimento com a qualidade da informação que fazia chegar até os trabalhadores rurais sem terra, evidenciando, nesse sentido, a sua missão enquanto instrumento de luta e formador de opinião, garantindo visibilidade às ações conduzidas pelo Movimento, bem como, as reações dos poderes constituídos. Diante dessa problemática, pensar a presença de uma imprensa alternativa na área rural implica considerar os altos índices de analfabetismo no mesmo local. Por isso, algumas informações a respeito dos leitores desse periódico se fizeram necessárias, no sentido de compreender se a entrada dos códigos lingüísticos 29 impressos no campo superou ou não a questão do analfabetismo. Outra questão colocada focaliza se os textos do JST contribuíram efetivamente para a espacialização da luta pela terra, onde o MST esteve organizado. Preliminarmente, ao se refletir sobre essas questões, é consoante notar que “as respostas a estas só seriam dadas, de acordo com o jornal, com a região onde ele era produzido, com o nível de organização da comunidade e com a participação da mesma no jornal”13, situações estas que a presente pesquisa procura contemplar. Além disso, assim como, tantos outros periódicos populares e alternativos, o JST não nasce efetivamente com a proposta de ensinar os trabalhadores rurais sem terra a lerem e a escreverem, embora subliminarmente tenham motivado-os a ouvirem e, dialeticamente, a falarem. Portanto, a proposta do JST se pautou pela construção de uma atmosfera, na qual se colocou em prática o exercício da fala e o da escuta dos sujeitos, envolvidos na construção efetiva da luta pela terra ou outros direitos sociais. O segundo capítulo, intitulado O MST e Seu Jornal, Unidos Pela Reforma Agrária, traz à luz as ações do MST no estado de São Paulo, desvelando os desejos latentes dos trabalhadores e as tensões em torno destes. Ao problematizar os discursos trazidos pelos editoriais do periódico, compreendidos como uma de suas principais ações, pode-se notar os conflitos implícitos na construção da identidade do Movimento e de seus agentes. O texto revela que os editoriais assinados pelo jornal assumiram postura de imprensa alternativa ao enfrentarem os discursos do governo e de órgãos representativos dos latifundiários, nesse caso a UDR, combatendo e denunciando a 13 FESTA, Regina. Comunicação Popular e Alternativa: a realidade e as utopias. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo - SP, 1984. p.93. 30 precária política agrária, a violência no campo e a incipiente infra-estrutura nos acampamentos e assentamentos. Enfim, os editoriais analisados demonstraram as articulações entre grupos políticos de esquerda que buscaram, ao longo de sua trajetória, defender a bandeira da reforma agrária como principal instrumento de luta. Buscaram, também, promover de forma circunstanciada, a organização continuada dos trabalhadores rurais no campo, se posicionando como a principal ferramenta para que estes acampados ou assentados pudessem absorver e socializar os ideais da luta almejada pelo MST. O terceiro capítulo, intitulado O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Análise dos Discursos das Lideranças pretende demonstrar as experiências de lutas dos trabalhadores rurais ao estabelecer diálogos com suas lideranças em cinco regiões do país, particularizando um estado por região. No Nordeste, contemplou-se o estado do Ceará; no Sul, o Rio Grande do Sul; no Sudeste, São Paulo; no Centro-Oeste, Mato Grosso do Sul e no Norte, o estado do Pará. Com isso, buscou-se mapear e discutir impasses políticos, tensões nos momentos de ocupação e de despejos, posições contrárias ao poder instituído e contradições a respeito da igualdade de gênero em setores estratégicos do MST. Portanto, os discursos das lideranças deixaram transparecer lapsos de memórias14 e perspectivas de sonhos por parte dos trabalhadores sem terra, por eles representados. O quarto e último capítulo, denominado JST Desnuda a Violência no Campo: Alguns Desdobramentos, procura revelar o “desenraizamento” da luta do 14 Ao longo da pesquisa, tornou-se patente uma preocupação significativa do Setor de Comunicação do Movimento em preservar os registros de suas ações por meio do arquivamento e organização das mesmas, notando-se claramente uma proposta de construção de uma memória coletiva para os trabalhadores rurais sem terra articulados no MST, tendo o presente trabalho a pretensão de contribuir com esta memória de alguma maneira. 31 MST, projetando-o nacional e internacionalmente, trazendo consigo diferentes formas de repressão imputadas aos trabalhadores sem terra. Tal repressão oriunda, em maior parte, de setores representativos do Estado e de instituições que representativas dos latifundiários, como demonstrou os materiais do JST - periódico dos trabalhadores e as publicações da CPT. Diante dessa questão, pretendeu-se descortinar a relação do Poder Judiciário com as ações conduzidas pelo MST, potencializando a problematização dos desdobramentos nos estados, onde o Movimento esteve organizado. Assim, abordaram-se dados sobre os índices de violência no campo e sua relação com o processo de ocupação dos espaços (fazendas), mas também o espaço da política. Para tanto, dialogou-se com questionamentos elaborados por intelectuais e autoridades religiosas, que utilizaram as páginas do JST como um suporte aos integrantes do Movimento reconhecerem-se enquanto sujeitos históricos, motivandoos à luta e revelando a tensão existente entre o discurso do governo e o desejo latente dos trabalhadores rurais (representados pelo MST) pela reforma agrária no país. 32 CAPÍTULO I - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: PORTA-VOZ DAS ESTRATÉGIAS E AÇÕES DO MST A liberdade nasce com o Homem. As multidões podem sofrer por longos anos as agruras da opressão em todos os seus aspectos. Mas elas são como os grandes e indomáveis fenômenos da natureza. Da calma mais profunda podem passar às agitações mais inconcebíveis, realizando um dia os sonhos de um milênio.15 15 Octaviano Alves de Lima. Apud: MOTA, Carlos Guilherme; CAPELATO, Maria Helena. História da Folha de São Paulo: 1921-1981. São Paulo: IMPRES, 1981. p.62. 33 1.1 BOLETIM INFORMATIVO DOS SEM TERRA O presente capítulo aborda o estudo da fase inicial do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, denominado de Boletim, visando problematizar as diferenças existentes entre este e o JST, que lhe sucedeu, embora fique claro que a extinção de um implicou na continuidade do outro. A opção pelo estudo do JST como fonte e sujeito na presente pesquisa justifica-se pela ausência de trabalhos acadêmicos que revelem a apropriação por parte dos pesquisadores dos materiais protagonizados por esse periódico. Além disso, cabe destacar a importância da linguagem explicitada no Boletim que revela, sobretudo, o nível de formação do seu público leitor e norteia suas proposições em suas diferentes fases, explicitadas mais adiante. Nesse contexto, proponho a construção de uma narrativa assegurando a análise das mudanças no percurso do jornal, associado às temáticas do período entre 1981-2001, também, procurando revelar o seu processo de modernização e sua inserção na internet, como forma de ampliação do seu conteúdo visando promover o acesso a um número maior de leitores, sejam esses militantes ou não. Do mesmo modo, visa-se problematizar a trajetória deste veículo de comunicação enquanto ferramenta de informação, mas também, de luta entre os trabalhadores rurais sem terra e seus militantes16; em todo o momento da análise observa-se que 16 Embora o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (objeto de análise desta pesquisa) não faça parte e não tenha pretensão de se alinhar à chamada grande mídia, ao demonstrar que seus ideais pautaram-se pelo viés de sua contraposição aos discursos proferidos por esta, posto que “na chamada era da informação, quando a sociedade assiste ao surgimento, transformação e aprimoramento, em ritmo vertiginoso, de meios de comunicação de massa”, descortina-se o desejo de criação de instrumentos de informação que falem por determinados grupos sociais manifestando sua posição contrária aos discursos hegemônicos propalados pelas complexas redes de comunicação em todo o país. Nesse contexto, observa-se que a função da informação em ambos os casos postula interesses que vão além da prerrogativa de “transmitir informações”. Cf.: SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.7-11. 34 seu discurso procurou “se converter em um processo dialético entre a teoria e a prática”17. Nesse sentido, portanto, o Jornal do MST será indagado na perspectiva de descortinar a sua atuação enquanto meio de comunicação, ferramenta de mobilização social, instrumento de educação e politização dos agentes sociais, assim como, ferramenta de denúncias e reivindicações dos trabalhadores rurais sem terra. Para tanto, busca-se, sobretudo, apresentar fragmentos de seu conteúdo no sentido de compreender as representações 18 sociais dos trabalhadores rurais e trazer à luz a eminência das tensões que envolveram o Movimento no período estudado. Nesse aspecto, ressalta-se que, em 1982, por decisão discutida e aprovada em Assembléia Geral do Movimento, o Boletim passou a ter circulação regionalizada, atendendo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, onde as tensões pela terra eram prementes. Em face disso, algumas inquietações se fazem necessárias para a compreensão do processo de desenvolvimento e de atuação do jornal. Dessa forma, indaga-se sobre qual seria o objetivo inicial desse periódico? Quais tensões estavam em curso na década de 1980 envolvendo os trabalhadores rurais? Quais instituições apoiaram os trabalhadores rurais sem terra? De que forma, 17 PERUZZO, Cecília K. Comunicação nos movimentos populares: participação na construção da cidadania. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p.125. 18 Acerca da conceitualização de “representação” social dos trabalhadores rurais sem terra, valho-me das reflexões de Chartier ao assinalar “a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro lado, a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de alguém”. Com base nessas duas definições de representação, assinala-se que a segunda tende a sinalizar para os anseios dos trabalhadores rurais sem terra, posto que o jornal analisado aponta para a presença marcante do MST enquanto força opositora ao modelo político e econômico vigente no Brasil a partir da década de 1980, visto que suas ações e enfrentamentos sugerem a “exibição de uma presença”, quando passam a exigir algo que está ausente (dentre outros desejos, a reforma agrária) e sua presença como força opositora ao poder instituído. Cf.: CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. Ver também: CHARTIER, R. O Mundo como Representação. Revista de Estudos Avançados. Vol.5, n.11. Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, 1991. p.20. 35 a elaboração deste jornal vinculou-se a instrumentos de luta, divulgação de informação e formação política para estes trabalhadores? Ou ainda, como o jornal organizou-se politicamente em suas etapas? Qual era a projeção deste periódico frente aos acontecimentos do campo? Qual era a sua tiragem e a qual público era endereçado? Que posições políticas o jornal assumiu em suas diferentes fases? Entre uma série de outras questões. Na tentativa de problematizar estas questões, procurei instigar um diálogo entre o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a sociedade civil organizada e as entidades representativas ao se reportarem à implementação da reforma agrária no Brasil, abordando as tensões implícitas e explícitas a esta, no período compreendido pela pesquisa. A leitura do periódico traz à luz informações que marcaram a trajetória do MST no cenário político nacional, ao se delimitar as suas quatro fases: “primeiro período - 1979 a 1984; segundo período - 1985 a 1989; terceiro período - 1989 a 1994; quarto período - 1995 aos dias atuais”19, referências que justificam o recorte temporal desta pesquisa. Sem a pretensão de esgotar a discussão acerca deste jornal nesse primeiro momento, inicia-se um breve diálogo com parte de seu conteúdo, utilizando alguns de seus números no sentido de atribuir maior visibilidade à sua estrutura enquanto meio de comunicação. Nesse sentido, foram selecionados alguns exemplares de cada fase do jornal para prosseguir este diálogo. Tal opção deve-se ao fato deste ter sido arrolado como fonte principal da presente pesquisa, na tentativa de tangenciar a 19 Cf.: CALDART, Roseli Salete. Educação em movimento: formação de educadoras e educadores no MST. Petrópolis - RJ: Vozes, 1997. p.30. Idem. Sem-terra com poesia: os significados pedagógicos e políticos da produção poética dos agricultores sem-terra da região sul do Brasil, um estudo exploratório. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1986. Acrescento que, apesar da fonte existir até a presente data, o recorte cronológico da pesquisa procura se debruçar sobre as publicações do jornal nos anos de 1981 a 2001. 36 discussão no que se refere à coleta de dados e informações pertinentes à temática em tela. Destaca-se a inexpressividade de uma produção historiográfica que aborde este jornal como fonte histórica20. O desafio dessa pesquisa está na análise sob a perspectiva da história social, que leva em consideração o inicio da veiculação do periódico, momento no qual emergia certa correlação de forças no país entre grupos sociais com interesses políticos distintos. Dessa forma, desvelava-se um cenário repleto de desejos da organização da sociedade civil no intuito de implementar a democracia em todo o país, por sua vez, esta ganharia maior visibilidade quando os direitos sociais dos trabalhadores rurais fossem integralmente assegurados, principalmente, por meio do acesso à propriedade da terra. Observando que “vários cientistas sociais fizeram uso do jornal como fonte documental, numa perspectiva de descortinar o valor da imprensa como fonte histórica para os estudos das ciências do homem” 21 e para a compreensão dos problemas sociais presentes no cenário político brasileiro. Cabendo ressaltar, mais 20 Neste aspecto, a historiografia pouco se deteve a respeito das publicações do MST, particularmente sobre o seu Jornal, o que não significa afirmar que haja falta de trabalhos acadêmicos sobre o Movimento. Pelo contrário! Atualmente, existe uma gama de publicações sobre as ações do MST e o que se fala sobre ele, em especial na perspectiva da grande mídia e da oralidade como fonte documental. Também não se deve menosprezar a significativa produção acadêmica na área das ciências humanas acerca dos periódicos de maior circulação e dos jornais operários, como se observa nas referências que embasam teoricamente essa pesquisa. Nesse momento, aproveita-se a oportunidade para listar as atribuições iniciais do Boletim Informativo do MST: “manter informados os colaboradores da campanha de solidariedade por meio de suas entidades representativas – sindicatos e federações de trabalhadores rurais e urbanos; comunidades de base e demais entidades em nível nacional – opinião pública através dos meios de comunicação: rádios, jornais e televisão na perspectiva de ampliar a campanha em todas as regiões do estado e do país”. Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2. Em edição especial comemorativa de sua primeira década de existência, o jornal pontua que suas principais funções eram: “a) ser um instrumento de formação; b) ser um instrumento de agitação; c) ser um instrumento organizador e coletivo”. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1991. p.12-3. 21 FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa operária no Brasil - 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes, 1978. p.87. Ver também: CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 1920-1945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. Idem. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista - 1920-1945. São Paulo: Brasiliense, 1989. MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de. Imprensa e Cidade. São Paulo: Unesp, 2006. 37 uma vez, a importância do periódico analisado como fonte histórica; contudo, algumas polêmicas fazem parte do universo da imprensa e que devem ser cuidadosamente observadas, já que alguns jornais apresentam dentro de sua organização certa “dependência econômica, mistura da imparcialidade com o tendencioso, aspectos do certo e do falso” 22 . Certos entraves não estiveram presentes na imprensa operária, pois esta se encontrava “desvinculada da ordem política instituída”23. O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foi gestado a partir das experiências sociais de homens e mulheres nos primórdios da organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais, no início da década de oitenta (1981). Período no qual foi publicado o seu primeiro exemplar, já trazendo em seu título o raio da sua abrangência, no sentido de promover a difusão da luta encampada pelo MST. O surgimento do Boletim (atualmente jornal) coaduna-se com a criação do MST, no intuito de traduzir as suas ações e enquanto seu principal porta-voz na arena política, transformando-se numa fonte para a interpretação das tensões sociais que envolveram os trabalhadores rurais sem terra. Dessa forma, que esta pesquisa se reporta à imprensa como fonte documental para o estudo dos conflitos sociais e tensões políticas, em parte reveladas nas experiências dos trabalhadores rurais sem terra24. A afirmação de que “a imprensa operária parece ser uma das 22 FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes, 1978. p.87. 23 Ibidem. 24 Percebe-se que na literatura brasileira existem muitas categorias para adjetivar o sujeito que lida com a terra. Nesse sentido, SARZNSKI e FANELLI assinalam que as variações de adjetivos se dão em virtude da “diversidade dos sistemas agrícolas que se desenvolveram e mudaram, através da história brasileira”. Dessa forma, “o trabalhador rural assalariado é chamado de operário rural, assalariado rural, diarista e, mais tarde, bóia-fria; aquele que aluga a terra é conhecido como arrendatário ou caseiro; aquele que trabalha a terra e divide a produção com o dono desta denominase meeiro ou parceiro; colono é considerado outro tipo de meeiro”, dentre outros. Apesar de figurar nesse trabalho com menor freqüência alguns destes termos, concorda-se com a observação dos 38 mais importantes documentações para a compreensão da história das classes trabalhadoras no Brasil”25, torna-se um dos motivos pelos quais se propõe a mapear e dialogar com o Jornal do MST ,enquanto objeto de estudo e fonte documental. Deve-se pontuar que, no seu primeiro ano, este jornal era mimeografado, impresso de forma artesanal e com uma tiragem de setecentos exemplares. A circulação do Boletim era semanal, quinzenal e, às vezes, mensal; enquanto sua distribuição atendeu, a princípio, apenas ao acampamento de Ronda Alta - RS26. Durante esse período inicial, a responsabilidade jurídica pelas informações divulgadas era da Comissão Pastoral da Terra – CPT, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos e da Pastoral Universitária. autores e salienta-se a presença marcante do termo trabalhador rural, a fim de qualificar as ações e representações destes em busca pela posse da terra. Em face dessa questão, assinala-se que “o termo trabalhador rural é o mais usado” posto que essa nomenclatura traz em sua base o “caráter federativo da ULTAB e das Ligas Camponesas do PCB” e representa de forma mais clara práticas associadas ao cotidiano dos trabalhadores da terra. Cf.: FANELLI, Luca; SARZNSKI, Sara. O Conceito de Sem Terra e os Camponeses no Brasil. Revista Ethnos Brasil. Ano II, n.4. São Paulo: Edunesp, set. 2005. p.87. 25 Nesse estudo Ferreira procurou trabalhar com vários documentos, dentre eles as chamadas fontes primárias: relatórios, depoimentos de líderes do movimento operário, relatórios de reuniões não publicados, manifestos das atividades dos anarquistas, panfletos escritos ou traduzidos por estes e, sobretudo, o estudo da imprensa operária. Nesta perspectiva, a autora consultou e analisou cerca de 40 anos de publicação da imprensa operária, destacando o jornal do operário gráfico, denominado de “trabalhador gráfico” como a principal fonte para problematizar as suas inquietações. Assim, seu estudo pautou-se pela discussão de como se constituiu a “formação da associação de classe do operário gráfico”. FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa Operaria no Brasil: 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes, 1978. p.16, 87. A título de complementação, seguem algumas referências acerca da imprensa alternativa e sua relação com os movimentos sociais - KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e a Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2003. PERUZZO, Cecília K. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. a 3 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2004. DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (Orgs.). A Revolução Impressa: a Imprensa na França, 1775-1800. Tradução de Marcos Maffei Jordan. São Paulo: EDUSP, 1996. WILLIAMS, Raymond. A imprensa e a cultura popular: uma perspectiva histórica. Tradução de Ricardo B. Iannuzzi; revisão técnica de Heloisa de Faria Cruz. Projeto História. n.35. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, dez. 2007. p.15-26. AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In: MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. WOITIWICZ, Karina Janz (Org.). Recortes da mídia alternativa: histórias e memórias da comunicação no Brasil. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2009. Entre outros autores cujas referências e idéias encontram-se diluídas no decorrer do texto. 26 Apesar de o Boletim noticiar que circularia em âmbito regional, estadual e nacional nesse primeiro momento, a pesquisa revela que sua circulação, inicialmente, ficou restrita ao acampamento no trecho da estrada que ligava Passo Fundo a Ronda Alta, junto à Encruzilhada Natalino, no Rio Grande do Sul, onde estavam acampados cerca de três mil pessoas reivindicando o direito pela terra. 39 Visando tecer as principais considerações acerca das etapas de constituição deste jornal, deve-se levar em consideração que, em pouco menos de oito anos, o seu nome foi alterado quatro vezes, conforme a “espacialização” da luta no campo. Em 1981, ele circulou como Boletim Informativo dos Sem Terra; em 1983, como Boletim dos Sem Terra; já em 1984, como Jornal dos Trabalhadores Sem Terra e, por último, em 1988, como Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Tal alternância de nomenclatura revela os níveis de abrangência social de sua atuação, tornando-se um indicativo de seu amadurecimento político, enquanto ferramenta de comunicação e de luta representativa de um Movimento em acelerada construção. A pesquisa deste periódico tornou evidente que o seu desenvolvimento atrelou-se aos anseios e à projeção política, em curto espaço de tempo, do MST enquanto movimento social com objetivos bastante definidos. Sediado à Rua dos Andradas no 1.234, 22o andar, sala 2.209, Porto Alegre RS, o Boletim teve sua primeira edição publicada em maio de 1981, antes mesmo da oficialização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que só se deu em 1984, no município de Cascavel - PR. A partir disso, o então Boletim Informativo passou a circular com tiragem nacional e denominado como Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, divulgando as pretensões e ações do Movimento que acabara de ser constituído: O MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – foi constituído a partir do início de 1984, quando ocorreu, entre os dias 20 e 22 de janeiro, no Centro Diocesano de Formação do município de Cascavel - PR, o Primeiro Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o qual contou com a participação de aproximadamente cem pessoas, representantes de doze estados do Brasil.27 27 COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.23. O autor observa que nessa oportunidade algumas linhas de ação foram definidas pelos idealizadores do Movimento: “lutar pela 40 Porém, observa-se que antes o Boletim não apresentava oficialmente um expediente que lhe identificasse como um jornal, embora a sua formatação, o conteúdo de suas informações e sua posição política já evidenciasse as suas pretensões futuras. Apesar da ausência de um editorial no corpo do Boletim, este não perdeu de vista a possibilidade de manter os trabalhadores rurais informados e nem a oportunidade de manifestar seus agradecimentos às entidades não governamentais, que prestavam auxílio e apoio aos trabalhadores rurais acampados nos estados, onde o MST estava organizado.28 No início da primeira edição, o periódico se deteve à especificação de seu objetivo. Tendo isto em vista, esta edição configurou-se da seguinte forma: na seção Sem Terra – o jornal apresenta os seus objetivos enquanto meio de comunicação; na seção História de um povo – caracteriza os trabalhadores, revelando a situação em que viviam no acampamento e suas bases de sustentação, denunciando a ausência de assistência médica, a organização política dos mesmos e como estes estavam se constituindo em lideranças sociais. Ainda nesse periódico, assinala-se a presença das forças repressoras do Estado enfrentando o interesse dos trabalhadores acampados. Todos esses temas figuram nas três primeiras folhas, reforma agrária radical; lutar por uma sociedade mais justa e igualitária; acabar com o capitalismo e reforçar a luta pela terra com a participação de todos os trabalhadores rurais...”. Apesar da clareza das pretensões iniciais encabeçadas pelos militantes do Movimento e presentes nas páginas do JST, a pesquisa identificou que em sua maioria estas não se efetivaram, tendo sido diluídas ao longo da caminhada do Movimento. Embora seja fato a diluição dessas propostas, a fonte evidencia que o MST não se esquivou de suas pretensões e buscou construir novas linhas de intervenção no cenário político junto às suas bases de sustentação, ao ponto de ser percebido “como a principal força política de resistência e de oposição ao projeto neoliberal” conduzido pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em meados da década de 1990 (p.16). 28 Não obstante, é nesse momento que se busca compreender o surgimento do MST. Para Fernandes, “a resistência dos trabalhadores acampados dava-se contra a exploração, a expulsão e o trabalho assalariado dos colonos”. Ressalta que a origem do movimento se deu na região do “CentroSul desde o mês de setembro de 1979, quando aconteceu a ocupação da gleba Macali, em Ronda Alta - RS". Esta se tornou a primeira ação que abalizou o MST, entretanto, muitas outras ações dos sem terra tomaram conta dos estados brasileiros, sobretudo no Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e São Paulo nos primeiros quatro anos. Para esse autor “a gênese do MST não pode ser compreendida por um momento ou por uma ação, mas por um conjunto de momentos e um conjunto de ações”. FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. p.50. 41 seguidas de uma síntese de cada notícia. Nesse aspecto, fica patente a construção e enquadramento da memória coletiva desses trabalhadores, numa perspectiva de coesão e representação social. Na seqüência, sob a manchete - “Trabalhadores e povo em geral apóiam a luta dos colonos” e no tópico seguinte - “A campanha de solidariedade no estado e no país”, são mencionados como base de apoio alguns sindicatos rurais, Sindicatos de Bancários, mais envolvidos com questões urbanas, e a Comissão Pastoral da Terra. Nesta mesma edição, apresenta o nome das instituições que colaboraram com donativos aos acampados, além das visitas oficiais de instituições ao acampamento. Incorpora a republicação de uma matéria jornalística feita pelo Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 12/05/1981, destacando o fracasso de uma reunião conciliatória entre representantes do governo e os trabalhadores rurais acampados. Quanto à sua formatação, o noticiário do Movimento ocupava umas dezesseis folhas, porém, isso não era regra; havia momentos em que este circulou com três folhas, oito e, às vezes, doze. Nesse aspecto, é pertinente afirmar que houve uma diferença significativa entre o Boletim Informativo e o Jornal do MST no que tange suas formações, raios de atuação, distribuições, conteúdos e organizações técnica. Inicialmente, O Boletim circulou no primeiro acampamento de Ronda Alta - RS, porém, sua atuação não se restringiu apenas a ele, alcançando outros espaços de discussão política e de sociabilidade. Revelou-se, também, uma presença marcante nos sindicatos rurais e urbanos (a princípio na região sul) e em determinados setores da Igreja Católica e Igrejas Cristãs. Observando o desenvolvimento de outras etapas do periódico, fica claro que o Boletim foi pensado para ter uma curta duração e suas experiências foram aproveitadas na constituição do JST, conforme houve a espacialização do 42 Movimento. A dinâmica do Movimento dos trabalhadores rurais permitiu que a atuação do periódico torna-se mais flexível. Este, por sua vez, adquiriu novos leitores conquistando outros espaços, como universidades, comunidades de base, sindicatos combativos e politizados, associações, entre outros. Por isso, já como Jornal, precisou diversificar os seus conteúdos e a forma de circulação, no sentido de motivar os militantes, deixando claro uma renovação constante em cada uma das etapas de seu desenvolvimento e atuação. O então criado Boletim (entendido pela pesquisa como Jornal) trazia na capa da primeira edição “a carta dos colonos acampados em Ronda Alta - RS”, definindo sua linha de reflexão, atuação e ação. Dessa maneira, evidenciou que esta carta era endereçada à sociedade brasileira, possibilitando uma oportunidade singular de estreitar seus vínculos com o homem rural e estender também ao homem urbano. Focando, particularmente, as pretensões dos trabalhadores rurais enquanto um grupo social organizado e envolvido na construção da luta, destaca esta “não como uma luta qualquer, e sim uma luta contra a opressão”29. O conteúdo da carta dos trabalhadores rurais sem terra tende a descortinar uma eminente força política deste grupo social, assim como, a projeção do jornal enquanto instrumento de comunicação e de luta, observado como porta-voz de um processo de luta em prol da redução das desigualdades sociais, numa constante busca pela elaboração e efetivação de um projeto político social para o Brasil. O trecho da primeira carta dos trabalhadores rurais à sociedade buscava caracterizar o homem do campo, demonstrando seus anseios por transformações sociais e políticas em âmbito local e nacional, mas também, pela construção de sua identidade. 29 a CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.54. 43 Nós somos mais de 500 famílias de agricultores vivendo nesta região, como pequenos arrendatários, posseiros da área indígena, peões, diaristas, meeiros, agregados, parceiros, etc. [...] Na cidade não queremos ir, porque não sabemos trabalhar lá. [...]. Como não temos a quem recorrer, resolvemos acampar na beira da estrada para ver, se em conjunto, conseguimos uma solução. [...]. Estamos muito mal alojados, muitos de nós não tem o que comer e não temos o que vestir, mas estamos dispostos a ficar aqui até conseguirmos a terra que precisamos para trabalhar como colonos [grifos meus]. Como agricultores, achamos que temos o direito a ter um pedacinho de terra para plantar alimentos para nossas famílias e para os da cidade [...].30 O fragmento acima citado exige cuidadosa leitura a respeito de seu teor político e do caráter um tanto ideológico 31 , no primeiro momento, buscou-se caracterizar os trabalhadores acampados em Ronda Alta, demonstrando a sua procedência e deixando transparecer a idéia de que estes tinham a intenção de continuarem na luta até conseguir um pedaço de terra do governo para poder trabalhar e plantar. 30 Trecho da Carta dos colonos acampados em Roda Alta, RS. Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.1. 31 Sem a pretensão de segregar o caráter político do ideológico implícito na carta dos colonos acima descrita, entende-se que ambos se complementam no contexto do documento. Para tanto, é necessário trazer à luz algumas reflexões que compõem a conceituação desses termos. Na tentativa de caracterizar o teor político do documento em destaque, vale-se das observações de Silva e Silva ao pontuar que ao contrário do que foi escrito por Aristóteles na Grécia antiga (que a política era uma experiência que se refletia na vida pessoal, harmonizada aos interesses coletivos, e que exercia uma atividade ética na função pedagógica de transformar os homens em cidadãos), atualmente “o caráter mais evidente do conceito... de política diz respeito, por um lado, à gestão dos negócios públicos e, por outro, às ações da sociedade civil organizada a fim de ter suas reivindicações atendidas”. Nas últimas décadas do século XX, assinala os autores: “o conceito de política atinge o cotidiano por meio das ações de protestos e das lutas sociais que ocorrem em esferas não-institucionais”. O termo é bastante dinâmico e “o sentido do que é ou não política muda com o tempo e também com os interesses dos grupos sociais”, dentre os quais está o MST. SILVA, Kalina W.; SILVA, Maciel H. a Dicionário de conceitos históricos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.336-7. Ver também: a BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5 ed. Brasília: Editora da UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p.954-79. ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: Dífel, 2008 (especialmente o capítulo intitulado Introdução na política, p.144-69). Estando o político e o ideológico concatenados no contexto desta carta, Chauí explicita que “a ideologia é uma forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pelas quais os agentes sociais representam para si mesmo o aparecer (grifos da autora) social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência [...], por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real”. Nesse sentido, observa-se que, “fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos ‘ensinam’ a conhecer e a agir”. CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso a competente e outras falas. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.3. 44 Outro ponto passível de interpretação é a não pré-disposição do trabalhador rural em aceitar como solução o seu deslocamento do campo com destino à cidade. Nesse momento, há uma fala marcante no que tange à sua posição, ao afirmar: “na cidade não queremos ir porque não sabemos trabalhar lá”, o que caracteriza a resistência dos trabalhadores as propostas políticas em curso e que os mesmos nas suas experiências de luta pela sobrevivência e por melhores condições de vida, julgam essa solução como sendo inviável aos seus anseios. Em outro aspecto, essa fala destaca a construção de um sentimento de coletividade que, na oportunidade, toma conta desse grupo de trabalhadores, sobretudo quando se observa a afirmação: “como não temos a quem recorrer, resolvemos acampar na beira da estrada para ver se, em conjunto, conseguimos uma solução”32. Esta fala era um indicativo de negação ao estado de direito e de sua política agrária, projetando a idéia de que esta posição configurava um convite à sociedade para se unir á causa, quando entendia que “a reforma agrária é um compromisso de toda a sociedade e não exclusivamente dos trabalhadores rurais sem terra”. Reportando-se ao acampamento à beira da estrada, destacava-o como prática constante, estratégia política no intuito de pressionar os poderes constituídos. Não é por acaso que esta forma de coação perdurou durante toda a trajetória de luta dos trabalhadores rurais arregimentados pelo MST. O trecho selecionado torna-se emblemático para se compreender a resistência no campo nos primórdios da década de 1980 e, posteriormente, anos 90 e no início do século XXI, projetando o Movimento como um dos mais importantes do país e da América Latina. 32 Carta dos colonos acampados em Roda Alta, RS. Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.1. 45 Este cenário de tensão precede a busca constante pela transformação social no campo e na cidade contando, sobremaneira, com o apoio do Boletim Informativo Sem Terra, que constituiu um discurso no sentido de acompanhar, registrar e denunciar essas tensões. Estes motivos fizeram o periódico crescer e se fortalecer no intuito de tornar-se uma ferramenta de referência em termos de comunicação, formação e informação de expressão política e social entre os trabalhadores rurais sem terra. Em face dessa questão, algumas hipóteses preliminares justificam a opção pelo estudo desse periódico como sujeito histórico, uma vez que: A mídia é um rico recurso de informação acessível para a pesquisa e ensino; o uso da mídia pode nos informar muito sobre os sentidos sociais e sobre os estereótipos projetados por meio da linguagem e da comunicação; o uso da mídia como influência e expõe a maneira pela qual às pessoas utilizam à linguagem numa determinada comunidade; a mídia reflete e influência a formação e a expressão da cultura, da política e da vida social.33 No que concerne à formatação e organização do Boletim, na sua primeira página figurou uma matéria em que se tentou abrir um diálogo entre os trabalhadores e a sociedade, demonstrando que sua proposta envolvia mudanças profundas no que diz respeito à igualdade e a solidariedade. Na página seguinte seus objetivos são confirmados, enquanto um meio de comunicação e parceiro dos que lutam pela terra e “por um mundo mais justo”. 33 BELL, Allan; GARRETT, Peter. Approaches to media discourse. Oxford: Blackwell Publishers, 1998. p.3. Apud: SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.11. O JST não é comercializado em todas as bancas de revistas e jornais, uma vez que a sua tendência foge aos interesses econômicos dos grandes meios de comunicação, detendo-se exclusivamente à representação dos anseios dos trabalhadores rurais sem terra. Nesta perspectiva, porém, apesar do jornal não ser percebido como integrante da grande mídia, é inegável o seu alcance e o uso que se faz dele nos assentamentos, acampamentos e reuniões de formação dos trabalhadores rurais. 46 Desta maneira, o Jornal se edifica com o desejo de manter a sociedade, as entidades representativas e os trabalhadores rurais informados acerca das tensões eminentes no campo. Estamos apresentando a sociedade o primeiro número deste Boletim Informativo que, dentro de suas atribuições, uma é a de manter constantemente informados todos os colaboradores desta campanha de solidariedade, através de suas entidades representativas – sindicatos e federações de trabalhadores rurais e urbanos, comunidades de base e demais entidades a nível nacional – bem como a opinião pública em geral através dos meios de comunicação – jornal, radio e televisão [grifos meus]. [...] O Boletim circulará periodicamente, na intenção de manter ‘aceso o fogo que clareia’ as reivindicações dos trabalhadores rurais e, também, veicular as manifestações de apoio e solidariedade que tem recebido. Servirá, ainda, para que os agricultores renovem seu apelo à sustentação desta luta [grifos meus] e, ao mesmo tempo, manifestem o seu profundo e comovido agradecimento aos que nela, de uma forma ou de outra, já estejam empenhados.34 Os trechos em destaque demarcam o público e o perfil do leitor que o Boletim pretendia atingir. Sinalizava, porém, que parte desse público trazia consigo níveis de formação escolar muitas vezes superior à dos trabalhadores que estavam nas frentes de ocupação. Para isso, basta observar as instâncias de atuação do público ao qual o periódico era endereçado: sindicatos, igrejas, federações de trabalhadores rurais e urbanos, comunidades de base, jornais, rádios e televisão, descortinando um discurso para dentro e outro para fora do Movimento. O segundo trecho não explicita a caracterização desse trabalhador rural envolvido na luta pela terra denominando-o, simplesmente, de agricultor35 (ainda não 34 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2. 35 Segundo o dicionário Aurélio, o termo é aplicado “àquele que pratica a agricultura”, sendo também aceito por Stedile e Fernandes, ao assinalar que “o homem do campo geralmente se define por agricultor, trabalhador rural, meeiro e/ou arrendatário”. STEDILE, João Pedro; FERNANDES, 47 designado de sem terra), pretendendo ser instrumento de motivação para a sustentação da luta, apresentando-se como suporte de comunicação entre os acampados e aqueles que lhes eram solidários ao enviarem qualquer tipo de ajuda. Nessa fase inicial, o Boletim não deixa clara a sua pretensão de se tornar um instrumento de formação entre os militantes (embora o seja de forma velada), essa possibilidade aflorou com clareza na segunda etapa de formação e atuação do periódico, especificamente a partir da publicação do número 36, em julho de 1984. O jornal e o MST não encontraram eco na maior parte da imprensa brasileira, apesar de manifestarem publicamente o desejo de contar com o apoio dos meios de comunicação de massa (rádios, jornais e televisão) para divulgar a necessidade da reforma agrária no país e as formas de pressão do Movimento ao governo. O MST, na maioria das vezes, figurou nas páginas da mídia brasileira de forma negativa, quiçá por razões bastante singulares, uma vez que esta “ocupa papel de relevo”36 e “exerce uma função central entre os aparatos do Estado [...], maneira pela qual a classe dominante assegura pela ‘palavra’ a submissão da classe dominada”37. Nesse sentido, os meios de difusão no Brasil caracterizam-se pelos seus interesses enquanto empresas de comunicação e suas mutações acompanham os objetivos do mercado e os interesses de seus proprietários. Na perspectiva do Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.31. 36 SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.12. 37 Na perspectiva de Souza, “o discurso da mídia não é livre das relações de poder entre as classes sociais, pois esta é dirigida a uma sociedade heterogênea e contraditória”. Pelo viés do dissenso nasce o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como ferramenta de luta e de divulgação das tensões sociais eminentes no cenário nacional. Ibidem. p.12. 48 conceito de “neotevê”38, o programa dominical da TV Globo intitulado “Fantástico”, possibilita uma atmosfera de reflexão para se pensar o conceito de interesses políticos e econômicos no setor da imprensa. A programação acompanha de perto os acontecimentos nacionais, mas só em raras ocasiões os menciona diretamente [...]. Suponha-se, por exemplo, que o governo federal tenha anunciado um crescimento significativo do emprego formal no país. O programa irá interpretar e comentar o fato, encenandoo sem mencioná-lo uma única vez: se a empresa de televisão apóia o governo, o ‘show da vida’ apresentará um quadro com jovens e idosos que obtiveram empregos e estão muito felizes; se a empresa se opõe ao governo, o quadro exibirá pessoas desempregadas, de varias idades e classes sociais.39 Com essa percepção, a construção do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, entendido como meio de comunicação alternativo40, buscou uma tentativa de disseminar as tensões eminentes no campo e de se fazer ouvir pelo governo e por parcela da sociedade. Nesse ínterim, o jornal anseia pela construção de um discurso menos verticalizado a respeito da organização dos trabalhadores rurais, confrontando, assim, suas informações com os discursos dos meios de comunicação que buscavam, veementemente, a destruição de qualquer movimento social com “tendências de esquerda”41, particularmente do MST. Pautando-se nestas reflexões o Boletim dos Sem Terra estaria cumprindo o papel de imprensa alternativa, observando que esta se caracteriza por sua oposição 38 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p.14. Apud: CHAUÍ, M. Simulacro e Poder. Uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p.17. 39 Nesse sentido, mostra-se como o “simulacro transforma-se em espetáculo, embora esses quadros possam ter grande impacto político, graças à encenação da informação e ao ocultamento da intenção persuasiva, o forte do ‘fantástico’ encontra-se no tratamento dado à ciência e à técnica”. Ibidem. p.4. 40 Sobre o conceito de jornal alternativo ver: AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In: MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.235. 41 Ibidem. p.235. 49 às “pretensões hegemônicas e ao espírito da imprensa oligarca e ideológica liberal, atualmente neoliberal, que é a dominante no Brasil”42. Antes, porém, o termo imprensa alternativa foi cunhado pelo jornalista Alberto Dines: A expressão ‘imprensa alternativa’ apresenta quatro elementos para uma melhor compreensão do tipo de imprensa que circula no Brasil. O primeiro destes elementos é quando o jornal pensa ‘algo que não está ligado à política dominante; o segundo é o seu desejo de manifestar duas coisas reciprocamente excludentes; o terceiro é o de que há apenas uma única saída para uma situação difícil [grifos meus] e, por ultimo, o desejo das gerações dos anos 60 e 70 de protagonizar as transformações sociais que pregavam.43 Na seqüência, o Boletim apresenta um setor denominado de “história de um povo oprimido”. Neste, era denunciada a situação social e econômica dos trabalhadores, apresentando, também, uma breve caracterização das famílias acampadas pressionando o governo por um pedaço de terra e melhores condições de vida. A notícia evidenciou as condições de vida dos trabalhadores abarracados às margens da estrada que liga “Passo Fundo a Ronda Alta, imediações do povoado de Encruzilhada Natalino”, interior do estado do Rio Grande do Sul, sinalizando para a procedência destes trabalhadores, suas bases de sustentação, organização e a 42 AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In: MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. Para esse autor, em meados do século XX estava em formação o cartel hegemônico da chamada “grande imprensa” brasileira, com características muito próprias: em geral, esta se caracteriza por grandes empresas familiares – Mesquitas (Jornal Estado de S. Paulo); Marinhos (Grupo Globo); Frias (Grupo Folha de S. Paulo), empresários capitalistas que se dedicaram a combater veementemente o que acreditavam ser de esquerda no país. 43 LIMA, Marcus Antonio A. De Alternativa a grande mídia: historiografia resumida da imprensa homossexual no Brasil. In: WOITIWICZ, Karina Janz (Org.). Recortes da mídia alternativa: histórias e memórias da comunicação no Brasil. Ponta Grossa - PR: Ed. UEPG, 2009. O autor reporta-se a B. Kucinski (1991, p.XIII) para fundamentar teoricamente o ideário de uma imprensa alternativa que pretendia ampliar os direitos das minorias, sobretudo os “negros, índios e mulheres”, utilizando-se do jornal “Lampião da Esquina” (entre outros) para levantar e problematizar as suas hipóteses. 50 crescente repressão proveniente dos poderes públicos, informações estas, na maioria das vezes, silenciadas pela “grande imprensa” brasileira. Há de se ressaltar a posição da revista Veja nas edições de 24/04/1996, 16/04/1997, 23/04/1997 e 03/07/1998 frente às ações coordenadas do MST, como um caso típico de silenciar informações. Não obstante, quando as referências acerca do MST aparecem em suas páginas, é notória a sua descaracterização, sendo os atores sociais muitas vezes “satanizados” 44 nas notícias e/ou editoriais. Nesses termos, o discurso da Veja sobre as ações coordenadas do MST configura seis dimensões: “o primeiro deles é silenciar sobre o movimento, o segundo é cooptar, difamar, dividir, domesticar e satanizar o MST”45 (grifos do autor). Tal lógica atendia aos anseios do Governo Federal, representado à época por Fernando Henrique Cardoso e por segmentos dos leitores do periódico. As lideranças do MST naquele momento mencionavam que Este governo ditou as regras de como a chamada grande imprensa deveria tratar o movimento. O tratamento mudaria de acordo com as mudanças nas estratégias do governo que, por sua vez, seria definida pela maneira com que a opinião pública reagiria a eventos protagonizados pelos sem terra (massacres, marchas, ocupações, etc.).46 A princípio, o Boletim dos Sem Terra procurou salientar que, em sua maioria, os trabalhadores acampados na região Centro-Sul eram procedentes da própria área rural e outros oriundos da área urbana, mas que, em algum momento de suas 44 SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.19. As referências acima citadas reportam-se as edições analisadas e mencionadas pelo autor. Destaque-se, também, a o capa da edição de n 22 de 03/07/1998 da respectiva revista que trás a figura de João Pedro Stedile, liderança do Movimento travestido de demônio, como observado na obra de: SOTTILE, Rogério. MST: a nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. p.64. 45 SOUZA, op. cit., p.19. 46 Gilberto Portes de Oliveira, membro da direção nacional do MST, em entrevista realizada em julho de 2000. Cf.: Ibidem. p.19. 51 vidas, tiveram contato direto ou indiretamente com o cultivo da terra. Descarta-se, portanto, a hipótese de que estes eram pessoas sem propósitos com a terra ou algo parecido, como teria afirmado o tenente-coronel Curió: “[...] muita gente que estava lá dentro não era colono, eram aproveitadores. Lá tinha professores, tinha motorista de táxi, tinha de tudo lá dentro” 47 . Segundo esta fonte, a categoria “de tudo” mencionado pelo tenente-coronel se traduziria em: Arrendatários, parceiros, meeiros, agregados, peões de granjas e filhos de pequenos agricultores que perderam a possibilidade de continuar na terra, expulsos pela maquina [grifos meus], pela ganância dos grandes proprietários, pela falta de trabalho, enfim, pela política agrícola do governo.48 As transformações ocorridas no campo nos primórdios dos anos setenta e oitenta foram bastante visíveis, inclusive no aspecto social e econômico, desencadeando tensões que nortearam a exclusão e a marginalização de centenas de trabalhadores de seus postos de trabalhos. Nesse sentido, percebia-se que a política econômica adotada no período ocasionou mudanças significativas no campo paulista, resultado do êxodo rural que provocou diminuição substancial no trabalho familiar 49 . Em face disso, a geografia do campo também sofreu alterações, especialmente pela saída do homem rural com destino aos grandes centros urbanos, 47 Trecho da entrevista com o Tenente-coronel e deputado Curió pelo PDS do Pará, em 1983. É emblemática esta entrevista ao se observar que o entrevistado foi um dos grandes opositores aos trabalhadores rurais acampados, em Ronda Alta, RS. Segundo o JST, “esse militar transformou algumas centenas de colonos em ‘inimigos da Nação” quando designado pelo Palácio do Planalto para comandar a tensão eminente no local descrito acima. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.33. MST, novembro de 1983. p.14. 48 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2. 49 Para Fernandes, “houve uma diminuição de 27% do total de pessoas ocupadas com o trabalho familiar [...]. Por outro lado, houve um aumento de 38% dos trabalhadores assalariados permanentes e temporários, havendo redução nos dois casos na segunda metade da década de 1980”. O autor assinala também que na década de oitenta “a população migrante representava mais da metade da população paulista”, pois “somente nessa década, mais de quatro milhões de pessoas migraram do campo para a cidade”. FERNANDES, Bernardo M. MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Formação e Territorialização em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1996. p.45, 50. 52 abrindo caminhos para a organização destes em movimentos sociais em crescente ascensão. 50 A página 5 deste número do Boletim trazia com destaque a notícia na qual figurava otimismo acentuado frente à opinião pública. O título da matéria destacava “Trabalhadores e o Povo em Geral Apóiam a Luta dos Colonos”. O texto agradecia em nome dos trabalhadores rurais acampados às entidades envolvidos na luta pela posse da terra, destacando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Criciúma - SC, Sindicato dos Bancários de Porto Alegre - RS, Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Goiânia - GO e outros sindicatos e organizações autônomas de todo o país que apoiaram o movimento dos trabalhadores, segundo o jornal: No transcorrer dessa nossa luta [grifos meus] que já passam 60 dias, temos recebido o apoio, o conforto, a coragem e a solidariedade de muitos irmãos trabalhadores, de muitas entidades e de muitas pessoas. Queremos dizer que vosso apoio é que tem ajudado a gente a se manter unido e com força.51 Nesse aspecto, o periódico evidenciava uma linguagem afetiva e de mobilização, sem a pretensão de neutralidade frente aos trabalhadores rurais e os aliados a quem se dirigia. Revelava, sobretudo, um ar de denúncia no sentido de promover a mobilização dos trabalhadores rurais e militantes que compartilham dos 50 A título de exemplificação, esses atores sociais, excluídos de seus postos de trabalho ou de suas ocupações cotidianas, tentam reencontrar a sua cidadania lutando no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST; Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST; Movimento Paz SemTerra - MPST; Movimento de Libertação dos Sem Terra - MLST; Movimento dos Ameaçados por Barragens - MOAB; Movimento Terra Brasil - MTB, dentre outros. Nessa linha de reflexão, Bezerra assinala que as tensões no campo, particularizando os motivos que levaram à saída dos trabalhadores rurais da cana na região de Assis, no interior de São Paulo, deram-se quando os empresários do açúcar buscaram intensificar a implementação da tecnologia em setores estratégicos de suas empresas e fazendas objetivando maior produtividade em consonância com a demanda oriunda do agronegócio, especificamente na década de 1990. Ver: BEZERRA, Antonio Alves. Bóiasfrias e a mecanização nas usinas de açúcar e álcool no Oeste Paulista: 1960-2000. Dissertação (Mestrado em História Social), PUC/SP, São Paulo, 2002. p.16. 51 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.5. 53 anseios do Movimento. Agradecia o “apoio, o conforto e a solidariedade” dos de fora e valorizando a coragem, perseverança e otimismo dos de dentro, transformando-se num discurso que buscava o convencimento para a causa em questão. No trecho citado a seguir, buscava-se esclarecer a precariedade da situação dos trabalhadores acampados, sobretudo, quando se observa o enorme contingente de pessoas aglomeradas num único lugar, “somando um total de três mil pessoas acampadas às margens da estrada”, sendo que uma parte delas provinha dos municípios de “Sarandi, Ronda Alta, Constantina, Nonaí, Rodeio Bonito, Planalto, Irai, Rondinha e Liberato Salzano, todas no RS”52. Nesse sentido, destacava que As condições de sobrevivência destes trabalhadores são bastante precárias: falta o mínimo necessário em utensílios, acomodações, camas, agasalhos, alimentação e assistência médica e social [...]. A falta de solução, as pressões do governo, as intimidações através de policiais pioram ainda mais esse quadro.53 O Boletim, em seu primeiro ano de vigência, clamou pela solidariedade aos trabalhadores, usando uma de suas divisões mais significativas, pontuando o nome de seus aliados, registrando suas contribuições e seu comprometimento com o Movimento. A solidariedade das pessoas para com os trabalhadores foi a principal base de sustentação dos acampamentos, observando que os recursos destes eram precários e que boa parte deles sobrevivia à custa de outros colonos. Nesta edição, 52 A estratégia de acampar a beira das estradas e rodovias era uma forma de chamar a atenção da opinião pública acerca das tensões que estavam ocorrendo nas imediações daqueles municípios. Esse procedimento seria utilizado por mais de duas décadas para dar visibilidade às inquietações dos trabalhadores rurais sem terra e uma forma de pressionar o governo a dar uma nova configuração à política agrária do país. 53 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2. 54 porém, a fonte em destaque notificava que os trabalhadores contaram de imediato com o apoio de várias entidades de cunho social, dentre elas, destacando-se setores progressistas da Igreja Católica representada pela Comissão Pastoral da Terra. A título de exemplificação, a primeira campanha de solidariedade, a “Diocese de Chapecó - SC enviou cinco mil quilos de farinha, mil quilos de açúcar e sal”, mantimentos estes que deram sustentação e serviram de motivação à continuidade dos trabalhadores rurais na luta. Na página dez do Boletim era republicada uma reportagem feita pelo Jornal Zero Hora de Porto Alegre intitulada: “Reunião com os colonos fracassou”, demonstrando fortemente o impasse entre o governo e esses trabalhadores. Depois de uma hora de reunião com quatro agricultores que representavam os colonos acampados em Ronda Alta, o presidente do Incra, Paulo Yokota, sentiu-se desiludido. Os trabalhadores ali presentes estavam revoltados e prometiam ‘continuar a luta’, mantendo-se acampados e reivindicando terras para serem assentados dentro do Rio Grande do Sul. Ao meio daquela situação de contradições, um dos trabalhadores chegou a fazer uma ameaça velada ao presidente do Incra: ‘nós vamos lá dar a sua resposta negativa aos companheiros. Mas não sei o que pode acontecer.54 A opção deste jornal em autorizar a republicação da matéria no Boletim implica numa possível identificação do mesmo com a bandeira de luta dos sem terra. A matéria apontava as evidências da gestação de tensão envolvendo os trabalhadores rurais, latifundiários e governo, possibilitando o desencadeamento de conflitos de grande magnitude neste e nos anos subseqüentes. 54 ZERO HORA. Porto Alegre, 12 de maio de 1981. p.25. Apud: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.10. 55 A matéria intitulada: “Manifestação dos Agricultores” expunha o agradecimento dos trabalhadores acampados frente às ações de solidariedade provenientes dos mais diversos setores da sociedade. Também foi veiculada a informação acerca das ações governamentais, sendo questionada a idéia de que inúmeras comissões do governo estiveram junto ao assentamento, no entanto, sem nada resolver. Para os trabalhadores, segundo a documentação, “eram papéis e mais papéis, formulários e mais formulários, perguntas e mais perguntas e nada de solução”. Em suma, o Boletim reportava-se aos trabalhadores acampados da seguinte forma: “Nós não queremos formulários, nós queremos TERRA!” 1.2 O BOLETIM SEM TERRA, IDENTIDADE E MEMÓRIA No segundo semestre de 1982, a edição de no 25 do Boletim Informativo dos Sem Terra apresentou a constituição de um editorial e não oficializando o seu expediente técnico-jornalístico. Sem menosprezar a quantidade e a qualidade das informações presentes nas edições anteriores e posteriores a esta, o presente capítulo preocupou-se em discutir trechos do editorial desta edição considerando que havia uma tensão implícita em se tratando da continuidade do jornal, do local de sua circulação e, sobretudo, indicando uma polêmica no que concerne à atualidade e qualidade da informação por ele veiculada. Segundo o editorial, o Boletim feito pelo Comitê de Apoio – RS foi indicado pelos colonos como órgão de divulgação de suas lutas, em cinco Unidades da Federação: RS, SC, PR, SP, MS, sendo uma das razões que leva a presente pesquisa à tentativa de compreender o jornal como porta-voz da luta na área rural. 56 O editorial pontuava que, apesar de sua precariedade, o jornal buscará “aumentar a responsabilidade de seus colaboradores no que tange a sua contribuição para as lutas no campo”. Informava, também, que apesar dos colonos identificarem o Boletim como seu porta-voz, este não apresentava boas condições em se tratando de recursos materiais e atualidade das informações, salientando que “o leitor não espere dos próximos números mudanças profundas, pois elas virão com o tempo e serão frutos da semente regada com o esforço e o sacrifício de quem deseja melhorar e contribuir com a luta”. Em outro trecho: Consideramos que a boa qualidade da informação não deve ser privilégio das classes dominantes, embora estas tenham mais acesso à informação e às técnicas de comunicação, por isso há o desejo de aperfeiçoamento [...] Algumas notícias estão ultrapassadas no tempo, mas de qualquer forma possuem importância histórica para o movimento camponês, e nos próximos números prosseguiremos divulgando informações da luta pela terra [...].55 Dessa forma, expressava as dificuldades no que se refere à morosidade das informações, reconhecendo a defasagem da notícia, porém norteava a perspectiva de melhora, deixando evidente que o periódico precisava de mudanças no que tange à sua estruturação, assegurando a viabilidade das notícias em tempo reduzido, fator esse, associado às mudanças qualitativas nos conteúdos a serem publicados. Demonstrava preocupação com o registro da notícia como fato histórico para o fortalecimento da luta no campo, tema, aliás, que perpassa os mais variados tipos de registros do MST ao longo de sua trajetória. 55 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. Ano II, n.25. Editorial “Boletim Sem Terra será regional”. Porto Alegre, julho de 1982. p.2. 57 Apesar das notícias veiculadas pelo Boletim não serem atuais na sua concepção, servia de ingrediente fundamental para a composição da “memória coletiva” 56 dos trabalhadores imbricados na luta pela sua “libertação e pela implantação de uma autêntica reforma agrária” 57 no país. Em fevereiro de 1983, na sua segunda etapa, o Boletim Informativo dos Sem Terra passou a circular com a seguinte nomenclatura: Boletim dos Sem Terra, suprimindo-se o adjetivo informativo. Não que tivesse deixado de informar aos trabalhadores, pelo contrário, ganha a partir de então outra configuração, alcançando maior projeção em função do aumento crescente da tiragem 58 , valorizando mais as notícias e manchetes, politizando os editoriais e dinamizando as entrevistas com lideranças do Movimento e intelectuais aliados. O periódico, portanto, procurava de antemão se desprender do formato de Boletim Informativo com conteúdo panfletário tendendo a aproximar-se da configuração de um jornal. Ainda com sede em Porto Alegre - RS, sob a 56 Cf.: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990. p.80. Para esse autor, “A memória coletiva não se confunde com a história”. Pois “a história é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens [...] isso acontece porque geralmente a história começa somente no ponto onde acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social”. Nessa mesma linha de reflexão, D’Aléssio salienta que “a memória social é sempre vivida, física ou afetivamente, pois, quando o grupo social desaparece, a única maneira de salvar as lembranças, que para os grupos existentes são exteriores é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem” (grifos da autora). Talvez essa observação seja uma das razões que leva o MST, enquanto grupo social, a zelar pelo registro de suas memórias. Ver: D’ALÉSSIO, Márcia Mansor. Memória: leitura de M. Halbwachs e P. Nora. Revista Brasileira de História - Memória, História e Historiografia. Vol.13, n.25/26. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, set. 92/ ago. 93. p.97-103. 57 Considerações da Madre Cristina, diretora do Instituto Sedes Sapientae, PUC-SP, sobre as comemorações dos dez anos de existência do JST. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1991. p.16. 58 Reportando-se à tiragem de exemplares de jornais, particularmente aqueles comprometidos com a venda de espaços para propagandas ou coisa do gênero, Cruz recomenda atenção para a veracidade dos números publicados por estes, observando que em sua maioria os dados são imprecisos, servindo apenas para chamar a atenção dos anunciantes. Para um jornal ou uma revista apresentar dados de alta tiragem, representava o acesso imediato de muitos leitores, tornando-se um dos principais ingredientes que facilitaria a venda dos produtos ali anunciados, logo aumentando os lucros da empresa jornalística. Segundo essa autora, tal questão chegou até as páginas dos “pequenos e efêmeros jornais humorísticos, que vez por outra estavam fazendo humor declarando tiragens de 10 mil a 20 mil exemplares” por edição. CRUZ, Heloisa de F. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2000. p.139. 58 responsabilidade do então Comitê de Apoio aos Agricultores Sem Terra, o Boletim Sem Terra, apesar da circulação regional, ampliou a sua tiragem, oscilando entre dois mil e quinhentos e cinco mil exemplares, segundo dados expressos na folha de rosto, deste primeiro ano com a nova nomenclatura. Contando com um número menor de páginas impressas em suas primeiras edições, porém com maior tiragem e com circulação regular, o Boletim ganhou maior visibilidade, difundindo a idéia de que suas informações tinham maior credibilidade e principalmente eram constantemente atualizadas. A edição de no29 do periódico iniciou-se com a seguinte pergunta: “Sair ou lutar?” Propositalmente foi anexada ao lado desta indagação uma imagem sem autoria retratando a saída do homem do campo com destino aos grandes centros urbanos, justificando por si só a chamada de capa com a seguinte manchete: “A 6a Romaria da Terra será de protesto contra a expulsão dos trabalhadores rurais do campo”. Nota-se que o jornal, ao longo de sua trajetória, procurou explorar a imagética como ferramenta de comunicação entre seus leitores. Essa tendência iniciou-se timidamente na edição de no 16, publicada em 1981, expandindo-se nas edições seguintes. Em geral, o uso da fotografia jornalística no Boletim foi de caráter restrito, ocupando destaque sempre na página de rosto, seguido da manchete, ausentando-se do corpo do texto. Ainda em 1983, especialmente a partir da edição de no 31, tornou-se perceptível uma maior utilização dos recursos imagéticos pelo periódico, com expansão de seu uso no limiar do ano de 1984, quando ocorre a mudança de Boletim para Jornal. A partir de então, o periódico se apropriou da fotografia amadora, somada ao desenho, caricatura, charge e foto-jornalismo 59 profissional, que passaram a ocupar papel de destaque ao lado dos textos em quase todas as seções. Nesse contexto, o “objeto e o documento se ampliam, permitindo cada vez mais uma maior aproximação da história com territórios antes inexplorados”, criando condições para a compreensão de que a construção “dos discursos sobre o passado ultrapassam os limites impostos pela escrita”59. Figura 1 - Lutando Pela Terra60 A imagem buscou representar um cenário de desigualdade social dos grandes centros urbanos, com indicadores sociais negativos e cristalizados. Entre esses, destacavam-se o crescimento desordenado das cidades e o aumento 59 Dessa maneira, promove-se a valorização da imagética como possibilidade metodológica de interpretação do passado e construção da história. Cf.: NOVA, Cristiane. A “História” diante dos Desafios Imagéticos. Projeto História. n.21 - História e Imagem. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2000. p.141-62. Ver também: SOTTILE, Rogério. MST: a nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. 60 Imagem sem autoria. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. MST, fev.1983. 60 populacional oriundo da migração do campo, fruto da ausência de uma política agrária efetiva, ingrediente que culminou na organização dos trabalhadores rurais sem terra em torno do MST61, na perspectiva de que A miséria do trabalhador rural, problema central de nossa questão agrária transformou-se, com esse fluxo migratório, em miséria do trabalhador urbano. Dessa perspectiva, a retomada da luta pela terra no Brasil indica que uma parcela dos camponeses, em via de ser expulsa do campo, recusava-se a engrossar a migração para as cidades e preferia resistir na terra.62 No plano superior desta imagem, observam-se algumas residências precárias de trabalhadores (denominadas nos centros urbanos de barracos), em confronto com o conjunto de edifícios, registrando uma espécie de apartheid social. Ao centro da figura, percebe-se a chegada dos trabalhadores rurais aos aglomerados urbanos, provocando sobremaneira uma mudança na paisagem social urbanizada. A imagem ainda explícita a desistência de um dos trabalhadores de continuar a caminhada de expulsão da área rural, não se permitindo abandonar as suas tradições e seu apego à terra. Há, nesse caso, resistência explícita no que se refere a sua opção em persistir no campo. De qualquer forma, a postura adotada por esse personagem implica no início de uma saga que provavelmente desembocaria na implementação de uma política agrária conflituosa para o país, desencadeando graves conflitos no eixo campo-cidade. Já os outros trabalhadores desistiam dessa luta incerta e buscam possibilidades nas áreas urbanas, conforme retrata a imagem. Na seqüência e como 61 No âmbito da chamada “questão agrária”, o crescente “processo de desenvolvimento capitalista na agricultura brasileira”, desencadeado especificamente “nas décadas de 1960 e 1970” do século XX, tornou-se fator crucial a influenciar ‘a emergência do MST’, enquanto movimento social, frente à “intensa expropriação e proletarização do campesinato”, culminando “no aumento alarmante da migração rural-urbana”. Cf.: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.18. 62 Ibidem. 61 matéria de capa, infere-se a denúncia acerca da violência generalizada no campo, implicando na morte de “sindicalistas, padres e posseiros” e que, à luz do dia, “os pistoleiros, a soldo de seus mandantes continuam agindo completamente impunes, prometendo mais violência para o dia seguinte”. Ainda como matéria de capa, o Boletim63 comunicava aos seus leitores e companheiros de luta a realização de seu II Encontro Regional, evocando a presença e participação dos trabalhadores. Para este, o Encontro proporcionaria uma oportunidade para se tecer considerações a respeito “da recente reunião da Comissão Nacional Provisória dos Sem Terra, e também a realização de uma avaliação minuciosa dos encaminhamentos feitos a partir do Primeiro Encontro Nacional, realizado em 1984”. Outra questão percebida e que deve ser levada em consideração no formato do Boletim Sem Terra é que este trazia uma seção fortemente marcada por um editorial com conteúdo político. Na edição de no 29, o editorial intitulado “Conflitos aumentaram no campo” e na edição de no 30, “Lutar pelo fim da Lei de Segurança Nacional”64 fica evidente que, além de primar pelo caráter informativo acerca das tensões existentes no campo, o periódico procurava posicionar-se pela formação de uma força contrária aos governos, ao poder judiciário, à polícia e, possivelmente, a alguns setores conservadores da chamada “grande imprensa”. 63 Nesse momento o Boletim ainda não apresentava de forma explícita a constituição de um expediente. Havia, porém, um comitê de apoio que respondia por todas as informações veiculadas por ele. Antecipa-se, ainda, que a constituição desse expediente se daria a partir da editoração da o edição de n 33, publicado no mês de novembro de 1983 sob a responsabilidade do jornalista Fladimir Araújo, “funcionário da Assembléia Legislativa do RS. Como militante voluntário, foi um dos fundadores do Boletim Sem Terra e o primeiro editor do Jornal Sem Terra, no período de 1984 a 1988”. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a Luta Pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.26. 64 Os dois números citados são ilustrativos para se pensar na essência dessa ferramenta de o o comunicação do MST. O n 29 - Ano III foi publicado em fevereiro de 1983 e o n 30, em março do mesmo ano. Em geral o editorial ocupava a página dois de cada edição. Apesar de não ficar evidenciado a existência de um expediente para este jornal, há indícios de que a organização do mesmo passava pelo crivo de um jornalista ou alguém vinculado à área de comunicação social. Neste momento, a responsabilidade sobre as informações veiculadas pelo “sem terra” era do Comitê de Apoio aos Agricultores Sem Terra. 62 Ainda de acordo com a edição de número 29, o Boletim procurou trazer à luz informações acerca da proposta de reforma agrária do INCRA, órgão do governo federal, demonstrava também a insatisfação de alguns colonos frente à abertura de novas barragens na área rural. Por fim, convocava a sociedade para protestar contra o modelo de governo em curso, apresentando dados relevantes sobre a violência no campo, fruto da ordem instituída. A última página trazia a informação sobre o resultado obtido com a reunião da Comissão Nacional dos Sem Terra, desembocando numa avaliação do movimento, cujo conteúdo seria a formação de uma articulação nacional para os sem terra. Segundo o jornal, tal ação não seria possível nesse momento, pois: “não daria para se pensar numa articulação nacional dos sem terra pela ausência de condições concretas de organização... no entanto, seria possível articular a luta a partir de situações concretas em regiões já organizadas”65. Ou seja, representava que o movimento ainda não estava concretamente “espacializado”, sendo preciso organizar com mais afinco os trabalhadores nas regiões aonde já existissem condições concretas de expansão da luta, dessa forma, a proposta do jornal visava contribuir para esta espacialização do movimento. Não obstante, o documento apresentava uma seção de notas em que figuravam informações diversas, destacando os registros das assembléias gerais nos assentamentos e acampamentos, manifestos sobre atos de violência e crueldade no campo, denúncias sobre os contratos frios de empresas colonizadoras e, ainda, dados sobre o latifúndio no Brasil, sob a ótica de técnicos do IBGE, representando o próprio governo federal. 65 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de o Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n 29, Ano III. Porto Alegre, fevereiro de 1983. 63 Em julho de 1984, iniciou-se a terceira fase do jornal, momento em que este ganhou uma nova nomenclatura, passando a ser denominado de Jornal dos Trabalhadores Sem Terra. Sediado ainda em Porto Alegre - RS, o periódico foi reconhecido oficialmente como órgão do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra da Regional Sul, compreendendo os estado do RS, SC, PR, MS e SP, com expediente jornalístico constituído sob a responsabilidade de Flademir Araújo, RP 4.805. A edição de no 36 circulou com dezesseis páginas e alcançou a tiragem de dez mil exemplares (uma das maiores tiragens até então). A formatação também sofreu grandes modificações, tanto nas manchetes de capa, como nas notícias do corpo do jornal, passando a figurar sempre uma ou mais fotografias que visavam instigar o leitor a acessar as informações trazidas. Dessa forma, criava maior condição de compreensão das notícias por parte dos trabalhadores que não tinham acesso à cultura letrada 66 , formando um enorme contingente de homens e mulheres analfabetos. Para exemplificar, a edição trouxe como manchete principal: “Ivinhema desponta uma esperança”, e como submanchete de capa: “Bóias-frias: usineiros não cumprem acordo”. Como editorial, figurou o seguinte título: “Maturidade Política”67, 66 Apesar de haver índices significativos de analfabetos entre os trabalhadores rurais organizados no MST, de acordo com o IBGE, estudos do setor de educação do Movimento sinalizam que os mesmos manifestam desejos latentes de superação do analfabetismo na certeza de desenvolverem habilidades leitoras e escritoras para poderem, então, enfrentar os discursos proferidos por vários segmentos da sociedade. Fonte: IBGE - Censos Demográficos, Anuário Estatístico/ 1995. Cf.: SOUSA, Marcelo Medeiros Coelho. O analfabetismo no Brasil sob o enfoque demográfico. Brasília, abril de 1999. Com base nos dados do MEC, IBGE e INEP, no período de 1996 a 2006 ocorreu uma significativa queda na taxa de analfabetismo no país, correspondendo a 29,1%. Entretanto, nesse ínterim, os indicadores registram uma triste realidade: no período de 1991 havia no Brasil mais de 19 milhões de analfabetos; em 2003 mais de 16 milhões e, em 2006, mais de 11 milhões. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) revelou que em 2004 a taxa de analfabetismo na área rural era de 28,7%. O mesmo instituto de pesquisa avaliou a taxa de analfabetismo nos acampamentos e assentamentos do MST, constatando que o índice de analfabetismo nestes espaços correspondia a 23%. Consultar: VARGAS, Maria C. Por um Brasil sem analfabetismo. Disponível em: <http://www.mst.org.br/jornal/270/realidade%20brasileira>. Acesso em: 27/03/2010. 67 Nesse instante, entende-se que o jornal já está atingindo parte de seus objetivos: levar aos cantos mais remotos do país informações sobre a organização dos trabalhadores rurais sem terra e mostrar 64 com a presença de considerações históricas arrolando as condições de vida a que estavam submetidos os trabalhadores do campo e da cidade ao longo de sua trajetória. Ainda nesse sentido, destacava-se, particularmente, a questão da terra e a ausência do acesso a esta por parte dos trabalhadores. O editorial denunciava a grande concentração de terra em todo o país e o enorme contingente de famílias sem terra ou com terra insuficiente para sobreviver. Com base em dados apresentados por sindicatos rurais, federação dos trabalhadores e institutos de terras, para o jornal “somente nos cinco estados do sul do país existem 700 mil famílias de lavradores sem terra e calcula-se que existam três milhões de famílias na mesma condição em todo o país”. Este número aumentaria à medida que o movimento estivesse organizado, confirmando, portanto, a sua espacialização. Segundo o jornal, a partir da implementação das ações orientadas pelo MST tornou-se evidente um desejo latente de “reprimir os lavradores e trabalhadores, mobilizando desde fazendeiros até altos escalões da Segurança Nacional, inclusive alguns Jornais da grande imprensa” 68 , na tentativa de distorcer os fatos com a prerrogativa de criar uma atmosfera confusa entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e setores da sociedade que o apoiava. A mesma fonte evidencia que havia constante “repetição dos velhos argumentos em dizer que existem elementos [grifos meus] infiltrados no movimento o atraso que o país vivia com relação à distribuição da terra e à miserabilidade social pelas quais passava parte significativa de sua população. O Editorial desta edição esclarecia que o “amadurecimento político dos lavradores fez com que eles tivessem condições de entender esta situação e quais interesses estavam em jogo”. Salienta que “a paciência se esgotou e os sem terra partiram para iniciativas mais eficazes para garantir os seus direitos”, provavelmente pela ocupação em massa de propriedades e espaços públicos e particulares. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2. 68 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2. Nessa perspectiva, observa-se a construção de alianças do MST com determinados setores da sociedade, desencadeando uma tensão nos discursos propalados pelas duas forças políticas opositoras: Movimento Social e Governo. 65 incitando os trabalhadores”. Porém, os trabalhadores não se cansavam de argumentar que, ao contrário do que era aventado por setores conservadores do governo e pela “grande imprensa”, o motivo que os levaram à organização “é a fome e a miséria”. O Movimento é uma organização própria dos lavradores e que são apoiados desde a sua essência por Sindicatos, Igrejas e setores da própria sociedade, alegando, ainda, que seu interesse é claro e legítimo: uma reforma agrária, sobre há qual muito se fala e pouco se faz.69 Enfim, a formatação do jornal nessa terceira etapa apresentava na segunda página o editorial e na seqüência informações sobre a luta dos trabalhadores em cada estado, onde o movimento estava organizado ou em fase de organização. No estado do Paraná, a matéria intitulada “Mastro coordena ocupação em São Miguel” informava sobre a ocupação de uma área de setenta mil alqueires no município acima citado, localizado a 100 km do município de Cascavel – PR, numa ação que mobilizou cerca de 61 famílias de agricultores sem terra. Para os trabalhadores, a ocupação feita nesse município deveu-se ao temor do INCRA em assentar outras famílias de áreas em conflito, “deixando-nos mais uma vez no escanteio”70. Na página seguinte figuraram informações referentes ao assassinato de lideranças do Movimento, além da denúncia de lavradores “iludidos” pelo governo ao aceitarem o convite em deixar o movimento e irem desbravar áreas da Amazônia. Na página 5, as informações eram sobre o Pontal do Paranapanema - SP, sob o título: “Acampados pedem apoio em Andradina”, seguida de outra matéria pressionando o poder público para regularizar a vida das 60 famílias acampadas em parte da Fazenda Primavera, alocada no trecho da Rodovia SP 363, no estado de 69 70 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2. 66 São Paulo. Tal reportagem destacava: “lavradores de Pontal não aceitam a demora”, revelando uma enorme tensão entre os governos e o movimento. Como manchete de capa, figurava a seguinte matéria: “Ivinhema: lavradores resistem ao cerco e à pressão policial”. Trazia, também, na seção Entrevista – a fala de uma importante personalidade da Igreja Católica, o Presidente Nacional da Comissão Pastoral da Terra, D. José Gomes, que na entrevista assinalava que “a Igreja mudou. As classes dominantes não aceitaram a sua nova postura”. Frente à indagação feita pelo Jornal Sem Terra, procurava-se evidenciar fragmentos dos discursos dos aliados do MST atribuindo destaque à seguinte questão: “Como a Igreja vê a situação do país e principalmente as lutas dos trabalhadores?” O religioso foi incisivo ao afirmar: Nós sabemos que o Brasil enfrenta uma profunda crise, cujas raízes estão no sistema desenvolvimentista que o país adotou em que se privilegia, de modo especial, o capital multinacional, de natureza extremamente exploradora, fazendo com que uma grande faixa da população viva na mais absoluta miséria. No caso dos trabalhadores rurais, há um projeto claro do governo para evacuar [grifos meus] as pessoas do campo para as cidades, oferecendo assim mão-de-obra barata para as indústrias.71 Nesta oportunidade, outra questão aventada pelo jornal reportava-se à postura adotada pela Igreja Católica em se aproximar mais das tensões no campo 71 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. Seção Entrevista - D. José Gomes, Presidente Nacional da Comissão Pastoral da Terra. MST, julho de 1984. p.8. A exposição dos títulos das notícias veiculadas pelo JST, nesse momento, expressava o desejo de mapear a espacialização da luta também nas páginas do periódico e não apenas no espaço geográfico. Pretendia, ainda, revelar a dialética entre as ações impetradas pelos integrantes do MST no campo e suas repercussões nas páginas de seu jornal. Não obstante, dez anos após essa entrevista, o pesquisador americano RIFKIN assinala que em vista da proposta do avanço tecnológico na agricultura em escala mundial, prometendo-se maior produtividade e redução da mão-de-obra de forma progressiva, “não resta dúvida de que num futuro próximo o preço humano do progresso será assombroso ao passo que centenas de milhões de agricultores em todo o mundo enfrentarão a perspectiva de sua eliminação permanente do processo econômico”. Cf.: RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995. p.137. 67 envolvendo os trabalhadores rurais e também sobre as críticas ferrenhas advindas do governo e de setores da sociedade. Nesse sentido, o Bispo salientava: Com o Concílio Vaticano II, a Igreja sofre um processo de transformação de ação pastoral. A Igreja sentiu o drama das populações marginalizadas e quando se voltou a estas recebeu a reação agressiva das classes dominantes que sempre tiveram na Igreja uma força de sustentação de seus privilégios.72 Na seqüência, a seção - Nos estados - revelava as tensões prementes nas Unidades da Federação onde o movimento estava organizado, destacando-se aqui alguns títulos de suas matérias: “Catarinenses denunciam Pró-terras”; “lavradores cobram promessas”, “Encontro oficializa comissão em Rodeio Bonito”73. Na seção Opinião, esta edição trouxe o artigo de opinião do Frei Sergio A. Gorgen. Sob o título “Reforma Agrária é o nosso objetivo”, informava que “a reforma agrária retornou à mesa dos debates nacionais e continua a ser a principal reivindicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, assim como continua despertando as iras e a violência dos grandes latifundiários”74. A edição, ainda, trouxe uma seção especial denominada de “Guariba”, cuja matéria intitulou-se “Vitória dos bóias-frias ameaçada” 75 . Nesta, oportunidade os cortadores de cana se mobilizaram de tal forma, que nem mesmo eles tinham a dimensão real das conseqüências, que o gesto de não trabalhar na manhã do dia 15 de maio de 1984, poderia causar. 72 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.8. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.10. 74 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.11. 75 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.12. Sobre o assunto ver: PEREIRA, M. D. C. T. A greve dos Bóias-frias de Guariba e a repressão de maio de 1984. Dissertação (Mestrado em História), FFLCH/USP, São Paulo, 2001. BEZERRA, Antonio Alves. Bóias-frias e a mecanização nas usinas de açúcar e álcool no Oeste Paulista: 1960-2000. Dissertação (Mestrado em História Social), PUC/SP, São Paulo, 2002. 73 68 Sobre o assunto, o sociólogo José de Sousa Martins publicou o artigo “A Explosão previsível”. Na mesma seção era noticiado que os trabalhadores rurais iniciaram greve em todo o estado de São Paulo para que pudessem assegurar o acordo celebrado entre sindicato da categoria e usineiros, que ameaçavam com o não cumprimento do mesmo. A partir de então, percebe-se que houve significativa abertura no periódico à incorporação do discurso acadêmico como proposta de mediação dos conflitos e abertura para o diálogo. Enfim, a mais recente fase do jornal bem como a sua nova formatação foi traduzida pela seguinte composição: Em junho está prevista a primeira edição do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, formato tablóide – isto quer dizer o dobro do atual boletim – 12 páginas, tiragem inicial de 10 mil exemplares e com circulação Regional Sul e outros estados do país. A decisão de transformar o Boletim em Jornal foi tomada no Encontro Nacional dos Sem Terra, realizado em Cascavel, PR, no começo do ano. Uma equipe de 10 jornalistas trabalhará na edição do jornal que vai continuar com a colaboração dos próprios lavradores, pessoas ligadas ao trabalho pastoral, aos sindicalistas e estudiosos da problemática agrária.76 Na condição de jornal, portanto, suprime-se a idéia de Boletim Informativo, buscando-se tecer novos contornos para o veículo de comunicação e para o próprio MST. Isso era uma tentativa de implementar uma pauta de luta para ambos, sinalizando, conseqüentemente, para a profissionalização do jornal. A princípio, o sucesso anunciado do jornal viria com a implementação de seu objetivo 76 inicial: acompanhar, registrar e divulgar nos assentamentos e Nesse encontro se constitui oficialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, definindo-se a sua linha mestra de reivindicações, bem como a linha de atuação do jornal. Com ele, nasce o porta-voz dos trabalhadores rurais, assumindo o compromisso de informar o trabalhador acampado ou assentado, com a intenção de difundir suas angústias, suas experiências de lutas, suas conquistas e suas decepções ou representações acerca das questões vivenciadas. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. MST, abril de 1984. p.2. 69 acampamentos os percursos do MST – mostrando os avanços da luta, os retrocessos e elaborando novas estratégias de enfrentamentos, buscando construir uma identidade77 coletiva para os trabalhadores: Em suas páginas, desde os primeiros números, se preocupou em mostrar o dia-a-dia dos integrantes do movimento, às suas reivindicações, às promessas não cumpridas do governo e denunciar [grifos meus] sistematicamente as investidas da repressão desde a atuação da PM assim como a da Polícia Federal.78 Em face disso, o jornal buscava se fortalecer politicamente assumindo o título de porta-voz dos trabalhadores rurais sem terra, na tentativa de esclarecer a sociedade brasileira urbana e rural sobre o modelo de política pública agrária que o governo tentava implementar. Porém, segundo os trabalhadores rurais, movimentos sociais organizados, sindicatos, cientistas políticos e sociais, geógrafos, antropólogos e historiadores, esse modelo torna-se inviável e incapaz de sanar as tensões no campo legadas historicamente. Contudo, enquanto ferramenta de comunicação, seus registros revelam claramente o impasse entre movimento social, governo e a sociedade (tema que a presente pesquisa buscará abordar em capítulos subseqüentes). 77 Apesar da complexidade do conceito de identidade, este trabalho o compreende como uma “construção histórica”, logo indissociável das experiências humanas, conforme indica: SILVA, K.; a SILVA, V. Identidade. In: Idem; SILVA, V. Dicionário de Conceitos Históricos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.202-5. Reportando-se ao conceito de identidade e à crise de identidade, valho-me a das reflexões de: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p.7. Segundo esse autor, “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”. Para esse autor, é nesse cenário que vai emergir o termo “crise de identidade”, sendo esta “parte de um processo mais amplo de mudanças, em que se deslocam às estruturas e processos centrais das sociedades modernas abalando os quadros de referências que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. Portanto, é nesse cenário de tensão e incertezas que o MST e seus integrantes se firmaram enquanto sujeitos sociais comprometidos com a transformação contínua dos grupos sociais à margem da sociedade brasileira. 78 O trecho citado procura desvendar a ampliação de seu público leitor, não somente em termos de espacialização do Movimento, mas na tentativa de formar a opinião das pessoas sobre suas ações e as investidas do governo para conter os anseios dos trabalhadores rurais sem terra. COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. Ano II, n.25. Porto Alegre, julho de 1982. p.1. 70 1.3 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA Em termos de atuação política, o jornal em destaque ganha maior visibilidade a partir da realização do Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado na cidade de Cascavel - PR, em 1984. Foi nesse momento que se decidiu pela formação do MST enquanto organização autônoma, porém, esse necessitava de um “órgão de divulgação amplo que atingisse os assentamentos e acampamentos em todo o país”. Como instrumento de formação e de luta, não se pode desprezar o caráter político-ideológico deste jornal frente aos trabalhadores rurais. Por outras razões, a presente pesquisa busca dialogar com este como objeto de investigação, mas também como sujeito histórico, nutrido de experiências sociais, culturais, políticas e religiosas ao longo de sua trajetória. Em 1985, logo após a realização do 1o Congresso Nacional do MST, realizado em Curitiba no mês de janeiro, o periódico, que antes era impresso na cidade de Porto Alegre (como já explicitado anteriormente), transfere-se para a cidade de São Paulo79 (sediado à Rua Ministro de Godoy, 1484). Essa mudança facilitou de certa forma a sua “organização tanto do ponto de vista político como do ponto de vista estrutural e de divulgação”, pautando-se pelo ideal de “melhorar o nível das matérias veiculadas em suas páginas, aprofundando-as e dando-lhes maior perenidade”. Assim, este procura “aperfeiçoar a qualidade de suas 79 Com base numa das deliberações do I Congresso Nacional do MST, a Secretaria Nacional do Movimento transfere-se para essa cidade, trazendo consigo os integrantes do Comitê de apoio responsável pela editoração do jornal. Essa atitude justificava-se perante o crescimento da organização e a conseqüente espacialização da luta pela terra em todo o país, uma vez que, estando o jornal na cidade de São Paulo haveria maior agilidade em sua distribuição. A fonte evidencia que, a partir de então, o Movimento passa a se espalhar pelo país, organizando-se principalmente nos estados das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste (assunto a ser retomado no capítulo três). 71 informações no intuito de que os militantes e simpatizantes do MST pudessem fazer uso deste como instrumento de formação”80. Nesse instante, o jornal conta com um expediente constituído, buscando expandir a sua tiragem e chegando a imprimir cerca de 40 mil exemplares em algumas edições. Esse aumento é singular para um “jornal classista”81, sobretudo, quando este não apresenta fins lucrativos para o seu custeio.82 Provavelmente, entre os fatores responsáveis pela ampliação do jornal destacam-se os de razão política, que refletiram diretamente nos acampamentos e assentamentos, uma vez que, o periódico era entendido como ferramenta de formação política e de aperfeiçoamento de estudos entre os militantes do Movimento. Nesta perspectiva, o próprio jornal demonstrava preocupação com relação à qualidade e teor da informação levada aos trabalhadores e a repercussão que esta gerava em um público cada vez maior. Uma pesquisa realizada pelo jornal junto aos 80 Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Edição Especial - “15 anos do Jornal”. MST, agosto de 1996. p.7. Não obstante, apesar de boa parte dos trabalhadores rurais organizados no MST serem analfabetos, os estudos educacionais sinalizam que os mesmos manifestam desejos latentes de superação do analfabetismo, como já discutido acima. 81 Nesse momento, o emprego do termo “jornal classista” dá-se por este representar, exclusivamente e de forma direta, os anseios dos trabalhadores rurais sem terra enquanto movimento social, pertencentes, portanto, a uma classe. Em face disso, o periódico se coloca como “instrumento organizador coletivo”, aceito por suas bases como “um veículo formador da classe trabalhadora, onde se veiculam as idéias, as propostas de luta, onde as bases, os militantes podem realmente aprender, discutir, debater e avançar politicamente [...]”. Revelando, dessa forma, que os processos representam o fenômeno histórico da luta entre as classes, e que essas experiências cedem lugar às práticas sociais, quando desenvolve a consciência, a organização e a resistência dos trabalhadores, construindo, enfim, a identidade de classe. Cf.: FERNANDES, Bernardo M. MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Formação e Territorialização em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1996. p.25. Ver também: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1991. p.12-3. 82 Analisando o jornal, percebeu-se a ausência de anúncios pagos ou espaços destinados a essa finalidade. A partir do mês de abril de 1988, passou a figurar a cobrança de um valor pelo mesmo (CZ$ 50,00 ou 0,5 % OTN), oscilando conforme a inflação vigente. A título de exemplificação, o custo desse jornal no mês de setembro do mesmo ano, chegou a custar CZ$ 120, 00, mais que dobrando de valor. Porém, a pesquisa com o jornal não evidenciou a quantidade de assinantes que o mesmo possuía nesse período, o que inviabiliza uma precisão referente à procedência dos recursos que o mantinham. Mesmo nesta condição, o jornal trazia na última página uma ficha impressa para quem desejasse fazer a assinatura. Nesta destacavam-se o valor da assinatura, a quantidade de exemplares a ser recebido, o endereço da sede do jornal, a sua tiragem e seu expediente. 72 trabalhadores rurais sem terra, em julho de 1996, desenha o perfil de seu leitor sinalizando algumas possibilidades de reflexão: Consultados sobre a freqüência com que liam o jornal, 590 pessoas assinalaram que fazem sempre, 679, às vezes, e 255, raras vezes. Sobre o conteúdo do jornal, 466 pessoas assinaram a referência ótima, 696 boa, 215 regular e 78 deficientes. Com relação à ilustração das matérias, 634 informam serem ótimas, 620, boas, 239, regulares, 107 insuficientes. Sobre a utilização do jornal, a leitura individual recebeu 667 referências, a leitura em grupo 482 e o repasse para os amigos 354. Consultados sobre a linguagem do jornal, 530 pessoas afirmaram que é ótima, para 537 é boa, para 108 acham-na regular e 99 a consideram difícil.83 Os dados desta pesquisa são exemplares para se pensar na representação social que os trabalhadores tinham de si, dos outros e do próprio MST no qual estavam inseridos. Sem menosprezar outros dados desta pesquisa, há certa singularidade no que se refere à solidariedade entre os trabalhadores ao se afirmar que 482 destes leitores liam o jornal em grupo. Em face disso, observam-se, também, as respostas dadas à questão sobre as ilustrações (fotos, mapas, tabelas, gráficos...) que o jornal trazia mensalmente. O número de pessoas pesquisadas que acharam o conteúdo ótimo torna-se exemplar, à luz de que, em sua maior parte, esses trabalhadores rurais dispunham apenas de formação primária ou apresentavam nenhuma escolaridade. Essa informação, portanto, leva a presente pesquisa a entender que a leitura das imagens, feita pelos trabalhadores, os levava a interpretarem a informação com maior facilidade, justificando, assim, a aceitação das ilustrações do jornal. O volume deste periódico variava entre doze e vinte duas páginas ao longo de sua trajetória. Para tanto, a quantidade de folhas utilizada em cada número 83 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1996. p.7. 73 estava associado ao teor das tensões e enfrentamentos presentes no campo até o fechamento de cada edição. Quanto à tiragem e circulação do jornal, esta passou a ser regularizada mensalmente, havendo pequenas oscilações entre os meses de dezembro e janeiro, momento no qual as tensões no campo aparentemente se tornavam amenas, suprimindo-se num único número dois meses de informação. Neste sentido, deve-se levar em consideração o processo de transformação84 deste jornal, sendo o mês de outubro de 1988 um marco para sua última fase, sobretudo, no que se refere a sua nomenclatura. Todavia, houve mudanças significativas em sua formatação, atribuindo maior visibilidade aos seus editoriais e suas entrevistas. Nessa etapa do jornal acrescentou ao seu nome a palavra “rural”, passando a ser chamado de Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A inserção desta palavra representa um compromisso direcionado aos anseios do homem do campo, particularmente àqueles desprovidos da terra, não evidenciando, no entanto, rupturas com o homem urbano. Portanto, o jornal emerge das transformações e experiências ocorridas no seio da sociedade, em particular, no embate político do dia-a-dia dos sujeitos sociais, nas tensões implícitas e explícitas envolvendo o cotidiano do homem rural e urbano, compondo, assim, a trama histórica.85 84 Para Aguiar, “a vida dos jornais alternativos é longa e variada na história brasileira, sempre com a marca da efemeridade (grifos meus). Os alternativos são exemplos de uma característica da vida cultural brasileira: a continuidade dentro da descontinuidade”. Para tanto, essa pesquisa revela que até o presente o jornal do MST foge aos padrões da efemeridade, uma vez que este se atualiza fazendo frente à política vigente no país, buscando o seu aperfeiçoamento enquanto meio de comunicação de classe na tentativa de efetivar o seu comprometimento com as causas sociais do MST e de outros movimentos sociais que compartilham dos seus ideais. AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In: LUCA, Tânia Regina de; MARTINS, Ana Luiza (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.235. 85 Cabe observar que a mudança no nome do jornal coincide com o término do mandato presidencial de José Sarney, quando “o MST já está presente em dezoito estados brasileiros, demonstrando capacidade significativa de organização interna e de ofensiva política, com capacidade de arregimentar imensos contingentes de famílias sem-terra para suas bases”. O autor esclarece que o presidente não cumpriu o previsto no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), “cumprindo apenas e tão-somente cerca de 6% dos assentamentos de famílias previsto no Plano, e grande parte desses assentamentos, convém sublinhar, foi fruto da capacidade de luta e de resistência dos sem-terra”. Cf.: 74 Quanto às responsabilidades pelo teor dos editoriais, eram assinados pela Executiva Nacional do MST. Os temas tratados geralmente se reportavam à macroeconomia; política social vigente; violência no campo; atuação precária do poder público, frente às questões de segurança no campo; educação dos integrantes do movimento e; de uma forma mais precisa, ao anseio por uma ampla reforma agrária para todo o país. Com seu “novo” nome e com “nova” formatação, a edição de no 77 trouxe como manchete de capa o título: “Resistência garante conquista da terra”, além de duas entrevistas que marcavam fortemente a tendência política do jornal nessa sua quarta fase. Não obstante, o seu novo formato manteve o enfrentamento com integrantes do poder constituído, coincidindo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, documento polêmico no que se referia à reforma agrária, criando toda uma atmosfera de distanciamento entre os trabalhadores rurais e o desejo de acesso à terra. A interpretação das informações contidas nas páginas do periódico evidenciou que este não fechou os “olhos” para os acontecimentos. Pelo contrário, buscou responder à altura como um grande opositor ao governo e às forças políticas em voga. Sendo assim, deve-se potencializar a força política deste jornal frente aos novos desafios presentes no campo e nas cidades, sobretudo, quando rompiam com as cercas das fazendas, ocupavam as margens das estradas e rodovias, onde os integrantes do MST encontravam-se acampados, apropriando-se de forma expressiva da arena política. COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.81. 75 Não obstante, esta edição do jornal apresentava algumas particularidades em relação a sua “nova” formatação e apresentação: observa-se que a cor púrpura, que em geral ocupava a primeira capa do jornal, neste momento é substituída pela verde, indicando possível associação do movimento rural com o revolucionário urbano. Ainda nas páginas desta edição, o editorial intitulado “Vencer as eleições para avançar na luta” demonstrava que o MST era um movimento social e politicamente organizado, com pretensões além da simples conquista de um pedaço de terra. Portanto, o Jornal figura na trajetória do Movimento como sujeito que colaborou na construção da luta, buscando politizar as experiências dos trabalhadores rurais, visando projetá-los no cenário político nacional e internacional, além de tornar possível a efetivação da espacialização da luta pela terra em todo o Brasil. Para tanto, persegue-se as pretensões do jornal enquanto veículo de comunicação e formador de opinião, revelando as transformações sociais e contextualizando as informações na perspectiva de ampliar o universo de formação e de ação dos trabalhadores rurais sem terra que almejam a reforma agrária e transformações sociais mais profundas: O Brasil vive uma das maiores crises econômicas dos últimos dez anos, com inflação no mês de outubro de 28,6% e um índice previsto para novembro de aproximadamente 35%, agravando ainda mais a situação dos trabalhadores com defasagem de 5 a 6% ao mês. Os trabalhadores rurais também estão perdendo seu poder aquisitivo de compra e venda [...]. As eleições municipais adquirem um significado especial e singular: 1) são as primeiras eleições gerais para prefeito pósregime militar; 2) estas eleições serão um teste para as forças políticas, principalmente nas capitais, em que formarão a base política nos municípios para as eleições presidenciais [...]. Só de promessas estamos cansados, vamos construir uma nova proposta, um novo tipo de trabalhador nos nossos municípios. 76 Nós já temos como Movimento a experiência de que a luta só vai pra frente com o povo participando e decidindo os rumos. É assim que estamos construindo nos assentamentos a cooperação agrícola; nos acampamentos, nos organizando para enfrentar a burguesia.86 O trecho acima evidenciava a busca pela construção da identidade do MST, como força política articuladora dos trabalhadores rurais sem terra arregimentados em seu entorno. Dessa forma, o excerto destacava a plataforma política na qual o país estava assentado, sobretudo no que tange à questão econômica, denunciando fartamente os altos índices de inflação, os baixos salários e o encarecimento dos preços dos produtos, que impossibilitava a inserção dos trabalhadores na economia e na vida produtiva, alargando ainda mais as desigualdades sociais em todo o país. Na seqüência, o editorial se posicionava acerca das eleições municipais, acenando um possível apoio do MST aos partidos políticos comprometidos com os anseios dos trabalhadores rurais sem terra. O jornal entendia que a vitória de vereadores e prefeitos no pleito eleitoral de 1988, nortearia um possível apoio à candidatura de um presidente da República (eleições de 1989), que compartilhasse dos ideais dos sem terra, estando comprometido de antemão com a questão agrária 86 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.77, ano VIII. Seção “Nossa Posição” “Vencer as eleições para avançar na luta”. MST, outubro de 1988. p.2. Neste momento, a direção do jornal estava sob a responsabilidade de Antonio Eleilson Leite, sendo o Editor responsável Sergio Canova (RP 4.512-15-71), redação: Juan A Pezzuto, Rose Marinho e Antonio Leite. Em algumas edições do periódico em estudo, procurou-se identificar os temas abordados, utilizando-se do espaço denominado de seção, atribuindo destaque a este, pois na maioria das vezes ele vinha escrito em negrito, itálico e/ou sublinhado. Era como se fosse um tipo de coluna, que indicava ao leitor onde estava localizado cada assunto. Essa estruturação não esteve presente em todos os números pesquisados até porque o jornal se configurou ao longo de sua trajetória com muita dinamicidade. A título de exemplificação, a seção “nossa posição” representava, às vezes, o editorial da edição; a “seção mulher” geralmente trazia informações sobre uma maior participação da mulher no Movimento ou no cenário político em âmbito nacional, estadual ou local; a “seção formação” trazia textos que deveriam ser lidos e discutidos pelos trabalhadores rurais no momento de formação (às vezes era uma entrevista, um artigo de opinião, uma resenha de livro, um relato, não existindo um gênero específico para essa seção); na “seção violência” o jornal desnudava os crimes e denunciava os nomes dos possíveis envolvidos nas chacinas, nos atos de destruição de acampamentos ou assentamentos, entre outros. 77 e outras de cunho social. Possivelmente estariam se referindo ao recém fundado Partido dos Trabalhadores - PT. O editorial demonstra uma pauta que definia a implementação da luta dos trabalhadores rurais, evocando-os a lutar e não a esperar pelas promessas políticas não cumpridas anteriormente. Esta edição, além de apresentar uma nova equipe técnica, trouxe mudanças na sua composição gráfica, definindo melhor sua pauta de atuação sem a pretensão de descaracterizar-se enquanto ferramenta de comunicação entre os trabalhadores. Dessa forma, as matérias figuraram com mais conteúdo político, e na maioria das vezes, acompanhadas por fotografias, que atestavam o fato, visando à simultaneidade do transcorrer da notícia. Em geral, as fotografias procuravam evidenciar a combatividade deste sujeito social, que se “antes dizia sim, agora aprendeu a dizer não” às forças políticas em voga e contrárias aos seus anseios. Sem a pretensão de análise neste momento, as fotos presentes no jornal tendiam a exaltar a coragem do trabalhador imbricado na luta, manifestações e ocupações, sem representar seus medos e incertezas. Os títulos das matérias corroboravam esta afirmação: “Os trabalhadores denunciam a entrega de terras a empresários no sul do país” e “I Romaria da Terra” (p.4); “Luta e Solidariedade”, “Sem terra defende ocupações” (p.5); “Reforma agrária é a gente que faz”, “Advogados pela justiça social” e “Mobilização conquista acordo” (p.6); “Romaria pela terra”, “Triunfa a firmeza” e “Governo não cumpre compromisso” (p.7); “Os lavradores não desanimam”, “MST exige negociação” e “Unidade operáriocamponesa” (p.8); “Mulheres rurais disputam eleições municipais” (p.9); “Para que servem as eleições municipais?” (p.10-11); “Laboratório experimental: formação para assentados” (p.12-13). Estas matérias encontravam-se na seção Nos Estados. 78 Tendo, na seqüência, a seção Igreja, na qual figurava a entrevista com D. Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia – MT, que ao falar da Constituição Federal, pontuava como um documento “contra a reforma agrária”. Norteando uma pauta de enfrentamento ao governo, o jornal assinalava a magnitude política da Constituição de 1988. No texto intitulado: “O caminho da Reforma Agrária”, de João Caetano do Nascimento (editor chefe do jornal), sinalizava para o percurso que o jornal iria seguir no sentido de dar transparência aos fatos sociais que, a seu ver, o governo pretendia omitir ou manipular: Fizeram uma lei que não leva em consideração às milhares de famílias acampadas e nem os doze milhões de trabalhadores rurais sem terra. É esta realidade social que a nova lei pretende esconder. [...] É uma Lei desmoralizada, MORTA! Ela não será respeitada! Uma lei que tornou a luta pela Reforma Agrária uma luta ‘ilegal’ não pode, não deve e não será respeitada. Para a UDR, para o Centrão e para o Governo as ocupações agora serão ilegais. Mas são legítimas para os trabalhadores que lutam por terra, pão, saúde e educação da sua família.87 O trecho revelava a negação ao celebrado na Carta Constitucional de 1988, evidenciando uma nova forma de luta (antes velada) por meio da dinamização das ocupações. Para os trabalhadores rurais, as ocupações como forma de pressão para a efetivação da reforma agrária, apesar de condenadas pela legislação, eram um recurso importante e estratégico de luta para se atribuir visibilidade às desigualdades sociais no campo e, ainda mais, a principal forma de forçar os poderes públicos e a sociedade a se debruçassem sobre a problemática que persistia em permanecer cristalizada - o latifúndio. Deve-se atentar, também, que neste editorial o jornal mapeava, identificava e apontava os principais aliados e opositores dos trabalhadores rurais como: a União 87 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.76, ano VIII, O Caminho da Reforma Agrária. MST, setembro de 1988. p.2. 79 Democrata Ruralista – UDR, os parlamentares do Centro, contrários às mudanças na estrutura social e política do país e, por fim, o próprio Presidente da República, representado à época na figura do presidente José Sarney. O jornal apresentava a seguir características negativas da legislação reportando-se as suas conseqüências políticas: [...] outra conseqüência desta lei, ao contrário do que dizem os latifundiários, haverá um grande aumento da violência no campo. De um lado, nós trabalhadores, movidos pela necessidade, continuaremos a ocupar a terra. Enquanto isso, os latifundiários, respaldados pela lei que eles mesmos fizeram, tentarão proteger os seus latifúndios que nada produzem. Mais uma vez será a nossa necessidade contra a lei deles.88 A seção de entrevistas configurava-se como um ponto essencial para compreender a força política e a credibilidade do jornal frente a determinados setores do meio intelectual, sendo uma forma de ampliação de seus diálogos, além de uma possibilidade de busca de novos aliados junto à sociedade. Com perguntas pontuais e objetivas, os jornalistas visavam oferecer aos leitores a oportunidade de entenderem e problematizarem as ações do MST, redesenhando o cenário político brasileiro sob a ótica de intelectuais, religiosos e políticos renomados de todo o país. Para isso, o periódico procurou estender também este espaço aos registros das experiências de lideranças do quadro da Executiva Nacional e da Comissão Estadual do MST, que se formavam politicamente nas tessituras do movimento e nas experiências de lutas adquiridas cotidianamente. A nova postura do JST possibilitou-lhe uma maior credibilidade enquanto ferramenta de comunicação, tornando-se um dos principais protagonistas do MST na arena política, como já salientado. 88 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.76, ano VIII, O Caminho da Reforma Agrária. MST, setembro de 1988. p.2. 80 A entrevista com Fábio Konder Comparato, jurista e professor do curso de Direito da Universidade de São Paulo, dentre outros pontos, evidenciou os caminhos que o MST deveria percorrer após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Apropriando-se de trechos da fala do professor, o jornal sinalizou que esta Constituição seria a “Constituição dos patrões”. Reportando-se à Carta Constitucional, na tentativa de problematizar os preceitos desta em relação a sua abrangência no contexto social do país, pontuava que Ela representa a consolidação da política conservadora, que tem sido a tônica da Nova República e, especificamente, no que diz respeito aos trabalhadores rurais, ela representa uma declaração meramente retórica, sem nenhuma chance de ser aplicada. Isto, por uma razão muito simples, é que os constituintes, de certa forma sabendo que os direitos sociais do trabalhador rural não seriam aplicados, não tiveram dúvida em estendê-los, em declará-los demagogicamente. Mas, quem aplica esses direitos, quem controla a sua execução, quem deve fiscalizar os patrões é o Estado. E o Estado não tem a menor condição de exercer essa função.89 Outra indagação feita nesta entrevista, pertinente aos interesses dos integrantes do MST, dos leitores e da sociedade, foi a seguinte: “O que o Senhor acha das ocupações de terras como forma de luta pela reforma agrária”? Eu acho que é uma manifestação válida, ela deve continuar, mas ela é insuficiente, é preciso que os trabalhadores rurais se dêem conta disso. Não é pela ocupação de terras que vai resolver o problema fundiário ou agrário do país de um modo geral. O fundamental é a elaboração de uma verdadeira política de transformação agrária, de reforma agrária ampla [...]. É preciso que a organização dos trabalhadores seja completada pela elaboração de políticas adequadas. Não basta querer tomar o poder, é preciso saber o que vai fazer com ele; sobretudo, é preciso convencer as demais classes da população brasileira da justiça das reivindicações dos trabalhadores [grifos meus]. A maneira de convencer as demais classes é mostrar que a reforma agrária é indispensável como 89 COMPARATO, Fábio K. “A Constituição dos Patrões”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.77, ano VIII. MST, outubro de 1988. p.3. 81 medida preliminar ao desenvolvimento econômico e social do país.90 O fragmento da entrevista citado revela que o jornal, como porta-voz dos trabalhadores rurais, procurou trazer respostas às suas inquietações no que tange às suas ações coordenadas. A validação dessa prática enquanto possibilidade de libertação do homem do campo, de poder ter acesso à terra, não parte da visão de um militante qualquer, e sim de um dos maiores juristas e intelectuais do Brasil. Considera-se que para o objetivo de convencer a sociedade da importância da reforma agrária e do reconhecimento das ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais, tornava-se fundamental utilizar-se da palavra impressa. Tendo em vista que raramente as ações desse movimento conquistavam a atenção dos grandes veículos de comunicação, os quais poderiam disseminá-las nos mais diversos setores da sociedade, em busca de apoios. Cabe destacar que “para tomar o poder tem que tomar a palavra e difundi-la – através de jornais, almanaques, panfletos, cartazes, estampas, partituras de canções, papelarias, jogos de cartas [...]”91, símbolos estes que estão intrinsecamente vinculados à trajetória de luta do Movimento. Na seqüência, o jornal informava a trajetória do MST em cada Unidade da Federação, pontuando as tensões latentes nos acampamentos, dentre elas: ocupações, desapropriações, reintegração de posse, uso da força policial, uso de milícias particulares (jagunços, pistoleiros e matadores de aluguéis), destruição de plantações e acampamentos, prisões, mortes e torturas de integrantes e militantes do MST. Tais denúncias ocupavam constantemente as páginas desta seção. Esse 90 Entrevista com Fábio K. Comparato. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.77, ano VIII. “A Constituição dos Patrões”. MST, outubro de 1988. p.3. 91 DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (Orgs.). A Revolução Impressa: A Imprensa na França, 17751800. Tradução de Marcos Maffei Jordan. São Paulo: EDUSP, 1996. p.16. 82 procedimento se dava pelo silêncio de setores da “grande imprensa”, particularmente dos noticiários veiculados pela televisão, que optavam por não noticiar as tensões no campo. Nesse sentido, os noticiários operam efetivamente da seguinte forma: Em primeiro lugar, se estabelece diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e nos do início da noite, e buscando sofisticação e apresentação de maior número de fatos nos noticiários de final de noite. Em segundo, por seleção das notícias, omitindo [grifos meus] aquelas que possam desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma ordem apaziguadora.92 Frente a essa afirmação, torna-se plausível refletir a respeito do sectarismo presente em setores da imprensa brasileira, que em alguns momentos, optava por silenciar as tensões latentes na área rural e no campo social. 92 CHAUÍ, Marilena. Simulacro e Poder: uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p.48. Embora Chauí não esteja se reportando diretamente ao conteúdo elaborado e veiculado pelo JST, a referência à sua obra torna-se ilustrativa para se pensar e observar como a mídia impressa e televisiva elabora o seu discurso, e que muitas vezes, por opção, omite as tensões envolvendo os mais diversos segmentos da sociedade e do governo conforme o seu interesse. Em face dessa questão, valho-me de suas reflexões no sentido de compreender melhor como o JST elabora o seu discurso. Para isso, é preciso destacar que o Jornal, para os militantes do Movimento, foi mais que um meio de comunicação, um símbolo de luta, posto que em sua maioria “se identificam com ele”. STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.132. Como já observado, o JST tem suas atribuições na organização e, a partir destas, ele constrói o seu discurso. Portanto, traz para si a responsabilidade de produzir e “divulgar as idéias corretas de como se organizar estimulando as reuniões de núcleos, nas comissões de todos os níveis, promovendo diálogos coletivos e contribuindo com melhorias na organização”, evidenciando a dialética entre o Jornal e seus militantes, além de um debate latente tanto dentro quanto fora do movimento. Assim, a partir das reflexões pautadas no conteúdo veiculado pelo periódico, há um anseio de que tais informações, ao serem compreendidas pelos sujeitos sociais, revelem um “despertar de novos trabalhadores a se organizarem e a se envolverem na organização já existente” ou “chegando a novas localidades, a novos municípios, onde não exista nenhuma organização, sendo este um estímulo para que os trabalhadores tomem iniciativas”, concatenando um debate para fora do Movimento. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1991. p.12-3. Pesquisando os materiais expressos nas páginas do JST, sobretudo no que tange à elaboração de seus discursos, observa-se uma forte inspiração no pensamento de Gramsci, haja vista a sua postura autônoma com a incumbência de formar uma consciência crítica nos trabalhadores, especialmente no contexto da luta de classe. Cf.: GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e a Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2003. 83 Com a nova formatação do jornal, ficou evidente que este se tornaria também um instrumento de formação dos trabalhadores no âmbito tanto dos acampamentos, quanto dos assentamentos. O próprio conteúdo expresso na seção Formação traduziu claramente esta afirmação: “O Jornal Sem Terra, para o MST, já é mais do que um meio de comunicação. É um símbolo. O militante se identifica, tem afinidade, gosta dele”93. A Comissão Pastoral da Terra – CPT (órgão vinculado a setores progressistas da Igreja Católica) ganhou uma seção na nova formação do JST denominada de Igreja. Sobretudo, devido a suas ações de enfrentamento aos poderes instituídos e defesa dos anseios dos trabalhadores rurais, além de contribuir de forma decisiva para a constituição do MST. Diante dessa questão, observa-se que a CPT colaborou na organização do Movimento em sua “gênese”, uma vez que Fez um trabalho muito importante de conscientização dos camponeses [...]. Ela teve uma vocação ecumênica ao aglutinar ao seu redor o setor luterano, principalmente nos estados do Paraná e de Santa Catarina [...]. Se ela não fosse ecumênica e não tivesse essa visão maior, teriam surgido vários movimentos. A luta teria se fracionado em várias organizações [...]. A CPT foi uma força que contribuiu para a construção de um único movimento, de caráter nacional.94 Na entrevista D. Pedro (Bispo de São Félix do Araguaia – MT) manifestava claramente a posição firme deste setor da Igreja em apoio aos trabalhadores rurais. 93 O trecho citado corresponde à resposta de Stedile à indagação de Fernandes: “Quais são os símbolos do movimento?” No trecho citado, Stedile responde que “a bandeira, o hino, as palavras de ordens, as ferramentas de trabalho”, dentre outros instrumentos, proporcionavam a unidade dos militantes no movimento e descortinam a “realidade política”. Os trabalhadores apropriam-se dos símbolos como instrumentos que favoreciam a construção da identidade. Assinala-se que “o uso dos símbolos” em sua trajetória implica na “materialização do ideal”, atribuindo vida a essa “unidade invisível” do movimento e sua articulação com a simbologia representativa da luta pela terra. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.132. 94 Ibidem. p.20-1. Na mesma linha de reflexão, Stedile reporta-se a uma fala de José de Souza Martins para confirmar suas hipóteses: “A luta pela terra no Brasil só terá futuro e somente se transformará em um agente político importante para mudar a sociedade se conseguir adquirir um caráter nacional e se conseguir organizar os nordestinos.” 84 Sua fala marcava claramente uma posição quanto ao procedimento adotado pelos integrantes do MST em ocupar terras no país, objetivando agilizar o processo de reforma agrária, particularmente, como forma de pressão social frente ao poder público. Em resposta à indagação do jornal, D. Pedro considerava que “a ocupação é um gesto legítimo do povo”, além de uma maneira de se lutar pela reforma agrária. Nessa entrevista o religioso revelou-se incisivo quanto a sua opinião a respeito da ocupação da terra pelos trabalhadores rurais como forma de pressão: Agora, mais do que nunca a ocupação da terra será a única forma que o povo brasileiro tem para que essa reforma agrária aconteça. Tenho a impressão de que isso já é uma consciência assumida. É o gesto legitimo que o povo tem para que a reforma agrária aconteça: a ocupação da terra no campo e a ocupação da terra na cidade, para que aconteça a reforma urbana também.95 Percebe-se, também, que o religioso não separava as tensões do campo com as da cidade, observando-se a relação intrínseca entre ambas, como palco das tensões e transformações legadas historicamente. Pontua-se ainda que o papel desempenhado pela CPT tornou-se singular do ponto de vista estratégico da luta, além de sua atuação nas comissões de frente, encabeçando os procedimentos de ocupação: A CPT no momento da ocupação, ela tem que estar junto. Ela tem que participar, é assim que nós agimos aqui no estado de São Paulo, e não fazemos sozinhos. Ao descobrirmos uma 95 D. Pedro, Bispo da Igreja Católica de São Felix do Araguaia - MT. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.77, ano VIII. Seção “Igreja”. MST, outubro 1988., p.14. A respeito da mudança de postura de determinados setores da Igreja Católica no que tange à “questão social” e política país adentro, sob a perspectiva do papel desempenhado pelas CEB’s e, posteriormente, pela CPT, ver: CAMARGO, Candido P. F. Souza; PIERUCCI, Beatriz M. de; OLIVEIRA, Antonio F. de. Comunidades Eclesiais de Base. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius C. (Orgs.). São Paulo: O povo em movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/ Cebrap, 1980. p.59-81. 85 terra, achamos que deveríamos ocupar aquela terra, fazemos uma discussão com o Movimento e vamos pra ocupação, nós estamos articulados e vamos ocupar juntos.96 Ademais, o jornal abriu a seção – Violência – na qual apresenta as tensões entre os trabalhadores, governo e latifundiários, despejos com uso da força policial, mandato de segurança impetrado por proprietários, mandato de busca e apreensão, ameaças à pessoa humana seguida de morte a mando de proprietários por jagunços e matadores de aluguel. Em seqüência, na seção - Entrevistas - sobre o assunto de autoridades ligadas a grupos humanitários. A entrevista concedida a esta edição era do representante das entidades sociais, o advogado e Ex-procurador da República, membro da Executiva Nacional do PT, Hélio Bicudo. O conteúdo tratava da ida do advogado ao estado do Maranhão, no sentido de acompanhar e pressionar o governador daquele estado a retirar as forças policiais do acampamento dos trabalhadores rurais, os quais estavam, naquela oportunidade, impedidos de entrar ou sair do local: Ao retornar do Maranhão, o Dr. Hélio Bicudo afirmou que o governador lhe respondeu que mandará a polícia se retirar da área ocupada se o Tribunal de Justiça do Maranhão cassar uma liminar de reintegração de posse que o Juiz de Santa Luzia concedeu ao fazendeiro pernambucano, Fernando Brasileiro, proprietário da fazenda ‘Terra Bela’. Bicudo por sua vez entrou com representação disciplinar e criminal contra o Juiz de Santa Luzia, acusando-o de ter concedido a liminar em favor do fazendeiro de maneira irregular, numa evidente intenção de favorecê-lo.97 96 Padre Severino Leite Diniz (assessor da CPT). Cf.: ALMEIDA, Antonio Alves de. As Lutas Pelas Terras do Senhor: A Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Estado de São Paulo (1990-2000). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC/SP, São Paulo, 2005. p.114. 97 Hélio Bicudo, advogado e membro da Executiva Nacional do PT. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Seção “Violência”. n.77, ano VIII. MST, outubro de 1988. p.15. 86 O periódico apresentava uma seção com informações internacionais, instigando a formação de um trabalhador rural com uma visão global do mundo em que vivia. Denominada de América Latina, esta se propunha a trazer informações destes países, sobretudo daqueles onde afloravam as tensões sociais e políticas envolvendo trabalhadores rurais e urbanos. Deixando transparecer, portanto, uma ligeira conexão de informação com grupos sociais organizados nestes países e que são atores nos embates políticos. Trazia, também, a seção Sindicalismo, mostrando a participação dos sindicatos rurais e urbanos na organização e no apoio constante ao MST e suas ações. Por fim, o periódico apresentava a seção - Balaio de Notícias, num momento de interação entre os leitores. Nesta eram divulgadas as cartas de solidariedade dos leitores ao movimento, denúncias de violência, comentários sobre as entrevistas e editoriais e informações culturais. Nesse diálogo do jornal, enquanto fonte e objeto de interpretação, outro fator que merece destaque é que, a partir do mês de março de 1998, na edição de no177, este se apropriou também do espaço virtual, disponibilizando na internet, em seu site oficial, esta e as futuras edições do JST, na tentativa de manter de pé o seu objetivo inicial. Em 2010, contando com a Revista Sem Terra, 54a edição, com tiragem bimestral e entrevistas em programas de TV, documentários e filmes que foram produzidos ao calor da luta pela terra em todo o país, tornaram-se ingredientes fundamentais para alimentar o portal do MST, configurando outro canal de comunicação entre a sociedade e o movimento. Enfim, a trajetória histórica e política do JST, enquanto meio de comunicação e porta-voz dos trabalhadores rurais sem terra foge aos padrões da 87 efemeridade. Manteve-se dinâmico, organizado e antenado às mudanças econômicas, sociais e políticas de seu tempo. Esses motivos levaram-no a superar os desafios encontrados ao longo de sua trajetória, desfrutando, atualmente, de certo vigor enquanto meio de comunicação alternativo de um grupo social que foi se organizando politicamente. Nesse aspecto, portanto, o periódico é observado [...] como um produto de uma situação concreta; seu conteúdo, nos últimos anos, é essencialmente configurado por denúncias das condições reais de vida, oposição às estruturas de poder geradoras de desigualdades, estímulo à participação e à organização, reivindicações de acesso a bens de consumo coletivo.98 O JST como objeto de análise e interpretação das tensões presentes no campo e na cidade, frente às interfaces da política vigente, explicitou o seu comprometimento com a qualidade da informação divulgada e a atenção dispensada à sua missão enquanto instrumento político e formador de opinião. Apesar das mudanças em sua formação, troca de seus jornalistas, mudança de seu nome por alternadas vezes, tudo isso não repercutiu em perdas de sua proposta e anseios enquanto instrumento de formação e de luta para os trabalhadores rurais sem terra. Em suma, apesar do JST ter adquirido maior visibilidade ao final da década de 1990, este capítulo rastreou duas de suas três décadas de existência, priorizando os anos de 1981 a 2001, nos quais seus editoriais, suas entrevistas e outras informações pertinentes à pesquisa serão apresentadas e discutidas nos capítulos seguintes. 98 PERUZZO, Cecília K. Comunicação nos movimentos populares: participação na construção da cidadania. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p.125. 88 CAPÍTULO II - O MST E SEU JORNAL, UNIDOS PELA REFORMA AGRÁRIA Um galo sozinho não tece uma manhã: Ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito de galo que ele deu e o lance a outro; De um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; E de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. João Cabral de Melo Neto. 89 2.1 A TRAJETÓRIA DO MST NO ESTADO DE SÃO PAULO O presente capítulo recupera historicamente a trajetória de luta do MST e de seus agentes sociais no estado de São Paulo, observado como lócus de mudanças e transformações. Com base nos editoriais do JST, pretende-se problematizar as representações sociais dos trabalhadores sem terra, considerando também outros fatores históricos99 que antecederam à formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, além de descortinar possíveis conflitos que envolveram estes sujeitos sociais ao tentarem efetivar a reforma agrária. Simultaneamente, evidenciam-se os fatores que fizeram o JST se profissionalizar, modificando sua linguagem e tornando-a não só informativa, mas, sobretudo, formativa. Tal afirmação tornou-se visível na tendência editorial do jornal em questão, quando este buscou corresponder às expectativas da linha de orientação da Direção Nacional do Movimento. Por fim, o presente capítulo problematiza a relação do MST com o jornal, colocando em discussão questões vinculadas à modernização do campo, à situação do latifúndio e à condição de vida dos trabalhadores rurais sem terra. Também, descortina a participação de outros agentes sociais, na tentativa de atribuir legitimidade à luta pela efetivação da reforma agrária em todo o país e, sobretudo, colaborando na construção da identidade destes trabalhadores: CPT, CEB’s, Partidos Políticos e Intelectuais, além de assegurar a espacialização das ações aferidas pelo Movimento em estudo. 99 Segundo Fernandes, “a questão dos sem-terra é histórica. Desde as capitanias hereditárias, formação dos quilombos, Guerra de Canudos na década de 1890, Guerra do Contestado na primeira década do século XX, formação das Ligas Camponesas entre os anos de 1950 a 1960 do século passado, os sem terra vem lutando por um pedaço de terra [...]”. FERNANDES, B. M. O MST mudando a questão agrária. In: D’INCAO, M. A. (Org.). O Brasil não é mais aquele... Mudanças Sociais Após a Redemocratização. São Paulo: Contexto, 2001. p.237. 90 Por essa razão, se faz necessário o resgate da história do latifúndio no Brasil, no intuito de elucidar as questões acerca do processo de exclusão e de resistência experimentado por parte dos trabalhadores rurais sem terra ao se firmarem, nesse campo de força, enquanto sujeito social e histórico. Nesse sentido, São Paulo tornou-se referência para se cotejar os percursos, fluxos e refluxos do desenvolvimento do capitalismo agrário, enquanto um território de tensão e poder100. Como exemplo, cabe relembrar que desde os primórdios do século XIX, com maior repercussão no final do XX e no limiar deste novo século, a região Oeste, em particular, o extremo oeste, do estado de São Paulo tornou-se palco de tensões sociais envolvendo pessoas em busca da posse da terra. As transformações econômicas pelas quais passou a região do Vale do Paranapanema tiveram diferentes repercussões nas formas de apropriação das terras. Conforme se desenvolvia, diversificava-se ou transformava-se a produção, mais agudas se tornavam as disputas. Isto se ligava ao avanço das lavouras de café pelas fronteiras agrícolas do Vale nas primeiras décadas do Século XX e, a partir de 1940, com o desenvolvimento da cultura algodoeira. Desse modo, o processo de rápida valorização da terra, conseqüência de transformações econômicas, sociais e políticas, levava a uma radicalização cada vez maior das disputas por áreas novas, e os litígios passaram a extrapolar as instâncias judiciais, culminando em verdadeiras batalhas entre ‘clãs’ ou indivíduos que se valiam, no confronto, de verdadeiras ‘milícias particulares’.101 Dessa forma, a presente pesquisa compartilha com estas idéias e acrescenta que esta região, atualmente, constitui-se num dos mais importantes 100 A noção de poder será interpretada sob a perspectiva dos seguintes autores: SANTOS, Boaventura de Sousa. Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum. In: Idem. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. DIAS, a Maria Odila L. da S. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. 2 ed. São Paulo: a Brasiliense, 1995. BOBBIO, Noberto. Dicionário de Política. 5 ed. Vols.I e II. Brasília: Editora da UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. 101 PENÇO, Célia F. C. A Evaporação das Terras Devolutas no Vale do Paranapanema no Estado de São Paulo. São Paulo: HVF Representações, 1994. p.15. 91 pólos do desenvolvimento agro-industrial, traduzindo-se, desde os anos de 1990, em agronegócio. Ao se dedicarem à produção de soja, cana-de-açúcar, laranja e outros tipos de citros, além da criação de gado de corte, produção de carne tipo importação e exportação, leite e derivados, sucos em embalagem longa vida, açúcar e álcool; percebe-se que as usinas, fazendas e frigoríficos instalados nesta região são os principais responsáveis pela oferta de postos de trabalho permanentes e temporários. No entanto, estes vêm, de forma sistemática, substituindo seus trabalhadores manuais por máquinas de grande porte, ocasionando demissões em larga escala pela redução de postos de trabalho para a população local e, em segundo plano para migrantes de outras regiões do país. A rigor, essa situação criou um fluxo significativo de trabalhadores rurais dispensados, buscando nova inserção em outros espaços de produtividade. Não conseguindo êxito tendem a compor as tessituras dos movimentos sociais em curso, particularmente o MST, tanto em São Paulo como em outros estados. Dessa forma, compreende-se o processo de inserção dos trabalhadores rurais ou urbanos nas tramas deste movimento, à luz do desencadeamento dos enfrentamentos, ações e tensões sociais, frente às exigências do sistema de produção adotado contemporaneamente pela agroindústria paulista e brasileira. Nesse contexto, “o território paulista foi apropriado, principalmente, por meio da formação de fazendas de café” 102, ocasionando a necessidade da aquisição de novas fazendas contribuindo com a “indústria de grilagem 102 103 de terras, MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1984. MARTINS, José de Sousa. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1986a. Apud: FERNANDES, B. a M. A formação do MST no Brasil. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. p.27. 103 Segundo o Dicionário Aurélio, “grilagem é o sistema utilizado por grileiro que por sua vez é um individuo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade” (grifos meus). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 92 compreendida pela falsificação de documentos e outros procedimentos ilícitos”, que dificultaram o acesso à posse da terra de pessoas comuns. Dessa forma, cabe destacar a constituição do latifúndio, que se mantém através dos tempos, colocando em prática um papel previamente definido: a concentração da propriedade nas mãos de poucos impedindo o acesso à terra por outras pessoas. A bibliografia citada nesta pesquisa revela um significativo crescimento na produção acadêmica a respeito do processo de exclusão de trabalhadores rurais da terra. Processo este definido, desde os primórdios da colonização brasileira, por meio das capitanias hereditárias, sesmarias e pela própria Lei de Terras de 1850, que excluía, dentre outros sujeitos sociais, índios, negros escravizados ou não, trabalhadores pobres, descendentes dos dois primeiros grupos, imigrantes e migrantes. Assim, dentro da lógica de implementação do capitalismo no Brasil, esses grupos não tiveram a oportunidade de acumular recursos para poder finalmente ter acesso a esse bem comum. Nesse cenário, observa-se que a “Lei de Terras no Brasil se combina com a lei de regulação do mercado de trabalho” 104 . Desde suas origens no Período Imperial, ambas estavam intrinsecamente ligadas, sobretudo ao excluir do acesso a propriedade da terra quase que a totalidade da população oferecendo-a como mãode-obra aos proprietários fundiários. Ademais, percebe-se que “em um só tempo, a Lei de Terras preservou o latifúndio e organizou a nova relação de trabalho”105. Rio de Janeiro: Positivo, 2001. p.354. Lerrer explica que este foi um dos principais métodos utilizados para a falsificação de títulos de cartórios, colocando os documentos forjados em uma gaveta ou baú fechado com grilos para dar-lhes aparência de antigo, conferindo-lhes autenticidade. Essa prática foi muito utilizada na região Noroeste do estado de São Paulo, onde se encontra o Pontal do Paranapanema, região de grandes tensões sociais envolvendo a aquisição e a posse da terra. LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.43. 104 a MOREIRA, Ruy. Formação do Espaço Agrário Brasileiro. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. p.36. 105 Ibidem. 93 Observa-se que esta Lei “proibia a aquisição de terras públicas através de qualquer outro meio que não fosse a compra, colocando um fim às formas tradicionais de adquirir terras mediante posses e doações da Coroa” 106 . Foram intensos os debates no Parlamento acerca da aprovação desta Lei, com o objetivo de substituir o antigo estatuto das sesmarias, extinto desde em 1822 107 . Nesta perspectiva, “o problema do acesso a terra – e a regulamentação jurídica desta questão – está no cerne das relações de trabalho” 108. O Artigo 1o da Lei de Terras de no 601/1850 pontuava que “ficam proibidas as aquisições de terras públicas por outras formas senão o da compra”, considerado um dos principais empecilhos para que os trabalhadores rurais tivessem acesso a esta. Com isso, marcava-se [...] o início do que hoje é conhecido academicamente de ‘questão agrária’, ou seja, o problema fundiário brasileiro, pois instituiu um novo direito de propriedade, moderno, capitalista, mas pensado de modo a garantir o poder dos latifundiários.109 Outro fator de exclusão “foi à elevação do valor das terras públicas comparativamente ao das terras particulares, o que reforçou conseqüentemente, a 106 COSTA, Emília V. Política de Terra no Brasil e nos Estados Unidos. In: Idem. Da Monarquia à a República: momentos decisivos. 7 ed. São Paulo: Unesp, 1999. Nessa obra, a autora pontua que a terra e a mão-de-obra são questões indissociáveis e fundamentais para uma melhor compreensão do desenvolvimento econômico brasileiro. Alerta que “a expansão dos mercados e o desenvolvimento do capitalismo causaram uma reavaliação das políticas de terras e do trabalho em países direta ou indiretamente atingidos por esse processo”, no qual o Brasil não ficou de fora (p.169-71). 107 PENÇO, Célia F. Carvalho. A Evaporação das Terras Devolutas no Vale do Paranapanema no Estado de São Paulo. São Paulo: HVF-CERED/UNIP, 1994. p.15. 108 Ibidem. 109 LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.42. Na mesma linha de pensamento, Moreira destaca que a Lei de Terras de 1850 caminha com a Lei da abolição da escravidão: ambas anunciam o modelo de campesinato brasileiro, fundamentando o aspecto essencial da relação de trabalho e do novo regime social. Todavia, “em face da Lei de terras, este campesinato já nasce sob absoluto controle da classe senhorial, que, por intermédio dele, preserva a agroexportação com base econômica da sociedade burguesa e garante para si o poder de organizáa la”. MOREIRA, Ruy. Formação do Espaço Agrário Brasileiro. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. p.36-7. 94 restrição ao acesso à propriedade” 110 por parte das pessoas desprovidas de recursos. Na condição de “deserdados da terra” pela impossibilidade de acesso e permanência nesta, “a maioria absoluta de trabalhadores, ex-escravos e imigrantes começaram a formação da categoria, que na metade do século XX, seria conhecida também como sem terra”111. Com o passar dos anos, o Brasil assistiu a construção de um significativo movimento social de singular projeção política, capaz de enfrentar os poderes constituídos112 e se firmar como “interlocutor para a formulação de uma reforma agrária para o país, não figurando apenas como simples movimento social de oposição ao governo por denunciar o desemprego, a fome, a ausência de moradia para a população pobre, a miséria no país” 113 . Buscando, sobretudo, a efetivação da redução das desigualdades sociais no campo e nas cidades por meio da pressão política. Nessa perspectiva, o MST se constituiu num novo ator político apesar de suas ações se manterem além da bandeira de luta da reforma agrária. Sem menosprezar as experiências de lutas das Ligas Camponesas no Nordeste 110 PENÇO, Célia F. Carvalho. A Evaporação das Terras Devolutas no Vale do Paranapanema no Estado de São Paulo. São Paulo: HVF-CERED/UNIP, 1994. p.15. 111 a FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. p.28. Na mesma direção, pontua-se que o adjetivo sem terra é a identidade do MST e de todos os trabalhadores rurais que partilham do desejo de se fazer reforma agrária e almejam mudanças estruturais e políticas sociais para o Brasil. Porém, antes se pontua que o termo em destaque é fruto das discussões travadas “na Constituinte de 1946, quando surgiram os primeiros debates sobre a necessidade de uma lei de reforma agrária” para o país. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. a M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.39. Décadas mais tarde, a imprensa brasileira procurou fazer uso constantemente desse termo para qualificar os integrantes dos movimentos sociais rurais que lutavam pela posse da terra. Portanto, apesar do Jornal do MST ter feito uso do mesmo termo para identificar os trabalhadores rurais, torna-se inegável que essa marca foi “batizada pela imprensa”, conforme asseguram os autores. Assim, o JST, como instrumento de luta do Movimento e a partir das ações perpetradas no campo e nas cidades (ocupações, marchas, passeatas, manifestos, resistências, estudos em grupos, debates e atos de solidariedade pelos seus integrantes), fez com que os trabalhadores rurais, ao longo de sua trajetória, assumissem em suas páginas e nas frentes de lutas a identidade de ser um sem terra. 112 COMPARATO, Bruno Konder. A ação política do MST. São Paulo em Perspectiva. Vol.15, Ano 4. São Paulo: Fundação Seade, out./dez. 2001. 113 GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e a contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.311. 95 brasileiro114, observa-se a capacidade de articulação do MST com os mais variados setores da sociedade: Igreja, partidos políticos, Ongs, Sindicatos rurais e urbanos, apresentando formas diversificadas de reivindicação que sinalizavam novas práticas de se fazer política no país. Desta maneira, ao longo de sua história, a sociedade brasileira assistiu a conflitos envolvendo trabalhadores rurais, impossibilitados do acesso à terra, que se aglutinaram em insuficientes postos de trabalhos oferecidos no setor urbano, mas em busca de uma saída, engrossaram os movimentos sociais organizados, particularmente, o MST. Em face dessa questão, ressalta-se que a configuração do MST deu-se, sobretudo, por motivos econômicos, sociais e políticos, particularmente nos finais da década de setenta e início dos anos oitenta, ganhando maior visibilidade no cenário nacional e internacional, na década de noventa. O movimento nasce em Santa Catarina, estende-se por todo o Brasil e realiza ocupações. Organiza-se em acampamentos, luta pela posse da terra em assentamentos criados pelo governo (ou reconhecido por ele após a área já estar ocupada), cria cooperativas de produção e comercialização, funda escolas de formação para as lideranças [...].115 O Brasil tornou-se palco de grandes transformações econômicas nos setores urbano e rural, que coincidem com a gestação, formação e atuação do Movimento. A partir da década de 1970, o país assistiu ao crescente incremento na implantação da 114 Estas Ligas “nasceram da resistência – muitas vezes armada – dos foreiros (pequenos agricultores e não proprietários) contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam, movidos pelos proprietários. De 1959 a 1962, as Ligas tiveram acelerada expansão em todo o Nordeste. Elas contestavam, abertamente, a dominação política e econômica a que estavam secularmente submetidas às massas rurais”. Seu lema era: “somos contra o latifúndio”, tendo como bandeira: “lutar por uma Reforma Agrária Radical”. TOLEDO, C. N. O Governo Goulart e o Golpe de 64. 17ªed. São Paulo: Brasiliense, 1997. p.76-7. 115 GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e a contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.304. 96 mecanização no campo e na cidade, o que, de certa forma, colaborou com o fortalecimento do MST enquanto entidade social. Cabe observar as transformações pensadas para o campo ainda nos anos 1960, quando estas adquiriram novos contornos a partir da implementação do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei 4.214, de 02 de março de 1963) e, posteriormente, com a aplicação do Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, face ao Decreto Federal de no 76.593, de 14 de novembro de 1975). Esta última lei previa a ampliação em todo o país dos parques sucroalcooleiros para atender a crescente demanda nacional e internacional. As leis acima citadas corroboraram as expectativas do setor agrícola que almejava o aumento de produtividade com custos inferiores, criando, assim, outra plataforma de produção. 116 Para tanto, “com a mecanização da lavoura e a introdução de uma agricultura com características capitalista, se expulsa do campo grandes contingentes populacionais a partir de 1970”117, atribuindo novos contornos à produtividade rural, entre eles a redução dos postos de trabalho no campo e a maior demanda por mão-de-obra qualificada. Em face disso, nota-se que A breve história da mecanização das fazendas proporciona uma demonstração prática do enorme potencial da tecnologia moderna para substituir e, eventualmente, eliminar seres humanos do processo produtivo.118 116 BEZERRA, Antonio Alves. Bóias-frias e a mecanização nas usinas de açúcar e álcool no Oeste Paulista: 1960-2000. Dissertação (Mestrado em História Social), PUC/SP, São Paulo, 2002. p.1. 117 STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra a no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.15. 118 Embora RIFKIN problematize a questão da implementação da mecanização da lavoura americana, suas reflexões sinalizam para a compreensão das tensões sociais que envolvem o Brasil, particularmente os trabalhadores rurais sem terra. Segundo o autor, observa-se que “o deslocamento da mão-de-obra agrícola no decorrer do último século privou milhões de pessoas de um salário de subsistência”, sobretudo na década de 1990. Nos Estados Unidos havia mais de nove milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza em áreas rurais consideradas decadentes – todas as vítimas dos grandes avanços na tecnologia agrícola. Cf.: RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995. p.122. 97 O desmedido potencial da tecnologia moderna fez com que as fazendas se transformassem em grandes parques agroindustriais, passando a diversificar sua produção e seguindo, assim, a dinâmica e a lógica do capitalismo. Esse processo gerou novas exigências ao efetivar a contratação de trabalhadores aptos aos desafios dessa agroindústria rural que, ao final da década de 1990, intitula-se agronegócio. Estas transformações no processo produtivo das empresas tiveram como premissa para a obtenção de uma produção em larga escala, a utilização de uma mão-de-obra cada vez mais especializada, criando empecilho para os trabalhadores da área rural. Fazendo com que algumas usinas, praticamente com suas plataformas agroindustriais mecanizadas, aderissem a um novo processo seletivo de admissão de trabalhadores rurais orientando-se por critérios que incitam a exclusão, tais como: sexo, idade e escolaridade.119 Por essa lógica, o trabalhador rural a ser contratado deveria, prioritariamente, apresentar “idade de até 25 anos, nível de escolaridade até o quarto ano primário para atuar nas lavouras e até o oitavo ano do Ensino Fundamental para atuar no processo de fabricação de açúcar e derivados na área industrial”120, possibilitando a observação da explicação das transformações ocorridas na segunda metade do século XX pode ser entendida por meio da dualidade: trabalho-desemprego. A tendência geral da industrialização foi substituir a capacidade humana pela capacidade das máquinas, o trabalho humano por forças mecânicas, jogando com isso pessoas para fora dos empregos. Supunha-se, corretamente, que o vasto crescimento da economia tornando (seria torna-se - verificar pontuação no original) possível por essa constante revolução industrial criaria automaticamente 119 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do Fim do Século. São Paulo: Unesp, 1999. p.313. Idem. A luta pela Terra: experiência e memória. São Paulo: Unesp, 2004. 120 SILVA, op. cit., 1999. p.313-4. 98 mais do que suficientes novos empregos em substituição aos velhos perdidos.121 Com essa percepção, se reduz as possibilidades de inserção do antigo trabalhador nos recentes postos de trabalho disponibilizados pela agricultura modernizada. Acompanhando essa lógica, os trabalhadores rurais, sem dispor de qualificação profissional, ficam à mercê de pequenos “bicos” e serviço informais nas periferias das cidades de grande ou médio porte, buscando garantir a sua sobrevivência e a de seus familiares. Do ponto de vista socioeconômico, os camponeses expulsos pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas duas portas de saída: o êxodo para as cidades e para as fronteiras agrícolas. Isso os obrigou a tomarem duas decisões: tentar resistir no campo e buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões em que viviam.122 [grifos meus] Foi nessa plataforma de luta que surgiu a base social do MST. A resistência e as ações desenvolvidas pelos integrantes do movimento em prol da reforma agrária em todo o país passaram a ser uma constante, configurando-se a partir de sua fundação no final da década de 1970 e afirmando-se enquanto movimento social até o presente. 2.2 COLABORADORES NA ORGANIZAÇÃO DO MST A origem do MST no estado de São Paulo remete-se ao final da década de 1970, especialmente a partir do movimento de resistência dos posseiros da Fazenda 121 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. O Breve Século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.402. 122 STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra a no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.17. 99 Primavera, alocada nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência123. Considerando que trabalhadores rurais oriundos de outras regiões do estado também demonstravam insatisfação acerca de sua condição sub-humana, construíram-se resistências e elaboraram-se representações que desembocaram numa luta massiva pela posse da terra. Nesta perspectiva, tornou-se constante a participação de algumas instituições visando promover a organização dos trabalhadores rurais e do MST nesse estado e no Brasil como um todo, destacando-se a atuação efetiva da Comissão Pastoral da Terra (CPT) vinculada às Comunidades Eclesiais de Bases124 (CEB’s), principais articuladoras para a formação e a concretização do Movimento. Nos anos oitenta, o MST passa a contar com dirigentes ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e ao Partido dos Trabalhadores (PT), fundamentando o seu projeto nos princípios do socialismo marxista. Na década seguinte, sem se desprender de seus ideais socialistas, o MST redefine as suas estratégias para se inserir numa economia de mercado, buscando tornar os seus assentamentos produtivos, voltados para o mercado externo e não apenas para a subsistência.125 A entrevista de João Pedro Stédile corrobora o trecho acima descrito e evidencia dois aspectos cruciais para se entender a formação e atuação do Movimento: “o aspecto socioeconômico e o ideológico”. Em relação ao primeiro aspecto, trata-se de questões que acarretaram transformações no que tange às práticas de produção, até então adotadas no campo, deixando a situação dos 123 FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p.115. 124 CAMARGO, Candido F. de Souza; PIERUCCI, Beatriz M. de; OLIVEIRA, Antonio Flávio de. Comunidades Eclesiais de Base. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius C. (Org.). São Paulo: O povo em movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/ Cebrap, 1980. p.59-69. 125 GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e a contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.305. 100 trabalhadores ainda mais precária, ao passo que, a modernização foi se ramificando e estipulando novas demandas de produção e mercados. Entretanto, no campo das idéias, a sua efetivação só se tornou possível com o trabalho da Comissão Pastoral da Terra e da Igreja Luterana. Sendo pontuado pelo entrevistado que A Comissão Pastoral da Terra126 com a aplicação da Teologia da Libertação 127 trouxe importante contribuição para a luta dos camponeses, particularmente, na organização dos trabalhadores rurais sem terra. Sobre a participação de setores da igreja, o entrevistado atentava para a seguinte questão: A Igreja parou de fazer um trabalho messiânico e de dizer ao camponês: esperas que tu terás terra no céu. Pelo contrário, passou a dizer: tu precisas te organizar para lutar e resolver os teus problemas aqui na terra. A CPT fez um trabalho muito importante na conscientização do camponês.128 Desta forma, observa-se que as instituições colaboradoras na organização do MST, em São Paulo e em outras partes do país, tiveram lugar de destaque nas páginas do JST, com a participação evidente de alguns partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Mobilização Democrática Brasileira (PMDB). 126 A Comissão Pastoral da Terra é um órgão da Igreja Católica vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A princípio a Comissão foi organizada em meados da década de 1970 no estado de Goiás, quando se discutiu num Congresso Eucarístico a questão da terra ao Norte e Centro-Oeste do país. Posteriormente, a Comissão se estendeu a outras Unidades da Federação em que se evidenciaram conflitos pela posse da terra. Não obstante, ressalta-se que os “movimentos populares progressistas, inclusive o MST, perderam na década de 1990 o apoio irrestrito do seu maior aliado que tiveram nas décadas de 70 e 80 no Brasil: a Teologia da Libertação. A partir desse período, a Igreja passou a rever suas práticas sociais, alterando-as substancialmente em outras diretrizes [...] aquele apoio, teoricamente, ainda existe, mas a própria Teologia deixou de ser uma política para ser uma linha de resistência”. Cf.: Ibidem. p.314. 127 STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra a no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.20. A Teologia da Libertação é uma corrente pastoral das Igrejas Cristãs que arregimentam agentes de pastorais, padres, bispos progressistas que desenvolvem uma prática voltada à realidade social. Fundamentada nos princípios sociais, incorporou metodologias analíticas da realidade pautada pelos princípios marxistas. 128 Ibidem. p.19-20. 101 As Comunidades Eclesiais de Bases (CEB’s) “surgiram no final da década de 1960 e os camponeses as tinham como lócus das discussões e reflexões acerca de sua realidade”129. Colocando em prática a teoria da libertação e juntamente com os trabalhadores, estas recuperam a idéia da construção de um lugar social, sendo observado, também, como espaço de socialização política. A prática social, desenvolvida por essas entidades, pautava-se pelo princípio do resgate da conscientização dos trabalhadores, no que tange às suas realidades, recuperando a idéia de que os sujeitos sociais teriam a oportunidade de refletirem sobre suas representações, ao passo que, poderiam “articular ações de resistências contra as injustiças” historicamente sofridas por eles. Nesse ínterim, a participação das CEB’s foi de suma importância para que os trabalhadores se organizassem no MST, buscando reivindicar a sua dignidade, no sentido de reinventarem o caminho ao encontro da cidadania130. Nesse processo político de constituição do Movimento, ampliava-se a perspectiva que os trabalhadores rurais tinham de si e o reconhecimento do outro, refletindo acerca de sua realidade, construindo consciência política, ampliando o seu rol de questionamento e buscando incessantemente a implementação de suas reivindicações enquanto sujeitos históricos, pautados por direitos e deveres conferidos na Constituição de 1988.131 Em face desta questão, o MST se solidificou enquanto movimento social e político, tanto no estado de São Paulo como em outras unidades da federação. Suas 129 FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p.116. 130 Cidadania é um conceito histórico, que apresenta as suas variações no tempo e no espaço. Está atrelada, portanto, à participação social e à política em um Estado. A cidadania pode ser interpretada como uma ação política construída paulatinamente por homens, mulheres e crianças a fim de que possam transformar a sua realidade por meio da ampliação de seus direitos e deveres em comum. SILVA, K. V.; SILVA , H. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2006. p.47. 131 a CARVALHO, J. Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.199. Para o autor, essa Constituição pautava-se por princípios liberais, porém, acenava para as práticas democráticas, recebendo a chancela de “Constituição Cidadã”. 102 pretensões, entre outras, visavam à reforma agrária na perspectiva das ações de ocupação de propriedades públicas e privadas, produtivas e improdutivas. Enfim, através desse seu jeito peculiar de fazer política, ao longo de sua trajetória atraiu aliados, mas também, grandes opositores. O MST representa a incorporação à vida política de parcela importante da população, tradicionalmente excluída pela força do latifúndio. Milhares de trabalhadores rurais se organizaram e pressionaram o governo em busca de terra para o cultivo e financiamento de safras. Seus métodos, a invasão de terras públicas ou não cultivadas, tangenciam a ilegalidade, mas, tendo em vista a opressão secular de que foram vítimas e à extrema lentidão dos governos em resolverem o problema agrário, podem ser considerados legítimos.132 [grifos meus] Frente a isto, salienta-se que os governos brasileiros não se atentaram para a abertura de um canal de comunicação voltado aos anseios dos movimentos sociais, ávidos por transformações, que quando ocorriam, na maioria das vezes, não contemplavam as suas necessidades básicas de sobrevivência: moradia digna, terra para plantar, escolas, alimentação, remédios, serviços de saúde e segurança. 132 132 a CARVALHO, J. Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.203. Sem a pretensão de questionar a liberdade de escrita desse historiador, mas não concordando com este, ao empregar o termo invasão na presente citação, a pesquisa entende que o termo suscita a idéia de que ao invadir um determinado espaço, os integrantes do MST estariam cometendo um delito, observando que na sua essência, a palavra representa “entrar à força, tomar, dominar, difundir-se”, sendo essa uma visão cristalizada da elite agrária brasileira a respeito das ações do MST. Em contra partida, o presente trabalho priorizou o emprego do termo ocupação para melhor expressar as ações e representações do Movimento no cenário político. Observo que, do ponto de vista das práticas sociais e das experiências de lutas dos trabalhadores rurais registradas nas páginas do JST, não resta dúvida sobre a efetivação do discurso propalado pelo jornal na prática, pois este acreditava que a terminologia ocupar é, na realidade, o ato de “estar ou ficar na posse de... preencher o espaço vazio, trabalhar, dedicar-se a cuidar...”, conforme definição do Dicionário Aurélio. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Positivo, 2001. p.495. Em face dessa questão, a fonte em questão procura, por meio de seus editoriais, textos e reportagens, esclarecer junto aos trabalhadores e à sociedade o sentido dessa terminologia, associando a linguagem às ações postas em prática, deixando claro que a ação de ocupar propriedades se dá por diversos fatores, dentre eles a necessidade de manter os trabalhadores unidos por um mesmo ideal – a reforma agrária. José Gomes da Silva assinala que: “A ocupação é o que deu vida à luta pela terra. Sem ocupação, o MST não nasceria e, sem ela, morreria”, idéia compartilhada pelo jornal e pelos trabalhadores rurais sem terra. Observação feita por: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do a MST e a luta pela terra no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. Sobre a terminologia ocupação, ver o capítulo denominado “Ocupações” deste livro (p.113-21). 103 Sobre as ações perpetradas por esse Movimento, justifica-se que parte das conquistas sociais obtidas ao longo da história do Brasil foi resultado da pressão popular oriunda dos Movimentos Sociais, indicando que, se não fosse pela pressão política encampada pelo MST, não teria ocorrido nenhum tipo de assentamento na área rural. Não é por acaso que suas ações generalizadas e sua organização política despertaram reações do adversário político, que foi gestado paulatinamente e buscou combater as suas ações, durante a década de 1980 e meados de 1990. Esse adversário político responde pelo nome de União Democrática Ruralista 133 (UDR), constituída um ano após a fundação do MST. Nesse momento, não cabe aprofundar o real propósito da fundação desta instituição, nem as pretensões de seus integrantes. Porém, afirma-se que esta seria uma grande opositora às idéias do recém criado movimento social, que se configurava numa grande ameaça política ao governo e às pretensões dos latifundiários em todo o país. Desta forma, O MST conseguiu inegável êxito na organização dos deserdados da terra, sobretudo em seus primeiros tempos, tornando-se um poderoso instrumento de pressão para que o governo de Fernando Henrique Cardoso acelerasse o seu programa de reforma agrária.134 Porém, acrescenta-se que as ações do MST ultrapassavam as perspectivas sociais ao se traduzirem em “ações radicais”, fazendo com que as “ocupações de 133 STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra a no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.93. “A UDR foi fundada em 1985, por fazendeiros atrasados do setor pecuarista e contrários à reforma agrária. Atuando em seu início nos estados de Goiás, Sul do Pará, Pontal do Paranapanema-SP e Triângulo Mineiro, proliferaram-se após alguns anos por várias outras Unidades da Federação”, atualmente dissolvida, porém, com alguns de seus tentáculos navegando na sociedade e na política. 134 a a FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Edusp, Imprensa Oficial do Estado, 2002. p.297. 104 terras, de prédios públicos, destruição de pedágios – revela(ssem) a sua inclinação para a violência no caminho de uma pretensa revolução social”135. Entende-se esse processo de luta como estratégia da ação, ao desencadear uma resposta à violência imposta às classes populares, que se organizavam politicamente. Quanto à questão dos assentamentos e acampamentos, os dados expressos nas tabelas a seguir alertam para a hipótese de que os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso (no período de 1995 a 2002) deixaram marcas na história da agricultura brasileira, possibilitando-lhe o mérito de ter promovido o maior número de assentamentos rurais em toda a história brasileira. Tabela 1 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 1995-2000.136 RP* 1995 1996 1997 1998 1999 2000 Anos Centro-Oeste 10.404 10.815 14.906 15.933 12.752 13.943 Norte 10.471 24.628 32.045 41.838 25.185 16.490 Nordeste 18.551 21.272 27.099 34.432 30.990 23.995 Sul 2.178 2.007 4.190 4.134 9.298 3.391 Sudeste 1.308 3.268 3.704 4.757 7.001 2.702 Total 42.912 62.044 81.944 101.094 85.226 92.986 *Regiões do País 135 a a FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Edusp, Imprensa Oficial do Estado, 2002. 136 Tabela organizada pelo autor. Fonte: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Disponível em: <www.incra.gov.br>. Acesso em: 12/01/2008. Os dados expressos nesta tabela são informações oficiais divulgadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, referentes aos anos de 1995 a 2006. Os números fazem parte de uma planilha mais ampla em que se aponta a quantidade de assentamentos realizados pelo governo por Unidade da Federação e por região do país. Não obstante, para construir esses quadros optei apenas pela categoria “famílias assentadas” por região. 105 Tabela 2 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 2001-2006.137 RP* 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Anos Centro-Oeste 14.548 10.007 4.437 14.861 19.880 14.153 Norte 19.866 12.438 16.004 31.774 58.373 81.573 Nordeste 20.760 16.582 13.256 28.522 39.726 35.313 Sul 4.426 2.041 1.038 3.638 2.987 2.059 Sudeste 3.877 2.418 1.566 2.459 6.540 3.260 Total 82.449 43.488 36.301 81.254 127.506 136.358 *Regiões do País Os dados oficiais, evidenciados nestas tabelas, a respeito dos assentamentos rurais no Brasil (no período de 1995 a 2006) tornam-se expressivos do ponto de vista social e político. Entretanto, esses assentamentos não foram suficientes para resolver o problema de centenas de famílias de sem terra por todo o país, visto que um contingente significativo de pessoas ainda permanece sem auferir proveito da terra, e inúmeras famílias de trabalhadores rurais encontram-se acampadas na luta pela posse da mesma. Os números citados anteriormente mostram um aumento crescente na efetivação de assentamentos de trabalhadores rurais nas cinco regiões do país, com um avanço no primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, as mesmas tabelas revelam uma descontinuidade no que se refere à expansão dessa política de assentamentos, em seu segundo mandato, sobretudo nas regiões sul e sudeste do país, o que não quer dizer que não havia demanda de famílias por terras nestas regiões. Um dado importante expresso nas mesmas tabelas é a acelerada expansão dos assentamentos nas regiões norte e nordeste, nos dois mandatos de Fernando 137 Tabela organizada pelo autor. Fonte: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Disponível em: <www.incra.gov.br>. Acesso em: 12/01/2008. 106 Henrique Cardoso (1995-2002) e também, no primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva de (2003-2006), sendo que, nos últimos quatro anos, evidenciou-se maior expressividade dos números de famílias assentadas. Apesar das informações revelarem certo crescimento nos assentamentos, o JST acenou para o descontentamento dos trabalhadores rurais, quanto aos dados divulgados pelos órgãos oficiais, imbricando-se numa guerra de números entre aqueles apresentados pelos governos e os supostos “dados reais”. Nesse sentido, a contestação dos dados ocupou as páginas do JST, tanto em seus editoriais, quanto nas seções de notícias, assumindo postura bastante dura. Num dos editoriais publicados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra evidencia-se a tentativa do MST em questionar os números apresentados pelo governo, referente às famílias assentadas no ano de 1995. Segundo o jornal, para satisfazer o seu ego ou simplesmente enganar a opinião pública, o governo continua mentindo, dizendo que assentou 42 mil famílias [grifos meus] durante o ano de 1995. Nós fizemos levantamento, estado por estado, e apenas 12 mil famílias tiveram realmente acesso a terra, em função de desapropriação ou medidas do governo FHC. Todas as demais famílias estavam há muitos anos naquela área, tendo as suas propriedades regularizadas.138 Nesse sentido, o MST não reconhecia os números divulgados pelo governo. Para o jornal, foram assentadas efetivamente 12 mil famílias, sendo as demais 30 mil inexistentes, tendo em vista que elas já estavam alocadas nas regiões há muito tempo. Só pelo fato das propriedades terem sido regularizadas nesse ano, não poderia representar assentamento efetivado, sendo a atuação de Fernando H. Cardoso registrada, não porque ele 138 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.155, ano XV. MST, jan./fev. 1996. p.2. 107 assentou o maior número de famílias de trabalhadores rurais sem terra no Brasil, mas porque seu governo se tornou conhecido pela proliferação das inúmeras ocupações de terras nos estados, pelo crescimento massivo dos números de movimentos sociais em todo o país e também pelo crescimento dos números de famílias acampadas em toda a história brasileira.139 Apesar dos números apresentados pelo governo configurarem numa maior quantidade de famílias assentadas, tal informação pode e deve ser contestada, quando se evidencia uma inquestionável pressão por parte dos trabalhadores rurais inseridos no MST, em igual período. O jornal apontava que também houve uma tentativa do governo de desqualificar os dados apresentados pelo MST e seus idealizadores, puxando-os para menos, conforme os dados da 6a coluna da tabela a seguir. Ano Tabela 3 - Ocupações de terras entre 1995 e 1999.140 No de No total de Porcentagem das No total de No total de famílias ocupações do ocupações de ocupações ocupações envolvidas MST sobre o No terras, segundo a ligadas ao segundo a total de segundo o CPT MST* CPT governo** ocupações 1995 146 30.476 - - 145 1996 398 63.080 176 44% 397 1997 463 58.266 173 37% 455 1998 599 76.482 132 22% 446 1999 589 78.258 - - 502 *Dataluta: Banco de Dados da luta pela terra, 1999 **Ministério do Desenvolvimento Agrário 139 FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p.185. 140 Cf.: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.206. Os dados aqui apresentados fazem parte de uma tabela maior, que compreende os anos de 1987 até 2002, sendo esses apenas um recorte ilustrativo. 108 Os números de ocupações e de famílias envolvidas na luta pela terra tornaram-se crescentes na década de 1990. Os dados explicitados nesta tabela evidenciam um aumento expressivo no ínterim destes cinco anos. Reportando-se à primeira e à segunda coluna, nota-se em escala crescente a expansão das ocupações de propriedades, estando estas associadas a uma maior participação das famílias. No ano de 1998, observa-se a configuração de um número significativo de ocupações, chamando a atenção a uma leve redução no contingente de famílias envolvidas nestas, sobretudo, aquelas ligadas ao MST. Outra questão perceptível nesta tabela é a ausência de dados na quarta e quinta coluna, especificamente nos anos de 1995 e 1999. Pois apesar da inexistência de dados sobre as ocupações atribuídas ao MST nesses dois anos, não significa que elas não ocorreram. Elas só não foram devidamente registradas em um banco de dados de abrangência nacional.141 Em suma, os dados da tabela explicitam o quanto os trabalhadores rurais estavam insatisfeitos com a política agrária do governo. Destaca-se ainda, a exemplar participação do MST na ampliação dessas ocupações, colocando-se numa posição de grande articulador político no desenvolvimento das ações em execução no campo. 141 LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.83. 109 Apesar do governo de então ter contestado os números apresentados pelo MST, na tabela (3) sobre as ocupações de terras, os dados evidenciados apontavam para o fortalecimento do Movimento, expandindo suas ações para áreas ainda maiores. Sem desconsiderar as pretensões do instituto ou dos responsáveis pela pesquisa, pode-se afirmar que, de acordo com os dados divulgados, as ocupações em larga escala do MST ganharam adesão de um número crescente da população paulistana, sobretudo, dos trabalhadores de baixa renda, que reconhecem tais ações como forma de pressão social. Nesse sentido, a pesquisa feita pelo IBOPE, em 1996 na cidade de São Paulo, questionou: “O (A) Sr. (a) apóia ou não apóia as ações do Movimento Sem Terra?”. O resultado sinalizou que: 56% dos entrevistados apoiavam as ações do movimento; 37% não apoiavam; 7% não souberam responder. Os dados acima revelam que parte significativa dos entrevistados apoiava as ações do movimento, destacando, ainda, que o maior endosso provinha dos segmentos mais jovens. Outro dado que chamou a atenção foi que, quanto mais baixo fosse o grau de escolaridade, maior tornava-se o apoio às ações.142 142 Pesquisa elabora pelo IBOPE para avaliar o nível de apoio às ações do MST na cidade de São Paulo. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Ano XV, n.155. MST, jan./fev. 1996. p.2. Gohn pontua que “a causa dos sem terra passou a ser considerada justa nas pesquisas de opinião pública, embora a grande maioria rejeite as ‘invasões de terras’ como forma de pressão”. GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. a 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.305. 110 Apesar da posição privilegiada alcançada pelo MST, neste momento, no que tange ao monopólio das ocupações em todo o país, este se articula com outras forças aliadas, visando fortalecer-se politicamente sem perder a sua identidade de movimento social. Assim, coligando-se à CONTAG (filiada à CUT), à Federação de Trabalhadores na Agricultura de vários estados, Sindicatos Oficiais e outras forças sociais.143 A atuação do JST fica evidente que, tanto o jornal, quanto os trabalhadores rurais acampados e assentados, o ato de ocupar propriedades era entendido como a mais viável forma de pressão social para forçar o governo a implementar os assentamentos. Observa-se, portanto, que as ocupações fizeram parte das estratégias de luta do Movimento e mantendo lugar de destaque na parte cultural do MST, como pode ser observado no refrão “ocupar, resistir e produzir”, lema de campanha e título de letra de música presente no CD – Arte em Movimento. O gráfico a seguir indica essa possibilidade. Os dados do gráfico confirmam o salto de qualidade, no que se refere ao trabalho de base, envolvendo os trabalhadores rurais sem terra e o próprio MST. No interstício de 1988 a 1994, percebe-se certa intimidação em se tratando de ocupações de propriedades. Provavelmente a inércia vivida pelo MST e seus agentes coadunaram-se com a transição política que o país passava nos finais do regime militar e o período de retomada dos princípios democráticos. 143 Para Lerrer, é inegável a importância do MST nessa forma de luta – pois ele foi o responsável direto pela tomada desse instrumento de ação na década de 1980. “[...] o salto quantitativo das ocupações deveu-se, também, ao engajamento de outras forças políticas no embate e na construção de novos diálogos com o governo.” LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.84. 111 Gráfico 1 - Brasil – Ocupações de terras – número de famílias: 1988-1998.144 90.000 80.000 76.428 70.000 62.880 58.266 60.000 50.000 40.000 30.476 30.000 19.092 20.516 20.000 17.589 15.538 11.297 10.345 7.804 10.000 0 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 Singular também foi o crescente aumento nas ocupações nos anos de 1995 a 1998, marcando fortemente o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, pressionando-o a assentar um número significativo de famílias de trabalhadores rurais sem terra, em um curto espaço de tempo. O que teria motivado o governo a realizar tantos assentamentos nesse período, observando-se a ausência de um canal de comunicação do MST com o mesmo? 144 Fonte: CPT, 1999. Cf.: FERNANDES, B. M. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. p.260. 112 Os dados da pesquisa evidenciam que o número de assentamentos divulgado pelo governo (conforme a tabela e gráfico 1) esteve, direta ou indiretamente, atrelado à pressão feita pelo MST. A interpretação das informações apresentadas acima permite a afirmação de que o governo de Fernando Henrique Cardoso poderia ser marcado como o que mais assentou famílias no país, mas, também, pode-se destacar como o Presidente que contribuiu de forma singular com o maior número de ocupações, o maior crescimento de movimentos sociais, o maior número de famílias acampadas em fazendas e rodovias [...] além dos dois maiores massacres de trabalhadores rurais no campo: o de Corumbiara, em 1995 e o de Eldorado dos Carajás, em 1996.145 Recuperando a idéia da trajetória histórica do MST, a partir da década de 1980, pontua-se que os governos, latifundiários e setores da elite agrária se confrontavam com as ações massivas deste movimento. Encabeçadas por seus idealizadores e integrantes foram reconhecidos como um “novo ator social e político”146 em ascensão no debate político nacional. Frente aos “encontros e desencontros da história”, torna-se inegável a afirmação de que os trabalhadores rurais traziam consigo a experiência147 de terem pertencido, muitas vezes, a categoria de “pequenos sitiantes, caboclos, cafuzos, mulatos, brancos e negros edificados na geografia da luta pela terra” 145 148 , FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p.185. 146 COMPARATO, Bruno Konder. A ação política do MST. São Paulo em Perspectiva. Vol.15, Ano 4. São Paulo: Fundação Seade, out./dez. 2001. 147 Sobre o conceito de experiência, o presente trabalho ampara-se teoricamente na literatura de: THOMPSON. E. P. O termo ausente: a experiência. A Miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1981. Idem. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia da Letras, 1998. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Idem. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 148 FERNANDES, B. M. O MST mudando a questão agrária. In: D’INCAO, M. A. (Org.). O Brasil não é mais aquele... Mudanças Sociais Após a Redemocratização. São Paulo: Contexto, 2001. p.238. 113 transformando-se, posteriormente, em trabalhadores rurais sem terra, instigando o presente trabalho a se debruçar acerca de sua trajetória. Sem desmerecer outras formas de lutas sociais no Brasil, não há dúvida de que o MST se configurou no mais importante movimento social do século XX e início do século XXI, evidenciando a sua experiência de luta na prática, mas também deixando registrado “em papel e tinta”149 a sua história. O Movimento dos Sem Terra é uma das coisas mais importantes que já aconteceu no Brasil. E muitos de nós guardamos no coração uma grande esperança neles, para obrigar o Brasil a levar a questão agrária a sério. O MST junta hoje todos os tipos de lavradores, que invadem fazendas improdutivas e vivem na miséria imposta pelos latifundiários.150 [grifos meus] Entendendo o MST como movimento social e como representante de determinado segmento da sociedade brasileira, busca-se, a partir das interpretações dos editoriais do Jornal, desvelar os percalços enfrentados pelo Movimento e seus integrantes ao longo de sua trajetória de luta. Com isso, desbrava-se caminhos construindo-se hipóteses, que sinalizem as interfaces das “características do campesinato brasileiro”151, bem como a compreensão das tensões que o cercam. Dentre outras questões, os próximos itens retomam e problematizam as idéias que têm norteado os conflitos agrários no Brasil, demonstrando inquietações quanto à afirmação do MST, enquanto novo sujeito político e, portanto, protagonista de sua própria história. Desta forma, explicita-se a importância de interpretar os 149 Parafraseando Heloisa F. Cruz, autora que muito contribuiu para os estudos dessa pesquisa sobre o JST, seus editoriais e suas reportagens, alertando a observá-lo com o olhar de pesquisador e a partir daí construir as hipóteses norteadoras desta tese. CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2000. 150 Entrevista com Darcy Ribeiro. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Ano XVI, n.167. Esperança nos Sem Terra. MST, março de 1997. p.2. 151 FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p.184. 114 editoriais 152 veiculados pelo JST ao longo de duas décadas, período este compreendido pela pesquisa. Por isso, observa-se a necessidade de outras possibilidades de reflexão para o tema, visando “compreender os novos problemas que o mundo nos legou no final do século XX e início desse novo século” 153 , sobretudo, os que tangem os anseios dos movimentos sociais, em particular o MST. 2.3 AÇÕES: O JST E SEUS EDITORIAIS Analisando os editoriais do jornal, pode-se recuperar a trajetória de luta dos trabalhadores sem terra a partir de suas representações pautadas pelas tendências ideológicas 154 do MST, ao passo que, os questionamentos possibilitaram a recuperação da trama social, presente nas ações destes trabalhadores, ao se constituírem na luta diária em busca da reforma agrária. Por essa razão, se faz necessária a problematização do discurso do jornal, no sentido de observar de que forma este representa o desejo dos integrantes do MST em âmbito local, estadual e nacional. O referencial teórico, que embasa as 152 A opção pela interpretação dos editoriais publicados pelo JST deu-se, sobretudo, pelo meu interesse em entender a postura do mesmo frente às tensões políticas vigentes, assim como os anseios dos trabalhadores rurais que engrossavam, a cada dia, as tessituras do movimento e como estes se projetaram como ferramenta articuladora, nos momentos de tomadas de decisões dentro do MST. Em termos quantitativos, optou-se pela interpretação dos títulos que abalizavam a posição política do jornal, dos que convocavam os trabalhadores à unificação da causa coletiva – a luta pela ocupação e desenvolvimento da terra e aqueles que denunciavam os “desmandos” dos governos. 153 SANTOS, Boaventura de Sousa. Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum. In: Idem. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. p.42. 154 Para conceituar o termo tendências ideológicas, a presente pesquisa opta pelo referencial teórico desenvolvido pelos estudos culturais inspirados em Antonio Gramsci, que define “os sujeitos não como alienados, mas como portadores de experiências que lhes permitem, senão adotar uma ideologia própria, ao menos interpretar ao seu modo a ideologia hegemônica”. Para tanto, “os autores culturalistas afirmam que na sociedade existem várias forças determinantes [inclusive a cultura] entendendo o ideológico não como mero reflexo das condições econômicas. Para Gramsci, além da dominação e da reprodução social, a ideologia é um campo também de resistência em que não necessariamente os dominados aderem à ideologia hegemônica, pois também entram no jogo do dominador a partir de seus próprios interesses”. Cf.: SILVA, Kalina V.; SILVA, Maciel H. (Orgs.). a Dicionário de Conceitos Históricos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.208. 115 inquietações a seguir, pauta-se pelas reflexões da historiografia brasileira155 que se debruçam fartamente acerca das interpretações da imprensa, contribuindo com os estudos sobre os mais diversos segmentos desta: a operária, a alternativa e, sobretudo, a chamada grande imprensa. 156 Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre os temas configurados nas páginas do JST, busca-se oferecer contribuições para esse campo de investigação, ao passo que a fonte em destaque ainda é pouco utilizada nas interpretações históricas das representações sociais do MST, desde o seu surgimento na década de 1980. Apesar do considerável número de pesquisas sobre o MST no Brasil, pontua-se que poucas destas se debruçaram acerca das análises do conteúdo propalado pelo jornal e que, em número menor, o observaram como ferramenta de luta para o movimento. É inegável que algumas destas pesquisas tenham se apropriado do jornal como instrumento confirmador de algumas hipóteses em determinado momento, porém, constatou-se incipiente presença de pesquisa atribuindo-lhe igual atenção. 155 CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 19201945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. Idem; PRADO, Maria Ligia. O Bravo Matutino: Imprensa e Ideologia no jornal O estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia R. de. Imprensa e Cidade. São Paulo: Unesp, 2006. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia R. de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes, 1978. KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São Paulo: Perseu Abramo, 1998. AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário e Exercício Cotidiano de Dominação: o Estado de S. Paulo e Movimento. Dissertação (Mestrado em História), FFLCH/USP, São Paulo, 1990. SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. CRUZ, Heloisa de F. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2000. WILLIAMS, Raymond. A imprensa e a cultura popular: uma perspectiva histórica. Projeto História. n.35. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2007. 156 LUCA, Tânia R. de. A grande imprensa na metade do século XX. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia R. de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.149. A autora pontua que apesar desta expressão se revelar bastante consagrada entre os pesquisadores, ela é também bastante vaga e imprecisa. De forma genérica, tal expressão representa um conjunto de títulos, que num dado contexto, compõe a porção mais significativa dos periódicos em termos de circulação, perenidade, aparelhamento técnico, organizacional e financeiro. 116 Os editoriais e suas reportagens revelavam a relação dialética entre ambos. O jornal confirmava as experiências de lutas tramadas no campo e norteava as possibilidades de embates, atribuindo novos contornos e significados ao perfil dos trabalhadores rurais. Por outro lado, o movimento fortalecia o jornal ao passo que este se consolidava como agente propagador das ações de enfrentamento realizadas no campo. Reportando-me à década de 1980, pondera-se que, no Brasil, a historiografia tem dado pouca importância à imprensa como objeto de investigação, utilizando-se dela apenas como fonte confirmadora de análises apoiada em outros tipos de documentação” 157 (fato este observado em pesquisas recentes sobre o jornal em análise). Nessa direção, elaboram-se metodologias diferenciadas capazes de viabilizar outras interpretações acerca do estudo de periódicos, além de nortear a construção de uma “nova direção de pesquisa periódica ao analisar o jornal O Estado de S. Paulo como fonte única de investigação e análises críticas”, torna-se um desejo. A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender a imprensa como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que a tomam como mero ‘veiculo de informação’, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na qual se insere.158 157 CAPELATO, Maria Helena R.; PRADO, Maria Ligia. O Bravo Matutino: Imprensa e Ideologia no jornal O estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. p. XI. Ao prefaciar esse livro na década de 1980, Paulo Sérgio Pinheiro alerta para a ausência de trabalhos acadêmicos sobre a imprensa brasileira, particularmente sobre os grandes jornais de longa “participação na vida política brasileira”. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Massas, prisões, paz. Folha de São Paulo. São Paulo, 15/07/1986. Atualmente essa afirmação já pode ser revista, uma vez que a historiografia confirma uma forte “presença de estudos sobre a imprensa ou de publicações periódicas como fonte principal de pesquisa”, no intuito de viabilizar estudos sob diferentes olhares, “abordagens e procedimentos metodológicos”, norteando novas possibilidades de “investigação nos mais diversos campos teóricos e temáticos”. Cf.: CRUZ, Heloisa de F.; VIEIRA, V. L.; RAGO FILHO, Antonio (editores científicos). Introdução. Projeto História. n.35. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2007. p.10. 158 CAPELATO, PRADO, op. cit., p.XI. 117 Nesse aspecto, esse trabalho priorizou o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como objeto de pesquisa, mas, também, como sujeito histórico, por entender que este descortina com precisão a trajetória de luta dos trabalhadores rurais sem terra ao evidenciar a sua afirmação de “defensor” e instrumento de luta dos “deserdados” da terra. A pesquisa entende o JST como instrumento ativo de “intervenção social” na configuração da luta dos sem terra, e não como mero instrumento “imparcial” desta luta no campo social e político. No que tange aos conflitos no campo, estudiosos das Ciências Humanas159 revelam que a constituição dos movimentos sociais e suas ações de intervenção no cenário político brasileiro estiveram associadas a uma série de fatores sócioeconômicos. Dentre eles, a introdução da modernização na área rural (no início da década de 1970), quando se atribuiu à produção familiar características voltadas para um mercado capitalista mais global, levando o homem do campo a buscar condições de sobrevivência nos parques industriais das cidades de grande e médio porte, motivados pelo acelerado processo de desenvolvimento da indústria pelo qual o país estava passando. 159 A título de exemplificação, verificar os estudos de: GOHN, Maria da Glória. A crise dos movimentos sociais. In: Reunião Anual da ANPOCS. Caxambu, 1992. Idem. Movimentos e lutas sociais na História do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995. Idem. Os Sem-Terra, ONGs e Cidadania. São Paulo: Cortez, 2003. Idem. Teoria dos Movimentos Sociais - paradigmas clássicos e a contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. BRANT, Vinicius Caldeira; SINGER, Paul (Orgs.). São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/ Cebrap, 1980. MARTINS, José de Sousa. a Expropriação e violência. A questão política no campo. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1991. Idem. Os camponeses e a política no Brasil. As lutas sociais no campo e o seu lugar no processo político. a 5 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 1995. Idem. A militarização da questão agrária no Brasil. Terra e a poder: o problema da terra na crise política. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 1985. Idem. Caminhando no chão da noite. Emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: Hucitec, 1989. Idem. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. Idem. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STEDILE, João Pedro (Org.). A reforma agrária e a luta pela terra. Petrópolis - RJ: Vozes, 1997. BERGAMASCO, Sonia M.; NORDER, Luis A. Cabello. O que são assentamentos rurais? Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1996. p.301. FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989. Entre outros autores e obras. 118 Nos anos de 1980, essa industrialização entrou em colapso por praticamente toda a década, impossibilitando a inserção e a permanência do contingente de trabalhadores rurais expulsos do campo nos processos produtivos dos centros urbanos. Em face desta questão, o surgimento e a “espacialização” do MST (objeto de estudo desta pesquisa) deram-se a partir do momento no qual os “camponeses expulsos da área rural pela modernização da agricultura tiveram fechadas as duas portas de saída: a sua expulsão para as cidades e a sua transferência para as áreas agrícolas de fronteiras”160. Com a impossibilidade de mudanças nas suas vidas e de seus familiares, os trabalhadores “foram obrigados a tomar duas decisões: tentar resistir no campo e/ou buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam”. Foi neste cenário, que estes sujeitos sociais ampliaram a construção de sua identidade pública ao se inserirem no Movimento. Portanto, essa identidade foi construída a partir das ações encampadas pelos próprios trabalhadores e, conseqüentemente, pela orientação dada pelo JST ao realizar a transposição das informações recebidas pela Direção Nacional do Movimento. As manchetes de capas do jornal tornaram-se indicativos dessa afirmação: “1985 vai ser diferente”; “Sem terra não há democracia”; “Essa realidade vai mudar”; “A reforma agrária dos trabalhadores”; “Reforma agrária: a guerra é pra valer”; “Reforma agrária: o campo se agita”; “Continua a agitação no campo”; “Lavradores 160 “A transferência dos trabalhadores rurais do sul do país para as regiões de colonização, sobretudo Rondônia, Mato Grosso e Pará não deu certo porque os camponeses perceberam que nessas regiões não existia vocação para a agricultura familiar, pois eles estavam acostumados na região sul a produzirem grãos como arroz, feijão e milho” e, portanto, não quiseram permanecer nessa região. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a Luta Pela Terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.15-7. 119 sem terra ocupam latifúndios: assim se faz reforma agrária”; “1985: ano de muitas lutas e violências” entre outras.161 O jornal em tela evidenciou que sua postura de defensor dos trabalhadores rurais, elaborada e nutrida cotidianamente com suas experiências, se afirmava para além de sua função informativa. Apresentando-se como porta-voz dos trabalhadores, os editoriais são uma constante dessa afirmação e seus títulos são indicativos dessa ponderação. Tabela 4 - Alguns Editoriais – 1987.162 Título do Editorial – JST Tiragem Referência o O que esperar de 1987? 30 mil ex. SP, Jan/1987, n 59, Ano VI Em 1987, dificuldades e esperanças. 30 mil ex. SP, Fev-mar/1987, n 60, Ano VI Como enfrentar esta crise? 30 mil ex. SP, Abril/1987, n 61, Ano VI A constituinte deve ser apenas um meio a mais para mobilizarmos as bases... 30 mil ex. SP, Maio/1987, n 62, Ano VI Só as lutas mudam as leis 30 mil ex. SP, Junho/1987, n 63, Ano VI O que está acontecendo? 30 mil ex. SP, Agosto/1987, n 65, Ano VI Vamos ocupar Brasília 30 mil ex. SP, Setembro/1987, n 65, Ano Nossa resposta: ocupação 30 mil ex. SP, Dezembro/1987, n 65, Ano 161 o o o o o o o Estas foram algumas das manchetes de capa do JST no ano de 1985, momento no qual se efetivava a identidade pública do Movimento e de seus agentes sociais, pois o MST já havia sido constituído no ano anterior com uma definição clara de sua linha de atuação, apresentava clareza quanto aos seus aliados e opositores, uma vez que a maioria deles já se encontrava na arena política. A título de indicação, um estudo acerca das manchetes de capa deste jornal e das imagens que o cercam seria uma perspectiva interessante de pesquisa para se interpretar e compreender o impacto social e político, que essa ferramenta de comunicação e de luta gerou entre os trabalhadores rurais sem terra nos assentamentos e/ou acampamentos nos momentos de formação, estudo e reflexão. 162 Tabela organizada pelo autor. As tabelas 4, 5 e 6 foram construídas com base nos títulos dos editoriais do JST nos anos de 1987, 1996 e 1998, visando problematizar a forma agressiva que o periódico assumiu nesses momentos, no intuito de promover uma pressão social e política, sobretudo, nos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Ainda, visou-se demonstrar que esse periódico, ao contrário de outros jornais de movimentos sociais ou de classe, em sua maioria de circulação efêmera, apresentava muita importância para o Movimento, buscando se modernizar enquanto ferramenta de luta para atender as exigências dos trabalhadores rurais sem terra. 120 Sem desconsiderar os editorais publicados no período de 1984 a 1986, nesse capítulo, priorizaram-se as temáticas que possibilitavam uma melhor compreensão das tensões político-sociais da época. Dentre essas, destacam-se, particularmente, aquelas que iam ao encontro das ações governamentais, no sentido da ampliação da reforma agrária e os principais temas que a norteavam, demonstrando os anseios dos trabalhadores rurais frente ao cenário vivido por estes. A questão: “o que esperar de 1987?”, se tornou uma indagação bastante capciosa para a compreensão do que representava esse jornal na configuração das representações sociais dos trabalhadores rurais. Com essa questão o periódico organizou e buscou a espacialização da luta, para que conseguisse, por meio desta, algo superior ao transcorrido no ano de 1986. Nesta perspectiva, considera-se que “não só os espaços de lutas são socialmente constituídos, mas também as relações sociais são espacialmente constituídas”163. Para o editorial publicado em 1987, o governo da “nova república deixou cair à máscara da democracia deixando cada vez mais claras as suas intenções com relação à reforma agrária”164, ou seja, não fazer nenhuma mudança no campo, mas fazer muita demagogia e propaganda, como se o paraíso tivesse chegando à terra. Na verdade, o governo José Sarney se revelou um dos mais cínicos e mentirosos de todos os governos que já tivemos.165 [grifos meus] O jornal não poupava adjetivos, no sentido de desqualificar a política de reforma agrária vigente (sem esquecer que o país ainda ensaiava a sua primeira Constituição pós-regime militar, e que este era um governo de transição, mas 163 Ao se reportar à conceituação de estruturas de poder, Santos pontua que “estas são lugares não apenas em termos retóricos, mas também em termos sócio-espaciais. Cada lugar estrutural é constitutivo de uma espacialidade específica, e as interações sociais que ele exige e possibilita tem uma referência locacional inscrita no que através delas, é feito ou pensado”. Cf.: SANTOS, a Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. p.263. 164 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2. 165 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2.. 121 plenamente vinculado a partidos políticos que compartilhavam do regime militar). O trecho acima explicita que o governo não estava comprometido com os anseios das forças sociais, optando por se aliar às forças políticas já existentes (no caso de políticos dissidentes do regime militar), reforçando a construção de um discurso de denúncia por parte do Jornal. Em outro trecho do mesmo editorial, explicitou-se o aumento nos números da violência no campo e o inconseqüente descaso do governo para essas ações criminosas. Mesmo nos governos subseqüentes, o jornal não fecha suas páginas para essa questão, uma vez que, ela tende a ganhar proposições ainda maiores, particularmente na década de 1990. Porém, para o MST “a violência no campo aumentou ainda mais e com a maior impunidade”. Com base em dados do Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD) “foram 272 mortos no campo durante 1986 e ninguém foi condenado ou preso”. Segundo o Jornal do Brasil, destacava-se o desvio de armas modernas do exterior para equipar os latifundiários brasileiros que, dentre outras irregularidades, as usariam contra os trabalhadores rurais que ameaçassem ocupar suas propriedades. O jornal denunciava que a UDR teria chegado ao barbarismo de colocar a leilão a cabeça de D. Tomás Balduino, reconhecido nacionalmente pela defesa dos direitos dos sem terra. Onde está a democracia da nova república?166 Frente a isso, percebe-se que a base do discurso do jornal era fazer valer os preceitos democráticos almejados pela sociedade e em curso na Constituinte, que seria celebrada na aprovação da Constituição, no ano seguinte. Naquele momento, uma das prerrogativas do periódico era associar a questão da democracia à luta pela 166 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2. p.2. 122 terra. Ao concluir o editorial, o jornal chamava a atenção para a organização dos trabalhadores rurais, pontuando a necessidade de uma profunda avaliação nacional de sua caminhada, na tentativa de implementar melhor a preparação para as longas jornadas de “lutas e sacrifícios” nos próximos anos, e finaliza: “Sem desanimar. Mas com coragem e esperança. Afinal, para os sem-terra nunca teve moleza mesmo. E ter cada vez mais a presente certeza de que TERRA E PODER NÃO SE GANHAM, se conquistam!”167. O trecho do editorial evidenciava a questão do acesso à terra, mas também da chegada ao poder. Para o primeiro, a terra era vista como um bem comum e que deve ser pautada pela prerrogativa de cumprir o seu papel social: a produção de alimentos para suprir as necessidades básicas das pessoas. Como o poder pode ser interpretado nesse contexto? O poder é qualquer relação social regulada por uma troca desigual. É uma relação social porque a sua persistência reside na capacidade que ele tem de reproduzir desigualdade mais através da troca interna do que por determinação externas. As trocas podem abranger virtualmente todas as condições que determinam a ação e a vida, os projetos e as trajetórias pessoais e sociais, tais como bens, serviços, meios, recursos, símbolos, valores, identidades, capacidades, oportunidades, aptidões e interesses.168 167 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2. p.2. (grifos do editor) 168 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Os modos de produção do poder, do direito e do senso a comum. In: Idem. A Crítica da Razão Indolente. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. p.266-7. Mais adiante, especificamente nas (páginas 284 a 290), o autor as mais variadas formas de poder: o patriarcado é uma forma de poder que privilegia o espaço doméstico; a exploração privilegia o espaço da produção; o fetichismo das mercadorias tende a se apropriar do espaço do mercado, traduzindose em uma forma autônoma de poder; a diferenciação desigual tende a privilegiar o espaço da comunidade, caracterizando-se pela sua ambigüidade em detrimento das demais formas de poder; a dominação privilegia o espaço da cidadania (acredito que seja a forma de poder que traduz os anseios dos trabalhadores rurais sem terra), pois se trata de uma forma de poder institucionalizada, reflexiva e que transita nas mais variadas esferas de poder e, por último, a troca desigual, que busca se constelar com o patriarcado de múltiplas formas entrecruzadas. 123 Dentre as variadas definições de poder elaboradas pelo autor, há uma delas que traduz com pertinência a concepção de poder almejada pelo JST. Seria a “dominação”, ao passo que, esta tende a privilegiar o “espaço da cidadania”, aproximando-se das inquietações dos trabalhadores rurais sem terra imbricados no MST. Pois, trata-se de uma “forma de poder institucionalizada, auto-reflexiva e que transita nas mais variadas esferas”. O jornal traduzia as dificuldades da luta em esperança, sinalizando um caminho para a superação. Atentava para a questão dos discursos proferidos pelo governo Sarney acerca do “pacto social” por ele arquitetado e, ainda, salientava que A burguesia através da televisão vai manter a atenção do povo na Assembléia Nacional Constituinte, querendo mostrar à opinião pública que aí está a saída para todos os problemas, quando sabemos que a maioria dos Deputados e Senadores eleitos se constituem em verdadeiros representantes dos industriais e dos latifundiários.169 A fonte evidenciava o desconforto do governo frente à política econômica vigente, e pontuava seu interesse em manter reunidos trabalhadores e patrões em constante diálogo, sem precisarem recorrer a procedimentos grevistas como ferramenta de pressão social. Segundo o jornal, “na prática, essa postura do governo induz os trabalhadores a aceitarem salários e preços dos produtos agrícolas baixos e não recorrerem a greves reivindicatórias”. A animação dos participantes no III Encontro Nacional realizado em Piracicaba-SP, pelos integrantes do MST, confirmava essa possibilidade. Destacaram-se os quatro itens que fizeram parte da pauta aprovada no Encontro, sintetizando os caminhos a serem trilhados pelos integrantes do movimento: 169 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2. 124 1) A organização nas bases promoverá a transformação do Movimento dos Sem Terra em movimento de massa, organizando-o em núcleos e comissões, possibilitando ampla participação dos lavradores. 2) Promover a formação política dos trabalhadores em todos os níveis e capacitar os trabalhadores rurais para que possam dirigir com clareza a luta dos sem terra e dos assentamentos em todos os estados. 3) Priorizar a articulação com trabalhadores da cidade e do campo para levarmos as lutas em conjunto. Para isso precisamos participar ativamente dos sindicatos e do partido para somar força a alcançar nossos objetivos [grifos meus]. 4) Lutar para tornar cada vez mais autônomo o nosso movimento, mantendo-nos dentro do movimento sindical e ao lado das forças que nos apóiam.170 Nesse ínterim, percebe-se que o movimento, apesar de já estar consolidado em todo o país, preparava-se para os embates políticos no calor da elaboração e promulgação da nova Constituição do país. Cabe atentar para o explicitado no item três, ao evidenciar o desejo dos trabalhadores sem terra em se articularem às forças políticas urbanas, ponto, aliás, determinante para a noção de unidade do movimento. Não por acaso, nesse encontro decidiu-se, que a partir de então, o MST apoiaria todas as atividades promovidas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), corroborando o propalado no item em destaque. Outra particularidade desta edição foi a presença de Luiz Inácio Lula da Silva no Encontro, à época Presidente do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse evento, Lula afirmou: “o Sem Terra é, sem dúvida, um dos movimentos de trabalhadores mais sérios que temos neste país”. Para ele, “a grande questão é fazer a classe171 trabalhadora compreender a 170 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2. O presente trabalho opta pela definição de classe social evidenciada por: THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.12. Essa opção dá-se pelo fato de sua definição corresponder melhor às experiências de lutas dos trabalhadores rurais sem terra (objeto de análise da pesquisa em tela). Para tanto, o autor não atribui ao conceito de classe o termo “estruturas”, nem tampouco “categoria”. Concebe-a como “algo que ocorre efetivamente nas 171 125 ligação entre luta diária pela sua sobrevivência e a luta política geral para chegar ao poder”172, ou seja, na perspectiva dos trabalhadores rurais sem terra, a luta política seria concatenada à luta pela reforma agrária. Porém, nota-se que, naquele período, o ideal do movimento reforçava o título do próprio Encontro: “Vamos construir o projeto político para a classe trabalhadora”. Por meio do título “Como enfrentar esta crise”173 restaurava-se parte das idéias do texto anterior, pontuando certo pessimismo quanto à postura da “nova república”, pois, para os sem terra, esta em nada colaborou para a implementação da Reforma Agrária no país. Entretanto, salientou-se que a cúpula do governo Sarney, associado aos interesses pessoais dos governos e parlamentares filiados ao PMDB e ao PFL (atualmente DEM), usariam de muitos artifícios para não tirar do papel o ideal de reforma agrária plena e democrática propalada pelos trabalhadores rurais organizados acerca do MST. Nesta mesma edição, o editorial informa que “dos 559 constituintes, o número de deputados que apóiam a reforma agrária não chega a 60”. Alerta, sobremaneira: “é bem provável que a Lei que sair sobre a reforma agrária dessa Constituinte seja pior do que o Estatuto da Terra”174. relações humanas”, evidenciando a “noção de relações históricas”. O autor define a noção de classe como “formação social e cultural”, observando que esta emerge de “processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico”, experiências estas que perpassam profundamente o fazer social dos trabalhadores. 172 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2. 173 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2. 174 Antonio José de Mattos Neto, a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida por Estatuto da Terra, implantada no início dos anos 1960 (fase inicial do Regime Militar), e implementada ao longo deste, trazia consigo o objetivo de promover “não só a produtividade econômica e a estabilidade das relações sociais entre proprietários e não proprietários, mas também o maior acesso à propriedade rural”. Apesar de ter sido criada no calor do regime militar, pode-se afirmar que essa Lei evidencia um “certo desejo” de “promover o desenvolvimento rural”. Porém, a historiografia registra que “a sua aplicabilidade tornou-se insatisfatória para os fins a que veio”. Segundo o autor, “a sua incipiente aplicação” promoveu de toda sorte, a “maior concentração da propriedade agrária”, fato este que motiva a contestação feita pelos trabalhadores rurais sem terra. MATTOS NETO, Antonio José de. A Questão agrária no Brasil: aspecto sócio-jurídico. Projeto História. n.33. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, dez. 2006. p.97-118. 126 Posta essa questão, convocaram-se todos os trabalhadores rurais para se prepararem para uma grande caravana à Brasília, nos dias em que a Lei da Reforma Agrária entraria em pauta para votação. Vamos nos preparar para recuperar a terra que nos pertence. Vamos transformar o dia 25 de julho num grande dia de mobilização nacional de todos os trabalhadores rurais. Terra e poder não se ganham, se conquistam! [grifos do editor] O trecho revela uma proposta de luta para o Movimento e evidencia a identidade política do jornal, ao passo que este se empenha sensivelmente a incutir nos trabalhadores um sentimento de pertencimento a um grupo pautado por um interesse comum – o acesso à propriedade da terra e mudanças mais estruturais para o país. A frase “Terra e poder não se ganham, se conquistam” revela a tensão política a se desenvolver nas próximas décadas, evidenciando que o jornal não pretende somente o acesso e a permanência do trabalhador na terra, mas almeja, sobremaneira, o acesso ao poder. Evidencia o interesse na ocupação do espaço político para, então, inferir as suas propostas de lutas no que diz respeito às tomadas de decisões no país. Tal pretensão geraria certo desconforto nas representações sociais e políticas das elites brasileiras (até porque a história tem conferido que estas costumam reagir eficazmente quando por alguma razão sentem-se ameaçadas): A burguesia industrial insurgiu-se contra a promulgação de leis sociais por temer a investida do Estado nesse campo. Os industriais alegavam que tal procedimento, num país de fraca industrialização, predominantemente agrícola, abriria brecha para a revolução socialista que, por sinal, começaria pela destruição dos grandes proprietários de terra.175 175 CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 19201945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. Desbravadora da hipótese de 127 Nesse cenário de tensão e poder, o Jornal dos Trabalhadores Rurais clama pela ocupação simbólica de Brasília (DF), no intuito de mostrar aos Constituintes a força da organização política que emanava do campo para a cidade, fruto do amadurecimento das mais variadas experiências de lutas e das transformações históricas. Conforme o editorial de maio de 1987, os trabalhadores rurais sem terra deveriam somar forças para realizarem um enorme abaixo-assinado com milhares de assinaturas de lavradores, anexando-o em seguida a três projetos de Leis na Constituinte. Para a Executiva Nacional do MST os projetos contemplariam os seguintes pontos: 1) Um sobre nossas leis para a reforma agrária; 2) outro sobre o direito dos trabalhadores, incluindo a parte dos urbanos e os direitos de previdência e aposentadoria para as mulheres da roça; 3) e um terceiro sobre a soberania nacional – contra a exploração dos estrangeiros e o pagamento da dívida externa que, aliás, já foi paga muitas vezes.176 Desta maneira, o jornal mobilizaria suas bases no sentido de propagar a conscientização da importância desta ação, demonstrando qual o caráter político da Constituinte. Também informa que “devemos mobilizar o povo, fazer concentrações, passeatas e preparar a grande caravana à Brasília. Essa mobilização vai ser uma escola política para nossas bases”177. E na seqüência pontua: “vamos compreender que os trabalhadores somente conseguirão mudar as leis através da organização e da pressão popular”178. que a imprensa deve ser utilizada como fonte e objeto da pesquisa histórica, a autora salienta que, dentre outras hipóteses de sua pesquisa com o Jornal O Estado de São Paulo, “os intérpretes das luzes ao se fazerem passar por representantes de um poder universal e impessoal procuraram tornar respeitáveis e inquestionáveis as decisões que emanavam de sua vontade pessoal, ditadas por seus interesses próprios” (p.357). 176 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. MST, maio de 1987. p.2. 177 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. MST, maio de 1987. p.2 (grifos do editor). 178 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. MST, maio de 1987. 128 Em junho de 1987179, o jornal traçou uma breve trajetória de José Sarney desde a sua passagem pelo PDS até a sua atuação no Colégio Eleitoral, quando era Presidente do Senado, apontando “como o Homem que comandou a derrubada da Emenda Constitucional que previa as eleições diretas para o país”. Denuncia a corrupção ultrajante no seio do governo Sarney, além de sinalizar para a organização sólida do MST. Por fim, salienta que para que “Sarney pudesse ter apoio e se manter no poder, enterrou todos os projetos de mudanças na sociedade, tais como a reforma agrária e todos os projetos para a área da saúde e da educação”. Frente a isto, ao cair nas graças dos políticos, satisfez também os interesses dos empresários e dos latifundiários. No mesmo texto evidencia-se que a “demissão de Dante de Oliveira, do Ministério da Reforma Agrária e Desenvolvimento, representava que a Reforma Agrária não será realizada neste governo”. Em agosto do mesmo ano o editorial demonstra certo cansaço político ao transcorrer da luta. Faz mais de um ano e meio que cerca de oito mil famílias sem terra estão acampadas e existe mais de 500 áreas com conflito de terra, à espera de soluções [...]. O máximo que o governo realizou foram algumas desapropriações e alguns assentamentos precários, onde falta tudo. Na verdade, só demonstrou que não quer fazer reforma agrária.180 Nesse ínterim, o jornal denunciava a violência no campo afirmando: “esta violência é sinal de que no confronto político e ideológico, os trabalhadores estão 179 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.63, ano VI. MST, junho de 1987. p.2. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.65, ano VI. MST, agosto de 1987. p.2. Esta edição traz a informação de que foi finalizado o abaixo-assinado contendo um milhão de assinaturas para ser entregue junto com o projeto de reforma agrária aos Constituintes. Denuncia que a UDR está usando da violência como forma de preservação do latifúndio e intimidação das forças sociais: trabalhadores e líderes religiosos. 180 129 com a razão” 181 . Porém, percebe-se que há os propósitos do MST; se afirmar enquanto força política e desenhar com precisão o seu interesse frente às forças políticas instituídas: Na luta concreta pela terra, vamos nos organizar e nos preparar para as ocupações massivas [grifos meus]. A burguesia, a UDR, o governo e a “justiça” sempre trataram nossos direitos pela terra como uma questão militar [...]. Somente com muita luta, devemos conquistar e assegurar o nosso direito de ter um pedaço de terra para produzir e garantir o sustento de nossa família.182 Não obstante, a pesquisa tem evidenciado com freqüência certa continuidade das discussões anteriores com as publicações atuais do jornal. Este se reporta a um passado não muito distante para explicar o presente vivido pelos trabalhadores rurais, pretendendo, desta forma, a construção da memória dos trabalhadores egressos do Movimento, motivando-os a lutarem e buscarem, junto com os demais militantes, as conquistas almejadas. Os avanços só ocorrerão se os trabalhadores pressionarem. Foi assim, no tempo em que o Estatuto da Terra estava em vigor, e será assim com a nova Constituição. Os ganhos [grifos meus] da classe trabalhadora se darão pela luta, pela pressão, pela mobilização e pela ocupação de terras [...] as desapropriações feitas sempre foram resultados de ocupações e pressões. Não será diferente agora com a Nova Constituição.183 Perseguiam-se as ações que deveriam ser colocadas em prática para que os trabalhadores rurais tivessem acesso a terra, o que era compreendido pelo 181 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. Sessão “Violência”. MST, junho de 1987. p.9. Figura os seguintes dados: “de janeiro a junho deste ano já foram assassinados 47 trabalhadores rurais de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT)”. Além do mais, o jornal evidencia que “ocorreram 24 mortes por acidentes de trabalho e 24 pessoas feridas. Também morreram 13 bóias-frias cortadores de cana em acidentes de caminhão. Para o Ministério da Reforma Agrária (MIRAD) – órgão do governo federal, foram assassinados cerca de 60 trabalhadores rurais nesse mesmo período, e outras 55 pessoas também morreram em conflitos no campo, incluindo garimpeiros, índios e trabalhadores rurais bóias-frias”. 182 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.63, ano VI. MST, junho de 1987. p.2. 183 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.66, ano VI. MST, setembro de 1987. p.2. 130 editorial como um “ganho” para os trabalhadores, alertando que este só se concretizaria com “a pressão, a mobilização e a ocupação de terras”, traduzindo as experiências de luta a serem intensificadas a partir de então, buscando legitimar o Movimento e suas ações. Sob o título “Lutar para conseguir grandes vitórias”, o jornal demonstrava desânimo e descrença nas ações do governo, até então imbuído das promessas em fazer a reforma agrária, pautando-se pela legalidade. Descrente dessa possibilidade, o periódico apontava a princípio para o fato de que: “em nossas discussões ficou claro que a luta pela conquista da terra passa também pela conquista do poder e que a reforma agrária é uma necessidade que independente de ser legal ou não, ela terá que ser feita na Lei ou na marra” 184 , corroborando a afirmação de que a “propriedade da terra representa prestígio social porque implica no poder econômico” 185 (grifos meus). O jornal passava a idéia de continuar a organização de grandes ocupações de terras de modo a “solidificar a construção da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT)”. Desta forma, almejava o fortalecimento das mobilizações em larga escala e a consolidação das forças políticas de esquerda, eminentes no campo e na cidade, evidenciando a pretensa sedução pela ascensão ao poder e um enorme desejo de desnudar o Estado que a elite brasileira há muito tempo vinha alimentando. 184 O Editorial revelava confronto e negociação quando denunciava a falta de interesse do governo em promover a reforma agrária de forma democrática, ampla e sem conflitos e chama a atenção para a extinção dos órgãos responsáveis pela “questão agrária” com sua subseqüente substituição de nomenclatura: SPRA, IBRA, INDA, INCRA e INTER/MIRAD – um substituindo o outro. Para o jornal dos trabalhadores rurais, “não é mudando o nome do órgão responsável que se fará a reforma agrária, mas sim com a desapropriação e distribuição equânime das terras”. Também foi denunciado que o mesmo Decreto que extinguiu o INCRA instituiu a “Proibição de desapropriação de qualquer área em produção”. Segundo esta fonte “este item dá mais argumentos para os latifundiários emperrarem as desapropriações na justiça”. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.68, ano VI. MST, dezembro de 1987. p.2-3. 185 COSTA, Emília V. Política de Terra no Brasil e nos Estados Unidos. In: Idem. Da Monarquia à a República: momentos decisivos. 7 ed. São Paulo: Unesp, 1999. p.172. 131 O Estado é concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis para a máxima expansão do próprio grupo; mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motora de uma expansão universal [...] o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superamento de equilíbrios instáveis entre os interesses do grupo fundamental e dos grupos subordinados.186 Os editoriais publicados na década de 1980 (conforme temas explicitados na tabela 4) faziam denúncias contundentes acerca da política do governo transitório de José Sarney, do governo de Fernando Collor de Mello e no do seu substituto Itamar Franco. Inclusive, cuidou de pôr à vista as atitudes violentas da UDR a respeito dos assassinatos ocorridos no campo, e oficializou a afirmação dos trabalhadores rurais enquanto sujeitos históricos no cenário político, sinalizando o perfil de Estado que o jornal e os trabalhadores rurais almejavam. Os temas dos editoriais revelavam o nível de participação dos trabalhadores rurais e suas principais reivindicações, explicitadas inclusive na Constituinte, pela apresentação de suas propostas e organização do abaixo-assinado encaminhado ao Congresso Nacional, visando que os seus projetos fossem apreciados pelos Constituintes. Tal participação configurou-se num “ensaio” para a efetivação de ações um tanto mais sólidas no que tange às pressões sobre o governo e a sociedade para que mudanças sociais fossem feitas no campo, respeitando-se, sobremaneira, os princípios da classe trabalhadora. Em face disso, a persistência do MST, fez dele um movimento social de credibilidade, atitude e modernidade. O seu caráter moderno confirmou-se pela sua preocupação com a produção e com a educação continuada de seus militantes. Não 186 GRAMSCI, Antonio. Análise das situações. Relações de forças. In: Idem. Obras Escolhidas. Vol.I. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p.330. 132 por acaso, a sua primeira preocupação pautava-se pelo viés da “economia doméstica” e a segunda pelo prisma da “expansão do MST e da manutenção de seu habitus militante” 187 . Ademais, torna-se perceptível a sua tentativa de concentrar grande parte de seus esforços no incentivo ao acesso à instrução formal e política [...] evidenciando que este movimento constitui laços de sociabilidade e vivência comunitária em torno de cursos, escolas e programas de ensino cujo objetivo pauta-se pela elevação da consciência de sua base.188 Assim, esse movimento buscava novas forças para interagir politicamente nos rumos das políticas locais, regionais e até mesmo nacionais. 2.4 TENSÕES: O JST EM UMA NOVA LINGUAGEM A partir da segunda metade da década de 1990, o jornal evidenciou, por meio de seus editoriais, certo aprofundamento político de seu conteúdo. Além de manter o foco na reforma agrária, os seus editoriais se debruçaram cuidadosamente sobre outras questões de maior expressão política, tais como: crédito rural, taxas de juros, taxas de câmbio, políticas de preços e, sobretudo, enfrentamento declarado ao governo de Fernando H. Cardoso. Nesse sentido, o jornal deixou transparecer um intenso interesse em alargar a sua margem de comunicação com a sociedade, na tentativa de receber apoio por parte de outros setores, além da sua base de sustentação. Com essa nova postura, pretendia uma maior comoção frente aos grupos sociais organizados em suas bases e articulados politicamente, intensificando alianças com partidos políticos de 187 LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.171. 188 Ibidem. 133 esquerda, instituições professores religiosas, universitários, organizações universidades, estudantes, não-governamentais, advogados, sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos e também com pessoas comuns. Pelo teor dos textos analisados, confirma-se a pretensão do jornal em socializar seus anseios e mostrar como o poder público se portou frente às questões sociais e, de forma mais precisa, frente ás aspirações da classe trabalhadora. A pertinência desta observação pauta-se pela linguagem desafiadora que o jornal adotou nos editoriais, reportagens e entrevistas, adquirindo um perfil mais elaborado, politizado e mais acadêmico, deixando perpassar a idéia de que o nível de instrução dos trabalhadores rurais sem terra havia se elevado. Por outro lado, percebe-se que ao assumir essa nova tendência (politizada e acadêmica), descortina-se um indício de que o periódico atuava para além do seu circuito de circulação, referindo-me ao público interno ao Movimento, nos acampamentos e assentamentos. Ao assumir postura diferente da anterior, desenhou-se um novo cenário para que o jornal protagonizasse como sujeito do Movimento (embora a pesquisa o compreenda enquanto tal desde o seu surgimento), ampliando o seu raio de atuação a outros espaços públicos, conforme salientado anteriormente. Essa mudança de perspectiva, já em meados da década de 1990, a linha editorial fez com que o jornal tornasse mais preciso nas suas reivindicações, adquirindo mais clareza na sua linguagem. Nesse mesmo período, o país abriu suas fronteiras econômicas ao modelo econômico do neoliberalismo189, contribuindo para 189 Sobre a relação do neoliberalismo com os movimentos sociais ver: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005 (especialmente o capítulo três). Sobre o assunto, o autor assinala que, com “a eleição de Collor e a vitória do projeto neoliberal, o qual teve continuidade no governo Itamar e foi aprofundado pelo governo FHC, houve um retrocesso político para as classes trabalhadoras e, ao mesmo tempo, implicou num refluxo para a esmagadora maioria dos movimentos 134 que a atuação do periódico mobilizasse outros sujeitos sociais que se erguessem contra essa tendência econômica mundial, incorporando ao Movimento outros agentes sociais: estudantes universitários, professores, pesquisadores, funcionários públicos de alto e baixo escalão, pessoas comuns, trabalhadores rurais e urbanos, operários, religiosos, entre outros. Dessa forma, o Movimento adquiriu um caráter massificador, legitimidade e visibilidade perante a opinião pública, no sentido de compreender que Houve, na década de 1990, no Brasil, um processo intenso de concentração de renda, de redução de gastos sociais do Estado com saúde, educação, habitação, etc., de degradação das condições de trabalho e salários e de aumento das taxas de desemprego [...]. As políticas neoliberais penalizaram, também, os pequenos produtores agrícolas, representantes da chamada “agricultura familiar”.190 Outro fator que merece destaque na leitura e interpretação desses editoriais era a oposição declarada ao governo de Fernando H. Cardoso, em seu primeiro e segundo mandato. A posição política do jornal, certamente, esteve associada à conjuntura política vigente, que favorecia os seus anseios à luz da “redefinição no novo plano internacional, em que se pressionava para criar soluções para o homem do campo”. sociais populares. O melhor exemplo de tal fato foi o combate ao movimento sindical articulado em torno da CUT, o qual passou para a defensiva, pois ‘o seu enfraquecimento era estratégico para a consolidação do neoliberalismo’, como observa Armando Boito Jr.” (p.150). 190 COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.151. O autor observa que “a discussão sobre o desemprego urbano e sobre a degradação das condições de trabalho e dos salários no Brasil é importante para compreendermos a expansão das bases sociais do MST na década de 1990, pois tal expansão tem, no recrutamento de trabalhadores desempregados e subempregados urbanos, um de seus pilares de sustentação”. Com presença marcante do neoliberalismo na área rural, o autor também destaca o desaparecimento de muitas propriedades de pequeno porte, um dos principais ingredientes que fizeram com que a “grande parte dos pequenos produtores, sem condições de sobrevivência nas cidades, acabasse engrossando as fileiras do MST ou de outros movimentos de luta pela terra que vão surgindo no Brasil ao longo da década de 1990”. 135 Desta maneira, desencadearam-se Pressões políticas oriundas de ONGs internacionais, pressões políticas internas da própria sociedade brasileira, pressões econômicas do Banco Mundial, ávido pela modernização das relações sociais no campo, como condição essencial para a produtividade, e a pressão cultural emergindo com o lançamento do livro Terra de Sebastião Salgado com música de Chico Buarque e texto de José Saramago às vésperas da chegada da Marcha dos Sem Terra à Brasília.191 Os títulos dos editoriais e o número na tiragem do JST expressos nas tabelas abaixo sinalizam para essa hipótese. Embora em termos quantitativos a tiragem desse jornal ainda seja um número considerável, quando se compara com os dados presentes na tabela 3, observa-se um declínio significativo: uma redução de dois a dez mil exemplares. Tabela 5 - Editoriais - 1997.192 Título do Editorial – JST Tiragem Referência Balanço da reforma agrária, em 1996 28 mil ex. SP, Jan/1997, n 165, Ano XVI Uma marcha histórica à Brasília 28 mil ex. SP, Fev/ 1997, n 166, Ano XVI A reação à política de FHC 28 mil ex. SP, Março/ 1997, n 167, Ano XVI Continuamos em marcha contra o neoliberalismo 28 mil ex. SP, Abril-maio/1997, n 168, Ano XVI A cara desse governo: FHC não consegue sustentar o discurso democrático... 28 mil ex. SP, Junho/ 1997, n 169, Ano XVI 191 o o o o o GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e a contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.312. 192 Tabela organizada pelo autor. 136 Tabela 6 - Editoriais – 1998.193 Título do Editorial – JST Tiragem Referência 1998: grandes desafios pela frente 28 mil ex. SP, Fev/1998, n 176, Ano XVI O medo de FHC: a reação do governo... 20 mil ex. o o SP, Março/1998, n 177, Ano XVI o Cresce o desgaste do governo 20 mil ex. SP, Abril/1998, n 178, Ano XVI O desespero de FHC 20 mil ex. SP, Maio-jun/1998, n 179, Ano XVI O governo de FHC e o caos social 20 mil ex. SP, Julho/1998, n 180, Ano XVI FHC entrega a Petrobrás ao capital estrangeiro 25 mil ex. SP, Agosto/1998, n 181, Ano XVI A crise tem nome: FHC 25 mil ex. SP, Set/1998, n 182, Ano XVI A ditadura moderna do governo FHC 25 mil ex. SP, Outubro/1998, n 183, Ano XVI Um pacote ante-social e inútil 25 mil ex. SP, Agosto/1998, n 184, Ano XVII Governo FHC: quatro anos de enrolação 22 mil ex. SP, Dez/1998, n 185, Ano XVII o o o o o o o Avaliando a política interna e externa do governo de Fernando Henrique Cardoso, o editorial intitulado “O balanço da Reforma Agrária em 1996” pontuava três itens cruciais para justificar a precariedade no setor agrícola no período: 1) a redução do crédito rural 2) a alta nas taxas de juros para agricultura familiar 3) taxa de câmbio – supervalorização da moeda nacional em detrimento do dólar, barateando as mercadorias importadas e reduzindo o preço das nacionais, prejudicando o trabalhador rural e agravando, sobremaneira, a situação da agricultura brasileira. O periódico trazia dados comparativos na tentativa de propiciar melhor compreensão da situação da agricultura neste ano e denuncia a postura do governo frente a essa questão: 193 Tabela organizada pelo autor. 137 A área cultivada total na safra deste ano foi de 2% menor do que a de 1980. A renda da agricultura da safra de 1996 foi 49% menor do que a obtida em 1980. A estimativa de produção de 74 milhões de toneladas para a próxima safra será menor do que a produção de 1986.194 Em face disso, o jornal apontava que, só neste ano, o governo havia gastado mais de três bilhões de dólares na importação de alimentos, que poderiam ser produzidos no Brasil. Na mesma linha de pensamento, denunciava que em virtude da política externa do governo, foram sacrificados mais de 400 mil postos de trabalho, deixando o setor agrário um tanto quanto desmotivado. A redução da posição do Brasil na política de exportação de algodão de 1o para 4o lugar, também colaborou para a perda de parte desses postos de trabalho. No editorial de fevereiro de 1997, dentre outras questões, o jornal atribuiu destaque para a Marcha à Brasília195, buscando justificar parte de suas inquietações e revelar alguns dos motivos que levou a organização à efetivação da marcha. Também se explica que nessa etapa de formação do jornal, este já se encontrava totalmente profissionalizado. Seu quadro técnico operava com informações elaboradas por profissionais do meio jornalístico, colaboradores de agências de notícias e, sobretudo, contava com um expediente formalizado com edições de tiragens regulares mensalmente. 194 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.165, ano XV. MST, janeiro de 1997. p.2. 195 Na fotografia a seguir, Douglas Mansur retratou o início da Marcha dos sem terra à Brasília, deslocando-se da cidade de São Paulo. A foto evidencia que “de São Paulo partiu um grupo de 600 sem-terra, após concentração realizada na Praça da Sé, que contou com a presença, dentre outras autoridades, do Vicentinho, na época Presidente da CUT, do Frei Beto e do José Dirceu, Presidente do PT”. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Ano XVI, n.166. MST, fev. 1997. 138 Como salientado no capítulo anterior, o periódico usou constantemente fotografias que registraram as ações encabeçadas pelo Movimento, especialmente a partir de 1983. Nesse sentido, a interpretação destas imagens configura-se como possibilidade de pesquisa, que pode contribuir muito com a interpretação do que representou o JST para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Nessa perspectiva, adverte-se que o uso da imagética foi inserido de modo bastante restrito no jornal, quando este era ainda Boletim, no início da década de 1980. A partir de 1985, a imagem profissional ocupou posição singular ao lado das seções de notícias, mas ainda em cor preto e branco. Ressalto que a fotografia colorida apareceu somente nas páginas do JST a partir da edição de no 188, publicado em abril de 1999, corroborando o “chamado abril vermelho” – uma referência feita pelo Movimento para iniciar suas ações de negociação com o governo e promover as ocupações em todo o país. A foto a seguir é emblemática ao ser enquadrada nas representações sociais dos trabalhadores rurais inseridos no MST, carecendo de uma reflexão acerca desta. A utilização desta fotografia tem como objetivo suscitar “elementos que documentem aspectos do período no qual ela foi produzida”. Portanto, será problematizada como fonte primária no sentido de compreender o “real histórico”196. 196 Grifos da autora. Nessa perspectiva, portanto, Nova arrola em seu texto cinco pressupostos teóricos para justificar a abordagem do uso das imagens como fonte documental na interpretação do passado, problematizando os percursos e as transformações que foram gestadas na essência das tecnologias imagéticas, bem como as suas modificações ao longo do processo de desenvolvimento, trazendo ao debate reflexões epistemológicas a respeito do conhecimento histórico e as principais tendências historiográficas reportando-se ao binômio: “imagem-história”. Cf.: NOVA, Cristiane. A História diante dos desafios imagéticos. Projeto História. n.21 - História e Imagem. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, nov. 2000. p.141-62. 139 Figura 2 - Marcha para Brasília.197 A disposição dos militantes ao serem “enquadrados” na fotografia torna-se peculiar. Organizados em fileiras, confundem-se com a disciplina militar ao se postarem para o enfrentamento ou para apresentações cívicas. Chama a atenção, também, para a ausência ou a invisibilidade da figura feminina no mesmo “enquadramento” da fotografia em tela, embora a pesquisa já tenha revelado que existia uma premissa de acolher, com bom grado, a participação feminina nas tomadas de decisões, como atesta o JST. Outro fator a ser observado é a opção dos militantes do MST em usar camisetas brancas, em vez de vermelhas, revelando uma postura pacífica frente à 197 Foto: Douglas Mansur. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997. 140 opinião pública, ao darem início à caminhada no estado de São Paulo com destino à Capital Federal. Já que nas ações coordenadas pelo movimento: passeatas, ocupações de propriedades ou de prédios públicos, além de outros tipos de protestos, os integrantes do MST usando camisetas ou bonés vermelhos 198 , simbolizando a luta e o enfrentamento. Porém, a ação retratada nesta imagem mostra os militantes vestindo camisetas brancas, sinalizando a abertura de um canal de comunicação entre a sociedade e os poderes constituídos. Ao contrário da representação da cor vermelha, o branco simboliza o diálogo entre as forças politicamente constituídas: de um lado o MST, com sua pauta de reivindicações, e do outro o governo, negando as reivindicações feitas pelo movimento. Não obstante, conclui-se que a opção pela cor branca representa uma trégua, significando a abertura de um diálogo entre o MST, a sociedade e o governo, na tentativa de levar este último a reconhecer a legitimidade das reivindicações apresentadas pelo movimento, buscando soluções para os conflitos presentes no campo, assim, como na cidade. A Marcha à Brasília configurou-se numa tentativa de evidenciar os caminhos da política do governo de FHC, abordando os seus princípios básicos: 1) a luta pela reforma agrária ampla, que realmente resolva os problemas dos 4,8 milhões de famílias sem terra no país; 2) a luta pelo emprego, pois, em virtude da política econômica do governo, em todo o país, havia 18 milhões de desempregados além dos agricultores marginalizados; 3) a luta por justiça, denunciando a situação de 198 No livro Brava Gente, Fernandes indaga acerca do surgimento da Bandeira e o uso permanente dos símbolos no MST. Stedile pontua que “[...] em qualquer organização social, em qualquer movimento social, não é o discurso que proporciona a unidade entre as pessoas na base. O que constrói a unidade é a ideologia da visão política sobre a realidade e o uso dos símbolos; são estes que vão costurando a identidade. Eles materializam o ideal, tornam visível essa unidade invisível. [...] A cor vermelha, por exemplo, caracteriza a tradição de luta, pela identidade da classe trabalhadora, é um elemento ideológico muito forte [...]”. STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.132-3. 141 violência e a inconseqüente impunidade no campo contra latifundiários e policiais militares, que matavam ou mandavam matar trabalhadores rurais em defesa do latifúndio199. Em face disso, esse mesmo número do JST trazia um manifesto de apoio aos trabalhadores rurais brasileiros, assinados por cerca de setenta intelectuais jornalistas, escritores, deputados e membros de 11 universidades italianas - sendo este divulgado na imprensa. O documento demonstra apoio à reforma agrária brasileira, e pede ao Presidente da República o fim da impunidade nos atos de violência no campo. Não obstante, foi publicado quando o então Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, estava na Itália para receber o prêmio de cidadão honoris, promovida pela Universidade de Bolonha. Ao Professor Fernando H. Cardoso: [...] pedimos que dedique um empenho extraordinário para que as condições dos trabalhadores rurais brasileiros, particularmente os que já estão acampados, com as próprias famílias, em latifúndios improdutivos, adquiram uma posição de destaque em sua agenda política, para que a reforma agrária e os recursos para a sua atuação se tornem, de fato, um tema prioritário da ação de seu governo, para que enfim, sejam prontamente condenados às penas previstas pela Lei os que se mancharam com os massacres dos camponeses.200 199 O editorial intitulado Uma marcha histórica à Brasília revela que o jornal assume declaradamente “guerra” contra a política econômica e social de Fernando H. Cardoso. Alerta a população: “é hora de lutar. Não de lamentações. E o MST estará empenhado junto a todas as forças populares e progressistas, para unificação de esforços, organização das bases para construir um grande movimento popular contra a política econômica neoliberal desse governo. Vamos mobilizar, vamos lutar. É o único caminho para quem quiser mudar o Brasil”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997. p.2. 200 Esse documento foi republicado pelo JST em fevereiro de 1997, porém, a fonte não informa em qual jornal italiano o manifesto foi publicado. De qualquer forma, o texto coloca em evidência a justeza do prêmio conferido ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Ao se reportar à violência no campo e à falta de empenho do governante em promover a reforma agrária no Brasil. O documento salienta que a realidade do campo brasileiro “ofende a consciência de qualquer pessoa que luta pela defesa dos direitos humanos, não importando o País a que pertence ou seu credo político. Isso é o que nos impele a erguer a voz e a dirigir, com respeito e firmeza, o nosso apelo ao Presidente da República Federativa do Brasil, nestes dias de visita oficial à Itália”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997. 142 O documento cobrava ao Presidente da República o seu compromisso com as causas sociais, sobretudo, aquelas que diziam respeito à reforma agrária e que, dentre outros fatores, promoviam muitos conflitos e a morte de centenas de trabalhadores rurais. Nesse sentido, destacava que, no período de 1980 a 1997, registrou-se a morte de aproximadamente mil e quatrocentos trabalhadores no campo, vítimas da violência envolvendo a posse da terra, sendo que apenas vinte dos responsáveis por essa violência, foram processados e condenados. Recuperava-se a tragédia ocasionada visando relembrar os massacres de camponeses de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, já conhecidos internacionalmente. Segundo o JST, o documento circulou na imprensa italiana quatro dias antes da chegada da Marcha dos Sem Terra, à Brasília, como se pode observar na reprodução do manifesto datado de 13 de fevereiro de 1997. A imagem a seguir retrata as três colunas de trabalhadores rurais que encabeçaram a composição da Marcha à Brasília, que aportou no Distrito Federal, no dia 17 de abril de 1997. De certa forma, busca-se traçar o percurso da caminhada e sinalizar a quantidade de pessoas incutidas nesta luta nas três frentes abaixo configuradas. 143 Figura 3 - Configuração das três colunas da Marcha à Brasília.201 Frente à proposta da Marcha, cabe observar que a luta contribuiu com o debate político e a geração de ações sociais que, dentre outras coisas, trataram sobre as transformações da sociedade. Nesse ínterim, a ação do jornal, somada às experiências de lutas dos integrantes do MST, fundamentava a hipótese de que ambos se portaram como porta-vozes daqueles que nunca tiveram a oportunidade e/ou não puderam falar ao longo de suas trajetórias. Os Sem Terra falam por nós. Eles nos representam. Nós não podemos protestar porque temos medo de perder o emprego, de exprimir nossas idéias. Preferimos navegar em projetos apenas pessoais.202 No editorial “Reação à política de FHC” era denunciada a pobreza crescente da população brasileira destacando que se torna 201 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997. p.10-1. 202 Entrevista com Milton Santos. O ESTADO DE S. PAULO. São Paulo, 19/01/1997. Ver também: SANTOS, Milton. Território e Sociedade (Entrevista com Milton Santos). 3ª reimpressão. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. p.56-9. 144 cada vez maior o contingente de trabalhadores desempregados ou que sobrevivem de sub-empregos, sem direitos trabalhistas e sendo levados a viverem em favelas ou a morarem embaixo de pontes e viadutos, levados a se prostituírem e serem levados às drogas e ao crime organizado.203 O jornal classificava a política econômica do governo na área rural de desastrosa, pois as informações acima evidenciam uma grande crise. Para isso, basta observar a informação de que o Brasil, país exportador de algodão, passou a importar o mesmo produto. Nesse sentido, o jornal não se esquiva em criticar a inoperância do Ministro Raul Jungman (à época), com relação à implementação da reforma agrária. Segundo o jornal, esse ministro apresentava duas preocupações: a primeira de não negociar com trabalhadores rurais sem terra e a segunda de aparecer na mídia com muita freqüência para contar “mentiras”. Por fim, salienta-se que no dia 17 de abril de 1997 aportaria em Brasília -DF, a “Marcha que certamente marcará a luta contra a política neoliberal do governo FHC” 204 . Nesta se configurará “todo o descontentamento da nação brasileira envolvendo não apenas os trabalhadores rurais, mas todos os setores que defendem um projeto de Nação para o Brasil”205. Portanto, nesse momento, percebe-se que o projeto político do jornal pautava-se além da reforma agrária, propalando a construção de um projeto social para a Nação. Essa idéia seria cotejada pelo mesmo por mais de seis anos, durante todo o período do primeiro e segundo mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, evidenciando a correlação de forças entre governo e movimento social, cujo desfecho desembocaria na ascensão de outras forças sociais ao poder. 203 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2. 205 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2. 204 145 Para o editorial, após sessenta dias de tensão e expectativa, chegava à Brasília a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça206, coroando o seu principal objetivo: a abertura de um canal de comunicação com a sociedade. Essa proposta se tornou real quando o jornal observa que “por onde a marcha do MST passou promoveu debates, reuniões e encontros para esclarecer os problemas da reforma agrária e as questões sociais do país”207. Dessa forma, entende-se que o objetivo de levar à sociedade a informação de que “a política econômica do governo estava acabando com a agricultura familiar, com o emprego rural e com a produção de alimentos”, tornou-se um indicativo de que a Marcha cumpriu o seu papel social, levando parte da sociedade à reflexão de que era possível mudar a realidade por meio da luta e da organização popular. No momento da audiência com o Presidente, lhe foi entregue um manifesto, evidenciando as experiências dos trabalhadores e suas inquietações frente às imposições. No texto figuravam as representações sociais e inquietações gestadas na experiência da luta, reportando-se aos trabalhadores e seus simpatizantes: Eles são homens da terra. Homens que andam entre as cercas, iluminadas pela fogueira dos acampados, vigiados pela multidão de civis e pelas armas do latifúndio; Eles são homens e mulheres que se recusaram a disputar com os ratos o lixo das grandes cidades, para matar a fome; Eles dizem com seus gestos que nesse país há lugar para todos. Que terra ociosa é crime num país de milhões de migrantes; Eles mostram à 206 Após percorrer mais de 1000 km Brasil adentro, a Marcha pela “Reforma Agrária, Emprego e Justiça” aporta em Brasília no dia 17 de abril de 1997. Junto a esta se reuniram as mais diversas forças políticas da sociedade brasileira (artistas populares, sindicalistas, partidos políticos, movimentos populares e democráticos, estudantes, professores, jornalistas e pessoas comuns). Apesar deste evento ocasionalmente ter partido da iniciativa do MST, torna-se inegável a insatisfação popular com relação à gestão do governo Fernando H. Cardoso naquele momento. A Marcha em si constituiu-se numa grande aula de política e na efetivação da democracia em nosso país. Segundo o jornal, o Presidente FHC salientou que o apoio destas forças sociais à Marcha não representava muita coisa, pois elas “não passavam de oportunistas que pegaram carona no MST”. Este fato foi contestado pelo Movimento, pois foi por meio do apoio destas, que a Marcha ganhou maior visibilidade, tendo se projetado nacional e internacionalmente, forçando o governo brasileiro a abrir canal de comunicação com os trabalhadores rurais sem terra. 207 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2. 146 nossa indiferença as mãos afeitas ao trabalho e os olhos acesos, afeitos de sonhos. Eles carregam o fogo sagrado da esperança; Eles exigem o fim da violência no campo e a sociedade indaga com eles porque não foram punidos os assassinos e mandantes do massacre de Corumbiara e Eldorado dos Carajás? E nós, artistas e intelectuais exigimos, com eles, Reforma Agrária como condição para recuperar a decência, a dignidade e construir a democracia.208 O manifesto traduzia as representações sociais das experiências de lutas vividas pelos trabalhadores rurais sem terra. O texto remontava essa trajetória, mas também, recuperava a idéia de omissão do poder público ao negar a violência no campo, fruto da má distribuição da terra. O documento destacava o anseio por justiça social, sobretudo, pela punição aos envolvidos nos massacres de trabalhadores rurais de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, sintetizando a luta desse grupo social em constante movimento. O editorial intitulado “Continuamos em marcha contra o neoliberalismo”209 registrava com precisão como se deu essa audiência com o Presidente, pontuando, que para o MST, esse foi o momento em que se confirmou a representação que os trabalhadores rurais tinham dessas audiências, traduzidas como um jogo de futebol. “Elas não determinam o resultado, apenas registram o placar estabelecido no campo. O jogo foi a Marcha. A chegada à Brasília e a manifestação popular foram a comemoração”, comprovando que era preciso mudar concepções para transformar estruturas secularmente cristalizadas. Ao sentar-se à mesa com o Presidente da República, foi dito pelos integrantes do MST que eles 208 O Documento entregue ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, assinado por Oscar Niemeyer - Arquiteto; Ângelo Antonio - Ator; Paulo Betti - Ator; Leonardo Boff - Sociólogo; Letícia Sabatela - Atriz; Luiz Fernando Veríssimo - Escritor; Lucélia Santos - Atriz e Produtora; Chico Alencar - Professor; Sérgio Lessa - Filósofo; José de Sousa Martins - Sociólogo; Francisco de Oliveira - Sociólogo; Ferreira Gullar - Poeta; Jurandir Freire Costa - Psicanalista; Emir Sader - Professor e Escritor, entre outros, tornou-se alerta para que a política de Estado do governo federal ganhe uma outra configuração. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, março de 1997. p.3. 209 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abril/maio 1997. p.2. 147 Não estavam ali para fazer reivindicações pontuais sobre a reforma agrária. Estavam ali para apresentar o resultado do debate que se tinha feito com a sociedade e para manifestar a sua oposição ao seu projeto de governo.210 [grifos meus] Nesse momento, reafirmou-se a posição do movimento enquanto grupo social e porta-voz da população pobre do país, ao passo que se denunciava a política vigente como algo prejudicial à nação. Percebe-se que além da denúncia formalizada nessa oportunidade, os Sem Terra tinham o cuidado de levar consigo testemunhas representes de outros setores da sociedade: “os artistas, a igreja, o sindicalismo, o movimento das mulheres e os povos indígenas”211, para dizerem ao governo o tamanho de sua insatisfação. Em suma, um dos resultados fundamentais da Marcha foi a visibilidade atribuída à chamada “questão agrária”, ao desemprego massivo, à fome e à vulnerabilidade dos trabalhadores rurais frente à política econômica imposta ao país e o desafio de sobreviver nas interfaces do mundo globalizado. Segundo o JST, a marcha criou a “oportunidade para a população se manifestar contra o projeto neoliberal deste governo de modo a exigir mudanças na política econômica vigente no país”212. O editorial evidencia que a experiência da Marcha possibilitou a percepção de que os grupos que lhe apoiavam, apresentavam também um significativo desejo de lutar. Com isso, demonstrou-se que “os excluídos de qualquer benefício econômico, social ou político não estão vencidos”, principalmente ao afirmar que “por onde a marcha passou deixou um rastro de esperança”, mobilizando os mais diversos setores da sociedade. 210 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abr./mai. 1997. p.2. 211 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abr./mai. 1997. p.2. 212 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abr./mai. 1997. p.2. 148 Os protestos urbanos a respeito dos direitos comuns tornam-se freqüentemente mais grandiosos e visíveis do que os rurais, e mesmo estes não sendo uma característica das práticas agrárias, eles ainda podem nos oferecer uma porta de entrada para o exame das questões mais gerais do direito comum.213 Nessa perspectiva, a análise dos editoriais confirmou a hipótese de que o jornal do MST, ao longo do primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, teceu ações de oposição para que o seu segundo mandato não fosse concretizado, pretendendo levar ao poder a chapa Lula/Brizola. Esse ideal fez parte do quarto item da pauta implementada em 1998 pelo MST. O editorial intitulado “1998: grandes desafios pela frente”, descrevia o IX Encontro Nacional do MST, realizado nas dependências da Universidade Federal do Espírito Santo e chamava a atenção para os cinco pontos da pauta a ser aprovada e cumprida ao longo deste ano: 1) Massificar a luta pela Reforma Agrária, mobilizar os companheiros para juntos desmascarar a política de FHC; 2) Mobilizar os assentamentos para recuperar as conquistas do Procera; 3) Melhorar a nossa organicidade interna, nos assentamentos e acampamentos e em todas as atividades do MST por meio de nossas práticas e valores; 4) Participar ativamente da campanha eleitoral, procurando engajamento à candidatura Lula-Brizola, mobilizando nossas bases e politizando a sociedade, transformando a eleição presidencial numa grande derrota ao modelo neoliberal; 5) contribuir com as demais organizações sociais, do movimento sindical, das igrejas, dos intelectuais e dos militantes em geral para a construção de um projeto popular para o Brasil.214 [grifos meus] Os pontos acima destacavam a retomada do debate sobre a reforma agrária, buscando a recuperação de projetos que visavam à melhoria da qualidade de vida nos assentamentos. Outro ponto que chamava a atenção era o apoio declarado do 213 THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. p.102. 214 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.176, ano XVI. MST, fev. 1998. p.2. 149 MST à campanha eleitoral para a presidência da República, em 1998. Apesar do cenário político confortável ao qual desfrutava o governo da situação, o jornal em tela acreditava na vitória dessa chapa, vista como oposição, mantendo-se permanentemente engajado na luta pela reforma agrária. O objetivo de levar ao poder um partido de tendência de esquerda se configuraria no maior desafio para o MST nos próximos anos. Para isso, o Movimento atentava-se para a construção de um projeto popular contemplando reformas de base para o país (desejo latente das forças políticas progressistas desde a derrubada de João Goulart, em 1964215). Descontentes com o cenário político vivido pelos trabalhadores rurais e urbanos, além de grupos sociais organizados, os demais editoriais216 preocupavamse em enfrentar, denunciar e questionar uma série de práticas do governo, setores da elite e da própria mídia. No editorial intitulado “O medo de FHC” era explicito que o jornal não poupou adjetivos para exemplificar o comportamento da “elite”, representada pela “mídia e pelo governo”, que buscava a toda sorte não realizar a reforma agrária e “combater aqueles que lutam por ela”, ou seja, contestar as ações dos integrantes do MST. 215 A rigor, a proposta de reforma agrária almejada pelo então João Goulart pautava-se pela “alteração da § 16 do Art. 141 da Carta Constitucional de 1946, em que condicionava as desapropriações de terra a previa e justa indenização em dinheiro”. Tal procedimento, sem dúvida, inviabilizava o pretenso desejo de ampliação de distribuição de terra. A atitude do Presidente gerou desconforto nos mais diversos setores da sociedade: “proprietários rurais, setores da igreja, congressistas liberais e conservadores e setores da imprensa”, ambos denunciaram o teor revolucionário da reforma propalada por Goulart. Segundo Darcy Ribeiro, o que “Jango tentou fazer não tinha nada de ousado nem de radical. Ele dizia que se o número de proprietários rurais fossem elevados de 2 para 10 milhões, a propriedade seria muito melhor defendida [...] possibilitando mais pessoas a comer, a se educar melhor, a viver mais dignamente. Por isso, é que Jango, latifundiário, queria fazer a Reforma Agrária para defender a propriedade e assegurar a fartura”. Cf.: TOLEDO, a Caio N. de. O governo Goulart e o golpe de 64. 17 reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1997. p.55. 216 Paulo Sérgio Pinheiro assinala que “os jornais fornecem generosas informações sobre a sociedade de uma época, sobre as condições de vida (ou de sobrevivência) das classes subalternas, sobre as suas manifestações culturais e se configuram em verdadeiros instrumentos para a reconstrução da dimensão política da história social no país”. Cf.: FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa Operaria no Brasil: 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes, 1978. p.13. 150 Para o jornal “houve uma reação coesa das elites para combater a mobilização dos trabalhadores [...] todos os meios foram utilizados para tentar descaracterizar, inibir ou desmoralizar as ações reivindicatórias dos trabalhadores”217, ou seja, tornou-se crescente a tentativa de isolar o Movimento dos Sem Terra. O editorial denuncia que “o governo tentou nos caracterizar de violentos” e essa idéia foi divulgada amplamente pelos jornais de grande circulação. As ações de ocupações de prédios públicos passaram a receber mais espaços na mídia sendo incorporadas, posteriormente, aos discursos de alguns intelectuais que caracterizaram estas ações como “práticas instáveis com inclinação para violência, justificando a defensiva do estado”218. Para o jornal, essa postura já era esperada, uma vez que o próprio editorial confirmava que alguns meios de comunicação da imprensa (não citados) foram mais além: “buscaram criar um clima de tensão social e a exigir do governo uma ação mais enérgica contra os trabalhadores”. A rigor, manifestação semelhante teria ocorrido nos anos 1930, quando “a imprensa paulista expressa o temor dos dominantes com relação à classe trabalhadora desempregada, desencadeando um intenso debate sobre a questão social no período [...] cuja preocupação voltava-se para os sem trabalho”219 (grifos meus). 217 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, março de 1998. p.2. 218 FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2002. p.297-8. O autor justifica a presença do Estado na tentativa de conter a fúria dos trabalhadores rurais, mas não apóia a violência cometida pelos policiais militares estaduais contra as ações massivas dos trabalhadores. Alerta que “a modernização do campo e a concentração da propriedade” tornaram-se fatores importantes para estas mobilizações agrárias. Destaca que “em 1980 os minifúndios (propriedades agrícolas com menos de 10 hectares) representavam 50,4% do número de estabelecimentos, ocupando apenas 2,5% da área total de terras. Ao outro extremo estavam os latifúndios (unidades com mais de 10 mil hectares) constituindo apenas 0,1% dos estabelecimentos, mas detinham 16,4% da área total de terras”. Os dados apresentados pelo autor por si só justificam as ações do MST. 219 CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 19201945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. p.231-2. Os sem trabalho é uma referência ao projeto liberal propalado pelo Jornal O Estado de São Paulo. À época, houve uma enorme repressão à mendicância, pois esta era “entendida como um problema social dos mais graves ao passo que se tratava de elementos negativos, prejudiciais à nossa vida e nocivos ao nosso 151 A posição do jornal era de que as suas reivindicações não justificavam todo esse esforço do governo e de determinados setores da elite. “O que se cobrava era pouco”. Na verdade, a questão da reforma agrária é histórica e se esse reparo social fosse feito de forma responsável e democrática “não se correria o risco de comprometer as finanças do governo nem o orçamento público, sempre muito bem estruturado para atender os interesses da elite”220. Esta última é compreendida como termômetro, que norteia as ações dos governos, sabendo muito bem o momento certo de entrar e o de sair de situações conflitantes, sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Com isso, o cenário de incertezas estava posto. Não tardou muito para que parte desta elite percebesse que a conjuntura política estava ganhando novos contornos, e que alguns de seus privilégios poderiam ser comprometidos num curto espaço de tempo.221 À luz de uma prática social velada, o JST pontuou que “até então com o massivo apoio da mídia era possível escamotear a gravidade da crise social vivida no país”, porém, o cenário de tensão social era outro: Fome, desemprego, carestia, achatamento salarial, traduzindose em: resistência de camelôs – refúgios dos desempregados nos grandes centros urbanos; greve de professores universitários; saques nas regiões das secas nordestinas; ocupações de prédios e terrenos pelos movimentos de luta pela moradia; caravana dos desempregados; manifestações de motoristas de transportes urbanos; mobilizações da luta pela reforma agrária e dos pequenos proprietários agrícolas por crédito rural.222 progresso”. Nesse momento, a repressão à mendicância pela polícia foi considerada “ato heróico que mostra que somos uma terra civilizada”. 220 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, mar. 1998. p.2. 221 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.179, ano XVI. MST, nov. 1998. p.2. O editorial intitulado “Um pacote ante-social e inútil” trazia manifestação de setores da elite, antes aliados ao governo e que, agora, à luz das tensões sociais criticavam o modelo econômico em vigência. O jornal informava que “um grupo de empresários nacionalistas fizeram manifestos violentíssimos contra o governo de FHC, inclusive a diretoria da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP)”. 222 A rigor, uma vez colocada a questão, não seria possível esconder mais as tensões sociais que o Presidente insistia em negar. Negação esta traduzida pelo jornal da seguinte forma: “não existe crise na agricultura. O que existe é apenas agitação política feita pelo MST, com fins eleitoreiros”. O 152 O editorial intitulado: “Governo FHC: quatro anos de enrolação”, publicado em dezembro de 1998, traduziu como foi a experiência do primeiro mandato do governo de Fernando H. Cardoso: “foram quatro Presidentes do Incra, três Ministros da Agricultura, um Ministro extraordinário da Reforma Agrária e muitas mentiras frente à opinião pública”. O texto salienta que na perspectiva de reforma agrária do governo corroborava a mesma visão conservadora de setores da elite agrária, colocando que “o latifúndio não representa perigo algum para o desenvolvimento do capitalismo e de seu modelo neoliberal”. Nessa lógica, se “o latifúndio não é problema, não há necessidade de se aplicar o remédio da reforma agrária, com uma política ampla de democratização da propriedade”223. Desta forma, o governo passou a atuar na defensiva, agindo nas frentes de assentamentos rurais. Isso significa que, aos grupos de sem terra que se organizassem e resolvessem lutar incessantemente pela sua manutenção na área rural, logo lhes seria concedido uma pequena gleba de terra, uma vez que, a sua ansiedade não se configuraria num problema político. Essa postura se afirmou numa frente de política de compensação social para evitar maiores conflitos no cenário político nacional, escamoteando-se um projeto de reforma agrária ampla, conforme anseio de setores da sociedade e dos próprios trabalhadores rurais. O levantamento feito pelo JST informava que, ao final desses quatro anos de governo, cerca de quatrocentos mil pequenos proprietários perderam as suas terras, quase dois milhões de trabalhadores ficaram sem seu trabalho na agricultura e aumentou a concentração da terra, como atestou também a pesquisa editorial alertava: “é necessário que os movimentos sociais continuem se organizando e lutando não só por seus direitos, mas, sobretudo, contra esse modelo econômico implantado pelo governo de FHC”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.179, ano XVI. MST, maio/junho 1998. p.2. 223 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.185, ano XVII. MST, dez. 1998. p.2. 153 feita pelo IBGE, em 1996. O IPEA revelava ainda, que havia no campo, nesse momento, cerca de 4,9 milhões de famílias sem terra que precisam de reforma agrária, corroborando os dados levantados pelo MST e negados veementemente pelo Presidente da República. Reportando-se aos recursos federais destinados à reforma agrária, a fonte evidenciava que, em 1995, o governo cortou aproximadamente 12% dos recursos aprovados em anos anteriores para essa finalidade; em 1996, eliminou mais 13%; em 1997, 40% e, em 1998, previsão para 1999, corte de 50%, dados que revelavam, por si só, a falta de vontade de se realizar uma reforma agrária. Quanto aos dados de violência no campo, a documentação atestava que mais de 150 pessoas foram vítimas de mortes nesses quatro anos, sendo que, em igual período, registraram-se os dois maiores massacres no campo, perpetrados pela polícia militar: Corumbiara e Carajás. Estando convencido de que houve mais perdas do que ganho ao longo desses quatro anos, o jornal indagou-se: o que esperar de um governo assim, que agora vai começar mais quatro anos224. Os títulos apresentados nas tabelas 3, 5 e 6 sugeriam uma melhor compreensão do embate político vivido no período de 1996 a 1998, envolvendo o MST e o governo. Portanto, os editoriais descortinavam as ações veladas e traziam o vigor do MST, enquanto movimento social, à luz das tensões políticas, demonstrando inclusive sua articulação com os mais variados setores da sociedade. Em suma, em alguns números do jornal existiam certa variação no que tange o teor das pressões feitas ao governo reivindicando a reforma agrária. Porém, 224 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.185, ano XVI. MST, dezembro de 1998. p.2. Provavelmente esse sentimento de tristeza era conseqüência da derrota da Chapa Lula/Brizola à presidência da república, o que tornou cada vez mais distante o sonho da realização da Reforma Agrária almejada pelo MST e seus simpatizantes. 154 os temas evidenciados nas tabelas citadas eram representativos de cobranças políticas de ampla magnitude, reportando-se não apenas aos anseios dos trabalhadores rurais sem terra, mas, sobretudo, pautado por reivindicações de caráter nacional. Nesse cenário de tensão e poder, a pesquisa entende o JST como sujeito histórico, que não se limitou a registrar e a mapear o processo de desenvolvimento das tensões sociais no campo, mas procurou atuar no sentido de intervir e modificar a situação social dos trabalhadores rurais desprovidos da terra em todo o país. As denúncias feitas à sociedade e a constante pressão ao governo contra as privatizações das empresas estatais (Vale do Rio Doce, Petrobrás, Telefonia e a política monetária internacional do governo) marcavam uma nova etapa do discurso propalado pelo jornal. Seus editorais sinalizaram para um significativo enfrentamento aos governos anteriores e, de forma mais precisa, ao governo de Fernando H. Cardoso. Apesar das desigualdades no que tange à correlação de forças entre Estado e movimento social, não resta dúvida de que o cenário configurou-se numa busca constante pelo poder, observando que o jornal não se esquivou do seu papel de informar, denunciar e noticiar as tensões prementes no campo e na cidade. O periódico procurou enfrentar com clareza o projeto econômico apresentado à nação brasileira pelo então Presidente da República, bem como colaborou na construção da identidade do MST e na preservação da memória dos trabalhadores rurais sem terra. Portanto, em alguns momentos, os editoriais buscaram fazer o papel da chamada “grande imprensa”, no que tange ao questionamento das privatizações das empresas estatais e na denúncia formal da ausência de política pública para a implementação da tão propalada reforma agrária a contento. Sem desconsiderar as 155 pretensões políticas do jornal quanto a sua afirmação no poder e/ou a sua constante busca pela promoção de outros grupos sociais por ele representados, tornam-se inegáveis sua oposição aos governos e o enaltecimento de sua bandeira de luta, principalmente, ao buscar, de forma incessante, a reforma agrária como instrumento de redução das desigualdades sociais evidenciadas no país, que serão reveladas nas falas das lideranças entrevistadas pelo jornal e ainda analisadas no próximo capítulo. 156 CAPÍTULO III - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: INSTRUMENTO DE LUTA O jornal é a nossa voz. Fazemos tudo para que seja bem distribuído. Mandamos para os sindicatos que têm consciência dos problemas do campo. No acampamento, fazemos a leitura, estudo mesmo, em grupos.225 225 Entrevista com Fátima Ribeiro, Direção Nacional do MST, Ceará. JORNAL TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, junho de 1989. p.17. DOS 157 O presente capítulo debruça-se sobre as experiências de lutas dos trabalhadores rurais sem terra, aqui representados pelas lideranças do MST, por traduzirem as memórias do cotidiano dos sujeitos sociais imbricados no Movimento. Ao serem inquiridos sobre essas experiências, suas lembranças se potencializaram e ganharam novos contornos, ocupando as páginas do JST, em formato de entrevistas226, sendo este foi percebido como um espaço privilegiado para a difusão de suas falas, no intuito de promoção e construção de uma identidade nacional para o Movimento. A discussão a seguir procura dialogar com as entrevistas, atribuindo visibilidade às lideranças formadas no Movimento, que por sua vez contribuíram com a organização do próprio periódico. Dessa forma, os trabalhadores sem terra desenvolveram-se politicamente com a percepção de recriarem expectativas, não somente no campo, mas também em setores da sociedade em áreas urbanas, já que ambos partilham o desejo de efetivação da reforma agrária para o Brasil. 226 Embora as entrevistas tenham sido elaboradas por jornalistas do JST e não pelo pesquisador, assinala-se que parte das suas questões corroboram as inquietações propostas nesse trabalho, principalmente pelo seu caráter histórico e qualidade das suas narrativas. Tal fato levou, necessariamente, o pesquisador a lançar mão da análise do discurso enquanto metodologia de pesquisa, viabilizando a interpretação das impressões e/ou posições políticas dos trabalhadores tão evidenciadas nos seus relatos que, ao serem analisadas, fizeram com que “o objeto de estudo fosse recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes”, aqui identificados como lideranças do MST ou entrevistados do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Cf.: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, a 1996. p.xiv. BRANDÃO, H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7 ed. Campinas - SP: Unicamp, s/d. Após a seleção das entrevistas, passou-se à etapa de análise, destacando “os aspectos políticos da comunicação do entrevistado, os aspectos psicológicos e éticos”, de modo a valorizar o documento, expandindo o olhar sobre a problemática da ausência de terra para os trabalhadores rurais articulados no MST e as ações impetradas por estes junto ao poder público. Porém, nota-se que as entrevistas anteriores com essas lideranças geralmente apresentaram-se de forma semiestruturada, garantindo ao entrevistado a oportunidade de discorrer sobre o assunto que tinham domínio. Sobre como proceder e analisar entrevistas, ver: LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. a Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 1 reimpressão. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1985. p.41. 158 Também, pretende-se recuperar a presença da mulher nesse cenário de luta, por meio de suas ações e representações nos setores de negociação e da educação. Com contribuições fundamentais para uma melhor organização das atividades no campo, elas buscavam uma redução da desigualdade de gênero presente no Movimento, como ficou explicitado em alguns relatos. Portanto, coteja-se a trajetória dos trabalhadores rurais antes de sua inserção no Movimento, como estes observam e explicam a realidade política e social do país, mas também, de que forma, procuravam intervir nesta no sentido de mudá-la. O capítulo em tela traz à luz as ações que envolviam os trabalhadores rurais sem terra, estabelecendo um diálogo com suas lideranças nas cinco regiões do país, visando descortinar diferenças e semelhanças no que se refere à atuação destes ao se inserirem no MST. Nesta pesquisa, pondera-se que suas aspirações foram compreendidas como experiências de lutas, no sentido da construção de uma história mais ampla que se caracteriza pela introdução dos conceitos de diferenças e semelhanças, no que concerne à interpretação dos discursos das lideranças ao “se fazerem” representantes do Movimento. Desse modo, para a problematização das nuances, particularizou-se uma Unidade da Federação por região do país, sendo: na região Nordeste, o estado do Ceará; na região Sul, o estado do Rio Grande do Sul; na região Sudeste, o estado de São Paulo; na região Centro-Oeste, o estado do Mato Grosso do Sul; na região Norte, o estado do Pará. Para cada uma das regiões, selecionou-se uma seqüência de entrevistas com representantes do MST, assegurando uma melhor percepção do que estava acontecendo nos estados brasileiros onde o Movimento estava organizado. 159 3.1 DIÁLOGOS COM LIDERANÇAS DO MST A partir da análise dos relatos de experiências vividas historicamente pelos trabalhadores sem terra, revela-se a percepção que estes tinham da realidade política e social do país, bem como suas aspirações elaboradas a partir de suas inserções no MST. Porém, percebeu-se que em seus discursos e representações avaliados anteriormente, ao serem decodificados a “percepção do social, não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade, legitimando projetos e justificando suas escolhas e condutas”227. Portanto, nesta trajetória, desvelaram-se sujeitos históricos antes e durante a inserção no Movimento, descortinando as atuações políticas nos momentos de tensão, e levando-os a elaborarem novas perspectivas acerca da realidade política, por eles vivida. Problematiza-se, também, de que forma o jornal evidenciou os conflitos e a participação dos entrevistados nas decisões políticas acertadas no movimento, assim como, suas pretensões enquanto organização articuladora de forças contrárias ao poder instituído. Observa-se a pertinência dos relatos dos entrevistados ao descreverem suas conquistas, suas experiências, seus sonhos e possibilidades de dias melhores nas páginas desse jornal. Dessa forma, vislumbra-se uma reflexão acerca das intervenções aferidas pelos entrevistados, no sentido de romper com as estruturas políticas ainda 227 Chartier assinala na mesma direção que “as representações sociais estão sempre atreladas a um determinado campo de concorrências e de competições, cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação”. Observa que “é a partir das representações que se podem compreender os mecanismos pelos quais grupos se impõem, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio”. Portanto, é nesse cenário, que se discute as entrevistas dos trabalhadores rurais sem terra, na tentativa de localizar e problematizar os “pontos de afrontamentos” pensados por Pierre Bourdieu (1979). Cf.: CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p.17. 160 cristalizadas no país, nas tentativas de mudar o cotidiano e construir outro cenário para sua sobrevivência e a dos demais trabalhadores imbricados na luta pela terra. Descortinam-se as representações sociais destes trabalhadores ao se atribuir visibilidade às suas experiências enquanto sujeitos sociais, focalizando a sua politização bem como sua percepção do MST e importância deste para a transformação do espaço social por eles disputados 228 , especificamente para aqueles que viviam nos campos, mas também nas cidades. O presente capítulo está estruturado em sete subitens e nestes constam a discussão de uma seqüência de entrevistas elaboradas e publicadas pelo JST, na perspectiva de evidenciar e problematizar as representações das lideranças do Movimento, destacando as falas implícitas 229 e explícitas nas entrevistas dos membros das cinco regiões do país, representando a Coordenação Estadual, Direção Nacional e Lideranças de Núcleos e/ou Setores do MST. Nesse sentido, é importante pontuar que a seqüência de questões pensadas pelo periódico comum a todos os entrevistados, elas diziam respeito à situação dos trabalhadores rurais nos assentamentos e acampamentos; aos investimentos do 228 Sob a perspectiva de Bourdieu, qualifica-se a definição de espaço físico e espaço social, sendo o primeiro definido pela “exterioridade mútua das partes e o segundo pela exclusão ou distinção das posições que o constituem”. A rigor, “o espaço social é um dos lugares em que o poder se afirma e se exerce, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica”, emergindo “as lutas pela apropriação do espaço” físico, transformando-o em espaço social, descortinando os conflitos e as tensões sociais, ao desembocar na luta da “coletividade”. BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: Idem (Org.). A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p.160-3. No caso dos integrantes do MST, a tensão se confirma pela posse do espaço e da terra, pelo crédito rural, por melhores estruturas nos assentamentos, mas também pelo poder, não apenas o poder simbólico de enfrentar as forças governamentais enquanto movimento social, mas o poder representativo, conforme assinala Martins: “Quando o MST anunciou que lançaria os seus membros a candidatos para disputarem cargos eletivos por diferentes partidos, em julho de 1998”, demonstra-se um descolamento dos discursos dos trabalhadores rurais com relação aos “discursos proletários e socialistas do século XIX e que o Movimento até então fazia uso.” Essa mudança de postura da organização os tornou “agentes principais da modernização do campo”. MARTINS, J. S. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Edusp, 2000. p.46. 229 As falas ausentes nos discursos dos entrevistados serão entendidas como silêncios, sendo estes traduzidos pela prática do não dizer, pelo não fazer transparecer suas estratégias de luta. Essa postura, portanto, é problematizada na perspectiva do não dito, ou seja, “não pode ser interpretado como esquecimentos, mas como elementos constitutivos da consciência coletiva”. Cf.: SILVA, Maria Aparecida de M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da Unesp, 2004. p.87. 161 governo para garantir o desenvolvimento contínuo dos mesmos; reportava-se acerca da organização dos trabalhadores em cada região e/ou estado; questionava como as lideranças avaliavam a política de reforma agrária dos governos, particularmente do presidente Fernando H. Cardoso ao término de seu primeiro mandato. Procurou questionar quais eram os desafios e perspectivas dos trabalhadores rurais nos assentamentos e acampamentos; indagou sobre os casos de violência no campo e como estes foram tratados pelas autoridades, inclusive pelo Poder Judiciário. Também, procurou captar a percepção das lideranças a respeito dos setores de produção e educação e o cooperativismo como possibilidade de desenvolvimento econômico sustentável no campo, por exemplo. Reportando-se à seqüência de entrevistas trazidas pelo JST dentro do período delimitado pela pesquisa (1981-2001), alguns critérios tornaram-se necessários para se fazer o recorte no corpo documental, iniciando-se pela quantidade de entrevistas com lideranças e os estados que seriam representados por estas. A escolha dos estados esteve condicionada à quantidade de entrevistas feitas pelo jornal. Portanto, nota-se que em alguns estados existiu a realização de uma ou duas entrevistas com lideranças, fator que inviabilizou a sua escolha.230 Para tanto, tentou-se observar dados pessoais que figuravam nas entrevistas e que, de certa maneira, identificava melhor o entrevistado, possibilitando uma caracterização mais completa. Nesse sentido, as entrevistas deveriam contemplar: a procedência das lideranças, naturalidade, gênero, idade, estado civil, 230 A princípio, não se pensou em interpretar a mesma quantidade de entrevista por estado. Em termos quantitativos, a preocupação era discutir, para cada Unidade da Federação, uma série de três a cinco entrevistas, levando-se em consideração a aproximação das questões contempladas em cada uma delas. Por opção metodológica, algumas das entrevistas trazidas pelo JST não foram trabalhadas nesse momento, tendo em vista, que parte delas figurou com um número reduzido de questões e com dados poucos precisos para a presente pesquisa. Entretanto, tal opção não significa afirmar que as entrevistas não usadas sejam irrelevantes enquanto fonte histórica. Ademais, tornouse inviável a utilização de todos os relatos, uma vez que a fonte em questão apresentou um número expressivo dos mesmos ao longo da última década do século XX, levando o pesquisador a lançar mão da interpretação destes relatos por amostragem, como pode ser observado a seguir. 162 ocupações exercidas anteriormente ao seu ingresso no MST, bem como, as atividades desempenhadas nos determinados setores em que eles atuavam no Movimento. Também se valorizaram as referências dessas lideranças a respeito da solidariedade entre os trabalhadores rurais e urbanos, como estas se percebiam e como compreendiam o outro, num imbricamento do cotidiano de luta, como lidaram com as incertezas de não obterem um pedaço de terra ou de não conseguirem fazer a terra produzir após a conquista. Visando potencializar a “territorialização e consolidação do MST”231 em cada estado, considerou-se a constituição de uma “estrutura própria”, de modo a assegurar o funcionamento da Coordenação, da Direção, da Secretaria, dos Setores, Comissões e Núcleos nos acampamentos e assentamentos. Desenhando esse cenário, elucidavam-se indícios de que os trabalhadores rurais sem terra construíram “suas instâncias de representação”, sendo as falas das lideranças problematizadas à luz desse capítulo. É fundamental destacar que essa plataforma de organização, definida pelo MST, construiu-se de experiências históricas de lutas a partir das tensões envolvendo os próprios trabalhadores rurais. Tais experiências seguiram a tendência de construção de uma organização autônoma, capaz de socializar “conhecimentos dos direitos, romper com o isolamento e ampliar as lutas, configurando alguns dos objetivos definidos pelo MST na tentativa de construção de novos espaços de luta pelo território nacional”232, a fim de promover a reforma agrária em todos os estados brasileiros.233 231 a FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. p.95. 232 Ibidem, p.96. 233 Assinala-se que as falas das lideranças, ao serem transpostas às páginas do JST, configuravam “memórias às vezes oprimidas, desenraizadas, presentes como vestígios, ao figurar nas frases e pensamentos dos entrevistados”. Com o registro das ações e representações dessas lideranças, 163 Ao analisar a seqüência de entrevistas, estimou-se para que cada estado estivesse representado de acordo com a organização do MST, priorizando a busca por amostragem. Contudo, esta pesquisa contemplou temas vinculados à percepção das lideranças entrevistadas, revelando o uso que faziam do periódico como ferramenta de comunicação e de luta.234 Nesse sentido, potencializou-se a participação da mulher como liderança no Movimento, atribuindo-lhe visibilidade, não apenas como militante, mas também como esposa e mãe, cotejando sua percepção do cotidiano no campo ao lidar com a dupla jornada de trabalho.235 Com isso, buscou iluminar a questão da violência no ecoava “seus saberes e valores, referências básicas, poderes, modos operativos, desejos de interação e ampliação de outros saberes e experiências”. MAGALHÃES, Nancy Alessio. Direitos e Vontades de Deixar Marcas. A terra como patrimônio histórico (Guarantã do Norte, MT). Projeto História. n.33. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2006. p.127. 234 Davis questiona “como a palavra impressa afetou ambientes cuidadosamente definidos” ao se reportar aos “grupos sociais coesos, nos quais alguns membros eram letrados”. Para a autora, na área rural “essa definição engloba toda a população fixa de uma aldeia na qual alguém fosse letrado”. Porém, nas cidades, reporta-se “aos pequenos comerciantes e aos homens de ofícios, e mesmo aos trabalhadores semiqualificados que tivessem alguma vinculação à organizações urbanas [...]” (p.160). Na seqüência, assinala que a entrada da “palavra impressa na vida dos camponeses não era apenas uma função de sua alfabetização, mas de muitas outras coisas: os livros tinham que ser lidos em voz alta; tinha que haver desejo de informação por parte do camponês, sobretudo o desejo de usar a palavra impressa para dizer algo a alguém”. No momento, “o mundo rural via a palavra impressa muito raramente, fosse ela escrita ou impressa” (p.161). Para dizer se existiram conseqüências da palavra impressa para a comunidade camponesa no século XVI, pontua-se que “elas certamente foram limitadas. Algumas poucas linhas de comunicação se abriram entre professor e camponês” (p.171). DAVIS, Natalie Zenon. Cultura do Povo: sociedade e cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 235 Os pesquisadores dessa temática têm procurado ampliar o debate sobre as mulheres, trazendo-as para o centro da discussão, tornando-as objetos e sujeitos de estudos em diversas frentes de pesquisas, nas quais priorizam o estudo de determinadas especificidades de gênero, em que se demarcam e se revelam tensões que tomam conta do cotidiano feminino e descortinam perdas aviltantes em função da dupla jornada de trabalho no âmbito do campo ou da cidade. Thompson retrata bem esse universo a partir de relatos de uma mulher sobre o desafio da dupla jornada de trabalho. Para esta, “quando chegamos em casa, ai de nós! Vemos que o nosso trabalho mal começou; tantas coisas exigem a nossa atenção, tivéssemos dez mãos, nós as usaríamos todas. Depois de pôr as crianças na cama, com o maior carinho preparamos tudo para a volta dos homens ao lar: eles jantam e vão para a cama sem demora, e descansam bem até o dia seguinte; enquanto nós, ai! Só podemos ter um pouco de sono, porque os filhos teimosos choram e gritam [...] em todo trabalho temos nossa devida parte; e desde o tempo em que a colheita se inicia até o trigo ser cortado e armazenado, todos os dias, nossa labuta é tão extrema que quase nunca há tempo para sonhar”. Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.87-8. Ver também: MATOS, M. Izilda S. de. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002. Idem; SAMARA, Eni de M. Cotidiano e Trabalho Feminino (1890-1940). In: SAMARA, E. M. (Org.). Trabalho Feminino e Cidadania. São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP, 1999. DEL PRIORY, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/ Edunesp, 1997. 164 campo e como esse veículo de comunicação lidou com essa problemática, discutindo a questão da educação nos assentamentos e a avaliação que os trabalhadores faziam dos governos na esfera estadual e federal. Desta maneira, descortinou-se sua percepção acerca dos desafios 236 a serem enfrentados por aqueles que fazem do MST, um movimento social de significativa expressão política. Portanto, buscou-se a caracterização dos entrevistados pelo periódico, evidenciando sua procedência; seus discursos para a sua base de sustentação e também para fora; sua atuação enquanto integrante do Movimento, mas também, como representante dos demais trabalhadores rurais em instâncias de decisões dentro da organização; sua posição política dentro e fora do Movimento; assim como, sua percepção enquanto sujeitos históricos. 3.2 AS ENTREVISTAS: DESCORTINANDO TENSÕES A seção denominada de “Entrevistas com lideranças” ocupou, com certa irregularidade, as páginas do jornal, a partir de 1990. Ou seja, não foi uma regra figurar em todas as tiragens uma ou mais entrevistas com autoridades ou lideranças. 236 Entende-se como desafio a ser superado pelos trabalhadores: a percepção de unidade entre os integrantes do grupo e o sentimento de pertencimento a uma classe social; o enfrentamento da imagem negativa construída por determinados setores da imprensa brasileira frente à opinião pública; o sobreviver em condições precárias nos assentamentos e acampamentos; o lidar com as ações de despejos oficializadas pelo Poder Judiciário; o duelo com a força física dos policiais e fazendeiros, ao fazerem cumprir as Liminares expedidas por Juízes das mais diversas Comarcas Regionais país adentro; o desafio de enfrentarem as milícias constituídas pelos latifundiários agindo como se eles fossem os representantes legítimos da lei; o desejo de serem contemplado com um lote de terra e, assim, recuperarem a sua dignidade enquanto pessoa. Portanto, a análise das entrevistas orienta-se pela metodologia da pesquisa qualitativa, ao serem abordadas por amostragem, obedecendo à seqüência de sua publicação. Essa abordagem pretende assegurar a representatividade de todas as regiões do país, delimitando-se um estado por região. Observo, ainda, que em todos os estados brasileiros houve mais de uma liderança entrevistada pelo JST, porém, em determinados momentos, evidenciou-se oscilação no que tange ao número de lideranças entrevistadas. Não obstante, sem desmerecer o empenho de outras lideranças, as regiões Sul e Sudeste apresentaram um maior número de lideranças entrevistadas pelo jornal em tela. 165 Esse procedimento dependia bastante do editor responsável pelo periódico e também do cenário político vivido pelos trabalhadores rurais sem terra. Não obstante, a década de 1990 se destacou pela quantidade de entrevistas publicadas pelo JST, especificamente a partir de 1993, contribuindo com o debate político nos assentamentos e acampamentos. Com isso, promoveu “a visibilidade da luta, trazendo em seu bojo outros personagens para a cena política: vereadores, deputados, representantes do movimento social de luta pela terra” 237 , visto que alguns desses segmentos tendiam a ocupar também as páginas do Jornal dos Trabalhadores Rurais, colaborando com a publicação de artigos, dados científicos sobre reforma agrária e se posicionando, em alguns momentos, contra o governo vigente. Entretanto, destacava-se que as informações concedidas ao JST estiveram associadas às pessoas que, direta ou indiretamente, partilharam do ideal de reforma agrária almejado pelo MST. Além dos militantes, figurou também entrevistas e artigos de opinião de intelectuais conhecidos nacional e internacionalmente no meio acadêmico e político. A título de exemplificação, cita-se: Luis Inácio Lula da Silva, à época, parlamentar e membro do sindicato dos metalúrgicos do ABC-SP; D. José Gomes, Bispo da Diocese de Chapecó-SC e presidente da Comissão Pastoral da Terra; Francisco de Oliveira, professor da USP; Leonardo Boff, Teólogo, militante e defensor das bandeiras de lutas do MST; José de Souza Martins, Sociólogo e professor da USP; Darcy Ribeiro, Antropólogo e Senador da República; Ladislau Dowbor, professor da PUC/SP e consultor das Nações Unidas; Emir Sader, 237 SILVA, Maria Aparecida de M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da Unesp, 2004. p.91. “A luta pela terra não envolve apenas os trabalhadores sem-terra e os proprietários da área pleiteada para a reforma agrária, inclui políticos e representantes religiosos, entre os quais a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Ministério Púbico, o Poder Judiciário, a Polícia, o Estado, as Organizações Não-governamentais (ONGs), Sindicatos, Universidades, etc.” 166 professor da USP; Leandro Konder, professor da PUC/RJ; Jacob Gorender, à época, professor visitante da USP; José Graziano da Silva, professor de Economia da Unicamp-SP; Fabio K. Comparato, Jurista e Professor da USP, dentre outros intelectuais. As entrevistas e artigos de opinião de alguns destes intelectuais serão retomados no capítulo seguinte. Portanto, a sua atuação deveu-se em virtude da percepção que os trabalhadores rurais e as respectivas lideranças do MST demonstraram ter pelo periódico. Em sua maior parte, os trabalhadores acreditavam que o Jornal traduzia seus ideais e suas ações, particularmente, quando este foi entendido como objeto de estudo e de reflexão política nos assentamentos e acampamentos, conforme salientado na epígrafe que inicia o presente capítulo. Em face dessa questão, analisou-se a seqüência de entrevistas trazidas pelo jornal, no sentido de compreender melhor a atuação das lideranças imbricadas no MST. No entanto, problematizaram-se alguns fragmentos das mensagens nos quais os representantes das mais variadas instâncias da organização do MST - Direção e Coordenação Estadual e Nacional - julgaram necessário se dirigirem aos trabalhadores rurais acampados e/ou assentados e aos seus simpatizantes nas regiões Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do país, evidenciando uma aproximação do discurso destas lideranças com suas bases de sustentação. 3.3 REGIÃO NORDESTE: ESTADO DO CEARÁ Uma das entrevistas analisadas a seguir é a de Fátima Ribeiro 238 , representante da Direção Nacional do MST e ex-militante da executiva da CUT, no 238 Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, junho de 1989. p.17. No momento da entrevista, encontrava-se no estado do Ceará, 167 Espírito Santo. A entrevistada do JST se orgulhava de ter participado, em 1985, da construção do Movimento nesse estado, particularmente no Município de São Mateus-CE, tendo articulado cerca de 300 famílias no entorno da organização, que esta denominava de “movimento sério, com propostas claras a respeito da reforma agrária”239. Antes, porém, Fátima salientou ser originária de família camponesa, procurando relatar brevemente como se deu a sua inserção no MST: Nasci na fazenda Mosquito. Meu pai trabalhou 45 anos para o fazendeiro. Quando ficou mais idoso, mandaram-no embora. Como entramos na Justiça [grifos meus] o fazendeiro deu uma paulada na cabeça do meu pai, ficando hospitalizado, gravemente ferido. Isso em 1986.240 O trecho acima descortina uma questão sintomática, que vigorou nas primeiras décadas da segunda metade do século XX, subseqüente ao tão propalado “milagre brasileiro”. Em 1986, o campo estava se modernizando, as fazendas se transformaram em grandes parques agroindustriais, a agricultura seguia a lógica do agronegócio, o trabalhador rural já não se enquadrava mais na demanda do capitalismo em curso. Tudo isso ocasionou “conseqüências evidentes pelo distanciamento de alternativas para além do capital, na medida em que se adota e organizando o Movimento. Na oportunidade, ressaltou que o MST realizou a primeira grande ocupação nesse estado, tendo mobilizado cerca de 300 famílias. Para ela, essa ocupação foi “a maior do país: dezesseis mil e quinhentos hectares da fazenda Reunida de São Joaquim, Município de Madalena”. 239 Assinala-se que “é evidente que o MST, com apoio da Igreja, tenha uma proposta de reforma agrária em que sua forma difere profundamente da forma que lhe dá o Estado brasileiro desde a elaboração do Estatuto da Terra e, pode-se dizer, desde a promulgação da Lei de Terras de 1850”. MARTINS, J. de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.104. 240 Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4. 168 postula uma ótica de mercado, de produtividade das empresas, não levando sequer em consideração a questão do desemprego”241. Este fenômeno ocorreu em larga escala, não apenas no campo, mas também na cidade, elevando o processo de exclusão social generalizado de parcela significativa de trabalhadores e conduzindo-os a buscarem formas alternativas que garantir-lhes a sobrevivência. Nessa perspectiva, o MST e a reforma agrária seriam os principais caminhos almejados por estes, no intuito de assegurar a sua reinserção nos processos produtivos. Nesse aspecto, muitos exemplos de exclusão social se encontram pontuados ao longo dessa Tese, estando todos associados ao trabalhador destituído do processo de produção e/ou aqueles que perderam o emprego, que não dispõem de terras para plantar e os que não conseguem se inserir em outras formas de produtividade nas zonas urbanas ou rurais. Sem se limitar unicamente aos já mencionados, alarga-se a compreensão de vários outros tipos de privações como “os desempregados em longo prazo, os empregados em empregos precários e não qualificados, os pobres que ganham pouco, os sem-terra, os sem-habilidades, os analfabetos e os evadidos da escola” 242. Nesse contexto, compartilha-se da idéia de que o novo modelo global de produção exige, entre outras condições, requisitos cada vez mais elevados de desempenho, agravando a tendência de exclusão social de trabalhadores de baixa qualificação profissional. A redução de ofertas de mercado formal faz aumentar a pobreza e o desemprego, criando demandas sociais que o Estado não consegue atender, caso sejam mantidas as fórmulas convencionais de 241 ANTUNES, Ricardo. Mundo do trabalho, precarização e desemprego. In: MARQUES, Rosa M. (Org.). Mercado de Trabalho e Estabilização. São Paulo: Educ, Cadernos PUC/SP - Economia, n.4, 1997. p.32-3. Ver também: Idem. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001. 242 DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e futuro do a capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p.22. Idem. O mito do progresso. 2 reimpressão. São Paulo: Ed. da Unesp, 2006. 169 encaminhamentos trabalho.243 da organização e das relações de Dessa maneira, excluído dos meios de produção e alijado de alguns direitos natos ao exercício da cidadania, o trabalhador rural citado acima, juntamente com a sua filha, buscaram apoio em instâncias superiores (diga-se na justiça), no sentido de reaver perdas do que julgou de direito pelas décadas de trabalho prestado aos proprietários da Fazenda Mosquito. Seguindo a lógica dos desmandos ocasionados nas áreas rurais e longe dos olhos da justiça oficial, o proprietário da fazenda fez a justiça funcionar conforme o seu interesse, usando de violência244 contra aqueles que tentaram lhe questionar ou lhe cobrar algo que julgavam necessário e justo. Aliás, a prática exacerbada da violência não cessa, na maior parte das vezes, segundo o JST e a própria CPT, essa acaba recebendo anuência de setores dos poderes constituídos. Não concordando com tais práticas, o MST e seu Jornal tendia a denunciar e a agir de forma sistemática por meio de ações massivas de ocupação, passeatas e protestos, ganhando, assim, imperiosa visibilidade em âmbito nacional e internacional. Nessa mesma perspectiva, foi aferida a seguinte indagação pelo JST à entrevistada, como se dava a participação das mulheres no Movimento. 243 CAMARGO, Célia Reis (Org.). Experiências inovadoras de educação profissional: memória em construção de experiências inovadoras na qualificação do trabalhador (1996-1999). São Paulo: Editora da Unesp; Brasília - DF: Flacso, 2002. p.3. 244 A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou estudos sobre índices da violência no campo, particularizando informações e contemplando os dois últimos anos da primeira década do século XXI. O documento traz à luz evidências de que, apesar dos números de conflitos no campo estarem sendo reduzidos, a violência segue aumentando em escala crescente. Para isso, assinala-se que “nos meses de janeiro a junho de 2009, os conflitos se deram por água, por terra e por questões trabalhistas, totalizando 366 conflitos, nos quais estiveram envolvidas 193.147 pessoas”. Ao categorizar esses dados, a fonte atesta que do total de conflitos, “12 foram assassinatos, 44 tentativas de assassinatos, 22 ameaças de mortes, seis pessoas torturadas e 90 pessoas presas. Do total, 246 foram conflitos por terra envolvendo 25.490 famílias, sendo 393 destas expulsas da terra por ação dos proprietários e seus jagunços, 4.475 despejadas por ordem judicial”. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. CPT: Conflitos no Campo Diminuem, mas Violência Cresce. Documento publicado em 03 de setembro de 2009. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 10 de junho 2010. 170 À medida que o trabalho é feito, os companheiros acreditam mais. Não importa quem o faça. Nós, mulheres, participamos em todas as equipes. O importante é que se tenha a capacidade de realizar as tarefas. Participamos na base e até no trabalho a nível nacional.245 Apesar da idéia de que todos são iguais e compartilham das mesmas atividades, já na primeira linha do trecho da entrevista, explicita-se uma tensão quanto às atribuições da mulher, pois é somente a partir da execução do trabalho, que estas ganham maior credibilidade dos companheiros. Sem dúvida, algumas mulheres almejavam um lugar de destaque dentro do Movimento e conseguiram como é o caso da entrevistada (ainda nesse capítulo, um pouco mais adiante, esse discurso tende a ser questionado pelas observações de outra liderança, ao destacar que se o MST não valorizar a atuação das mulheres em todas as frentes, ele só tem a perder). Apesar de se observar alguns silêncios na fala, esta explicita que a atuação feminina no MST se fez presente, ainda que de forma precária. De toda sorte, ressaltava-se que sua inserção neste movimento, não se deu apenas por questões econômicas ou sociais, mas, sobretudo, “pela vontade própria e desejo de emancipação pessoal”246. Apesar dos avanços nas discussões acerca das questões de gênero, pontuava-se que estas têm se configurado de forma lenta, evidenciando maior articulação desse grupo em termos de organização política nos primórdios do século XIX e meados do século XX. 245 Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4. 246 PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e Especificidade. In: PINSK, Jaime; a PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.284. 171 Nesse sentido, “com o tempo, algumas (poucas) mulheres conquistaram um poder de influência significativo no interior dos sindicatos, na imprensa operária e nos partidos políticos de esquerda”247, confirmando, assim, a fala da entrevistada. Torna-se significativa a observação feita a respeito da postura da UDR frente à ocupação da fazenda Reunida. É singular a descrição de detalhes feita por Fátima sobre a ação dos trabalhadores rurais sem terra no Ceará, quando questionada pelo JST: “e a UDR não reagiu à ocupação?” A resposta de Fátima sinalizava um ar de vitória para os integrantes do recém construído MST do Ceará. O que a liderança deixou de explicitar, é que essa “passividade” do poder público local abriu precedentes para a organização e grandes ofensivas aos movimentos sociais, principalmente por parte dos “donos do poder” num futuro próximo. Ela (UDR) tem sede regional em Quixadá. Foi surpreendida com a ocupação. Agimos rápido, ocupamos o Incra, negociamos com o Governador, Secretário de Agricultura, Juiz federal. O governo se comprometeu a impedir que paramilitares e policiais atacassem o acampamento. A área tinha sido desapropriada em 86, sem emissão de posse. Nós a exigimos segundo a lei. Triunfamos, e a posse saiu em 9 de junho.248 Apesar da descrição desta ação ter sido bem sucedida, os latifundiários resguardavam-se, armando-se e constituindo suas milícias na tentativa de responder criminosamente à luz do dia, com o objetivo de defender suas supostas propriedades em todas as regiões do país. O trecho descrito acima encontra eco na observação de que após 1964 “a política fundiária se cumpriu como exceção e não como regra, contraditoriamente, combatia-se o latifúndio nas áreas de tensão social 247 PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e Especificidade. In: PINSK, Jaime; a PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.284. 248 Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4. 172 e gestava-se o latifúndio de empresas em novas regiões, viabilizando novas tensões”249. Três anos após a primeira entrevista, Fátima retornou às paginas do jornal, para falar aos seus leitores sobre os frutos que foram colhidos nos assentamentos deste estado, após as experiências de 1989. 1993 foi o ano em que iniciamos a colheita dessas sementes que plantamos em 1989, tanto em termos de organização, quanto em termos de conquista. [...] Os avanços que obtivemos este ano foram frutos das experiências já acumuladas nestes últimos 10 anos. Fomos qualificando a organização, formando setores, criando símbolos, buscando a implementação de novas formas de luta. Hoje nós temos uma mística própria que nos move e que nos renova cada vez mais para a luta e para os novos desafios, buscando ter propostas claras e justas de 250 acordo com as necessidades dos trabalhadores. A entrevistada buscou transmitir positividade aos leitores do jornal, tendo em vista que as questões aferidas pelo periódico objetivando um interlocutor certo: o trabalhador rural assentado ou acampado, mensagens positivas, como esta, poderiam motivá-lo a se inserir e/ou a permanecer na luta. Em contrapartida, a fonte analisada atestava as dificuldades em conseguir a escritura de um pedaço de chão e de manter-se nele. A liderança não revela as tensões eminentes em cada assentamento no Ceará, mas desvela preocupações quanto ao futuro do movimento no estado. 249 A fala da entrevista ressoa na observação de Martins, ao assinalar que para se projetar uma “reforma agrária tópica e de cunho militar repressivo”, às vezes de forma velada, “o Estado atende a demanda dos movimentos sociais locais, precários, surgidos na emergência de conflitos inesperados, e ao mesmo tempo reprime e processa lideranças e apoiadores desse mesmo movimento”. Cf.: MARTINS, J. de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.76. 250 Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4. 173 No ano de 1993, intensas dificuldades sociais foram configuradas nos assentamentos, o que não foi plenamente esclarecido aos leitores do jornal nessa entrevista. Mas, assinala que precisamos dominar a realidade e suas constantes transformações, para propor novas saídas, implementar novas formas de luta, buscar novos métodos que contemplem as culturas regionais e, desde já, para formarmos homens e mulheres com novos valores.251 Cabe destacar uma inquietação no que tange ao anseio pela dinamização de “novas formas de lutas, novos métodos”, no sentido de construir “novos valores” para os homens e mulheres envolvidos no MST. Que valores seriam estes? Que novas formas de lutas seriam estas? O trecho da entrevista é um tanto obscuro para problematizar tais indagações, além de revelar certa insegurança, por parte da liderança, no que se refere à ausência de domínio das questões locais e de suas constantes transformações. Fátima Ribeiro salienta a importância de se alterar concepções arraigadas na sociedade, destacando que “dentro do processo capitalista, não vamos acabar com os sem terra do país, que são 12 milhões. Temos de conquistar uma vida com igualdade. Uma mudança para todos”. No mês de maio de 1995, o entrevistado pelo JST foi Raimundo Nonato Barbosa 252 , que revelou tensões que não estavam presentes na fala de Fátima Ribeiro. Se antes, aparentemente foi acessível a posse da terra, quatro anos após, seria um desafio fazê-la produzir e manter os trabalhadores nela produzindo. Aliás, 251 Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4. 252 Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1995. p.4. Sem dados que viabilize a sua caracterização, o entrevistado fala das atividades no setor de produção nos assentamentos do Ceará, ressaltando as muitas dificuldades enfrentadas em virtude de fatores climáticos, além de metas e conquistas alcançadas pelos trabalhadores rurais nesse estado. 174 “produzir é uma verdadeira batalha” em alguns assentamentos nesse estado, assinala o entrevistado: Garantir a subsistência é uma coisa que depende muito do clima. Se chover, dá, se não chover, não dá. Mas também temos o assentamento Santana, uma Cooperativa onde nossos companheiros estão se desenvolvendo muito, tendo em média quatro salários mínimos de renda por mês. Nas áreas em que a situação está difícil, os companheiros ficam na terra com a esperança de que no próximo ano vai haver inverno.253 Apesar de experiências positivas e algumas conquistas obtidas nos assentamentos, no Ceará, tornava-se evidente o fracasso de alguns trabalhadores rurais em determinadas áreas, carecendo da tutela do estado para lhes financiar, ajuda esta que às vezes não apareceu e quando o fez, foi com bastante morosidade, em função da burocracia. Nesse aspecto, assegurava-se que, dentre os maiores desafios para a sobrevivência dos assentamentos, estava o de enfrentar a ausência da água. Notase que tais dificuldades explicavam-se porque “a metade da população do Ceará (cerca de três milhões de pessoas) passam fome e, nos assentamentos, as condições são muito mais precárias”, assinala o entrevistado. Há falta de condições de saúde, de educação e condições de moradias. Na área da produção é a falta da água mesmo, porque nem todos os assentamentos têm uma reserva de água que garanta a nossa subsistência. A água é, portanto, uma das nossas principais reivindicações.254 Esse trecho da entrevista revela que, em certos momentos, houve apoio do governo federal e estadual no que se refere aos financiamentos dos assentamentos 253 Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1995. p.4. 254 Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1995. p.4. 175 no estado. Não obstante, no que tange a mão-de-obra técnica, ocorreram alguns avanços na luta, pontua-se que os assentados conseguiram significativas melhorias no aspecto de assistência técnica e de crédito, ponderando que acabamos de renovar um convênio de assistência técnica com o governo do estado, que prevê liberação de 20 técnicos e dez carros para circularem nos assentamentos. Estamos renovando também o convênio com o Banco do Nordeste, com o Incra e com o Mara, que é o chamado Contacap, que por meio dele é contratado quatro equipes de cinco técnicos que ficam em assentamentos, mas acompanham 300 famílias. Em cada equipe tem agrônomo, veterinário, assistente social e contador.255 A informação apresentada pelo entrevistado não explicita uma tensão social envolvendo trabalhadores e governo, ao contrário, revela calma e passividade por parte dos poderes públicos em manter uma significativa estrutura para atender os anseios dos trabalhadores rurais sem terra assentados pelo MST, no Ceará. Para terem essa concessão, houve “um acampamento de 11 dias em frente à Secretaria de Agricultura do estado. A partir dali a gente conseguiu estabelecer este convenio com a Emater, renovando pela segunda vez”. A ação de acampar em frente aos órgãos públicos evidenciou uma estratégia de luta que os trabalhadores rurais exerciam sobre os governos e determinados setores da elite brasileira. Com intuito de se fazerem ouvidos em todas as instâncias da sociedade e unidades da federação nas quais o Movimento estava organizado, apregoava-se que: “Juntos, não seremos derrubados. Organizados, implantaremos um sistema socialista, sem explorados nem exploradores”256. 255 Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1995. 256 MARTINS, J. de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.45. Martins assinala que o MST “é uma poderosa organização de camponeses expulsos ou privados da terra de que necessitam para trabalhar, apresentando como bandeira de luta o socialismo”, observação essa que vai ao encontro do discurso propalado pela liderança Fátima Ribeiro na entrevista concedida ao JST. Na mesma perspectiva, PINSKY e Pedro assinalam que “nas lutas pela 176 Outra experiência apresentada e discutida é a da professora Maria de Jesus, nascida na cidade de Canidé-CE. Ingressou nas tessituras no MST em 1993, quando foi demitida pela prefeitura daquele município, no qual lecionava e presidia o Sindicato dos Profissionais em Educação dos Municípios do interior do estado. Segundo ela, “o tema reforma agrária sempre esteve presente em Canindé e conhecendo aquela realidade, me sentia convocada a contribuir com a luta do MST”. Uma das questões aferidas pelo Jornal à depoente reportava-se aos tipos de representações sociais que perpassam a vida de uma militante no seio do MST. A entrevistada atestava ter experimentado diferentes jeitos de viver militando. Quando entrei só tinha a mochila para viajar e desenvolver as tarefas que o coletivo de educação e a direção me delegavam. Depois me casei e tive uma filha. É um grande desafio ser mãe e militante [grifos meus]. Mas sempre tive presente a necessidade de continuar atuando, não me acomodar só com a tarefa de mãe. Mas com certeza, esse não é um compromisso só da mulher, mas sim do seu companheiro e da organização, que precisa compreender as limitações das mães nas diferentes fases do desenvolvimento dos filhos [grifos meus].257 A simplicidade evidenciada no relato é peculiar: “Só tinha apenas uma mochila” ao se inserir no MST, descortinando um despojamento material à luz de um interesse maior: a contribuição para uma sociedade mais justa e humanizada. Nesse sentido, o trecho acima indica que “as mulheres não são passivas nem submissas. Pois a miséria, a opressão, a dominação, não bastaram para contar cidadania plena, várias trabalhadoras simpatizaram com o socialismo, visto como uma esperança de igualdade e justiça social”. PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e a Especificidade. In: PINSK, Jaime; PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.284. 257 Entrevista com Maria de Jesus dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, fevereiro de 1997. p.6. 177 a sua história [...]. Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras palavras, por outros gestos”258, por outras ações. Portanto, no momento da entrevista, o perfil social da depoente já havia mudado, tornara-se responsável pela promoção da constituição e manutenção de uma família (um marido e uma filha). Nesse ínterim, pontuou que o seu desafio maior era o de lidar com a dupla jornada: a militância e o cuidar da família. Não obstante, a liderança atrelou seu discurso, ainda que de forma tímida, à perspectiva de uma “inversão de papéis pela ‘mulher emancipada’ que reivindica a igualdade de direitos civis e políticos, o acesso às profissões e recusa, justamente, confinar-se à vocação materna”259. Em face dessa questão, o relato da entrevistada revelou que “o papel clássico de condutora do lar e protetora da família foi posto em xeque” 260 , abrindo novas possibilidades para que ela também atuasse de forma efetiva e profícua social e politicamente. Nesse sentido, a entrevistada reiterava a sua fala ao afirmar “que não se acomodará apenas com a tarefa de mãe”, destacando que essa por si só já se configura numa grande atribuição. Na seqüência, o homem era chamado à responsabilidade, uma vez que Maria de Jesus reconhecia que, a criação dos filhos não é tarefa exclusiva das mulheres, “é também compromisso do companheiro”. Contudo, essa atribuição era renegada por muitos homens, sobretudo aqueles oriundos das regiões onde persiste uma cultura sexista. Outra questão que envolve os integrantes do MST é a da educação. Como colaboradora dos projetos educacionais do Movimento, a entrevistada procurou 258 Cf.: PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.212. 259 Ibidem. p.183. 260 Cf.: COELHO, Frederico Oliveira. Revolução Comportamental no Século XX. In: SILVA, Francisco C. Teixeira da (Org.). O Século Sombrio: Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.331. 178 esclarecer aos leitores do periódico os desafios enfrentados pelo projeto de educação dos trabalhadores rurais sem terra do Ceará. Dentre eles, destacam-se três: 1) A massificação do acesso à escola de primeiro e segundo grau (atualmente Ensino Fundamental e Médio) para nossas crianças e adolescentes; 2) massificar a educação de jovens e adultos para erradicar o analfabetismo nos assentamentos e acampamentos; 3) trabalhar a nossa proposta de educação com crianças, professores assentados e as instâncias, para que seja assumida por todos, dando organicidade ao setor [grifos meus].261 O termo "massificar a educação" explicita um discurso um tanto banalizado, não apenas pelos profissionais da área, mas pelos próprios gestores públicos que não mobilizam recursos para implementar ações adequadas para a educação, preocupando-se apenas com políticas de governo, inviabilizando os processos educacionais em múltiplos sentidos. No tocante, o país assiste a um processo crescente de egresso à escola, além do reconhecimento de que a qualidade da educação tem deixado muito a desejar por motivos econômicos, sociais e pela implantação de projetos políticos educacionais mal elaborados, ineficazes perante as reais condições do processo de ensino-aprendizagem. Por isso, o MST buscou alternativas nas escolas dos 261 Entrevista com Maria de Jesus dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, fevereiro de 1997. p.6. Para Fernandes, “o MST atua em várias frentes, como as lutas por reforma agrária, produção de alimentos, educação, melhorias da qualidade da saúde e de vida da população que está na organização, atuação que extrapola o papel de um movimento social e o transforma em organização política”. Na mesma linha de reflexão, STEDILE observa que, para o MST, “o significativo é a manutenção da idéia de movimento de massas”. Assinala também para as esquerdas que uma organização política é uma organização fechada, de quadros e tal, um fator que torna o MST diferente. Nesse sentido, o Movimento se reconhece como “uma organização política e social de massas ou dentro do movimento de massas”. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.81. Nesse aspecto, cabe ressaltar também o trabalho de CAPELATO, que se reporta, sobretudo, ao emprego da propaganda política nos governos Vargas, no Brasil, e o Peronismo, na Argentina, no intuito de conter os anseios das massas em prol de seus interesses. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no a peronismo. 2 ed. São Paulo: Unesp, 2009. 179 assentamentos, opções que versassem sobre as questões do campo, ações que realmente potencializassem as crianças, jovens e adultos à aprendizagem e reflexão crítica. Tal preocupação configurou-se num desafio para o MST, como se pode observar no trecho a seguir: O MST vai contra toda uma corrente que existe no mundo inteiro, que defende que o campo vai acabar. Ao criar uma outra política, cria, consequentemente, uma nova concepção. O Setor de Educação passa a ter grande responsabilidade, porque o professor daquela escola rural é um trabalhador rural. Os pesquisadores que vão trabalhar em determinado assentamento também são trabalhadores rurais. Essa escola rural desenvolve conhecimentos voltados para o beneficio e o bem-estar dos trabalhadores a partir de uma nova concepção de vida rural. Em decorrência disso, o MST enfrenta uma luta difícil, que é a de tentar explicar aos educadores, aos governos, enfim, às pessoas que desenvolvem políticas públicas, que a escola não pode ser na cidade, que a escola tem que ser no assentamento.262 Nota-se que alguns entraves emanam do relato de Maria de Jesus quando esta explicita que, apesar da grande receptividade da proposta educacional pensada pelo MST, existiu também resistências por parte de professores das escolas de assentamentos que “não querem desenvolver as aulas a partir das exigências dos trabalhadores rurais e do MST”. Com isso, construiu-se uma atmosfera de tensão interna, uma vez que os trabalhadores não aceitam outra proposta senão aquela determinada pela organização do Movimento. Na mesma linha de reflexão, a entrevistada assinala que “já houve casos de prefeituras conveniadas não aceitarem a nossa proposta de educação nas escolas e os assentados pressionaram o professor a ir contra as orientações dos Secretários de Educação”. Para essa liderança, representante do Setor de Educação do MST no Ceará, as escolas dos assentamentos têm como princípio básico “a necessidade de 262 STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.77. 180 ocuparmos o latifúndio da caneta, ao passo que entendemos que em nosso país este é tão perverso quanto o latifúndio da terra”. Por fim, a entrevista de Sérgio Pinto 263 apresenta amplo potencial para discussão. Este se deteve às questões vinculadas à produção de alimentos nos assentamentos, traduzindo aos leitores do JST algumas experiências processadas com a implementação do cooperativismo rural nesse estado, avaliando a gestão do Presidente da República, Fernando H. Cardoso, e a do então governador do Ceará, Tasso Jereissati. Nesse sentido, o entrevistado destaca o contexto político no momento da publicação: estava em fase de expiração o primeiro mandato do Presidente da República. Enquanto buscavam-se incessantemente articulações junto às bases aliadas para concorrer ao segundo mandato presidencial, um dos maiores desafios para o MST era mobilizar forças para coibir esse propósito. Ao problematizar a questão aferida pelo JST quanto à administração do governo estadual, Sérgio salientou que “o governador Tasso Jereissati aplicou, na prática, a política neoliberal – mesmo com o derrame de sangue e o suor das massas de trabalhadores e excluídos”. A fonte em tela atesta que “o grupo que está no poder tem as suas raízes presas ao latifúndio. As 31 áreas de assentamentos estaduais estão nas piores condições do país, pois nunca receberam os créditos iniciais: alimentação, fomento e habitação”. Diante desta afirmativa, há um desencontro de informações quanto ao afirmado pelas lideranças anteriormente entrevistadas. 263 Entrevista com Maria de Jesus dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril de 1998. p.5. Sérgio à época da entrevista estava com 28 anos, descobriu com a sua família a necessidade de lutar pela terra ainda muito cedo. Décimo sétimo filho de uma família de 21 irmãos, cresceu assistindo a luta de seus pais contra os desmandos dos coronéis e seus jagunços no interior do Ceará. Assentado em Nova Vida, no município de Canindé-CE, Sérgio integra a Coordenação estadual do MST e contribui no setor de produção. Nesse sentido, o entrevistado relata sobre a sua história de luta enquanto militante e liderança do movimento em destaque. 181 Nesse sentido, o trecho do relato de Sérgio sinaliza à construção de um discurso que coloca em evidência a gestão política desses representantes políticos, uma vez que comprovando a sua ingerência administrativa, comprometem as suas candidaturas futuras além de atribuir visibilidade a outros atores políticos nesse cenário. Não é por acaso, que na fala das lideranças emergia o desejo de se construir um projeto popular de reforma agrária264 para o Brasil. Reportando-se a uma avaliação acerca do governo de Fernando Henrique Cardoso, no que tange a avanços no processo de reforma agrária, o entrevistado salientou que o presidente mente para a sociedade dizendo que está fazendo a reforma agrária. Faz sim, acordos com os banqueiros do FMI, com os ruralistas do Congresso, com os usineiros de Alagoas. Persegue o MST porque o Movimento ocupa e faz produzir os latifúndios improdutivos. FHC demonstrou pra nós que é um não patriota, ao vender para o capital estrangeiro as empresas estratégicas de nosso país – a Vale do Rio Doce e tantas outras.265 O trecho acima revela o tom de oposição ao Presidente da República propalado pelas lideranças do MST, fugindo ao tema central que era a distribuição da terra e reforma agrária. A fala do entrevistado apega-se a um discurso urbanizado e formal, provavelmente fruto das observações oriundas da classe média, 264 O projeto pautava-se pela geração de emprego e produção de alimentos, respeitando-se algumas premissas do MST: “1) o assentamento de todas as famílias acampadas no Brasil; 2) o fortalecimento dos assentamentos com a implementação de um programa de agroindústria. Com a industrialização dos alimentos, a produção ganha valor agregado, elevando a renda das famílias; 3) a criação das agroindústrias vai criar uma cadeia produtiva para a geração de empregos no campo; 4) defender investimentos públicos para crédito rural e infra-estrutura em áreas de reforma agrária, como educação, casa, saneamento básico, hospital. 5) defender uma nova matriz produtiva, por meio da policultura e sem o uso de agrotóxicos, a agroecologia”. Cf.: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA - MST. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 20/06/2010. 265 Entrevista com Sérgio Pinto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril de 1998. p.5. 182 considerada a “principal frente de luta e as principais lideranças da luta pela reforma agrária [...] que nada tem a ver com a terra ou com a agricultura”266. Para tanto, o Jornal assinalava que, por quase uma década, um dos maiores opositores do MST foi o presidente Fernando Henrique Cardoso, por vários motivos. Dentre estes, destacavam-se as privatizações das empresas estatais do país, as aberturas de linhas de créditos a juros baixos para grandes produtores rurais e latifundiários, a viabilização do agronegócio e, como conseqüência, o enfraquecimento da agricultura familiar, projeto este defendido veementemente pelo MST. Apesar da avaliação negativa do presidente por parte das lideranças do MST, assinala-se que “seria um erro atribuir a este a questão agrária, ao Ministro do Desenvolvimento Agrário, ou supor que a questão agrária não tem uma história, uma gênese e desdobramentos históricos, sociais e políticos” 267 . Na mesma linha de reflexão, chamou atenção para os números de trabalhadores assentados268 nesse governo, o que também não passa de “bate-boca”, provocando o “desenraizamento do tema da reforma agrária” que é tão candente. Sobre o sistema de Cooperativas nos assentamentos, o depoente salienta que este se tornou muito importante na construção estratégica do MST. Por isso, 266 Para Martins, o fato destas lideranças não terem vínculos diretos com a questão agrária, implica, sem sombra de dúvida, “em algumas distorções quanto ao debate político” que gira em torno desta. Não obstante, o JST registra, anteriormente ao relato dos entrevistados, um breve histórico de sua inserção no mundo rural, portanto, não confirmando a prerrogativa do autor. Porém, apesar de não figurar na biografia dos entrevistados o seu nível de escolaridade, os registros evidenciam um conteúdo cuidadosamente elaborado, um pouco acadêmico, dificultando do ponto de vista histórico, a autenticidade da fonte. Cf.: MARTINS, José de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.92. 267 Ibidem. p.88-9. 268 Ibidem. p.102. O autor “considera assentamentos todos os casos em que a família se credenciou para receber um título de propriedade”. Observa que “apesar dos números de assentamentos no governo de Fernando H. Cardoso terem ultrapassado os trezentos mil, isso não representa que estes supriram satisfatoriamente a demanda pela terra por parte do agricultor familiar, pois os números de sem terra nas ocupações não tendem a diminuir”. 183 a organização para a produção e as cooperativas que vêm sendo criadas tem sido vistas pela sociedade como a outra cara do movimento. Além da luta pela terra, vejo que hoje, o setor de educação do Movimento é a nova cara que está conquistando a simpatia da sociedade. Este setor, portanto, situa um trabalho de base, fazendo uma ligeira coligação com a cooperação do sistema de cooperativas nos assentamentos.269 Na sua argumentação, o entrevistado revelou um aspecto importante do cooperativismo. Fez conexão entre o setor de produção e o de educação do Movimento, favorecendo a relação teoria e prática, ao assinalar que “o que se aprende na escola se aplica no sistema de produção da cooperativa e vice-versa”. Ademais, destacam-se duas outras questões importantes nessa entrevista. A primeira reporta-se à percepção que Sérgio apresenta do MST e a segunda indaga acerca dos desafios a serem enfrentados pelo Movimento. Assim, assinalase respectivamente que a sociedade continua nos apoiando e muitas pessoas que perderam seus ideais, depois da queda do muro de Berlim, estão começando a sonhar e a lutar novamente. A burguesia nos considera como um principal inimigo no cenário político. Temos discutido a elaboração de um projeto popular para o Brasil [grifos do jornal] as eleições presidenciais, a situação da crise do Brasil. Somos o motor pequeno que esquenta as turbinas. O operariado da cidade é o motor grande. Porém, ainda não encontramos a tática certa para mobilizar as massas indigentes das cidades.270 As observações do entrevistado recuperam lapsos de memórias congelados no passado, reportando-se à “queda do muro de Berlim”. Apesar de tratar-se de um momento histórico importante, não intimida o lavrador rural a tecer seus comentários justificando sua garra enquanto integrante do MST. O trecho da sua fala sinaliza a 269 Entrevista com Sérgio Pinto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril de 1998. p.5. 270 Entrevista com Sérgio Pinto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril de 1998. p.5. 184 possibilidade da construção de um projeto popular para o Brasil, ressalva feita quando se trata de desmontar o discurso elaborado das chamadas elites do país. Sérgio usa uma metáfora para qualificar a atuação dos trabalhadores rurais sem terra como um “motor pequeno”, mas “que esquenta as turbinas”. O operariado urbano é o “motor grande”, que do ponto de vista social, age de forma positiva por dispor de informação, por ter experimentado as mais importantes formas de lutas contra a opressão política, social e econômica na área urbana e que deveria ser aproveitada na área rural. Na seqüência, o entrevistado é inquirido para problematizar hipóteses de desafios a serem trilhados pelo Movimento. A partir disso, destacou a possibilidade de construção de “milhares de núcleos de base nesta campanha eleitoral e, depois, dar organicidade, consolidando o Projeto Popular para o Brasil”. Nesse sentido, é necessário “realizar lutas massivas, no intuito de obter conquistas para nossas bases de sustentação sem deixar que os quadros esbarrem na burocracia pósperíodo eleitoral”. Seria necessário, também, iniciar “o resgate e a implantação de novos valores dentro dos assentamentos, irradiando para a sociedade”. Tornando-se urgente “encontrar um modelo tecnológico e de administração que dê segurança para a agricultura e solidez para as cooperativas”. Enfim, não mais na seção revistas, mas em uma notícia de pé de página do periódico, pontuou-se que o estado do Ceará já experimentava a luta pela terra desde o início da década de 1970, quando os trabalhadores rurais do município de Canindé enfrentaram bravamente as forças repressivas da ditadura militar, implicando em muitas mortes. Entretanto, naquele povo ficou marcada a experiência de resistência ao poder instituído. 185 Em 1989, “os sem-terra do Sertão-Central, sentindo a necessidade de se organizarem”, retomaram o ideal do projeto de reforma agrária impedido pelas forças repressoras do Estado na década anterior, ou seja, adquiriu-se vida em um cenário aparentemente democrático. Foi nesse momento que, os trabalhadores, já cansados de esperar, “articulam-se com o MST e sindicatos de trabalhadores rurais”, para darem continuidade à luta pela democratização e posse da terra, na perspectiva de viabilizar a reforma agrária. 271 3.4 REGIÃO SUL: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL O estado do Rio Grande do Sul configurou-se como um dos marcos da luta pela terra no Brasil, particularmente, a partir de 1979, quando famílias oriundas de áreas indígenas ocuparam a fazenda Macali, no município de Ronda Alta-RS. Para o jornal do MST, “apesar de ter a pequena propriedade característica predominantemente, persiste-se ainda a existência do latifúndio", sinalizando hipóteses de dissolução do mesmo. Nesse sentido, algumas considerações devem ser tecidas, destacando que no momento em que a notícia foi produzida, havia como premissa do estado reprimir os interesses dos trabalhadores rurais sem terra, utilizando-se das forças de segurança pública para coagi-los e proteger o latifúndio dos ideais de reforma agrária idealizados pelo MST, mantendo, assim, a ordem vigente. 271 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. “Ceará, lutas e conquistas”. MST, abril de 1998. p.5. Conforme dados desta fonte, no ano de 1989, “havia no estado do Ceará 250 assentamentos, seis acampamentos agregando cerca de 450 famílias de trabalhadores rurais sem terra”. 186 A repressão aos trabalhadores rurais sem terra por parte do estado tornou-se intensa nessa região. A brigada militar assumiu o papel dos jagunços e dos pistoleiros, protegendo a propriedade e combatendo com violência as ocupações de terra. O número de sem terra é estimado em 140 mil famílias.272 No mês de agosto de 1994, o JST abriu suas páginas para registrar as impressões de Ênio Bohnemberger273, da Direção Nacional do MST-RS. Este tratou acerca das celebrações dos 15 anos de atuação do Movimento nesse estado, avaliando as dificuldades enfrentadas pelo mesmo, mas também, falando da credibilidade alcançada por este perante as instituições e a população gaúcha. O Rio Grande do Sul foi o berço do desenvolvimento do MST por retomar, após várias décadas, o desejo de fazer a reforma agrária no país. Aos seus olhos, o início das ocupações de terras se deu no povoado de Canudos, no Sertão da Bahia, abrindo perspectivas para a reflexão acerca do latifúndio no Brasil. Discordando do entrevistado, cabe observar que a “luta de Canudos foi, em grande parte, uma luta camponesa, mas não foi diretamente uma luta pela terra”274. O entrevistado ressalta que essa retomada ocorreu no dia sete de setembro de 1979, quando “um grupo de 150 famílias tiveram a coragem de ocupar a Granja Macali”, abrindo caminho para “ocupar também a Granja Brilhante, 45 dias após a primeira ocupação”. Ênio descreve que foi uma ousadia dos trabalhadores fazerem as ocupações nesta data, pois, tratava-se do dia da independência do Brasil e, como se não bastasse, vivenciava-se o regime militar. Tal pretensão poderia ser interpretada 272 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. “Rio Grande do Sul, marco na luta pela terra”. MST, abril de 1998. p.3. 273 Entrevista com Ênio Bohnemberger. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1994. p.4. 274 MARTINS, José de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.108. O autor assinala que “Canudos foi resultado do grande desencontro que separa, ainda hoje, as elites do povo nas lutas recentes pela terra”. Na sua percepção, portanto, “as elites políticas e sua massa, a classe média, não tem a menor compreensão dos códigos que explicam o mundo e regem a vida dos pobres no Brasil”. 187 pelos militares como “uma afronta”; “era uma loucura ocupar terras nesse período”! Geralmente, nas datas comemorativas, como era o caso do dia sete de setembro, os militares aproveitavam para ocupar os meios de comunicação com intensa propaganda governamental, veiculando os seus feitos país afora, e de certa maneira, encobertando as marcas da violência legadas pela ditadura militar. Nesse momento, as ocupações das fazendas tendiam a desnudar a propaganda de país modernizado propalada pelo governo, ao passo que figurava significativa quantidade de pessoas envolvidas em conflitos por terras, almejando a sua posse em todo o país. Em face disso, assinala-se que essa ação foi pensada e calculada, até porque a sociedade assistia a transição política do regime militar para o Estado democrático. Em seu relato, o entrevistado sinaliza que as experiências de lutas dos trabalhadores rurais sem terra nos dois episódios serviram para que o MST se fortalecesse, enquanto organização social, e se imbricar na luta pela reforma agrária no estado. Porém, aponta que a atuação dos trabalhadores não “será comemorada apenas com festas, mas sim com luta e conscientização, porque se entende que 15 anos depois da primeira ocupação, o problema dos sem terra ainda continua e até com maior gravidade”. Indagado pelo JST sobre o conjunto da organização do Movimento no estado, salientou que “desde 1979, foram feitas 35 ocupações de terras, diversas caminhadas e atos públicos. Conquistamos 95 assentamentos, onde 3500 famílias estão trabalhando”. De forma implícita, o entrevistado evidencia uma questão emblemática, o ato de resistir às pressões oriundas dos grupos políticos constituídos, sendo a resistência uma das práticas mais utilizadas pelo MST. 188 Tivemos avanços, temos muitos desafios, mas já somos vitoriosos e nos orgulhamos da nossa luta. Enfrentamos governos estaduais de três partidos: PDS, PMDB e PDT, cujas políticas foram sempre às mesmas. Enfrentamos a UDR, as forças policiais e o Poder Judiciário.275 O fato de o enfrentamento ter ocorrido, não representa que a ação foi vitoriosa, mas, indica que, com o conflito a organização cresceu, ganhou visibilidade, tendendo a adquirir maior credibilidade da opinião pública, dependendo do lugar onde o conflito configurava-se. Porém, não significa que o Estado estivesse adormecido, apático aos conflitos eminentes no campo, pelo contrário, este se encontrava atento às tensões em curso em todo o país. Pois, desde a década de 1970, foi pensada e colocada em prática uma plataforma de governo, visando impedir qualquer tipo de ação social, que colocasse em risco o projeto nacional de desenvolvimento instituído pelos militares. Desde 1964, justamente em face dos impasses políticos resultantes da questão agrária, que levaram ao golpe, o Estado brasileiro criou um aparato institucional para administrar a questão fundiária, de modo que ela não comprometesse os planos nacionais de desenvolvimento.276 Reportando-se ao reconhecimento da sociedade civil gaúcha, cabe destacar que o trabalho em conjunto com esta contribuiu significativamente em vários aspectos, o entrevistado pontua alguns progressos: 275 Entrevista com Ênio Bohnemberger. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1994. p.4. O trecho do relato encontra eco nas reflexões de Bobbio, quando se reporta à conceituação de resistência. Para ele, esta implica na contrariedade da obediência, ao entender que a resistência “compreende todo o comportamento de ruptura contra a ordem constituída, que põe em crise o sistema político pelo simples fato de produzir-se, como ocorre num tumulto, num motim, numa rebelião, numa insurreição até o caso limite da revolução”. O autor observa que tais ações até colocam “o sistema político em crise, mas não necessariamente em questão”. Cf.: BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.144. 276 MARTINS, José de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.98. O autor ressalta que o “impasse histórico, a contradição entre capital e terra”, seria traduzido por um caminho um tanto quanto inesperado “pelo antimodelo de um capitalismo rentista”. Em outras palavras, pensando no controle e na administração dos “problemas sociais e políticos, o regime militar editou o Estatuto da Terra e promoveu a reforma agrária constitucional que tornaria aquela reforma agrária possível” (p.99). 189 Elegemos deputados, fizemos convênios com universidades, ajudamos em eleições sindicais [...]. Apesar de nossos avanços, temos que ter a capacidade de pensar que não somos perfeitos e ainda temos muito que fazer para conquistarmos uma reforma agrária ampla. Crescemos como Movimento, nossos adversários também se qualificaram e hoje somos um dos alvos principais da burguesia do país, aparelhada através do Poder judiciário.277 O trecho da entrevista revela certa humildade da liderança em reconhecer a ausência de perfeição em suas ações, criando uma atmosfera de otimismo frente aos leitores do Jornal, do ponto de vista dos avanços alcançados pela organização do Movimento. Porém, revela temor, ao afirmar que seus “adversários também se qualificaram”, estando bem preparados para o enfrentamento. Peculiar, ainda, é a afirmativa feita por este ao se reportar ao Poder Judiciário como "aparelho ideológico da burguesia". Na mesma direção e com um pouco mais de informação, a entrevista de Ivanete278 ao periódico trouxe subsídios que viabilizam melhor uma compreensão do que foi alertado por Ênio, ao manifestar temor dos latifundiários, entendendo que estes iriam fazer uso do Poder Judiciário para enfrentar as pressões eminentes do MST. Nesse contexto, a liderança assinala que “a prisão dos companheiros é uma das últimas táticas que o governo e os contra a reforma agrária utilizam para coibir o MST, para impedir o avanço da reforma agrária”. Sendo assim, é importante assinalar que a conjuntura política do Brasil, no ano de 1996, era bastante tensa. A abertura dos mercados nacionais ao capital estrangeiro foi uma das muitas denúncias feitas pelo JST, por acreditar que a 277 Entrevista com Ênio Bohnemberger. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1994. p.4. 278 Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1996. p.4. Em face disso, Bobbio observa que “o Estado fundado na opressão de uma restrita classe de privilegiados sobre uma numerosa classe de explorados é violento”. Reportando-se à Marx, o autor observa que “o Estado é a violência concentrada e organizada da sociedade”. BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.155. 190 entrada de produtos agrícolas com preços mais baixos comprometeria a economia familiar dos pequenos e médios produtores rurais. Nesse aspecto, resultando na ausência ou redução dos investimentos no setor agrícola por parte do governo, ocasionando ainda, uma desaceleração no processo de produção na agricultura familiar. Outra questão que ganhou visibilidade nas páginas deste jornal e nas experiências de lutas dos trabalhadores rurais sem terra foi à questão da implementação da política de privatização das empresas estatais, sobretudo, com a venda da Companhia Vale do Rio Doce no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Com isso, aceleraram-se ainda mais os conflitos no campo seguido do aumento expressivo de ocupações pelo MST em todo o país, como pode ser observado nos dados explicitados na tabela a seguir. Tabela 7 - Ocupações e números de famílias: 1990-1996.279 Ano Ocupações No de Famílias 1990 43 11.484 1991 51 9.862 1992 49 18.885 1993 54 17.587 1994 52 16.860 1995 93 31.531 1996 176 45.218 Total 518 151.427 Ainda pensando na conjuntura política, nota-se que as ocupações nos campos e/ou nas cidades colocadas em prática pelos trabalhadores rurais sem terra, em sua maioria, foram recebidas com reações violentas por parte dos “supostos 279 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.165. MST, janeiro 1997. p.3. 191 donos” das respectivas propriedades, levando à morte dezenas de pessoas envolvidas nos confrontos (ver capítulo 4). Em face dessa questão, observa-se que, somente em 1996, houve a morte de mais de 46 trabalhadores rurais envolvidos em conflitos, destacando-se, sobretudo, o massacre de Eldorado dos Carajás no Pará, com a morte de 17 trabalhadores. O trecho a seguir possibilita a visibilidade do que estava por trás das ações do poder público, quando se buscava a inibição dos anseios das forças sociais no campo, utilizando-se de mandatos de prisões das lideranças, o que pretendia a desmobilização do Movimento e tornando o espaço de atuação dos trabalhadores menos promissor: Ela (a prisão) vem com o objetivo de passar para a sociedade que quem está preso é marginal, que o MST é um movimento de baderneiros, por isso eles estão presos na cadeia. Também faz com que os trabalhadores que se referenciam nessas lideranças se retraiam e tenham medo de enfrentar a luta pela terra [...], inibindo a luta, impede-se que se desmascare o que representa o latifúndio no Brasil e as promessas do governo [...]. Os policiais e os juízes interrogam-nos colocando a gente como criminosos. Quando aparece a acusação de que não somos trabalhadores, não te dão o direito de dizer que a tua luta é digna, isso provoca angústia, revolta e até medo de continuar, porque dentro de uma cadeia a gente perde a noção de mundo. Ela te isola e a gente começa a refletir porque isso está acontecendo.280 O trecho da entrevista descortina a hipótese de que o governo estava apático às tensões prementes no campo. Confirma as representações de Ênio a respeito de seu receio quanto ao aparelhamento da elite, tendo em vista que a 280 Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1996. p.4. É oportuno assinalar que, em 1989, uma das lideranças do Movimento, José Rainha, estava sendo acusado de ser um dos responsáveis pela morte de um pistoleiro e de um latifundiário no Espírito Santo. O JST clamava apoio dos trabalhadores rurais e da sociedade civil, no intuito de fazer pressão junto ao Poder Judiciário como tentativa de inviabilizar a denúncia feita contra a liderança, uma vez que, segundo o jornal, o Judiciário “não dispunha de provas para incriminá-lo, pois José Rainha havia sido transferido para o MST do Ceará seis meses antes do episódio por estar sendo ameaçado de morte”. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, janeiro de 1997. p.9. 192 prisão era uma forma de desencorajar a continuidade da luta e das resistências dos trabalhadores. O ato da prisão envolve também, na maior parte das vezes, forma de torturas que implicam em delação a respeito de que forma a organização estaria articulada e suas pretensões futuras. Assim, o Estado não prejudica apenas o sujeito, mas propala o medo coletivo, pois os trabalhadores engajados no MST carregam em si, o mesmo objetivo: fazer pressão política com intuito de promover a reforma agrária. Nesta perspectiva, emanou um discurso oculto por parte do Estado, frente à opinião pública, ao efetivar a prisão de um trabalhador rural ou de uma liderança do Movimento. Porém, nesse discurso, figura-se a hipótese de que, detendo as lideranças e os trabalhadores envolvidos nas ocupações, existiria uma manutenção da ordem, uma vez que já se incutiu na sociedade a idéia de que os trabalhadores são observados como “baderneiros” por infringirem a ordem instituída. Ao analisar a conjuntura política da organização do Movimento no Rio Grande do Sul, foi indagada sobre a sua percepção acerca da participação da mulher no MST, trazendo à luz uma questão importante a respeito da participação feminina nas tomadas de decisões quanto às perspectivas de ação. Tendo em vista que todos os integrantes do Movimento possuem os mesmos direitos de se manifestarem e de galgarem posições políticas de destaque e representatividade, o trecho da entrevista descortina um discurso velado pela organização: A mulher trabalhadora rural é duplamente explorada. É quem mais sofre, porque na medida em que a família não tem terra, ela sofre enquanto classe, por não ter onde plantar, por não ter o que comer. Mas ela também sofre pelo fato de ser mulher, porque a nossa sociedade é machista e dá a ela apenas o espaço privado de atuação [...]. Se temos 4,8 milhões de 193 famílias sem terra, certamente dois milhões são mulheres e o MST nunca pode esquecer disso.281 O trecho citado é emblemático, destacando o discurso de igualdade apregoado pelo MST ao longo de sua trajetória. Contudo, há de se ressaltar que não se trata apenas da vontade desta organização exercer a igualdade de gênero em seus quadros, era preciso modificar concepções históricas cristalizadas acerca da prática do sexismo no Brasil. Nesse relato emana um tom de questionamento e de indignação frente ao sofrimento feminino, representado de forma dupla ao fazer parte do Movimento. Mesmo assim, a entrevistada defende o MST e salienta que “não podemos olhar para ele e imaginar que a pouca participação das mulheres se dá em função de que ele é machista. A sociedade brasileira é assim”282. Apesar da pertinência da fala da entrevistada, esta deixou transparecer um tom de conformismo ao reportarse às práticas de pouca participação feminina nas tramas do MST. Nessa perspectiva, torna-se salutar e urgente uma contínua discussão sobre a questão de gênero, visando mudar concepções sexistas arraigadas. Com o devido reconhecimento de que, apesar dos avanços alcançados com as políticas públicas sobre essa questão, ainda é preciso potencializar esforços junto aos movimentos 281 Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, mar. 1996. p.4. 282 A violência contra a mulher não pode ser justificada por razões culturais ainda cristalizadas. A sociedade brasileira nasce sob a égide do machismo herdada do europeu colonizador nos primórdios da colonização. Pois, na França e na Inglaterra dos Séculos XVI e XVII, postulava-se a inferioridade da mulher em detrimento da superioridade masculina. Davis destaca as práticas de violência imputadas às mulheres, particularmente no Capítulo V de seu livro. Porém, a autora desnuda o discurso acerca da passividade feminina, observando que as práticas de resistências se deram em larga escala por parte das mulheres. Alerta “que em vários momentos as mulheres figuraram criticando padres e pastores, tornando-se personagens centrais nas revoltas urbanas e rurais contra os preços do pão e dos cereais e participando de manifestações contra impostos e outras perturbações de ordem rural [...]. A autora assinala que no início do século XVII, na Inglaterra, as mulheres constituíam uma percentagem significativa dos que se revoltavam contra o fechamento dos campos e a favor dos direitos comuns”. Cf.: DAVIS, Natalie Zemon. Cultura do Povo. Sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p.123. 194 sociais e ao poder público, colocando em prática os projetos existentes e promovendo outros que contemplem a igualdade de gênero. Apesar da reconhecida atuação política da entrevistada e da clareza demonstrada sobre a condição feminina no Movimento, o seu discurso tende a responsabilizar a questão cultural brasileira e não a atuação dos integrantes. Era como se a mulher não participasse porque ela não quisesse ou não fosse competitiva. Nota-se com isso, que “o MST precisa colocar em prática alguns mecanismos que garantam uma participação mais efetiva das mulheres em todos os processos”, ou seja, atestando a ausência da participação política feminina no cotidiano do Movimento. Para a entrevistada, “a mulher deve participar na discussão, no levantamento de propostas, assim como da decisão de ação”. Caso isso não ocorra, “o MST sairá perdendo”. As mulheres têm um potencial muito grande a ser incorporado na luta pela terra, especialmente no processo de cooperação agrícola, pois o assentamento é o espaço onde as pessoas vivem. Se a mulher participar mais ativamente, certamente nossos assentamentos terão um avanço muito grande no processo de cooperação. Muitas de nossas companheiras ainda não compreenderam isso. Ninguém participa de corpo e alma, de uma coisa que não entende.283 283 Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, mar. 1996. p.4. A tensão posta é indagar porque a mulher trabalhadora rural não participa das tomadas de decisões. O trecho elucida as qualidades dessas mulheres, sinalizando hipóteses do que ela poderia fazer, caso fosse inserida nos postos estratégicos do Movimento, ao passo que coloca que “ninguém participa do que não sabe”. Outra indagação: por que não sabe o que está acontecendo se essa mulher esteve imbricada na luta desde a sua concepção, ou não esteve? Essas são algumas das interfaces da pesquisa que a fonte utilizada não evidenciou caminhos para possível problematização, carecendo do recurso da História Oral no sentido de compreender melhor essas inquietações. Reportando-se a práticas sexista que perpassaram o século XIX, estando presentes em alguns setores no século XX, PINSKY e Pedro assinalam que era comum entre os homens, enxergarem as mulheres como concorrentes no mercado de trabalho e expediente dos patrões reduzir os salários, aceitando a idéia de menor valor do trabalho feminino, percebendo-as não como aliadas nas reivindicações trabalhistas, “por mais dedicadas que fossem aos movimentos dos trabalhadores, a operária era vista como um trabalhador incompleto, alguém que deveria ficar em casa”. PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e Especificidade. In: PINSK, a Jaime; PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.283. 195 O discurso evidenciado norteia possibilidade de participação da mulher nas tomadas de decisões, além de desvelar um discurso de que muitas companheiras não atuam pelo fato de desconhecerem o processo da luta. Justifica tal afirmação alegando que ninguém participa do que não conhece ou não entende. Essa fala descortina a negação da atuação feminina nas tomadas de decisões no seio da organização. Salienta que a responsabilidade de inserir a mulher nesse espaço de luta “é do conjunto de nossa organização, pois não é possível libertar a classe trabalhadora sem que a gente não se transforme”. Para a liderança, a organização “não almeja apenas a divisão das riquezas e do latifúndio, esta tem que discutir também com maturidade a questão de gênero” no seio do movimento. Pois “não queremos ser mais que os homens. Queremos ser entendidas enquanto seres diferentes, mas politicamente iguais”284. Com essa observação a entrevistada reforça que o lugar de submissão que a mulher ocupava na organização necessitava urgentemente de uma mudança de comportamento. Apesar de figurar no discurso das mulheres entrevistadas pelo JST a informação de incipiente participação feminina nas tomadas de decisões, os relatos revelaram uma presença marcante destas em setores estratégicos da organização, bastando se debruçar acerca de sua atuação nas cooperativas, nas frentes de formação no setor de educação e, ainda, no número significativo de entrevistas publicadas pelo jornal contemplando lideranças femininas. 284 Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, mar. 1996. p.4. Davis pontua que no século XVI, em Paris, embora oriundas de famílias de posses, mulheres chamaram a atenção dos homens letrados pela sua participação nos processos de tomadas de decisão, particularmente no que tange o uso da palavra impressa como ferramenta para expressar os seus sentimentos, os seus pensamentos, inclusive manifestando indignação frente a algumas práticas um tanto cristalizadas. Os textos publicados por mulheres nesse período eram endereçados a outras mulheres, “defendendo-se da crítica de que o silêncio é o adorno da mulher”, solicitavam para que mulheres de letras escrevessem e publicassem seus escritos na tentativa de corrigir os equívocos a seu respeito. DAVIS, Natalie Zemon. Cultura do Povo. Sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p.178-9. 196 Nesta perspectiva, aborda-se o relato de outra liderança feminina285, Maria Carlota de Oliveira Amado, responsável pelo Setor de Educação do acampamento Santo Antonio, Município de São Luiz Gonzaga-RS. Indagada pelo JST sobre a importância da educação para a transformação social, Carlota pontuou que “está na hora de pensarmos um projeto que construa uma nova história para a humanidade. E a educação tem papel fundamental para a formação do sujeito capaz de transformar a sua própria história” 286 . Na concepção da entrevistada, “o aluno aprende a partir de sua realidade, sendo assim capaz de compreender e interpretar o processo histórico, transformando-o”. Questionada sobre os desafios que o MST deveria enfrentar a partir de então, Carlota pontuou que “ocupar novos espaços na sociedade” configura o seu maior desafio. E este, por sua vez, seria sanado ao passo que essa ocupação fizesse uso constante da educação como ferramenta de luta. De antemão, ela entende que “só a reforma agrária em si não é suficiente para realmente termos um novo desenvolvimento que atinja todo o povo. [...] É preciso resgatar esperanças para poder construir não só o futuro, mas o presente” para a sociedade. Na seqüência, Milton José Fornazieri 287 registra suas impressões sobre a gestão do governo Fernando H. Cardoso e avalia a possibilidade de sua reeleição, 285 Entrevista com Maria Carlota de Oliveira Amado. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1998. p.3. A entrevistada informa que no ano de 1968, seus pais foram expurgados das terras onde viviam por não dispor de recursos próprios para comprá-las, pois eram arrendadas. A entrevistada rememora que conheceu o MST em 1991, mas só em 1996 percebeu a sua importância na luta pela reforma agrária. Pontua que a partir de então passou “a ter consciência de que também era uma sem terra”. 286 Entrevista com Maria Carlota de Oliveira Amado. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1998. p.3. 287 Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, novembro de 1998. p.3. Nesta oportunidade, o entrevistado descreve que a sua inserção no MST se deu ainda quando estava no Seminário. Segundo ele, “sempre procurou participar das mobilizações e atos que aconteciam em Porto Alegre”. Começou a militar em 1989, com a ocupação da fazenda Bacaraí, em Cruz Alta-RS, figurando no momento da entrevista como presidente da COOPAN (Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita). Assentado nesse município, o entrevistado salienta que seu maior sonho é “ver este nosso país livre de toda a opressão, com os trabalhadores dando o rumo que a nação deve seguir”. 197 traduzindo um pouco de suas experiências com o cooperativismo nesse estado, posicionando-se, ainda, sobre os desafios a serem enfrentados pelo MST. O entrevistado observa que a necessidade da reforma agrária se dá no intuito de viabilizar “a distribuição de terras para quem nela deseja trabalhar e tirar o seu sustento, tornando possível o sonho de trazer ao presente toda a luta e o anseio de liberdade de milhares de trabalhadores que nos antecederam”. Para esse trabalhador, “a luta pela reforma agrária é uma luta pelo fim da pobreza em nosso país”. Indagado acerca da importância do cooperativismo como forma de viabilizar o processo de desenvolvimento dos assentamentos, o entrevistado salientou que “a cooperação agrícola é uma das ferramentas que devemos utilizar, implementando as diversas formas de cooperação”. Nesse sentido, leva-se em consideração “a situação concreta de cada assentamento, devendo avançar na assistência técnica, na ampliação dos investimentos e em projetos rentáveis, que possam trazer retorno ao assentado” 288 . Ao tecer considerações sobre a possibilidade da reeleição do então presidente Fernando H. Cardoso, Milton foi categórico ao afirmar que este representa para a classe trabalhadora o mesmo sofrimento que passamos nos últimos quatro anos [...] Creio que o período será extremamente duro, mas, também, será o momento do despertar da classe trabalhadora e da retomada de grandes mobilizações de todos os segmentos populares.289 Sobre o setor de produtividade no MST, para Milton “o principal avanço que estamos tendo é na área da agroindústria, buscando a industrialização em muitas linhas de produção”. Outro ponto, caracterizado por ele como desenvolvimento para 288 Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, novembro de 1998. p.3. 289 Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, novembro de 1998. p.3. 198 esse setor seria a “capacitação que cada estado desenvolve ao levar o crescimento da cooperação agrícola e a busca de alternativas mais adequadas à realidade de cada assentamento”290. Quanto aos desafios do MST, Milton expressou que o Movimento “tem que continuar realizando ações de massa, garantindo a luta pela reforma agrária, bem como a garantia de direitos básicos da sociedade”. Em face disso, pondera-se que o discurso do entrevistado exprime-se em mensagens construídas, com a noção de ampliação do que chamam de progresso e avanço político da luta no campo. 3.5 REGIÃO SUDESTE: ESTADO DE SÃO PAULO Para o estado de São Paulo tornou-se possível analisar quatro entrevistas, contemplando as impressões de três homens e de uma mulher291, publicadas entre 1994 e 1995. Em geral, as entrevistas traziam em seu bojo inquietações acerca da conjuntura da luta, na qual o MST era o protagonista. Algumas das questões presentes nesse subitem são: problemas de distribuição de terra, organização dos trabalhadores, propostas articuladoras pela posse da terra, quantidade de pessoas envolvidas nas cooperativas, dificuldades enfrentadas pelo Movimento, os desafios de ser mulher e ocupar posição de destaque na organização. 290 Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, novembro de 1998. p.3.. 291 Em termos quantitativos, observo que a fonte em questão não me proporcionou analisar os relatos de forma equânime quanto ao gênero das lideranças entrevistadas. Pois, dentre estas, o JST priorizou um número relativamente menor de mulheres, em detrimento a um número expressivo de homens. Essa observação foi feita em todos os estados, onde o MST estava organizado. A título de exemplo, a seção de entrevistas configurou-se efetivamente nas páginas do JST em 1993, tendo publicado, no percurso de oito anos, cerca de dezoito entrevistas contemplando o gênero feminino em todo o país. Assim, revelou a incipiente presença feminina nas instâncias estratégicas de tomadas de decisões no Movimento. 199 Sobre o andamento da luta no estado de São Paulo, nota-se que esta se tornou visível “após a grande ocupação da fazenda Getulina”, quando o Movimento ganhou projeção nacional. Assinala-se que “através das mobilizações, nós estamos conseguindo levar a luta da reforma agrária para as cidades, rompendo com aquela visão de que essa luta é coisa de comunista”. Desse modo, uma parcela importante da sociedade que via com maus olhos, agora se volta a nosso favor porque os problemas sociais que enfrentamos no Brasil são muito grandes e a reforma agrária é uma das medidas mais importantes para resolver esse problema da fome e da miséria.292 Nos primórdios da década de 1990, o Movimento desfrutava de crescente visibilidade, até porque houve certa colaboração de parcela da população urbana e rural, no que se refere às suas ações coordenadas encabeçadas pelo MST. Portanto, a entrevista sinaliza que tal visibilidade foi fruto da ocupação maciça da fazenda Getulina, no interior desse estado. De acordo com o entrevistado, nesse momento, o MST-SP alcança projeção nacional, particularmente quando se percebe um despertar por parte da imprensa no que concerne à questão agrária. Indagado sobre a possibilidade de concentração de terras nesse estado, o entrevistado observa que “embora seja um estado onde o capitalismo no campo, os pacotes tecnológicos e os projetos de agroindústria estão implementados, São Paulo não é diferente dos outros estados, havendo concentração de terras nas regiões Sul e Oeste”, particularmente 292 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1994. p.4. 200 na região Sul, em que estão grandes áreas de terras devolutas e irregulares onde se encontram grandes fazendas de pinho e de eucalipto dominadas quase que exclusivamente pela família de Antônio Ermírio de Morais. Nesta região o MST conquistou a Fazenda Pirituba, mas os companheiros trabalhadores de lá continuam se mobilizando, porque a concentração de terras e a situação de miséria que eles vivem não lhes dão outra saída.293 Questionado sobre a habilidade que o MST tinha em organizar uma parcela significativa de pessoas desse estado entorno do Movimento, Mineirinho foi categórico ao observar que um dos motivos para que isso acontecesse foi o “desenvolvimento brusco do capitalismo no campo” e, consequentemente, agregando enormes contingentes de pessoas ao seu entorno. As razões de sua opção pelo MST são bastante claras: Sofrendo com as conseqüências da exploração do mercado de trabalho ou por estar fora dele. É resultado do inchaço dos grandes centros. É o bóia-fria ou o assalariado rural temporário que com a mecanização do corte da cana [grifos meus], está sobrando, ficando sem emprego no campo. Desse jeito esse pessoal não tem alternativa além de lutar por um pedaço de chão, porque a maioria é de origem camponesa e ainda sonha em ficar na terra.294 A fala do entrevistado ecoa na chamada “questão da modernização da agricultura brasileira”295, ao se destacar que, a partir da década de 1970 até meados da década seguinte, o cenário do campo brasileiro passou a ser o principal receptor 293 Entrevista com Mineirinho. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, setembro de 1994. p.4. O entrevistado ressalta: “quanto à região do Pontal de Paranapanema, percebe-se que esta é uma região atrasada, pois é de pecuária extensiva e, além disso, a situação jurídica das terras geralmente é ilegal, porque as áreas pertencem ao estado. Por isso, nós do MSTSP, acreditamos que tem muita luta pela terra para ser feita por aqui”. 294 294 Entrevista com Mineirinho. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, setembro de 1994. Sobre esse assunto ver: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do Fim do Século. São Paulo: Unesp, 1999. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. Ensaios sobre a a afirmação e a negação do trabalho. 5 ed. São Paulo: Boitempo, 2002. HOBSBAWM, Eric J. Mundo a do Trabalho: novos estudos sobre a história operária. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1995. 295 SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.27. 201 de quantidades significativas de insumos agrícolas, tais como fertilizantes, defensivos químicos e máquinas. Consequentemente, “aumenta-se a produtividade da terra, aumentando-se as exigências de mão-de-obra não qualificada por ocasião das colheitas”, sendo essa última uma das proposições a motivar, em larga escala, a inserção da mecanização nos campos brasileiros. Porém, ao passo que essa “atinge outras atividades que não a colheita, acentua a sazonalidade de ocupações dessa mão-deobra”296, desencadeando, por outra via, o desemprego em larga escala no campo, sendo esse um fenômeno também nas cidades. Em face disso, a modernização aumenta as exigências e diminui o período de ocupação da mão-de-obra não-qualificada numa dada propriedade agrícola. A solução mais econômica para o proprietário que moderniza a sua fazenda passa a ser a substituição do trabalhador permanente pelo volante, com o conseqüente aumento da sazonalidade do emprego dos trabalhadores rurais.297 Corroborando o trecho descrito anteriormente, assinala-se que “embora a atenção pública esteja voltada para os efeitos do desemprego tecnológico nos setores industriais e de serviços”, questiona-se que processos similares e talvez mais violentos estejam se configurando nas áreas rurais do país, uma vez que essas transformações, pouco visíveis, “estão mudando a natureza da agricultura moderna e, em seu processo, levantando sérias questões sobre o futuro da mão-de-obra agrícola nos países, em todo o mundo”298. 296 SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.27. 297 Ibidem. p.30. 298 RIFKIN, Jeremy. O Fim dos Empregos. São Paulo: Makron Books, 1995, p.117. Na perspectiva desse autor, “as mudanças tecnológicas na produção de alimentos estão levando a um mundo sem 202 Nesse cenário, o entrevistado assinala que os trabalhadores rurais sem terra prosseguiam alimentando o desejo de que, a partir da luta pela reforma agrária, as negociações tendem a avançar na “perspectiva de resolver os problemas da fome e da miséria deste país”, quando, de acordo com as reflexões acima, essa expectativa torna-se pouco promissora. No campo da produção, o entrevistado assegura que há uma enorme dificuldade em obter “recursos para a viabilização desta nos assentamentos”, indicando os avanços do MST nesse estado, particularmente quando se pensa na “fundação da Central de Cooperativas dos Assentados”. Pontua-se que, no ano de 1994, haviam no estado de São Paulo “mais de 40 assentamentos rurais”, frutos da organização do Movimento, que à época completava dez anos de sua existência. Na seqüência, Delwek Matheus299 destaca que, dentre várias questões, os maiores desafios do setor eram desenvolver e massificar a cooperação, além de viabilizar economicamente os assentamentos, argumentando que individualmente é difícil superar a política do governo que não desenvolve nada para apoiar o pequeno produtor, ao contrário só prejudica! – Por isso é que a gente sempre insiste, batalha pela cooperação para que os companheiros tenham consciência e venham desenvolver a cooperação nos assentamentos que, com certeza, será a garantia da reforma agrária.300 agricultores, com conseqüências imprevisíveis para 2,4 bilhões de pessoas que dependem da terra para a sua sobrevivência”. 299 Assentado na Fazenda Pirituba e integrante da Direção da Central de Cooperativas de São Paulo. Para ele, no momento em que os assentamentos forem viabilizados com investimento, haverá a possibilidade de se “mostrar para a sociedade a viabilidade da reforma agrária”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1995. p.4. 300 Delwek Matheus. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1995. p.4. 203 A observação de Delwak surpreende ao afirmar sobre a existência alternada de participação e abandono por parte das próprias famílias nas cooperativas do movimento. Qual teria sido o principal motivo a desencadear essa evasão? O entrevistado explica que na medida em que você não viabiliza economicamente as famílias, elas ficam desgostosas e acabam deixando a Cooperativa. Mas o que acontece é que naquele momento essas famílias não têm consciência de que não é a cooperativa que está provocando aquela dificuldade e sim a política do governo. Nosso grande problema é a falta de apoio do estado. Os pequenos produtores, em geral, estão perdendo a terra, independente de estarem em cooperativa ou não, sobretudo aqueles que estão individuais. O fato dos produtores saírem das cooperativas é porque naquele momento ele não reúne consciência suficiente para ver que é um problema da política do governo.301 Nessa perspectiva, apesar da organização do movimento no estado, escapa da observação do entrevistado a ausência de unidade ao grupo, assinalando inclusive uma falta de consciência política por parte dos trabalhadores envolvidos, desvelando certa tensão. Dessa forma, alertava que o Brasil precisava pensar “numa política rural de outro tipo, a fim de atrair gente para trabalhar no campo, mas com base em um modelo novo” para poder, então, enfrentar “o desafio de criar empregos no campo sem inviabilizar a produção nas grandes propriedades”, promovendo com segurança “uma agricultura variada” de modo que contemplasse a “produção comercial e familiar”302. 301 Delwek Matheus. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1995. p.4. 302 Nessa entrevista, Furtado assinala que “os integrantes do MST têm norteado suas reivindicações nessa direção, estão conscientes disso”. Cf.: FURTADO, Celso. O Brasil do Século XX. In: BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas do Século XX. Rio de Janeiro, 2006. p.13. Disponível em: <biblioteca.ibge. gov.br>. Acesso em: out. 2009. 204 Na seqüência, a discussão concentra-se nas reflexões de Maria Rodrigues303, trabalhadora rural do assentamento de Promissão, membro da Direção estadual do MST e Dirigente da Central de Cooperativa desse estado. Ela observa inicialmente que o seu principal papel era o de “organizar os trabalhadores para a conquista da política agrícola, porque a gente conquistou só a terra. E a gente não se contenta só com isso”. Argumenta que para alguns trabalhadores o sonho termina quando se consegue um lote de terra para plantar, porém o sistema exige que os trabalhadores estejam organizados em busca de políticas agrícolas para se manter na terra, porque senão eles voltarão a ser expulsos pelos mesmos fatores que expulsaram os seus pais. [...] A conquista da terra, do lugar para morar e viver, para ter sossego, constitui-se no projeto de vida dos pobres do campo por vários motivos: para criar os filhos longe das drogas, da violência, da criminalidade urbana; para livrar-se do pagamento do aluguel, das dificuldades financeiras, da fome, do desemprego, da dominação e também para um possível reencontro com um mundo deixado para trás, mas que permaneceu no imaginário como uma espécie de paraíso perdido.304 Com visão privilegiada acerca das questões econômicas que regem a agroindústria paulista, a entrevistada observa que “São Paulo é a capital da concentração de poder, renda e de meio de produção, por isso a gente sofre maior 303 Maria Rodrigues residiu até os dezesseis anos na cidade de Campinas-SP, quando começou a articular pessoas para participar do MST e lutar pela reforma agrária. Mãe de quatro filhos, assentada há oito anos no assentamento de Promissão-SP, ocupou vários cargos no MST. Relata que o seu retorno para o campo teve vários motivos: o de contribuir mais de perto com a educação dos filhos; o de se livrar do desemprego, pois havia épocas em que estava empregada e épocas que não estava; e o salário, que não era suficiente pra suprir aquilo que desejava ou tinha necessidade para a sua família. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de 1995. p.4. A fala da entrevistada ecoa nas observações de Matos ao assinalar que “a indústria corroborava para o despovoamento e a desorganização dos campos, tendo introduzido um fator de desequilíbrio na ‘tradicional ordem econômica e social’ [...]; a cidade, portanto, passa a ser identificada com o individualismo, a competição, a mendicância e a anarquia, enquanto o campo era o espaço salvador, pacífico e tranqüilo”, visão esta cultivada pela entrevistada em pleno século XX. Cf.: MATOS, Maria Izilda S. de. Entre o campo e a cidade: tensões e polêmicas em torno das indústrias de juta. Projeto História. n.19. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1999. p.74. 304 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da Unesp, 2004. p.92. 205 dificuldade em trabalhar com pouca estrutura do movimento”. Ela deixa registrado nas páginas do JST que o assentamento de Itapeva era onde a organização estava mais avançada, contando com cooperativas de produção e almejando a implantação de um frigorífico. Nesse caso, o avanço é compreendido pela apropriação de tecnologias, de geração de emprego e renda nos assentamentos, produção e escoamento dos produtos em mercados internos e externos. Não obstante, pontua que no assentamento de Promissão onde residia, a discussão encontra-se atrasada, estando ausente parte dos benefícios alcançados em Itapeva. Entretanto, “esse é um dos assentamentos de maior produtividade no estado, pois as 628 famílias aqui assentadas aumentaram em torno de 30% a renda do município, dando vida àquela cidade”305. Sobre algumas ações recentes do MST perpetradas no estado, a entrevistada observou que: Em Promissão, após ocuparmos o Banespa por três dias, conseguimos negociar as nossas dividas e obter financiamento. Pelo banco nós ficaríamos sem financiamento para a próxima safra. Mas ele sentiu o peso da ocupação. Para nós, tanto fazia ocupar o banco três dias, um mês ou dois meses; não suportando a pressão eles arranjaram um jeito de financiar o pessoal.306 305 Maria Rodrigues. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de 1995. p.4. Nesse cenário, pontua-se que “o impacto da criação de um assentamento rural marca profundamente o cotidiano de um município, seja do ponto de vista social ou econômico, dando a terra uma função social; além do mais, disponibiliza-se a um conjunto de famílias instrumentos para a sua sobrevivência. Após um período de convivência, constroem-se casas, conquistam-se escolas e começam a produzir. Portanto, a produção garante o abastecimento de alimentos aos moradores das pequenas cidades e gera renda às famílias assentadas. Desta maneira, cada assentamento busca desenvolver uma mentalidade e uma atitude de Soberania Alimentar, compreendendo que a sua função social é produzir alimentos, sendo esta a primeira tarefa histórica do Movimento, a eliminação da fome no meio das famílias camponesas”. Cf.: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA - MST. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 20/06/2010. 306 Maria Rodrigues. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de 1995. p.4. 206 O trecho acima descortina a relação de poder velada entre os representantes da agência do Banespa e os integrantes do MST, claramente evidenciada na luta. Por fim, questiona-se sobre os desafios enfrentados por ela mesma ao ocupar um setor da organização fortemente marcado pela presença masculina, que é o setor de produção. Nesse sentido, a argumentação da entrevistada caminha na mesma direção que as demais, anteriormente problematizadas. Com um discurso flexível, a entrevistada traz à luz uma tensão do passado, mas que figura de forma pulverizada no Movimento, reportando-se à relação de gênero e suas desigualdades. Para ela enquanto estão indo na luta pela terra, nas ocupações, são as companheiras que estão à frente. Quando os companheiros têm que sair para trabalhar fora, são as mulheres que seguram a luta nos barracos, com suas crianças. Até aí é praxe as companheiras participarem das lutas. Na hora de produzir, elas também estão lá, mas quando é pra ir ao banco, fazer as documentações, as transações de dinheiro e assim por diante, elas sempre ficam dentro de casa, ou melhor, trabalhando dupla jornada, porque também vão à roça, cuidam dos animais, da casa, dos filhos.307 A entrevistada assinala que “a trabalhadora rural sofre muito mais as pressões do machismo, porque lá o companheiro costuma dizer que ele é o dono do lote e é o dono de tudo, logo ela é apenas parte da propriedade dele”. Aos seus olhos de mãe, de liderança e de mulher, há possibilidades de solução para esse problema e a noção de submissão da mulher só seria dissolvida com o desenvolvimento do Setor de Educação, sendo “através dele que nós vamos formar e capacitar novas companheiras para estar assumindo a luta na produção”. 307 Maria Rodrigues. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de 1995. p.4. 207 3.6 REGIÃO CENTRO-OESTE: ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL Segundo o Jornal, somente no estado do Mato Grosso do Sul havia aproximadamente “cem mil sem terra”. Além disso, denunciou-se que esse “é um típico estado onde impera o coronelismo [...] amparados no Movimento Nacional dos Produtores, são eles que mandam e governam esse estado”. O periódico evidenciava que o MST-MS avançava na tentativa de conquistar a reforma agrária, buscando, dentro de suas possibilidades, a neutralização do grupo de fazendeiros que, politicamente e economicamente, encontravam-se organizados no intuito de desmobilizar a luta dos sem terra e de qualquer outro grupo social que militasse contra os seus interesses. Em face disso, a fonte em tela atestou que “o MST chegou ao estado em 1984, com a ocupação da Fazenda Santa Idalina, no município de Ivinhema”. Já em março de 1998, este organizou o acampamento 8 de março, com 2.163 famílias, no município de Itaquiraí, considerada a maior mobilização do Movimento no estado e um dos maiores acampamentos no país. Ademais, até o momento do fechamento dessa edição do jornal, o estado do Mato Grosso do Sul “constava com oito assentamentos – com 653 famílias, 2.250 famílias acampadas e 740 famílias em pré-assentamentos”308. 308 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1998. p.3. Nesta perspectiva, recorre-se ao conteúdo das entrevistas do JST com cinco lideranças do MST no estado, a fim de problematizar algumas inquietações levantadas pela pesquisa. Para tanto, optou-se pela interpretação das impressões de José Batista, membro da Coordenação Nacional e da Direção Estadual do Mato Grosso do Sul, entrevista publicada no JST em julho de 1993, p.4; Egídio Brunetto, Direção Nacional pelo MS, entrevista publicada no JST em dezembro de 1994, p.4; Laura dos Santos atua no setor de educação, entrevista publicada no JST em agosto de 1996, p.6; Lúcio Kuhnem Meurer, Direção Estadual do MST, MS, entrevista publicada no JST em março de 1998, p.3; Nair Guedes Rodrigues, atuou na Coordenação Estadual, Direção Estadual, no Setor de Frente de Massa e contribui no Setor de Gênero do Movimento nesse estado, entrevista publicada no JST em outubro de 1999, p.3. 208 Para José Batista, “em 1993 havia nesse estado 1.603 famílias acampadas e divididas em sete acampamentos, contando com a presença de 26 assentamentos com mais de 5.000 famílias”. Questionado a atuação do governo estadual no mesmo ano no qual a entrevista foi concedida, o entrevistado foi incisivo ao afirmar que “o governo é comprometido com a estrutura fundiária; além disso, ele também é um dos latifundiários do estado”. Nessa oportunidade, figurou-se a denúncia de que o Mato Grosso do Sul tinha cerca de 400 mil hectares de terras devolutas, e ao invés do estado distribuir essas terras para as famílias acampadas, ele está regularizando-as em nome de pessoas do próprio governo. A título de exemplificação, a fonte tornou público que “o Diretor da Terrasul regularizou 3.400 hectares em nome do seu pai e do seu sócio”. Aos olhos do entrevistado “o governo mantém uma política de não fazer assentamentos em seu mandato”, ao passo que se configuram “inúmeras negociações não passando de conversas e boas intenções”. Indagado acerca da situação dos assentamentos nesse estado, José Batista traduziu nas páginas do periódico que “há uma condição semelhante entre os 26 assentamentos: o total abandono”. Pois, a seu ver, “há uma baixa qualidade das terras, falta de assistência técnica, ausência de capital e péssimas condições de infra-estrutura social”. De acordo com a fonte, a situação de miséria e pobreza configurava-se no principal motivo que levava “os trabalhadores rurais a abandonarem ou venderem os seus lotes”. Em 1994, com a mudança de governo estadual, agora representado por Wilson Barbosa, Egídio traduziu aos leitores do periódico as perspectivas da luta do MST nesse estado. Nesse momento, retoma-se a fala da liderança anterior ao salientar que “o Mato Grosso do Sul é o estado de maior concentração de terras do 209 país”. De acordo com suas impressões, “a maioria dos proprietários de terras são de outros estados e os que vivem aqui são as velhas oligarquias que mandam na política, na economia, na justiça e na imprensa”. Frente a essa observação, a liderança alertava aos trabalhadores rurais que “não haverá mudanças políticas em relação à luta pela terra nesse novo governo”. Pois, apesar de ele ter fama de democrático, suas alianças com grupos de latifundiários não indicam boas perspectivas, mas as duas mil famílias acampadas e os cinco mil duzentos e cinqüenta assentadas no estado vão continuar com sua pressão exigindo respostas imediatas do governo.309 O trecho sinaliza a falta de perspectiva do Movimento com a posse do novo governo no estado, entretanto, observa que os trabalhadores estavam preparados para avançar na luta e pressionar o governo, no sentido de viabilizar a reforma agrária no estado. Na verdade, a década de 1990, pode ser observada como o período das tensões sociais nos campos, com manifestações fortemente marcadas nas cidades, havendo uma descentralização das reivindicações: as terras estavam no mundo rural, mas sua conquista indiscutivelmente se dava na cidade. A respeito de sua percepção acerca da atuação do MST-MS nos últimos dez anos, Egídio faz um balanço positivo da atuação ao vislumbrar que “o Movimento obteve muitos avanços” nessa década de luta, traduzindo sua observação em dados: “140 mil famílias assentadas, muitas com infra-estrutura, créditos, com a produção organizada; são expressivas conquistas do MST”. Por sua vez, estas foram frutos de muita luta e garra, assinala Laura dos Santos. 310 309 Egídio Brunetto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de 1994. p.4. 310 Antes de ingressar nas tessituras do MST, Laura era funcionária de um posto de gasolina. Em 1991, participou de sua primeira ocupação, tendo ficado acampada mais quatro meses à beira da estrada. Segundo ela, “as negociações não avançavam”. “Resolvemos forçar as negociações trancando a rodovia por três dias, chegou à polícia e os trabalhadores conseguiram intimidar. No dia 210 Ao expressar a sua opinião sobre a conjuntura do MST no Mato Grosso do Sul, a entrevistada pontuou que os trabalhadores “lutaram muitos anos nesse estado, más sem conquistas”. Reportando-se ao surgimento do MST-MS, ela indicava que no período de “1984 a 1987 o Movimento desenvolvia seu trabalho junto com a ala progressista da Igreja Católica – Comissão Pastoral da Terra (CPT). Após esse período, constitui a sua própria coordenação”. No ínterim de 1991 a 1996, concretizaram-se apenas dois assentamentos no estado: “o de São Manoel em Anastácio e o São Luiz, em Baitaporã”. Entretanto, “já existem várias áreas com a posse do INCRA, que ocorreram através de muitas lutas: ocupações, caminhadas, manifestações, atos públicos”. A descrição feita por Laura desenha um cenário no qual a reforma agrária não seria viabilizada sem a pressão do Movimento. Reitera, ainda, como mãe e como militante: “quero firmar o meu compromisso na luta pela conquista da terra, sendo companheira e solidária a tantas mulheres que também estão nessa luta”. Partilhando dessa luta, Lúcio311 expressa suas impressões nas páginas do periódico, ele se posiciona sobre a atuação do governo estadual da seguinte maneira: “o governo estadual trabalha de forma cautelosa na política de cooptação e seguinte, a polícia retorna prendendo treze trabalhadores, dentre eles, eu. Houve espancamento, violência, humilhação e tortura psicológica, tive muito medo. Pois na época não tinha clareza do que era a luta pela terra e me perguntava: por que estou aqui se só quero terra para trabalhar”? Enfim, na época em que Laura concedeu a entrevista ao JST ela fazia parte do Setor de Educação e era convidada a receber um prêmio de reconhecimento do seu esforço junto ao Movimento e aos trabalhadores rurais sem terra. Tratava-se do recebimento do Título de Cidadã Campo-grandense, indicado pelo vereador Pedro Taruel, do PT que aos olhos de Laura, “essa foi uma homenagem às mulheres do campo e ao conjunto da organização”, e não exclusivamente a ela. 311 Oriundo do município de Paranavaí-PR, filho de pequenos produtores, em 1985 mudou-se para o Mato Grosso do Sul para auxiliar o pai no seu sítio, no município de Ivinhema. A crise obrigou a família a vender a terra e Lúcio passou a viver como arrendatário. Em 1994, decidiu contribuir com o Movimento no trabalho de base no mesmo município. Participou da ocupação da Fazenda Sul Bonito, onde na época da entrevista estava assentado. Não obstante, esse trecho de apresentação inicial do entrevistado, de certa maneira, descortina a percepção de um passado que o condena. Pois a liderança que busca a terra, que se percebe como sem terra, que luta para que outros trabalhadores rurais tenham acesso à terra, também já foi um dia, um trabalhador “com terra”, contradizendo, em particular, a sua denominação. 211 de privilégio de outros movimentos. O objetivo dele é neutralizar a nossa luta, tentando nos desmobilizar”. Sua avaliação sobre o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso era negativa. Para ele, esse presidente “não quis mexer na estrutura fundiária do país – considerada a mais vergonhosa do mundo, onde poucos têm muito para especulação e muitos não têm nada”. Destacava que em seu primeiro período de governo havia “oitocentos mil assalariados rurais sem empregos e outros tantos migraram para a cidade por falta de incentivos”. Em face disso, pontuou que o presidente “resolve somente casos localizados sem, de fato, fazer a reforma agrária”, traduzindo os reflexos da ação do governo para os trabalhadores conforme explicitado abaixo: Num primeiro momento é o desemprego que coloca os trabalhadores numa situação de medo, sem coragem de fazer mobilizações por melhores salários, desmobilizados. Sem contar com a concorrência que a classe trabalhadora vem sofrendo frente à automação. Máquinas ocupam lugar da mãode-obra, tanto no campo como na cidade.312 A partir de então, quanto aos desafios norteadores do MST, o entrevistado tinha uma postura positiva, que consistia em “continuar fazendo lutas. Ocupar grandes latifúndios, realizar mobilizações para fazer com que de fato, a reforma agrária saia do papel. É preciso manter o apoio da população”, o que se configura num grande desafio. Por fim, discute-se a última entrevista desta série, na perspectiva de Nair Guedes Rodrigues, em que busca socializar com os leitores do JST suas experiências de luta. Indagada sobre sua percepção da importância da reforma agrária para o país, ela assinala “que o Brasil possui mais de 32 milhões de pessoas 312 Entrevista com Lúcio Kuhnem Meurer. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1998. p.3. 212 vivendo na miséria. Ao mesmo tempo, nosso país possui melhores terras produtivas. Esta, portanto, é uma forma de melhorar as condições de vida de quem sonha em voltar para o campo”. Ao expressar os dados técnicos do número de assentados e acampados nesse estado, Nair pontua que, em 1999, havia em todo o estado “três mil famílias acampadas e duas mil assentadas”, número expressivo segundo considerações da entrevistada. Indagada sobre as ações a serem viabilizadas pelo Movimento no final do século XX, pontuou que é preciso “continuar estimulando os movimentos populares como forma de combater o modelo político que vigora no país, fazer grandes ocupações e lutas de massivas”313. 3.7 REGIÃO NORTE: ESTADO DO PARÁ A história recente do estado do Pará atesta que a luta pela reforma agrária tem sido fortemente marcada pela violência, destacando a tragédia do massacre de Eldorado dos Carajás. Ocorrido em abril de 1996, esse foi um episódio de grande magnitude política, extrapolando inclusive às fronteiras do país e revelando ao mundo como se encontravam os conflitos no campo envolvendo a posse da terra. Joaquim Ribeiro dos Santos314 ressaltava que a entrada do MST no Pará se deu particularmente no ano de “1986, quando dispúnhamos apenas de uma secretaria, em Belém, que funcionava junto com a CUT, onde fazíamos 313 Além do mais, Nair pontua que é necessário “ser solidário, participar de toda luta de massa no país e conscientizar o povo brasileiro da necessidade de um modelo alternativo de governo, voltado para a construção do Brasil como Nação soberana e organizar a economia dentro das necessidades da população”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, outubro de 1999. p.3. 314 Joaquim Ribeiro dos Santos integra a Coordenação Nacional do MST/PA. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, outubro de 1994. p.4. 213 articulações”. Ao observar como estava organizada a luta pela terra, relatou que este estado era “marcado por conflitos de terra violentos”, porém “há grande simpatia pelo MST no Pará, por ele ser o único Movimento de massa que conseguiu conquistar terra dos grandes fazendeiros da região”. Assinala que “para enfrentar o Poder Judiciário e a UDR, temos que ter organização bastante forte”315. Não obstante, o segundo entrevistado316 pelo JST Jorge Néri, observa que “nesta região a luta dos trabalhadores rurais foi caracterizada pela luta de posseiros”. Assinalou de que forma se constituíram os confrontos iniciais e como o estado patrocinou estes conflitos. Descrevendo as ações de ocupação por posseiros, Jorge afirmou que estes “entravam na área e, quando o dono descobria, agilizava o mandato de despejo via Poder Judiciário e via polícia, e então ocorriam os conflitos”. Para ele, nos anos de 1970, “essa luta de posseiros é levada pelos sindicatos rurais, surgindo posteriormente lideranças na região que levam a luta pela reforma agrária, sobretudo via CPT”. Assim, os latifundiários se renovavam e, “em vez de matar indiscriminadamente qualquer posseiro, passam agora a se especializarem em assassinar lideranças”. O entrevistado cita a morte de “Arnaldo, Chico Mendes, Expedito Ribeiro e irmãos Canuto”, destacando que essa onda de assassinatos de lideranças desembocou, ao término da década de 1980, com uma ligeira queda nos conflitos no campo. 315 Entrevista com Joaquim Ribeiro dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, outubro de 1994. p.4. Num tom de brincadeira, o entrevistado salienta: “mesmo que o Valdir Ganzer e o Lula se elegessem, não haveria mudanças na luta pela terra aqui, porque há muita repressão sobre os movimentos sindicais e populares que lutam por reforma agrária”. Os dois políticos citados eram as duas maiores referências em termos de liderança popular no período. 316 Jorge Néri entrou no MST em 1993. Na época fazia parte da Coordenação Nacional do Movimento e da Direção Estadual do MST-PA. Na sua percepção, “numa região que tem a sua história escrita com sangue de índios e camponeses, o MST surge como única alternativa de justiça e paz”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1996. p.4. 214 Em face disso, foi nesse ínterim que o MST inseriu-se e ramificou-se nesse estado, acreditando “que a luta só seria possível se fosse massificada”. De acordo com a fonte, no ano de 1992, o MST faz ocupação da Fazenda Rio Branco com 500 famílias. No ano seguinte a gente ganha a área. Em 1994, a gente massifica e faz uma ocupação lá no cinturão verde com 2.500 famílias que termina no assentamento Palmares, com 850 famílias.317 Indagado pelo jornal sobre a capacidade de mobilização do MST na região, o entrevistado descortinou-a como propícia, demonstrando um cenário social velado. Ampliando seu olhar sobre os problemas sociais da região, sinalizou que “o garimpo faliu, não existe mais”; “a Vale do Rio Doce não consegue gerar empregos, pelo contrário, demite toda vez que uma nova máquina é introduzida”. Além do mais, há constantes “fluxos migratórios da região Nordeste para a região Norte” e, a seu ver, não existe projeto político para absorção da mão-de-obra dessa população e, ao ficar à margem desse processo, não se tem outra saída a não ser morrer nas periferias da cidade, de fome ou de doença venérea, na prostituição ou na violência urbana que é enorme, ou entrar no Movimento Sem Terra que te possibilita, além da terra, o reencontro com valores que até então haviam sido perdidos, como o companheirismo, a amizade, a noção de família, a noção de organização e respeito.318 O cenário desenhado pelo entrevistado remete-se às práticas de sociabilidade dos trabalhadores rurais, edificadas nas experiências de lutas e no processo de ocupação das terras, na construção dos acampamentos e no convívio 317 Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1996. p.4. 318 Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1996. p.4. 215 dos assentamentos. Nesses locais, com freqüência essa “sociabilidade instável se abre para os de fora, para o recém chegado”, recuperando sonhos, construindo a sua história e estabelecendo o retorno aos ideais de “familismo e de vizinhança rural”319. Sob o olhar do entrevistado, era inaceitável que num lugar, onde existe “a maior mineradora do mundo, onde existe reserva de ouro, ferro e bronze”320, exista também a proliferação da pobreza e da miséria. Ele salientava que “nessa região a luta pela terra significa a busca por um espaço que possibilite a segurança econômica, mas também o resgate da cidadania”321. Dessa maneira, sua percepção acerca do vivido denunciava as marcas negativas da presença do capitalismo no campo, mas também anunciava “ao homem comum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de transformação do impossível em possível”322. Em face disso, 319 MARTINS, José de Sousa. A Sociabilidade do Homem Simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. p.47. Em face disso, o autor ressalta que “na fase da luta pela terra, os trabalhadores acabam se ressocializando por força do convívio e dos enfrentamentos conjuntos com estranhos”. 320 Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1996. p.4. A sua concepção a respeito do processo de modernização do campo no qual está inserida a Vale do Rio Doce, encontra eco nas observações de Martins, quando este assinala que o processo de exclusão, localizado ao lado dessa multinacional, é uma das contradições legadas pela modernidade. Portanto, a esta se configura numa “espécie de mistificação desmistificadora das imensas possibilidades de transformação humana e social que o capitalismo foi capaz de criar, mas não foi capaz de realizar”. O autor pontua que a “modernidade não procura acobertar as injustiças, a exploração, a degradação humana. Esta é, num certo sentido, o reino do cinismo: é constitutivo dela a denúncia das desigualdades e dos desencontros que a caracteriza“. Cf.: MARTINS, op. cit., p.20-1. 321 Em face dessa questão, observa-se que “sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre, em que o acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, percebe-se que os avanços da cidadania têm a ver com a riqueza do país e a própria divisão de riquezas, dependem também da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos”. Cf.: PINSK, Jaime; PINSK, Carla a Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.13. 322 MARTINS, op. cit., p.67. O autor reporta-se a Agnes Heller (1978), ao assinalar que “só quem tem necessidades radicais pode querer fazer a transformação da vida” e, nesse contexto, as fontes em questão sinalizam para essas necessidades trazidas pelos trabalhadores rurais sem terra. 216 esse processo histórico surgiu de iniciativas humanas e de que ele é continuamente rompido por novas iniciativas. Quando é visto em seu puro caráter de processo – e isso acontece naturalmente em todas as filosofias da história, para as quais o processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e do encontro de forças extras, sobre e sub-humanas, em que o homem agente está excluído da história [...].323 Assim, assinala-se que a inserção dos trabalhadores rurais sem terra representados pelo MST nesta região, não significava apenas uma busca pela reforma agrária; mas, principalmente, uma mudança de hábito local visando desenvolver mecanismos que promovessem a organização da população rural, desencadeando o reencontro destes com um mundo possível. A terceira entrevista pauta-se pelas observações de Isabel Rodrigues Lopes324, uma das lideranças, que falou, dentre outras questões, sobre o “massacre” dos dezenove trabalhadores rurais assassinados em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. Por se tratar de uma das pessoas que presenciou episódio, um trecho de sua fala remete um sentimento de descaso do poder público com a violência eminente no campo. Para ela, foi muito doloroso presenciar aquele episódio, ver o sangue dos companheiros derramado naquela rodovia. É muito mais doloroso saber que esse episódio aconteceu por falta de uma simples negociação. Não da parte do MST; o Movimento sempre quis negociar, mas pela parte do governo.325 323 ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. p.120. 324 Esta entrevistada iniciou a sua militância no MST em 1992. Na época militava na Pastoral da Juventude, no Serviço de Paz e Justiça. Segundo ela, “quando os companheiros do MST chegaram a Marabá para iniciar os trabalhos, fomos nós, a Juventude que demos apoio”. “Fomos trabalhando, entendendo um pouco da luta e, em 1992, quando houve a primeira ocupação de massa na região, eu comecei a participar efetivamente do MST”. Assentada em 1995 no assentamento Palmares, em Parauapebas - PA, Isabel residia com dois filhos e fazia parte da Coordenação Nacional do MST. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dez.-jan. 1999/2000. p.3. 325 Entrevista com Isabel Rodrigues Lopes. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dez.-jan. de 1999/2000. p.3. 217 A indignação da entrevistada encontra eco na proposição de que “o governo do Pará e os de outros estados conflagrados não têm condição de exercer e não exercem nenhuma arbitragem sobre os conflitos sociais” 326 no campo. Com isso, postergando os resultados conflitantes em função da tão propalada “questão agrária” que, sem a pressão exercida pelos trabalhadores rurais, não sairia do papel, nem tampouco dos discursos dos políticos e de determinados setores da imprensa. Nessa perspectiva, assegurou-se que “a violência ilegal é parte presente da ação do Estado, sendo fator banal na vida social: o massacre é regra da resolução do conflito”327, ao passo que a subserviência do Estado em atender aos interesses de grupos econômicos ou latifundiários locais confirmava a sua conivência ou omissão diante dos conflitos deflagrados no campo. A entrevistada relata que “hoje, a gente avalia que o massacre e a farsa do julgamento foram montados pelo governo do estado, fazendeiros, oligarquia rural e grupos econômicos e políticos na região”. Com base nessa afirmação coloca-se em destaque a anuência do estado na manutenção das tensões no campo. Em um artigo sobre a violência nesse estado, Paulo Sérgio Pinheiro desnuda o discurso dos policiais do Pará, que enfrentarem os trabalhadores rurais sem terra enfurecidos, alegando legítima defesa, dando tiros para cima como forma de intimidar os “revoltados” e manter a ordem local. O autor classifica esse discurso de “pueril”, ao passo que não encontra sustentação nos laudos das necropsias. 326 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Eldorado do Carajás: impunidade à vista. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. MST, maio de 1996. p.3. Nesse artigo o autor mostra a farsa que algumas autoridades usam para permitir, de forma velada, o não cumprimento dos Direitos Humanos assegurados na Constituição. Segundo Pinheiro, “os dezenove trabalhadores rurais sem terra mortos foram o resultado visado pela cilada montada pela Polícia Militar do estado”. De acordo com suas análises acerca da documentação produzida após o massacre, assegura-se que “as mortes não foram em confrontos. Esta foi uma ficção inventada pelas autoridades locais” para se livrarem do crime. 327 Ibidem. 218 Observa-se, também, que “apesar das cenas gravadas do conflito, a verdade inscrita nos corpos dos mortos mostra com clareza os objetivos da operação,” assinalando que entre os 19 mortos, doze foram com tiros certeiros desfechados contra a cabeça, o tórax e órgãos vitais. Com grande precisão, pois o número de projéteis encontrados nos corpos é reduzido: no máximo quatro desfechados por revolveres de calibre 38 e não por rajadas de metralhadoras. Três foram mortos com tiros à queima-roupa e pelas costas. Sete foram mortos por instrumentos de corte contundentes, o que indica que já estavam dominados.328 Dessa forma, o trecho citado revela a forma covarde e despreparada como esses agentes do estado agiram em nome da ordem, deflagrando mortes de trabalhadores e ferindo outros, assim como, expondo ao terror os familiares dos envolvidos no conflito na região. Os massacres de Corumbiara e Carajás descortinaram os conflitos no campo revelando-os ao mundo, os trabalhadores rurais colocaram “a reforma agrária no imaginário da população e não na agenda política do Estado” 329 . Se esta viesse a ocupar lugar na agenda política estatal, oportunamente se desencadeariam impasses políticos de grandes proporções, que se não fossem resolvidos, “o país poderia ficar ingovernável. E ele é governável sem a solução desse problema”. Portanto, a reforma agrária não entrou na pauta das ações concretas uma vez que, caso ela entrasse, provavelmente desmontaria o sistema político ou, em última hipótese, proporia mudanças estruturais no governo vigente. A reforma se 328 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Eldorado do Carajás: impunidade à vista. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. MST, maio de 1996. p.3. 329 Para Martins, “os dois massacres já entraram no imaginário novelístico dos brasileiros... é uma coisa puramente episódica, não vai afetar a próxima eleição. As pessoas vão continuar votando nos grandes proprietários de terra, inclusive os trabalhadores rurais”. Entrevista com José de Souza Martins. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, julho de 1996. p.4. 219 tornou uma grande questão, porque o “Estado é oligárquico e latifundista”330, não possibilitando, portanto, uma reforma agrária ampla, como desejam os trabalhadores rurais sem terra. Recuperando a entrevista com Isabel, percebe-se que, dentre outras questões, ela traz à luz inquietações a respeito do sectarismo presente nas relações de gênero no MST do Pará, do qual ela é representante. Indagada sobre o desafio de ser mãe e militante no Movimento, os registros do jornal atestam que o semblante da entrevistada assumiu um ar de silêncio, seguido de lágrimas. Após se recompor, Isabel pontua que “é muito difícil falar sobre esse assunto”. Para ela, ser mãe e ser militante é difícil. Hoje, você ter esse compromisso, estar nessa luta e ser mãe, é muito difícil. Por isso nós queremos uma sociedade diferente. Nós temos que construir dentro de nós, o homem novo e a mulher nova, nós temos que compreender que fazer as novas relações de gênero, para que nós possamos compreender o que é ser mãe, porque na verdade, só a mãe sabe o que é ser mãe. O homem não compreende essa parte, não entende e por ele não compreender e não entender, muitas vezes não contribui para que a mulher participe.331 A entrevista com Isabel denuncia a emergência de discutir na sociedade e no Movimento as relações de gênero, para que as mulheres, mães e militantes possam ser acolhidas pelos seus parceiros, de modo a assegurar a continuidade de sua participação nas ações de ocupação, nas assembléias de grupos e nas tomadas de decisões coletivas. Enfim, serem compreendidas em todas as instâncias como pessoas de direitos, sem esquecer que em determinadas situações 330 Entrevista com José de Souza Martins. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, julho de 1996. p.4. 331 Entrevista com Isabel Rodrigues Lopes. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dez.-jan. 1999/2000. p.3. A respeito da dupla jornada de trabalho feminino evidenciou-se, no início deste capítulo, uma bibliografia que desnuda os discursos sexista nos interstícios da história, às vezes velado, outras vezes não tanto. 220 o trabalho mais árduo e prolongado de todos era o da mulher do trabalhador na economia rural. Parte desse trabalho – especialmente o cuidado dos bebês – era o mais orientado pelas tarefas. Outra parte se dava nos campos, de onde ela retornava para novas tarefas domésticas.332 Porém, no discurso acima, o homem é vitimizado e isento de suas responsabilidades enquanto companheiro, ao se afirmar que “o homem não compreende essa parte, não entende e por ele não compreender e não entender, muitas vezes não contribui para que a mulher participe”. Mesmo com esse discurso e com a carga de responsabilidade legada à mulher historicamente, as práticas femininas no que tange às lutas, às resistências e à submissão têm sido evidenciadas, mesmo porque esta última diz respeito aos interesses provenientes dos patrões, maridos/companheiros e até mesmo de pais ou irmãos mais velhos. Nesse sentido, as mulheres têm procurado manifestar indignação frente às mais diversas formas de exploração, criando “estratégias de luta e de sobrevivência, manifestando resistências à dominação no âmbito do público e no privado”333. Frente a essa afirmação, indaga-se: o homem não entende a situação da dupla jornada de trabalho da mulher ou não quer entender? Que esforço ele tem feito para compreender melhor esse universo onde se configuram as responsabilidades, mas também os sofrimentos? 332 Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.287. O autor prossegue assinalando que a jornada dupla de trabalho das mulheres ainda é uma constante nos “dias atuais, e, apesar do tempo da escola e do tempo da televisão, o ritmo do trabalho feminino em casa não se afina totalmente com a medição do relógio” (p.288). Por essa razão, Isabel anseia pela construção de um homem renovado, capaz de se sensibilizar com as tarefas domesticas e, sobretudo, colaborar nesses afazeres de modo a promover a autonomia e a felicidade de ambos. 333 Cf.: MATOS, Maria Izilda S. de; SAMARA, Eni de M. Cotidiano e Trabalho Feminino (1890-1940). In: SAMARA, Eni de M (Org.). Trabalho Feminino e Cidadania. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 1999. p.69. 221 Enfim, numa relação de tensão entre história e memória, a análise do JST possibilita entender, que as falas dos seus entrevistados apresentavam relativa preocupação com a memória, posto que suas ações, de certa forma, “encontram-se em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”334. Acrescenta-se que, ao contrário da história, “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente: a história uma representação do passado. A memória emerge de um grupo que ela une”, sendo este grupo representado pelos trabalhadores rurais sem terra e suas lideranças, postando-se a defender interesses coletivos daqueles que viveram no campo e que já não vivem mais. Suas ações se articulam à memória porque “ela é múltipla, é desacelerada, é coletiva, é plural e individualizada [...] ela se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”335. Em face dessa questão, as falas das lideranças do MST inscritas nas páginas do JST suscitam discussões e questionamentos, ao passo que estas explicitaram que o jornal ocupou posição singular em suas representações sociais e políticas. Tudo isso não apenas pela possibilidade do Jornal ter se revelado o principal porta-voz desses trabalhadores, mas por, ao longo de sua trajetória, ter se transformado em um “lugar de memória” da luta camponesa além da sua versatilidade ao articular “os discursos de homens de escrita com homens de ação, discurso individual com o discurso coletivo”336 (sendo os discursos de “homens de escritas” apresentados e interpretados no próximo capítulo). Portanto, a análise das entrevistas revelou que o processo da luta pela terra se expandiu ao longo desses vinte anos, deixando marcas na qualificação do 334 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, dez. 1993. p.9. 335 Ibidem. 336 Ibidem. p.25. 222 discurso propalado pelo jornal; potencializou a politização das lideranças, promovendo a inserção de centenas de novos sujeitos ao Movimento e, finalmente, evidenciou sensibilidade na elaboração de novos discursos, adaptando-os à realidade política do momento. Nas palavras de uma das lideranças, assinalou-se que nas idas e vindas dos trabalhadores rurais sem terra: “uma coisa é certa, apesar de toda insegurança que a busca por um pedaço de terra pode causar, dentre a violência generalizada por parte do estado e de alguns setores da elite agrária”, fica patente que “um camponês sem terra olha para cima, fala, grita e é capaz de ir à lua buscar aquilo que sempre lhe foi negado: terra, democracia e liberdade” 337 . Por conseguinte, essa tríade compreendida pela liderança como possibilidades a serem alcançadas, “não se trata de remendar as fraturas do mundo da vida, para recriá-las. Mas de dar voz ao silêncio, de dar vida à História”338. Enfim, de acordo com a análise das entrevistas tornou-se evidente que se configuraram como estratégias, para que os anseios da Direção Nacional do Movimento tivessem mais expressividade junto aos trabalhadores rurais sem terra, em especial, aqueles alocados nos acampamentos ou assentamentos. O Jornal deixou clara a alternância na formulação das questões encaminhadas às lideranças, descortinando certa variação em seu conteúdo. Tal variação implica na afirmação de que, em alguns momentos, se fez presente a homogeneização das questões elaboradas pelo JST, sobretudo quando as tensões 337 Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1996. p.4. As experiências dos trabalhadores rurais sem terra indicam não concordar com o conceito de que “a liberdade não apenas se encontra no agir na esfera política, mas, ao contrário, só é possível se o homem abre mão do agir, retira-se do mundo em direção a si mesmo evitando a esfera política”, confirmando a hipótese de que as experiências humanas tendem a ir contra essa tradição propalada desde o fim da Antiguidade. Cf.: ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. p.121. 338 MARTINS, José de Sousa. A Sociabilidade do Homem Simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. p.64. 223 envolvendo os trabalhadores estiveram mais explicitadas, como por exemplo, na década de 1990. Apesar da maior parte dos questionamentos apresentarem o mesmo conteúdo, um dado que chamou a atenção nos relatos dos entrevistados foi o conflito na ordem dos discursos, desvelando aproximação e distanciamento destes. Assim, ausentou-se a hipótese de homogeneização de suas percepções, embora, na maioria das vezes, as questões tivessem sido endereçadas às lideranças de forma comum. 224 CAPÍTULO IV - O JORNAL SEM TERRA EVIDENCIA A VIOLÊNCIA NO CAMPO Envelhecemos reclamando! Passamos nossos anos sentados nos corredores. Anos e anos suplicando! Nunca conseguimos nada! Os fazendeiros nem sequer atendem aos mandados. Foram intimados três vezes para audiências. Três vezes esperamos três dias e três noites. Não vieram. Mesmo que esperássemos três séculos não se apresentariam. Eu lutei pela expropriação. Estava enganado. Não cabe expropriação. Estas terras nos pertencem.339 339 SCORZA, Manuel. Garabombo, o invisível. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.152. Esse romance traduz a saga “dos índios do altiplano peruano que retomaram as fazendas ocupadas por gado e plantações, para voltarem a viver comunitariamente”. Porém, nota-se que enquanto Garabombo “reivindicava pacificamente a posse da terra ninguém o ouvia [...]. Até que, aproveitando-se de sua ‘invisibilidade’ organizou rebelião, liderou uma guerra agrária, ficou curado da ‘invisibilidade’, foi perseguido e morto”. SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-34. 225 4.1 O MST, A VIOLÊNCIA NO CAMPO E O PODER JUDICIÁRIO O presente capítulo tem a intenção de problematizar a questão da violência no campo, detendo-se aos conflitos no estado de São Paulo, concatenando essa reflexão a outras regiões do país onde os trabalhadores rurais estiveram organizados. Todavia, a análise da documentação buscou trazer à luz os desdobramentos destes conflitos, como subproduto das sanções imputadas aos trabalhadores sem terra, sendo estas, em sua maior parte, oriundas de setores representativos do Estado: Poder Judiciário, delegados de polícia, investigadores e policiais, assim como, pistoleiros particulares contratados por fazendeiros e representatividade política, exercida por entidades que defendiam os interesses dos latifundiários à época, por exemplo, a UDR.340 Nesse aspecto, abordam-se os dados sobre os índices de opressão 341 sofrida pelos trabalhadores rurais no campo, articulados ao processo de ocupação dos espaços. Dessa forma, analisam-se os questionamentos elaborados por intelectuais e autoridades religiosas, que utilizaram as páginas do JST como suporte de diálogo e contato com os integrantes do Movimento, no auxílio a estes reconhecerem-se enquanto sujeitos históricos, motivando-os à luta e revelando uma 340 Nota-se que este foi o discurso a respeito dos conflitos no campo, que circulou tanto nos relatórios anuais da CPT quanto nas páginas do JST, como se demonstra ao longo deste capítulo. 341 Sob a problemática da violência, é imprescindível nos remetermos às reflexões de Arendt ao citar incipiente atenção dos pesquisadores nos estudos desta prática nas atividades humanas. Suas observações apontam para um pequeno descaso, no que tange ao estudo da tirania enquanto objeto de reflexão, estando esta ausente em algumas pesquisas por ser comparada a fatos corriqueiros, portanto, negligenciada nas abordagens sobre história e política. Por isso, pontua-se que “qualquer um que procurasse algum sentido nos registros do passado, estaria quase sempre destinado a encarar a questão como um fenômeno marginal”. Cf.: CUNHA, Maria de Fátima. Eles ousaram lutar... A esquerda e a guerrilha nos anos 60 e 70. Londrina - PR: Ed. da UEL, 1998, p.128. Dessa forma, observa-se que a questão da violência contra os trabalhadores rurais sem terra ocupa lugar central na construção do presente capítulo, assegurando a reflexão de algumas de suas interfaces, como propõe: ARENDT, Hannah. Da Violência. Brasília: UNB, 1985. p.6. 226 tensão iminente sobre a questão da reforma agrária entre os discursos de órgãos do governo, de acordo com interesses dos latifundiários, e o desejo latente dos trabalhadores rurais sem terra e entidades civis representativas. Em face disso, tornam-se pertinente alguns questionamentos: por que tantas mortes no campo? Em que condições essas mortes se deram? Como estava o cenário político no momento dos conflitos? Que postura o Estado adotou quando foi acionado para solucionar as tensões no campo? Que postura assumiu o JST e a CPT diante da tirania imposta ao campo pelos latifundiários e por determinados setores do poder público? Concatenado a essa discussão, os relatórios apurados pela Comissão Pastoral da Terra342 - CPT, reportagens, notícias, imagens (fotografias), artigos de opinião e entrevistas publicadas pelo JST e bibliografia especializada serviram de suporte para a problematização desse capítulo. Efetuou-se um recorte espacial e temporal no que concerne à identificação do lócus da violência, as características dos sujeitos envolvidos e a relação do Poder Judiciário com os atos de brutalidade imputados aos trabalhadores rurais. Enfim, procurou-se ponderar a postura do periódico frente às tensões envolvendo o MST, o Estado, o Poder Judiciário, intelectuais e entidades sociais solidárias aos trabalhadores. Inicialmente, afirma-se que o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra assumiu a postura de ferramenta de luta dos integrantes do MST e entidades civis 342 O presente capítulo propõe analisar trechos de textos, gráficos e tabelas existentes nos cadernos Conflitos no Campo (publicação da CPT), visando evidenciar como a violência no campo constituiu-se numa pratica cotidiana, impedindo as ações de ocupação encabeçadas pelo MST. Por outro prisma, a discussão deste documento versa sobre a omissão do Estado brasileiro frente à situação de miséria, na qual os trabalhadores do campo se encontravam, e a incipiente efetividade de ações do Poder Judiciário, no sentido de amenizar os conflitos no campo. Não obstante, os materiais publicados pelo JST serão utilizados de modo a dar visibilidade à violência a qual os trabalhadores rurais foram submetidos, no período compreendido pela pesquisa. 227 que os apoiaram, destacando-se como sujeito histórico pela sua pertinência na construção e projeção do Movimento em âmbito nacional e internacional. Desde a publicação de seus primeiros números, ainda como Boletim dos Sem Terra, o periódico procurou desvelar os anseios dos trabalhadores rurais em relação à posse da terra, além de denunciar veementemente os desdobramentos de suas ações, sendo um deles a violência em larga escala, objeto de reflexão do presente capítulo. Assim, como instrumento de luta e sujeito histórico, o jornal assumiu um duplo compromisso com os trabalhadores rurais, sendo primeiramente, o de anunciar as possibilidades de lutas, de conquistas, de solidariedade, de companheirismo e de formação destes. Na seqüência, encontrava-se o de denunciar como os trabalhadores rurais estavam fadados ao descaso do governo, quando este, por sua vez, aliava-se aos projetos dos latifundiários de banir esses trabalhadores, apropriando-se de toda sorte do aparato repressivo do Estado e tornando-se “um dos principais culpados por essa realidade de violência. Ele não é apenas omisso ou conivente, mas agente ativo da violência no campo”343, ressalta o relatório. Nesse aspecto, a Comissão Pastoral da Terra publicava anualmente e, às vezes, semestralmente, relatórios que apuravam e denunciavam, de forma sistematizada os locais e os tipos de violência na área rural. O Jornal e os Relatórios da CPT constituíram uma memória dos trabalhadores rurais sem terra, auxiliando na compreensão de suas visões e possibilidades de uma sociedade mais humanizada, por meio da distribuição da terra, ou melhor, da própria Reforma Agrária. 343 Assinala o Presidente da CPT, Dom Augusto Alves: “são muitos os casos em que o Estado e seus organismos agiram ombro a ombro com os pistoleiros, defendendo os interesses privados do latifúndio contra os direitos humanos”. ROCHA, Augusto Alves. Apresentação. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo. Brasil, 92. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1993. p.3. Dito de outra maneira, essa situação “abre espaço para a repressão violenta da política, que afinal de contas perpetua a exclusão dos direitos de participação, pela violência, mas em nome do disciplinamento da ordem”. Cf.: PAOLI, Maria Célia P. M. Violência e Espaço Civil. In: Idem [et. al.]. Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.53. 228 Na nona edição do Boletim dos sem terra, publicada em julho de 1981, na seção “notícias do acampamento”, o periódico iniciou a denúncia da repressão a que eram submetidas as seiscentas famílias acampadas, em Encruzilhada Natalino-RS. Dessa forma, assinalou-se, também, o início de uma saga em que a violência contra os trabalhadores rurais sem terra se generalizava, tornando-a a principal protagonista desse cenário de luta e de ação. Utilizando-se de duas viaturas com sirenes ligadas, policiais fortemente armados com fuzis e metralhadoras, um contingente da Polícia Militar de Passo Fundo invadiu o acampamento provocando enorme pavor entre as famílias, principalmente, entre as crianças que brincavam ao longo da estrada. Depois de percorrerem todo o acampamento em alta velocidade, com barulho ensurdecedor das sirenes, os camburões pararam em frente aos barracos. Em seguida, reuniu-se uma multidão de colonos curiosos. A reação dos policiais foi imediata: prenderam um agricultor e o algemaram na porta de uma das viaturas para “servir de exemplo”, ressaltou o comandante da operação [...]. Depois de muitas ameaças e provocações, o povo do acampamento começou a entender o que se passava.344 Estrategicamente, o Estado utilizou-se da repressão para tolher a “força da mística”345 que tomava os trabalhadores acampados naquele local, na tentativa de forçar a desocupação da área. Pautados pelo espírito de luta e pela solidariedade 344 “Sirenes ligadas, metralhadoras e fuzis. Assim a polícia invadiu o acampamento”. COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.09. Porto Alegre, julho de 1981. p.5. A ação de tortura psicológica imposta aos trabalhadores nesse acampamento encontra eco nas reflexões de Cunha ao afirmar que “a tortura é um ato de governo. Mais do que confissão, ela busca informações que permitem a perpetuação do poder. Por meio de rumores que se espalham, a tortura faz com que possíveis ‘contestadores da ordem’, desistam de suas intenções”, reportando-se a: VINCENT, Gerard. Uma história do segredo. In: ÁRIES, P.; DUBY, G. História da Vida Privada. Vol. 5. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Cf. CUNHA, Maria de Fátima. Eles ousaram lutar... A esquerda e a guerrilha nos anos 60 e 70. Londrina - PR: Ed. da UEL, 1998. p.128. 345 Para o MST a mística significava “o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e as paixões fortes que mobilizam as pessoas e movimentos na vontade de mudanças, ou que inspiram práticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades, ou sustentam a esperança face aos fracassos históricos [...]. Na mística político-social age sempre a utopia, aquela capacidade de projetar, a partir das potencialidades do real, novos sonhos, modelos alternativos e projetos diferentes de história. Geralmente são os grupos oprimidos os portadores de novas visões, aqueles que, embora derrotados, nunca desistem, resistem firmemente e sempre de novo retomam a luta”. Cf.: BOFF, Leonardo. “A mística”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.125. Seção “Estudos”. MST, maio de 1993. p.3. 229 mútua em processo de construção, as “mulheres e as crianças, de mãos dadas, reagiram, a sua maneira, diante dos policiais, começaram a cantar, numa só voz, o hino dos acampados: vamos lutar irmãos, vamos lutar...”, deixando os “agentes do Estado” desnorteados. A violência exposta no trecho acima se tornou explícita e sinalizou a que veio. Não obstante, os trabalhadores compreenderam seu teor e corresponderam de forma pacífica, humanizada, politizada e com determinação, desvelando a iminência de um conflito anunciado. Na tentativa de suportar as ameaças, resistir às dificuldades do acampamento e superar o terror que tomava conta do mesmo, “a fé era alimentada e fortalecida todos os dias”. Para isso, organizou-se “uma comissão que preparava a reza do terço com liturgias bíblicas e reflexões”346. Portanto, esta não se detinha apenas ao culto religioso, mas também trazia para o centro da discussão a leitura das cartas de apoio e solidariedade aos trabalhadores ali acampados; liam-se as notícias do jornal e as debatiam pelo rádio e, caso surgisse algum assunto a ser questionado, a Comissão convidava todos os envolvidos para emitir a sua opinião. A edição de número dez do periódico dos trabalhadores, publicada em agosto de 1981, trouxe informações que revelavam os investimentos dos “agentes do Estado” na tentativa de destruir essa identidade em construção e, simultaneamente, promover a desagregação dos fios que uniam as experiências de lutas daqueles trabalhadores, sendo estas “consideradas inferiores” sem a 346 “O acampamento de Encruzilhada Natalino antes do Coronel Curió”. COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.2. O acampamento foi organizado em comissões, destacando-se “a comissão central, a comissão de água, a comissão de animação, a comissão de limpeza, a comissão de alimentos e donativos”, todas construídas com objetivo de “servir aos companheiros para que todos juntos pudessem ter um pedaço de terra e nela trabalhar para tirar o seu sustento e o de sua família”, assinala o trecho do jornal (p.2-3). 230 necessidade de “serem transmitidas como experiências coletivas” 347. Isso se deu com a chegada do Coronel Curió, como denuncia o trecho da matéria a seguir: A organização surgida dos próprios colonos começa a ser sutilmente desestruturada [...]. Chega ao acampamento o coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, membro do Conselho de Segurança Nacional. Não chegou sozinho. Com ele aumentou o contingente de polícia secreta infiltrada no acampamento, chegou o exército além da Brigada Militar que já fiscalizava o local. O coronel chegou mostrando ser amigo dos colonos, tentando convencê-los a aceitar terras em outros estados, sem obter êxito nessa investida. A seguir consultou os colonos sobre a possibilidade de colocar uma barreira no acampamento [...]. Na semana seguinte houve uma Assembléia Geral, onde os colonos optaram pela não colocação da barreira. Na última semana deste mês, enquanto cento e oitenta colonos estavam em Porto Alegre, negociando com o governo e com o Incra, o Coronel Curió baixou no acampamento dizendo que estava ali a serviço da Presidência da República e encarregado de “resolver o problema social e fundiário” de Encruzilhada Natalino. A partir de então, o coronel passou a ser o personagem central no acampamento, fazendo tudo girar em torno de si, desrespeitando totalmente a organização dos acampados e as decisões que já haviam sido tomadas.348 O excerto registra a patente do representante do Estado, identifica o local de onde este falava e a sua missão no acampamento. Não por acaso, no topo da matéria havia uma preocupação latente dos trabalhadores no que tange à tessitura de sua organização. A negativa dos trabalhadores rurais, prévia e democraticamente, decidida em Assembléia Geral em relação à proposta do Coronel Curió, demonstrou a resistência destes sujeitos imbricados na luta pela posse da terra como condição prévia para a recuperação de sua cidadania. 347 Cf.: PAOLI, Maria Célia P. M. Violência e Espaço Civil. In: Idem [et. al]. Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.53. 348 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.3. Na mesma matéria, o periódico denuncia que o Coronel Curió, ao se instalar no acampamento, cuidou de se apropriar de um “sofisticado sistema de alto-falantes, através do qual transmitia mensagens constantemente aos colonos, chamando um ou outro para o seu barraco ou tocando música, não permitindo aos trabalhadores nenhum momento de sossego para se reunirem e discutirem a nova situação do acampamento”. 231 O aparato estatal trazido pelo Coronel Curió ao acampamento sinalizava a presença do Estado patrocinando a desarticulação da organização dos trabalhadores rurais, sem apresentar efetivamente uma saída política para o iminente conflito que se instituía no campo, revelando visíveis marcas da repressão. A tentativa de cooptação dos trabalhadores pelo “agente enviado” também ganhou destaque na matéria, traduzindo-se na preparação do terreno para a semeadura da violência. Sempre seguido de um número respeitável de policiais vestidos à paisana, diz que agora quem manda no acampamento é ele, que ele é autoridade lá. Quando lhe falaram sobre uma promessa do governador do RS, ele disse que nada tinha a ver com o governador, mas com o Presidente da República. Diz ter recebido uma missão e que quando recebe uma missão, quer os instrumentos. Seus instrumentos é dinheiro à vontade, que foi distribuído entre os colonos, um rádio com ligação direta com Brasília, e inúmeros homens sobre o seu comando e um armazém da COBAL.349 Em face disso, fica patente a situação tensa que perpassava o acampamento. Se antes, os trabalhadores rurais sem terra sabiam em qual posição deveriam movimentar suas peças nesse tabuleiro de xadrez, a estratégia utilizada pelo adversário, o Coronel Curió, parecia estar no caminho certo para a desarticulação dos trabalhadores. Com isso, conseqüentemente, abriu-se possibilidade de dissolução das demandas de distribuição da terra para quem nela desejava viver e trabalhar.350 349 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.3. Não obstante, é denunciado nesta matéria que só no primeiro dia da chegada do Coronel ao acampamento “este distribuiu para os acampados cerca de Cr$ 1.400.000,00 em vales para serem retirados em alimentos no referido armazém”. 350 De acordo com as reflexões de Freire Costa, havia necessidade premente do trabalho para as classes subalternas, posto que “o trabalho é um instrumento de sobrevivência física e social”. Além do mais, este apresenta para esse segmento da sociedade um outro valor simbólico, tratando-se, pois, de “assegurar aos sujeitos a posse de um predicado que o torna humano como outros homens”. Em face dessa questão, sublinha o autor: a dupla “trabalho e salário” tornam-se “fundamental na construção da identidade de um trabalhador”. FREIRE COSTA, 1987, p.25. Apud: LOBO, Elisabeth S. 232 A matéria publicada na décima edição do Boletim evidenciou que o Coronel Curió usou dois métodos conjugados para coagir os colonos, na tentativa de convencê-los a aceitarem os “supostos projetos” do governo, que seriam a saída do acampamento para um trabalho nas cidades circunvizinhas ou serem assentados em outros estados, sobretudo, naqueles sem infra-estrutura, como era o caso do Mato Grosso. Para isso, o Coronel, num primeiro momento, procurou se apropriar da façanha das “boas maneiras, dando a impressão de diálogos em todo o seu trabalho. Passava o tempo todo falando, explicando e tentando convencer os colonos de sua boa vontade”351. Nesse cenário, a mão do Estado agiu de forma velada, expressando sua tática de uso da violência para resolver um problema de ordem social, sem sequer permitir o direito de reivindicação dos trabalhadores. Afinal, ele não se colocava como inimigo, muito pelo contrário, sempre exprimia possibilidade de um diálogo amistoso com os trabalhadores, descartando a necessidade de um enfrentamento maior, embora os representantes do Boletim Sem Terra e a maioria dos trabalhadores rurais já tivessem identificado este intuito desde a chegada dos “agentes do Estado” no local do conflito, ou seja, “a dissolução do acampamento”, assegura o jornal. Trabalhadoras e Trabalhadores: o dia-a-dia das representações. In: Idem. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: SMC/ Editora Brasiliense, 1991. p.95. Ver: FREIRE COSTA, Jurandir. A consciência da doença enquanto consciência do sintoma: a doença dos nervos e a identidade psicológica. Cad. IMS. Rio de Janeiro, 1987. 351 A atuação do Coronel Curió nos reporta à referência do “Homem Cordial” feita por Sérgio Buarque Holanda ao assinalar que “nenhum povo estava mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Essa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez [...]. Equivale a um disfarce que permitiria a cada qual preservar intactas sua sensibilidade e suas emoções. Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”. Cf.: HOLANDA, a Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. p.1078. 233 A atuação desse agente no que tange ao desejo de resolver os problemas do latifúndio na região tornou-se um tanto emblemática, pois no momento em que se pregava o diálogo no assentamento, os trabalhadores percebiam claramente um “clima de intimidação” e de tensão entre ambos. O coronel estava sempre acompanhado de um grupo de agentes policiais a paisana, instalou barreiras policiais nos três acessos do acampamento, exigindo identificação de quem quer que fosse. Onde se forma um pequeno grupo de pessoas para conversar, imediatamente um agente se faz presente. Eles estão sempre gravando e fotografando quase tudo. Ao mesmo tempo em que afirma que ninguém precisa ir para outro estado se não for o seu desejo, imediatamente pontua que no RS não há terra para eles. Ao passo que os funcionários do governo que faziam o cadastro das pessoas ressaltavam que quem não aceitasse terras em outros estados teriam seus barracos varridos.352 O trecho traz elementos reveladores que indicam a gestação de um confronto num processo bastante acelerado. Enquanto isso, ocupações de terras menores estavam ganhando força em regiões próximas daquele acampamento ou em outros estados. Portanto, dava-se início a espacialização da luta e o expressivo desejo da construção de uma força social no campo, que seria o fio condutor para levar o governo à promoção da reforma agrária. Não obstante, a “paciência e a boa vontade” do Coronel Curió estava-se chegando a um limite frente ao interesse maior dos trabalhadores rurais sem terra, que era a regulamentação de sua situação na terra no Rio Grande do Sul. 352 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.4. Deve-se observar que no momento em que atuava o Coronel com seus procedimentos de repressão no acampamento, os trabalhadores sem terra já sentiam grandes dificuldades de articulação, pois já não havia mais espaços para as reuniões, “devido à intensa vigilância que inibia sobremaneira os colonos, posto que o Coronel sempre procurava manter os trabalhadores ocupados ou distraídos. Portanto, sua tática sinalizou para o desmonte do acampamento, a destruição das experiências de lutas daqueles trabalhadores e aos poucos, buscava impingir através de propagandas contínua e ininterrupta o reassentamento dos colonos em projetos do governo federal fora do RS”. 234 No dia 30 de julho de 1981, quando uma caravana de 180 pessoas se encontrava em Porto Alegre-RS buscando soluções junto ao governo do estado e ao INCRA para os acampados de Ronda Alta, “a noite da repressão e do arbítrio se configurou no acampamento, transformando-o em um campo de concentração”, explica o Boletim dos Sem Terra. Aos colonos só se oferecem assentamentos fora do estado, o acesso ao acampamento foi controlado, a organização e lideranças desmobilizados, a solidariedade e apoio manifestada em donativos foi vedada, intimida-se o povo pela presença constante de policiais de se reunirem e de discutirem seus assuntos. O governo assumiu a paternidade e arbitrariamente, através do Coronel Curió e de forte aparato policial-militar, todo o acampamento, com os encargos de alimentação e de assistência social, pretendendo decidir, também, o destino e a vida dos colonos.353 Era o prenúncio da instauração efetiva da violência naquele local, cerceando, inclusive, o direito de ir e vir dos acampados ou daqueles que tentavam prestar-lhes solidariedade. O documento evidenciou que o governo, enfim, assumiu posições que contrariavam os interesses dos trabalhadores acampados e das instituições civis, apoiando-se, sobretudo, em estratégias antes utilizadas pelo regime militar no sentido de impedir a organização dos trabalhadores. Portanto, essa postura do Estado não era apenas política, mas também ideológica. O fato de trazer para si a responsabilidade de gerir o acampamento, sem a participação de entidades civis, implicava no questionamento das representações sociais de um grupo em construção, por meio do abafamento das informações sobre as incursões feitas por determinados setores do governo, desconsiderando os anseios dos sujeitos sociais ali imbricados. 353 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.15-6. 235 Assim, percebe-se a construção de um processo de dominação por parte dos “agentes do Estado”, ao tentarem colocar em prática “a ideologia da tutela assumindo o lugar da participação e da cooperação” 354 entre os trabalhadores, atitude que, em última instância, permitiu o aprofundamento das tensões internas e externas aos acampamentos. Em face disso, aquilo que foi submissão torna-se revolta, a ação coletiva integra as humilhações e divisões privadas, um novo sentido é construído através da noção de direitos [os grifos são da autora]. O movimento que faz emergir a ação coletiva é tecido pelas demandas “defensivas” ligadas pelo fio condutor da dignidade. Através delas as trabalhadoras e trabalhadores afirmam (ou sonham) com um outro mundo possível.355 O periódico, que fazia circular as vozes dos trabalhadores rurais, publicava em suas páginas o que acontecia nesse acampamento, relatando a opressão que havia tomado conta daquele lugar, fazendo chegar a quase todos os rincões do país informações a respeito dos conflitos no campo envolvendo todo tipo de violência e os segmentos que ali estavam. Um ano após a edificação do acampamento de Encruzilhada Natalino-RS, especificamente no mês de fevereiro de 1982, o Boletim denunciou as pressões ali impostas pelos supostos “representantes do Estado”, por meio da ação de três trabalhadores que representavam as trezentas famílias acampadas à espera de terras no estado do Rio Grande do Sul, quando estes se dirigiram “à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa gaúcha e ao Comitê de Apoio de Porto Alegre” e registraram a denúncia. 354 Cf.: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Ed. da Unesp, 2004. p.106. 355 Cf.: LOBO, Elisabeth S. Trabalhadoras e Trabalhadores: o dia-a-dia das representações. In: Idem. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: SMC/ Editora Brasiliense, 1991. p.99. 236 O jornal ressaltava que, naquela época, os trabalhadores “acusaram o governo de ter aumentado as ameaças e a repressão através da inserção de ‘dez agentes’ secretos que chegaram recentemente ao acampamento”. Denunciou-se, também, uma forte ameaça da polícia rodoviária estadual (Brigada Militar) aos que tentavam ajudar os colonos acampados ou até mesmo aos que por ali passavam. Segundo o documento, o caso mais flagrante foi com a caminhonete da Cáritas Diocesana de Passo Fundo, emprestada à Paróquia de Ronda Alta para transportar e abastecer o acampamento com os alimentos doados pelas entidades solidárias aos sem terra. O veículo foi multado em Cr$ 11 mil por estar com uma sinaleira estragada [...]. Um ônibus que fazia a ligação Ronda Alta com Porto Alegre ficou trancado numa das barreiras policiais montadas no acampamento durante a madrugada, enquanto os policiais obrigavam todos os passageiros do acampamento a descerem do veículo, multou o ônibus em seguida pela invalidade de seu extintor.356 O trecho do documento descortina as incursões realizadas pelos “agentes do Estado”, traduzindo-se em expressões de intimidação e cerceamento à pessoa no seu direito de ir e vir. Nesse aspecto, observou-se que a repressão no assentamento envolvendo os trabalhadores rurais e o governo ecoava na crise vivida pelo Estado brasileiro e seu Direito no final do XX. Embora fique evidente que as mudanças conduzidas pelo Estado eram “o reconhecimento de pessoas jurídicas, a criação de limitação administrativa, a sua intervenção na ordem econômica, a definição da função social da propriedade”, ficando circunscrito que “a propriedade privada é a máxima expressão do direito individual”, colocando em conflitos contínuos alguns segmentos da sociedade e, consequentemente, o Estado. 356 COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.18. Porto Alegre, agosto de 1981. p.7. 237 Em face disso, assinalou-se que tal crise atingia “exatamente esse direito, porque deslocou o centro do sistema, que era ordem privada para a ordem pública, do direito individual para o coletivo” 357 , proposta inaceitável para determinados grupos econômicos temerosos à organização dos trabalhadores rurais e a tão propalada reforma agrária. No editorial do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra acusou-se o governo pela violência física contra um posseiro, em 1982, e demais ocorrências nas quais ficaram visíveis a omissão do Estado frente aos conflitos. Esse tipo de informação transformou-se em denúncia, que perdurou em todas as fases do jornal, inclusive levando os seus colaboradores à criação de uma coluna denominada de “violência” (como já observado em capítulos anteriores). De acordo com a análise do documento, o governo tornou-se sim “o maior responsável pela onda de violência instituída no campo. Omite-se em casos que deve ser o promotor da Justiça. É cúmplice em outros momentos e a favor dos que cometem tais violências”358. Em setembro de 1984, em sua 38a edição, o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra registrou mais um ato de confronto no campo. Reportava-se, particularmente, ao conflito desencadeado na região de Santo Augusto-RS, quando 75 famílias ocupavam uma clareira de 30 por 100 metros, dentro de uma área de 730 hectares da Estação Experimental Fitotécnica da Secretaria da Agricultura daquele município. O periódico destacou que, em Santo Augusto, 357 Cf.: SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-8. 358 Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.28. Editorial “Violência: Governo é o responsável”. Porto Alegre, outubro de 1982. p.2. O texto pontua a brutalidade a qual o lavrador foi submetido, “tendo o seu corpo mutilado - olhos arrancados e lábios cortados - por jagunços e policiais civis [...]. Certamente essa tirania serviu para provar ao mandante do crime que Henrique José Trindade foi realmente morto. A vítima, portanto, pagou com a vida o preço da coragem e da ousadia de querer defender a sua família e a terra onde plantava” do voraz desejo do latifúndio. 238 a repressão desencadeada pelos soldados não fez diferença entre homens, mulheres grávidas ou crianças. Com muita violência, as famílias foram espalhadas pela região, mas voltaram a se agrupar em um novo acampamento, no distrito de Fortaleza, interior do Município de Erval Seco, deixando claro a disposição de continuarem. As denúncias de violência foram levadas ao conhecimento público e assumiram grande repercussão resultando na formação de um comitê de apoio aos sem terra, formado por diversas entidades, entre elas a Federação dos Trabalhadores na Agricultura [...].359 Nesse aspecto, a repressão instaurada no campo esteve, intrinsecamente, relacionada à insistência do poder público em não promover a distribuição da terra entre os trabalhadores rurais, sem encaminhar ações políticas a fim de coibir confrontos, ora em ocupações de terras públicas, ora em propriedades “particulares” declaradas improdutivas. Um relato da noite violenta de Santo Augusto foi descrito por uma vítima e registrado pelo JST da seguinte forma: A noite caiu e os soldados chegaram chutando as bíblias e as crianças, esbofeteando as mulheres e homens, derrubaram a cruz de madeira, cortaram os fios que prendiam as barracas, espalharam as brasas do fogo de chão, derramaram a água do chimarrão, quebraram os pratos e viraram as panelas da janta que estava sendo preparadas. Nós pedimos que eles esperassem ao menos até o outro dia de manhã. Eles nos mandaram calar a boca. Não deu tempo de juntar nada. Nós sentamos no chão e botamos as crianças no colo, mas eles jogavam as crianças e nos chamavam de vagabundos e de vadios.360 O cenário delineado pela trabalhadora foi denunciado em várias matérias publicadas pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ao longo de sua atuação. Consequentemente, atos violentos como estes se faziam presentes em 359 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. “O despejo na noite violenta”. MST, setembro de 1984. p.4. Na mesma matéria salienta-se que o governador do estado, Jair Soares, à época do PDS, recebeu os líderes do movimento, porém “informou que no estado não havia terras, não havia recursos e que iria continuar reprimindo quem ocupasse áreas particulares”, ou seja, é a posição do Estado em defesa do latifúndio, observa o jornal. 360 Maria de Lurdes Hoffmann, vítima da violência imprimida pelas forças públicas do RS com anuência do governador do estado. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. Cobertura do jornalista Chico Daniel. MST, setembro de 1984. p.4. 239 quase todos os cumprimentos de liminares de desocupação de propriedades em conflitos, como atesta a documentação analisada nesse trabalho. As ações militares utilizadas nos processos de desocupação dos trabalhadores rurais refletiam na destruição do lugar, pois era nele que se revelava o sentimento de “pertencimento social, de enraizamento em um determinado território. Território este que não se traduz em espaço geográfico e físico, mas em espaço simbólico, que envolve outros significados, a cultura e vida social”361. O relato da trabalhadora refere-se ao massacre sofrido pelas comunidades indígenas no altiplano peruano (apresentado na epígrafe desse capítulo), que buscavam na terra a possibilidade de viverem comunitariamente. Induzidos pelo líder Garabombo, protagonista do romance de Manuel Scorza 362 , desnudavam-se os conflitos no campo envolvendo “camponeses mestiços”, que buscavam desmantelar a selvageria dos “latifundiários semifeudais” daquele país, enfrentando o Estado, coautor da tirania contra aqueles povos, que optou pela defesa dos latifundiários, transformando “o campo em uma noite de gritos, deixando dúzias de homens e de cavalos agonizando”363 campo afora. Contrariando o relato de Maria de Lurdes, vítima e observadora da fúria dos “agentes do governo” contra os trabalhadores rurais do acampamento erguido nas terras da Secretaria da Agricultura do Município de Santo Augusto, surgiu um representante do Comando da Polícia Militar, o qual buscava atenuar o ocorrido, afirmando que “a retirada dos trabalhadores deu-se de forma pacífica”, apesar das marcas evidentes da violência presentes no relato daquela mulher. 361 Cf.: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Ed. da Unesp, 2004. p.24-5. 362 SCORZA, Manuel. Garabombo, o invisível. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. 363 Ibidem. p.203. 240 Outro trecho da reportagem traduz o que aconteceu na noite do despejo naquele acampamento: Além de visíveis hematomas nos corpos das vítimas, havia uma mulher e uma criança de cinco anos com mãos enfaixadas. A mulher se cortou no arame da porteira, tentando obstruir [grifos meus] a passagem dos soldados. E o menino foi jogado sobre um braseiro, onde um soldado acabou pisando em suas mãos. Ainda assim, para as crianças, o trauma maior foi o psicológico, pois várias delas se perderam no mato, correndo e gritando pela noite, enquanto seus pais levavam bordoadas.364 O excerto citado sinaliza um cenário desolador entre os trabalhadores acampados e, por outra ótica, enfoca a resistência destes, bastando observar a tentativa da trabalhadora em “obstruir a passagem dos soldados ao acampamento”. Cabe salientar, que um dia após a invasão policial no local, no dia 31 de agosto, os sem terra formalizaram uma denúncia de violência junto à Comissão de Direitos Humanos do Legislativo gaúcho na presença de outras entidades representativas como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), visando amenizar o que passara no dia anterior e uma possibilidade de dar visibilidade à tirania a qual foram submetidos. Em outras palavras, o relatório Conflitos no Campo – Brasil 92 da CPT considera que o elemento mais grave desta conjuntura é a total impunidade dos crimes cometidos. A poderosa classe latifundiária beneficia-se do apoio total e incondicional do Estado, através de seu aparato de “segurança” e de “justiça”.365 364 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.5. ROCHA, Augusto Alves. Apresentação. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo. Brasil, 92. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1993. p.6-7. A título de exemplificação, o Relatório da CPT denuncia que “o aparato policial (Polícias Militar, Civil e Federal) foi acionado 130 vezes no ano de 1992 com a finalidade de despejar ou expulsar os lavradores de suas terras”. O documento assinalava que a maior parte das incursões feitas pelas forças de segurança “resultou em atos violentos contra as famílias trabalhadoras e, em 17 intervenções, as ações foram em conjunta com pistoleiros e fazendeiros”. 365 241 Deslocando o olhar acerca da violência no RS para a região Norte do país, a edição de número 38 do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra trouxe um relatório circunstanciado a respeito da violência no Sudoeste do Pará. O documento havia sido preparado pelo sacerdote Ricardo Resende, que concedeu depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a violência na área rural daquele estado. Morando na região há sete anos, o autor do relato procurou demonstrar que nessa região “havia uma verdadeira guerra pela posse da terra, tendo esta a anuência das autoridades federais que apoiavam a grilagem”. O padre assinalava, em seu depoimento, que as principais causas das mortes ocorridas nos campos dessa região davam-se “para tomar posses de terras, para não se pagar salários, mas também para impedir a organização dos trabalhadores” 366 . Apoiando-se em dados estatísticos apurados pela CPT, ele denunciou os altos índices de perdas de vidas em detrimento da violência e abusos generalizados no Pará, por autoridades públicas em conluio com interesses privados. De acordo com os dados da CPT, o relatório indica que os índices de violência e a tirania no campo tornavam-se exacerbados à luz de um país que pretendia ser democrático: De janeiro a dezembro de 1983, foram registrados os seguintes dados no Sudoeste do Pará: 403 pessoas ameaçadas de morte; 114 lavradores presos ou detidos, incluindo os padres franceses Aristide Camio e François Gouriou; 116 espancados, torturados e feridos; 1.179 famílias ameaçadas de despejos e 371 despejadas, mais de 262 casas queimadas e destruídas, com roças e crianças.367 366 No documento intitulado “A lei do gatilho”, o padre Ricardo assinala que “a violência do latifúndio têm apoio expressivos de figuras da República. Coronéis são deslocados em helicópteros para a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia; a Rádio Educadora da Igreja, que há 19 anos servia à região, foi fechada e o latifúndio conseguiu levar à tribuna, para fazer a sua defesa, até mesmo o Presidente do Congresso Nacional (à época, Jarbas Passarinho)”. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.9. 367 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.9. 242 Os dados expressos acima caracterizam o tipo de violência sofrida pelos trabalhadores rurais do Pará, colocando às vistas os interesses dos latifundiários e dos políticos locais, conclamando da opinião pública e das autoridades competentes medidas cabíveis e imediatas para amenizar tais conflitos. O padre Ricardo esclarece ao término de seu depoimento que: Estou aqui porque os senhores me convidaram. Não estou a serviço de qualquer ideologia ou partido [grifos meus]. Estou como brasileiro e como cristão. Eu os convido para que, acreditando na esperança, no futuro, no povo trabalhador, forjemos uma outra História. Busquemos a reforma agrária profunda que leve à transformações sócio-econômicas [...]. Desejo e espero uma reforma agrária que seja real, verdadeira, que não nos obrigue e que não nos submeta a vivermos de casuísmos e conchavos melancólicos.368 Portanto, nota-se no relato do padre Ricardo que, apesar de compartilhar dos anseios dos trabalhadores rurais sem terra, ao enfatizar os desmandos dos latifundiários, a omissão do Estado e a inércia dos políticos locais com relação aos conflitos no campo, traz à luz a intenção de negar a sua inserção na organização do MST ou de outras entidades representativas. Nesse aspecto, o uso de dados estatísticos da CPT, organização religiosa da qual o padre fazia parte, contraria a sua negativa, já que a entidade tornou-se uma das percussoras a organizar os trabalhadores rurais sem terra, participando, inclusive, de forma ativa da construção do MST. Dessa maneira, uma interpretação do seu relato seria que estava ocorrendo uma evidente aproximação, por parte do padre Ricardo, com a bandeira de luta defendida pelo MST e também encampada pela CPT, principalmente ao defender a 368 Trecho final do depoimento do Padre Ricardo Resende à Comissão Parlamentar de Inquérito, que apurava a violência no campo do Sudoeste do Pará. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.9. 243 preservação dos direitos do homem do campo. Portanto, seria desnecessária a afirmação do seu não pertencimento “a qualquer ideologia ou partido político”, visto que a denúncia não era e não poderia ser neutra, já que sempre vem carregada de representações, de desejos, de sentimentos, entre outros. Com destaque, no mês de setembro de 1985, o JST denuncia o “aumento das mortes no campo”, assinalando que a ampliação da repressão estava associada à publicação do Plano Nacional de Reforma Agrária, anunciado pelo governo. Nessa perspectiva, a matéria faz notar que alguns latifundiários mais afoitos e temerosos em perder suas terras estariam se armando, ameaçando e matando para desestabilizar o Plano e, assim, impedir a Reforma Agrária [...]. É certo que o anúncio do Plano estimulou os latifundiários a matar mais do que antes. Eles não admitem dividir as suas terras e, para impedir essa divisão, foram até as últimas conseqüências. A verdade é que o aumento da violência no campo é para impedir o avanço da organização dos trabalhadores [...]. Os latifundiários sabem que eliminando uma liderança, podem, senão impedir, pelo menos atrasaria por mais algum tempo as mudanças necessárias no campo.369 Em dezembro de 1985, a coluna “violência” do JST fez um balanço da repressão instaurada no campo neste ano, denunciando que “o ano terminou com um saldo de 154 trabalhadores assassinados”. Apontava que o estado do Pará tornou-se “o estado mais violento do Brasil” neste período. O periódico trouxe, além 369 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.47. MST, setembro de 1985. p.8. O trecho sinaliza que uma das principais razões que levou ao desencadeamento da tirania no campo, por parte dos fazendeiros, foi a percepção que estes tiveram da proposta do governo em fazer a reforma agrária. Denuncia, também, que sua ideologia está associada ao fato destes ganharem tempo para impedir o desenvolvimento do processo, pois esta pode ser uma saída que deve ser levada em consideração para compreender-se os conflitos no campo. Impedir a organização dos trabalhadores é uma estratégia historicamente conhecida até nos dias atuais. A questão que se deve pensar e questionar seria o cenário de impunidade, a inércia do poder público, dos meios de comunicação e da própria sociedade frente aos crescentes índices de violência pela posse da terra. Segundo o jornal, “morrem assassinados na ‘Nova República’ muito mais lavradores, índios e dirigentes sindicais rurais e agentes pastorais do que nos últimos anos da ‘Velha república”. Agora o que se deve observar é que, “tanto na ‘Nova República’ quanto na ‘Velha república’, a impunidade é a mesma: não são abertos inquéritos policiais, ninguém é condenado, ninguém vai preso e, quando vai, é por algumas horas”, destaca a matéria. 244 dessa denúncia, trechos de um documento elaborado por uma comitiva de 210 trabalhadores rurais, que representavam 30 entidades representativas, evidenciando o aumento nos índices de violência na área rural e fazendo exigências da implantação da reforma agrária no país. No Encontro realizado em Marabá discutiram-se as causas da repressão e a reforma agrária, chegando a conclusão de que “o aumento dos conflitos pela terra e a intensificação da violência no campo aconteceram pela não realização da reforma agrária e em razão da total impunidade dos assassinos e de seus mandantes”. O documento responsabilizava o poder público pela ausência de percepção do que estava acontecendo no campo ou, se estava, criticou a sua inoperância frente ao estado de repressão que os trabalhadores rurais estavam inseridos. Segundo a matéria do jornal, “a atuação do poder público não foi suficiente sequer para frear o aumento da violência. Em muitos casos, este favoreceu os latifundiários através da participação das Polícias Civis e Militares” 370 , apontam trechos do relatório do Encontro. Ao término da redação do documento, os participantes saíram do nível do discurso e seguiram para o aspecto prático, assinalando suas exigências. Com isso, resolveu-se que “para se reduzir a violência no campo seria necessária e urgente a aplicação da reforma agrária conforme interesses dos trabalhadores rurais”. Deliberando-se, também, “a solicitação de estradas, transportes, armazenamento, preços justos, crédito bancário subsidiado, apoio à produção de alimentos, educação e assistência médica” 371 , por parte do poder público. 370 371 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.49. MST, dezembro de 1985. p.10. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.49. MST, dezembro de 1985. p.10. 245 Nesse cenário de tensão e repressão, as exigências dos trabalhadores perpassavam a questão da terra, lutando por outros direitos sociais além da aquisição de um lote para trabalhar e plantar, muito embora a sua bandeira de luta estivesse configurada entorno da redistribuição da terra. Aos poucos, suas reivindicações foram saindo do plano do discurso e ocuparam o cenário político. Essa afirmação pode ser observada à luz do trecho do documento no qual os trabalhadores rurais sem terra entregaram para Ulysses Guimarães, em 1986, pois o viam como um político de significativa expressão, por ter ocupado cargos estratégicos no campo da política nacional, tais como “presidente da Câmara dos Deputados, presidente nacional do PMDB e vicepresidente do Brasil”. Os trabalhadores aproveitavam a oportunidade para enviar um recado aos demais políticos brasileiros, expressando o sentimento de que: Se ele (Ulysses) ou quem quer que fosse responsável pela “Nova República”, não fizessem nada pela reforma agrária, os lavradores em vez de cantarem com força e com fé, iriam a Porto Alegre a pé [grifos do jornal], podendo tomar medidas mais fortes do que os contra a reforma agrária chamam de medidas radicais. Medidas estas que podem pegar muito mal para quem mente em fazer reforma agrária em ano de eleição.372 O trecho revela um cenário de tensão e de cansaço por parte dos trabalhadores, procurando alertar a sociedade de que, pela forma democrática e com o diálogo, a reforma agrária não seria realizada, não sairia do papel. Sinalizava, também, para outros tipos de pressão além das ocupações de fazendas, caminhadas e passeatas, ocupações de escritórios públicos, locais onde, por natureza, deveriam ser palcos de negociação. 372 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.54. MST, julho de 1986. p.5. 246 Na mesma edição do jornal, subseqüente à matéria acima destacada, publicou-se uma entrevista do Frei Leonardo Boff que alertava para a necessidade de “se desmascarar o governo” (à época José Sarney). Indagado sobre o governo da “Nova República” e sua relação com os movimentos sociais, o teólogo assinalou que: Este governo deve ser desmascarado como prolongamento do projeto da ditadura militar. Trocou só a forma de poder, não a natureza do poder. É um poder concentrado, burguês nacional articulado com o capital internacional, fundamentalmente elitista e antipopular.373 A citação demonstra que o processo de violência e repressão no campo envolvendo os trabalhadores rurais e suas lideranças, esteve associado à subserviência do governo com relação aos interesses dos latifundiários. A título de informação, Frei Betto observou que a “própria organização da UDR representava a violência de forma mais eficaz”, na tentativa de assegurar a perpetuação do latifúndio e de seu status quo. Isso significa a impossibilidade da implantação “da democracia no campo, porque a reforma agrária, no fundo, é a democratização do campo”374, que os latifundiários e determinados setores da sociedade e do Estado não permitiriam avançar, disseminando, à luz do dia, a violência e a prepotência no campo, como revelam as imagens a seguir. 373 Entrevista com Frei Leonardo Boff. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.54. “O governo deve ser desmascarado”. MST, julho de 1986. p.5. 374 Entrevista com Frei Leonardo Boff. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.54. “O governo deve ser desmascarado”. MST, julho de 1986. p.5. 247 Na edição de número 57, as imagens remontam à postura repressiva das forças públicas para conter as manifestações e ações dos trabalhadores sem terra e, também, ilustram o que foi observado pelo Frei Leonardo Boff com relação à natureza e o lugar de manifestação do poder. Se antes, nas décadas de 1960 e 1970, os confrontos davam-se nas cidades, partir dos anos de 1980 nota-se que estes passam também a se manifestarem no campo. Observando a figura 4, pode-se notar no plano inferior um contingente incipiente de forças repressoras do Estado - um só militar. Já na figura 5, as forças repressoras são significativas, esta mesma imagem permite observar que a organização dos trabalhadores rurais, apesar de menor, parece avançar em direção ao território a ser ocupado. Reportando-se as duas imagens, chama a atenção à presença marcante do símbolo do catolicismo. A representação da cruz de madeira, carregada e erguida pelos trabalhadores rurais simbolizava o sofrimento de Cristo em direção à terra prometida. As faixas brancas que envolviam as partes do crucifixo de madeira, expressava, de certa forma, o sentimento de paz que movia os trabalhadores, embora o cenário político no campo não fosse tão receptivo a esta. 248 Figura 4 - A repressão no Campo: governo militar.375 Pautados pela exclusão e sem se conformando com esta, os trabalhadores rurais buscavam na ocupação da terra a sua inserção no cenário político. Em virtude da entrada expressiva da mecanização na área rural, estes trabalhadores viram-se forçados a deixarem o campo indo morar nas cidades em condições precárias, como já assinalado em capítulos anteriores. 375 Foto: Juan Carlos Gomes. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.56. “O governo deve ser desmascarado”. MST, outubro de 1986. É oportuno assinalar que um estudo acerca das imagens/fotografias produzidas pelo MST foi realizado ao término da década de 1990, quando se problematizou “a fotografia do movimento como uma prática social”, pela sua presença marcante “nos conflitos, nas conquistas, nas lutas do dia-a-dia”. Para o autor, o MST se apropria dos “equipamentos, das técnicas fotográficas e das experiências socializadas pelas fotografias, no intuito de realizar um intercâmbio de práticas, de denúncias e também de divulgação de suas lutas e reivindicações”, deixando registrado no JST a memória da luta dos trabalhadores do campo. Cf.: SOTTILI, Rodrigo. MST: A nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. p.18. 249 Figura 5 - Repressão no Campo: “Nova República”.376 Não obstante, em resposta ao “consequente processo de concentração da propriedade e da política agrícola que se voltava para a agroindústria de exportação, os trabalhadores foram reduzidos à situação de sem terra e sem tetos”377, sendo levados a ocupar o local enquadrado nas duas imagens. Nesse mesmo cenário, era notória a militarização dos acampamentos na tentativa de impedir a organização dos trabalhadores, provocando o imbricamento das forças sociais com as do Estado. Pode-se perceber nesta segunda imagem que o número de trabalhadores rurais aumentou expressivamente com relação à primeira, o mesmo aconteceu com o contingente de policiais que tentava impedir a ocupação da Annoni. 376 Foto: Jurandir Ferreira. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.56. MST, outubro de 1986. 377 Sobre o confronto envolvendo policiais e trabalhadores rurais no Assentamento Encruzilhada Natalino - RS, ver: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. p.78. 250 As imagens de capa desta edição antecipavam as informações que os leitores encontrariam no corpo do jornal, sobretudo, reportando-se à violência anunciada no RS, na ocupação da Fazenda Annoni. Dessa forma, as notícias escritas nas páginas subseqüentes tornavam-se mais claras à luz das fotografias, evidenciando os caminhos que a luta seguiria a partir de então. Na mesma seção, a matéria intitulada “Enrolação e violência contra os sem terra”, fazia notar que “o Movimento dos Sem Terra esteve em Brasília para falar com o Ministro Dante de Oliveira. Após ter conversado com os lavradores, o Ministro salientou que era o Poder Judiciário quem estava impedindo a reforma agrária”, afirmação que descortinou um conflito interno no próprio governo. A matéria denuncia, também, que “no RS a Polícia Militar cerca e agride os acampamentos da Fazenda Annoni, é a ‘Nova República’ repetindo o que a ditadura fez, em 1981, com os acampados da Encruzilhada Natalino, local próximo a fazenda em destaque”378. Ademais, em 1982, momento no qual o campo estava ganhando uma suposta consciência política, buscava-se dentre as regiões aonde o Movimento encontrava-se organizado, encabeçar “denúncias sobre os crimes e demais atos de crueldade cometidos contra os colonos”379. Da mesma maneira, observa-se que, em igual período, a “ala progressista da Igreja Católica, partidária da Teologia da Libertação, articulada em todo o país”380, era solapada por uma ampla campanha difamatória, que depreciava suas ações junto ao MST pela “grande imprensa”, ganhando maior expressividade nas páginas do Jornal “O Estado de S. Paulo, que 378 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.57. MST, outubro de 1986. p.11. A respeito da ocupação e permanência dos trabalhadores rurais na Fazenda Anonni, ver: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. p.87-90. 379 Ibidem. p.88. 380 Ibidem. 251 cobriu de forma exaustiva às notícias difamatórias, dentre as quais aquelas que se referiam ao recebimento de recursos internacionais por parte da Igreja”381. Em síntese, as duas imagens denunciam a repressão expressiva no campo, comprovando que “a reforma agrária brasileira estava sendo tratada a fuzil” e não com diálogo e política efetiva de assentamentos e distribuição de terras. 382 Em outro artigo de opinião, denunciou-se que o problema da violência no campo ainda persistia, mudava-se apenas o ano e o lugar, ao passo que o seu desenvolvimento era cada vez mais refinado. Portanto, diante dessa questão, foi recorrente no jornal a informação de que a “Nova República” também achou que, para resolver os problemas sociais do campo, seria necessário recorrer ao uso da polícia, estratégia amplamente empregada no passado pelo regime militar para conter as reivindicações dos movimentos sociais. Em face dos anseios dos trabalhadores rurais sem terra, em meados da década de 1980, notava-se que ao serem acionadas “as forças policiais não poderiam permitir que os camponeses passassem a viver uma situação de desobediência às ordens do Estado”383, ou seja, não poderiam e nem deveriam fazer ocupações de terras públicas ou particulares e/ou locais públicos que prejudicassem 381 IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos Sociais no Campo Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. 382 Assim, três aspectos justificam o não avanço da reforma agrária no país em detrimento dos interesses dos latifundiários. Para Graziano, a demora na realização da reforma agrária esteve associada a fatores de “escolha da desapropriação de terra por interesse social como instrumento principal do Plano Nacional da Reforma Agrária; ao conceito do que eram terras produtivas e improdutivas e, por fim, à falta de controle do processo de credenciamento de trabalhadores e fiscalização das terras que seriam desapropriadas”. O autor expressou a sua opinião a favor da efetivação do Plano, salientando que este foi uma proposta da burguesia, porém, era uma conquista histórica dos trabalhadores rurais brasileiros que tinham anseio pela reforma agrária. A implantação do Plano significava um avanço da luta e que não podia haver recuo, devendo haver por parte do Estado a reativação de uma ampla Campanha Nacional em defesa da reforma agrária. SILVA, José Graziano da. “A polêmica reforma agrária”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.46. MST, agosto de 1986. p.13. 383 Não obstante, a autora assinala que essa tese é dissolvida porque a sociedade civil, por meio de suas ações de intervenção, “quebrava com essa ordem instituída pelos militares colocando em risco o processo concentrador do poder”. Cf.: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. p.88. 252 os “direitos” de outrem, quando na verdade o seu direito à terra estava sendo negligenciado pelo próprio Estado. Em 26 de setembro de 1986, um grupo de lavradores é recebido em audiência pelo governador do RS, Jair Soares. Comunicam a ele que, devido à demora do Governo Federal em dar uma solução às 1.500 famílias acampadas há um ano na Fazenda Annoni, fariam uma caminhada pacífica às áreas já desapropriadas no estado, mas que estavam sem emissão de posse. O governador disse que respeitava esta decisão e, mais do que isto, daria proteção aos lavradores por causa das ameaças dos latifundiários de impedir a caminhada à bala [grifos meus].384 Nesse aspecto, observa-se a preocupação do governador em relação ao evento programado pelos trabalhadores rurais, atenuando que esta preocupação se dava em virtude da repressão oriunda dos latifundiários, confirmando, portanto, a percepção de subserviência do Estado aos interesses dos fazendeiros, denunciada deste a muito pelo movimento. Nesse sentido, indagava-se: quem transformava o país numa desordem: uma manifestação pacífica de cunho político ou uma incursão violenta contra os trabalhadores rurais, previamente calculada pelos latifundiários? No dia 29 de setembro, o cenário político do RS começou a adquirir novos contornos, ao passo que a tensão nos campos brasileiros parecia não ter trégua, tornando-se ainda mais expressiva na década de 1990, particularmente em 1996, quando ganhava maior visibilidade com os massacres de trabalhadores rurais conhecidos como Corumbiara e Eldorado dos Carajás.385 384 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.57. MST, outubro de 1986. p.12. Sobre o massacre de Corumbiara, ver: MESQUITA, Helena Angélica de. Corumbiara: o massacre dos camponeses. Rondônia/ Brasil 1995. Scripta Nova. Vol.VI, nº 119. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, 2002. Disponível em: <www.ub.es/geocrit /sn/sn119-41.htm>. Sobre o Massacre de Eldorado dos Carajás, ver: SOTTILI, Rodrigo. MST: A nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. p.98-112. BALZA, Guilherme. Massacre de Eldorado dos Carajás Completa 14 anos com Responsáveis em Liberdade. São Paulo, 17/04/2010. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/2010/04/17/massacre-de385 253 À luz do periódico dos trabalhadores rurais sem terra, a fala do governador do estado do RS caiu no descrédito quando o jornal denunciou que mais de 300 lavradores, dentre homens, mulheres e crianças que iniciaram a caminhada rumo à cidade de Cruz Alta, RS, onde estavam as áreas desapropriadas, aproximadamente a um quilômetro do acampamento foram cercados e agredidos na estrada por mais de 200 policiais. Cinqüenta trabalhadores saíram gravemente feridos [...]. O governador gaúcho não teve palavra. Cedeu às pressões do também gaúcho, latifundiário e Ministro da Justiça, Paulo Brossard, ao ter alegado que a caminhada haveria de ser impedida de qualquer maneira, nem que para isso tivesse que usar as tropas federais. Ao todo foram mais de 700 policiais, armados de metralhadoras, fuzis com baionetas e bombas, cercando o acampamento.386 O trecho da reportagem sinaliza claramente algumas hipóteses já previstas, revelando a situação dos trabalhadores rurais sem terra que pressionavam o poder público para a efetivação da reforma agrária em todo o país, usando as ocupações de propriedades como instrumento de luta, ação política e símbolo de enfrentamento ao poder instituído. Nesse sentido, despertava-se a fúria de alguns latifundiários que temiam tal reforma e, sobretudo, as averiguações em suas propriedades, posto que, na maioria das vezes, as fazendas ocupadas pelos sem terra eram declaradas improdutivas ou apresentavam alguma irregularidade passível de desapropriação. Face ao interesse dos latifundiários, seria melhor usar as “forças públicas” e “privadas” para expulsar e, às vezes, matar os trabalhadores rurais do entorno de suas propriedades, ao passo que a sua presença e organização se tornavam ameaças constantes. O excerto desvela como o embate no campo estava concatenado aos interesses de agentes vinculados ao alto escalão político, que impediam a ampliação eldorado-dos-carajas-pa-completa-14-anos-com-responsaveis-pelos-crimes-em-liberdade.jhtm>. Acesso em: 20/02/2011. 386 JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.57. MST, outubro de 1986. p.11. 254 do processo de reforma agrária no país. Nesse cenário de tensão e poder, não havia somente interesse dos trabalhadores sem terra pela distribuição de um lote, mas, também, de autoridades políticas que lutavam pela manutenção de seu estado de privilégios, para estas a reforma agrária tornava-se uma ameaça constante. Para que esse projeto político não se efetivasse, alguns órgãos do Estado foram amplamente aparelhados em prol dos latifundiários, este processo tornou-se patente na década de 1990, como será discutido a seguir. 4.2 A VIOLÊNCIA NO CAMPO SE INTENSIFICA NA DÉCADA DE 1990 No editorial de junho de 1989, o JST denunciou que o “latifúndio gera violência” no campo em todo o país, contestando o discurso da UDR que afirmou na Assembléia Constituinte, que “a paz voltava a reinar no campo”, após a aprovação de sua lei de reforma agrária. Ao contrário do que era propalado pela UDR, os registros da CPT e as matérias do JST apontavam as incursões de violência cometidas pelos latifundiários, sendo que em alguns momentos a documentação sinalizou para a anuência do poder público á violência nos campos brasileiros, destacando que “a existência do latifúndio é a causa geradora dos conflitos, das perseguições, dos assassinatos, das expulsões de milhares de trabalhadores do campo”387. 387 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.84. MST, junho de 1989. p.3. Nesse aspecto, a documentação produzida pelo MST e por seus colaboradores (destacando-se a CPT) deixou claro o discurso da entidade representativa dos latifundiários (UDR). Segundo Chauí, “a condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como discurso do conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência dos homens enquanto sujeitos sociais e políticos [...]. Para que esse discurso possa ser proferido e mantido é imprescindível a inexistência de sujeitos, mas apenas homens reduzidos à condição de objetos sociais”, condição esta negada veementemente pelos integrantes do MST. Ver: CHAUÍ, M. S. Cultura a e Democracia. O discurso competente e outras falas. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.11-2. 255 Os documentos analisados denunciavam o crescente aumento da repressão sobre os trabalhadores e suas organizações, assinalando o “arrombamento e roubo na sede do MST-SC; prisões de lideranças nos estados do ES, SE e PB e ameaças de morte contra os trabalhadores rurais”. Na apresentação do Caderno Conflitos no campo, Brasil/1991, o presidente nacional da CNBB fez notar que, neste ano, “os pobres do campo foram discriminadamente maltratados por falta de financiamentos para a agricultura e o país teve a pior safra dos últimos 10 anos”. Destacavam também que “os latifundiários beiraram o terrorismo, sobretudo nos estados do Pará, Bahia, Maranhão e Paraná”. Dom Augusto Alves atenuou que “os pobres do campo estão na luta. Defendem os peixes e a mata na Amazônia; lutam pelos campos naturais no Maranhão; combatem a monocultura com agricultura diversificada; ocupam órgãos do Estado para exigir a terra, justiça, crédito, educação e saúde”388. A reflexão do representante da CPT revelou que a luta e a indignação dos trabalhadores rurais se manifestaram para além da aquisição de um lote de terras; pretendiam assegurar outros direitos fundamentais e coletivos natos ao exercício da cidadania, direitos estes conferidos na Carta Constitucional de 1988. Nesse sentido, o trecho expunha apoio do Bispo, representante da Igreja, às ocupações de propriedades, sendo que essa postura nunca foi negada pela CPT. 388 ROCHA, Dom Augusto Alves da. Apresentação. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.5. Sob a perspectiva de Carlos Frederico, nota-se que a Constituição albergou, criou e possibilitou a garantia de tantos outros direitos coletivos e individuais, como o acesso à terra, por exemplo. Entretanto, este não pode ainda ser efetivamente garantido. Ressalta, ainda, que “os direitos coletivos, portanto, já existem dentro do Direito e não fora dele, mas por ironia do sistema continuam invisíveis”. Cf.: SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-34. 256 A publicação indicava as falhas do Poder Judiciário e sua omissão nos conflitos existentes no campo. Aliás, essa foi uma questão amplamente denunciada e polemizada nas edições dos Cadernos Conflitos no Campo Brasil, organizada pela CPT anualmente. Nesse sentido, a entidade destacava que o judiciário atuou, em alguns estados, como fiel amigo dos grileiros, expulsando até comunidades centenárias de negros. Com alegria ressalva-se a postura de alguns juízes que se esforçaram para vencer a impunidade: havendo sete julgamentos e cinco condenações de assassinos neste ano, o que foi um milagre! Pequeno, mais um milagre! A regra ainda era a impunidade.389 Nessa direção, observa-se a experiência de um Juiz com relação ao recebimento de uma solicitação de reintegração de posse, numa fazenda ocupada por trabalhadores rurais sem terra, no estado do Paraná. Ao contrário do que sempre ocorria, a emissão imediata de liminar concedendo a desocupação das propriedades, o magistrado Dr. Mário Sérgio ao invés de despachar uma liminar, encerrado entre quatro paredes de seu gabinete, mirando uma fria folha de papel denominada ‘Transcrição Imobiliária’, assumiu atitude coerente com sua consciência social. Foi ao encontro da realidade. Reuniu-se com os ocupantes e solicitou a vistoria prévia da fazenda. [...] Ao solicitar a vistoria prévia, o Magistrado preocupou-se em verificar o cumprimento da função social da terra ocupada, antes de decidir sobre a emissão da liminar de reintegração de posse.390 389 SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-34. 390 Como jornalista e governador do PR, o autor fez notar que um dos fatores exemplares da decisão tomada por Mário Sérgio em não emitir de imediato a liminar concedendo a reintegração de posse aos proprietários da fazenda, foi a sua observação ao “Artigo 126 da Constituição Federal ao estabelecer que assim que se fizer necessário à prestação do serviço jurisdicional, deve o Magistrado fazer-se presente no local do litígio. Pois, a proximidade do Juiz com a realidade, traz luz às decisões, especialmente em conflitos fundiários”, corroborando, portanto, ao trecho louvando atitudes de alguns juízes com relação aos conflitos no campo, publicado pela CPT. Cf.: REQUIÃO, Roberto. A terra e a lei: os juízes e a questão agrária. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.122. São Paulo, janeiro de 1993. p.6. 257 Na mesma edição publicou-se um Manifesto de apoio aos trabalhadores assinado pelos Bispos participantes da XXIV Assembléia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Regional Norte II (Pará e Amapá), realizado na cidade de Belém, em setembro de 1991. Os integrantes presentes no evento consternavam-se com a situação da violência explícita, na qual estiveram inseridos os “trabalhadores rurais, posseiros, lideranças religiosas e sindicalistas”, destacando que o quadro de repressão na região era desolador, em face de que “os mandantes e executores dos atos criminosos continuavam na impunidade”, conforme documentação. Em face do exposto, pontua-se que autoridades judiciais tomaram aberta e decididamente posição em favor dos responsáveis pelos crimes e acobertaram aqueles que prenderam, queimaram casas e espancaram famílias pobres e indefesas. Pistoleiros conseguiram fugir das cadeias, enquanto posseiros tiveram seus pedidos de “Hábeas Corpus” recusados.391 O trecho do Manifesto ressoa na questão da “invisibilidade dos direitos coletivos evidenciados na Constituição, mas sem respaldo no Poder Judiciário”. Ao optar por “garantir o cumprimento da lei, fazendo com que os direitos individuais fossem realizados e executados dentro dos parâmetros por ele estabelecidos”392, colaborando para que a violência se proliferasse e se perpetuasse na zona rural. 391 Manifesto assinado pelos Bispos: D. José Elias Chaves, D. Luiz Soares Vieira, D. Ângelo Frosi, D. Vicente J. Zico, D. Ângelo Rivato, D. Patrício, D. Martinho Lammer, D. Miguel, D. Lino, D. José Luis, D. Capistrano, D. Erwin Krautler. Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.6. 392 SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.327. O autor concebe como direito coletivo: “o direito a terra, a saúde, a educação, a moradia, ao trabalho, a segurança” sendo direitos já criados, porém carecendo de regulamentação para a sua aplicabilidade. Essa observação desvela “uma lacuna no sistema judiciário, que no caso brasileiro é resolvida, ou tem como proposta de solução o mandato de injunção e a ação de inconstitucionalidade” na exigência de seu cumprimento. Nesse sentido, o autor faz notar também que o Poder Judiciário brasileiro “ainda não reconheceu que os direitos coletivos possam se opor a direitos individuais em ações ordinárias e especialmente a direitos de propriedade e posse”, fortalecendo ainda mais os conflitos no campo (p.328-9). 258 Articulando o discurso da violência às ações encampadas pelos integrantes do Movimento, assinalava-se que tais atos passaram a ser observados como instrumentos de lutas, principalmente “as ocupações de terras e acampamentos”. Nesse sentido, destacava-se que “as ocupações são ações práticas baseadas em uma carência objetiva – a falta de terra, de trabalho e de comida”393. Esta afirmação trouxe à luz possíveis definições acerca da “reconquista da terra” e os conflitos que desta se constituíram. Para a CPT essa explicação se pauta pela noção de que a luta pela terra acontece de maneira muito diversa, porque diversa é a estrutura agrária, a cultura e a organização do povo. Diversa é também a situação dos que estão fora dela, dos que a possuem precariamente e dos pequenos que precisam lutar muito para, em cima dela, conseguir sobreviver. Para milhões de brasileiros entrarem nessa luta é condição de vida ou de morte, sobretudo para os jovens.394 Compreendendo que as ocupações de terras públicas ou privadas pelos trabalhadores rurais sem terra davam-se como atos pacíficos de cunho essencialmente político, a CPT utilizou-se da construção de um quadro comparativo do cenário do campo brasileiro, em 1991, demonstrando que conforme os trabalhadores rurais organizavam-se, atribuíam visibilidade às ações do MST e as ocupações tendiam a aumentar expressivamente. 393 De acordo com Coletti, no processo de ocupações de terras encabeçadas pelos trabalhadores rurais emanam algumas convicções subjetivas, demonstrando haver legitimidade em tais ações, mesmo indo contra ao tão propalado direito burguês que pregava, dentre outras coisas, a nãoviolação da propriedade alheia – estatal ou privada, produtiva ou improdutiva. Em face dessa questão, o autor assinala que a subjetividade dessa convicção se traduz como um elemento embrionário de desafio à ideologia dominante que, enquanto tal pode se desenvolver com base no papel das lideranças do movimento, no trabalho de formação política dos trabalhadores, no confronto com Estado e latifundiários. COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.2645. 394 Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.10. 259 Tabela 8 - Ocupações de Terra no Brasil – 1987-1991.395 Anos 1987 1988 1989 1990 1991 Total Ocupações 67 72 90 50 77 356 Famílias ocupantes 11.772 9.986 12.575 7.957 13.844 56.134 Os dados da CPT causaram apreensão, ao desvelar um significativo número de famílias que estiveram presentes no processo de ocupação das fazendas em todo o país. Em face disso, indaga-se sobre a origem desses trabalhadores, sobre a motivação que os levou a se organizar a fim de ocupar latifúndios improdutivos, terras devolutas expostas à grilagem, terras abandonadas, o que os moveu a correrem todos os riscos, inclusive os de morte na luta pela reforma agrária. Embora o foco da pesquisa seja o JST, os dados apresentados pelo Caderno Conflitos no Campo Brasil, 91 da CPT, tornaram-se reveladores permitindo afirmar que a saga dos trabalhadores rurais sem terra, nos meandros dessa nova década. Estes escritos demonstravam que, em geral, esses sujeitos sociais eram expulsos de suas terras, obrigados a vendê-las por preços baixos para sobreviverem às sucessivas crises econômicas das quais o Brasil foi palco. Noutra perspectiva, afirmava-se que esses trabalhadores “foram pessoas que migraram do campo com destino às periferias das grandes cidades, sem trabalho e com precárias condições de vida, tornando-se bóias-frias e submetidos à situação de semi-escravidão”396, em alguns casos. O documento da CPT aponta que “das 80 famílias que ocuparam a fazenda Itapemirim, a maioria eram de bóias-frias. Também eram de bóias-frias, em sua maior parte, os ocupantes da fazenda 395 Fonte: CPT Nacional, 1992. Tabela organizada pelo autor. Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.14. 396 260 Guairaçá, em Londrina, no Paraná” 397 , afirmação que dissolveu, ou pelo menos colocou em discussão, a prerrogativa de que os trabalhadores rurais em movimento não sabiam lidar com a terra ou não queriam permanecer na mesma. Focalizando o discurso da violência nos atos de alguns representantes do governo, assinalou-se que, no ano de 1991, o então ministro da agricultura, Antonio Cabrera, “avisou pela imprensa que não seriam desapropriadas áreas de conflitos para fins de reforma agrária” 398 . No entanto, os dados da CPT revelavam uma resistência desses trabalhadores em continuarem ocupando as terras, na esperança de conseguirem sobreviver com suas famílias, totalizando “setenta e sete” ocupações e mobilizando um contingente de “treze mil, oitocentos e quarenta e quatro famílias”, como apontou o quadro acima. Nesse sentido, os momentos das ocupações de propriedades e de locais públicos por trabalhadores sem terra não podiam ser consideradas ações isoladas de um núcleo maior, e sim incursões feitas como resposta aos poderes opressores, compreendidas como momentos de desafios em que uma nova ordem emergente confronta a ordem da representação. O questionamento da ordem de representação produz o caos epistemológico que permite às energias emancipatórias reconhecerem-se como tais [...]. No momento da rebelião, a força do opressor só existe na medida em que a fraqueza da vítima o permite: a capacidade do opressor é uma função da incapacidade da vítima; a vontade de oprimir é uma função da vontade de ser oprimido.399 397 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. 398 Ibidem. 399 Para esse autor, “a reciprocidade momentânea entre opressor e vítima torna possível a subjetividade rebelde”. Reportando-se à Gandhi (1956, p.118), Santos assinala que esta pode ser traduzida na seguinte frase: “não somos nós que temos de fazer o que vocês querem, mas vocês que têm de fazer o que nós queremos” dirigindo-se aos Britânicos. Cf.: SANTOS, Boaventura de Sousa. a Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.379. 261 O gráfico a seguir é um indicador de como estava a organização dos trabalhadores no campo, ao passo que a metade da década de 1980 registrava altos índices de conflitos pela terra no país, em comparação aos anos de 1991, demonstrando queda expressiva nos números: Gráfico 2 - Número de Conflitos de Terra – Brasil – 1985-1991. 119 120 100 89 81 80 77 60 40 20 0 1991 1992 1993 1994 Número de Ocupações Fonte: CPT Nacional - 1994, p.11. Seguindo os dados publicados pela CPT, da metade da década de 1980 até a finalização do primeiro ano da década de 1990, registrou-se que ocorreu uma significativa redução no número de conflitos na área rural, relativamente associada à intensa repressão impetrada no campo. Diante disso, desvelava-se a capacidade singular de resistência dos trabalhadores rurais, sobretudo, quando tiveram que enfrentar a violência, os massacres, as ameaças de mortes, “as expulsões de um lugar para outro e a coragem de ocupar, inclusive terras produtivas, justificando só sair dali quando o 262 governo tomasse providências em arranjar terras para se plantar noutro local”. Com isso, revelou-se uma atmosfera de constante tensão social e política, sem calar-se diante dessa realidade, formalizavam denúncias a todo instante contra “as injustiças cometidas pela estrutura agrária, pelo Estado que não realizava a reforma agrária, largando à própria sorte a maioria da população rural” 400 . Dito de outra forma, segundo o jornal, às experiências de lutas destes trabalhadores aliava-se à possibilidade de recuperação da esperança, traduzindo-se no chamado realismo utópico que preside as iniciativas dos grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente.401 Por essa razão, nos anos de 1990, o MST era considerado “a única entidade que conseguia fazer política no Brasil”, ao enfrentar com veemência práticas latentes que se operavam sistematicamente visando promover a “destruição da fala, do discurso que reivindicava e que interpelava o outro” 402 . Isso revela um inconformismo frente à situação de repressão, intolerância e falta de iniciativa do governo, no que tangia à resolução dos conflitos no campo e na cidade. Sendo assim, destaca-se que 400 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.5. Nesse aspecto, a atuação dos trabalhadores rurais rompia com a “espera sem esperança”, entregando-se ao “realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo seu conteúdo, não em geral, mas em seu exato lugar e tempo em que se encontra [...]. A esperança reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito, alternativas que pareciam utópicas em todos os tempos e lugares”. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo a senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.36. 401 Ibidem. 402 OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do Público, destituição da fala e anulação da política. In: Idem; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.79. 263 a arma da desmoralização da fala, do discurso, foi uma das tônicas mais presentes no governo de FHC. Sua arrogância em nomear como ignorantes, atrasados, burros, neo-bobos, todos aqueles que se opuseram a seus métodos, não teve outro objetivo: a anulação da fala e, através dela, a destruição da política, a fabricação de um consenso imposto, ao modo das ditaduras [...].403 Frente à resistência declarada dos trabalhadores rurais sem terra contra o latifúndio no país, o relatório da CPT denunciou que, apesar de ter ocorrido redução nos conflitos pela terra em todo o Brasil, em 1991 o índice de violência seguida de óbitos foi relativamente alto com “a morte de 40 camponeses/trabalhadores rurais, 7 índios, 5 dirigentes sindicais e dois menores”, sendo que o maior índice dos assassinatos deu-se “no estado do Pará com 14 vítimas e 13 no estado do Maranhão”. Comparando os dados da violência no campo com vítimas de assassinatos, no interstício de 1985 a 1991, notou-se uma redução significativa de óbitos a cada ano. Ou seja, a queda nos conflitos envolvendo a posse da terra repercutiu também na redução dos assassinatos, como pode ser observado no gráfico abaixo. 403 Essa afirmação dava-se em virtude da resistência demonstrada pelo MST contra as incursões do governo de Fernando Henrique Cardoso, pois se essa entidade aceitasse ou caísse nas armadilhas do governo, também estaria condenada ao descrédito político, “como aconteceu com os principais sindicatos de trabalhadores, que já não conseguiam veicular seus discursos, sendo reduzido ao silêncio”. Ver: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.79-81. 264 Gráfico 3 - Assassinatos de 1985 a 1991 em Conflitos de Terra no Brasil. 140 125 120 105 109 100 93 80 75 Assassinatos: 1985-1991 56 60 49 Fonte: CPT Nacional 1992, p.38. 40 20 0 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 O Caderno Conflitos no Campo, que nasceu com a dupla missão de anunciar e denunciar, especialmente a edição de 1992, apresentava dados do ano anterior, fazendo notar que o “fato de se matar menos”, como evidenciava a leitura do gráfico 3, não representava a inércia das forças repressivas no campo, e sim uma mudança na “pedagogia” traçada pelos latifundiários. Esses passavam a “selecionarem melhor suas vítimas, ou porque apostaram no terrorismo” e certamente, também, “pela melhor organização nas ações defensivas e preventivas dos trabalhadores sem terra”404, buscando em outros espaços o acolhimento e a solidariedade, como demonstra o trecho a seguir: 404 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1992. Goiânia: CPT, 1993. p.37. 265 Articulação na mídia; articulação com juízes democráticos; convidar juízes para visitar os acampamentos e assentamentos; prestar apoio aos juízes alternativos; estender a discussão da terra às faculdades de direito; trazer o PT e as Igrejas para a discussão; evitar o isolamento dos companheiros presos; acionar as entidades: OAB, CNBB, etc. para que eles possam denunciar a articulação da direita e a violência no campo.405 O documento elaborado pela entidade, em 1992, anunciava a redução no número de assassinatos no campo, mas também um aumento no que se refere ao crescente contingente de famílias expulsas e despejadas das terras, articulando, ainda, a um aumento absoluto de vítimas de “ações terroristas: prática de intimidação através de disparos de armas, detonação de explosivos contra casas, acampamentos e reuniões de trabalhadores”, procedimento muito utilizado nos primórdios da constituição do MST no assentamento de Encruzilhada Natalino-RS. A rigor, tal procedimento de repressão foi e é um dos estratagemas utilizados no sentido de impedir qualquer articulação política que comprometesse a ordem instituída, inclusive na primeira década de século XXI. Porém, notou-se que a atuação dos “agentes do Estado” seguia em direção a “uma sinistra repetição de apropriação dos corpos, silenciando-os e vilipendiando-os na tentativa de anular a construção política das classes dominadas” 406, posto que 405 Estas foram algumas das ações defensivas pensadas e colocadas em prática pelos trabalhadores rurais sem terra, na busca da superação das desigualdades sociais das quais eram vítimas e sujeitos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.120. Seção “Estudos” - A luta e o Judiciário. MST, 1992. p.13. 406 OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: Idem; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.64. 266 a violência que campeia na sociedade brasileira e, sobretudo, a violência que é produzida pelos aparelhos de Estado não é senão uma pálida sombra da exclusão da fala e da privatização do público, e, no seu rastro, a anulação da política.407 Em face dessa questão, buscou-se deixar claro que a “justiça legitima o mecanismo que produz desigualdades, violência e hierarquizações assimétricas” entre os trabalhadores, demonstrando visível articulação entre o “sistema jurídico e o poder disciplinador”408 do Estado, no sentido de anular as experiências construídas na luta dos trabalhadores rurais sem terra, compreendidos como sujeitos históricos. Embora, os dados do gráfico 3 indicassem uma visível queda nos números de assassinatos no campo, a edição de Conflitos no Campo, Brasil/1994 destacou, em sua apresentação e em seu primeiro capítulo, a informação de que 485 conflitos seguidos de 47 assassinatos eram indícios de incipiente avanço no combate à violência no campo, reduzindo-se apenas duas mortes em detrimento das 49 ocorridas no ano de 1991. A imagem veiculada pelo JST buscava destacar o quadro de terror e violência perpetrado no campo, sob a presença marcante do Estado. 407 OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. In: Idem; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.81. 408 MARONI, Amnéris. A Estratégia da Recusa: análise das greves de maio de 1978. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.39. 267 Figura 6 - “Colonos Saem da Fazenda Santa Rita, RS”.409 O cenário apresentado nesta imagem é um exemplo da truculência da polícia do Rio Grande do Sul contra as 450 famílias de trabalhadores rurais que ocupavam a Fazenda Santa Rita, de propriedade do veterinário e pecuarista Agamenon Almeida. Para a CPT, “os trabalhadores ocupantes da fazenda alegaram que as ocupações se deram pela falta de perspectivas de novos assentamentos e que a área ocupada era improdutiva e sem função social”410. 409 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1994. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1995. p.6. 410 Ibidem. p.13. Em face disso, a decisão da justiça nesse episódio implicou na tentativa de restringir os anseios de determinado segmento da sociedade (os trabalhadores rurais sem terra), que buscava no assentamento condição básica ao exercício da cidadania. Portanto, a intenção da Juíza não pode ser observada como “decisão irracional”. Pelo contrário! Esta procurou atender “os interesses dos agentes mais poderosos” em detrimento aos interesses coletivos dos trabalhadores rurais ali 268 Dois dias após a ocupação, “a Juíza de Lagoa Vermelha concedeu liminar de reintegração de posse ao proprietário, dando-lhes um prazo de 72 horas para evacuar o local e determinou que a Brigada Militar (BM) vigiasse a área”411. Além da presença marcante da BM, “os produtores rurais das imediações da área ocupada vigiavam suas propriedades temerosos de novas ocupações”412 dos trabalhadores rurais, conforme destacou o documento. No mesmo período, em manifesto público, a União Democrática Ruralista (UDR) acusou o MST de ser uma “organização guerrilheira que ameaçava os direitos básicos dos cidadãos e invadia propriedades privadas”, discurso que circulou fartamente em alguns meios de comunicação da “grande imprensa”. Na sequência, a nota de repúdio da UDR ao MST: “a Associação Rural de Vacaria, a Prefeitura Municipal e a Associação Comercial e Industrial da mesma cidade divulgaram comunicado atacando os colonos”. Porém, observou-se que no desenrolar da luta nesse local, o prazo determinado pela Juíza expiraria, “pois o Ministério Público pediu vistas ao processo, alegando o perigo que corriam as crianças”. Após essa trégua, o Governo Federal sinalizou que se os ocupantes deixassem a fazenda de forma pacífica, “em um mês lhes assentaria”. Em face da promessa do Presidente da República, a indignação da UDR foi imediata, manifestando-se novamente em nota: “fomos agredidos e não houve respaldo à classe ruralista, os invasores saíram vitoriosos”, anunciando o prenúncio da retomada da luta pela terra no campo, recolocando o tema da reforma agrária na pauta do dia. acampados. Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.110. 411 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1994. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1995. p.13. 412 Ibidem. 269 Os gráficos a seguir demonstram o cenário rural brasileiro, apresentando os números de famílias em conflitos pela posse da terra em todo o país na primeira metade da década de 1990. Gráfico 4 - Ocupações de Terra no Brasil: 1991-1994 - Números de Famílias. 25.000 20.516 19.092 20.000 15.538 14.720 15.000 10.000 5.000 0 1991 1992 Número de Famílias Fonte: CPT Nacional - 1994, p.11. 1993 1994 270 Gráfico 5 - Ocupações de Terras no Brasil: 1991-1994 – Número de Ocupações. 119 120 100 89 81 77 80 60 40 20 0 1991 1992 1993 Número de Ocupações Fonte: CPT Nacional - 1994, p.11. 1994 Os dados dos gráficos 4 e 5 explicitam os números de ocupações e números de famílias que desejavam um lote de terra, agravando a situação de tensão no campo, em face de que os conflitos e a violência estavam longe de chegar ao fim. O relatório Conflitos no Campo, Brasil, 1994, atenuava que “inegavelmente, as ocupações se consolidaram como forma eficiente de luta pela reforma agrária, tornando-se expediente extremo de que dispõem os trabalhadores rurais para conseguirem um pedaço de chão”. A dificuldade que se colocava, na situação apresentada nos gráficos, era o expressivo número de famílias que pleiteava a posse da terra, maior do que as propriedades ocupadas, dado que deixava o poder público cada vez mais distante 271 da efetivação de uma ampla reforma agrária, como desejava os trabalhadores e entidades que os apoiavam. Dessa maneira, o documento tornou visível que não existia linearidade no que tange à localização das ocupações, pois estas se tornaram dinâmicas ao longo da luta, uma vez que “se distribuíram por todas as regiões do país, concentrando-se nos estados e áreas de maior oferta de terras improdutivas e/ou de maior contingente de lavradores excluídos dos processos de trabalho”413. Acerca da localização das ocupações no ano de 1994, elas ocorreram em maior escala na região nordeste, somando 43; já na região sul, eram 16 e, finalmente, na região sudeste totalizando 22, sendo 16 apenas no estado de São Paulo414, declara o documento da CPT. Baseando-se nos dados apurados por esta entidade, destaca-se que no período de “1991 a 1994, contabilizou-se 199 assassinatos, em 1916 conflitos no campo, uma média de 479 conflitos por ano, 1,3 por dia e um para cada 9,6 conflitos, 50 por ano e um por semana”. Na mesma perspectiva, o documento alertava “que estiveram envolvidos cerca de 900 mil pessoas, disputando 17,8 milhões de hectares” 415 em todo o país, constituiu-se um cenário de contínua tensão desembocando na perpetuação da violência generalizada na área rural. A rigor, a publicação do Caderno Conflitos no Campo Brasil/1996, buscou mostrar o aumento crescente das tensões na área rural, pontuando que estas “passaram de 554 em 1995, para 750 em 1996; os números de famílias envolvidas subiram de 63.565 em 1995, para 96.298 em 1996. As ocupações foram de 146 413 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1994. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1995. p.6. p.11. 414 Ibidem. 415 Ibidem. p.12. 272 para 398, e as mortes de 41 em 1995, para 54 em 1996”416. A parte introdutória do documento trazia informações de que o cenário nos campos brasileiros estava em constante ebulição, carecendo, portanto, de intervenção rápida por parte do governo federal, o que não aconteceu, segundo análise dos documentos. Focando o olhar na violência no campo no estado de São Paulo, percebeuse que esta esteve presente em virtude da posse da terra, pois já se fazia uma velha conhecida nas regiões oeste e noroeste 417 . Pleiteando a reforma agrária e a regularização de uma política agrária efetiva no estado voltada aos anseios dos trabalhadores, os conflitos com ações organizadas deram-se a partir da inserção dos trabalhadores no MST, sujeitos que por meio de suas ações e capacidade organizativa, modificariam, aos poucos, a paisagem da área rural. Para a CPT, em 1996, São Paulo registrou cerca de quarenta e nove conflitos em vinte e quatro municípios, envolvendo duzentos e vinte e dois mil, oitocentos e nove hectares de terras, mobilizando sete mil e noventa e uma famílias. A CPT informou, ainda, que uma dessas ocupações contou com um maior contingente de pessoas envolvidas, sendo superior a todas as outras realizadas no estado neste ano, num total de mil e quinhentas pessoas, reportando-se à ocupação da Fazenda Santa Rita, em Mirante do Paranapanema, destaca a entidade.418 416 Palavras de D. Orlando Dotti, Bispo de Vacarias e Presidente da CPT - Nacional. Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1997. p.3. 417 Sobre a ocupação de terras nessas regiões, ver: PENÇO, Célia F. C. A evaporação das terras devolutas no Vale do Paranapanema Tese (Doutorado), USP, São Paulo, 1988. DI CREDO, Maria do C. S. A propriedade da terra no Vale do Paranapanema – a Fazenda Taquaral, 1850/1910. Tese (Doutorado), Unesp, Assis - SP, 1987. MACHADO, Júlio C. Dimensões do processo histórico de desenvolvimento econômico do primeiro cinqüentenário do município de Assis, 1905-1955. São Paulo, 2005. MOMBEIG, Pierre. Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. 2ªed. São Paulo: Hucitec/Pólis, 1998. 418 Os dados aqui descritos foram retirados da planilha organizada pela CPT nessa publicação, na qual a entidade procurou identificar o nome do imóvel em conflito, o município onde estava alocado, o total de hectares de cada área ocupada, o número de pessoas envolvidas (não havendo dados precisos para esse item) e o total de famílias articuladas nas ocupações. Ver: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, op. cit., p.26-7. 273 Quanto às ocupações de terras nesse estado, o documento revelou que, no total, ocorreram “trinta e oito, mobilizando o esforço e a coragem de seis mil e trezentas e vinte e seis famílias” 419 ao todo; era São Paulo em alerta contra a violência no campo. A publicação do Caderno Conflitos no Campo, Brasil, 1997, procurou mostrar que “a violência e os conflitos produzidos pelo latifúndio têm mudado de forma, mas na essência permaneceram os mesmos. Mudaram de forma, mas não diminuíram”420. Pelo endurecimento e intolerância do Governo Federal com relação aos anseios dos movimentos sociais, sobretudo, aqueles vinculados à questão da terra, despertava-se nos trabalhadores rurais um desejo latente de retomar as ocupações de terras em todo o país, particularmente no estado de São Paulo, elevando, sobremaneira, o número de conflitos e, consequentemente, o número de famílias envolvidas nestes. Em agosto do mesmo ano, o Governo Federal acelerou um crescente fluxo de programas e medidas nas áreas agrícolas e agrárias, traduzindo-se em “linhas rápidas de crédito para a agricultura familiar, descentralização da reforma agrária, leilão de terras, recadastramento fundiário”421. Ações que revelavam uma possível tentativa de se embotar os anseios das classes populares e trabalhadoras, ao enveredar políticas sem levar em consideração os anseios dos segmentos sociais envolvidos. 419 Ver. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1997. p.41-2. 420 MOREYRA, Sérgio Paulo (Assessor da CPT). As novas Caras da Violência no Campo Brasileiro. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1997. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1998. p.7. 421 Ibidem. p.8. 274 Em resposta a postura adotada pelo governo da União, os trabalhadores rurais organizaram ocupações de terras e repartições públicas, passeatas e manifestações, ações compreendidas pela pesquisa como o construir da luta no fazer-se político.422 Assim, o clima de terror e violência se configurava no Pontal do Paranapanema, “quando trabalhadores rurais sem terra acampados eram atacados a tiros”423. Nesse aspecto, compartilha-se da idéia de que a violência na área rural estava intrinsecamente concatenada ao latifúndio, ao passo que este se tornava algo absolutamente anti-humano. Pois, algum dia alguém chegou e disse: isso aqui é meu e a partir daí começaram as desgraças todas, porque quem disse “isso aqui é meu”, pôs imediatamente para guardar aquilo que disse ser seu: a polícia. E alguém disse: mas não posso ter aí um bocado ou aquilo de que necessito só para viver? Não pode. E se teima, entra e insiste, é abatido a tiros ou sacrificado de qualquer outra maneira.424 A título de exemplificação de como estava a área rural desse estado, evidenciou-se que, em 1997, a CPT registrou 42 conflitos, num total de oitenta mil, trezentos e dezoito hectares de terras, envolvendo sete mil, setecentos e noventa e 422 Em face desta questão, recorre-se às reflexões de Thompson, particularmente aquelas que buscam tecer novos contornos históricos acerca da experiência social a partir de outras referências, como a própria experiência da classe trabalhadora, por exemplo. Nesse processo de luta, a “consciência” política desses sujeitos históricos é dada a partir da experiência concreta por eles vividas e passível de ser observada no seu “efetivo acontecer”, sublinha o autor. Cf.: THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa I: A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.10. Idem. Tradicion, revuelta y conciência de clase. Barcelona: Grijalbo, 1976. 423 MOREYRA, Sérgio Paulo (Assessor da CPT). As novas Caras da Violência no Campo Brasileiro. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1997. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1998. p.8. 424 Veredicto de José Saramago no Tribunal Internacional para julgar os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás. Trecho citado por D. Orlando Dotti. Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1997. p.3. O Tribunal Nacional de Opinião julgou, em 28 de novembro de 1996, em Brasília, os Massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás-PA. Para esse evento foram convidados algumas personalidades da América Latina e da Europa: Eduardo Galeano, Rigoberta Menchu, Chowski, Saramago, dentre outros. O Tribunal foi presidido pelo então jurista e deputado federal, Hélio Bicudo. O evento contou com a participação de representantes da OAB, CNBB e um perito da França. Esta foi uma iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, da OAB e da Procuradoria Geral da República. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.163. MST, out./nov. 1996. p.16. 275 três famílias425. Comparando essas informações com as do ano anterior, verificou-se ligeira queda nos números de conflitos e nas áreas ocupadas, notando-se, porém, o aumento crescente no contingente de famílias envolvidas. Enfim, a despeito da violência generalizada envolvendo os trabalhadores rurais sem terra, presume-se que o Estado configurou-se como um dos principais agentes da repressão no campo, representado, sobretudo, pelo Poder Judiciário em consonância com precipitadas decisões tomadas por alguns governadores. Tais políticos ao concederem autorização às suas Secretarias de Seguranças Públicas de cumprirem as liminares de reintegração de posse chanceladas por alguns Magistrados, no que tange à desocupação de fazendas em conflitos, provocavam sangrentos combates entre trabalhadores, latifundiários, forças policiais e milícias paralelas a serviço dos grandes proprietários. Antes, porém, afirmava-se que as decisões encampadas pelo Estado e, sobretudo, pelo Judiciário estavam concatenadas a duas questões básicas: a econômica e a política. Não obstante, fez-se notar “que o poder econômico dos latifundiários esteve associado ao poder político e jurídico”426. Pois, a prerrogativa das forças públicas tendia a anular as inquietações dos trabalhadores rurais, não considerando suas reclamações, seus medos e seus anseios. Portanto, na maioria das vezes, despejos seguidos de atos violentos, “expropriações” de pequenos trabalhadores e/ou sitiantes tiveram claras e evidentes a “chancela da Justiça”427. 425 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1997. p.3. 426 SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Ed. da Unesp, 2004. p.30. 427 Ibidem. Idem. Errantes no Fim do Século. São Paulo: Ed. da Unesp, 1999. Sobre casos de omissão das forças públicas em não considerar as queixas de trabalhadores rurais ao serem ameaçados de mortes ou de perderem suas propriedades e pertences por pressões de bandos de pistoleiros a mando de grileiros. Ver: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e 276 O poder judiciário atuou sistematicamente no sentido de garantir o direito de posse dos latifundiários. Não conheço nenhum caso de pedido de liminar de manutenção de posse que tenha sido negado pelos juízes. Os proprietários apresentam provas fajutas de posse e o juiz já lhes garante o processo.428 Não obstante, assinala-se que outros agentes de repressão adentravam o campo de discussão da reforma agrária. Contratados pelos latifundiários surgiam os bandos de jagunços e matadores de aluguéis, com a missão de eliminar trabalhadores rurais e líderes de entidades que lhes representavam, ao temerem o fracasso do estado em não conseguir manter seus privilégios, acatando as pressões exercidas pelo MST e forças políticas progressistas. Essas reivindicações visavam possibilitar a correção do descompasso histórico existente entre aqueles com imensas glebas de terras (adquiridas às vezes de formas ilícitas, como as terras griladas) e os sem terra, já caracterizados ao longo desse trabalho. A luta pela correção desse descompasso histórico por meio da reforma agrária levou o último grupo social a reivindicar seu direito de propriedade, por meio do discurso de que “a terra deveria cumprir o seu papel social”. Essa postura induzia os latifundiários a agirem com sua própria lei, ou seja, apropriando-se do exercício da violência no campo, criando um constante estado de atenção, com conflitos seguidos de assassinatos em larga escala, com destaque aos massacres de Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. p.105-12. 428 Segundo o Procurador do estado do Paraná, “isso se deu em virtude de que, quando um juiz recebia um pedido de reintegração de posse para fazer um despejo de famílias que ocupavam determinada área, baseava-se no Código Civil: mandava a polícia retirar o pessoal em poucas horas. Agora com a nova Lei, ele poderá se perguntar: será que a propriedade cumpre a sua função social? Ele poderá inclusive investigar e fazer levantamentos, antes de tomar uma decisão. Se a propriedade não estiver cumprindo a função social, em vez de despejo, ela poderá ser passível de desapropriação”. Trecho da palestra proferida pelo Dr. Luiz Fachin, Procurador Geral do Estado do Paraná, a respeito da Lei de Reforma Agrária ocorrida na Campanha Nacional de Reforma Agrária em junho de 1993. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.129. MST, setembro de 1993. p.3. 277 trabalhadores ocorridos na década de 1990, conhecidos nacional e internacionalmente. Portanto, a análise dos documentos permitiu concluir a existência de profícua articulação política, na maior parte das vezes não jurídicas, “na tentativa de criminalizar o Movimento dos Sem Terra com base no Poder Judiciário”. Para tanto, os documentos analisados na construção desse trabalho sinalizaram a necessidade [...] de controle para o Poder Judiciário. E que o juiz seja um homem de seu tempo. Ele não pode utilizar-se do cargo que ocupa para ajudar na repressão social ao movimento. Ele não pode desconhecer a realidade social; além da reforma agrária precisamos fazer uma reforma profunda no Poder Judiciário, criando algum tipo de controle social, sobre ele e a polícia.429 Nesse sentido, assinalou-se a “institucionalização da violência em diversos níveis de autoridade do Estado”, sendo esta, às vezes, arbitrária e sua solução seria exclusivamente política. Pois, “tolhido como estava em uma estruturação burocratizada e subordinada ao Poder Executivo, o Judiciário seria incapaz, portanto, de ser um efetivo mediador dos conflitos da sociedade civil” 430. A leitura e interpretação dos materiais publicados pelo JST e pelos Cadernos Conflitos no Campo Brasil da CPT potencializavam a compreensão dos conflitos que circundaram a estrutura fundiária brasileira. Desta forma, revelou-se que, ao passo que a repressão no campo ia se proliferando, as ações do MST também se qualificavam na direção de enfrentá-la e, sobretudo, no sentido de construir 429 Trecho de entrevista com o advogado do MST, Luiz Eduardo Greenhalgh. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.154. MST, dezembro de 1995. p.9. 430 PAOLI, Maria Célia P. M. Violência e Espaço Civil. In: Idem [et. al]. Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.49. Nesse sentido, “o problema passa a ser, então, a necessidade de uma modificação da ordem jurídica, de modo a torná-la um poder atuante e próximo da defesa dos direitos da população”. A violência no campo seguida de mortes, as ocupações, as ordens de despejos, a resistência dos trabalhadores sem terra permanecendo na terra, a atuação da polícia, a formação de milícias particulares a serviço de latifundiários, concretizam testemunhos oculares da incapacidade do judiciário, “seja pelo arbítrio policial que toma o seu lugar, seja pelas imperfeições legais que mais garantem impunidades e privilégios do que algo próximo a uma distribuição da justiça”. 278 mecanismos para combatê-la, atribuindo visibilidade a seus feitos por meio de passeatas, protestos, manifestações públicas e denúncias em órgãos de direitos humanos em âmbito nacional e internacional. Por fim, todo esse cenário de tensão no campo assinalado e descrito ao longo do trabalho, não foi fruto deste ou daquele governo. Isso seria simplificar a trajetória de luta dos trabalhadores a acontecimentos momentâneos e datados. Não se deve esquecer, que a luta pela terra no Brasil é histórica, e que todas as tentativas de se fazer a sua redistribuição de forma equânime implicaram, em massacres inesquecíveis ao olhar da história, como os já mencionados neste trabalho e na produção historiográfica acerca do tema. Ademais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus aliados buscavam, ao longo de sua trajetória, desde 1981 até a presente data, construir e colocar em prática suas propostas de reforma agrária para o campo, fazendo notar que estas estiveram para além da aquisição de um lote de terra para se cultivar e plantar. As preocupações do MST com a educação, saúde, produtividade nos assentamentos, preservação das instituições públicas e da natureza, somados a atenção à construção de um modelo econômico menos degradante ao ser humano, tornou este movimentos sociais um dos mais significativos do Brasil, na passagem do século XX para o XXI. Destacando-se, que além da sua inquietação e inconformismo com as injustiças no campo e na cidade, toda a sua potencialidade em articular pessoas dos mais variados segmentos da sociedade - vítimas, mas também sujeitos do processo histórico. Estes sujeitos são pessoas, que, na maioria das vezes, tiveram suas vozes cerceadas, assim como, seus corpos e suas mentes anulados pelo olhar 279 “policialesco” do Estado. Mas, sob a perspicácia e coragem de movimentos sociais como o MST, de entidades representativas como a CPT, JST, Sindicatos e Associações, tornou-se possível a reconquista dos espaços públicos por estes sujeitos. Espaços aqui compreendidos não como espaço físico ou geográfico, mas como espaço de luta, debate, reflexão e ação, espaço político, no qual a maioria dos trabalhadores e entidades representativas jazia em silêncio, por estarem cedendo às pressões do então modelo econômico. A atuação do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra devolveu aos “invisíveis” trabalhadores rurais sem terra a “visibilidade”, desnudando a miséria, a pobreza e a violência no campo que circundaram a vida de milhares de brasileiros. Sua ação dinâmica e articulada se fez ouvida nas mais diferentes instâncias da sociedade, levando por meio deste Jornal aos mais longínquos grotões desse país, as falas e os anseios dos trabalhadores rurais sem terra. Sendo estas propostas de lutas concatenadas às exigências de seu tempo, demarcando, assim, um lugar singular na política ao longo desse processo de enfrentamentos, diferente de outras organizações sociais no que tange a questão da democratização da terra em todo o Brasil. 280 CONSIDERAÇÕES FINAIS A tentativa de compreensão do tema da pesquisa foi um dilema, que se fez presente já na minha infância e adolescência quando, no início de cada primavera, observava o meu pai, juntamente com meus irmãos mais velhos desaparecerem em meio às estradas empoeiradas, em cima da carroceria de um caminhão, para trabalhar como “bóias-frias” na Zona da Mata do estado de Pernambuco, a fim de conquistar o pão nosso de cada dia. Pautado por essas lembranças e/ou lapsos de memórias, associados à vasta bibliografia sobre a temática em voga, venho estudando algumas interfaces do tema desde a minha graduação. Mas, após ter passado por diversas intempéries frente à escolha, financiamento e desenvolvimento da pesquisa, pude perceber que a “escolha do tema é tão somente um ponto de partida [...] e não um ponto de chegada”431. Esta explicação me deixou um tanto inquieto diante dos compromissos já assumidos anteriormente - trabalho, família, estudos e vida social - atividades que exigiram grande esforço e algumas frustrações com relação ao término do trabalho aqui apresentado. Em face disso, destaca-se que o reduzido espaço de tempo que tive para a realização do trabalho, deu-se a princípio pelas atividades excessivas que desenvolvi durante a pesquisa, como professor de Ensino Fundamental e Médio em duas escolas públicas (município e estado de São Paulo), somando-se a outros empecilhos que se tramaram na minha vida ao longo dessa caminhada, mas que não confluíram para que eu deixasse de lado o interesse e carinho pelo tema ora apresentado e problematizado. 431 Cf.: QUINTANA, Mário. Texto & Pretexto. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p.282. 281 Sem a pretensão de esgotar a discussão acerca desta temática, a pesquisa bibliográfica revelou incipiente uso do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como fonte histórica, por outros pesquisadores. A fim de superar essa lacuna, a pesquisa procurou mapear o periódico, demonstrando sua trajetória histórica e política enquanto ferramenta de luta para a constituição da identidade do MST, descortinando suas etapas de formação, tiragem, formatação, conteúdos, grupos de pessoas envolvidas na sua elaboração, local de publicação e circulação, público leitor e seus principais objetivos. Para tanto, selecionou-se alguns de seus editoriais, artigos de opinião, entrevistas com lideranças do Movimento e representantes de entidades solidárias à luta dos trabalhadores rurais sem terra, no sentido de explicitar suas falas, problematizar seus discursos e buscar, pelo viés da historiografia, a compreensão das ações que trouxeram esperanças a esses trabalhadores no período de 19812001. Analisando os materiais publicados pelo JST, ficou patente que o MST originou-se com a prerrogativa de se tornar um dos mais importantes Movimentos sociais de luta pela terra das últimas três décadas do século XX. Tal classificação deu-se devido a sua organização política, sua flexibilidade em aglutinar pessoas segregadas por múltiplos fatores sociais e de todos os segmentos da sociedade, dentre eles aqueles ligados diretamente ao processo de desenvolvimento do capitalismo no campo e nas cidades. Nesse sentido, destaca-se sua presença marcante nos anos de 1990, associado à ausência de políticas públicas que permitissem a reinserção dos trabalhadores excluídos do sistema produtivo em projetos sociais de qualificação profissional e de geração de renda. 282 Portanto, foi nesse cenário que o MST desenvolveu-se e o seu periódico registrou e divulgou denúncias de desigualdades sociais no campo e, também, nas cidades, de modo a projetar a luta dos trabalhadores rurais sem terra, senão no mais importante, pelo menos no mais politizados, dos Movimentos sociais, do final do século passado. A partir da transposição e análise dos editoriais, entrevistas, notícias e imagens publicadas pelo JST, a pesquisa demonstrou as representações sociais dos trabalhadores articulados entorno do MST, visando desvelar a dialética existente entre o Movimento, a sociedade civil e diversos segmentos do poder instituído. Nesse aspecto, assumindo posição de ferramenta de denúncia, mas também de anúncio, o Jornal fez notar que o discurso do Estado brasileiro para a área rural, no sentido de prover mais empregos, melhoria da qualidade de vida do homem do campo, teve suas ações funcionando em outra direção. A análise da documentação e da bibliografia especializada sinalizou para a constatação de que a aplicação de recursos públicos na área rural contemplou, em sua maior parte, os interesses dos latifundiários, levando-os a incorporarem a suas propriedades os sítios circunvizinhos, onde se produzia a agricultura familiar, complicando ainda mais as relações sociais no campo. Dessa forma, a pesquisa analisou os discursos de denúncias que o Jornal fez ao longo de sua trajetória, sobretudo, aqueles que cobravam do poder público medidas para amenizar os conflitos no campo, mas também os anúncios de vitórias, as pequenas conquistas e os desejos dos trabalhadores. Enfim, atribuiu-se destaque para as ameaças de mortes, o número excessivo de óbitos de trabalhadores rurais, procedimentos de torturas, a perseguição e intimidação de lideranças rurais e dos católicos solidários ao Movimento, seguidos de outras práticas violentas como a 283 destruição de roças, de acampamentos e de assentamentos por bandos a serviço dos latifundiários. Nesse contexto, a partir da interpretação dos materiais produzidos pelo JST, constatou-se a presença de um discurso que responsabilizava o Estado, representado por diversos setores, em particular pela omissão do Poder Judiciário, frente aos conflitos, colaborando, assim para o seu aumento no campo, simultaneamente, o jornal propunha a reforma deste Poder. Dessa maneira, a pesquisa trouxe à luz os relatos das condições de vida e de trabalho pouco humanizado aos quais os trabalhadores rurais sem terra foram submetidos no curso da história - aqui datada e limitada às relações cotidianas em nível micro-estrutural, porém, sem desconsiderar os mecanismos maiores que compõem a História. Mas, dialeticamente, procurou-se anunciar que o homem, aqui personificado na figura do trabalhador rural sem terra, esteve incessantemente demonstrando seus mecanismos de resistências, rumo ao intrínseco desejo de objetivar-se no mundo - realizar-se tornando, assim, a vida mais humanizada. Essa prerrogativa encontrou eco na posição assumida pelos trabalhadores rurais e legitimada nas páginas do JST, pois, em sua maior parte, as informações ali existentes foram produtos das ações dos agentes imbricados na luta por transformações sociais em todo o país, particularmente aquelas que contemplavam os anseios dos trabalhadores sem terra. Assim, a análise dos materiais do JST possibilitou esclarecer que, na maioria das vezes, os textos remontaram ações que colocaram em vista os discursos do MST e os do Estado, fazendo notar a sobreposição das duas forças em tensão. Ademais, as hipóteses norteadoras do presente trabalho tornaram visíveis as tensões eminentes das experiências vividas pelos trabalhadores, revelando, assim, 284 as investidas do Jornal e do próprio Movimento, ao passo que estes construíam representações que se fizeram notar pela sociedade civil organizada, entidades representativas por meio de sua articulação política, evidenciando por meio de suas ações a percepção de si e do outro enquanto sujeitos históricos. Não obstante, os anseios que os trabalhadores rurais demonstraram nas páginas do Jornal, enquanto um instrumento de luta, este periódico se tornou um referencial significativo da pesquisa ao contemplar as falas das lideranças do Movimento. Pelo seu significado político, a pesquisa apurou que o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra fez chegar até os acampamentos e assentamentos informações que serviram de base nos momentos de estudos provocando reflexões, debates e também resistências frente aos poderes instituídos. Estas características possibilitaram o entendimento do periódico não somente como objeto de pesquisa, mas também, como sujeito imbricado com a luta pela terra e pela cidadania. Desta forma, atenua-se que “nos textos do JST, o processo material, em todos os casos em que aparece, descreve um evento realmente ocorrido”432, o que não se torna perceptível em outros meios de comunicação de massa. Sob a perspectiva da pesquisa historiográfica acerca da “questão agrária”, às informações publicadas pelo JST buscou a reconstrução de uma trama que ao longo de vinte e cinco anos permitiu o possível “desenraizamento” da luta do MST pela terra, projetando-o nacional e internacionalmente. Não por acaso, essa projeção trouxe consigo alguns desdobramentos, dentre eles as diferentes formas de violência imputadas aos trabalhadores – sujeitos em movimento -, sendo esta 432 Cf. FRANCO, Leila Maria. O MST na Folha de São Paulo e no Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: Análise das Práticas Discursivas. Dissertação (Mestrado), PUC-SP, São Paulo, 2003. p.106. No trabalho comparativo entre os discursos propagados pelo JST e pela FSP, a autora assinala que, com relação às diferenças entre processos e participantes na construção do discurso, os editoriais ou notícias publicadas pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais sempre estiveram atrelados a um evento que realmente aconteceu. Já para a FSP, o processo material pelo qual se constrói o discurso se insere no verbal ou mental, portanto, o processo material descreve um evento que não aconteceu no mundo material. 285 repressão em parte, oriundas de setores representativos do Estado e de instituições vinculadas aos latifundiários, como atestou os materiais do Jornal. Nesses termos, a pesquisa buscou contribuir com o debate historiográfico acerca da reforma agrária, mas, também, desvelar as ações e projeção dos movimentos sociais que se fizeram presentes nas páginas do periódico. Ainda, demonstrar de que forma o JST adquiriu uma centralidade no processo de manifestação das representações sociais dos trabalhadores e de tantos outros agentes sociais comprometidos com a luta pela terra em todo o país, além do desejo latente pela redução das desigualdades sociais nos campos e nas cidades. Por outro prisma, a pesquisa buscou trazer à luz informações que possibilitem um olhar diferenciado acerca dos discursos emanados das páginas do JST, considerado porta-voz das representações dos trabalhadores, por denunciar os conflitos e confrontos que se sucederam na área rural nas últimas três décadas do século XX. Mas também, por tornar o Jornal um agente articulador das ações que, dentre outros desejos, visava a reforma agrária e a identidade do MST. Aliás, tais desejos estimularam o Movimento, no sentido de suportar todas as intempéries conjugadas aos interesses econômicos dos grupos que estiveram além desses anseios. Ao desvelar o conteúdo do JST, acredita-se contribuir com outros pesquisadores da temática, no sentido de iluminar caminhos que promovam reflexões. Como já apontado, o trabalho se apropriou de editoriais, imagens, gráficos, notícias, entrevistas, artigos de opinião de forma abrangente, deixando possibilidades abertas para outras análises em âmbito mais regional, já que pela didática assumida pelo periódico registrava-se os acontecimentos e ações do MST em cada unidade da federação. 286 Por fim, espera-se que a partir das análises e inquietações propostas por esta tese, sobre as experiências de lutas dos trabalhadores rurais expressas nas páginas do JST, outros silêncios, ainda latentes, possam ressoar e serem revelados por meio de outros estudos. 287 FONTES E BIBLIOGRAFIA ABREU, D. S. Formação Histórica de uma cidade pioneira paulista. Tese (Doutorado), UNESP, Presidente Prudente - SP, 1972. ABREU, Marta; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. AGUIAR, Flávio. 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