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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Antonio Alves Bezerra
O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS
SEM TERRA E SEUS TEMAS: 1981-2001
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2011
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Antonio Alves Bezerra
O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS
SEM TERRA E SEUS TEMAS: 1981-2001
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em História –
História Social, sob a orientação da Profa.
Dra. Maria Izilda Santos de Matos.
DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2011
3
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
4
Para
João Pedro e Marco Antonio,
Na esperança de construírem um país melhor!
5
AGRADECIMENTOS
Sou profundamente grato a minha orientadora profa Dra. Maria Izilda Santos
de Matos, pela orientação competente, pertinência de seus comentários e sugestões
feitas à pesquisa ao longo desta caminhada. Agradeço, também, pela colaboração
segura, pela confiança demonstrada na construção desse trabalho e ainda pela
motivação quando me faltava ânimo para continuar. Minha gratidão pela paciência e
pela significativa contribuição na minha formação acadêmica.
Sou grato à profa Dra Heloisa de Faria Cruz, pelas observações e sugestões
feitas no exame de qualificação, que procurei incorporá-las no trabalho e, também,
pelas sugestões apontadas na disciplina Seminário Avançado II ministrada pela
professora no primeiro semestre do curso de doutorado na PUC/SP, o que me
possibilitou o redimensionamento do objeto de pesquisa e do corpo documental
utilizado na pesquisa.
Sou grato à profa Dra Célia Reis Camargo, pelas observações e sugestões
feitas no exame de qualificação, que busquei incorporá-las no presente trabalho.
Tive a oportunidade de tê-la como co-orientadora na iniciação científica, como
integrante da banca de qualificação e defesa do meu mestrado e, agora, nesta tese
de doutorado. Obrigado professora Célia por ter estado presente em todas as etapas
da minha formação acadêmica, me permitindo chegar até aqui.
Sou grato, ademais, aos professores do Programa Pós-Graduados em
História da PUC/SP, pelos saberes socializados em cada aula e pelo respeito
demonstrado aos temas de pesquisa que eram desenvolvidos por cada aluno do
Programa.
6
Ao prof. Dr. Candido Moreira Rodrigues, do Departamento de História da
Universidade Federal de Mato Grosso, com quem mantive diálogos significativos ao
longo da pesquisa, tendo oferecido importantes contribuições ao trabalho desde a
sua fase inicial.
À profa Ms. Hivana Mara Zaina Martins, da Faculdade Santa Izildinha, pelo
acompanhamento do meu estágio de docência no Ensino Superior.
À Joana e Nara Letycia da Comissão Pastoral da Terra – CPT nacional, pela
presteza em disponibilizar por meios eletrônicos os Cadernos Conflitos no Campo,
os quais viabilizaram parte significativa dessa pesquisa.
Ao Luiz Alberto Zimbarg, historiógrafo do Centro de Documentação e
Memória da UNESP – CEDEM, que me auxiliou com dedicação no preparo de
equipamentos fotográficos para que eu pudesse fotografar os volumes do Jornal dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, viabilizando a pesquisa de campo.
Ao
Marcelo
Zelic,
Coordenador
do
Projeto
Armazém
Memória,
por possibilitar-me a consulta de todas as edições do Jornal Sem Terra on line
quando algumas informações se fizeram necessárias nos momentos da análise da
documentação.
À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino
Superior, pela concessão da bolsa que financiou parcialmente meu curso de
Doutorado.
Aos colegas de turma, com quem pude socializar tantos saberes ao longo
dessa caminhada.
Aos colegas de trabalho, especialmente às professoras Tânia Monteiro de
Paiva e Hilma Celestino Scaramuzzi. Sou muitíssimo grato pelo carinho e
7
compreensão das mesmas e de outros colegas envolvidos direta ou indiretamente
na construção desse trabalho.
Aos Trabalhadores Rurais Sem Terra, pela força, coragem, perseverança e
esperança de mudança, qualidades essenciais para aqueles que acreditam na
possibilidade da construção de um mundo mais digno e humanizado. Muitíssimo
obrigado pela aprendizagem, pelos exemplos de vida e dedicação em pró da
reforma agrária e de outras causas sociais.
De forma mais que especial manifesto eterna gratidão a minha companheira
Valdirene Machado, pelo carinho, apoio, sabedoria e compreensão, ações
indispensáveis para que eu chegasse ao término de mais essa etapa da minha vida.
Agradeço-lhe imensamente, meu amor, pela paciência em suportar minhas
ausências, mesmo estando tão perto. Pelo esforço em me motivar a não desistir,
pelas palavras de incentivos ditas em horários tão sublimes, fazendo com que meus
medos fossem superados no sentido de chegar até aqui. Val, obrigado por tudo!
Por fim, agradeço aos amores da minha vida: Marco Antonio e João Pedro,
meus filhos, pela alegria, sabedoria, sensibilidade e pelos sorrisos notáveis do
amanhecer ao anoitecer, ingredientes indispensáveis para superar os meus medos
ao longo desses anos. Seus carinhos e afetos contínuos me fizeram perceber que a
construção de uma tese é tão somente um trecho de tantos outros caminhos que
terei que trilhar no mágico e incerto exercício de educar uma criança. Obrigado meus
filhos, por tudo, sobretudo pelo amor recíproco.
8
RESUMO
O presente trabalho estuda os materiais produzidos e veiculados pelo Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra no período de 1981 a 2001, desvelando a trajetória histórica e política do MST
assim como de suas lideranças, aqui personificadas na figura dos trabalhadores rurais sem terra,
sendo suas experiências narradas não como vítimas, mas como sujeitos históricos imbricados na luta
contra o processo de exclusão social ao qual foram submetidos historicamente, constituindo-se a
reforma agrária na principal bandeira de reivindicação.
A pesquisa desenvolvida revela que o JST registrou ao longo de sua trajetória as ações de
intervenção do Movimento assim como a participação de outras entidades e instituições solidárias a
ele, prestando-lhe apoio no sentido de colaborar com as múltiplas necessidades dos trabalhadores
rurais sem terra: a reforma agrária e a justiça social no campo.
Nesse aspecto, a pesquisa enfrentou o desafio de dar visibilidade aos materiais publicados pelo JST
não somente em razão deste veicular os registros do Movimento, mas pelo desejo de recuperar e
historicizar suas ações, suas práticas, seus discursos e suas representações frente aos anseios dos
trabalhadores sem terra.
A narrativa que se segue pauta-se pela interpretação e análise de uma extensa bibliografia
contemplando temas correlatos à questão da terra, aos embates políticos envolvendo os
trabalhadores rurais articulados pelo MST e por organizações não governamentais que
compartilhavam do projeto defendido por este Movimento.
Em face dessa problemática, a pesquisa tomou como recorte temporal o estudo de aproximadamente
vinte anos de publicação do JST, priorizando a interpretação e análise de seus editoriais, entrevistas
com lideranças do Movimento e artigos de opinião escritos por políticos, intelectuais católicos e
acadêmicos de tendência de esquerda, assim como a análise de notícias e imagens veiculadas pelo
mesmo jornal.
Para tanto, utilizou-se os materiais apurados e divulgados pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, no
sentido de compreender a relação do discurso do Jornal com as informações trazidas pelos Cadernos
Conflitos no Campo, publicados por essa entidade, particularmente aquelas condizentes aos dados
de violência no campo.
A pesquisa intitulada O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Seus Temas: 1981-2001
contribui para a compreensão das etapas de atuação do periódico dos trabalhadores sem terra,
descortinando suas interfaces, seus objetivos, sua linguagem, suas posições políticas, seu público
leitor. Traz a tona ainda o seu local de circulação e sua tiragem, informações estas que
proporcionaram a construção de uma narrativa em que se assegura a possibilidade do Jornal dos
Trabalhadores Sem Terra ser compreendido não somente como objeto de comunicação dos
trabalhadores rurais mas, sobretudo, como sujeito de luta e porta-voz do projeto de reforma agrária e
justiça social para o campo e cidade defendido pelo MST.
Palavras-chave: MST, Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Trabalhador Rural, Luta,
Experiências.
9
ABSTRACT
The present work analyses the material produced and published by the Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (Landless Rural Workers’ Newspaper) during the period from 1981 to 2001, and
unveils the historical and political trajectory of the MST (Movimento Sem Terra – Landless Workers'
Movement), as well as of its leaders hereby personified by the figure of the rural landless worker, in
that their experiences are narrated not as victims, but as historic figures devoted to the fight against
the social exclusion process to which they were historically submitted to, with the land reform
constituting their main claim.
The survey carried out reveals that the JST (Landless Workers’ Newspaper) has during its trajectory
registered intervention initiatives by the movement, as well as the participation of other entities and
solidarity institutions offering support in order to collaborate with the multiple needs of the rural
landless workers: the land reform and social justice in rural areas.
In this regard, the survey took on the challenge of giving visibility to the articles published by the JST,
not just because it would publish movement records, but to fulfill the desire to recover and historicize
its actions, practices, discourses and its representations faced with landless workers’ aspirations.
The following narrative is based on the interpretation and analysis of an extensive bibliography
contemplating themes related to the land issue, political disputes involving the rural workers articulated
by the Landless Workers’ Movement and by non-governmental organizations that took part in the
project defended by this movement.
Faced with this challenge, the research took a timeframe of approximately twenty years of JST
publications and gave preference to the interpretation and analysis of editorials, interviews with
movement leaders and articles of opinion written by politicians, catholic intellectuals and leftist
academics, as well as the analysis of news and images published by the newspaper.
For such, material that was selected and published by the CPT (Comissão Pastoral da Terra –
Pastoral Land Commission) was used in order to understand the relationship between newspaper’s
discourse and the information provided by the Cadernos Conflitos no Campo (Field Conflict Notebooks)
published by this entity, particularly those regarding rural violence data.
The research entitled O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Seus Temas (The Landless
Rural Workers’ Newspaper and its Themes 1981-2001) contributes towards understanding the stages
of operation of the landless workers’ newspaper, uncovering its interfaces, objectives, language, its
political opposition and its reading public. It also reveals the location and circulation numbers. This is
information that provides the construction of a narrative in order to assure that it is understood not only
as an object of communication for rural workers, but above all, as a subject of struggle and a briefer
for the land reform project and social justice in rural areas and cities defended by the MST.
Key words: Landless Workers’ Movement, Landless Workers’ Newspaper, Rural Worker, Struggle,
Experience
10
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS..................................................................................................12
LISTA DE TABELAS.................................................................................................13
LISTA DE GRÁFICOS...............................................................................................14
LISTA DE ABREVIAÇÕES........................................................................................15
APRESENTAÇÃO.....................................................................................................17
CAPÍTULO I - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA:
PORTA-VOZ DAS ESTRATÉGIAS E AÇÕES DO MST....................32
1.1 BOLETIM INFORMATIVO DOS SEM TERRA.................................................33
1.2 O BOLETIM SEM TERRA, IDENTIDADE E MEMÓRIA..................................55
1.3 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.............................70
CAPÍTULO II - O MST E SEU JORNAL, UNIDOS PELA REFORMA
AGRÁRIA..........................................................................................88
2.1 A TRAJETÓRIA DO MST NO ESTADO DE SÃO PAULO...............................89
2.2 COLABORADORES NA ORGANIZAÇÃO DO MST........................................98
2.3 AÇÕES: O JST E SEUS EDITORIAIS...........................................................114
2.4 TENSÕES: O JST EM UMA NOVA LINGUAGEM.........................................132
11
CAPÍTULO III - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA:
INSTRUMENTO DE LUTA.............................................................156
3.1 DIÁLOGOS COM LIDERANÇAS DO MST....................................................159
3.2 AS ENTREVISTAS: DESCORTINANDO TENSÕES.....................................164
3.3 REGIÃO NORDESTE: ESTADO DO CEARÁ................................................166
3.4 REGIÃO SUL: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ...................................185
3.5 REGIÃO SUDESTE: ESTADO DE SÃO PAULO...........................................198
3.6 REGIÃO CENTRO-OESTE: ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL..........207
3.7 REGIÃO NORTE: ESTADO DO PARÁ..........................................................212
CAPÍTULO IV - O JORNAL SEM TERRA EVIDENCIA A VIOLÊNCIA NO
CAMPO..........................................................................................224
4.1 O MST, A VIOLÊNCIA NO CAMPO E O PODER JUDICIÁRIO.....................225
4.2 A VIOLÊNCIA NO CAMPO SE INTENSIFICA NA DÉCADA DE 1990..........254
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................280
FONTES E BIBLIOGRAFIA.....................................................................................287
12
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Lutando Pela Terra..................................................................................59
Figura 2 - Marcha para Brasília.............................................................................139
Figura 3 - Configuração das três colunas da Marcha à Brasília........................143
Figura 4 - A repressão no Campo: governo militar.............................................248
Figura 5 - Repressão no Campo: “Nova República”...........................................249
Figura 6 - “Colonos Saem da Fazenda Santa Rita, RS”......................................267
13
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 1995-2000.......................104
Tabela 2 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 2001-2006.......................105
Tabela 3 - Ocupações de terras entre 1995 e 1999..............................................107
Tabela 4 - Alguns Editoriais – 1987.......................................................................119
Tabela 5 - Editoriais – 1997....................................................................................135
Tabela 6 - Editoriais – 1998....................................................................................136
Tabela 7 - Ocupações e números de famílias: 1990-1996..................................190
Tabela 8 - Ocupações de Terra no Brasil – 1987-1991........................................259
14
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Brasil – Ocupações de terras – número de famílias: 1988-1998.....111
Gráfico 2 - Número de Conflitos de Terra – Brasil – 1985-1991.........................261
Gráfico 3 - Assassinatos de 1985 a 1991 em Conflitos de Terra no Brasil.......264
Gráfico 4 - Ocupações de Terra no Brasil: 1991-1994 - Números de
Famílias................................................................................................269
Gráfico 5 - Ocupações de Terras no Brasil: 1991-1994 – Número de
Ocupações...........................................................................................270
15
LISTA DE ABREVIAÇÕES
BST
Boletim Sem Terra
BM
Brigada Militar
CEBS
Comunidades Eclesiais de Base
CONTAG
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CNA
Confederação Nacional da Agricultura
CNBB
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CPT
Comissão Pastoral da Terra
CNPST
Comissão Nacional Provisória dos Sem Terra
CAAST
Comitê de Apoio aos Trabalhadores Sem Terra
CUT
Central Única dos Trabalhadores
CEDEM
Centro de Documentação e Memória
COOPAN
Cooperativa de Produção Agropecuária de Nova Santa Rita
DER
Departamento de Estradas e Rodagem
FFLCH
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
FHC
Fernando Henrique Cardoso
FSP
Folha de São Paulo
FIESP
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FMI
Fundo Monetário Internacional
IBGE
Instituto de Geografia e Estatística
INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ITESP
Instituto de Terras do Estado de São Paulo
IBRA
Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
INDA
Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário
INEP
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
JST
Jornal dos Sem Terra
MAB
Movimento dos Atingidos por Barragens
MAST
Movimento dos Agricultores Sem Terra
MIRAD
Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento Agrário
MEC
Ministério da Educação e Cultura
MST
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
ONGs
Organizações Não-Governamentais
16
OAB
Ordem dos Advogados do Brasil
PMDB
Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PM
Polícia Militar
PC
Polícia Civil
PF
Polícia Federal
PNRA
Plano Nacional de Reforma Agrária
PSDB
Partido da Social Democracia Brasileira
PT
Partido dos Trabalhadores
STR
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
UDR
União Democrática Ruralista
UNESP
Universidade Estadual Paulista
USP
Universidade de São Paulo
UNICAMP
Universidade Estadual de Campinas
PUC/SP
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
17
APRESENTAÇÃO
A discussão dos materiais publicados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra permite trazer à luz a trajetória do MST e seus seguidores, personificados
na figura dos trabalhadores rurais sem terra. A presente pesquisa os compreende
não como vítimas, mas como sujeitos políticos, imbricados no processo de luta
contra a exclusão social a que foram submetidos, nesse sentido, a terra é o
predicado de suas ações, que, por sua vez, estão inscritas e datadas nas páginas de
seu periódico (objeto, mas também sujeito).
Cabe destacar que ao me deparar com esse tema, procurei isolar minhas
emoções e sensibilidade frente a algumas questões que emanavam das páginas do
Jornal, procurando manter certa neutralidade diante das inquietações produzidas a
partir das análises das fontes. Sabendo dos riscos que correria, a pesquisa em tela
deixou patente que, na maioria das vezes, as escolhas do pesquisador não são
completamente neutras, tendo em vista que sua atuação não deve ser pautada
apenas pela busca de verdades, mas pelas revelações que suas escolhas podem
trazer, por meio da problematização e interpretação dos fatos implícitos e explícitos
nos discursos veiculados pela documentação eleita para esse trabalho.
Dessa forma, é preciso pontuar que, ao longo da minha trajetória, não
acumulei experiências que me caracterizassem como militante do MST, entretanto,
essa lacuna não significou dizer que não comungue com suas propostas e bandeiras
de lutas.
Como já salientado anteriormente, apesar do esforço para manter a
neutralidade diante da transposição e análise da documentação no processo de
construção do objeto em estudo, fui pautado por minhas raízes históricas urdidas por
18
“lembranças, memórias e esquecimentos” de um pretérito não muito distante. Na
curta experiência que tive, ainda na adolescência, como “trabalhador rural” e,
sobretudo, pelo fato de ser filho de uma família de trabalhadores rurais que se
tornaram bóias-frias, são elementos que devem ser entendidos como premissas que
nortearam a minha opção pelo tema e inserção nele.
Filho de trabalhador e trabalhadora rural, desde muito cedo, aprendi no
cotidiano rural a função social da terra, na maioria das vezes, desconhecida por
pessoas que vivem no campo e também nas cidades. Naquele momento, ao me
desenvolver enquanto sujeito social, ainda não dispunha de informação que me
possibilitasse o discernimento dos termos modernos que acadêmicos e legisladores
usavam para definir e qualificar o que era a propriedade da terra, o latifúndio, o
minifúndio e nem a compreensão dos emblemas que se circunscreviam em seu
entorno.
Portanto, é nesse contexto que se dá a minha experiência inicial como
pesquisador, ao desenvolver um projeto de Iniciação Científica que visava estudar o
processo de mecanização de uma usina de açúcar e álcool no interior paulista, ainda
quando cursava a graduação em história na UNESP, campus de Assis. No mestrado,
segui me aprofundando na discussão da problemática da mecanização no campo
(defendido na PUC/SP, em outubro de 2002), era a necessidade latente de continuar
os estudos na mesma direção, no sentido de compreender “os caminhos e
descaminhos” dos trabalhadores, que foram obrigados a deixarem o cenário de
produção nos parques agroindustriais das usinas, em detrimento da modernização
que tomava conta dos campos brasileiros, particularmente das terras do oeste do
estado de São Paulo, região onde se desenvolveu a pesquisa.
19
Em 2003, ingressei no curso de formação de Governantes na Escola de
Governo de São Paulo (instituição vinculada à USP), na qual durante os debates
sobre políticas públicas, acrescentei ao meu rol de preocupações as ações do MST,
enquanto Movimento Social politicamente organizado, tendo como sua principal
bandeira de luta a reforma agrária. Os debates promovidos por essa instituição,
naquela oportunidade, nortearam de fato as inquietações que ocupariam um lugar
central na proposta de trabalho que ora apresento, tendo em vista que os conflitos
acerca do acesso à terra configuram-se numa questão que merece destaque efetivo,
não só da sociedade civil organizada, mas, sobretudo, do poder público1.
Nesse sentido, a sociedade civil organizada e, em particular, os movimentos
sociais têm buscado atestar quais medidas políticas devem ser tomadas pelo poder
público nessa direção. Cabe à historiografia registrar, problematizar, questionar e
organizar informações que possibilitem melhores reflexões acerca dos embates dos
discursos em prol ou contra a reforma agrária no país. Esses debates tiveram maior
visibilidade mediante suas publicações nas páginas do JST, sendo os materiais
veiculados pelo periódico um dos objetos de análise do presente trabalho.
Desde a minha inserção no curso de graduação em História, ao ter contato
com parte da bibliografia existente sobre a “questão agrária” e os processos de
produção no campo, percebi-se uma modificação da paisagem rural e a possível
transformação dos costumes ali existentes, substituindo-os por características
urbanas, ocasionando o desaparecimento da mão-de-obra dos trabalhadores rurais,
antes utilizada nas fazendas.
1
Conforme Comparato, “a reforma agrária é um dever fundamental dos poderes públicos – não só do
Executivo, como ainda do Legislativo. E cumpre ao Judiciário e ao Ministério Público zelar pelo
constante respeito a esse mandamento constitucional”. COMPARATO, Fábio Konder.
Impropriedades. Folha de São Paulo. Caderno Opinião. São Paulo, 22/07/2003.
20
Desprovidos da oportunidade do que costumeiramente sabiam fazer, os
trabalhadores rurais são substituídos de forma expressiva por tecnologias modernas,
de modo a não lhes conferir o aperfeiçoamento para uma possível reinserção nos
processos produtivos no âmbito rural ou urbano. Fato este que motivou o estudo das
tensões prementes no campo e que, de certa maneira, afetou os trabalhadores nas
áreas rurais e urbanas, levando-os a alimentarem esperanças ao se inserirem nas
tessituras do MST.
Ademais, assinala-se que a produção bibliográfica acerca das tensões
sociais envolvendo as ações do MST, no país e no estado de São Paulo, em
particular, torna-se de grande relevância. Porém, o manuseio e interpretação de
documentos produzidos pelo mesmo Movimento ainda revela-se precário, como é o
caso do acesso ao seu Jornal, documento que o presente trabalho procura analisar2.
2
O livro A formação do MST no Brasil, de Bernardo Mançano Fernandes, referência para quem
deseja estudar o MST, atenta-se em alguns momentos para a análise de alguns materiais trazidos
pelo JST, sobretudo nas edições de 1982 e na edição de fev-mar de 1987. O livro “Movimento
camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil”, de Carlos Alberto Feliciano, não menciona o JST
como fonte de sua pesquisa. Porém, prioriza os periódicos: FSP, O ESP, O Imparcial e o Jornal de
Barretos. Na tese Trajetória de Militantes Sulistas: nacionalização e modernização do MST, Débora
Lerrer menciona a importância do JST como fonte de pesquisa, mas poucas vezes apropria-se de
seus materiais. Ao contrário dos autores aqui citados, Claudinei Coletti, em A trajetória política do
MST: da crise da ditadura ao período neoliberal, utiliza-se do JST como fonte em sua pesquisa,
dando-lhe mais ênfase. Apurou-se também, na área de Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem
(LAEL), o trabalho de Leila Maria Franco, O MST na Folha de S. Paulo e no Jornal dos Sem Terra:
análise das práticas discursivas. Embora o título do trabalho se configure a pretensão de mostrar o
MST nas páginas do seu Jornal e na FSP, a leitura do mesmo revelou outra perspectiva. Do ponto de
vista quantitativo a autora analisou cinco de suas centenas de editoriais, fazendo notar a “análise das
práticas discursivas” do MST no interstício de quatro meses e não nos seus vinte e cinco anos de
atuação. Sem a pretensão de tirar o mérito deste trabalho, nota-se que o mesmo não contemplou a
trajetória do Movimento nem do periódico, restringindo-se à análise do discurso das duas fontes num
curto espaço de tempo. Destaca-se também o trabalho de Alexandre Bonetti Lima, Era uma vez...
Algumas Histórias: as versões sobre o MST do Pontal do Paranapanema em dois jornais diários.
Apesar do autor não se apropriar das informações do JST para contextualizar suas hipóteses,
recorrendo aos jornais FSP e ao Imparcial de Presidente Prudente, a sua contribuição à historiografia
é singular, sobretudo do ponto de vista teórico. Pautado por um referencial que contempla
visivelmente história, filosofia, psicologia social e antropologia, o autor revela como o MST se
configurou no jornal regional e na FSP. Chama a atenção do pesquisador quanto a sua postura ao
pleitear a leitura e interpretação de um texto jornalístico na construção de determinadas hipóteses de
pesquisa. Para ele, o lugar mais adequado ao pesquisador seria o de se tornar um “leitor co-autor do
jornal”. Pois, “ler suas matérias, analisar seus discursos pressupõe interpretá-los. E para interpretálos faz-se necessário utilizar-se de um conjunto de outros textos [...]” (p.20).
21
Tal prerrogativa justifica-se pelo interesse de contribuir com a história dos
movimentos sociais no campo e, em particular, compreender as interfaces do Jornal
do MST que, ao longo de sua trajetória, deixou marcas de suas ações e sua
percepção da política vigente, viabilizando denúncias de omissão da justiça e sua
ausência nos conflitos agrários, acompanhada pela atuação de forças repressoras
do Estado contra as ações do MST. Além disso, evidenciou os enfrentamentos a
partir das ocupações de terras públicas e particulares pelos integrantes do
Movimento e as práticas de violência imputadas aos mesmos por agentes do Estado,
matadores e pistoleiros de aluguel a serviço dos latifundiários.
Dessa maneira, o JST registrou o desencadeamento das ações de
intervenção do MST, assim como, a participação das entidades e instituições
solidárias ao Movimento, que intercedem junto ao poder público visando colaborar
com o desejo latente dos trabalhadores rurais: a reforma agrária e a justiça social no
campo.
A pesquisa em pauta procurou enfrentar o desafio de atribuir visibilidade ao
JST, não apenas pelo fato deste trazer em suas páginas os registros do Movimento,
mas, sobretudo, de recuperar e historicizar suas ações, práticas sociais e discursos.
Deve-se compreendê-lo como um sujeito da luta, que se fez presente no dia-a-dia
dos trabalhadores rurais sem terra, levando, aos mais longínquos rincões do país,
denúncias das desigualdades sociais no campo, anúncios de conforto, solidariedade,
animação e empenho em promover a rearticulação dos trabalhadores na luta pela
reforma agrária e, conseqüentemente, pela redução das desigualdades sociais das
quais eram sujeitos e não “vítimas”.3
3
A suposição de que os trabalhadores rurais sem terra são “vítimas” nos conflitos desencadeados
pela posse da terra é amplamente discutido por Veloso (2006). No entanto, tal conceito não é
partilhado integralmente pela presente pesquisa. Discorda-se dessa proposição por entender que os
trabalhadores rurais sem terra são, sobretudo, sujeitos do processo de luta. Não obstante, ao
22
A interpretação do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra visa
contribuir com a reflexão acerca da história da imprensa alternativa no Brasil,
procurando trazer à tona novas possibilidades de questionamentos e reflexão em
torno das representações sociais, políticas e suas interfaces, que fizeram do MST,
um movimento social de projeção política nacional e internacionalmente.
Para tanto, observa-se que apesar do JST não ter figurado como objeto
central de investigação nas pesquisas acadêmicas arroladas na bibliografia desse
trabalho, torna-se inegável a afirmativa de que, com menor freqüência, algumas
destas investigações se valeram de suas matérias e publicações como fonte
documental, para fins de problematização de suas hipóteses, auxiliando-as inclusive
a título de exemplificação em alguns casos.
Dentre outras questões, a presente pesquisa mapeia o JST - porta-voz dos
trabalhadores rurais sem terra, criando condições para que o mesmo seja utilizado
por outros pesquisadores, por ter registrado com pertinência a trajetória de luta dos
trabalhadores e seus embates. Assim, por meio de seus editoriais e matérias, o
periódico posiciona-se contra as condições precárias de vida do homem rural,
detendo-se, também, a outras questões sociais e econômicas de maior abrangência
na história política do país, como foi o caso das privatizações das empresas estatais,
na década de 1990.
buscarem esta afirmação os trabalhadores saem da condição de “vítima” e assumem lugar de
protagonistas na construção de sua própria história, embora marcada por encontros e desencontros.
Nesse aspecto, uma de suas prerrogativas é a busca do desmantelamento do latifúndio no Brasil,
enfrentando, inclusive o desenvolvimento do capitalismo por meio de denúncias de que este
promoveu as desigualdades sociais ao se enraizar nos campos e nas cidades. Ao encabeçarem
ocupações de terras públicas e particulares, produtivas e improdutivas, fizeram aflorar a resistência
frente às incursões dos latifundiários nos acampamentos e assentamentos. Posto isso, evidencia-se
um enfrentamento de classe, propositura assumida pelo JST e pelo próprio MST. Dessa maneira, a
postura declarada pelos trabalhadores rurais configura-se, por si só, numa premissa de que não são
“vítimas” do processo, mas sujeitos deste. VELOSO, Marília Lomanto. As “Vítimas” de Rosa do
Prado: Um Estudo do Direito Penal sobre o MST no Extremo Sul da Bahia. Tese (Doutorado em
Direito), PUC/SP, São Paulo, 2006.
23
Nesse sentido, a pesquisa defende a idéia de que o JST, ao ser usado como
fonte histórica, não deve ser classificado nem como verdadeiro, nem como falso.
Pois “ele é tão somente uma construção que pretende ser verdadeira. No entanto,
para a investigação histórica não importa saber se esta fonte é ou não verdadeira,
mas sim como ela foi produzida e quais foram as suas condições de produção”4,
questões estas amplamente problematizadas ao longo do trabalho.
Em face dessa prerrogativa, a narrativa a seguir não se pauta pelo ideal de
escrever a história do MST ou de seu Jornal, mas de contribuir com a história da luta
dos trabalhadores rurais a partir da problematização e compreensão das
experiências de lutas vividas por homens, mulheres e crianças. Ao imbricarem no
Movimento, esses sujeitos nutrem-se por um desejo comum: a reforma agrária e a
redução das desigualdades sociais no país e suas interfaces, anseios fortemente
registrados nas páginas do periódico em questão.
Ademais, as tensões no campo envolvendo os trabalhadores rurais sem
terra, os governos e os latifundiários foram problematizadas a partir das análises dos
editoriais, notícias e relatos de experiências dos trabalhadores, que ocuparam
posição de lideranças dentro do Movimento. Assim, as entrevistas com essas
lideranças e artigos de opinião escritos por intelectuais e políticos fizeram do MST,
um movimento social articulado, conforme atestam os discursos emanados das
páginas do JST.
A leitura dos discursos expressos nos jornais permite
acompanhar o movimento das idéias que circulam na época. A
análise do ideário e da prática política dos representantes da
imprensa revela a complexidade da luta social. Grupos se
aproximam e se distanciam segundo suas conveniências do
4
Cf.: ALVES, Paulo. Experiências de Investigação: pressupostos e estratégias do historiador no
trabalho com as fontes. In: DI CREDO, Maria do Carmo; ALVES, Paulo; OLIVEIRA, C. R. de. Fontes
Históricas: abordagens e métodos. Publicação do Programa de Pós-graduação em História UNESP. Assis, 1996. p.35.
24
momento; seus projetos se interpenetram, se mesclam e são
matizados. Os conflitos desencadeados para a efetivação dos
diferentes projetos se inserem numa luta mais ampla que
perpassa a sociedade por inteiro.5
Dessa maneira, considera-se que o Brasil, à luz do século XXI, ainda é
considerado um “país que tem a pior distribuição de renda dentre todas as
economias organizadas do mundo”6. Aspecto notável que motiva a continuidade e
intensificação das ações e atuação do MST, enquanto movimento social de grande
abrangência política, ao desejar mudanças sociais urgentes para o setor agrícola,
inclusive a redução da pobreza e da miséria no campo, tendo como suporte a
reforma agrária (um pouco esquecida atualmente).
Esse anseio revela uma primeira tensão, visto que a sua realização implica
na quebra de paradigmas ainda cristalizados em nossa sociedade, gerando
desagrado a determinados setores da sociedade, inclusive os latifundiários. Por
outro prisma, desde a década de 1980, observa-se uma tendência para a expansão
destes movimentos sociais a partir da “natureza dos problemas enfrentados” por
cada um deles, figurando, a princípio, “as Associações de Bairros, as Comunidades
Eclesiais de Base, o Movimento Feminista e o Movimento Negro, bem como os
Partidos Políticos”7.
Pautados por experiências de lutas e gestados no calor da “transição
democrática, os movimentos sociais passaram a ser percebidos como interlocutores
do Estado, uma vez que este estava se democratizando e buscava mudar a sua face
5
a
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. 2 ed. São Paulo: Contexto/Edusp, 1994.
p.34.
6
Entrevista com Ciro Gomes. Cf.: ISTO É. Ano 34, n.2103. São Paulo, março de 2010. p.8.
7
De acordo com Brant, cada movimento apresenta características próprias quanto à sua luta e
organização, buscando amenizar as tensões no âmbito das “relações de trabalho; melhorias nas
condições de vida em meio urbano; lutam contra os estigmas de discriminação sexual e étnico-racial
e o último procura lutar contra as relações de poder que atingem as classes populares e o conjunto
da sociedade”. BRANT, Vinícius C. Da Resistência aos movimentos sociais: a emergência das
classes sociais em São Paulo. In: Idem; SINGER, Paul (Orgs.). São Paulo: o Povo em Movimento.
Petrópolis - RJ: Vozes/CEBRAP, 1980. p.12.
25
de repressor” 8 . Isso contribuiu, de certa maneira, para a origem do Jornal dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, indicado como principal porta-voz do MST, em
oposição aos latifundiários e ao projeto neoliberal que os governos brasileiros
pretendiam adotar após a constituição de 1988, ganhando maior visibilidade nas
duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002.
Nascido na cidade de Cascavel-PR, em meados da década de 1980, o MST
se “espacializa” pelo Brasil, mudando as características do campo e também da
cidade e, sobretudo, tecendo novas possibilidades de se fazer política no país.
Tendo como o desejo latente de reforma agrária, apresenta-a como porta de entrada
para a implementação de novas práticas políticas, assim como conduzir os
trabalhadores rurais desprovidos da terra ao exercício da cidadania.
Nesse aspecto, esse trabalho apóia-se na perspectiva da pesquisa
qualitativa, metodologia conhecida “entre os pesquisadores da área de Ciências
Humanas a partir da década de 1980”, tendo em vista que esse princípio
metodológico buscava valorizar um entendimento da realidade pelo sujeito ao
“buscar a interpretação e não a mensuração, a descoberta e não a constatação”9.
Dessa forma, presumi-se que o pesquisador não tem uma postura neutra na
pesquisa, à medida que está constantemente imbricado com o objeto pesquisado,
desencadeando interações mediadas por seus valores culturais e, principalmente,
“por suas convicções políticas”10.
A partir da transposição e análise dos editoriais, entrevistas, matérias e
imagens publicadas pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, demonstra-se
8
Para Gohn, na década seguinte o cenário político sofre alterações significativas, sobretudo, porque
o Estado aparentemente não “precisava” mais dos movimentos sociais para se legitimar como força
não-repressora ou aparentar, de certa forma, o seu caráter democrático. GOHN, Maria da Glória.
a
Teoria dos Movimentos Sociais - paradigmas clássicos e contemporâneos. 6 ed. São Paulo:
Loyola, 2007. p.313.
9
a
LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. 1
reimpressão. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1985. p.16-22.
10
Ibidem. p.5.
26
as representações sociais dos trabalhadores articulados acerca do MST,
procurando-se descortinar a dialética entre o Movimento, sociedade civil e diversos
segmentos do poder instituído.
A documentação escolhida para essa pesquisa faz notar que o MST buscou,
na maioria das vezes, um diálogo com a sociedade civil no sentido de anunciar que
a reforma agrária não era um desejo unívoco dos trabalhadores rurais, mas que
deveria abranger o interesse de toda a sociedade brasileira. Sendo esta última um
segmento muito importante para que o Movimento pudesse aperfeiçoar e continuar
com suas ações de ocupação de propriedades e espaços políticos, manifestação em
praças, rodovias, etc.
Não foi por acaso, que o MST ficou atento às pesquisas de opinião pública a
respeito de sua atuação (assunto explicitado mais adiante). O diálogo do Movimento
com a sociedade civil organizada encontrou eco nas ações de intervenção da
Comissão Pastoral da Terra – CPT 11 . Esta entidade católica contribuiu muito na
organização dos trabalhadores rurais, denunciando os múltiplos casos de
escravização no campo, abusos generalizados com a utilização contínua do trabalho
infantil nas lavouras, carvoarias e pedreiras, bem como os casos de violência física e
psicológica contra os trabalhadores rurais sem terra por agentes do Estado e
também pelos bandos de jagunços e pistoleiros constituídos a serviço dos
latifundiários, desnudando, assim, a omissão do Poder Judiciário frente aos conflitos
no campo.
11
Entidade fundada em 1975, a CPT nasceu “preocupada com a invasão do capitalismo no campo.
Sua definição prévia de atuação buscava manter viva e promover a memória histórica do povo rural
ao estimular a vivência criativa da sua cultura. Propõe descobrir, recolher e divulgar todas as riquezas
do lavrador – contos, cartilhas, dramatizações e a expressão da fé na experiência cotidiana; buscou
descobrir, analisar e divulgar as lutas, as vitórias e os fracassos das experiências de resistências do
povo; nos encontros e treinamentos dos lavradores, parte sempre das experiências por eles vividas”.
FESTA, Regina. Comunicação Popular e Alternativa: a realidade e as utopias. Dissertação
(Mestrado em Comunicação Social), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo
- SP, 1984. p.79.
27
A pesquisa ora apresentada pautou-se por um extenso levantamento
bibliográfico, contemplando temas que diziam respeito à questão da terra, aos
embates políticos envolvendo os trabalhadores rurais articulados em torno do MST e
organizações civis que compartilhavam do mesmo projeto, assim como entidades
representativas do latifúndio e também do Estado.
Para construir as problemáticas da presente pesquisa, tornou-se relevante a
absorção dos materiais publicados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
no sentido de evidenciar suas etapas de formação e seus discursos poucos
explorados pelos pesquisadores, como já observado. Porém, priorizou-se nesse
trabalho a exposição e análises dos seus editoriais, de amostras das entrevistas com
lideranças do Movimento nas cinco regiões do país e também com intelectuais
vinculados ao alto escalão do Clero Católico, representado pela Comissão Pastoral
da Terra12. Contemplou-se, ainda, uma avaliação crítica dos artigos de opinião de
Juristas e professores universitários que, em sua maioria, deixaram explícito em
seus textos a tendência de legitimar as ações encampadas pelos trabalhadores
rurais sem terra.
Na perspectiva da pesquisa documental, se problematizou várias das
interfaces do JST, compreendidas como tendências que norteiam pressupostos
teóricos de uma comunicação voltada para os anseios dos trabalhadores rurais sem
terra.
12
Segundo Coletti, “a CPT tem feito um levantamento anual, talvez o mais completo de todo o país,
sobre os conflitos no campo”, sendo algumas de suas publicações utilizadas na construção do
Capítulo IV deste trabalho, sobretudo as informações que revelaram a omissão do Poder Judiciário
frente aos desejos latentes dos latifundiários. Em face do exposto, a pesquisa se apropriou também
dos dados a respeito dos números de ocupações, despejos e quantidade de famílias envolvidas nos
conflitos (ver os gráficos ao longo do trabalho). Cf.: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do
MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp,
Campinas - SP, 2005. p.21. Ademais, lançou-se mão ainda do uso de outros materiais como as
imagens veiculadas pelo JST, trechos de reportagens e de relatórios de Comissão Parlamentar de
Inquérito transcritos e publicados pela mesma fonte e dados oficiais do governo a respeito do tema
assentamento, publicado no site oficial do Ministério do Planejamento Agrário.
28
Em termos temporais, a pesquisa se deteve à análise de aproximadamente
vinte anos de publicação do jornal em destaque, priorizando-se a interpretação de
seus editoriais e entrevistas com lideranças do Movimento, juntamente com a
análise de artigos de opinião escritos por políticos, intelectuais católicos e
acadêmicos de tendência de esquerda, assim como, a análise de notícias e imagens
veiculadas pela mesma fonte.
Em face do exposto, a pesquisa intitulada O Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra e Seus Temas (1981-2001) faz notar as etapas de atuação do
periódico dos trabalhadores sem terra, descortinando suas diferentes fases,
objetivos, linguagem, posições políticas, público leitor, local de circulação e sua
tiragem.
O primeiro capítulo, denominado O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra: Porta-Voz das Estratégias e Ações do MST elucida a trajetória histórica do
JST, observado como veículo de comunicação, mas também como instrumento de
luta para o MST.
Ao longo de sua trajetória, o periódico evidenciou as tensões eminentes no
campo, visando revelar as interfaces da política agrária em todo o país. Entretanto,
desvelou seu comprometimento com a qualidade da informação que fazia chegar até
os trabalhadores rurais sem terra, evidenciando, nesse sentido, a sua missão
enquanto instrumento de luta e formador de opinião, garantindo visibilidade às ações
conduzidas pelo Movimento, bem como, as reações dos poderes constituídos.
Diante dessa problemática, pensar a presença de uma imprensa alternativa
na área rural implica considerar os altos índices de analfabetismo no mesmo local.
Por isso, algumas informações a respeito dos leitores desse periódico se fizeram
necessárias, no sentido de compreender se a entrada dos códigos lingüísticos
29
impressos no campo superou ou não a questão do analfabetismo. Outra questão
colocada focaliza se os textos do JST contribuíram efetivamente para a
espacialização da luta pela terra, onde o MST esteve organizado.
Preliminarmente, ao se refletir sobre essas questões, é consoante notar que
“as respostas a estas só seriam dadas, de acordo com o jornal, com a região onde
ele era produzido, com o nível de organização da comunidade e com a participação
da mesma no jornal”13, situações estas que a presente pesquisa procura contemplar.
Além disso, assim como, tantos outros periódicos populares e alternativos, o
JST não nasce efetivamente com a proposta de ensinar os trabalhadores rurais sem
terra a lerem e a escreverem, embora subliminarmente tenham motivado-os a
ouvirem e, dialeticamente, a falarem. Portanto, a proposta do JST se pautou pela
construção de uma atmosfera, na qual se colocou em prática o exercício da fala e o
da escuta dos sujeitos, envolvidos na construção efetiva da luta pela terra ou outros
direitos sociais.
O segundo capítulo, intitulado O MST e Seu Jornal, Unidos Pela Reforma
Agrária, traz à luz as ações do MST no estado de São Paulo, desvelando os
desejos latentes dos trabalhadores e as tensões em torno destes. Ao problematizar
os discursos trazidos pelos editoriais do periódico, compreendidos como uma de
suas principais ações, pode-se notar os conflitos implícitos na construção da
identidade do Movimento e de seus agentes.
O texto revela que os editoriais assinados pelo jornal assumiram postura de
imprensa alternativa ao enfrentarem os discursos do governo e de órgãos
representativos dos latifundiários, nesse caso a UDR, combatendo e denunciando a
13
FESTA, Regina. Comunicação Popular e Alternativa: a realidade e as utopias. Dissertação
(Mestrado em Comunicação Social), Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo
- SP, 1984. p.93.
30
precária política agrária, a violência no campo e a incipiente infra-estrutura nos
acampamentos e assentamentos.
Enfim, os editoriais analisados demonstraram as articulações entre grupos
políticos de esquerda que buscaram, ao longo de sua trajetória, defender a bandeira
da reforma agrária como principal instrumento de luta. Buscaram, também, promover
de forma circunstanciada, a organização continuada dos trabalhadores rurais no
campo, se posicionando como a principal ferramenta para que estes acampados ou
assentados pudessem absorver e socializar os ideais da luta almejada pelo MST.
O terceiro capítulo, intitulado O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra: Análise dos Discursos das Lideranças pretende demonstrar as
experiências de lutas dos trabalhadores rurais ao estabelecer diálogos com suas
lideranças em cinco regiões do país, particularizando um estado por região. No
Nordeste, contemplou-se o estado do Ceará; no Sul, o Rio Grande do Sul; no
Sudeste, São Paulo; no Centro-Oeste, Mato Grosso do Sul e no Norte, o estado do
Pará.
Com isso, buscou-se mapear e discutir impasses políticos, tensões nos
momentos de ocupação e de despejos, posições contrárias ao poder instituído e
contradições a respeito da igualdade de gênero em setores estratégicos do MST.
Portanto, os discursos das lideranças deixaram transparecer lapsos de memórias14 e
perspectivas de sonhos por parte dos trabalhadores sem terra, por eles
representados.
O quarto e último capítulo, denominado JST Desnuda a Violência no
Campo: Alguns Desdobramentos, procura revelar o “desenraizamento” da luta do
14
Ao longo da pesquisa, tornou-se patente uma preocupação significativa do Setor de Comunicação
do Movimento em preservar os registros de suas ações por meio do arquivamento e organização das
mesmas, notando-se claramente uma proposta de construção de uma memória coletiva para os
trabalhadores rurais sem terra articulados no MST, tendo o presente trabalho a pretensão de
contribuir com esta memória de alguma maneira.
31
MST, projetando-o nacional e internacionalmente, trazendo consigo diferentes
formas de repressão imputadas aos trabalhadores sem terra. Tal repressão oriunda,
em maior parte, de setores representativos do Estado e de instituições que
representativas dos latifundiários, como demonstrou os materiais do JST - periódico
dos trabalhadores e as publicações da CPT.
Diante dessa questão, pretendeu-se descortinar a relação do Poder
Judiciário com as ações conduzidas pelo MST, potencializando a problematização
dos desdobramentos nos estados, onde o Movimento esteve organizado. Assim,
abordaram-se dados sobre os índices de violência no campo e sua relação com o
processo de ocupação dos espaços (fazendas), mas também o espaço da política.
Para tanto, dialogou-se com questionamentos elaborados por intelectuais e
autoridades religiosas, que utilizaram as páginas do JST como um suporte aos
integrantes do Movimento reconhecerem-se enquanto sujeitos históricos, motivandoos à luta e revelando a tensão existente entre o discurso do governo e o desejo
latente dos trabalhadores rurais (representados pelo MST) pela reforma agrária no
país.
32
CAPÍTULO I - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA:
PORTA-VOZ DAS ESTRATÉGIAS E AÇÕES DO MST
A liberdade nasce com o Homem.
As multidões podem sofrer por longos anos
as agruras da opressão em todos os seus aspectos.
Mas elas são como os grandes e
indomáveis fenômenos da natureza.
Da calma mais profunda podem passar
às agitações mais inconcebíveis,
realizando um dia os sonhos de um milênio.15
15
Octaviano Alves de Lima. Apud: MOTA, Carlos Guilherme; CAPELATO, Maria Helena. História da
Folha de São Paulo: 1921-1981. São Paulo: IMPRES, 1981. p.62.
33
1.1 BOLETIM INFORMATIVO DOS SEM TERRA
O presente capítulo aborda o estudo da fase inicial do Jornal dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, denominado de Boletim, visando problematizar as
diferenças existentes entre este e o JST, que lhe sucedeu, embora fique claro que a
extinção de um implicou na continuidade do outro.
A opção pelo estudo do JST como fonte e sujeito na presente pesquisa
justifica-se pela ausência de trabalhos acadêmicos que revelem a apropriação por
parte dos pesquisadores dos materiais protagonizados por esse periódico. Além
disso, cabe destacar a importância da linguagem explicitada no Boletim que revela,
sobretudo, o nível de formação do seu público leitor e norteia suas proposições em
suas diferentes fases, explicitadas mais adiante.
Nesse contexto, proponho a construção de uma narrativa assegurando a
análise das mudanças no percurso do jornal, associado às temáticas do período
entre 1981-2001, também, procurando revelar o seu processo de modernização e
sua inserção na internet, como forma de ampliação do seu conteúdo visando
promover o acesso a um número maior de leitores, sejam esses militantes ou não.
Do mesmo modo, visa-se problematizar a trajetória deste veículo de comunicação
enquanto ferramenta de informação, mas também, de luta entre os trabalhadores
rurais sem terra e seus militantes16; em todo o momento da análise observa-se que
16
Embora o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (objeto de análise desta pesquisa) não faça
parte e não tenha pretensão de se alinhar à chamada grande mídia, ao demonstrar que seus ideais
pautaram-se pelo viés de sua contraposição aos discursos proferidos por esta, posto que “na
chamada era da informação, quando a sociedade assiste ao surgimento, transformação e
aprimoramento, em ritmo vertiginoso, de meios de comunicação de massa”, descortina-se o desejo
de criação de instrumentos de informação que falem por determinados grupos sociais manifestando
sua posição contrária aos discursos hegemônicos propalados pelas complexas redes de
comunicação em todo o país. Nesse contexto, observa-se que a função da informação em ambos os
casos postula interesses que vão além da prerrogativa de “transmitir informações”. Cf.: SOUZA,
Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação
(Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.7-11.
34
seu discurso procurou “se converter em um processo dialético entre a teoria e a
prática”17.
Nesse sentido, portanto, o Jornal do MST será indagado na perspectiva de
descortinar a sua atuação enquanto meio de comunicação, ferramenta de
mobilização social, instrumento de educação e politização dos agentes sociais,
assim como, ferramenta de denúncias e reivindicações dos trabalhadores rurais sem
terra. Para tanto, busca-se, sobretudo, apresentar fragmentos de seu conteúdo no
sentido de compreender as representações 18 sociais dos trabalhadores rurais e
trazer à luz a eminência das tensões que envolveram o Movimento no período
estudado.
Nesse aspecto, ressalta-se que, em 1982, por decisão discutida e aprovada
em Assembléia Geral do Movimento, o Boletim passou a ter circulação
regionalizada, atendendo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e
Mato Grosso do Sul, onde as tensões pela terra eram prementes. Em face disso,
algumas inquietações se fazem necessárias para a compreensão do processo de
desenvolvimento e de atuação do jornal.
Dessa forma, indaga-se sobre qual seria o objetivo inicial desse periódico?
Quais tensões estavam em curso na década de 1980 envolvendo os trabalhadores
rurais? Quais instituições apoiaram os trabalhadores rurais sem terra? De que forma,
17
PERUZZO, Cecília K. Comunicação nos movimentos populares: participação na construção da
cidadania. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p.125.
18
Acerca da conceitualização de “representação” social dos trabalhadores rurais sem terra, valho-me
das reflexões de Chartier ao assinalar “a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que
supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado; por outro lado,
a representação como exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de alguém”.
Com base nessas duas definições de representação, assinala-se que a segunda tende a sinalizar
para os anseios dos trabalhadores rurais sem terra, posto que o jornal analisado aponta para a
presença marcante do MST enquanto força opositora ao modelo político e econômico vigente no
Brasil a partir da década de 1980, visto que suas ações e enfrentamentos sugerem a “exibição de
uma presença”, quando passam a exigir algo que está ausente (dentre outros desejos, a reforma
agrária) e sua presença como força opositora ao poder instituído. Cf.: CHARTIER, Roger. História
Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. Ver também:
CHARTIER, R. O Mundo como Representação. Revista de Estudos Avançados. Vol.5, n.11.
Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, 1991. p.20.
35
a elaboração deste jornal vinculou-se a instrumentos de luta, divulgação de
informação e formação política para estes trabalhadores? Ou ainda, como o jornal
organizou-se politicamente em suas etapas? Qual era a projeção deste periódico
frente aos acontecimentos do campo? Qual era a sua tiragem e a qual público era
endereçado? Que posições políticas o jornal assumiu em suas diferentes fases?
Entre uma série de outras questões.
Na tentativa de problematizar estas questões, procurei instigar um diálogo
entre o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a sociedade civil organizada e
as entidades representativas ao se reportarem à implementação da reforma agrária
no Brasil, abordando as tensões implícitas e explícitas a esta, no período
compreendido pela pesquisa.
A leitura do periódico traz à luz informações que marcaram a trajetória do
MST no cenário político nacional, ao se delimitar as suas quatro fases: “primeiro
período - 1979 a 1984; segundo período - 1985 a 1989; terceiro período - 1989 a
1994; quarto período - 1995 aos dias atuais”19, referências que justificam o recorte
temporal desta pesquisa.
Sem a pretensão de esgotar a discussão acerca deste jornal nesse primeiro
momento, inicia-se um breve diálogo com parte de seu conteúdo, utilizando alguns
de seus números no sentido de atribuir maior visibilidade à sua estrutura enquanto
meio de comunicação. Nesse sentido, foram selecionados alguns exemplares de
cada fase do jornal para prosseguir este diálogo. Tal opção deve-se ao fato deste ter
sido arrolado como fonte principal da presente pesquisa, na tentativa de tangenciar a
19
Cf.: CALDART, Roseli Salete. Educação em movimento: formação de educadoras e educadores
no MST. Petrópolis - RJ: Vozes, 1997. p.30. Idem. Sem-terra com poesia: os significados
pedagógicos e políticos da produção poética dos agricultores sem-terra da região sul do Brasil, um
estudo exploratório. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
1986. Acrescento que, apesar da fonte existir até a presente data, o recorte cronológico da pesquisa
procura se debruçar sobre as publicações do jornal nos anos de 1981 a 2001.
36
discussão no que se refere à coleta de dados e informações pertinentes à temática
em tela.
Destaca-se a inexpressividade de uma produção historiográfica que aborde
este jornal como fonte histórica20. O desafio dessa pesquisa está na análise sob a
perspectiva da história social, que leva em consideração o inicio da veiculação do
periódico, momento no qual emergia certa correlação de forças no país entre grupos
sociais com interesses políticos distintos. Dessa forma, desvelava-se um cenário
repleto de desejos da organização da sociedade civil no intuito de implementar a
democracia em todo o país, por sua vez, esta ganharia maior visibilidade quando os
direitos sociais dos trabalhadores rurais fossem integralmente assegurados,
principalmente, por meio do acesso à propriedade da terra.
Observando que “vários cientistas sociais fizeram uso do jornal como fonte
documental, numa perspectiva de descortinar o valor da imprensa como fonte
histórica para os estudos das ciências do homem” 21 e para a compreensão dos
problemas sociais presentes no cenário político brasileiro. Cabendo ressaltar, mais
20
Neste aspecto, a historiografia pouco se deteve a respeito das publicações do MST,
particularmente sobre o seu Jornal, o que não significa afirmar que haja falta de trabalhos acadêmicos
sobre o Movimento. Pelo contrário! Atualmente, existe uma gama de publicações sobre as ações do
MST e o que se fala sobre ele, em especial na perspectiva da grande mídia e da oralidade como
fonte documental. Também não se deve menosprezar a significativa produção acadêmica na área
das ciências humanas acerca dos periódicos de maior circulação e dos jornais operários, como se
observa nas referências que embasam teoricamente essa pesquisa. Nesse momento, aproveita-se a
oportunidade para listar as atribuições iniciais do Boletim Informativo do MST: “manter informados os
colaboradores da campanha de solidariedade por meio de suas entidades representativas –
sindicatos e federações de trabalhadores rurais e urbanos; comunidades de base e demais entidades
em nível nacional – opinião pública através dos meios de comunicação: rádios, jornais e televisão na
perspectiva de ampliar a campanha em todas as regiões do estado e do país”. Cf.: COMITÊ DE
APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade
aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2. Em edição especial
comemorativa de sua primeira década de existência, o jornal pontua que suas principais funções
eram: “a) ser um instrumento de formação; b) ser um instrumento de agitação; c) ser um instrumento
organizador e coletivo”. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto
de 1991. p.12-3.
21
FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa operária no Brasil - 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes,
1978. p.87. Ver também: CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e
imprensa paulista – 1920-1945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. Idem.
Os arautos do liberalismo: imprensa paulista - 1920-1945. São Paulo: Brasiliense, 1989. MARTINS,
Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008. MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de. Imprensa e Cidade. São Paulo: Unesp, 2006.
37
uma vez, a importância do periódico analisado como fonte histórica; contudo,
algumas polêmicas fazem parte do universo da imprensa e que devem ser
cuidadosamente observadas, já que alguns jornais apresentam dentro de sua
organização certa “dependência econômica, mistura da imparcialidade com o
tendencioso, aspectos do certo e do falso” 22 . Certos entraves não estiveram
presentes na imprensa operária, pois esta se encontrava “desvinculada da ordem
política instituída”23.
O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foi gestado a partir das
experiências sociais de homens e mulheres nos primórdios da organização do
Movimento dos Trabalhadores Rurais, no início da década de oitenta (1981).
Período no qual foi publicado o seu primeiro exemplar, já trazendo em seu título o
raio da sua abrangência, no sentido de promover a difusão da luta encampada pelo
MST.
O surgimento do Boletim (atualmente jornal) coaduna-se com a criação do
MST, no intuito de traduzir as suas ações e enquanto seu principal porta-voz na
arena política, transformando-se numa fonte para a interpretação das tensões
sociais que envolveram os trabalhadores rurais sem terra. Dessa forma, que esta
pesquisa se reporta à imprensa como fonte documental para o estudo dos conflitos
sociais e tensões políticas, em parte reveladas nas experiências dos trabalhadores
rurais sem terra24. A afirmação de que “a imprensa operária parece ser uma das
22
FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes,
1978. p.87.
23
Ibidem.
24
Percebe-se que na literatura brasileira existem muitas categorias para adjetivar o sujeito que lida
com a terra. Nesse sentido, SARZNSKI e FANELLI assinalam que as variações de adjetivos se dão
em virtude da “diversidade dos sistemas agrícolas que se desenvolveram e mudaram, através da
história brasileira”. Dessa forma, “o trabalhador rural assalariado é chamado de operário rural,
assalariado rural, diarista e, mais tarde, bóia-fria; aquele que aluga a terra é conhecido como
arrendatário ou caseiro; aquele que trabalha a terra e divide a produção com o dono desta denominase meeiro ou parceiro; colono é considerado outro tipo de meeiro”, dentre outros. Apesar de figurar
nesse trabalho com menor freqüência alguns destes termos, concorda-se com a observação dos
38
mais importantes documentações para a compreensão da história das classes
trabalhadoras no Brasil”25, torna-se um dos motivos pelos quais se propõe a mapear
e dialogar com o Jornal do MST ,enquanto objeto de estudo e fonte documental.
Deve-se pontuar que, no seu primeiro ano, este jornal era mimeografado,
impresso de forma artesanal e com uma tiragem de setecentos exemplares. A
circulação do Boletim era semanal, quinzenal e, às vezes, mensal; enquanto sua
distribuição atendeu, a princípio, apenas ao acampamento de Ronda Alta - RS26.
Durante esse período inicial, a responsabilidade jurídica pelas informações
divulgadas era da Comissão Pastoral da Terra – CPT, do Movimento de Justiça e
Direitos Humanos e da Pastoral Universitária.
autores e salienta-se a presença marcante do termo trabalhador rural, a fim de qualificar as ações e
representações destes em busca pela posse da terra. Em face dessa questão, assinala-se que “o
termo trabalhador rural é o mais usado” posto que essa nomenclatura traz em sua base o “caráter
federativo da ULTAB e das Ligas Camponesas do PCB” e representa de forma mais clara práticas
associadas ao cotidiano dos trabalhadores da terra. Cf.: FANELLI, Luca; SARZNSKI, Sara. O
Conceito de Sem Terra e os Camponeses no Brasil. Revista Ethnos Brasil. Ano II, n.4. São Paulo:
Edunesp, set. 2005. p.87.
25
Nesse estudo Ferreira procurou trabalhar com vários documentos, dentre eles as chamadas fontes
primárias: relatórios, depoimentos de líderes do movimento operário, relatórios de reuniões não
publicados, manifestos das atividades dos anarquistas, panfletos escritos ou traduzidos por estes e,
sobretudo, o estudo da imprensa operária. Nesta perspectiva, a autora consultou e analisou cerca de
40 anos de publicação da imprensa operária, destacando o jornal do operário gráfico, denominado de
“trabalhador gráfico” como a principal fonte para problematizar as suas inquietações. Assim, seu
estudo pautou-se pela discussão de como se constituiu a “formação da associação de classe do
operário gráfico”. FERREIRA, Maria Nazaré. A Imprensa Operaria no Brasil: 1880-1920. Petrópolis
- RJ: Vozes, 1978. p.16, 87. A título de complementação, seguem algumas referências acerca da
imprensa alternativa e sua relação com os movimentos sociais - KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
a
Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2003. PERUZZO,
Cecília K. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania.
a
3 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2004. DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (Orgs.). A Revolução
Impressa: a Imprensa na França, 1775-1800. Tradução de Marcos Maffei Jordan. São Paulo: EDUSP,
1996. WILLIAMS, Raymond. A imprensa e a cultura popular: uma perspectiva histórica. Tradução de
Ricardo B. Iannuzzi; revisão técnica de Heloisa de Faria Cruz. Projeto História. n.35. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São
Paulo, dez. 2007. p.15-26. AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In:
MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2008. WOITIWICZ, Karina Janz (Org.). Recortes da mídia alternativa: histórias e
memórias da comunicação no Brasil. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2009. Entre outros autores cujas
referências e idéias encontram-se diluídas no decorrer do texto.
26
Apesar de o Boletim noticiar que circularia em âmbito regional, estadual e nacional nesse primeiro
momento, a pesquisa revela que sua circulação, inicialmente, ficou restrita ao acampamento no
trecho da estrada que ligava Passo Fundo a Ronda Alta, junto à Encruzilhada Natalino, no Rio
Grande do Sul, onde estavam acampados cerca de três mil pessoas reivindicando o direito pela terra.
39
Visando tecer as principais considerações acerca das etapas de constituição
deste jornal, deve-se levar em consideração que, em pouco menos de oito anos, o
seu nome foi alterado quatro vezes, conforme a “espacialização” da luta no campo.
Em 1981, ele circulou como Boletim Informativo dos Sem Terra; em 1983, como
Boletim dos Sem Terra; já em 1984, como Jornal dos Trabalhadores Sem Terra e,
por último, em 1988, como Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Tal
alternância de nomenclatura revela os níveis de abrangência social de sua atuação,
tornando-se um indicativo de seu amadurecimento político, enquanto ferramenta de
comunicação e de luta representativa de um Movimento em acelerada construção.
A pesquisa deste periódico tornou evidente que o seu desenvolvimento
atrelou-se aos anseios e à projeção política, em curto espaço de tempo, do MST
enquanto movimento social com objetivos bastante definidos.
Sediado à Rua dos Andradas no 1.234, 22o andar, sala 2.209, Porto Alegre RS, o Boletim teve sua primeira edição publicada em maio de 1981, antes mesmo da
oficialização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que só se deu em
1984, no município de Cascavel - PR. A partir disso, o então Boletim Informativo
passou a circular com tiragem nacional e denominado como Jornal dos
Trabalhadores Sem Terra, divulgando as pretensões e ações do Movimento que
acabara de ser constituído:
O MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – foi
constituído a partir do início de 1984, quando ocorreu, entre os
dias 20 e 22 de janeiro, no Centro Diocesano de Formação do
município de Cascavel - PR, o Primeiro Encontro dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, o qual contou com a
participação
de
aproximadamente
cem
pessoas,
representantes de doze estados do Brasil.27
27
COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.23. O autor observa que nessa
oportunidade algumas linhas de ação foram definidas pelos idealizadores do Movimento: “lutar pela
40
Porém, observa-se que antes o Boletim não apresentava oficialmente um
expediente que lhe identificasse como um jornal, embora a sua formatação, o
conteúdo de suas informações e sua posição política já evidenciasse as suas
pretensões futuras. Apesar da ausência de um editorial no corpo do Boletim, este
não perdeu de vista a possibilidade de manter os trabalhadores rurais informados e
nem a oportunidade de manifestar seus agradecimentos às entidades não
governamentais, que prestavam auxílio e apoio aos trabalhadores rurais acampados
nos estados, onde o MST estava organizado.28
No início da primeira edição, o periódico se deteve à especificação de seu
objetivo. Tendo isto em vista, esta edição configurou-se da seguinte forma: na seção
Sem Terra – o jornal apresenta os seus objetivos enquanto meio de comunicação;
na seção História de um povo – caracteriza os trabalhadores, revelando a situação
em que viviam no acampamento e suas bases de sustentação, denunciando a
ausência de assistência médica, a organização política dos mesmos e como estes
estavam se constituindo em lideranças sociais. Ainda nesse periódico, assinala-se a
presença das forças repressoras do Estado enfrentando o interesse dos
trabalhadores acampados. Todos esses temas figuram nas três primeiras folhas,
reforma agrária radical; lutar por uma sociedade mais justa e igualitária; acabar com o capitalismo e
reforçar a luta pela terra com a participação de todos os trabalhadores rurais...”. Apesar da clareza
das pretensões iniciais encabeçadas pelos militantes do Movimento e presentes nas páginas do JST,
a pesquisa identificou que em sua maioria estas não se efetivaram, tendo sido diluídas ao longo da
caminhada do Movimento. Embora seja fato a diluição dessas propostas, a fonte evidencia que o
MST não se esquivou de suas pretensões e buscou construir novas linhas de intervenção no cenário
político junto às suas bases de sustentação, ao ponto de ser percebido “como a principal força
política de resistência e de oposição ao projeto neoliberal” conduzido pelo então presidente da
República Fernando Henrique Cardoso, em meados da década de 1990 (p.16).
28
Não obstante, é nesse momento que se busca compreender o surgimento do MST. Para
Fernandes, “a resistência dos trabalhadores acampados dava-se contra a exploração, a expulsão e o
trabalho assalariado dos colonos”. Ressalta que a origem do movimento se deu na região do “CentroSul desde o mês de setembro de 1979, quando aconteceu a ocupação da gleba Macali, em Ronda
Alta - RS". Esta se tornou a primeira ação que abalizou o MST, entretanto, muitas outras ações dos
sem terra tomaram conta dos estados brasileiros, sobretudo no Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso
do Sul e São Paulo nos primeiros quatro anos. Para esse autor “a gênese do MST não pode ser
compreendida por um momento ou por uma ação, mas por um conjunto de momentos e um conjunto
de ações”. FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000.
p.50.
41
seguidas de uma síntese de cada notícia. Nesse aspecto, fica patente a construção
e enquadramento da memória coletiva desses trabalhadores, numa perspectiva de
coesão e representação social.
Na seqüência, sob a manchete - “Trabalhadores e povo em geral apóiam a
luta dos colonos” e no tópico seguinte - “A campanha de solidariedade no estado e
no país”, são mencionados como base de apoio alguns sindicatos rurais, Sindicatos
de Bancários, mais envolvidos com questões urbanas, e a Comissão Pastoral da
Terra. Nesta mesma edição, apresenta o nome das instituições que colaboraram
com donativos aos acampados, além das visitas oficiais de instituições ao
acampamento. Incorpora a republicação de uma matéria jornalística feita pelo Jornal
Zero Hora, de Porto Alegre, em 12/05/1981, destacando o fracasso de uma reunião
conciliatória entre representantes do governo e os trabalhadores rurais acampados.
Quanto à sua formatação, o noticiário do Movimento ocupava umas
dezesseis folhas, porém, isso não era regra; havia momentos em que este circulou
com três folhas, oito e, às vezes, doze. Nesse aspecto, é pertinente afirmar que
houve uma diferença significativa entre o Boletim Informativo e o Jornal do MST no
que tange suas formações, raios de atuação, distribuições, conteúdos e
organizações técnica. Inicialmente, O Boletim circulou no primeiro acampamento de
Ronda Alta - RS, porém, sua atuação não se restringiu apenas a ele, alcançando
outros espaços de discussão política e de sociabilidade. Revelou-se, também, uma
presença marcante nos sindicatos rurais e urbanos (a princípio na região sul) e em
determinados setores da Igreja Católica e Igrejas Cristãs.
Observando o desenvolvimento de outras etapas do periódico, fica claro que
o Boletim foi pensado para ter uma curta duração e suas experiências foram
aproveitadas na constituição do JST, conforme houve a espacialização do
42
Movimento. A dinâmica do Movimento dos trabalhadores rurais permitiu que a
atuação do periódico torna-se mais flexível. Este, por sua vez, adquiriu novos
leitores conquistando outros espaços, como universidades, comunidades de base,
sindicatos combativos e politizados, associações, entre outros. Por isso, já como
Jornal, precisou diversificar os seus conteúdos e a forma de circulação, no sentido
de motivar os militantes, deixando claro uma renovação constante em cada uma das
etapas de seu desenvolvimento e atuação.
O então criado Boletim (entendido pela pesquisa como Jornal) trazia na capa
da primeira edição “a carta dos colonos acampados em Ronda Alta - RS”, definindo
sua linha de reflexão, atuação e ação. Dessa maneira, evidenciou que esta carta era
endereçada à sociedade brasileira, possibilitando uma oportunidade singular de
estreitar seus vínculos com o homem rural e estender também ao homem urbano.
Focando, particularmente, as pretensões dos trabalhadores rurais enquanto um
grupo social organizado e envolvido na construção da luta, destaca esta “não como
uma luta qualquer, e sim uma luta contra a opressão”29.
O conteúdo da carta dos trabalhadores rurais sem terra tende a descortinar
uma eminente força política deste grupo social, assim como, a projeção do jornal
enquanto instrumento de comunicação e de luta, observado como porta-voz de um
processo de luta em prol da redução das desigualdades sociais, numa constante
busca pela elaboração e efetivação de um projeto político social para o Brasil. O
trecho da primeira carta dos trabalhadores rurais à sociedade buscava caracterizar o
homem do campo, demonstrando seus anseios por transformações sociais e
políticas em âmbito local e nacional, mas também, pela construção de sua
identidade.
29
a
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 8 ed. São Paulo:
Cortez, 2000. p.54.
43
Nós somos mais de 500 famílias de agricultores vivendo nesta
região, como pequenos arrendatários, posseiros da área
indígena, peões, diaristas, meeiros, agregados, parceiros, etc.
[...] Na cidade não queremos ir, porque não sabemos trabalhar
lá. [...]. Como não temos a quem recorrer, resolvemos acampar
na beira da estrada para ver, se em conjunto, conseguimos
uma solução. [...]. Estamos muito mal alojados, muitos de nós
não tem o que comer e não temos o que vestir, mas estamos
dispostos a ficar aqui até conseguirmos a terra que precisamos
para trabalhar como colonos [grifos meus]. Como agricultores,
achamos que temos o direito a ter um pedacinho de terra para
plantar alimentos para nossas famílias e para os da cidade
[...].30
O fragmento acima citado exige cuidadosa leitura a respeito de seu teor
político e do caráter um tanto ideológico 31 , no primeiro momento, buscou-se
caracterizar os trabalhadores acampados em Ronda Alta, demonstrando a sua
procedência e deixando transparecer a idéia de que estes tinham a intenção de
continuarem na luta até conseguir um pedaço de terra do governo para poder
trabalhar e plantar.
30
Trecho da Carta dos colonos acampados em Roda Alta, RS. Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS
AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos
Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.1.
31
Sem a pretensão de segregar o caráter político do ideológico implícito na carta dos colonos acima
descrita, entende-se que ambos se complementam no contexto do documento. Para tanto, é
necessário trazer à luz algumas reflexões que compõem a conceituação desses termos. Na tentativa
de caracterizar o teor político do documento em destaque, vale-se das observações de Silva e Silva
ao pontuar que ao contrário do que foi escrito por Aristóteles na Grécia antiga (que a política era uma
experiência que se refletia na vida pessoal, harmonizada aos interesses coletivos, e que exercia uma
atividade ética na função pedagógica de transformar os homens em cidadãos), atualmente “o caráter
mais evidente do conceito... de política diz respeito, por um lado, à gestão dos negócios públicos e,
por outro, às ações da sociedade civil organizada a fim de ter suas reivindicações atendidas”. Nas
últimas décadas do século XX, assinala os autores: “o conceito de política atinge o cotidiano por meio
das ações de protestos e das lutas sociais que ocorrem em esferas não-institucionais”. O termo é
bastante dinâmico e “o sentido do que é ou não política muda com o tempo e também com os
interesses dos grupos sociais”, dentre os quais está o MST. SILVA, Kalina W.; SILVA, Maciel H.
a
Dicionário de conceitos históricos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.336-7. Ver também:
a
BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5 ed.
Brasília: Editora da UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p.954-79. ARENDT, Hannah.
A promessa da política. Rio de Janeiro: Dífel, 2008 (especialmente o capítulo intitulado Introdução
na política, p.144-69). Estando o político e o ideológico concatenados no contexto desta carta, Chauí
explicita que “a ideologia é uma forma específica do imaginário social moderno, é a maneira
necessária pelas quais os agentes sociais representam para si mesmo o aparecer (grifos da autora)
social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência [...], por ser o modo imediato e abstrato
de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou a dissimulação do real”. Nesse sentido,
observa-se que, “fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de
normas que nos ‘ensinam’ a conhecer e a agir”. CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso
a
competente e outras falas. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.3.
44
Outro ponto passível de interpretação é a não pré-disposição do trabalhador
rural em aceitar como solução o seu deslocamento do campo com destino à cidade.
Nesse momento, há uma fala marcante no que tange à sua posição, ao afirmar: “na
cidade não queremos ir porque não sabemos trabalhar lá”, o que caracteriza a
resistência dos trabalhadores as propostas políticas em curso e que os mesmos nas
suas experiências de luta pela sobrevivência e por melhores condições de vida,
julgam essa solução como sendo inviável aos seus anseios.
Em outro aspecto, essa fala destaca a construção de um sentimento de
coletividade que, na oportunidade, toma conta desse grupo de trabalhadores,
sobretudo quando se observa a afirmação: “como não temos a quem recorrer,
resolvemos acampar na beira da estrada para ver se, em conjunto, conseguimos
uma solução”32.
Esta fala era um indicativo de negação ao estado de direito e de sua política
agrária, projetando a idéia de que esta posição configurava um convite à sociedade
para se unir á causa, quando entendia que “a reforma agrária é um compromisso de
toda a sociedade e não exclusivamente dos trabalhadores rurais sem terra”.
Reportando-se ao acampamento à beira da estrada, destacava-o como
prática constante, estratégia política no intuito de pressionar os poderes
constituídos. Não é por acaso que esta forma de coação perdurou durante toda a
trajetória de luta dos trabalhadores rurais arregimentados pelo MST.
O trecho selecionado torna-se emblemático para se compreender a
resistência no campo nos primórdios da década de 1980 e, posteriormente, anos 90
e no início do século XXI, projetando o Movimento como um dos mais importantes
do país e da América Latina.
32
Carta dos colonos acampados em Roda Alta, RS. Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES
SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra.
n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.1.
45
Este cenário de tensão precede a busca constante pela transformação social
no campo e na cidade contando, sobremaneira, com o apoio do Boletim Informativo
Sem Terra, que constituiu um discurso no sentido de acompanhar, registrar e
denunciar essas tensões. Estes motivos fizeram o periódico crescer e se fortalecer
no intuito de tornar-se uma ferramenta de referência em termos de comunicação,
formação e informação de expressão política e social entre os trabalhadores rurais
sem terra.
Em face dessa questão, algumas hipóteses preliminares justificam a opção
pelo estudo desse periódico como sujeito histórico, uma vez que:
A mídia é um rico recurso de informação acessível para a
pesquisa e ensino; o uso da mídia pode nos informar muito
sobre os sentidos sociais e sobre os estereótipos projetados
por meio da linguagem e da comunicação; o uso da mídia
como influência e expõe a maneira pela qual às pessoas
utilizam à linguagem numa determinada comunidade; a mídia
reflete e influência a formação e a expressão da cultura, da
política e da vida social.33
No que concerne à formatação e organização do Boletim, na sua primeira
página figurou uma matéria em que se tentou abrir um diálogo entre os
trabalhadores e a sociedade, demonstrando que sua proposta envolvia mudanças
profundas no que diz respeito à igualdade e a solidariedade. Na página seguinte
seus objetivos são confirmados, enquanto um meio de comunicação e parceiro dos
que lutam pela terra e “por um mundo mais justo”.
33
BELL, Allan; GARRETT, Peter. Approaches to media discourse. Oxford: Blackwell Publishers, 1998.
p.3. Apud: SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização.
Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.11. O JST não é
comercializado em todas as bancas de revistas e jornais, uma vez que a sua tendência foge aos
interesses econômicos dos grandes meios de comunicação, detendo-se exclusivamente à
representação dos anseios dos trabalhadores rurais sem terra. Nesta perspectiva, porém, apesar do
jornal não ser percebido como integrante da grande mídia, é inegável o seu alcance e o uso que se
faz dele nos assentamentos, acampamentos e reuniões de formação dos trabalhadores rurais.
46
Desta maneira, o Jornal se edifica com o desejo de manter a sociedade, as
entidades representativas e os trabalhadores rurais informados acerca das tensões
eminentes no campo.
Estamos apresentando a sociedade o primeiro número deste
Boletim Informativo que, dentro de suas atribuições, uma é a de
manter constantemente informados todos os colaboradores
desta campanha de solidariedade, através de suas entidades
representativas – sindicatos e federações de trabalhadores
rurais e urbanos, comunidades de base e demais entidades a
nível nacional – bem como a opinião pública em geral através
dos meios de comunicação – jornal, radio e televisão [grifos
meus].
[...]
O Boletim circulará periodicamente, na intenção de manter
‘aceso o fogo que clareia’ as reivindicações dos trabalhadores
rurais e, também, veicular as manifestações de apoio e
solidariedade que tem recebido. Servirá, ainda, para que os
agricultores renovem seu apelo à sustentação desta luta [grifos
meus] e, ao mesmo tempo, manifestem o seu profundo e
comovido agradecimento aos que nela, de uma forma ou de
outra, já estejam empenhados.34
Os trechos em destaque demarcam o público e o perfil do leitor que o
Boletim pretendia atingir. Sinalizava, porém, que parte desse público trazia consigo
níveis de formação escolar muitas vezes superior à dos trabalhadores que estavam
nas frentes de ocupação. Para isso, basta observar as instâncias de atuação do
público ao qual o periódico era endereçado: sindicatos, igrejas, federações de
trabalhadores rurais e urbanos, comunidades de base, jornais, rádios e televisão,
descortinando um discurso para dentro e outro para fora do Movimento.
O segundo trecho não explicita a caracterização desse trabalhador rural
envolvido na luta pela terra denominando-o, simplesmente, de agricultor35 (ainda não
34
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2.
35
Segundo o dicionário Aurélio, o termo é aplicado “àquele que pratica a agricultura”, sendo também
aceito por Stedile e Fernandes, ao assinalar que “o homem do campo geralmente se define por
agricultor, trabalhador rural, meeiro e/ou arrendatário”. STEDILE, João Pedro; FERNANDES,
47
designado de sem terra), pretendendo ser instrumento de motivação para a
sustentação da luta, apresentando-se como suporte de comunicação entre os
acampados e aqueles que lhes eram solidários ao enviarem qualquer tipo de ajuda.
Nessa fase inicial, o Boletim não deixa clara a sua pretensão de se tornar
um instrumento de formação entre os militantes (embora o seja de forma velada),
essa possibilidade aflorou com clareza na segunda etapa de formação e atuação do
periódico, especificamente a partir da publicação do número 36, em julho de 1984.
O jornal e o MST não encontraram eco na maior parte da imprensa
brasileira, apesar de manifestarem publicamente o desejo de contar com o apoio dos
meios de comunicação de massa (rádios, jornais e televisão) para divulgar a
necessidade da reforma agrária no país e as formas de pressão do Movimento ao
governo.
O MST, na maioria das vezes, figurou nas páginas da mídia brasileira de
forma negativa, quiçá por razões bastante singulares, uma vez que esta “ocupa
papel de relevo”36 e “exerce uma função central entre os aparatos do Estado [...],
maneira pela qual a classe dominante assegura pela ‘palavra’ a submissão da classe
dominada”37.
Nesse sentido, os meios de difusão no Brasil caracterizam-se pelos seus
interesses enquanto empresas de comunicação e suas mutações acompanham os
objetivos do mercado e os interesses de seus proprietários. Na perspectiva do
Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2000. p.31.
36
SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização.
Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.12.
37
Na perspectiva de Souza, “o discurso da mídia não é livre das relações de poder entre as classes
sociais, pois esta é dirigida a uma sociedade heterogênea e contraditória”. Pelo viés do dissenso
nasce o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra como ferramenta de luta e de divulgação das
tensões sociais eminentes no cenário nacional. Ibidem. p.12.
48
conceito de “neotevê”38, o programa dominical da TV Globo intitulado “Fantástico”,
possibilita uma atmosfera de reflexão para se pensar o conceito de interesses
políticos e econômicos no setor da imprensa.
A programação acompanha de perto os acontecimentos
nacionais, mas só em raras ocasiões os menciona diretamente
[...]. Suponha-se, por exemplo, que o governo federal tenha
anunciado um crescimento significativo do emprego formal no
país. O programa irá interpretar e comentar o fato, encenandoo sem mencioná-lo uma única vez: se a empresa de televisão
apóia o governo, o ‘show da vida’ apresentará um quadro com
jovens e idosos que obtiveram empregos e estão muito felizes;
se a empresa se opõe ao governo, o quadro exibirá pessoas
desempregadas, de varias idades e classes sociais.39
Com essa percepção, a construção do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, entendido como meio de comunicação alternativo40, buscou uma tentativa de
disseminar as tensões eminentes no campo e de se fazer ouvir pelo governo e por
parcela da sociedade.
Nesse ínterim, o jornal anseia pela construção de um discurso menos
verticalizado a respeito da organização dos trabalhadores rurais, confrontando,
assim, suas informações com os discursos dos meios de comunicação que
buscavam, veementemente, a destruição de qualquer movimento social com
“tendências de esquerda”41, particularmente do MST.
Pautando-se nestas reflexões o Boletim dos Sem Terra estaria cumprindo o
papel de imprensa alternativa, observando que esta se caracteriza por sua oposição
38
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p.14. Apud:
CHAUÍ, M. Simulacro e Poder. Uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
p.17.
39
Nesse sentido, mostra-se como o “simulacro transforma-se em espetáculo, embora esses quadros
possam ter grande impacto político, graças à encenação da informação e ao ocultamento da intenção
persuasiva, o forte do ‘fantástico’ encontra-se no tratamento dado à ciência e à técnica”. Ibidem. p.4.
40
Sobre o conceito de jornal alternativo ver: AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião,
movimento e em tempo. In: MARTINS, Ana Luisa; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da
imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.235.
41
Ibidem. p.235.
49
às “pretensões hegemônicas e ao espírito da imprensa oligarca e ideológica liberal,
atualmente neoliberal, que é a dominante no Brasil”42.
Antes, porém, o termo imprensa alternativa foi cunhado pelo jornalista
Alberto Dines:
A expressão ‘imprensa alternativa’ apresenta quatro elementos
para uma melhor compreensão do tipo de imprensa que circula
no Brasil. O primeiro destes elementos é quando o jornal pensa
‘algo que não está ligado à política dominante; o segundo é o
seu desejo de manifestar duas coisas reciprocamente
excludentes; o terceiro é o de que há apenas uma única saída
para uma situação difícil [grifos meus] e, por ultimo, o desejo
das gerações dos anos 60 e 70 de protagonizar as
transformações sociais que pregavam.43
Na seqüência, o Boletim apresenta um setor denominado de “história de um
povo oprimido”. Neste, era denunciada a situação social e econômica dos
trabalhadores, apresentando, também, uma breve caracterização das famílias
acampadas pressionando o governo por um pedaço de terra e melhores condições
de vida.
A notícia evidenciou as condições de vida dos trabalhadores abarracados às
margens da estrada que liga “Passo Fundo a Ronda Alta, imediações do povoado de
Encruzilhada Natalino”, interior do estado do Rio Grande do Sul, sinalizando para a
procedência destes trabalhadores, suas bases de sustentação, organização e a
42
AGUIAR, Flávio. Imprensa Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In: MARTINS, Ana Luisa;
LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. Para
esse autor, em meados do século XX estava em formação o cartel hegemônico da chamada “grande
imprensa” brasileira, com características muito próprias: em geral, esta se caracteriza por grandes
empresas familiares – Mesquitas (Jornal Estado de S. Paulo); Marinhos (Grupo Globo); Frias (Grupo
Folha de S. Paulo), empresários capitalistas que se dedicaram a combater veementemente o que
acreditavam ser de esquerda no país.
43
LIMA, Marcus Antonio A. De Alternativa a grande mídia: historiografia resumida da imprensa
homossexual no Brasil. In: WOITIWICZ, Karina Janz (Org.). Recortes da mídia alternativa: histórias
e memórias da comunicação no Brasil. Ponta Grossa - PR: Ed. UEPG, 2009. O autor reporta-se a B.
Kucinski (1991, p.XIII) para fundamentar teoricamente o ideário de uma imprensa alternativa que
pretendia ampliar os direitos das minorias, sobretudo os “negros, índios e mulheres”, utilizando-se do
jornal “Lampião da Esquina” (entre outros) para levantar e problematizar as suas hipóteses.
50
crescente repressão proveniente dos poderes públicos, informações estas, na
maioria das vezes, silenciadas pela “grande imprensa” brasileira.
Há de se ressaltar a posição da revista Veja nas edições de 24/04/1996,
16/04/1997, 23/04/1997 e 03/07/1998 frente às ações coordenadas do MST, como
um caso típico de silenciar informações. Não obstante, quando as referências acerca
do MST aparecem em suas páginas, é notória a sua descaracterização, sendo os
atores sociais muitas vezes “satanizados” 44 nas notícias e/ou editoriais. Nesses
termos, o discurso da Veja sobre as ações coordenadas do MST configura seis
dimensões: “o primeiro deles é silenciar sobre o movimento, o segundo é cooptar,
difamar, dividir, domesticar e satanizar o MST”45 (grifos do autor).
Tal lógica atendia aos anseios do Governo Federal, representado à época
por Fernando Henrique Cardoso e por segmentos dos leitores do periódico. As
lideranças do MST naquele momento mencionavam que
Este governo ditou as regras de como a chamada grande
imprensa deveria tratar o movimento. O tratamento mudaria de
acordo com as mudanças nas estratégias do governo que, por
sua vez, seria definida pela maneira com que a opinião pública
reagiria a eventos protagonizados pelos sem terra (massacres,
marchas, ocupações, etc.).46
A princípio, o Boletim dos Sem Terra procurou salientar que, em sua maioria,
os trabalhadores acampados na região Centro-Sul eram procedentes da própria
área rural e outros oriundos da área urbana, mas que, em algum momento de suas
44
SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de “Veja” e o MST: do silêncio à satanização.
Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.19. As referências
acima citadas reportam-se as edições analisadas e mencionadas pelo autor. Destaque-se, também, a
o
capa da edição de n 22 de 03/07/1998 da respectiva revista que trás a figura de João Pedro Stedile,
liderança do Movimento travestido de demônio, como observado na obra de: SOTTILE, Rogério.
MST: a nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social
dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. p.64.
45
SOUZA, op. cit., p.19.
46
Gilberto Portes de Oliveira, membro da direção nacional do MST, em entrevista realizada em julho
de 2000. Cf.: Ibidem. p.19.
51
vidas, tiveram contato direto ou indiretamente com o cultivo da terra. Descarta-se,
portanto, a hipótese de que estes eram pessoas sem propósitos com a terra ou algo
parecido, como teria afirmado o tenente-coronel Curió: “[...] muita gente que estava
lá dentro não era colono, eram aproveitadores. Lá tinha professores, tinha motorista
de táxi, tinha de tudo lá dentro” 47 . Segundo esta fonte, a categoria “de tudo”
mencionado pelo tenente-coronel se traduziria em:
Arrendatários, parceiros, meeiros, agregados, peões de granjas
e filhos de pequenos agricultores que perderam a possibilidade
de continuar na terra, expulsos pela maquina [grifos meus],
pela ganância dos grandes proprietários, pela falta de trabalho,
enfim, pela política agrícola do governo.48
As transformações ocorridas no campo nos primórdios dos anos setenta e
oitenta foram bastante visíveis, inclusive no aspecto social e econômico,
desencadeando tensões que nortearam a exclusão e a marginalização de centenas
de trabalhadores de seus postos de trabalhos. Nesse sentido, percebia-se que a
política econômica adotada no período ocasionou mudanças significativas no campo
paulista, resultado do êxodo rural que provocou diminuição substancial no trabalho
familiar 49 . Em face disso, a geografia do campo também sofreu alterações,
especialmente pela saída do homem rural com destino aos grandes centros urbanos,
47
Trecho da entrevista com o Tenente-coronel e deputado Curió pelo PDS do Pará, em 1983. É
emblemática esta entrevista ao se observar que o entrevistado foi um dos grandes opositores aos
trabalhadores rurais acampados, em Ronda Alta, RS. Segundo o JST, “esse militar transformou
algumas centenas de colonos em ‘inimigos da Nação” quando designado pelo Palácio do Planalto
para comandar a tensão eminente no local descrito acima. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES
SEM TERRA. n.33. MST, novembro de 1983. p.14.
48
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2.
49
Para Fernandes, “houve uma diminuição de 27% do total de pessoas ocupadas com o trabalho
familiar [...]. Por outro lado, houve um aumento de 38% dos trabalhadores assalariados permanentes
e temporários, havendo redução nos dois casos na segunda metade da década de 1980”. O autor
assinala também que na década de oitenta “a população migrante representava mais da metade da
população paulista”, pois “somente nessa década, mais de quatro milhões de pessoas migraram do
campo para a cidade”. FERNANDES, Bernardo M. MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. Formação e Territorialização em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1996. p.45, 50.
52
abrindo caminhos para a organização destes em movimentos sociais em crescente
ascensão. 50
A página 5 deste número do Boletim trazia com destaque a notícia na qual
figurava otimismo acentuado frente à opinião pública. O título da matéria destacava “Trabalhadores e o Povo em Geral Apóiam a Luta dos Colonos”. O texto agradecia
em nome dos trabalhadores rurais acampados às entidades envolvidos na luta pela
posse da terra, destacando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Criciúma - SC,
Sindicato dos Bancários de Porto Alegre - RS, Comissão Pastoral da Terra (CPT)
em Goiânia - GO e outros sindicatos e organizações autônomas de todo o país que
apoiaram o movimento dos trabalhadores, segundo o jornal:
No transcorrer dessa nossa luta [grifos meus] que já passam 60
dias, temos recebido o apoio, o conforto, a coragem e a
solidariedade de muitos irmãos trabalhadores, de muitas
entidades e de muitas pessoas. Queremos dizer que vosso
apoio é que tem ajudado a gente a se manter unido e com
força.51
Nesse aspecto, o periódico evidenciava uma linguagem afetiva e de
mobilização, sem a pretensão de neutralidade frente aos trabalhadores rurais e os
aliados a quem se dirigia. Revelava, sobretudo, um ar de denúncia no sentido de
promover a mobilização dos trabalhadores rurais e militantes que compartilham dos
50
A título de exemplificação, esses atores sociais, excluídos de seus postos de trabalho ou de suas
ocupações cotidianas, tentam reencontrar a sua cidadania lutando no Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra - MST; Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST; Movimento Paz SemTerra - MPST; Movimento de Libertação dos Sem Terra - MLST; Movimento dos Ameaçados por
Barragens - MOAB; Movimento Terra Brasil - MTB, dentre outros. Nessa linha de reflexão, Bezerra
assinala que as tensões no campo, particularizando os motivos que levaram à saída dos
trabalhadores rurais da cana na região de Assis, no interior de São Paulo, deram-se quando os
empresários do açúcar buscaram intensificar a implementação da tecnologia em setores estratégicos
de suas empresas e fazendas objetivando maior produtividade em consonância com a demanda
oriunda do agronegócio, especificamente na década de 1990. Ver: BEZERRA, Antonio Alves. Bóiasfrias e a mecanização nas usinas de açúcar e álcool no Oeste Paulista: 1960-2000. Dissertação
(Mestrado em História Social), PUC/SP, São Paulo, 2002. p.16.
51
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.5.
53
anseios do Movimento. Agradecia o “apoio, o conforto e a solidariedade” dos de fora
e valorizando a coragem, perseverança e otimismo dos de dentro, transformando-se
num discurso que buscava o convencimento para a causa em questão.
No trecho citado a seguir, buscava-se esclarecer a precariedade da situação
dos trabalhadores acampados, sobretudo, quando se observa o enorme contingente
de pessoas aglomeradas num único lugar, “somando um total de três mil pessoas
acampadas às margens da estrada”, sendo que uma parte delas provinha dos
municípios de “Sarandi, Ronda Alta, Constantina, Nonaí, Rodeio Bonito, Planalto,
Irai, Rondinha e Liberato Salzano, todas no RS”52.
Nesse sentido, destacava que
As condições de sobrevivência destes trabalhadores são
bastante precárias: falta o mínimo necessário em utensílios,
acomodações, camas, agasalhos, alimentação e assistência
médica e social [...]. A falta de solução, as pressões do
governo, as intimidações através de policiais pioram ainda mais
esse quadro.53
O Boletim, em seu primeiro ano de vigência, clamou pela solidariedade aos
trabalhadores, usando uma de suas divisões mais significativas, pontuando o nome
de seus aliados, registrando suas contribuições e seu comprometimento com o
Movimento.
A solidariedade das pessoas para com os trabalhadores foi a principal base
de sustentação dos acampamentos, observando que os recursos destes eram
precários e que boa parte deles sobrevivia à custa de outros colonos. Nesta edição,
52
A estratégia de acampar a beira das estradas e rodovias era uma forma de chamar a atenção da
opinião pública acerca das tensões que estavam ocorrendo nas imediações daqueles municípios.
Esse procedimento seria utilizado por mais de duas décadas para dar visibilidade às inquietações dos
trabalhadores rurais sem terra e uma forma de pressionar o governo a dar uma nova configuração à
política agrária do país.
53
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.2.
54
porém, a fonte em destaque notificava que os trabalhadores contaram de imediato
com o apoio de várias entidades de cunho social, dentre elas, destacando-se
setores progressistas da Igreja Católica representada pela Comissão Pastoral da
Terra.
A título de exemplificação, a primeira campanha de solidariedade, a
“Diocese de Chapecó - SC enviou cinco mil quilos de farinha, mil quilos de açúcar e
sal”, mantimentos estes que deram sustentação e serviram de motivação à
continuidade dos trabalhadores rurais na luta.
Na página dez do Boletim era republicada uma reportagem feita pelo Jornal
Zero Hora de Porto Alegre intitulada: “Reunião com os colonos fracassou”,
demonstrando fortemente o impasse entre o governo e esses trabalhadores.
Depois de uma hora de reunião com quatro agricultores que
representavam os colonos acampados em Ronda Alta, o
presidente do Incra, Paulo Yokota, sentiu-se desiludido. Os
trabalhadores ali presentes estavam revoltados e prometiam
‘continuar a luta’, mantendo-se acampados e reivindicando
terras para serem assentados dentro do Rio Grande do Sul. Ao
meio daquela situação de contradições, um dos trabalhadores
chegou a fazer uma ameaça velada ao presidente do Incra:
‘nós vamos lá dar a sua resposta negativa aos companheiros.
Mas não sei o que pode acontecer.54
A opção deste jornal em autorizar a republicação da matéria no Boletim
implica numa possível identificação do mesmo com a bandeira de luta dos sem terra.
A matéria apontava as evidências da gestação de tensão envolvendo os
trabalhadores rurais, latifundiários e governo, possibilitando o desencadeamento de
conflitos de grande magnitude neste e nos anos subseqüentes.
54
ZERO HORA. Porto Alegre, 12 de maio de 1981. p.25. Apud: COMITÊ DE APOIO AOS
AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos
Agricultores Sem Terra. n.01. Porto Alegre, maio de 1981. p.10.
55
A
matéria
intitulada:
“Manifestação
dos
Agricultores”
expunha
o
agradecimento dos trabalhadores acampados frente às ações de solidariedade
provenientes dos mais diversos setores da sociedade. Também foi veiculada a
informação acerca das ações governamentais, sendo questionada a idéia de que
inúmeras comissões do governo estiveram junto ao assentamento, no entanto, sem
nada resolver.
Para os trabalhadores, segundo a documentação, “eram papéis e mais
papéis, formulários e mais formulários, perguntas e mais perguntas e nada de
solução”. Em suma, o Boletim reportava-se aos trabalhadores acampados da
seguinte forma: “Nós não queremos formulários, nós queremos TERRA!”
1.2 O BOLETIM SEM TERRA, IDENTIDADE E MEMÓRIA
No segundo semestre de 1982, a edição de no 25 do Boletim Informativo dos
Sem Terra apresentou a constituição de um editorial e não oficializando o seu
expediente técnico-jornalístico. Sem menosprezar a quantidade e a qualidade das
informações presentes nas edições anteriores e posteriores a esta, o presente
capítulo preocupou-se em discutir trechos do editorial desta edição considerando
que havia uma tensão implícita em se tratando da continuidade do jornal, do local de
sua circulação e, sobretudo, indicando uma polêmica no que concerne à atualidade
e qualidade da informação por ele veiculada.
Segundo o editorial, o Boletim feito pelo Comitê de Apoio – RS foi indicado
pelos colonos como órgão de divulgação de suas lutas, em cinco Unidades da
Federação: RS, SC, PR, SP, MS, sendo uma das razões que leva a presente
pesquisa à tentativa de compreender o jornal como porta-voz da luta na área rural.
56
O editorial pontuava que, apesar de sua precariedade, o jornal buscará
“aumentar a responsabilidade de seus colaboradores no que tange a sua
contribuição para as lutas no campo”. Informava, também, que apesar dos colonos
identificarem o Boletim como seu porta-voz, este não apresentava boas condições
em se tratando de recursos materiais e atualidade das informações, salientando que
“o leitor não espere dos próximos números mudanças profundas, pois elas virão com
o tempo e serão frutos da semente regada com o esforço e o sacrifício de quem
deseja melhorar e contribuir com a luta”.
Em outro trecho:
Consideramos que a boa qualidade da informação não deve
ser privilégio das classes dominantes, embora estas tenham
mais acesso à informação e às técnicas de comunicação, por
isso há o desejo de aperfeiçoamento [...] Algumas notícias
estão ultrapassadas no tempo, mas de qualquer forma
possuem importância histórica para o movimento camponês, e
nos próximos números prosseguiremos divulgando informações
da luta pela terra [...].55
Dessa forma, expressava as dificuldades no que se refere à morosidade das
informações, reconhecendo a defasagem da notícia, porém norteava a perspectiva
de melhora, deixando evidente que o periódico precisava de mudanças no que tange
à sua estruturação, assegurando a viabilidade das notícias em tempo reduzido, fator
esse, associado às mudanças qualitativas nos conteúdos a serem publicados.
Demonstrava preocupação com o registro da notícia como fato histórico para o
fortalecimento da luta no campo, tema, aliás, que perpassa os mais variados tipos de
registros do MST ao longo de sua trajetória.
55
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. Ano II, n.25. Editorial “Boletim Sem Terra será regional”.
Porto Alegre, julho de 1982. p.2.
57
Apesar das notícias veiculadas pelo Boletim não serem atuais na sua
concepção, servia de ingrediente fundamental para a composição da “memória
coletiva” 56 dos trabalhadores imbricados na luta pela sua “libertação e pela
implantação de uma autêntica reforma agrária” 57 no país.
Em fevereiro de 1983, na sua segunda etapa, o Boletim Informativo dos Sem
Terra passou a circular com a seguinte nomenclatura: Boletim dos Sem Terra,
suprimindo-se o adjetivo informativo. Não que tivesse deixado de informar aos
trabalhadores, pelo contrário, ganha a partir de então outra configuração,
alcançando maior projeção em função do aumento crescente da tiragem 58 ,
valorizando mais as notícias e manchetes, politizando os editoriais e dinamizando as
entrevistas com lideranças do Movimento e intelectuais aliados.
O periódico, portanto, procurava de antemão se desprender do formato de
Boletim Informativo com conteúdo panfletário tendendo a aproximar-se da
configuração de um jornal. Ainda com sede em Porto Alegre - RS, sob a
56
Cf.: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos
Tribunais, 1990. p.80. Para esse autor, “A memória coletiva não se confunde com a história”. Pois “a
história é a compilação dos fatos que ocuparam o maior espaço na memória dos homens [...] isso
acontece porque geralmente a história começa somente no ponto onde acaba a tradição, momento
em que se apaga ou se decompõe a memória social”. Nessa mesma linha de reflexão, D’Aléssio
salienta que “a memória social é sempre vivida, física ou afetivamente, pois, quando o grupo social
desaparece, a única maneira de salvar as lembranças, que para os grupos existentes são exteriores é
fixá-las por escrito em uma narrativa seguida uma vez que as palavras e os pensamentos morrem,
mas os escritos permanecem” (grifos da autora). Talvez essa observação seja uma das razões que
leva o MST, enquanto grupo social, a zelar pelo registro de suas memórias. Ver: D’ALÉSSIO, Márcia
Mansor. Memória: leitura de M. Halbwachs e P. Nora. Revista Brasileira de História - Memória,
História e Historiografia. Vol.13, n.25/26. São Paulo: ANPUH/ Marco Zero, set. 92/ ago. 93. p.97-103.
57
Considerações da Madre Cristina, diretora do Instituto Sedes Sapientae, PUC-SP, sobre as
comemorações dos dez anos de existência do JST. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, agosto de 1991. p.16.
58
Reportando-se à tiragem de exemplares de jornais, particularmente aqueles comprometidos com a
venda de espaços para propagandas ou coisa do gênero, Cruz recomenda atenção para a
veracidade dos números publicados por estes, observando que em sua maioria os dados são
imprecisos, servindo apenas para chamar a atenção dos anunciantes. Para um jornal ou uma revista
apresentar dados de alta tiragem, representava o acesso imediato de muitos leitores, tornando-se um
dos principais ingredientes que facilitaria a venda dos produtos ali anunciados, logo aumentando os
lucros da empresa jornalística. Segundo essa autora, tal questão chegou até as páginas dos
“pequenos e efêmeros jornais humorísticos, que vez por outra estavam fazendo humor declarando
tiragens de 10 mil a 20 mil exemplares” por edição. CRUZ, Heloisa de F. São Paulo em Papel e
Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2000. p.139.
58
responsabilidade do então Comitê de Apoio aos Agricultores Sem Terra, o Boletim
Sem Terra, apesar da circulação regional, ampliou a sua tiragem, oscilando entre
dois mil e quinhentos e cinco mil exemplares, segundo dados expressos na folha de
rosto, deste primeiro ano com a nova nomenclatura.
Contando com um número menor de páginas impressas em suas primeiras
edições, porém com maior tiragem e com circulação regular, o Boletim ganhou maior
visibilidade, difundindo a idéia de que suas informações tinham maior credibilidade e
principalmente eram constantemente atualizadas.
A edição de no29 do periódico iniciou-se com a seguinte pergunta: “Sair ou
lutar?” Propositalmente foi anexada ao lado desta indagação uma imagem sem
autoria retratando a saída do homem do campo com destino aos grandes centros
urbanos, justificando por si só a chamada de capa com a seguinte manchete: “A 6a
Romaria da Terra será de protesto contra a expulsão dos trabalhadores rurais do
campo”.
Nota-se que o jornal, ao longo de sua trajetória, procurou explorar a
imagética como ferramenta de comunicação entre seus leitores. Essa tendência
iniciou-se timidamente na edição de no 16, publicada em 1981, expandindo-se nas
edições seguintes. Em geral, o uso da fotografia jornalística no Boletim foi de caráter
restrito, ocupando destaque sempre na página de rosto, seguido da manchete,
ausentando-se do corpo do texto. Ainda em 1983, especialmente a partir da edição
de no 31, tornou-se perceptível uma maior utilização dos recursos imagéticos pelo
periódico, com expansão de seu uso no limiar do ano de 1984, quando ocorre a
mudança de Boletim para Jornal. A partir de então, o periódico se apropriou da
fotografia amadora, somada ao desenho, caricatura, charge e foto-jornalismo
59
profissional, que passaram a ocupar papel de destaque ao lado dos textos em quase
todas as seções.
Nesse contexto, o “objeto e o documento se ampliam, permitindo cada vez
mais uma maior aproximação da história com territórios antes inexplorados”, criando
condições para a compreensão de que a construção “dos discursos sobre o passado
ultrapassam os limites impostos pela escrita”59.
Figura 1 - Lutando Pela Terra60
A imagem buscou representar um cenário de desigualdade social dos
grandes centros urbanos, com indicadores sociais negativos e cristalizados. Entre
esses, destacavam-se o crescimento desordenado das cidades e o aumento
59
Dessa maneira, promove-se a valorização da imagética como possibilidade metodológica de
interpretação do passado e construção da história. Cf.: NOVA, Cristiane. A “História” diante dos
Desafios Imagéticos. Projeto História. n.21 - História e Imagem. Revista do Programa de Estudos
Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2000. p.141-62.
Ver também: SOTTILE, Rogério. MST: a nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem
e da expressão política e social dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São
Paulo, 1999.
60
Imagem sem autoria. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. MST, fev.1983.
60
populacional oriundo da migração do campo, fruto da ausência de uma política
agrária efetiva, ingrediente que culminou na organização dos trabalhadores rurais
sem terra em torno do MST61, na perspectiva de que
A miséria do trabalhador rural, problema central de nossa
questão agrária transformou-se, com esse fluxo migratório, em
miséria do trabalhador urbano. Dessa perspectiva, a retomada
da luta pela terra no Brasil indica que uma parcela dos
camponeses, em via de ser expulsa do campo, recusava-se a
engrossar a migração para as cidades e preferia resistir na
terra.62
No plano superior desta imagem, observam-se algumas residências
precárias de trabalhadores (denominadas nos centros urbanos de barracos), em
confronto com o conjunto de edifícios, registrando uma espécie de apartheid social.
Ao centro da figura, percebe-se a chegada dos trabalhadores rurais aos
aglomerados urbanos, provocando sobremaneira uma mudança na paisagem social
urbanizada. A imagem ainda explícita a desistência de um dos trabalhadores de
continuar a caminhada de expulsão da área rural, não se permitindo abandonar as
suas tradições e seu apego à terra. Há, nesse caso, resistência explícita no que se
refere a sua opção em persistir no campo. De qualquer forma, a postura adotada por
esse personagem implica no início de uma saga que provavelmente desembocaria
na implementação de uma política agrária conflituosa para o país, desencadeando
graves conflitos no eixo campo-cidade.
Já os outros trabalhadores desistiam dessa luta incerta e buscam
possibilidades nas áreas urbanas, conforme retrata a imagem. Na seqüência e como
61
No âmbito da chamada “questão agrária”, o crescente “processo de desenvolvimento capitalista na
agricultura brasileira”, desencadeado especificamente “nas décadas de 1960 e 1970” do século XX,
tornou-se fator crucial a influenciar ‘a emergência do MST’, enquanto movimento social, frente à
“intensa expropriação e proletarização do campesinato”, culminando “no aumento alarmante da
migração rural-urbana”. Cf.: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura
ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.18.
62
Ibidem.
61
matéria de capa, infere-se a denúncia acerca da violência generalizada no campo,
implicando na morte de “sindicalistas, padres e posseiros” e que, à luz do dia, “os
pistoleiros, a soldo de seus mandantes continuam agindo completamente impunes,
prometendo mais violência para o dia seguinte”.
Ainda como matéria de capa, o Boletim63 comunicava aos seus leitores e
companheiros de luta a realização de seu II Encontro Regional, evocando a
presença e participação dos trabalhadores. Para este, o Encontro proporcionaria
uma oportunidade para se tecer considerações a respeito “da recente reunião da
Comissão Nacional Provisória dos Sem Terra, e também a realização de uma
avaliação minuciosa dos encaminhamentos feitos a partir do Primeiro Encontro
Nacional, realizado em 1984”.
Outra questão percebida e que deve ser levada em consideração no formato
do Boletim Sem Terra é que este trazia uma seção fortemente marcada por um
editorial com conteúdo político. Na edição de no 29, o editorial intitulado “Conflitos
aumentaram no campo” e na edição de no 30, “Lutar pelo fim da Lei de Segurança
Nacional”64 fica evidente que, além de primar pelo caráter informativo acerca das
tensões existentes no campo, o periódico procurava posicionar-se pela formação de
uma força contrária aos governos, ao poder judiciário, à polícia e, possivelmente, a
alguns setores conservadores da chamada “grande imprensa”.
63
Nesse momento o Boletim ainda não apresentava de forma explícita a constituição de um
expediente. Havia, porém, um comitê de apoio que respondia por todas as informações veiculadas
por ele. Antecipa-se, ainda, que a constituição desse expediente se daria a partir da editoração da
o
edição de n 33, publicado no mês de novembro de 1983 sob a responsabilidade do jornalista Fladimir
Araújo, “funcionário da Assembléia Legislativa do RS. Como militante voluntário, foi um dos
fundadores do Boletim Sem Terra e o primeiro editor do Jornal Sem Terra, no período de 1984 a
1988”. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a
Luta Pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.26.
64
Os dois números citados são ilustrativos para se pensar na essência dessa ferramenta de
o
o
comunicação do MST. O n 29 - Ano III foi publicado em fevereiro de 1983 e o n 30, em março do
mesmo ano. Em geral o editorial ocupava a página dois de cada edição. Apesar de não ficar
evidenciado a existência de um expediente para este jornal, há indícios de que a organização do
mesmo passava pelo crivo de um jornalista ou alguém vinculado à área de comunicação social. Neste
momento, a responsabilidade sobre as informações veiculadas pelo “sem terra” era do Comitê de
Apoio aos Agricultores Sem Terra.
62
Ainda de acordo com a edição de número 29, o Boletim procurou trazer à luz
informações acerca da proposta de reforma agrária do INCRA, órgão do governo
federal, demonstrava também a insatisfação de alguns colonos frente à abertura de
novas barragens na área rural. Por fim, convocava a sociedade para protestar contra
o modelo de governo em curso, apresentando dados relevantes sobre a violência no
campo, fruto da ordem instituída.
A última página trazia a informação sobre o resultado obtido com a reunião
da Comissão Nacional dos Sem Terra, desembocando numa avaliação do
movimento, cujo conteúdo seria a formação de uma articulação nacional para os
sem terra. Segundo o jornal, tal ação não seria possível nesse momento, pois: “não
daria para se pensar numa articulação nacional dos sem terra pela ausência de
condições concretas de organização... no entanto, seria possível articular a luta a
partir de situações concretas em regiões já organizadas”65. Ou seja, representava
que o movimento ainda não estava concretamente “espacializado”, sendo preciso
organizar com mais afinco os trabalhadores nas regiões aonde já existissem
condições concretas de expansão da luta, dessa forma, a proposta do jornal visava
contribuir para esta espacialização do movimento.
Não obstante, o documento apresentava uma seção de notas em que
figuravam informações diversas, destacando os registros das assembléias gerais
nos assentamentos e acampamentos, manifestos sobre atos de violência e
crueldade no campo, denúncias sobre os contratos frios de empresas colonizadoras
e, ainda, dados sobre o latifúndio no Brasil, sob a ótica de técnicos do IBGE,
representando o próprio governo federal.
65
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
o
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n 29, Ano III. Porto Alegre, fevereiro de 1983.
63
Em julho de 1984, iniciou-se a terceira fase do jornal, momento em que este
ganhou uma nova nomenclatura, passando a ser denominado de Jornal dos
Trabalhadores Sem Terra. Sediado ainda em Porto Alegre - RS, o periódico foi
reconhecido oficialmente como órgão do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
da Regional Sul, compreendendo os estado do RS, SC, PR, MS e SP, com
expediente jornalístico constituído sob a responsabilidade de Flademir Araújo, RP
4.805. A edição de no 36 circulou com dezesseis páginas e alcançou a tiragem de
dez mil exemplares (uma das maiores tiragens até então).
A formatação também sofreu grandes modificações, tanto nas manchetes de
capa, como nas notícias do corpo do jornal, passando a figurar sempre uma ou mais
fotografias que visavam instigar o leitor a acessar as informações trazidas. Dessa
forma, criava maior condição de compreensão das notícias por parte dos
trabalhadores que não tinham acesso à cultura letrada 66 , formando um enorme
contingente de homens e mulheres analfabetos.
Para exemplificar, a edição trouxe como manchete principal: “Ivinhema
desponta uma esperança”, e como submanchete de capa: “Bóias-frias: usineiros não
cumprem acordo”. Como editorial, figurou o seguinte título: “Maturidade Política”67,
66
Apesar de haver índices significativos de analfabetos entre os trabalhadores rurais organizados no
MST, de acordo com o IBGE, estudos do setor de educação do Movimento sinalizam que os mesmos
manifestam desejos latentes de superação do analfabetismo na certeza de desenvolverem
habilidades leitoras e escritoras para poderem, então, enfrentar os discursos proferidos por vários
segmentos da sociedade. Fonte: IBGE - Censos Demográficos, Anuário Estatístico/ 1995. Cf.:
SOUSA, Marcelo Medeiros Coelho. O analfabetismo no Brasil sob o enfoque demográfico.
Brasília, abril de 1999. Com base nos dados do MEC, IBGE e INEP, no período de 1996 a 2006
ocorreu uma significativa queda na taxa de analfabetismo no país, correspondendo a 29,1%.
Entretanto, nesse ínterim, os indicadores registram uma triste realidade: no período de 1991 havia no
Brasil mais de 19 milhões de analfabetos; em 2003 mais de 16 milhões e, em 2006, mais de 11
milhões. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) revelou que em 2004 a
taxa de analfabetismo na área rural era de 28,7%. O mesmo instituto de pesquisa avaliou a taxa de
analfabetismo nos acampamentos e assentamentos do MST, constatando que o índice de
analfabetismo nestes espaços correspondia a 23%. Consultar: VARGAS, Maria C. Por um Brasil
sem analfabetismo. Disponível em: <http://www.mst.org.br/jornal/270/realidade%20brasileira>.
Acesso em: 27/03/2010.
67
Nesse instante, entende-se que o jornal já está atingindo parte de seus objetivos: levar aos cantos
mais remotos do país informações sobre a organização dos trabalhadores rurais sem terra e mostrar
64
com a presença de considerações históricas arrolando as condições de vida a que
estavam submetidos os trabalhadores do campo e da cidade ao longo de sua
trajetória. Ainda nesse sentido, destacava-se, particularmente, a questão da terra e a
ausência do acesso a esta por parte dos trabalhadores.
O editorial denunciava a grande concentração de terra em todo o país e o
enorme contingente de famílias sem terra ou com terra insuficiente para sobreviver.
Com base em dados apresentados por sindicatos rurais, federação dos
trabalhadores e institutos de terras, para o jornal “somente nos cinco estados do sul
do país existem 700 mil famílias de lavradores sem terra e calcula-se que existam
três milhões de famílias na mesma condição em todo o país”. Este número
aumentaria à medida que o movimento estivesse organizado, confirmando, portanto,
a sua espacialização.
Segundo o jornal, a partir da implementação das ações orientadas pelo MST
tornou-se evidente um desejo latente de “reprimir os lavradores e trabalhadores,
mobilizando desde fazendeiros até altos escalões da Segurança Nacional, inclusive
alguns Jornais da grande imprensa” 68 , na tentativa de distorcer os fatos com a
prerrogativa de criar uma atmosfera confusa entre o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra e setores da sociedade que o apoiava.
A mesma fonte evidencia que havia constante “repetição dos velhos
argumentos em dizer que existem elementos [grifos meus] infiltrados no movimento
o atraso que o país vivia com relação à distribuição da terra e à miserabilidade social pelas quais
passava parte significativa de sua população. O Editorial desta edição esclarecia que o
“amadurecimento político dos lavradores fez com que eles tivessem condições de entender esta
situação e quais interesses estavam em jogo”. Salienta que “a paciência se esgotou e os sem terra
partiram para iniciativas mais eficazes para garantir os seus direitos”, provavelmente pela ocupação
em massa de propriedades e espaços públicos e particulares. JORNAL DOS TRABALHADORES
SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2.
68
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2. Nessa
perspectiva, observa-se a construção de alianças do MST com determinados setores da sociedade,
desencadeando uma tensão nos discursos propalados pelas duas forças políticas opositoras:
Movimento Social e Governo.
65
incitando os trabalhadores”. Porém, os trabalhadores não se cansavam de
argumentar que, ao contrário do que era aventado por setores conservadores do
governo e pela “grande imprensa”, o motivo que os levaram à organização “é a fome
e a miséria”.
O Movimento é uma organização própria dos lavradores e que
são apoiados desde a sua essência por Sindicatos, Igrejas e
setores da própria sociedade, alegando, ainda, que seu
interesse é claro e legítimo: uma reforma agrária, sobre há qual
muito se fala e pouco se faz.69
Enfim, a formatação do jornal nessa terceira etapa apresentava na segunda
página o editorial e na seqüência informações sobre a luta dos trabalhadores em
cada estado, onde o movimento estava organizado ou em fase de organização. No
estado do Paraná, a matéria intitulada “Mastro coordena ocupação em São Miguel”
informava sobre a ocupação de uma área de setenta mil alqueires no município
acima citado, localizado a 100 km do município de Cascavel – PR, numa ação que
mobilizou cerca de 61 famílias de agricultores sem terra. Para os trabalhadores, a
ocupação feita nesse município deveu-se ao temor do INCRA em assentar outras
famílias de áreas em conflito, “deixando-nos mais uma vez no escanteio”70.
Na página seguinte figuraram informações referentes ao assassinato de
lideranças do Movimento, além da denúncia de lavradores “iludidos” pelo governo ao
aceitarem o convite em deixar o movimento e irem desbravar áreas da Amazônia.
Na página 5, as informações eram sobre o Pontal do Paranapanema - SP,
sob o título: “Acampados pedem apoio em Andradina”, seguida de outra matéria
pressionando o poder público para regularizar a vida das 60 famílias acampadas em
parte da Fazenda Primavera, alocada no trecho da Rodovia SP 363, no estado de
69
70
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2.
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.2.
66
São Paulo. Tal reportagem destacava: “lavradores de Pontal não aceitam a demora”,
revelando uma enorme tensão entre os governos e o movimento. Como manchete
de capa, figurava a seguinte matéria: “Ivinhema: lavradores resistem ao cerco e à
pressão policial”. Trazia, também, na seção Entrevista – a fala de uma importante
personalidade da Igreja Católica, o Presidente Nacional da Comissão Pastoral da
Terra, D. José Gomes, que na entrevista assinalava que “a Igreja mudou. As classes
dominantes não aceitaram a sua nova postura”.
Frente à indagação feita pelo Jornal Sem Terra, procurava-se evidenciar
fragmentos dos discursos dos aliados do MST atribuindo destaque à seguinte
questão: “Como a Igreja vê a situação do país e principalmente as lutas dos
trabalhadores?” O religioso foi incisivo ao afirmar:
Nós sabemos que o Brasil enfrenta uma profunda crise, cujas
raízes estão no sistema desenvolvimentista que o país adotou
em que se privilegia, de modo especial, o capital multinacional,
de natureza extremamente exploradora, fazendo com que uma
grande faixa da população viva na mais absoluta miséria. No
caso dos trabalhadores rurais, há um projeto claro do governo
para evacuar [grifos meus] as pessoas do campo para as
cidades, oferecendo assim mão-de-obra barata para as
indústrias.71
Nesta oportunidade, outra questão aventada pelo jornal reportava-se à
postura adotada pela Igreja Católica em se aproximar mais das tensões no campo
71
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. Seção Entrevista - D. José Gomes,
Presidente Nacional da Comissão Pastoral da Terra. MST, julho de 1984. p.8. A exposição dos títulos
das notícias veiculadas pelo JST, nesse momento, expressava o desejo de mapear a espacialização
da luta também nas páginas do periódico e não apenas no espaço geográfico. Pretendia, ainda,
revelar a dialética entre as ações impetradas pelos integrantes do MST no campo e suas
repercussões nas páginas de seu jornal. Não obstante, dez anos após essa entrevista, o pesquisador
americano RIFKIN assinala que em vista da proposta do avanço tecnológico na agricultura em escala
mundial, prometendo-se maior produtividade e redução da mão-de-obra de forma progressiva, “não
resta dúvida de que num futuro próximo o preço humano do progresso será assombroso ao passo
que centenas de milhões de agricultores em todo o mundo enfrentarão a perspectiva de sua
eliminação permanente do processo econômico”. Cf.: RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o
declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo:
Makron Books, 1995. p.137.
67
envolvendo os trabalhadores rurais e também sobre as críticas ferrenhas advindas
do governo e de setores da sociedade. Nesse sentido, o Bispo salientava:
Com o Concílio Vaticano II, a Igreja sofre um processo de
transformação de ação pastoral. A Igreja sentiu o drama das
populações marginalizadas e quando se voltou a estas recebeu
a reação agressiva das classes dominantes que sempre
tiveram na Igreja uma força de sustentação de seus
privilégios.72
Na seqüência, a seção - Nos estados - revelava as tensões prementes nas
Unidades da Federação onde o movimento estava organizado, destacando-se aqui
alguns títulos de suas matérias: “Catarinenses denunciam Pró-terras”; “lavradores
cobram promessas”, “Encontro oficializa comissão em Rodeio Bonito”73.
Na seção Opinião, esta edição trouxe o artigo de opinião do Frei Sergio A.
Gorgen. Sob o título “Reforma Agrária é o nosso objetivo”, informava que “a reforma
agrária retornou à mesa dos debates nacionais e continua a ser a principal
reivindicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, assim como
continua despertando as iras e a violência dos grandes latifundiários”74.
A edição, ainda, trouxe uma seção especial denominada de “Guariba”, cuja
matéria intitulou-se “Vitória dos bóias-frias ameaçada” 75 . Nesta, oportunidade os
cortadores de cana se mobilizaram de tal forma, que nem mesmo eles tinham a
dimensão real das conseqüências, que o gesto de não trabalhar na manhã do dia 15
de maio de 1984, poderia causar.
72
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.8.
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.10.
74
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.11.
75
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Ano III, n.36. MST, julho de 1984. p.12. Sobre o
assunto ver: PEREIRA, M. D. C. T. A greve dos Bóias-frias de Guariba e a repressão de maio de
1984. Dissertação (Mestrado em História), FFLCH/USP, São Paulo, 2001. BEZERRA, Antonio Alves.
Bóias-frias e a mecanização nas usinas de açúcar e álcool no Oeste Paulista: 1960-2000.
Dissertação (Mestrado em História Social), PUC/SP, São Paulo, 2002.
73
68
Sobre o assunto, o sociólogo José de Sousa Martins publicou o artigo “A
Explosão previsível”. Na mesma seção era noticiado que os trabalhadores rurais
iniciaram greve em todo o estado de São Paulo para que pudessem assegurar o
acordo celebrado entre sindicato da categoria e usineiros, que ameaçavam com o
não cumprimento do mesmo. A partir de então, percebe-se que houve significativa
abertura no periódico à incorporação do discurso acadêmico como proposta de
mediação dos conflitos e abertura para o diálogo.
Enfim, a mais recente fase do jornal bem como a sua nova formatação foi
traduzida pela seguinte composição:
Em junho está prevista a primeira edição do Jornal dos
Trabalhadores Sem Terra, formato tablóide – isto quer dizer o
dobro do atual boletim – 12 páginas, tiragem inicial de 10 mil
exemplares e com circulação Regional Sul e outros estados do
país. A decisão de transformar o Boletim em Jornal foi tomada
no Encontro Nacional dos Sem Terra, realizado em Cascavel,
PR, no começo do ano. Uma equipe de 10 jornalistas
trabalhará na edição do jornal que vai continuar com a
colaboração dos próprios lavradores, pessoas ligadas ao
trabalho pastoral, aos sindicalistas e estudiosos da
problemática agrária.76
Na condição de jornal, portanto, suprime-se a idéia de Boletim Informativo,
buscando-se tecer novos contornos para o veículo de comunicação e para o próprio
MST. Isso era uma tentativa de implementar uma pauta de luta para ambos,
sinalizando, conseqüentemente, para a profissionalização do jornal.
A princípio, o sucesso anunciado do jornal viria com a implementação de seu
objetivo
76
inicial:
acompanhar,
registrar
e
divulgar
nos
assentamentos
e
Nesse encontro se constitui oficialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST,
definindo-se a sua linha mestra de reivindicações, bem como a linha de atuação do jornal. Com ele,
nasce o porta-voz dos trabalhadores rurais, assumindo o compromisso de informar o trabalhador
acampado ou assentado, com a intenção de difundir suas angústias, suas experiências de lutas, suas
conquistas e suas decepções ou representações acerca das questões vivenciadas. JORNAL DOS
TRABALHADORES SEM TERRA. MST, abril de 1984. p.2.
69
acampamentos os percursos do MST – mostrando os avanços da luta, os
retrocessos e elaborando novas estratégias de enfrentamentos, buscando construir
uma identidade77 coletiva para os trabalhadores:
Em suas páginas, desde os primeiros números, se preocupou
em mostrar o dia-a-dia dos integrantes do movimento, às suas
reivindicações, às promessas não cumpridas do governo e
denunciar [grifos meus] sistematicamente as investidas da
repressão desde a atuação da PM assim como a da Polícia
Federal.78
Em face disso, o jornal buscava se fortalecer politicamente assumindo o
título de porta-voz dos trabalhadores rurais sem terra, na tentativa de esclarecer a
sociedade brasileira urbana e rural sobre o modelo de política pública agrária que o
governo tentava implementar. Porém, segundo os trabalhadores rurais, movimentos
sociais
organizados,
sindicatos,
cientistas
políticos
e
sociais,
geógrafos,
antropólogos e historiadores, esse modelo torna-se inviável e incapaz de sanar as
tensões no campo legadas historicamente.
Contudo, enquanto ferramenta de comunicação, seus registros revelam
claramente o impasse entre movimento social, governo e a sociedade (tema que a
presente pesquisa buscará abordar em capítulos subseqüentes).
77
Apesar da complexidade do conceito de identidade, este trabalho o compreende como uma
“construção histórica”, logo indissociável das experiências humanas, conforme indica: SILVA, K.;
a
SILVA, V. Identidade. In: Idem; SILVA, V. Dicionário de Conceitos Históricos. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2006. p.202-5. Reportando-se ao conceito de identidade e à crise de identidade, valho-me
a
das reflexões de: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006. p.7. Segundo esse autor, “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o
mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo
moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”. Para esse autor, é nesse cenário que vai emergir
o termo “crise de identidade”, sendo esta “parte de um processo mais amplo de mudanças, em que se
deslocam às estruturas e processos centrais das sociedades modernas abalando os quadros de
referências que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. Portanto, é nesse
cenário de tensão e incertezas que o MST e seus integrantes se firmaram enquanto sujeitos sociais
comprometidos com a transformação contínua dos grupos sociais à margem da sociedade brasileira.
78
O trecho citado procura desvendar a ampliação de seu público leitor, não somente em termos de
espacialização do Movimento, mas na tentativa de formar a opinião das pessoas sobre suas ações e
as investidas do governo para conter os anseios dos trabalhadores rurais sem terra. COMITÊ DE
APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos
Agricultores Sem Terra. Ano II, n.25. Porto Alegre, julho de 1982. p.1.
70
1.3 JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA
Em termos de atuação política, o jornal em destaque ganha maior
visibilidade a partir da realização do Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
realizado na cidade de Cascavel - PR, em 1984. Foi nesse momento que se decidiu
pela formação do MST enquanto organização autônoma, porém, esse necessitava
de um “órgão de divulgação amplo que atingisse os assentamentos e
acampamentos em todo o país”.
Como instrumento de formação e de luta, não se pode desprezar o caráter
político-ideológico deste jornal frente aos trabalhadores rurais. Por outras razões, a
presente pesquisa busca dialogar com este como objeto de investigação, mas
também como sujeito histórico, nutrido de experiências sociais, culturais, políticas e
religiosas ao longo de sua trajetória.
Em 1985, logo após a realização do 1o Congresso Nacional do MST,
realizado em Curitiba no mês de janeiro, o periódico, que antes era impresso na
cidade de Porto Alegre (como já explicitado anteriormente), transfere-se para a
cidade de São Paulo79 (sediado à Rua Ministro de Godoy, 1484). Essa mudança
facilitou de certa forma a sua “organização tanto do ponto de vista político como do
ponto de vista estrutural e de divulgação”, pautando-se pelo ideal de “melhorar o
nível das matérias veiculadas em suas páginas, aprofundando-as e dando-lhes
maior perenidade”. Assim, este procura “aperfeiçoar a qualidade de suas
79
Com base numa das deliberações do I Congresso Nacional do MST, a Secretaria Nacional do
Movimento transfere-se para essa cidade, trazendo consigo os integrantes do Comitê de apoio
responsável pela editoração do jornal. Essa atitude justificava-se perante o crescimento da
organização e a conseqüente espacialização da luta pela terra em todo o país, uma vez que, estando
o jornal na cidade de São Paulo haveria maior agilidade em sua distribuição. A fonte evidencia que, a
partir de então, o Movimento passa a se espalhar pelo país, organizando-se principalmente nos
estados das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste (assunto a ser retomado no capítulo três).
71
informações no intuito de que os militantes e simpatizantes do MST pudessem fazer
uso deste como instrumento de formação”80.
Nesse instante, o jornal conta com um expediente constituído, buscando
expandir a sua tiragem e chegando a imprimir cerca de 40 mil exemplares em
algumas edições. Esse aumento é singular para um “jornal classista”81, sobretudo,
quando este não apresenta fins lucrativos para o seu custeio.82
Provavelmente, entre os fatores responsáveis pela ampliação do jornal
destacam-se os de razão política, que refletiram diretamente nos acampamentos e
assentamentos, uma vez que, o periódico era entendido como ferramenta de
formação política e de aperfeiçoamento de estudos entre os militantes do
Movimento.
Nesta perspectiva, o próprio jornal demonstrava preocupação com relação à
qualidade e teor da informação levada aos trabalhadores e a repercussão que esta
gerava em um público cada vez maior. Uma pesquisa realizada pelo jornal junto aos
80
Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Edição Especial - “15 anos do
Jornal”. MST, agosto de 1996. p.7. Não obstante, apesar de boa parte dos trabalhadores rurais
organizados no MST serem analfabetos, os estudos educacionais sinalizam que os mesmos
manifestam desejos latentes de superação do analfabetismo, como já discutido acima.
81
Nesse momento, o emprego do termo “jornal classista” dá-se por este representar, exclusivamente
e de forma direta, os anseios dos trabalhadores rurais sem terra enquanto movimento social,
pertencentes, portanto, a uma classe. Em face disso, o periódico se coloca como “instrumento
organizador coletivo”, aceito por suas bases como “um veículo formador da classe trabalhadora, onde
se veiculam as idéias, as propostas de luta, onde as bases, os militantes podem realmente aprender,
discutir, debater e avançar politicamente [...]”. Revelando, dessa forma, que os processos
representam o fenômeno histórico da luta entre as classes, e que essas experiências cedem lugar às
práticas sociais, quando desenvolve a consciência, a organização e a resistência dos trabalhadores,
construindo, enfim, a identidade de classe. Cf.: FERNANDES, Bernardo M. MST: Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. Formação e Territorialização em São Paulo. São Paulo: Hucitec,
1996. p.25. Ver também: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de
1991. p.12-3.
82
Analisando o jornal, percebeu-se a ausência de anúncios pagos ou espaços destinados a essa
finalidade. A partir do mês de abril de 1988, passou a figurar a cobrança de um valor pelo mesmo
(CZ$ 50,00 ou 0,5 % OTN), oscilando conforme a inflação vigente. A título de exemplificação, o custo
desse jornal no mês de setembro do mesmo ano, chegou a custar CZ$ 120, 00, mais que dobrando
de valor. Porém, a pesquisa com o jornal não evidenciou a quantidade de assinantes que o mesmo
possuía nesse período, o que inviabiliza uma precisão referente à procedência dos recursos que o
mantinham. Mesmo nesta condição, o jornal trazia na última página uma ficha impressa para quem
desejasse fazer a assinatura. Nesta destacavam-se o valor da assinatura, a quantidade de
exemplares a ser recebido, o endereço da sede do jornal, a sua tiragem e seu expediente.
72
trabalhadores rurais sem terra, em julho de 1996, desenha o perfil de seu leitor
sinalizando algumas possibilidades de reflexão:
Consultados sobre a freqüência com que liam o jornal, 590
pessoas assinalaram que fazem sempre, 679, às vezes, e 255,
raras vezes. Sobre o conteúdo do jornal, 466 pessoas
assinaram a referência ótima, 696 boa, 215 regular e 78
deficientes. Com relação à ilustração das matérias, 634
informam serem ótimas, 620, boas, 239, regulares, 107
insuficientes. Sobre a utilização do jornal, a leitura individual
recebeu 667 referências, a leitura em grupo 482 e o repasse
para os amigos 354. Consultados sobre a linguagem do jornal,
530 pessoas afirmaram que é ótima, para 537 é boa, para 108
acham-na regular e 99 a consideram difícil.83
Os dados desta pesquisa são exemplares para se pensar na representação
social que os trabalhadores tinham de si, dos outros e do próprio MST no qual
estavam inseridos. Sem menosprezar outros dados desta pesquisa, há certa
singularidade no que se refere à solidariedade entre os trabalhadores ao se afirmar
que 482 destes leitores liam o jornal em grupo.
Em face disso, observam-se, também, as respostas dadas à questão sobre
as ilustrações (fotos, mapas, tabelas, gráficos...) que o jornal trazia mensalmente. O
número de pessoas pesquisadas que acharam o conteúdo ótimo torna-se exemplar,
à luz de que, em sua maior parte, esses trabalhadores rurais dispunham apenas de
formação primária ou apresentavam nenhuma escolaridade. Essa informação,
portanto, leva a presente pesquisa a entender que a leitura das imagens, feita pelos
trabalhadores, os levava a interpretarem a informação com maior facilidade,
justificando, assim, a aceitação das ilustrações do jornal.
O volume deste periódico variava entre doze e vinte duas páginas ao longo
de sua trajetória. Para tanto, a quantidade de folhas utilizada em cada número
83
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1996. p.7.
73
estava associado ao teor das tensões e enfrentamentos presentes no campo até o
fechamento de cada edição. Quanto à tiragem e circulação do jornal, esta passou a
ser regularizada mensalmente, havendo pequenas oscilações entre os meses de
dezembro e janeiro, momento no qual as tensões no campo aparentemente se
tornavam amenas, suprimindo-se num único número dois meses de informação.
Neste
sentido,
deve-se
levar
em
consideração
o
processo
de
transformação84 deste jornal, sendo o mês de outubro de 1988 um marco para sua
última fase, sobretudo, no que se refere a sua nomenclatura. Todavia, houve
mudanças significativas em sua formatação, atribuindo maior visibilidade aos seus
editoriais e suas entrevistas.
Nessa etapa do jornal acrescentou ao seu nome a palavra “rural”, passando
a ser chamado de Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A inserção desta
palavra representa um compromisso direcionado aos anseios do homem do campo,
particularmente àqueles desprovidos da terra, não evidenciando, no entanto,
rupturas com o homem urbano. Portanto, o jornal emerge das transformações e
experiências ocorridas no seio da sociedade, em particular, no embate político do
dia-a-dia dos sujeitos sociais, nas tensões implícitas e explícitas envolvendo o
cotidiano do homem rural e urbano, compondo, assim, a trama histórica.85
84
Para Aguiar, “a vida dos jornais alternativos é longa e variada na história brasileira, sempre com a
marca da efemeridade (grifos meus). Os alternativos são exemplos de uma característica da vida
cultural brasileira: a continuidade dentro da descontinuidade”. Para tanto, essa pesquisa revela que
até o presente o jornal do MST foge aos padrões da efemeridade, uma vez que este se atualiza
fazendo frente à política vigente no país, buscando o seu aperfeiçoamento enquanto meio de
comunicação de classe na tentativa de efetivar o seu comprometimento com as causas sociais do
MST e de outros movimentos sociais que compartilham dos seus ideais. AGUIAR, Flávio. Imprensa
Alternativa: opinião, movimento e em tempo. In: LUCA, Tânia Regina de; MARTINS, Ana Luiza
(Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.235.
85
Cabe observar que a mudança no nome do jornal coincide com o término do mandato presidencial
de José Sarney, quando “o MST já está presente em dezoito estados brasileiros, demonstrando
capacidade significativa de organização interna e de ofensiva política, com capacidade de
arregimentar imensos contingentes de famílias sem-terra para suas bases”. O autor esclarece que o
presidente não cumpriu o previsto no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), “cumprindo apenas
e tão-somente cerca de 6% dos assentamentos de famílias previsto no Plano, e grande parte desses
assentamentos, convém sublinhar, foi fruto da capacidade de luta e de resistência dos sem-terra”. Cf.:
74
Quanto às responsabilidades pelo teor dos editoriais, eram assinados pela
Executiva Nacional do MST. Os temas tratados geralmente se reportavam à
macroeconomia; política social vigente; violência no campo; atuação precária do
poder público, frente às questões de segurança no campo; educação dos
integrantes do movimento e; de uma forma mais precisa, ao anseio por uma ampla
reforma agrária para todo o país.
Com seu “novo” nome e com “nova” formatação, a edição de no 77 trouxe
como manchete de capa o título: “Resistência garante conquista da terra”, além de
duas entrevistas que marcavam fortemente a tendência política do jornal nessa sua
quarta fase. Não obstante, o seu novo formato manteve o enfrentamento com
integrantes do poder constituído, coincidindo com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, documento polêmico no que se referia à reforma agrária, criando
toda uma atmosfera de distanciamento entre os trabalhadores rurais e o desejo de
acesso à terra.
A interpretação das informações contidas nas páginas do periódico
evidenciou que este não fechou os “olhos” para os acontecimentos. Pelo contrário,
buscou responder à altura como um grande opositor ao governo e às forças políticas
em voga.
Sendo assim, deve-se potencializar a força política deste jornal frente aos
novos desafios presentes no campo e nas cidades, sobretudo, quando rompiam com
as cercas das fazendas, ocupavam as margens das estradas e rodovias, onde os
integrantes do MST encontravam-se acampados, apropriando-se de forma
expressiva da arena política.
COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.81.
75
Não obstante, esta edição do jornal apresentava algumas particularidades
em relação a sua “nova” formatação e apresentação: observa-se que a cor púrpura,
que em geral ocupava a primeira capa do jornal, neste momento é substituída pela
verde, indicando possível associação do movimento rural com o revolucionário
urbano.
Ainda nas páginas desta edição, o editorial intitulado “Vencer as eleições
para avançar na luta” demonstrava que o MST era um movimento social e
politicamente organizado, com pretensões além da simples conquista de um pedaço
de terra. Portanto, o Jornal figura na trajetória do Movimento como sujeito que
colaborou na construção da luta, buscando politizar as experiências dos
trabalhadores rurais, visando projetá-los no cenário político nacional e internacional,
além de tornar possível a efetivação da espacialização da luta pela terra em todo o
Brasil.
Para tanto, persegue-se as pretensões do jornal enquanto veículo de
comunicação e formador de opinião, revelando as transformações sociais e
contextualizando as informações na perspectiva de ampliar o universo de formação
e de ação dos trabalhadores rurais sem terra que almejam a reforma agrária e
transformações sociais mais profundas:
O Brasil vive uma das maiores crises econômicas dos últimos
dez anos, com inflação no mês de outubro de 28,6% e um
índice previsto para novembro de aproximadamente 35%,
agravando ainda mais a situação dos trabalhadores com
defasagem de 5 a 6% ao mês. Os trabalhadores rurais também
estão perdendo seu poder aquisitivo de compra e venda [...].
As eleições municipais adquirem um significado especial e
singular: 1) são as primeiras eleições gerais para prefeito pósregime militar; 2) estas eleições serão um teste para as forças
políticas, principalmente nas capitais, em que formarão a base
política nos municípios para as eleições presidenciais [...]. Só
de promessas estamos cansados, vamos construir uma nova
proposta, um novo tipo de trabalhador nos nossos municípios.
76
Nós já temos como Movimento a experiência de que a luta só
vai pra frente com o povo participando e decidindo os rumos. É
assim que estamos construindo nos assentamentos a
cooperação agrícola; nos acampamentos, nos organizando
para enfrentar a burguesia.86
O trecho acima evidenciava a busca pela construção da identidade do MST,
como força política articuladora dos trabalhadores rurais sem terra arregimentados
em seu entorno. Dessa forma, o excerto destacava a plataforma política na qual o
país estava assentado, sobretudo no que tange à questão econômica, denunciando
fartamente os altos índices de inflação, os baixos salários e o encarecimento dos
preços dos produtos, que impossibilitava a inserção dos trabalhadores na economia
e na vida produtiva, alargando ainda mais as desigualdades sociais em todo o país.
Na seqüência, o editorial se posicionava acerca das eleições municipais,
acenando um possível apoio do MST aos partidos políticos comprometidos com os
anseios dos trabalhadores rurais sem terra. O jornal entendia que a vitória de
vereadores e prefeitos no pleito eleitoral de 1988, nortearia um possível apoio à
candidatura de um presidente da República (eleições de 1989), que compartilhasse
dos ideais dos sem terra, estando comprometido de antemão com a questão agrária
86
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.77, ano VIII. Seção “Nossa Posição” “Vencer as eleições para avançar na luta”. MST, outubro de 1988. p.2. Neste momento, a direção do
jornal estava sob a responsabilidade de Antonio Eleilson Leite, sendo o Editor responsável Sergio
Canova (RP 4.512-15-71), redação: Juan A Pezzuto, Rose Marinho e Antonio Leite. Em algumas
edições do periódico em estudo, procurou-se identificar os temas abordados, utilizando-se do espaço
denominado de seção, atribuindo destaque a este, pois na maioria das vezes ele vinha escrito em
negrito, itálico e/ou sublinhado. Era como se fosse um tipo de coluna, que indicava ao leitor onde
estava localizado cada assunto. Essa estruturação não esteve presente em todos os números
pesquisados até porque o jornal se configurou ao longo de sua trajetória com muita dinamicidade. A
título de exemplificação, a seção “nossa posição” representava, às vezes, o editorial da edição; a
“seção mulher” geralmente trazia informações sobre uma maior participação da mulher no Movimento
ou no cenário político em âmbito nacional, estadual ou local; a “seção formação” trazia textos que
deveriam ser lidos e discutidos pelos trabalhadores rurais no momento de formação (às vezes era
uma entrevista, um artigo de opinião, uma resenha de livro, um relato, não existindo um gênero
específico para essa seção); na “seção violência” o jornal desnudava os crimes e denunciava os
nomes dos possíveis envolvidos nas chacinas, nos atos de destruição de acampamentos ou
assentamentos, entre outros.
77
e outras de cunho social. Possivelmente estariam se referindo ao recém fundado
Partido dos Trabalhadores - PT.
O editorial demonstra uma pauta que definia a implementação da luta dos
trabalhadores rurais, evocando-os a lutar e não a esperar pelas promessas políticas
não cumpridas anteriormente.
Esta edição, além de apresentar uma nova equipe técnica, trouxe mudanças
na sua composição gráfica, definindo melhor sua pauta de atuação sem a pretensão
de descaracterizar-se enquanto ferramenta de comunicação entre os trabalhadores.
Dessa forma, as matérias figuraram com mais conteúdo político, e na maioria das
vezes, acompanhadas por fotografias, que atestavam o fato, visando à
simultaneidade do transcorrer da notícia. Em geral, as fotografias procuravam
evidenciar a combatividade deste sujeito social, que se “antes dizia sim, agora
aprendeu a dizer não” às forças políticas em voga e contrárias aos seus anseios.
Sem a pretensão de análise neste momento, as fotos presentes no jornal tendiam a
exaltar a coragem do trabalhador imbricado na luta, manifestações e ocupações,
sem representar seus medos e incertezas.
Os títulos das matérias corroboravam esta afirmação: “Os trabalhadores
denunciam a entrega de terras a empresários no sul do país” e “I Romaria da Terra”
(p.4); “Luta e Solidariedade”, “Sem terra defende ocupações” (p.5); “Reforma agrária
é a gente que faz”, “Advogados pela justiça social” e “Mobilização conquista acordo”
(p.6); “Romaria pela terra”, “Triunfa a firmeza” e “Governo não cumpre compromisso”
(p.7); “Os lavradores não desanimam”, “MST exige negociação” e “Unidade operáriocamponesa” (p.8); “Mulheres rurais disputam eleições municipais” (p.9); “Para que
servem as eleições municipais?” (p.10-11); “Laboratório experimental: formação para
assentados” (p.12-13). Estas matérias encontravam-se na seção Nos Estados.
78
Tendo, na seqüência, a seção Igreja, na qual figurava a entrevista com D.
Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia – MT, que ao falar da
Constituição Federal, pontuava como um documento “contra a reforma agrária”.
Norteando uma pauta de enfrentamento ao governo, o jornal assinalava a magnitude
política da Constituição de 1988. No texto intitulado: “O caminho da Reforma
Agrária”, de João Caetano do Nascimento (editor chefe do jornal), sinalizava para o
percurso que o jornal iria seguir no sentido de dar transparência aos fatos sociais
que, a seu ver, o governo pretendia omitir ou manipular:
Fizeram uma lei que não leva em consideração às milhares de
famílias acampadas e nem os doze milhões de trabalhadores
rurais sem terra. É esta realidade social que a nova lei pretende
esconder. [...] É uma Lei desmoralizada, MORTA! Ela não será
respeitada! Uma lei que tornou a luta pela Reforma Agrária
uma luta ‘ilegal’ não pode, não deve e não será respeitada.
Para a UDR, para o Centrão e para o Governo as ocupações
agora serão ilegais. Mas são legítimas para os trabalhadores
que lutam por terra, pão, saúde e educação da sua família.87
O trecho revelava a negação ao celebrado na Carta Constitucional de 1988,
evidenciando uma nova forma de luta (antes velada) por meio da dinamização das
ocupações. Para os trabalhadores rurais, as ocupações como forma de pressão para
a efetivação da reforma agrária, apesar de condenadas pela legislação, eram um
recurso importante e estratégico de luta para se atribuir visibilidade às desigualdades
sociais no campo e, ainda mais, a principal forma de forçar os poderes públicos e a
sociedade a se debruçassem sobre a problemática que persistia em permanecer
cristalizada - o latifúndio.
Deve-se atentar, também, que neste editorial o jornal mapeava, identificava
e apontava os principais aliados e opositores dos trabalhadores rurais como: a União
87
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.76, ano VIII, O Caminho da Reforma
Agrária. MST, setembro de 1988. p.2.
79
Democrata Ruralista – UDR, os parlamentares do Centro, contrários às mudanças
na estrutura social e política do país e, por fim, o próprio Presidente da República,
representado à época na figura do presidente José Sarney. O jornal apresentava a
seguir características negativas da legislação reportando-se as suas conseqüências
políticas:
[...] outra conseqüência desta lei, ao contrário do que dizem os
latifundiários, haverá um grande aumento da violência no
campo. De um lado, nós trabalhadores, movidos pela
necessidade, continuaremos a ocupar a terra. Enquanto isso,
os latifundiários, respaldados pela lei que eles mesmos fizeram,
tentarão proteger os seus latifúndios que nada produzem. Mais
uma vez será a nossa necessidade contra a lei deles.88
A seção de entrevistas configurava-se como um ponto essencial para
compreender a força política e a credibilidade do jornal frente a determinados
setores do meio intelectual, sendo uma forma de ampliação de seus diálogos, além
de uma possibilidade de busca de novos aliados junto à sociedade. Com perguntas
pontuais e objetivas, os jornalistas visavam oferecer aos leitores a oportunidade de
entenderem e problematizarem as ações do MST, redesenhando o cenário político
brasileiro sob a ótica de intelectuais, religiosos e políticos renomados de todo o país.
Para isso, o periódico procurou estender também este espaço aos registros
das experiências de lideranças do quadro da Executiva Nacional e da Comissão
Estadual do MST, que se formavam politicamente nas tessituras do movimento e
nas experiências de lutas adquiridas cotidianamente. A nova postura do JST
possibilitou-lhe uma maior credibilidade enquanto ferramenta de comunicação,
tornando-se um dos principais protagonistas do MST na arena política, como já
salientado.
88
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.76, ano VIII, O Caminho da Reforma
Agrária. MST, setembro de 1988. p.2.
80
A entrevista com Fábio Konder Comparato, jurista e professor do curso de
Direito da Universidade de São Paulo, dentre outros pontos, evidenciou os caminhos
que o MST deveria percorrer após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Apropriando-se de trechos da fala do professor, o jornal sinalizou que esta
Constituição
seria
a
“Constituição
dos
patrões”.
Reportando-se
à
Carta
Constitucional, na tentativa de problematizar os preceitos desta em relação a sua
abrangência no contexto social do país, pontuava que
Ela representa a consolidação da política conservadora, que
tem sido a tônica da Nova República e, especificamente, no
que diz respeito aos trabalhadores rurais, ela representa uma
declaração meramente retórica, sem nenhuma chance de ser
aplicada. Isto, por uma razão muito simples, é que os
constituintes, de certa forma sabendo que os direitos sociais do
trabalhador rural não seriam aplicados, não tiveram dúvida em
estendê-los, em declará-los demagogicamente. Mas, quem
aplica esses direitos, quem controla a sua execução, quem
deve fiscalizar os patrões é o Estado. E o Estado não tem a
menor condição de exercer essa função.89
Outra indagação feita nesta entrevista, pertinente aos interesses dos
integrantes do MST, dos leitores e da sociedade, foi a seguinte: “O que o Senhor
acha das ocupações de terras como forma de luta pela reforma agrária”?
Eu acho que é uma manifestação válida, ela deve continuar,
mas ela é insuficiente, é preciso que os trabalhadores rurais se
dêem conta disso. Não é pela ocupação de terras que vai
resolver o problema fundiário ou agrário do país de um modo
geral. O fundamental é a elaboração de uma verdadeira política
de transformação agrária, de reforma agrária ampla [...]. É
preciso que a organização dos trabalhadores seja completada
pela elaboração de políticas adequadas. Não basta querer
tomar o poder, é preciso saber o que vai fazer com ele;
sobretudo, é preciso convencer as demais classes da
população brasileira da justiça das reivindicações dos
trabalhadores [grifos meus]. A maneira de convencer as demais
classes é mostrar que a reforma agrária é indispensável como
89
COMPARATO, Fábio K. “A Constituição dos Patrões”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. n.77, ano VIII. MST, outubro de 1988. p.3.
81
medida preliminar ao desenvolvimento econômico e social do
país.90
O fragmento da entrevista citado revela que o jornal, como porta-voz dos
trabalhadores rurais, procurou trazer respostas às suas inquietações no que tange
às suas ações coordenadas. A validação dessa prática enquanto possibilidade de
libertação do homem do campo, de poder ter acesso à terra, não parte da visão de
um militante qualquer, e sim de um dos maiores juristas e intelectuais do Brasil.
Considera-se que para o objetivo de convencer a sociedade da importância
da reforma agrária e do reconhecimento das ações do Movimento dos
Trabalhadores Rurais, tornava-se fundamental utilizar-se da palavra impressa.
Tendo em vista que raramente as ações desse movimento conquistavam a atenção
dos grandes veículos de comunicação, os quais poderiam disseminá-las nos mais
diversos setores da sociedade, em busca de apoios. Cabe destacar que “para tomar
o poder tem que tomar a palavra e difundi-la – através de jornais, almanaques,
panfletos, cartazes, estampas, partituras de canções, papelarias, jogos de cartas
[...]”91, símbolos estes que estão intrinsecamente vinculados à trajetória de luta do
Movimento.
Na seqüência, o jornal informava a trajetória do MST em cada Unidade da
Federação, pontuando as tensões latentes nos acampamentos, dentre elas:
ocupações, desapropriações, reintegração de posse, uso da força policial, uso de
milícias particulares (jagunços, pistoleiros e matadores de aluguéis), destruição de
plantações e acampamentos, prisões, mortes e torturas de integrantes e militantes
do MST. Tais denúncias ocupavam constantemente as páginas desta seção. Esse
90
Entrevista com Fábio K. Comparato. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
n.77, ano VIII. “A Constituição dos Patrões”. MST, outubro de 1988. p.3.
91
DARNTON, Robert; ROCHE, Daniel (Orgs.). A Revolução Impressa: A Imprensa na França, 17751800. Tradução de Marcos Maffei Jordan. São Paulo: EDUSP, 1996. p.16.
82
procedimento
se
dava
pelo
silêncio
de
setores
da
“grande
imprensa”,
particularmente dos noticiários veiculados pela televisão, que optavam por não
noticiar as tensões no campo. Nesse sentido, os noticiários operam efetivamente da
seguinte forma:
Em primeiro lugar, se estabelece diferenças no conteúdo e na
forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o
público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos
noticiários diurnos e nos do início da noite, e buscando
sofisticação e apresentação de maior número de fatos nos
noticiários de final de noite. Em segundo, por seleção das
notícias, omitindo [grifos meus] aquelas que possam
desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em
terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma
ordem apaziguadora.92
Frente a essa afirmação, torna-se plausível refletir a respeito do sectarismo
presente em setores da imprensa brasileira, que em alguns momentos, optava por
silenciar as tensões latentes na área rural e no campo social.
92
CHAUÍ, Marilena. Simulacro e Poder: uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2006. p.48. Embora Chauí não esteja se reportando diretamente ao conteúdo elaborado e
veiculado pelo JST, a referência à sua obra torna-se ilustrativa para se pensar e observar como a
mídia impressa e televisiva elabora o seu discurso, e que muitas vezes, por opção, omite as tensões
envolvendo os mais diversos segmentos da sociedade e do governo conforme o seu interesse. Em
face dessa questão, valho-me de suas reflexões no sentido de compreender melhor como o JST
elabora o seu discurso. Para isso, é preciso destacar que o Jornal, para os militantes do Movimento,
foi mais que um meio de comunicação, um símbolo de luta, posto que em sua maioria “se identificam
com ele”. STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a
Luta pela Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.132. Como já observado, o
JST tem suas atribuições na organização e, a partir destas, ele constrói o seu discurso. Portanto, traz
para si a responsabilidade de produzir e “divulgar as idéias corretas de como se organizar
estimulando as reuniões de núcleos, nas comissões de todos os níveis, promovendo diálogos
coletivos e contribuindo com melhorias na organização”, evidenciando a dialética entre o Jornal e
seus militantes, além de um debate latente tanto dentro quanto fora do movimento. Assim, a partir das
reflexões pautadas no conteúdo veiculado pelo periódico, há um anseio de que tais informações, ao
serem compreendidas pelos sujeitos sociais, revelem um “despertar de novos trabalhadores a se
organizarem e a se envolverem na organização já existente” ou “chegando a novas localidades, a
novos municípios, onde não exista nenhuma organização, sendo este um estímulo para que os
trabalhadores tomem iniciativas”, concatenando um debate para fora do Movimento. JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, agosto de 1991. p.12-3. Pesquisando os materiais
expressos nas páginas do JST, sobretudo no que tange à elaboração de seus discursos, observa-se
uma forte inspiração no pensamento de Gramsci, haja vista a sua postura autônoma com a
incumbência de formar uma consciência crítica nos trabalhadores, especialmente no contexto da luta
de classe. Cf.: GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Tradução de
Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
a
Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 2003.
83
Com a nova formatação do jornal, ficou evidente que este se tornaria
também um instrumento de formação dos trabalhadores no âmbito tanto dos
acampamentos, quanto dos assentamentos. O próprio conteúdo expresso na seção
Formação traduziu claramente esta afirmação: “O Jornal Sem Terra, para o MST, já
é mais do que um meio de comunicação. É um símbolo. O militante se identifica, tem
afinidade, gosta dele”93.
A Comissão Pastoral da Terra – CPT (órgão vinculado a setores
progressistas da Igreja Católica) ganhou uma seção na nova formação do JST denominada de Igreja. Sobretudo, devido a suas ações de enfrentamento aos
poderes instituídos e defesa dos anseios dos trabalhadores rurais, além de contribuir
de forma decisiva para a constituição do MST. Diante dessa questão, observa-se
que a CPT colaborou na organização do Movimento em sua “gênese”, uma vez que
Fez um trabalho muito importante de conscientização dos
camponeses [...]. Ela teve uma vocação ecumênica ao aglutinar
ao seu redor o setor luterano, principalmente nos estados do
Paraná e de Santa Catarina [...]. Se ela não fosse ecumênica e
não tivesse essa visão maior, teriam surgido vários
movimentos. A luta teria se fracionado em várias organizações
[...]. A CPT foi uma força que contribuiu para a construção de
um único movimento, de caráter nacional.94
Na entrevista D. Pedro (Bispo de São Félix do Araguaia – MT) manifestava
claramente a posição firme deste setor da Igreja em apoio aos trabalhadores rurais.
93
O trecho citado corresponde à resposta de Stedile à indagação de Fernandes: “Quais são os
símbolos do movimento?” No trecho citado, Stedile responde que “a bandeira, o hino, as palavras de
ordens, as ferramentas de trabalho”, dentre outros instrumentos, proporcionavam a unidade dos
militantes no movimento e descortinam a “realidade política”. Os trabalhadores apropriam-se dos
símbolos como instrumentos que favoreciam a construção da identidade. Assinala-se que “o uso dos
símbolos” em sua trajetória implica na “materialização do ideal”, atribuindo vida a essa “unidade
invisível” do movimento e sua articulação com a simbologia representativa da luta pela terra. Cf.:
STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A Trajetória do MST e a Luta pela
Terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p.132.
94
Ibidem. p.20-1. Na mesma linha de reflexão, Stedile reporta-se a uma fala de José de Souza
Martins para confirmar suas hipóteses: “A luta pela terra no Brasil só terá futuro e somente se
transformará em um agente político importante para mudar a sociedade se conseguir adquirir um
caráter nacional e se conseguir organizar os nordestinos.”
84
Sua fala marcava claramente uma posição quanto ao procedimento adotado pelos
integrantes do MST em ocupar terras no país, objetivando agilizar o processo de
reforma agrária, particularmente, como forma de pressão social frente ao poder
público.
Em resposta à indagação do jornal, D. Pedro considerava que “a ocupação é
um gesto legítimo do povo”, além de uma maneira de se lutar pela reforma agrária.
Nessa entrevista o religioso revelou-se incisivo quanto a sua opinião a respeito da
ocupação da terra pelos trabalhadores rurais como forma de pressão:
Agora, mais do que nunca a ocupação da terra será a única
forma que o povo brasileiro tem para que essa reforma agrária
aconteça. Tenho a impressão de que isso já é uma consciência
assumida. É o gesto legitimo que o povo tem para que a
reforma agrária aconteça: a ocupação da terra no campo e a
ocupação da terra na cidade, para que aconteça a reforma
urbana também.95
Percebe-se, também, que o religioso não separava as tensões do campo
com as da cidade, observando-se a relação intrínseca entre ambas, como palco das
tensões e transformações legadas historicamente. Pontua-se ainda que o papel
desempenhado pela CPT tornou-se singular do ponto de vista estratégico da luta,
além de sua atuação nas comissões de frente, encabeçando os procedimentos de
ocupação:
A CPT no momento da ocupação, ela tem que estar junto. Ela
tem que participar, é assim que nós agimos aqui no estado de
São Paulo, e não fazemos sozinhos. Ao descobrirmos uma
95
D. Pedro, Bispo da Igreja Católica de São Felix do Araguaia - MT. Cf.: JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.77, ano VIII. Seção “Igreja”. MST, outubro 1988., p.14.
A respeito da mudança de postura de determinados setores da Igreja Católica no que tange à
“questão social” e política país adentro, sob a perspectiva do papel desempenhado pelas CEB’s e,
posteriormente, pela CPT, ver: CAMARGO, Candido P. F. Souza; PIERUCCI, Beatriz M. de;
OLIVEIRA, Antonio F. de. Comunidades Eclesiais de Base. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius C.
(Orgs.). São Paulo: O povo em movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/ Cebrap, 1980. p.59-81.
85
terra, achamos que deveríamos ocupar aquela terra, fazemos
uma discussão com o Movimento e vamos pra ocupação, nós
estamos articulados e vamos ocupar juntos.96
Ademais, o jornal abriu a seção – Violência – na qual apresenta as tensões
entre os trabalhadores, governo e latifundiários, despejos com uso da força policial,
mandato de segurança impetrado por proprietários, mandato de busca e apreensão,
ameaças à pessoa humana seguida de morte a mando de proprietários por jagunços
e matadores de aluguel.
Em seqüência, na seção - Entrevistas - sobre o assunto de autoridades
ligadas a grupos humanitários. A entrevista concedida a esta edição era do
representante das entidades sociais, o advogado e Ex-procurador da República,
membro da Executiva Nacional do PT, Hélio Bicudo. O conteúdo tratava da ida do
advogado ao estado do Maranhão, no sentido de acompanhar e pressionar o
governador daquele estado a retirar as forças policiais do acampamento dos
trabalhadores rurais, os quais estavam, naquela oportunidade, impedidos de entrar
ou sair do local:
Ao retornar do Maranhão, o Dr. Hélio Bicudo afirmou que o
governador lhe respondeu que mandará a polícia se retirar da
área ocupada se o Tribunal de Justiça do Maranhão cassar
uma liminar de reintegração de posse que o Juiz de Santa
Luzia concedeu ao fazendeiro pernambucano, Fernando
Brasileiro, proprietário da fazenda ‘Terra Bela’. Bicudo por sua
vez entrou com representação disciplinar e criminal contra o
Juiz de Santa Luzia, acusando-o de ter concedido a liminar em
favor do fazendeiro de maneira irregular, numa evidente
intenção de favorecê-lo.97
96
Padre Severino Leite Diniz (assessor da CPT). Cf.: ALMEIDA, Antonio Alves de. As Lutas Pelas
Terras do Senhor: A Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Estado de São Paulo (1990-2000).
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), PUC/SP, São Paulo, 2005. p.114.
97
Hélio Bicudo, advogado e membro da Executiva Nacional do PT. Cf.: JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Seção “Violência”. n.77, ano VIII. MST, outubro de 1988.
p.15.
86
O periódico apresentava uma seção com informações internacionais,
instigando a formação de um trabalhador rural com uma visão global do mundo em
que vivia. Denominada de América Latina, esta se propunha a trazer informações
destes países, sobretudo daqueles onde afloravam as tensões sociais e políticas
envolvendo trabalhadores rurais e urbanos. Deixando transparecer, portanto, uma
ligeira conexão de informação com grupos sociais organizados nestes países e que
são atores nos embates políticos. Trazia, também, a seção Sindicalismo, mostrando
a participação dos sindicatos rurais e urbanos na organização e no apoio constante
ao MST e suas ações.
Por fim, o periódico apresentava a seção - Balaio de Notícias, num momento
de interação entre os leitores. Nesta eram divulgadas as cartas de solidariedade dos
leitores ao movimento, denúncias de violência, comentários sobre as entrevistas e
editoriais e informações culturais.
Nesse diálogo do jornal, enquanto fonte e objeto de interpretação, outro fator
que merece destaque é que, a partir do mês de março de 1998, na edição de no177,
este se apropriou também do espaço virtual, disponibilizando na internet, em seu site
oficial, esta e as futuras edições do JST, na tentativa de manter de pé o seu objetivo
inicial.
Em 2010, contando com a Revista Sem Terra, 54a edição, com tiragem
bimestral e entrevistas em programas de TV, documentários e filmes que foram
produzidos ao calor da luta pela terra em todo o país, tornaram-se ingredientes
fundamentais para alimentar o portal do MST, configurando outro canal de
comunicação entre a sociedade e o movimento.
Enfim, a trajetória histórica e política do JST, enquanto meio de
comunicação e porta-voz dos trabalhadores rurais sem terra foge aos padrões da
87
efemeridade.
Manteve-se
dinâmico,
organizado
e
antenado
às
mudanças
econômicas, sociais e políticas de seu tempo. Esses motivos levaram-no a superar
os desafios encontrados ao longo de sua trajetória, desfrutando, atualmente, de
certo vigor enquanto meio de comunicação alternativo de um grupo social que foi se
organizando politicamente. Nesse aspecto, portanto, o periódico é observado
[...] como um produto de uma situação concreta; seu conteúdo,
nos últimos anos, é essencialmente configurado por denúncias
das condições reais de vida, oposição às estruturas de poder
geradoras de desigualdades, estímulo à participação e à
organização, reivindicações de acesso a bens de consumo
coletivo.98
O JST como objeto de análise e interpretação das tensões presentes no
campo e na cidade, frente às interfaces da política vigente, explicitou o seu
comprometimento com a qualidade da informação divulgada e a atenção dispensada
à sua missão enquanto instrumento político e formador de opinião. Apesar das
mudanças em sua formação, troca de seus jornalistas, mudança de seu nome por
alternadas vezes, tudo isso não repercutiu em perdas de sua proposta e anseios
enquanto instrumento de formação e de luta para os trabalhadores rurais sem terra.
Em suma, apesar do JST ter adquirido maior visibilidade ao final da década
de 1990, este capítulo rastreou duas de suas três décadas de existência, priorizando
os anos de 1981 a 2001, nos quais seus editoriais, suas entrevistas e outras
informações pertinentes à pesquisa serão apresentadas e discutidas nos capítulos
seguintes.
98
PERUZZO, Cecília K. Comunicação nos movimentos populares: participação na construção da
cidadania. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p.125.
88
CAPÍTULO II - O MST E SEU JORNAL, UNIDOS PELA REFORMA AGRÁRIA
Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito de galo
que ele deu e o lance a outro;
De um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o
lance a outro;
E de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os
fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde
uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.
João Cabral de Melo Neto.
89
2.1 A TRAJETÓRIA DO MST NO ESTADO DE SÃO PAULO
O presente capítulo recupera historicamente a trajetória de luta do MST e de
seus agentes sociais no estado de São Paulo, observado como lócus de mudanças
e transformações. Com base nos editoriais do JST, pretende-se problematizar as
representações sociais dos trabalhadores sem terra, considerando também outros
fatores históricos99 que antecederam à formação do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, além de descortinar possíveis conflitos que envolveram estes
sujeitos sociais ao tentarem efetivar a reforma agrária.
Simultaneamente, evidenciam-se os fatores que fizeram o JST se
profissionalizar, modificando sua linguagem e tornando-a não só informativa, mas,
sobretudo, formativa. Tal afirmação tornou-se visível na tendência editorial do jornal
em questão, quando este buscou corresponder às expectativas da linha de
orientação da Direção Nacional do Movimento.
Por fim, o presente capítulo problematiza a relação do MST com o jornal,
colocando em discussão questões vinculadas à modernização do campo, à situação
do latifúndio e à condição de vida dos trabalhadores rurais sem terra. Também,
descortina a participação de outros agentes sociais, na tentativa de atribuir
legitimidade à luta pela efetivação da reforma agrária em todo o país e, sobretudo,
colaborando na construção da identidade destes trabalhadores: CPT, CEB’s,
Partidos Políticos e Intelectuais, além de assegurar a espacialização das ações
aferidas pelo Movimento em estudo.
99
Segundo Fernandes, “a questão dos sem-terra é histórica. Desde as capitanias hereditárias,
formação dos quilombos, Guerra de Canudos na década de 1890, Guerra do Contestado na primeira
década do século XX, formação das Ligas Camponesas entre os anos de 1950 a 1960 do século
passado, os sem terra vem lutando por um pedaço de terra [...]”. FERNANDES, B. M. O MST
mudando a questão agrária. In: D’INCAO, M. A. (Org.). O Brasil não é mais aquele... Mudanças
Sociais Após a Redemocratização. São Paulo: Contexto, 2001. p.237.
90
Por essa razão, se faz necessário o resgate da história do latifúndio no
Brasil, no intuito de elucidar as questões acerca do processo de exclusão e de
resistência experimentado por parte dos trabalhadores rurais sem terra ao se
firmarem, nesse campo de força, enquanto sujeito social e histórico.
Nesse sentido, São Paulo tornou-se referência para se cotejar os percursos,
fluxos e refluxos do desenvolvimento do capitalismo agrário, enquanto um território
de tensão e poder100. Como exemplo, cabe relembrar que desde os primórdios do
século XIX, com maior repercussão no final do XX e no limiar deste novo século, a
região Oeste, em particular, o extremo oeste, do estado de São Paulo tornou-se
palco de tensões sociais envolvendo pessoas em busca da posse da terra.
As transformações econômicas pelas quais passou a região do
Vale do Paranapanema tiveram diferentes repercussões nas
formas de apropriação das terras. Conforme se desenvolvia,
diversificava-se ou transformava-se a produção, mais agudas
se tornavam as disputas. Isto se ligava ao avanço das lavouras
de café pelas fronteiras agrícolas do Vale nas primeiras
décadas do Século XX e, a partir de 1940, com o
desenvolvimento da cultura algodoeira. Desse modo, o
processo de rápida valorização da terra, conseqüência de
transformações econômicas, sociais e políticas, levava a uma
radicalização cada vez maior das disputas por áreas novas, e
os litígios passaram a extrapolar as instâncias judiciais,
culminando em verdadeiras batalhas entre ‘clãs’ ou indivíduos
que se valiam, no confronto, de verdadeiras ‘milícias
particulares’.101
Dessa forma, a presente pesquisa compartilha com estas idéias e
acrescenta que esta região, atualmente, constitui-se num dos mais importantes
100
A noção de poder será interpretada sob a perspectiva dos seguintes autores: SANTOS,
Boaventura de Sousa. Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum. In: Idem. A
crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. DIAS,
a
Maria Odila L. da S. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. 2 ed. São Paulo:
a
Brasiliense, 1995. BOBBIO, Noberto. Dicionário de Política. 5 ed. Vols.I e II. Brasília: Editora da
UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
101
PENÇO, Célia F. C. A Evaporação das Terras Devolutas no Vale do Paranapanema no
Estado de São Paulo. São Paulo: HVF Representações, 1994. p.15.
91
pólos do desenvolvimento agro-industrial, traduzindo-se, desde os anos de 1990, em
agronegócio.
Ao se dedicarem à produção de soja, cana-de-açúcar, laranja e outros tipos
de citros, além da criação de gado de corte, produção de carne tipo importação e
exportação, leite e derivados, sucos em embalagem longa vida, açúcar e álcool;
percebe-se que as usinas, fazendas e frigoríficos instalados nesta região são os
principais responsáveis pela oferta de postos de trabalho permanentes e
temporários. No entanto, estes vêm, de forma sistemática, substituindo seus
trabalhadores manuais por máquinas de grande porte, ocasionando demissões em
larga escala pela redução de postos de trabalho para a população local e, em
segundo plano para migrantes de outras regiões do país.
A rigor, essa situação criou um fluxo significativo de trabalhadores rurais
dispensados, buscando nova inserção em outros espaços de produtividade. Não
conseguindo êxito tendem a compor as tessituras dos movimentos sociais em curso,
particularmente o MST, tanto em São Paulo como em outros estados.
Dessa forma, compreende-se o processo de inserção dos trabalhadores
rurais ou urbanos nas tramas deste movimento, à luz do desencadeamento dos
enfrentamentos, ações e tensões sociais, frente às exigências do sistema de
produção adotado contemporaneamente pela agroindústria paulista e brasileira.
Nesse contexto, “o território paulista foi apropriado, principalmente, por meio
da formação de fazendas de café” 102, ocasionando a necessidade da aquisição de
novas fazendas contribuindo com a “indústria de grilagem
102
103
de terras,
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1984.
MARTINS, José de Sousa. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1986a. Apud: FERNANDES, B.
a
M. A formação do MST no Brasil. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. p.27.
103
Segundo o Dicionário Aurélio, “grilagem é o sistema utilizado por grileiro que por sua vez é um
individuo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade” (grifos
meus). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
92
compreendida pela falsificação de documentos e outros procedimentos ilícitos”, que
dificultaram o acesso à posse da terra de pessoas comuns. Dessa forma, cabe
destacar a constituição do latifúndio, que se mantém através dos tempos, colocando
em prática um papel previamente definido: a concentração da propriedade nas mãos
de poucos impedindo o acesso à terra por outras pessoas.
A bibliografia citada nesta pesquisa revela um significativo crescimento na
produção acadêmica a respeito do processo de exclusão de trabalhadores rurais da
terra. Processo este definido, desde os primórdios da colonização brasileira, por
meio das capitanias hereditárias, sesmarias e pela própria Lei de Terras de 1850,
que excluía, dentre outros sujeitos sociais, índios, negros escravizados ou não,
trabalhadores pobres, descendentes dos dois primeiros grupos, imigrantes e
migrantes. Assim, dentro da lógica de implementação do capitalismo no Brasil, esses
grupos não tiveram a oportunidade de acumular recursos para poder finalmente ter
acesso a esse bem comum.
Nesse cenário, observa-se que a “Lei de Terras no Brasil se combina com a
lei de regulação do mercado de trabalho”
104
. Desde suas origens no Período
Imperial, ambas estavam intrinsecamente ligadas, sobretudo ao excluir do acesso a
propriedade da terra quase que a totalidade da população oferecendo-a como mãode-obra aos proprietários fundiários. Ademais, percebe-se que “em um só tempo, a
Lei de Terras preservou o latifúndio e organizou a nova relação de trabalho”105.
Rio de Janeiro: Positivo, 2001. p.354. Lerrer explica que este foi um dos principais métodos utilizados
para a falsificação de títulos de cartórios, colocando os documentos forjados em uma gaveta ou baú
fechado com grilos para dar-lhes aparência de antigo, conferindo-lhes autenticidade. Essa prática foi
muito utilizada na região Noroeste do estado de São Paulo, onde se encontra o Pontal do
Paranapanema, região de grandes tensões sociais envolvendo a aquisição e a posse da terra.
LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.43.
104
a
MOREIRA, Ruy. Formação do Espaço Agrário Brasileiro. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
p.36.
105
Ibidem.
93
Observa-se que esta Lei “proibia a aquisição de terras públicas através de
qualquer outro meio que não fosse a compra, colocando um fim às formas
tradicionais de adquirir terras mediante posses e doações da Coroa” 106 . Foram
intensos os debates no Parlamento acerca da aprovação desta Lei, com o objetivo
de substituir o antigo estatuto das sesmarias, extinto desde em 1822 107 . Nesta
perspectiva, “o problema do acesso a terra – e a regulamentação jurídica desta
questão – está no cerne das relações de trabalho” 108.
O Artigo 1o da Lei de Terras de no 601/1850 pontuava que “ficam proibidas
as aquisições de terras públicas por outras formas senão o da compra”, considerado
um dos principais empecilhos para que os trabalhadores rurais tivessem acesso a
esta. Com isso, marcava-se
[...] o início do que hoje é conhecido academicamente de
‘questão agrária’, ou seja, o problema fundiário brasileiro, pois
instituiu um novo direito de propriedade, moderno, capitalista,
mas pensado de modo a garantir o poder dos latifundiários.109
Outro fator de exclusão “foi à elevação do valor das terras públicas
comparativamente ao das terras particulares, o que reforçou conseqüentemente, a
106
COSTA, Emília V. Política de Terra no Brasil e nos Estados Unidos. In: Idem. Da Monarquia à
a
República: momentos decisivos. 7 ed. São Paulo: Unesp, 1999. Nessa obra, a autora pontua que a
terra e a mão-de-obra são questões indissociáveis e fundamentais para uma melhor compreensão do
desenvolvimento econômico brasileiro. Alerta que “a expansão dos mercados e o desenvolvimento do
capitalismo causaram uma reavaliação das políticas de terras e do trabalho em países direta ou
indiretamente atingidos por esse processo”, no qual o Brasil não ficou de fora (p.169-71).
107
PENÇO, Célia F. Carvalho. A Evaporação das Terras Devolutas no Vale do Paranapanema no
Estado de São Paulo. São Paulo: HVF-CERED/UNIP, 1994. p.15.
108
Ibidem.
109
LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.42. Na mesma linha de
pensamento, Moreira destaca que a Lei de Terras de 1850 caminha com a Lei da abolição da
escravidão: ambas anunciam o modelo de campesinato brasileiro, fundamentando o aspecto
essencial da relação de trabalho e do novo regime social. Todavia, “em face da Lei de terras, este
campesinato já nasce sob absoluto controle da classe senhorial, que, por intermédio dele, preserva a
agroexportação com base econômica da sociedade burguesa e garante para si o poder de organizáa
la”. MOREIRA, Ruy. Formação do Espaço Agrário Brasileiro. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
p.36-7.
94
restrição ao acesso à propriedade” 110 por parte das pessoas desprovidas de
recursos.
Na condição de “deserdados da terra” pela impossibilidade de acesso e
permanência nesta, “a maioria absoluta de trabalhadores, ex-escravos e imigrantes
começaram a formação da categoria, que na metade do século XX, seria conhecida
também como sem terra”111. Com o passar dos anos, o Brasil assistiu a construção
de um significativo movimento social de singular projeção política, capaz de
enfrentar os poderes constituídos112 e se firmar como “interlocutor para a formulação
de uma reforma agrária para o país, não figurando apenas como simples movimento
social de oposição ao governo por denunciar o desemprego, a fome, a ausência de
moradia para a população pobre, a miséria no país” 113 . Buscando, sobretudo, a
efetivação da redução das desigualdades sociais no campo e nas cidades por meio
da pressão política.
Nessa perspectiva, o MST se constituiu num novo ator político apesar de
suas ações se manterem além da bandeira de luta da reforma agrária. Sem
menosprezar as experiências de lutas das Ligas Camponesas no Nordeste
110
PENÇO, Célia F. Carvalho. A Evaporação das Terras Devolutas no Vale do Paranapanema no
Estado de São Paulo. São Paulo: HVF-CERED/UNIP, 1994. p.15.
111
a
FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000.
p.28. Na mesma direção, pontua-se que o adjetivo sem terra é a identidade do MST e de todos os
trabalhadores rurais que partilham do desejo de se fazer reforma agrária e almejam mudanças
estruturais e políticas sociais para o Brasil. Porém, antes se pontua que o termo em destaque é fruto
das discussões travadas “na Constituinte de 1946, quando surgiram os primeiros debates sobre a
necessidade de uma lei de reforma agrária” para o país. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B.
a
M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu
Abramo, 2000. p.39. Décadas mais tarde, a imprensa brasileira procurou fazer uso constantemente
desse termo para qualificar os integrantes dos movimentos sociais rurais que lutavam pela posse da
terra. Portanto, apesar do Jornal do MST ter feito uso do mesmo termo para identificar os
trabalhadores rurais, torna-se inegável que essa marca foi “batizada pela imprensa”, conforme
asseguram os autores. Assim, o JST, como instrumento de luta do Movimento e a partir das ações
perpetradas no campo e nas cidades (ocupações, marchas, passeatas, manifestos, resistências,
estudos em grupos, debates e atos de solidariedade pelos seus integrantes), fez com que os
trabalhadores rurais, ao longo de sua trajetória, assumissem em suas páginas e nas frentes de lutas a
identidade de ser um sem terra.
112
COMPARATO, Bruno Konder. A ação política do MST. São Paulo em Perspectiva. Vol.15, Ano 4.
São Paulo: Fundação Seade, out./dez. 2001.
113
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e
a
contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.311.
95
brasileiro114, observa-se a capacidade de articulação do MST com os mais variados
setores da sociedade: Igreja, partidos políticos, Ongs, Sindicatos rurais e urbanos,
apresentando formas diversificadas de reivindicação que sinalizavam novas práticas
de se fazer política no país.
Desta maneira, ao longo de sua história, a sociedade brasileira assistiu a
conflitos envolvendo trabalhadores rurais, impossibilitados do acesso à terra, que se
aglutinaram em insuficientes postos de trabalhos oferecidos no setor urbano, mas
em busca de uma saída, engrossaram os movimentos sociais organizados,
particularmente, o MST.
Em face dessa questão, ressalta-se que a configuração do MST deu-se,
sobretudo, por motivos econômicos, sociais e políticos, particularmente nos finais da
década de setenta e início dos anos oitenta, ganhando maior visibilidade no cenário
nacional e internacional, na década de noventa.
O movimento nasce em Santa Catarina, estende-se por todo o
Brasil e realiza ocupações. Organiza-se em acampamentos,
luta pela posse da terra em assentamentos criados pelo
governo (ou reconhecido por ele após a área já estar ocupada),
cria cooperativas de produção e comercialização, funda
escolas de formação para as lideranças [...].115
O Brasil tornou-se palco de grandes transformações econômicas nos setores
urbano e rural, que coincidem com a gestação, formação e atuação do Movimento. A
partir da década de 1970, o país assistiu ao crescente incremento na implantação da
114
Estas Ligas “nasceram da resistência – muitas vezes armada – dos foreiros (pequenos
agricultores e não proprietários) contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam, movidos
pelos proprietários. De 1959 a 1962, as Ligas tiveram acelerada expansão em todo o Nordeste. Elas
contestavam, abertamente, a dominação política e econômica a que estavam secularmente
submetidas às massas rurais”. Seu lema era: “somos contra o latifúndio”, tendo como bandeira: “lutar
por uma Reforma Agrária Radical”. TOLEDO, C. N. O Governo Goulart e o Golpe de 64. 17ªed. São
Paulo: Brasiliense, 1997. p.76-7.
115
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e
a
contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.304.
96
mecanização no campo e na cidade, o que, de certa forma, colaborou com o
fortalecimento do MST enquanto entidade social. Cabe observar as transformações
pensadas para o campo ainda nos anos 1960, quando estas adquiriram novos
contornos a partir da implementação do Estatuto do Trabalhador Rural (Lei 4.214, de
02 de março de 1963) e, posteriormente, com a aplicação do Estatuto da Terra (Lei
4.504, de 30 de novembro de 1964, face ao Decreto Federal de no 76.593, de 14 de
novembro de 1975). Esta última lei previa a ampliação em todo o país dos parques
sucroalcooleiros para atender a crescente demanda nacional e internacional.
As leis acima citadas corroboraram as expectativas do setor agrícola que
almejava o aumento de produtividade com custos inferiores, criando, assim, outra
plataforma de produção. 116 Para tanto, “com a mecanização da lavoura e a
introdução de uma agricultura com características capitalista, se expulsa do campo
grandes contingentes populacionais a partir de 1970”117, atribuindo novos contornos
à produtividade rural, entre eles a redução dos postos de trabalho no campo e a
maior demanda por mão-de-obra qualificada. Em face disso, nota-se que
A breve história da mecanização das fazendas proporciona
uma demonstração prática do enorme potencial da tecnologia
moderna para substituir e, eventualmente, eliminar seres
humanos do processo produtivo.118
116
BEZERRA, Antonio Alves. Bóias-frias e a mecanização nas usinas de açúcar e álcool no
Oeste Paulista: 1960-2000. Dissertação (Mestrado em História Social), PUC/SP, São Paulo, 2002.
p.1.
117
STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra
a
no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.15.
118
Embora RIFKIN problematize a questão da implementação da mecanização da lavoura americana,
suas reflexões sinalizam para a compreensão das tensões sociais que envolvem o Brasil,
particularmente os trabalhadores rurais sem terra. Segundo o autor, observa-se que “o deslocamento
da mão-de-obra agrícola no decorrer do último século privou milhões de pessoas de um salário de
subsistência”, sobretudo na década de 1990. Nos Estados Unidos havia mais de nove milhões de
pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza em áreas rurais consideradas decadentes – todas as
vítimas dos grandes avanços na tecnologia agrícola. Cf.: RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: o
declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo:
Makron Books, 1995. p.122.
97
O desmedido potencial da tecnologia moderna fez com que as fazendas se
transformassem em grandes parques agroindustriais, passando a diversificar sua
produção e seguindo, assim, a dinâmica e a lógica do capitalismo. Esse processo
gerou novas exigências ao efetivar a contratação de trabalhadores aptos aos
desafios dessa agroindústria rural que, ao final da década de 1990, intitula-se
agronegócio. Estas transformações no processo produtivo das empresas tiveram
como premissa para a obtenção de uma produção em larga escala, a utilização de
uma mão-de-obra cada vez mais especializada, criando empecilho para os
trabalhadores da área rural. Fazendo com que
algumas usinas, praticamente com suas plataformas
agroindustriais mecanizadas, aderissem a um novo processo
seletivo de admissão de trabalhadores rurais orientando-se por
critérios que incitam a exclusão, tais como: sexo, idade e
escolaridade.119
Por
essa
lógica,
o
trabalhador
rural
a
ser
contratado
deveria,
prioritariamente, apresentar “idade de até 25 anos, nível de escolaridade até o
quarto ano primário para atuar nas lavouras e até o oitavo ano do Ensino
Fundamental para atuar no processo de fabricação de açúcar e derivados na área
industrial”120, possibilitando a observação da
explicação das transformações ocorridas na segunda metade
do século XX pode ser entendida por meio da dualidade:
trabalho-desemprego. A tendência geral da industrialização foi
substituir a capacidade humana pela capacidade das
máquinas, o trabalho humano por forças mecânicas, jogando
com isso pessoas para fora dos empregos. Supunha-se,
corretamente, que o vasto crescimento da economia tornando
(seria torna-se - verificar pontuação no original) possível por
essa constante revolução industrial criaria automaticamente
119
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do Fim do Século. São Paulo: Unesp, 1999. p.313.
Idem. A luta pela Terra: experiência e memória. São Paulo: Unesp, 2004.
120
SILVA, op. cit., 1999. p.313-4.
98
mais do que suficientes novos empregos em substituição aos
velhos perdidos.121
Com essa percepção, se reduz as possibilidades de inserção do antigo
trabalhador nos recentes postos de trabalho disponibilizados pela agricultura
modernizada. Acompanhando essa lógica, os trabalhadores rurais, sem dispor de
qualificação profissional, ficam à mercê de pequenos “bicos” e serviço informais nas
periferias das cidades de grande ou médio porte, buscando garantir a sua
sobrevivência e a de seus familiares.
Do ponto de vista socioeconômico, os camponeses expulsos
pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas duas
portas de saída: o êxodo para as cidades e para as fronteiras
agrícolas. Isso os obrigou a tomarem duas decisões: tentar
resistir no campo e buscar outras formas de luta pela terra nas
próprias regiões em que viviam.122 [grifos meus]
Foi nessa plataforma de luta que surgiu a base social do MST. A resistência
e as ações desenvolvidas pelos integrantes do movimento em prol da reforma
agrária em todo o país passaram a ser uma constante, configurando-se a partir de
sua fundação no final da década de 1970 e afirmando-se enquanto movimento social
até o presente.
2.2 COLABORADORES NA ORGANIZAÇÃO DO MST
A origem do MST no estado de São Paulo remete-se ao final da década de
1970, especialmente a partir do movimento de resistência dos posseiros da Fazenda
121
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. O Breve Século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p.402.
122
STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra
a
no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.17.
99
Primavera, alocada nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência123.
Considerando que trabalhadores rurais oriundos de outras regiões do estado
também demonstravam insatisfação acerca de sua condição sub-humana,
construíram-se resistências e elaboraram-se representações que desembocaram
numa luta massiva pela posse da terra.
Nesta perspectiva, tornou-se constante a participação de algumas
instituições visando promover a organização dos trabalhadores rurais e do MST
nesse estado e no Brasil como um todo, destacando-se a atuação efetiva da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) vinculada às Comunidades Eclesiais de Bases124
(CEB’s), principais articuladoras para a formação e a concretização do Movimento.
Nos anos oitenta, o MST passa a contar com dirigentes ligados
à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e ao Partido dos
Trabalhadores (PT), fundamentando o seu projeto nos
princípios do socialismo marxista. Na década seguinte, sem se
desprender de seus ideais socialistas, o MST redefine as suas
estratégias para se inserir numa economia de mercado,
buscando tornar os seus assentamentos produtivos, voltados
para o mercado externo e não apenas para a subsistência.125
A entrevista de João Pedro Stédile corrobora o trecho acima descrito e
evidencia dois aspectos cruciais para se entender a formação e atuação do
Movimento: “o aspecto socioeconômico e o ideológico”. Em relação ao primeiro
aspecto, trata-se de questões que acarretaram transformações no que tange às
práticas de produção, até então adotadas no campo, deixando a situação dos
123
FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2006. p.115.
124
CAMARGO, Candido F. de Souza; PIERUCCI, Beatriz M. de; OLIVEIRA, Antonio Flávio de.
Comunidades Eclesiais de Base. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius C. (Org.). São Paulo: O povo
em movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/ Cebrap, 1980. p.59-69.
125
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e
a
contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.305.
100
trabalhadores ainda mais precária, ao passo que, a modernização foi se ramificando
e estipulando novas demandas de produção e mercados.
Entretanto, no campo das idéias, a sua efetivação só se tornou possível com
o trabalho da Comissão Pastoral da Terra e da Igreja Luterana. Sendo pontuado
pelo entrevistado que A Comissão Pastoral da Terra126 com a aplicação da Teologia
da Libertação 127 trouxe importante contribuição para a luta dos camponeses,
particularmente, na organização dos trabalhadores rurais sem terra. Sobre a
participação de setores da igreja, o entrevistado atentava para a seguinte questão:
A Igreja parou de fazer um trabalho messiânico e de dizer ao
camponês: esperas que tu terás terra no céu. Pelo contrário,
passou a dizer: tu precisas te organizar para lutar e resolver os
teus problemas aqui na terra. A CPT fez um trabalho muito
importante na conscientização do camponês.128
Desta forma, observa-se que as instituições colaboradoras na organização
do MST, em São Paulo e em outras partes do país, tiveram lugar de destaque nas
páginas do JST, com a participação evidente de alguns partidos políticos, como o
Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Mobilização Democrática Brasileira
(PMDB).
126
A Comissão Pastoral da Terra é um órgão da Igreja Católica vinculado à Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB). A princípio a Comissão foi organizada em meados da década de 1970 no
estado de Goiás, quando se discutiu num Congresso Eucarístico a questão da terra ao Norte e
Centro-Oeste do país. Posteriormente, a Comissão se estendeu a outras Unidades da Federação em
que se evidenciaram conflitos pela posse da terra. Não obstante, ressalta-se que os “movimentos
populares progressistas, inclusive o MST, perderam na década de 1990 o apoio irrestrito do seu
maior aliado que tiveram nas décadas de 70 e 80 no Brasil: a Teologia da Libertação. A partir desse
período, a Igreja passou a rever suas práticas sociais, alterando-as substancialmente em outras
diretrizes [...] aquele apoio, teoricamente, ainda existe, mas a própria Teologia deixou de ser uma
política para ser uma linha de resistência”. Cf.: Ibidem. p.314.
127
STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra
a
no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.20. A Teologia da Libertação é uma
corrente pastoral das Igrejas Cristãs que arregimentam agentes de pastorais, padres, bispos
progressistas que desenvolvem uma prática voltada à realidade social. Fundamentada nos princípios
sociais, incorporou metodologias analíticas da realidade pautada pelos princípios marxistas.
128
Ibidem. p.19-20.
101
As Comunidades Eclesiais de Bases (CEB’s) “surgiram no final da década
de 1960 e os camponeses as tinham como lócus das discussões e reflexões acerca
de sua realidade”129. Colocando em prática a teoria da libertação e juntamente com
os trabalhadores, estas recuperam a idéia da construção de um lugar social, sendo
observado, também, como espaço de socialização política.
A prática social, desenvolvida por essas entidades, pautava-se pelo princípio
do resgate da conscientização dos trabalhadores, no que tange às suas realidades,
recuperando a idéia de que os sujeitos sociais teriam a oportunidade de refletirem
sobre suas representações, ao passo que, poderiam “articular ações de resistências
contra as injustiças” historicamente sofridas por eles.
Nesse ínterim, a participação das CEB’s foi de suma importância para que
os trabalhadores se organizassem no MST, buscando reivindicar a sua dignidade, no
sentido de reinventarem o caminho ao encontro da cidadania130. Nesse processo
político de constituição do Movimento, ampliava-se a perspectiva que os
trabalhadores rurais tinham de si e o reconhecimento do outro, refletindo acerca de
sua
realidade, construindo consciência política, ampliando o seu rol de
questionamento
e
buscando
incessantemente
a
implementação
de
suas
reivindicações enquanto sujeitos históricos, pautados por direitos e deveres
conferidos na Constituição de 1988.131
Em face desta questão, o MST se solidificou enquanto movimento social e
político, tanto no estado de São Paulo como em outras unidades da federação. Suas
129
FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2006. p.116.
130
Cidadania é um conceito histórico, que apresenta as suas variações no tempo e no espaço. Está
atrelada, portanto, à participação social e à política em um Estado. A cidadania pode ser interpretada
como uma ação política construída paulatinamente por homens, mulheres e crianças a fim de que
possam transformar a sua realidade por meio da ampliação de seus direitos e deveres em comum.
SILVA, K. V.; SILVA , H. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2006. p.47.
131
a
CARVALHO, J. Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p.199. Para o autor, essa Constituição pautava-se por princípios liberais,
porém, acenava para as práticas democráticas, recebendo a chancela de “Constituição Cidadã”.
102
pretensões, entre outras, visavam à reforma agrária na perspectiva das ações de
ocupação de propriedades públicas e privadas, produtivas e improdutivas. Enfim,
através desse seu jeito peculiar de fazer política, ao longo de sua trajetória atraiu
aliados, mas também, grandes opositores.
O MST representa a incorporação à vida política de parcela
importante da população, tradicionalmente excluída pela força
do latifúndio. Milhares de trabalhadores rurais se organizaram e
pressionaram o governo em busca de terra para o cultivo e
financiamento de safras. Seus métodos, a invasão de terras
públicas ou não cultivadas, tangenciam a ilegalidade, mas,
tendo em vista a opressão secular de que foram vítimas e à
extrema lentidão dos governos em resolverem o problema
agrário, podem ser considerados legítimos.132 [grifos meus]
Frente a isto, salienta-se que os governos brasileiros não se atentaram para
a abertura de um canal de comunicação voltado aos anseios dos movimentos
sociais, ávidos por transformações, que quando ocorriam, na maioria das vezes, não
contemplavam as suas necessidades básicas de sobrevivência: moradia digna, terra
para plantar, escolas, alimentação, remédios, serviços de saúde e segurança.
132 132
a
CARVALHO, J. Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p.203. Sem a pretensão de questionar a liberdade de escrita desse
historiador, mas não concordando com este, ao empregar o termo invasão na presente citação, a
pesquisa entende que o termo suscita a idéia de que ao invadir um determinado espaço, os
integrantes do MST estariam cometendo um delito, observando que na sua essência, a palavra
representa “entrar à força, tomar, dominar, difundir-se”, sendo essa uma visão cristalizada da elite
agrária brasileira a respeito das ações do MST. Em contra partida, o presente trabalho priorizou o
emprego do termo ocupação para melhor expressar as ações e representações do Movimento no
cenário político. Observo que, do ponto de vista das práticas sociais e das experiências de lutas dos
trabalhadores rurais registradas nas páginas do JST, não resta dúvida sobre a efetivação do discurso
propalado pelo jornal na prática, pois este acreditava que a terminologia ocupar é, na realidade, o ato
de “estar ou ficar na posse de... preencher o espaço vazio, trabalhar, dedicar-se a cuidar...”, conforme
definição do Dicionário Aurélio. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Positivo, 2001. p.495. Em face dessa questão, a fonte em
questão procura, por meio de seus editoriais, textos e reportagens, esclarecer junto aos trabalhadores
e à sociedade o sentido dessa terminologia, associando a linguagem às ações postas em prática,
deixando claro que a ação de ocupar propriedades se dá por diversos fatores, dentre eles a
necessidade de manter os trabalhadores unidos por um mesmo ideal – a reforma agrária. José
Gomes da Silva assinala que: “A ocupação é o que deu vida à luta pela terra. Sem ocupação, o MST
não nasceria e, sem ela, morreria”, idéia compartilhada pelo jornal e pelos trabalhadores rurais sem
terra. Observação feita por: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do
a
MST e a luta pela terra no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. Sobre a
terminologia ocupação, ver o capítulo denominado “Ocupações” deste livro (p.113-21).
103
Sobre as ações perpetradas por esse Movimento, justifica-se que parte das
conquistas sociais obtidas ao longo da história do Brasil foi resultado da pressão
popular oriunda dos Movimentos Sociais, indicando que, se não fosse pela pressão
política encampada pelo MST, não teria ocorrido nenhum tipo de assentamento na
área rural.
Não é por acaso que suas ações generalizadas e sua organização política
despertaram reações do adversário político, que foi gestado paulatinamente e
buscou combater as suas ações, durante a década de 1980 e meados de 1990.
Esse adversário político responde pelo nome de União Democrática Ruralista 133
(UDR), constituída um ano após a fundação do MST.
Nesse momento, não cabe aprofundar o real propósito da fundação desta
instituição, nem as pretensões de seus integrantes. Porém, afirma-se que esta seria
uma grande opositora às idéias do recém criado movimento social, que se
configurava numa grande ameaça política ao governo e às pretensões dos
latifundiários em todo o país. Desta forma,
O MST conseguiu inegável êxito na organização dos
deserdados da terra, sobretudo em seus primeiros tempos,
tornando-se um poderoso instrumento de pressão para que o
governo de Fernando Henrique Cardoso acelerasse o seu
programa de reforma agrária.134
Porém, acrescenta-se que as ações do MST ultrapassavam as perspectivas
sociais ao se traduzirem em “ações radicais”, fazendo com que as “ocupações de
133
STEDILE, João Pedro; FERNANDES, B. M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra
a
no Brasil. 1 reimpressão. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.93. “A UDR foi fundada em 1985, por
fazendeiros atrasados do setor pecuarista e contrários à reforma agrária. Atuando em seu início nos
estados de Goiás, Sul do Pará, Pontal do Paranapanema-SP e Triângulo Mineiro, proliferaram-se
após alguns anos por várias outras Unidades da Federação”, atualmente dissolvida, porém, com
alguns de seus tentáculos navegando na sociedade e na política.
134
a
a
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Edusp, Imprensa
Oficial do Estado, 2002. p.297.
104
terras, de prédios públicos, destruição de pedágios – revela(ssem) a sua inclinação
para a violência no caminho de uma pretensa revolução social”135.
Entende-se esse processo de luta como estratégia da ação, ao desencadear
uma resposta à violência imposta às classes populares, que se organizavam
politicamente. Quanto à questão dos assentamentos e acampamentos, os dados
expressos nas tabelas a seguir alertam para a hipótese de que os oito anos do
governo de Fernando Henrique Cardoso (no período de 1995 a 2002) deixaram
marcas na história da agricultura brasileira, possibilitando-lhe o mérito de ter
promovido o maior número de assentamentos rurais em toda a história brasileira.
Tabela 1 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 1995-2000.136
RP*
1995
1996
1997
1998
1999
2000
Anos
Centro-Oeste
10.404
10.815
14.906
15.933
12.752
13.943
Norte
10.471
24.628
32.045
41.838
25.185
16.490
Nordeste
18.551
21.272
27.099
34.432
30.990
23.995
Sul
2.178
2.007
4.190
4.134
9.298
3.391
Sudeste
1.308
3.268
3.704
4.757
7.001
2.702
Total
42.912
62.044
81.944
101.094
85.226
92.986
*Regiões do País
135
a
a
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Edusp, Imprensa
Oficial do Estado, 2002.
136
Tabela organizada pelo autor. Fonte: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Disponível em: <www.incra.gov.br>. Acesso
em: 12/01/2008. Os dados expressos nesta tabela são informações oficiais divulgadas pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária, referentes aos anos de 1995 a 2006. Os números fazem
parte de uma planilha mais ampla em que se aponta a quantidade de assentamentos realizados pelo
governo por Unidade da Federação e por região do país. Não obstante, para construir esses quadros
optei apenas pela categoria “famílias assentadas” por região.
105
Tabela 2 - Assentamentos de Trabalhadores Rurais: 2001-2006.137
RP*
2001
2002
2003
2004
2005
2006
Anos
Centro-Oeste
14.548
10.007
4.437
14.861
19.880
14.153
Norte
19.866
12.438
16.004
31.774
58.373
81.573
Nordeste
20.760
16.582
13.256
28.522
39.726
35.313
Sul
4.426
2.041
1.038
3.638
2.987
2.059
Sudeste
3.877
2.418
1.566
2.459
6.540
3.260
Total
82.449
43.488
36.301
81.254
127.506
136.358
*Regiões do País
Os
dados
oficiais,
evidenciados
nestas
tabelas,
a
respeito
dos
assentamentos rurais no Brasil (no período de 1995 a 2006) tornam-se expressivos
do ponto de vista social e político. Entretanto, esses assentamentos não foram
suficientes para resolver o problema de centenas de famílias de sem terra por todo o
país, visto que um contingente significativo de pessoas ainda permanece sem auferir
proveito da terra, e inúmeras famílias de trabalhadores rurais encontram-se
acampadas na luta pela posse da mesma.
Os números citados anteriormente mostram um aumento crescente na
efetivação de assentamentos de trabalhadores rurais nas cinco regiões do país, com
um avanço no primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Entretanto, as mesmas tabelas revelam uma descontinuidade no que se refere à
expansão dessa política de assentamentos, em seu segundo mandato, sobretudo
nas regiões sul e sudeste do país, o que não quer dizer que não havia demanda de
famílias por terras nestas regiões.
Um dado importante expresso nas mesmas tabelas é a acelerada expansão
dos assentamentos nas regiões norte e nordeste, nos dois mandatos de Fernando
137
Tabela organizada pelo autor. Fonte: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Disponível em: <www.incra.gov.br>. Acesso
em: 12/01/2008.
106
Henrique Cardoso (1995-2002) e também, no primeiro mandato presidencial de Luiz
Inácio Lula da Silva de (2003-2006), sendo que, nos últimos quatro anos,
evidenciou-se maior expressividade dos números de famílias assentadas.
Apesar das informações revelarem certo crescimento nos assentamentos, o
JST acenou para o descontentamento dos trabalhadores rurais, quanto aos dados
divulgados pelos órgãos oficiais, imbricando-se numa guerra de números entre
aqueles apresentados pelos governos e os supostos “dados reais”. Nesse sentido, a
contestação dos dados ocupou as páginas do JST, tanto em seus editoriais, quanto
nas seções de notícias, assumindo postura bastante dura.
Num dos editoriais publicados pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra evidencia-se a tentativa do MST em questionar os números apresentados pelo
governo, referente às famílias assentadas no ano de 1995. Segundo o jornal,
para satisfazer o seu ego ou simplesmente enganar a opinião
pública, o governo continua mentindo, dizendo que assentou
42 mil famílias [grifos meus] durante o ano de 1995. Nós
fizemos levantamento, estado por estado, e apenas 12 mil
famílias tiveram realmente acesso a terra, em função de
desapropriação ou medidas do governo FHC. Todas as demais
famílias estavam há muitos anos naquela área, tendo as suas
propriedades regularizadas.138
Nesse sentido, o MST não reconhecia os números divulgados pelo governo.
Para o jornal, foram assentadas efetivamente 12 mil famílias, sendo as demais 30
mil inexistentes, tendo em vista que elas já estavam alocadas nas regiões há muito
tempo. Só pelo fato das propriedades terem sido regularizadas nesse ano, não
poderia representar assentamento efetivado, sendo a atuação de Fernando H.
Cardoso registrada, não porque ele
138
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.155, ano XV. MST, jan./fev. 1996.
p.2.
107
assentou o maior número de famílias de trabalhadores rurais
sem terra no Brasil, mas porque seu governo se tornou
conhecido pela proliferação das inúmeras ocupações de terras
nos estados, pelo crescimento massivo dos números de
movimentos sociais em todo o país e também pelo crescimento
dos números de famílias acampadas em toda a história
brasileira.139
Apesar dos números apresentados pelo governo configurarem numa maior
quantidade de famílias assentadas, tal informação pode e deve ser contestada,
quando se evidencia uma inquestionável pressão por parte dos trabalhadores rurais
inseridos no MST, em igual período.
O jornal apontava que também houve uma tentativa do governo de
desqualificar os dados apresentados pelo MST e seus idealizadores, puxando-os
para menos, conforme os dados da 6a coluna da tabela a seguir.
Ano
Tabela 3 - Ocupações de terras entre 1995 e 1999.140
No de
No total de
Porcentagem das
No total de
No total de
famílias
ocupações do
ocupações de
ocupações
ocupações
envolvidas
MST sobre o No
terras,
segundo a
ligadas ao
segundo a
total de
segundo o
CPT
MST*
CPT
governo**
ocupações
1995
146
30.476
-
-
145
1996
398
63.080
176
44%
397
1997
463
58.266
173
37%
455
1998
599
76.482
132
22%
446
1999
589
78.258
-
-
502
*Dataluta: Banco de Dados da luta pela terra, 1999
**Ministério do Desenvolvimento Agrário
139
FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2006. p.185.
140
Cf.: COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.206. Os dados aqui
apresentados fazem parte de uma tabela maior, que compreende os anos de 1987 até 2002, sendo
esses apenas um recorte ilustrativo.
108
Os números de ocupações e de famílias envolvidas na luta pela terra
tornaram-se crescentes na década de 1990. Os dados explicitados nesta tabela
evidenciam um aumento expressivo no ínterim destes cinco anos. Reportando-se à
primeira e à segunda coluna, nota-se em escala crescente a expansão das
ocupações de propriedades, estando estas associadas a uma maior participação
das famílias. No ano de 1998, observa-se a configuração de um número significativo
de ocupações, chamando a atenção a uma leve redução no contingente de famílias
envolvidas nestas, sobretudo, aquelas ligadas ao MST.
Outra questão perceptível nesta tabela é a ausência de dados na quarta e
quinta coluna, especificamente nos anos de 1995 e 1999. Pois
apesar da inexistência de dados sobre as ocupações atribuídas
ao MST nesses dois anos, não significa que elas não
ocorreram. Elas só não foram devidamente registradas em um
banco de dados de abrangência nacional.141
Em suma, os dados da tabela explicitam o quanto os trabalhadores rurais
estavam insatisfeitos com a política agrária do governo. Destaca-se ainda, a
exemplar participação do MST na ampliação dessas ocupações, colocando-se numa
posição de grande articulador político no desenvolvimento das ações em execução
no campo.
141
LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.83.
109
Apesar do governo de então ter contestado os números apresentados pelo
MST, na tabela (3) sobre as ocupações de terras, os dados evidenciados apontavam
para o fortalecimento do Movimento, expandindo suas ações para áreas ainda
maiores.
Sem desconsiderar as pretensões do instituto ou dos responsáveis pela
pesquisa, pode-se afirmar que, de acordo com os dados divulgados, as ocupações
em larga escala do MST ganharam adesão de um número crescente da população
paulistana, sobretudo, dos trabalhadores de baixa renda, que reconhecem tais
ações como forma de pressão social.
Nesse sentido, a pesquisa feita pelo IBOPE, em 1996 na cidade de São
Paulo, questionou: “O (A) Sr. (a) apóia ou não apóia as ações do Movimento Sem
Terra?”. O resultado sinalizou que: 56% dos entrevistados apoiavam as ações do
movimento; 37% não apoiavam; 7% não souberam responder. Os dados acima
revelam que parte significativa dos entrevistados apoiava as ações do movimento,
destacando, ainda, que o maior endosso provinha dos segmentos mais jovens.
Outro dado que chamou a atenção foi que, quanto mais baixo fosse o grau de
escolaridade, maior tornava-se o apoio às ações.142
142
Pesquisa elabora pelo IBOPE para avaliar o nível de apoio às ações do MST na cidade de São
Paulo. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Ano XV, n.155. MST, jan./fev.
1996. p.2. Gohn pontua que “a causa dos sem terra passou a ser considerada justa nas pesquisas de
opinião pública, embora a grande maioria rejeite as ‘invasões de terras’ como forma de pressão”.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.
a
6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.305.
110
Apesar da posição privilegiada alcançada pelo MST, neste momento, no que
tange ao monopólio das ocupações em todo o país, este se articula com outras
forças aliadas, visando fortalecer-se politicamente sem perder a sua identidade de
movimento social. Assim, coligando-se à CONTAG (filiada à CUT), à Federação de
Trabalhadores na Agricultura de vários estados, Sindicatos Oficiais e outras forças
sociais.143
A atuação do JST fica evidente que, tanto o jornal, quanto os trabalhadores
rurais acampados e assentados, o ato de ocupar propriedades era entendido como a
mais viável forma de pressão social para forçar o governo a implementar os
assentamentos.
Observa-se, portanto, que as ocupações fizeram parte das estratégias de
luta do Movimento e mantendo lugar de destaque na parte cultural do MST, como
pode ser observado no refrão “ocupar, resistir e produzir”, lema de campanha e título
de letra de música presente no CD – Arte em Movimento. O gráfico a seguir indica
essa possibilidade.
Os dados do gráfico confirmam o salto de qualidade, no que se refere ao
trabalho de base, envolvendo os trabalhadores rurais sem terra e o próprio MST. No
interstício de 1988 a 1994, percebe-se certa intimidação em se tratando de
ocupações de propriedades. Provavelmente a inércia vivida pelo MST e seus
agentes coadunaram-se com a transição política que o país passava nos finais do
regime militar e o período de retomada dos princípios democráticos.
143
Para Lerrer, é inegável a importância do MST nessa forma de luta – pois ele foi o responsável
direto pela tomada desse instrumento de ação na década de 1980. “[...] o salto quantitativo das
ocupações deveu-se, também, ao engajamento de outras forças políticas no embate e na construção
de novos diálogos com o governo.” LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas:
nacionalização e modernidade do MST. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de
Janeiro, 2008. p.84.
111
Gráfico 1 - Brasil – Ocupações de terras – número de famílias: 1988-1998.144
90.000
80.000
76.428
70.000
62.880
58.266
60.000
50.000
40.000
30.476
30.000
19.092 20.516
20.000
17.589
15.538
11.297
10.345
7.804
10.000
0
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
Singular também foi o crescente aumento nas ocupações nos anos de 1995
a 1998, marcando fortemente o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso,
pressionando-o a assentar um número significativo de famílias de trabalhadores
rurais sem terra, em um curto espaço de tempo. O que teria motivado o governo a
realizar tantos assentamentos nesse período, observando-se a ausência de um
canal de comunicação do MST com o mesmo?
144
Fonte: CPT, 1999. Cf.: FERNANDES, B. M. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis - RJ:
Vozes, 2000. p.260.
112
Os dados da pesquisa evidenciam que o número de assentamentos
divulgado pelo governo (conforme a tabela e gráfico 1) esteve, direta ou
indiretamente, atrelado à pressão feita pelo MST. A interpretação das informações
apresentadas acima permite a afirmação de que o governo de Fernando Henrique
Cardoso poderia ser marcado como o que mais assentou famílias no país, mas,
também, pode-se destacar como o Presidente que contribuiu de forma singular com
o maior número de ocupações, o maior crescimento de
movimentos sociais, o maior número de famílias acampadas
em fazendas e rodovias [...] além dos dois maiores massacres
de trabalhadores rurais no campo: o de Corumbiara, em 1995 e
o de Eldorado dos Carajás, em 1996.145
Recuperando a idéia da trajetória histórica do MST, a partir da década de
1980, pontua-se que os governos, latifundiários e setores da elite agrária se
confrontavam com as ações massivas deste movimento. Encabeçadas por seus
idealizadores e integrantes foram reconhecidos como um “novo ator social e
político”146 em ascensão no debate político nacional.
Frente aos “encontros e desencontros da história”, torna-se inegável a
afirmação de que os trabalhadores rurais traziam consigo a experiência147 de terem
pertencido, muitas vezes, a categoria de “pequenos sitiantes, caboclos, cafuzos,
mulatos, brancos e negros edificados na geografia da luta pela terra”
145
148
,
FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2006. p.185.
146
COMPARATO, Bruno Konder. A ação política do MST. São Paulo em Perspectiva. Vol.15, Ano 4.
São Paulo: Fundação Seade, out./dez. 2001.
147
Sobre o conceito de experiência, o presente trabalho ampara-se teoricamente na literatura de:
THOMPSON. E. P. O termo ausente: a experiência. A Miséria da teoria ou um planetário de erros.
Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1981. Idem. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Cia da Letras, 1998. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979. Idem. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
148
FERNANDES, B. M. O MST mudando a questão agrária. In: D’INCAO, M. A. (Org.). O Brasil não
é mais aquele... Mudanças Sociais Após a Redemocratização. São Paulo: Contexto, 2001. p.238.
113
transformando-se, posteriormente, em trabalhadores rurais sem terra, instigando o
presente trabalho a se debruçar acerca de sua trajetória.
Sem desmerecer outras formas de lutas sociais no Brasil, não há dúvida de
que o MST se configurou no mais importante movimento social do século XX e início
do século XXI, evidenciando a sua experiência de luta na prática, mas também
deixando registrado “em papel e tinta”149 a sua história.
O Movimento dos Sem Terra é uma das coisas mais
importantes que já aconteceu no Brasil. E muitos de nós
guardamos no coração uma grande esperança neles, para
obrigar o Brasil a levar a questão agrária a sério. O MST junta
hoje todos os tipos de lavradores, que invadem fazendas
improdutivas e vivem na miséria imposta pelos latifundiários.150
[grifos meus]
Entendendo o MST como movimento social e como representante de
determinado segmento da sociedade brasileira, busca-se, a partir das interpretações
dos editoriais do Jornal, desvelar os percalços enfrentados pelo Movimento e seus
integrantes ao longo de sua trajetória de luta. Com isso, desbrava-se caminhos
construindo-se hipóteses, que sinalizem as interfaces das “características do
campesinato brasileiro”151, bem como a compreensão das tensões que o cercam.
Dentre outras questões, os próximos itens retomam e problematizam as
idéias que têm norteado os conflitos agrários no Brasil, demonstrando inquietações
quanto à afirmação do MST, enquanto novo sujeito político e, portanto, protagonista
de sua própria história. Desta forma, explicita-se a importância de interpretar os
149
Parafraseando Heloisa F. Cruz, autora que muito contribuiu para os estudos dessa pesquisa sobre
o JST, seus editoriais e suas reportagens, alertando a observá-lo com o olhar de pesquisador e a
partir daí construir as hipóteses norteadoras desta tese. CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em
Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2000.
150
Entrevista com Darcy Ribeiro. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Ano
XVI, n.167. Esperança nos Sem Terra. MST, março de 1997. p.2.
151
FELICIANO, Carlos Alberto. Movimento Camponês rebelde: a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2006. p.184.
114
editoriais
152
veiculados pelo JST ao longo de duas décadas, período este
compreendido pela pesquisa. Por isso, observa-se a necessidade de outras
possibilidades de reflexão para o tema, visando “compreender os novos problemas
que o mundo nos legou no final do século XX e início desse novo século” 153 ,
sobretudo, os que tangem os anseios dos movimentos sociais, em particular o MST.
2.3 AÇÕES: O JST E SEUS EDITORIAIS
Analisando os editoriais do jornal, pode-se recuperar a trajetória de luta dos
trabalhadores sem terra a partir de suas representações pautadas pelas tendências
ideológicas
154
do MST, ao passo que, os questionamentos possibilitaram a
recuperação da trama social, presente nas ações destes trabalhadores, ao se
constituírem na luta diária em busca da reforma agrária.
Por essa razão, se faz necessária a problematização do discurso do jornal,
no sentido de observar de que forma este representa o desejo dos integrantes do
MST em âmbito local, estadual e nacional. O referencial teórico, que embasa as
152
A opção pela interpretação dos editoriais publicados pelo JST deu-se, sobretudo, pelo meu
interesse em entender a postura do mesmo frente às tensões políticas vigentes, assim como os
anseios dos trabalhadores rurais que engrossavam, a cada dia, as tessituras do movimento e como
estes se projetaram como ferramenta articuladora, nos momentos de tomadas de decisões dentro do
MST. Em termos quantitativos, optou-se pela interpretação dos títulos que abalizavam a posição
política do jornal, dos que convocavam os trabalhadores à unificação da causa coletiva – a luta pela
ocupação e desenvolvimento da terra e aqueles que denunciavam os “desmandos” dos governos.
153
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os modos de produção do poder, do direito e do senso comum.
In: Idem. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez,
2000. p.42.
154
Para conceituar o termo tendências ideológicas, a presente pesquisa opta pelo referencial teórico
desenvolvido pelos estudos culturais inspirados em Antonio Gramsci, que define “os sujeitos não
como alienados, mas como portadores de experiências que lhes permitem, senão adotar uma
ideologia própria, ao menos interpretar ao seu modo a ideologia hegemônica”. Para tanto, “os autores
culturalistas afirmam que na sociedade existem várias forças determinantes [inclusive a cultura]
entendendo o ideológico não como mero reflexo das condições econômicas. Para Gramsci, além da
dominação e da reprodução social, a ideologia é um campo também de resistência em que não
necessariamente os dominados aderem à ideologia hegemônica, pois também entram no jogo do
dominador a partir de seus próprios interesses”. Cf.: SILVA, Kalina V.; SILVA, Maciel H. (Orgs.).
a
Dicionário de Conceitos Históricos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.208.
115
inquietações a seguir, pauta-se pelas reflexões da historiografia brasileira155 que se
debruçam fartamente acerca das interpretações da imprensa, contribuindo com os
estudos sobre os mais diversos segmentos desta: a operária, a alternativa e,
sobretudo, a chamada grande imprensa. 156
Sem a pretensão de esgotar a discussão sobre os temas configurados nas
páginas do JST, busca-se oferecer contribuições para esse campo de investigação,
ao passo que a fonte em destaque ainda é pouco utilizada nas interpretações
históricas das representações sociais do MST, desde o seu surgimento na década
de 1980.
Apesar do considerável número de pesquisas sobre o MST no Brasil,
pontua-se que poucas destas se debruçaram acerca das análises do conteúdo
propalado pelo jornal e que, em número menor, o observaram como ferramenta de
luta para o movimento. É inegável que algumas destas pesquisas tenham se
apropriado do jornal como instrumento confirmador de algumas hipóteses em
determinado momento, porém, constatou-se incipiente presença de pesquisa
atribuindo-lhe igual atenção.
155
CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 19201945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. Idem; PRADO, Maria Ligia. O
Bravo Matutino: Imprensa e Ideologia no jornal O estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia R. de. Imprensa e Cidade. São Paulo: Unesp, 2006. MARTINS,
Ana Luiza; LUCA, Tânia R. de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.
FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes,
1978. KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro. São
Paulo: Perseu Abramo, 1998. AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado
Autoritário e Exercício Cotidiano de Dominação: o Estado de S. Paulo e Movimento. Dissertação
(Mestrado em História), FFLCH/USP, São Paulo, 1990. SOUZA, Eduardo Ferreira de. O discurso de
“Veja” e o MST: do silêncio à satanização. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa), PUC/SP,
São Paulo, 2001. CRUZ, Heloisa de F. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana –
1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp, 2000. WILLIAMS, Raymond. A imprensa e a cultura popular:
uma perspectiva histórica. Projeto História. n.35. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2007.
156
LUCA, Tânia R. de. A grande imprensa na metade do século XX. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA,
Tânia R. de (Orgs.). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p.149. A autora
pontua que apesar desta expressão se revelar bastante consagrada entre os pesquisadores, ela é
também bastante vaga e imprecisa. De forma genérica, tal expressão representa um conjunto de
títulos, que num dado contexto, compõe a porção mais significativa dos periódicos em termos de
circulação, perenidade, aparelhamento técnico, organizacional e financeiro.
116
Os editoriais e suas reportagens revelavam a relação dialética entre ambos.
O jornal confirmava as experiências de lutas tramadas no campo e norteava as
possibilidades de embates, atribuindo novos contornos e significados ao perfil dos
trabalhadores rurais. Por outro lado, o movimento fortalecia o jornal ao passo que
este se consolidava como agente propagador das ações de enfrentamento
realizadas no campo. Reportando-me à década de 1980, pondera-se que,
no Brasil, a historiografia tem dado pouca importância à
imprensa como objeto de investigação, utilizando-se dela
apenas como fonte confirmadora de análises apoiada em
outros tipos de documentação” 157 (fato este observado em
pesquisas recentes sobre o jornal em análise).
Nessa direção, elaboram-se metodologias diferenciadas capazes de
viabilizar outras interpretações acerca do estudo de periódicos, além de nortear a
construção de uma “nova direção de pesquisa periódica ao analisar o jornal O
Estado de S. Paulo como fonte única de investigação e análises críticas”, torna-se
um desejo.
A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por
entender a imprensa como instrumento de manipulação de
interesses e de intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui,
aquelas perspectivas que a tomam como mero ‘veiculo de
informação’,
transmissor
imparcial
e
neutro
dos
acontecimentos, nível isolado da realidade político-social na
qual se insere.158
157
CAPELATO, Maria Helena R.; PRADO, Maria Ligia. O Bravo Matutino: Imprensa e Ideologia no
jornal O estado de S. Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980. p. XI. Ao prefaciar esse livro na década
de 1980, Paulo Sérgio Pinheiro alerta para a ausência de trabalhos acadêmicos sobre a imprensa
brasileira, particularmente sobre os grandes jornais de longa “participação na vida política brasileira”.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Massas, prisões, paz. Folha de São Paulo. São Paulo, 15/07/1986.
Atualmente essa afirmação já pode ser revista, uma vez que a historiografia confirma uma forte
“presença de estudos sobre a imprensa ou de publicações periódicas como fonte principal de
pesquisa”, no intuito de viabilizar estudos sob diferentes olhares, “abordagens e procedimentos
metodológicos”, norteando novas possibilidades de “investigação nos mais diversos campos teóricos
e temáticos”. Cf.: CRUZ, Heloisa de F.; VIEIRA, V. L.; RAGO FILHO, Antonio (editores científicos).
Introdução. Projeto História. n.35. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 2007. p.10.
158
CAPELATO, PRADO, op. cit., p.XI.
117
Nesse aspecto, esse trabalho priorizou o Jornal dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra como objeto de pesquisa, mas, também, como sujeito histórico, por
entender que este descortina com precisão a trajetória de luta dos trabalhadores
rurais sem terra ao evidenciar a sua afirmação de “defensor” e instrumento de luta
dos “deserdados” da terra. A pesquisa entende o JST como instrumento ativo de
“intervenção social” na configuração da luta dos sem terra, e não como mero
instrumento “imparcial” desta luta no campo social e político.
No que tange aos conflitos no campo, estudiosos das Ciências Humanas159
revelam que a constituição dos movimentos sociais e suas ações de intervenção no
cenário político brasileiro estiveram associadas a uma série de fatores sócioeconômicos. Dentre eles, a introdução da modernização na área rural (no início da
década de 1970), quando se atribuiu à produção familiar características voltadas
para um mercado capitalista mais global, levando o homem do campo a buscar
condições de sobrevivência nos parques industriais das cidades de grande e médio
porte, motivados pelo acelerado processo de desenvolvimento da indústria pelo qual
o país estava passando.
159
A título de exemplificação, verificar os estudos de: GOHN, Maria da Glória. A crise dos
movimentos sociais. In: Reunião Anual da ANPOCS. Caxambu, 1992. Idem. Movimentos e lutas
sociais na História do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995. Idem. Os Sem-Terra, ONGs e Cidadania.
São Paulo: Cortez, 2003. Idem. Teoria dos Movimentos Sociais - paradigmas clássicos e
a
contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. BRANT, Vinicius Caldeira; SINGER, Paul (Orgs.).
São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis - RJ: Vozes/ Cebrap, 1980. MARTINS, José de Sousa.
a
Expropriação e violência. A questão política no campo. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1991. Idem. Os
camponeses e a política no Brasil. As lutas sociais no campo e o seu lugar no processo político.
a
5 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 1995. Idem. A militarização da questão agrária no Brasil. Terra e
a
poder: o problema da terra na crise política. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes, 1985. Idem. Caminhando
no chão da noite. Emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo:
Hucitec, 1989. Idem. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade
anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. Idem. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In:
STEDILE, João Pedro (Org.). A reforma agrária e a luta pela terra. Petrópolis - RJ: Vozes, 1997.
BERGAMASCO, Sonia M.; NORDER, Luis A. Cabello. O que são assentamentos rurais? Coleção
Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1996. p.301. FERNANDES, Bernardo M. A formação do
MST no Brasil. Petrópolis - RJ: Vozes, 2000. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo. História dos
movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989. Entre outros autores e obras.
118
Nos anos de 1980, essa industrialização entrou em colapso por praticamente
toda a década, impossibilitando a inserção e a permanência do contingente de
trabalhadores rurais expulsos do campo nos processos produtivos dos centros
urbanos. Em face desta questão, o surgimento e a “espacialização” do MST (objeto
de estudo desta pesquisa) deram-se a partir do momento no qual os “camponeses
expulsos da área rural pela modernização da agricultura tiveram fechadas as duas
portas de saída: a sua expulsão para as cidades e a sua transferência para as áreas
agrícolas de fronteiras”160.
Com a impossibilidade de mudanças nas suas vidas e de seus familiares, os
trabalhadores “foram obrigados a tomar duas decisões: tentar resistir no campo e/ou
buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam”. Foi neste
cenário, que estes sujeitos sociais ampliaram a construção de sua identidade pública
ao se inserirem no Movimento. Portanto, essa identidade foi construída a partir das
ações encampadas pelos próprios trabalhadores e, conseqüentemente, pela
orientação dada pelo JST ao realizar a transposição das informações recebidas pela
Direção Nacional do Movimento.
As manchetes de capas do jornal tornaram-se indicativos dessa afirmação:
“1985 vai ser diferente”; “Sem terra não há democracia”; “Essa realidade vai mudar”;
“A reforma agrária dos trabalhadores”; “Reforma agrária: a guerra é pra valer”;
“Reforma agrária: o campo se agita”; “Continua a agitação no campo”; “Lavradores
160
“A transferência dos trabalhadores rurais do sul do país para as regiões de colonização, sobretudo
Rondônia, Mato Grosso e Pará não deu certo porque os camponeses perceberam que nessas
regiões não existia vocação para a agricultura familiar, pois eles estavam acostumados na região sul
a produzirem grãos como arroz, feijão e milho” e, portanto, não quiseram permanecer nessa região.
Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a Luta
Pela Terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.15-7.
119
sem terra ocupam latifúndios: assim se faz reforma agrária”; “1985: ano de muitas
lutas e violências” entre outras.161
O jornal em tela evidenciou que sua postura de defensor dos trabalhadores
rurais, elaborada e nutrida cotidianamente com suas experiências, se afirmava para
além de sua função informativa. Apresentando-se como porta-voz dos trabalhadores,
os editoriais são uma constante dessa afirmação e seus títulos são indicativos dessa
ponderação.
Tabela 4 - Alguns Editoriais – 1987.162
Título do Editorial – JST
Tiragem
Referência
o
O que esperar de 1987?
30 mil ex.
SP, Jan/1987, n 59, Ano VI
Em 1987, dificuldades e esperanças.
30 mil ex.
SP, Fev-mar/1987, n 60, Ano VI
Como enfrentar esta crise?
30 mil ex.
SP, Abril/1987, n 61, Ano VI
A constituinte deve ser apenas um meio a
mais para mobilizarmos as bases...
30 mil ex.
SP, Maio/1987, n 62, Ano VI
Só as lutas mudam as leis
30 mil ex.
SP, Junho/1987, n 63, Ano VI
O que está acontecendo?
30 mil ex.
SP, Agosto/1987, n 65, Ano VI
Vamos ocupar Brasília
30 mil ex.
SP, Setembro/1987, n 65, Ano
Nossa resposta: ocupação
30 mil ex.
SP, Dezembro/1987, n 65, Ano
161
o
o
o
o
o
o
o
Estas foram algumas das manchetes de capa do JST no ano de 1985, momento no qual se
efetivava a identidade pública do Movimento e de seus agentes sociais, pois o MST já havia sido
constituído no ano anterior com uma definição clara de sua linha de atuação, apresentava clareza
quanto aos seus aliados e opositores, uma vez que a maioria deles já se encontrava na arena
política. A título de indicação, um estudo acerca das manchetes de capa deste jornal e das imagens
que o cercam seria uma perspectiva interessante de pesquisa para se interpretar e compreender o
impacto social e político, que essa ferramenta de comunicação e de luta gerou entre os trabalhadores
rurais sem terra nos assentamentos e/ou acampamentos nos momentos de formação, estudo e
reflexão.
162
Tabela organizada pelo autor. As tabelas 4, 5 e 6 foram construídas com base nos títulos dos
editoriais do JST nos anos de 1987, 1996 e 1998, visando problematizar a forma agressiva que o
periódico assumiu nesses momentos, no intuito de promover uma pressão social e política,
sobretudo, nos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Ainda, visou-se
demonstrar que esse periódico, ao contrário de outros jornais de movimentos sociais ou de classe,
em sua maioria de circulação efêmera, apresentava muita importância para o Movimento, buscando
se modernizar enquanto ferramenta de luta para atender as exigências dos trabalhadores rurais sem
terra.
120
Sem desconsiderar os editorais publicados no período de 1984 a 1986,
nesse capítulo, priorizaram-se as temáticas que possibilitavam uma melhor
compreensão das tensões político-sociais da época. Dentre essas, destacam-se,
particularmente, aquelas que iam ao encontro das ações governamentais, no sentido
da ampliação da reforma agrária e os principais temas que a norteavam,
demonstrando os anseios dos trabalhadores rurais frente ao cenário vivido por estes.
A questão: “o que esperar de 1987?”, se tornou uma indagação bastante
capciosa para a compreensão do que representava esse jornal na configuração das
representações sociais dos trabalhadores rurais. Com essa questão o periódico
organizou e buscou a espacialização da luta, para que conseguisse, por meio desta,
algo superior ao transcorrido no ano de 1986. Nesta perspectiva, considera-se que
“não só os espaços de lutas são socialmente constituídos, mas também as relações
sociais são espacialmente constituídas”163. Para o editorial publicado em 1987, o
governo da “nova república deixou cair à máscara da democracia deixando cada vez
mais claras as suas intenções com relação à reforma agrária”164, ou seja,
não fazer nenhuma mudança no campo, mas fazer muita
demagogia e propaganda, como se o paraíso tivesse chegando
à terra. Na verdade, o governo José Sarney se revelou um dos
mais cínicos e mentirosos de todos os governos que já
tivemos.165 [grifos meus]
O jornal não poupava adjetivos, no sentido de desqualificar a política de
reforma agrária vigente (sem esquecer que o país ainda ensaiava a sua primeira
Constituição pós-regime militar, e que este era um governo de transição, mas
163
Ao se reportar à conceituação de estruturas de poder, Santos pontua que “estas são lugares não
apenas em termos retóricos, mas também em termos sócio-espaciais. Cada lugar estrutural é
constitutivo de uma espacialidade específica, e as interações sociais que ele exige e possibilita tem
uma referência locacional inscrita no que através delas, é feito ou pensado”. Cf.: SANTOS,
a
Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. p.263.
164
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2.
165
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2..
121
plenamente vinculado a partidos políticos que compartilhavam do regime militar). O
trecho acima explicita que o governo não estava comprometido com os anseios das
forças sociais, optando por se aliar às forças políticas já existentes (no caso de
políticos dissidentes do regime militar), reforçando a construção de um discurso de
denúncia por parte do Jornal.
Em outro trecho do mesmo editorial, explicitou-se o aumento nos números
da violência no campo e o inconseqüente descaso do governo para essas ações
criminosas. Mesmo nos governos subseqüentes, o jornal não fecha suas páginas
para essa questão, uma vez que, ela tende a ganhar proposições ainda maiores,
particularmente na década de 1990.
Porém, para o MST “a violência no campo aumentou ainda mais e com a
maior impunidade”. Com base em dados do Ministério da Reforma Agrária e do
Desenvolvimento Agrário (MIRAD) “foram 272 mortos no campo durante 1986 e
ninguém foi condenado ou preso”. Segundo o Jornal do Brasil, destacava-se o
desvio de armas modernas do exterior para equipar os latifundiários brasileiros que,
dentre outras irregularidades, as usariam contra os trabalhadores rurais que
ameaçassem ocupar suas propriedades. O jornal denunciava que
a UDR teria chegado ao barbarismo de colocar a leilão a
cabeça de D. Tomás Balduino, reconhecido nacionalmente
pela defesa dos direitos dos sem terra. Onde está a
democracia da nova república?166
Frente a isso, percebe-se que a base do discurso do jornal era fazer valer os
preceitos democráticos almejados pela sociedade e em curso na Constituinte, que
seria celebrada na aprovação da Constituição, no ano seguinte. Naquele momento,
uma das prerrogativas do periódico era associar a questão da democracia à luta pela
166
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2. p.2.
122
terra. Ao concluir o editorial, o jornal chamava a atenção para a organização dos
trabalhadores rurais, pontuando a necessidade de uma profunda avaliação nacional
de sua caminhada, na tentativa de implementar melhor a preparação para as longas
jornadas de “lutas e sacrifícios” nos próximos anos, e finaliza: “Sem desanimar. Mas
com coragem e esperança. Afinal, para os sem-terra nunca teve moleza mesmo. E
ter cada vez mais a presente certeza de que TERRA E PODER NÃO SE GANHAM,
se conquistam!”167.
O trecho do editorial evidenciava a questão do acesso à terra, mas também
da chegada ao poder. Para o primeiro, a terra era vista como um bem comum e que
deve ser pautada pela prerrogativa de cumprir o seu papel social: a produção de
alimentos para suprir as necessidades básicas das pessoas. Como o poder pode ser
interpretado nesse contexto?
O poder é qualquer relação social regulada por uma troca
desigual. É uma relação social porque a sua persistência reside
na capacidade que ele tem de reproduzir desigualdade mais
através da troca interna do que por determinação externas. As
trocas podem abranger virtualmente todas as condições que
determinam a ação e a vida, os projetos e as trajetórias
pessoais e sociais, tais como bens, serviços, meios, recursos,
símbolos, valores, identidades, capacidades, oportunidades,
aptidões e interesses.168
167
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.59, ano VI. MST, janeiro 1987. p.2. p.2. (grifos
do editor)
168
Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Os modos de produção do poder, do direito e do senso
a
comum. In: Idem. A Crítica da Razão Indolente. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. p.266-7. Mais
adiante, especificamente nas (páginas 284 a 290), o autor as mais variadas formas de poder: o
patriarcado é uma forma de poder que privilegia o espaço doméstico; a exploração privilegia o espaço
da produção; o fetichismo das mercadorias tende a se apropriar do espaço do mercado, traduzindose em uma forma autônoma de poder; a diferenciação desigual tende a privilegiar o espaço da
comunidade, caracterizando-se pela sua ambigüidade em detrimento das demais formas de poder; a
dominação privilegia o espaço da cidadania (acredito que seja a forma de poder que traduz os
anseios dos trabalhadores rurais sem terra), pois se trata de uma forma de poder institucionalizada,
reflexiva e que transita nas mais variadas esferas de poder e, por último, a troca desigual, que busca
se constelar com o patriarcado de múltiplas formas entrecruzadas.
123
Dentre as variadas definições de poder elaboradas pelo autor, há uma delas
que traduz com pertinência a concepção de poder almejada pelo JST. Seria a
“dominação”, ao passo que, esta tende a privilegiar o “espaço da cidadania”,
aproximando-se das inquietações dos trabalhadores rurais sem terra imbricados no
MST. Pois, trata-se de uma “forma de poder institucionalizada, auto-reflexiva e que
transita nas mais variadas esferas”.
O jornal traduzia as dificuldades da luta em esperança, sinalizando um
caminho para a superação. Atentava para a questão dos discursos proferidos pelo
governo Sarney acerca do “pacto social” por ele arquitetado e, ainda, salientava que
A burguesia através da televisão vai manter a atenção do povo
na Assembléia Nacional Constituinte, querendo mostrar à
opinião pública que aí está a saída para todos os problemas,
quando sabemos que a maioria dos Deputados e Senadores
eleitos se constituem em verdadeiros representantes dos
industriais e dos latifundiários.169
A fonte evidenciava o desconforto do governo frente à política econômica
vigente, e pontuava seu interesse em manter reunidos trabalhadores e patrões em
constante diálogo, sem precisarem recorrer a procedimentos grevistas como
ferramenta de pressão social. Segundo o jornal, “na prática, essa postura do
governo induz os trabalhadores a aceitarem salários e preços dos produtos agrícolas
baixos e não recorrerem a greves reivindicatórias”.
A animação dos participantes no III Encontro Nacional realizado em
Piracicaba-SP,
pelos
integrantes
do
MST,
confirmava
essa
possibilidade.
Destacaram-se os quatro itens que fizeram parte da pauta aprovada no Encontro,
sintetizando os caminhos a serem trilhados pelos integrantes do movimento:
169
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2.
124
1) A organização nas bases promoverá a transformação do
Movimento dos Sem Terra em movimento de massa,
organizando-o em núcleos e comissões, possibilitando ampla
participação dos lavradores.
2) Promover a formação política dos trabalhadores em todos os
níveis e capacitar os trabalhadores rurais para que possam
dirigir com clareza a luta dos sem terra e dos assentamentos
em todos os estados.
3) Priorizar a articulação com trabalhadores da cidade e do
campo para levarmos as lutas em conjunto. Para isso
precisamos participar ativamente dos sindicatos e do partido
para somar força a alcançar nossos objetivos [grifos meus].
4) Lutar para tornar cada vez mais autônomo o nosso
movimento, mantendo-nos dentro do movimento sindical e ao
lado das forças que nos apóiam.170
Nesse ínterim, percebe-se que o movimento, apesar de já estar consolidado
em todo o país, preparava-se para os embates políticos no calor da elaboração e
promulgação da nova Constituição do país. Cabe atentar para o explicitado no item
três, ao evidenciar o desejo dos trabalhadores sem terra em se articularem às forças
políticas urbanas, ponto, aliás, determinante para a noção de unidade do
movimento.
Não por acaso, nesse encontro decidiu-se, que a partir de então, o MST
apoiaria todas as atividades promovidas pela Central Única dos Trabalhadores
(CUT), corroborando o propalado no item em destaque. Outra particularidade desta
edição foi a presença de Luiz Inácio Lula da Silva no Encontro, à época Presidente
do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse evento, Lula afirmou: “o Sem Terra é,
sem dúvida, um dos movimentos de trabalhadores mais sérios que temos neste
país”. Para ele, “a grande questão é fazer a classe171 trabalhadora compreender a
170
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2.
O presente trabalho opta pela definição de classe social evidenciada por: THOMPSON, E. P. A
formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.12. Essa opção dá-se
pelo fato de sua definição corresponder melhor às experiências de lutas dos trabalhadores rurais sem
terra (objeto de análise da pesquisa em tela). Para tanto, o autor não atribui ao conceito de classe o
termo “estruturas”, nem tampouco “categoria”. Concebe-a como “algo que ocorre efetivamente nas
171
125
ligação entre luta diária pela sua sobrevivência e a luta política geral para chegar ao
poder”172, ou seja, na perspectiva dos trabalhadores rurais sem terra, a luta política
seria concatenada à luta pela reforma agrária.
Porém, nota-se que, naquele período, o ideal do movimento reforçava o
título do próprio Encontro: “Vamos construir o projeto político para a classe
trabalhadora”. Por meio do título “Como enfrentar esta crise”173 restaurava-se parte
das idéias do texto anterior, pontuando certo pessimismo quanto à postura da “nova
república”, pois, para os sem terra, esta em nada colaborou para a implementação
da Reforma Agrária no país. Entretanto, salientou-se que a cúpula do governo
Sarney, associado aos interesses pessoais dos governos e parlamentares filiados ao
PMDB e ao PFL (atualmente DEM), usariam de muitos artifícios para não tirar do
papel o ideal de reforma agrária plena e democrática propalada pelos trabalhadores
rurais organizados acerca do MST.
Nesta mesma edição, o editorial informa que “dos 559 constituintes, o
número de deputados que apóiam a reforma agrária não chega a 60”. Alerta,
sobremaneira: “é bem provável que a Lei que sair sobre a reforma agrária dessa
Constituinte seja pior do que o Estatuto da Terra”174.
relações humanas”, evidenciando a “noção de relações históricas”. O autor define a noção de classe
como “formação social e cultural”, observando que esta emerge de “processos que só podem ser
estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico”, experiências
estas que perpassam profundamente o fazer social dos trabalhadores.
172
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2.
173
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.60, ano VI. MST, fev./mar. 1987. p.2.
174
Antonio José de Mattos Neto, a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida por Estatuto da
Terra, implantada no início dos anos 1960 (fase inicial do Regime Militar), e implementada ao longo
deste, trazia consigo o objetivo de promover “não só a produtividade econômica e a estabilidade das
relações sociais entre proprietários e não proprietários, mas também o maior acesso à propriedade
rural”. Apesar de ter sido criada no calor do regime militar, pode-se afirmar que essa Lei evidencia um
“certo desejo” de “promover o desenvolvimento rural”. Porém, a historiografia registra que “a sua
aplicabilidade tornou-se insatisfatória para os fins a que veio”. Segundo o autor, “a sua incipiente
aplicação” promoveu de toda sorte, a “maior concentração da propriedade agrária”, fato este que
motiva a contestação feita pelos trabalhadores rurais sem terra. MATTOS NETO, Antonio José de. A
Questão agrária no Brasil: aspecto sócio-jurídico. Projeto História. n.33. Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, dez.
2006. p.97-118.
126
Posta essa questão, convocaram-se todos os trabalhadores rurais para se
prepararem para uma grande caravana à Brasília, nos dias em que a Lei da Reforma
Agrária entraria em pauta para votação.
Vamos nos preparar para recuperar a terra que nos pertence.
Vamos transformar o dia 25 de julho num grande dia de
mobilização nacional de todos os trabalhadores rurais. Terra e
poder não se ganham, se conquistam! [grifos do editor]
O trecho revela uma proposta de luta para o Movimento e evidencia a
identidade política do jornal, ao passo que este se empenha sensivelmente a incutir
nos trabalhadores um sentimento de pertencimento a um grupo pautado por um
interesse comum – o acesso à propriedade da terra e mudanças mais estruturais
para o país.
A frase “Terra e poder não se ganham, se conquistam” revela a tensão
política a se desenvolver nas próximas décadas, evidenciando que o jornal não
pretende somente o acesso e a permanência do trabalhador na terra, mas almeja,
sobremaneira, o acesso ao poder.
Evidencia o interesse na ocupação do espaço político para, então, inferir as
suas propostas de lutas no que diz respeito às tomadas de decisões no país. Tal
pretensão geraria certo desconforto nas representações sociais e políticas das elites
brasileiras (até porque a história tem conferido que estas costumam reagir
eficazmente quando por alguma razão sentem-se ameaçadas):
A burguesia industrial insurgiu-se contra a promulgação de leis
sociais por temer a investida do Estado nesse campo. Os
industriais alegavam que tal procedimento, num país de fraca
industrialização, predominantemente agrícola, abriria brecha
para a revolução socialista que, por sinal, começaria pela
destruição dos grandes proprietários de terra.175
175
CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 19201945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. Desbravadora da hipótese de
127
Nesse cenário de tensão e poder, o Jornal dos Trabalhadores Rurais clama
pela ocupação simbólica de Brasília (DF), no intuito de mostrar aos Constituintes a
força da organização política que emanava do campo para a cidade, fruto do
amadurecimento das mais variadas experiências de lutas e das transformações
históricas. Conforme o editorial de maio de 1987, os trabalhadores rurais sem terra
deveriam somar forças para realizarem um enorme abaixo-assinado com milhares
de assinaturas de lavradores, anexando-o em seguida a três projetos de Leis na
Constituinte. Para a Executiva Nacional do MST os projetos contemplariam os
seguintes pontos:
1) Um sobre nossas leis para a reforma agrária;
2) outro sobre o direito dos trabalhadores, incluindo a parte dos
urbanos e os direitos de previdência e aposentadoria para as
mulheres da roça;
3) e um terceiro sobre a soberania nacional – contra a
exploração dos estrangeiros e o pagamento da dívida externa
que, aliás, já foi paga muitas vezes.176
Desta maneira, o jornal mobilizaria suas bases no sentido de propagar a
conscientização da importância desta ação, demonstrando qual o caráter político da
Constituinte. Também informa que “devemos mobilizar o povo, fazer concentrações,
passeatas e preparar a grande caravana à Brasília. Essa mobilização vai ser uma
escola política para nossas bases”177. E na seqüência pontua: “vamos compreender
que os trabalhadores somente conseguirão mudar as leis através da organização e
da pressão popular”178.
que a imprensa deve ser utilizada como fonte e objeto da pesquisa histórica, a autora salienta que,
dentre outras hipóteses de sua pesquisa com o Jornal O Estado de São Paulo, “os intérpretes das
luzes ao se fazerem passar por representantes de um poder universal e impessoal procuraram tornar
respeitáveis e inquestionáveis as decisões que emanavam de sua vontade pessoal, ditadas por seus
interesses próprios” (p.357).
176
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. MST, maio de 1987. p.2.
177
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. MST, maio de 1987. p.2 (grifos do
editor).
178
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. MST, maio de 1987.
128
Em junho de 1987179, o jornal traçou uma breve trajetória de José Sarney
desde a sua passagem pelo PDS até a sua atuação no Colégio Eleitoral, quando era
Presidente do Senado, apontando “como o Homem que comandou a derrubada da
Emenda Constitucional que previa as eleições diretas para o país”. Denuncia a
corrupção ultrajante no seio do governo Sarney, além de sinalizar para a
organização sólida do MST.
Por fim, salienta que para que “Sarney pudesse ter apoio e se manter no
poder, enterrou todos os projetos de mudanças na sociedade, tais como a reforma
agrária e todos os projetos para a área da saúde e da educação”. Frente a isto, ao
cair nas graças dos políticos, satisfez também os interesses dos empresários e dos
latifundiários. No mesmo texto evidencia-se que a “demissão de Dante de Oliveira,
do Ministério da Reforma Agrária e Desenvolvimento, representava que a Reforma
Agrária não será realizada neste governo”. Em agosto do mesmo ano o editorial
demonstra certo cansaço político ao transcorrer da luta.
Faz mais de um ano e meio que cerca de oito mil famílias sem
terra estão acampadas e existe mais de 500 áreas com conflito
de terra, à espera de soluções [...]. O máximo que o governo
realizou
foram
algumas
desapropriações
e
alguns
assentamentos precários, onde falta tudo. Na verdade, só
demonstrou que não quer fazer reforma agrária.180
Nesse ínterim, o jornal denunciava a violência no campo afirmando: “esta
violência é sinal de que no confronto político e ideológico, os trabalhadores estão
179
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.63, ano VI. MST, junho de 1987. p.2.
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.65, ano VI. MST, agosto de 1987. p.2. Esta
edição traz a informação de que foi finalizado o abaixo-assinado contendo um milhão de assinaturas
para ser entregue junto com o projeto de reforma agrária aos Constituintes. Denuncia que a UDR está
usando da violência como forma de preservação do latifúndio e intimidação das forças sociais:
trabalhadores e líderes religiosos.
180
129
com a razão” 181 . Porém, percebe-se que há os propósitos do MST; se afirmar
enquanto força política e desenhar com precisão o seu interesse frente às forças
políticas instituídas:
Na luta concreta pela terra, vamos nos organizar e nos
preparar para as ocupações massivas [grifos meus]. A
burguesia, a UDR, o governo e a “justiça” sempre trataram
nossos direitos pela terra como uma questão militar [...].
Somente com muita luta, devemos conquistar e assegurar o
nosso direito de ter um pedaço de terra para produzir e garantir
o sustento de nossa família.182
Não
obstante,
a pesquisa
tem evidenciado
com freqüência
certa
continuidade das discussões anteriores com as publicações atuais do jornal. Este se
reporta a um passado não muito distante para explicar o presente vivido pelos
trabalhadores rurais, pretendendo, desta forma, a construção da memória dos
trabalhadores egressos do Movimento, motivando-os a lutarem e buscarem, junto
com os demais militantes, as conquistas almejadas.
Os avanços só ocorrerão se os trabalhadores pressionarem.
Foi assim, no tempo em que o Estatuto da Terra estava em
vigor, e será assim com a nova Constituição. Os ganhos [grifos
meus] da classe trabalhadora se darão pela luta, pela pressão,
pela mobilização e pela ocupação de terras [...] as
desapropriações feitas sempre foram resultados de ocupações
e pressões. Não será diferente agora com a Nova
Constituição.183
Perseguiam-se as ações que deveriam ser colocadas em prática para que
os trabalhadores rurais tivessem acesso a terra, o que era compreendido pelo
181
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.62, ano VI. Sessão “Violência”. MST, junho de
1987. p.9. Figura os seguintes dados: “de janeiro a junho deste ano já foram assassinados 47
trabalhadores rurais de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT)”. Além do mais, o jornal
evidencia que “ocorreram 24 mortes por acidentes de trabalho e 24 pessoas feridas. Também
morreram 13 bóias-frias cortadores de cana em acidentes de caminhão. Para o Ministério da Reforma
Agrária (MIRAD) – órgão do governo federal, foram assassinados cerca de 60 trabalhadores rurais
nesse mesmo período, e outras 55 pessoas também morreram em conflitos no campo, incluindo
garimpeiros, índios e trabalhadores rurais bóias-frias”.
182
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.63, ano VI. MST, junho de 1987. p.2.
183
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.66, ano VI. MST, setembro de 1987. p.2.
130
editorial como um “ganho” para os trabalhadores, alertando que este só se
concretizaria com “a pressão, a mobilização e a ocupação de terras”, traduzindo as
experiências de luta a serem intensificadas a partir de então, buscando legitimar o
Movimento e suas ações.
Sob o título “Lutar para conseguir grandes vitórias”, o jornal demonstrava
desânimo e descrença nas ações do governo, até então imbuído das promessas em
fazer a reforma agrária, pautando-se pela legalidade. Descrente dessa possibilidade,
o periódico apontava a princípio para o fato de que: “em nossas discussões ficou
claro que a luta pela conquista da terra passa também pela conquista do poder e
que a reforma agrária é uma necessidade que independente de ser legal ou não, ela
terá que ser feita na Lei ou na marra” 184 , corroborando a afirmação de que a
“propriedade da terra representa prestígio social porque implica no poder
econômico” 185 (grifos meus).
O jornal passava a idéia de continuar a organização de grandes ocupações
de terras de modo a “solidificar a construção da Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT)”. Desta forma, almejava o fortalecimento
das mobilizações em larga escala e a consolidação das forças políticas de esquerda,
eminentes no campo e na cidade, evidenciando a pretensa sedução pela ascensão
ao poder e um enorme desejo de desnudar o Estado que a elite brasileira há muito
tempo vinha alimentando.
184
O Editorial revelava confronto e negociação quando denunciava a falta de interesse do governo
em promover a reforma agrária de forma democrática, ampla e sem conflitos e chama a atenção para
a extinção dos órgãos responsáveis pela “questão agrária” com sua subseqüente substituição de
nomenclatura: SPRA, IBRA, INDA, INCRA e INTER/MIRAD – um substituindo o outro. Para o jornal
dos trabalhadores rurais, “não é mudando o nome do órgão responsável que se fará a reforma
agrária, mas sim com a desapropriação e distribuição equânime das terras”. Também foi denunciado
que o mesmo Decreto que extinguiu o INCRA instituiu a “Proibição de desapropriação de qualquer
área em produção”. Segundo esta fonte “este item dá mais argumentos para os latifundiários
emperrarem as desapropriações na justiça”. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.68,
ano VI. MST, dezembro de 1987. p.2-3.
185
COSTA, Emília V. Política de Terra no Brasil e nos Estados Unidos. In: Idem. Da Monarquia à
a
República: momentos decisivos. 7 ed. São Paulo: Unesp, 1999. p.172.
131
O Estado é concebido como organismo próprio de um grupo,
destinado a criar as condições favoráveis para a máxima
expansão do próprio grupo; mas este desenvolvimento e esta
expansão são concebidos e apresentados como a força motora
de uma expansão universal [...] o grupo dominante é
coordenado concretamente com os interesses gerais dos
grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma
contínua formação e superamento de equilíbrios instáveis entre
os interesses do grupo fundamental e dos grupos
subordinados.186
Os editoriais publicados na década de 1980 (conforme temas explicitados na
tabela 4) faziam denúncias contundentes acerca da política do governo transitório de
José Sarney, do governo de Fernando Collor de Mello e no do seu substituto Itamar
Franco. Inclusive, cuidou de pôr à vista as atitudes violentas da UDR a respeito dos
assassinatos ocorridos no campo, e oficializou a afirmação dos trabalhadores rurais
enquanto sujeitos históricos no cenário político, sinalizando o perfil de Estado que o
jornal e os trabalhadores rurais almejavam.
Os temas dos editoriais revelavam o nível de participação dos trabalhadores
rurais e suas principais reivindicações, explicitadas inclusive na Constituinte, pela
apresentação de suas propostas e organização do abaixo-assinado encaminhado ao
Congresso Nacional, visando que os seus projetos fossem apreciados pelos
Constituintes. Tal participação configurou-se num “ensaio” para a efetivação de
ações um tanto mais sólidas no que tange às pressões sobre o governo e a
sociedade para que mudanças sociais fossem feitas no campo, respeitando-se,
sobremaneira, os princípios da classe trabalhadora.
Em face disso, a persistência do MST, fez dele um movimento social de
credibilidade, atitude e modernidade. O seu caráter moderno confirmou-se pela sua
preocupação com a produção e com a educação continuada de seus militantes. Não
186
GRAMSCI, Antonio. Análise das situações. Relações de forças. In: Idem. Obras Escolhidas. Vol.I.
São Paulo: Martins Fontes, 1978. p.330.
132
por acaso, a sua primeira preocupação pautava-se pelo viés da “economia
doméstica” e a segunda pelo prisma da “expansão do MST e da manutenção de seu
habitus militante” 187 . Ademais, torna-se perceptível a sua tentativa de concentrar
grande parte de seus
esforços no incentivo ao acesso à instrução formal e política
[...] evidenciando que este movimento constitui laços de
sociabilidade e vivência comunitária em torno de cursos,
escolas e programas de ensino cujo objetivo pauta-se pela
elevação da consciência de sua base.188
Assim, esse movimento buscava novas forças para interagir politicamente
nos rumos das políticas locais, regionais e até mesmo nacionais.
2.4 TENSÕES: O JST EM UMA NOVA LINGUAGEM
A partir da segunda metade da década de 1990, o jornal evidenciou, por
meio de seus editoriais, certo aprofundamento político de seu conteúdo. Além de
manter o foco na reforma agrária, os seus editoriais se debruçaram cuidadosamente
sobre outras questões de maior expressão política, tais como: crédito rural, taxas de
juros, taxas de câmbio, políticas de preços e, sobretudo, enfrentamento declarado
ao governo de Fernando H. Cardoso.
Nesse sentido, o jornal deixou transparecer um intenso interesse em alargar
a sua margem de comunicação com a sociedade, na tentativa de receber apoio por
parte de outros setores, além da sua base de sustentação. Com essa nova postura,
pretendia uma maior comoção frente aos grupos sociais organizados em suas bases
e articulados politicamente, intensificando alianças com partidos políticos de
187
LERRER, Débora F. Trajetória de militantes sulistas: nacionalização e modernidade do MST.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais), UFRJ, Rio de Janeiro, 2008. p.171.
188
Ibidem.
133
esquerda,
instituições
professores
religiosas,
universitários,
organizações
universidades,
estudantes,
não-governamentais,
advogados,
sindicatos
de
trabalhadores rurais e urbanos e também com pessoas comuns.
Pelo teor dos textos analisados, confirma-se a pretensão do jornal em
socializar seus anseios e mostrar como o poder público se portou frente às questões
sociais e, de forma mais precisa, frente ás aspirações da classe trabalhadora. A
pertinência desta observação pauta-se pela linguagem desafiadora que o jornal
adotou nos editoriais, reportagens e entrevistas, adquirindo um perfil mais elaborado,
politizado e mais acadêmico, deixando perpassar a idéia de que o nível de instrução
dos trabalhadores rurais sem terra havia se elevado.
Por outro lado, percebe-se que ao assumir essa nova tendência (politizada e
acadêmica), descortina-se um indício de que o periódico atuava para além do seu
circuito de circulação, referindo-me ao público interno ao Movimento, nos
acampamentos e assentamentos.
Ao assumir postura diferente da anterior, desenhou-se um novo cenário para
que o jornal protagonizasse como sujeito do Movimento (embora a pesquisa o
compreenda enquanto tal desde o seu surgimento), ampliando o seu raio de atuação
a outros espaços públicos, conforme salientado anteriormente.
Essa mudança de perspectiva, já em meados da década de 1990, a linha
editorial fez com que o jornal tornasse mais preciso nas suas reivindicações,
adquirindo mais clareza na sua linguagem. Nesse mesmo período, o país abriu suas
fronteiras econômicas ao modelo econômico do neoliberalismo189, contribuindo para
189
Sobre a relação do neoliberalismo com os movimentos sociais ver: COLETTI, Claudinei. A
trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005 (especialmente o capítulo três). Sobre o assunto, o autor
assinala que, com “a eleição de Collor e a vitória do projeto neoliberal, o qual teve continuidade no
governo Itamar e foi aprofundado pelo governo FHC, houve um retrocesso político para as classes
trabalhadoras e, ao mesmo tempo, implicou num refluxo para a esmagadora maioria dos movimentos
134
que a atuação do periódico mobilizasse outros sujeitos sociais que se erguessem
contra essa tendência econômica mundial, incorporando ao Movimento outros
agentes sociais: estudantes universitários, professores, pesquisadores, funcionários
públicos de alto e baixo escalão, pessoas comuns, trabalhadores rurais e urbanos,
operários, religiosos, entre outros. Dessa forma, o Movimento adquiriu um caráter
massificador, legitimidade e visibilidade perante a opinião pública, no sentido de
compreender que
Houve, na década de 1990, no Brasil, um processo intenso de
concentração de renda, de redução de gastos sociais do
Estado com saúde, educação, habitação, etc., de degradação
das condições de trabalho e salários e de aumento das taxas
de desemprego [...]. As políticas neoliberais penalizaram,
também, os pequenos produtores agrícolas, representantes da
chamada “agricultura familiar”.190
Outro fator que merece destaque na leitura e interpretação desses editoriais
era a oposição declarada ao governo de Fernando H. Cardoso, em seu primeiro e
segundo mandato. A posição política do jornal, certamente, esteve associada à
conjuntura política vigente, que favorecia os seus anseios à luz da “redefinição no
novo plano internacional, em que se pressionava para criar soluções para o homem
do campo”.
sociais populares. O melhor exemplo de tal fato foi o combate ao movimento sindical articulado em
torno da CUT, o qual passou para a defensiva, pois ‘o seu enfraquecimento era estratégico para a
consolidação do neoliberalismo’, como observa Armando Boito Jr.” (p.150).
190
COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura ao período neoliberal.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.151. O autor observa que
“a discussão sobre o desemprego urbano e sobre a degradação das condições de trabalho e dos
salários no Brasil é importante para compreendermos a expansão das bases sociais do MST na
década de 1990, pois tal expansão tem, no recrutamento de trabalhadores desempregados e
subempregados urbanos, um de seus pilares de sustentação”. Com presença marcante do
neoliberalismo na área rural, o autor também destaca o desaparecimento de muitas propriedades de
pequeno porte, um dos principais ingredientes que fizeram com que a “grande parte dos pequenos
produtores, sem condições de sobrevivência nas cidades, acabasse engrossando as fileiras do MST
ou de outros movimentos de luta pela terra que vão surgindo no Brasil ao longo da década de 1990”.
135
Desta maneira, desencadearam-se
Pressões políticas oriundas de ONGs internacionais, pressões
políticas internas da própria sociedade brasileira, pressões
econômicas do Banco Mundial, ávido pela modernização das
relações sociais no campo, como condição essencial para a
produtividade, e a pressão cultural emergindo com o
lançamento do livro Terra de Sebastião Salgado com música
de Chico Buarque e texto de José Saramago às vésperas da
chegada da Marcha dos Sem Terra à Brasília.191
Os títulos dos editoriais e o número na tiragem do JST expressos nas
tabelas abaixo sinalizam para essa hipótese. Embora em termos quantitativos a
tiragem desse jornal ainda seja um número considerável, quando se compara com
os dados presentes na tabela 3, observa-se um declínio significativo: uma redução
de dois a dez mil exemplares.
Tabela 5 - Editoriais - 1997.192
Título do Editorial – JST
Tiragem
Referência
Balanço da reforma agrária, em 1996
28 mil ex.
SP, Jan/1997, n 165, Ano XVI
Uma marcha histórica à Brasília
28 mil ex.
SP, Fev/ 1997, n 166, Ano XVI
A reação à política de FHC
28 mil ex.
SP, Março/ 1997, n 167, Ano XVI
Continuamos em marcha contra o
neoliberalismo
28 mil ex.
SP, Abril-maio/1997, n 168, Ano XVI
A cara desse governo: FHC não
consegue sustentar o discurso
democrático...
28 mil ex.
SP, Junho/ 1997, n 169, Ano XVI
191
o
o
o
o
o
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e
a
contemporâneos. 6 ed. São Paulo: Loyola, 2007. p.312.
192
Tabela organizada pelo autor.
136
Tabela 6 - Editoriais – 1998.193
Título do Editorial – JST
Tiragem
Referência
1998: grandes desafios pela frente
28 mil ex.
SP, Fev/1998, n 176, Ano XVI
O medo de FHC: a reação do governo... 20 mil ex.
o
o
SP, Março/1998, n 177, Ano XVI
o
Cresce o desgaste do governo
20 mil ex.
SP, Abril/1998, n 178, Ano XVI
O desespero de FHC
20 mil ex.
SP, Maio-jun/1998, n 179, Ano XVI
O governo de FHC e o caos social
20 mil ex.
SP, Julho/1998, n 180, Ano XVI
FHC entrega a Petrobrás ao capital
estrangeiro
25 mil ex.
SP, Agosto/1998, n 181, Ano XVI
A crise tem nome: FHC
25 mil ex.
SP, Set/1998, n 182, Ano XVI
A ditadura moderna do governo FHC
25 mil ex.
SP, Outubro/1998, n 183, Ano XVI
Um pacote ante-social e inútil
25 mil ex.
SP, Agosto/1998, n 184, Ano XVII
Governo FHC: quatro anos de
enrolação
22 mil ex.
SP, Dez/1998, n 185, Ano XVII
o
o
o
o
o
o
o
Avaliando a política interna e externa do governo de Fernando Henrique
Cardoso, o editorial intitulado “O balanço da Reforma Agrária em 1996” pontuava
três itens cruciais para justificar a precariedade no setor agrícola no período:
1) a redução do crédito rural
2) a alta nas taxas de juros para agricultura familiar
3) taxa de câmbio – supervalorização da moeda nacional em
detrimento do dólar, barateando as mercadorias importadas e
reduzindo o preço das nacionais, prejudicando o trabalhador
rural e agravando, sobremaneira, a situação da agricultura
brasileira.
O periódico trazia dados comparativos na tentativa de propiciar melhor
compreensão da situação da agricultura neste ano e denuncia a postura do governo
frente a essa questão:
193
Tabela organizada pelo autor.
137
A área cultivada total na safra deste ano foi de 2% menor do
que a de 1980. A renda da agricultura da safra de 1996 foi 49%
menor do que a obtida em 1980. A estimativa de produção de
74 milhões de toneladas para a próxima safra será menor do
que a produção de 1986.194
Em face disso, o jornal apontava que, só neste ano, o governo havia gastado
mais de três bilhões de dólares na importação de alimentos, que poderiam ser
produzidos no Brasil. Na mesma linha de pensamento, denunciava que em virtude
da política externa do governo, foram sacrificados mais de 400 mil postos de
trabalho, deixando o setor agrário um tanto quanto desmotivado. A redução da
posição do Brasil na política de exportação de algodão de 1o para 4o lugar, também
colaborou para a perda de parte desses postos de trabalho.
No editorial de fevereiro de 1997, dentre outras questões, o jornal atribuiu
destaque para a Marcha à Brasília195, buscando justificar parte de suas inquietações
e revelar alguns dos motivos que levou a organização à efetivação da marcha.
Também se explica que nessa etapa de formação do jornal, este já se encontrava
totalmente profissionalizado. Seu quadro técnico operava com informações
elaboradas por profissionais do meio jornalístico, colaboradores de agências de
notícias e, sobretudo, contava com um expediente formalizado com edições de
tiragens regulares mensalmente.
194
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.165, ano XV. MST, janeiro de 1997.
p.2.
195
Na fotografia a seguir, Douglas Mansur retratou o início da Marcha dos sem terra à Brasília,
deslocando-se da cidade de São Paulo. A foto evidencia que “de São Paulo partiu um grupo de 600
sem-terra, após concentração realizada na Praça da Sé, que contou com a presença, dentre outras
autoridades, do Vicentinho, na época Presidente da CUT, do Frei Beto e do José Dirceu, Presidente
do PT”. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Ano XVI, n.166. MST, fev.
1997.
138
Como salientado no capítulo anterior, o periódico usou constantemente
fotografias que registraram as ações encabeçadas pelo Movimento, especialmente a
partir de 1983. Nesse sentido, a interpretação destas imagens configura-se como
possibilidade de pesquisa, que pode contribuir muito com a interpretação do que
representou o JST para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Nessa perspectiva, adverte-se que o uso da imagética foi inserido de modo
bastante restrito no jornal, quando este era ainda Boletim, no início da década de
1980. A partir de 1985, a imagem profissional ocupou posição singular ao lado das
seções de notícias, mas ainda em cor preto e branco. Ressalto que a fotografia
colorida apareceu somente nas páginas do JST a partir da edição de no 188,
publicado em abril de 1999, corroborando o “chamado abril vermelho” – uma
referência feita pelo Movimento para iniciar suas ações de negociação com o
governo e promover as ocupações em todo o país.
A foto a seguir é emblemática ao ser enquadrada nas representações
sociais dos trabalhadores rurais inseridos no MST, carecendo de uma reflexão
acerca desta. A utilização desta fotografia tem como objetivo suscitar “elementos
que documentem aspectos do período no qual ela foi produzida”. Portanto, será
problematizada como fonte primária no sentido de compreender o “real histórico”196.
196
Grifos da autora. Nessa perspectiva, portanto, Nova arrola em seu texto cinco pressupostos
teóricos para justificar a abordagem do uso das imagens como fonte documental na interpretação do
passado, problematizando os percursos e as transformações que foram gestadas na essência das
tecnologias imagéticas, bem como as suas modificações ao longo do processo de desenvolvimento,
trazendo ao debate reflexões epistemológicas a respeito do conhecimento histórico e as principais
tendências historiográficas reportando-se ao binômio: “imagem-história”. Cf.: NOVA, Cristiane. A
História diante dos desafios imagéticos. Projeto História. n.21 - História e Imagem. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São
Paulo, nov. 2000. p.141-62.
139
Figura 2 - Marcha para Brasília.197
A disposição dos militantes ao serem “enquadrados” na fotografia torna-se
peculiar. Organizados em fileiras, confundem-se com a disciplina militar ao se
postarem para o enfrentamento ou para apresentações cívicas. Chama a atenção,
também, para a ausência ou a invisibilidade da figura feminina no mesmo
“enquadramento” da fotografia em tela, embora a pesquisa já tenha revelado que
existia uma premissa de acolher, com bom grado, a participação feminina nas
tomadas de decisões, como atesta o JST.
Outro fator a ser observado é a opção dos militantes do MST em usar
camisetas brancas, em vez de vermelhas, revelando uma postura pacífica frente à
197
Foto: Douglas Mansur. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV.
MST, fevereiro de 1997.
140
opinião pública, ao darem início à caminhada no estado de São Paulo com destino à
Capital Federal. Já que nas ações coordenadas pelo movimento: passeatas,
ocupações de propriedades ou de prédios públicos, além de outros tipos de
protestos, os integrantes do MST usando camisetas ou bonés vermelhos 198 ,
simbolizando a luta e o enfrentamento.
Porém, a ação retratada nesta imagem mostra os militantes vestindo
camisetas brancas, sinalizando a abertura de um canal de comunicação entre a
sociedade e os poderes constituídos. Ao contrário da representação da cor
vermelha, o branco simboliza o diálogo entre as forças politicamente constituídas: de
um lado o MST, com sua pauta de reivindicações, e do outro o governo, negando as
reivindicações feitas pelo movimento.
Não obstante, conclui-se que a opção pela cor branca representa uma
trégua, significando a abertura de um diálogo entre o MST, a sociedade e o governo,
na tentativa de levar este último a reconhecer a legitimidade das reivindicações
apresentadas pelo movimento, buscando soluções para os conflitos presentes no
campo, assim, como na cidade.
A Marcha à Brasília configurou-se numa tentativa de evidenciar os caminhos
da política do governo de FHC, abordando os seus princípios básicos: 1) a luta pela
reforma agrária ampla, que realmente resolva os problemas dos 4,8 milhões de
famílias sem terra no país; 2) a luta pelo emprego, pois, em virtude da política
econômica do governo, em todo o país, havia 18 milhões de desempregados além
dos agricultores marginalizados; 3) a luta por justiça, denunciando a situação de
198
No livro Brava Gente, Fernandes indaga acerca do surgimento da Bandeira e o uso permanente
dos símbolos no MST. Stedile pontua que “[...] em qualquer organização social, em qualquer
movimento social, não é o discurso que proporciona a unidade entre as pessoas na base. O que
constrói a unidade é a ideologia da visão política sobre a realidade e o uso dos símbolos; são estes
que vão costurando a identidade. Eles materializam o ideal, tornam visível essa unidade invisível. [...]
A cor vermelha, por exemplo, caracteriza a tradição de luta, pela identidade da classe trabalhadora, é
um elemento ideológico muito forte [...]”. STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava
Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.132-3.
141
violência e a inconseqüente impunidade no campo contra latifundiários e policiais
militares, que matavam ou mandavam matar trabalhadores rurais em defesa do
latifúndio199.
Em face disso, esse mesmo número do JST trazia um manifesto de apoio
aos trabalhadores rurais brasileiros, assinados por cerca de setenta intelectuais jornalistas, escritores, deputados e membros de 11 universidades italianas - sendo
este divulgado na imprensa.
O documento demonstra apoio à reforma agrária brasileira, e pede ao
Presidente da República o fim da impunidade nos atos de violência no campo. Não
obstante, foi publicado quando o então Presidente do Brasil, Fernando Henrique
Cardoso, estava na Itália para receber o prêmio de cidadão honoris, promovida pela
Universidade de Bolonha.
Ao Professor Fernando H. Cardoso: [...] pedimos que dedique
um empenho extraordinário para que as condições dos
trabalhadores rurais brasileiros, particularmente os que já estão
acampados, com as próprias famílias, em latifúndios
improdutivos, adquiram uma posição de destaque em sua
agenda política, para que a reforma agrária e os recursos para
a sua atuação se tornem, de fato, um tema prioritário da ação
de seu governo, para que enfim, sejam prontamente
condenados às penas previstas pela Lei os que se mancharam
com os massacres dos camponeses.200
199
O editorial intitulado Uma marcha histórica à Brasília revela que o jornal assume declaradamente
“guerra” contra a política econômica e social de Fernando H. Cardoso. Alerta a população: “é hora de
lutar. Não de lamentações. E o MST estará empenhado junto a todas as forças populares e
progressistas, para unificação de esforços, organização das bases para construir um grande
movimento popular contra a política econômica neoliberal desse governo. Vamos mobilizar, vamos
lutar. É o único caminho para quem quiser mudar o Brasil”. JORNAL DOS TRABALHADORES
RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997. p.2.
200
Esse documento foi republicado pelo JST em fevereiro de 1997, porém, a fonte não informa em
qual jornal italiano o manifesto foi publicado. De qualquer forma, o texto coloca em evidência a
justeza do prêmio conferido ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Ao se reportar
à violência no campo e à falta de empenho do governante em promover a reforma agrária no Brasil. O
documento salienta que a realidade do campo brasileiro “ofende a consciência de qualquer pessoa
que luta pela defesa dos direitos humanos, não importando o País a que pertence ou seu credo
político. Isso é o que nos impele a erguer a voz e a dirigir, com respeito e firmeza, o nosso apelo ao
Presidente da República Federativa do Brasil, nestes dias de visita oficial à Itália”. JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997.
142
O documento cobrava ao Presidente da República o seu compromisso com
as causas sociais, sobretudo, aquelas que diziam respeito à reforma agrária e que,
dentre outros fatores, promoviam muitos conflitos e a morte de centenas de
trabalhadores rurais. Nesse sentido, destacava que, no período de 1980 a 1997,
registrou-se a morte de aproximadamente mil e quatrocentos trabalhadores no
campo, vítimas da violência envolvendo a posse da terra, sendo que apenas vinte
dos responsáveis por essa violência, foram processados e condenados.
Recuperava-se a tragédia ocasionada visando relembrar os massacres de
camponeses
de
Corumbiara
e
Eldorado
dos
Carajás,
já
conhecidos
internacionalmente. Segundo o JST, o documento circulou na imprensa italiana
quatro dias antes da chegada da Marcha dos Sem Terra, à Brasília, como se pode
observar na reprodução do manifesto datado de 13 de fevereiro de 1997.
A imagem a seguir retrata as três colunas de trabalhadores rurais que
encabeçaram a composição da Marcha à Brasília, que aportou no Distrito Federal,
no dia 17 de abril de 1997. De certa forma, busca-se traçar o percurso da caminhada
e sinalizar a quantidade de pessoas incutidas nesta luta nas três frentes abaixo
configuradas.
143
Figura 3 - Configuração das três colunas da Marcha à Brasília.201
Frente à proposta da Marcha, cabe observar que a luta contribuiu com o
debate político e a geração de ações sociais que, dentre outras coisas, trataram
sobre as transformações da sociedade. Nesse ínterim, a ação do jornal, somada às
experiências de lutas dos integrantes do MST, fundamentava a hipótese de que
ambos se portaram como porta-vozes daqueles que nunca tiveram a oportunidade
e/ou não puderam falar ao longo de suas trajetórias.
Os Sem Terra falam por nós. Eles nos representam. Nós não
podemos protestar porque temos medo de perder o emprego,
de exprimir nossas idéias. Preferimos navegar em projetos
apenas pessoais.202
No editorial “Reação à política de FHC” era denunciada a pobreza crescente
da população brasileira destacando que se torna
201
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.166, ano XV. MST, fevereiro de 1997.
p.10-1.
202
Entrevista com Milton Santos. O ESTADO DE S. PAULO. São Paulo, 19/01/1997. Ver também:
SANTOS, Milton. Território e Sociedade (Entrevista com Milton Santos). 3ª reimpressão. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2007. p.56-9.
144
cada vez maior o contingente de trabalhadores desempregados
ou que sobrevivem de sub-empregos, sem direitos trabalhistas
e sendo levados a viverem em favelas ou a morarem embaixo
de pontes e viadutos, levados a se prostituírem e serem
levados às drogas e ao crime organizado.203
O jornal classificava a política econômica do governo na área rural de
desastrosa, pois as informações acima evidenciam uma grande crise. Para isso,
basta observar a informação de que o Brasil, país exportador de algodão, passou a
importar o mesmo produto.
Nesse sentido, o jornal não se esquiva em criticar a inoperância do Ministro
Raul Jungman (à época), com relação à implementação da reforma agrária.
Segundo o jornal, esse ministro apresentava duas preocupações: a primeira de não
negociar com trabalhadores rurais sem terra e a segunda de aparecer na mídia com
muita freqüência para contar “mentiras”.
Por fim, salienta-se que no dia 17 de abril de 1997 aportaria em Brasília -DF,
a “Marcha que certamente marcará a luta contra a política neoliberal do governo
FHC” 204 . Nesta se configurará “todo o descontentamento da nação brasileira
envolvendo não apenas os trabalhadores rurais, mas todos os setores que
defendem um projeto de Nação para o Brasil”205.
Portanto, nesse momento, percebe-se que o projeto político do jornal
pautava-se além da reforma agrária, propalando a construção de um projeto social
para a Nação. Essa idéia seria cotejada pelo mesmo por mais de seis anos, durante
todo o período do primeiro e segundo mandato presidencial de Fernando Henrique
Cardoso, evidenciando a correlação de forças entre governo e movimento social,
cujo desfecho desembocaria na ascensão de outras forças sociais ao poder.
203
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2.
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2.
205
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2.
204
145
Para o editorial, após sessenta dias de tensão e expectativa, chegava à
Brasília a Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça206, coroando o
seu principal objetivo: a abertura de um canal de comunicação com a sociedade.
Essa proposta se tornou real quando o jornal observa que “por onde a marcha do
MST passou promoveu debates, reuniões e encontros para esclarecer os problemas
da reforma agrária e as questões sociais do país”207.
Dessa forma, entende-se que o objetivo de levar à sociedade a informação
de que “a política econômica do governo estava acabando com a agricultura familiar,
com o emprego rural e com a produção de alimentos”, tornou-se um indicativo de
que a Marcha cumpriu o seu papel social, levando parte da sociedade à reflexão de
que era possível mudar a realidade por meio da luta e da organização popular.
No momento da audiência com o Presidente, lhe foi entregue um manifesto,
evidenciando as experiências dos trabalhadores e suas inquietações frente às
imposições. No texto figuravam as representações sociais e inquietações gestadas
na experiência da luta, reportando-se aos trabalhadores e seus simpatizantes:
Eles são homens da terra. Homens que andam entre as cercas,
iluminadas pela fogueira dos acampados, vigiados pela
multidão de civis e pelas armas do latifúndio; Eles são homens
e mulheres que se recusaram a disputar com os ratos o lixo
das grandes cidades, para matar a fome; Eles dizem com seus
gestos que nesse país há lugar para todos. Que terra ociosa é
crime num país de milhões de migrantes; Eles mostram à
206
Após percorrer mais de 1000 km Brasil adentro, a Marcha pela “Reforma Agrária, Emprego e
Justiça” aporta em Brasília no dia 17 de abril de 1997. Junto a esta se reuniram as mais diversas
forças políticas da sociedade brasileira (artistas populares, sindicalistas, partidos políticos,
movimentos populares e democráticos, estudantes, professores, jornalistas e pessoas comuns).
Apesar deste evento ocasionalmente ter partido da iniciativa do MST, torna-se inegável a insatisfação
popular com relação à gestão do governo Fernando H. Cardoso naquele momento. A Marcha em si
constituiu-se numa grande aula de política e na efetivação da democracia em nosso país. Segundo o
jornal, o Presidente FHC salientou que o apoio destas forças sociais à Marcha não representava
muita coisa, pois elas “não passavam de oportunistas que pegaram carona no MST”. Este fato foi
contestado pelo Movimento, pois foi por meio do apoio destas, que a Marcha ganhou maior
visibilidade, tendo se projetado nacional e internacionalmente, forçando o governo brasileiro a abrir
canal de comunicação com os trabalhadores rurais sem terra.
207
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST, mar. 1997. p.2.
146
nossa indiferença as mãos afeitas ao trabalho e os olhos
acesos, afeitos de sonhos. Eles carregam o fogo sagrado da
esperança; Eles exigem o fim da violência no campo e a
sociedade indaga com eles porque não foram punidos os
assassinos e mandantes do massacre de Corumbiara e
Eldorado dos Carajás? E nós, artistas e intelectuais exigimos,
com eles, Reforma Agrária como condição para recuperar a
decência, a dignidade e construir a democracia.208
O manifesto traduzia as representações sociais das experiências de lutas
vividas pelos trabalhadores rurais sem terra. O texto remontava essa trajetória, mas
também, recuperava a idéia de omissão do poder público ao negar a violência no
campo, fruto da má distribuição da terra. O documento destacava o anseio por
justiça social, sobretudo, pela punição aos envolvidos nos massacres de
trabalhadores rurais de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, sintetizando a luta
desse grupo social em constante movimento.
O editorial intitulado “Continuamos em marcha contra o neoliberalismo”209
registrava com precisão como se deu essa audiência com o Presidente, pontuando,
que para o MST, esse foi o momento em que se confirmou a representação que os
trabalhadores rurais tinham dessas audiências, traduzidas como um jogo de futebol.
“Elas não determinam o resultado, apenas registram o placar estabelecido no
campo. O jogo foi a Marcha. A chegada à Brasília e a manifestação popular foram a
comemoração”, comprovando que era preciso mudar concepções para transformar
estruturas secularmente cristalizadas. Ao sentar-se à mesa com o Presidente da
República, foi dito pelos integrantes do MST que eles
208
O Documento entregue ao Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, assinado por
Oscar Niemeyer - Arquiteto; Ângelo Antonio - Ator; Paulo Betti - Ator; Leonardo Boff - Sociólogo;
Letícia Sabatela - Atriz; Luiz Fernando Veríssimo - Escritor; Lucélia Santos - Atriz e Produtora; Chico
Alencar - Professor; Sérgio Lessa - Filósofo; José de Sousa Martins - Sociólogo; Francisco de Oliveira
- Sociólogo; Ferreira Gullar - Poeta; Jurandir Freire Costa - Psicanalista; Emir Sader - Professor e
Escritor, entre outros, tornou-se alerta para que a política de Estado do governo federal ganhe uma
outra configuração. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.167, ano XVI. MST,
março de 1997. p.3.
209
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abril/maio 1997.
p.2.
147
Não estavam ali para fazer reivindicações pontuais sobre a
reforma agrária. Estavam ali para apresentar o resultado do
debate que se tinha feito com a sociedade e para manifestar a
sua oposição ao seu projeto de governo.210 [grifos meus]
Nesse momento, reafirmou-se a posição do movimento enquanto grupo
social e porta-voz da população pobre do país, ao passo que se denunciava a
política vigente como algo prejudicial à nação. Percebe-se que além da denúncia
formalizada nessa oportunidade, os Sem Terra tinham o cuidado de levar consigo
testemunhas representes de outros setores da sociedade: “os artistas, a igreja, o
sindicalismo, o movimento das mulheres e os povos indígenas”211, para dizerem ao
governo o tamanho de sua insatisfação.
Em suma, um dos resultados fundamentais da Marcha foi a visibilidade
atribuída à chamada “questão agrária”, ao desemprego massivo, à fome e à
vulnerabilidade dos trabalhadores rurais frente à política econômica imposta ao país
e o desafio de sobreviver nas interfaces do mundo globalizado.
Segundo o JST, a marcha criou a “oportunidade para a população se
manifestar contra o projeto neoliberal deste governo de modo a exigir mudanças na
política econômica vigente no país”212.
O editorial evidencia que a experiência da Marcha possibilitou a percepção
de que os grupos que lhe apoiavam, apresentavam também um significativo desejo
de lutar. Com isso, demonstrou-se que “os excluídos de qualquer benefício
econômico, social ou político não estão vencidos”, principalmente ao afirmar que
“por onde a marcha passou deixou um rastro de esperança”, mobilizando os mais
diversos setores da sociedade.
210
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abr./mai. 1997.
p.2.
211
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abr./mai. 1997.
p.2.
212
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.168, ano XVI. MST, abr./mai. 1997.
p.2.
148
Os protestos urbanos a respeito dos direitos comuns tornam-se
freqüentemente mais grandiosos e visíveis do que os rurais, e
mesmo estes não sendo uma característica das práticas
agrárias, eles ainda podem nos oferecer uma porta de entrada
para o exame das questões mais gerais do direito comum.213
Nessa perspectiva, a análise dos editoriais confirmou a hipótese de que o
jornal do MST, ao longo do primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique
Cardoso, teceu ações de oposição para que o seu segundo mandato não fosse
concretizado, pretendendo levar ao poder a chapa Lula/Brizola. Esse ideal fez parte
do quarto item da pauta implementada em 1998 pelo MST.
O editorial intitulado “1998: grandes desafios pela frente”, descrevia o IX
Encontro Nacional do MST, realizado nas dependências da Universidade Federal do
Espírito Santo e chamava a atenção para os cinco pontos da pauta a ser aprovada e
cumprida ao longo deste ano:
1) Massificar a luta pela Reforma Agrária, mobilizar os
companheiros para juntos desmascarar a política de FHC;
2) Mobilizar os assentamentos para recuperar as conquistas do
Procera;
3) Melhorar a nossa organicidade interna, nos assentamentos e
acampamentos e em todas as atividades do MST por meio de
nossas práticas e valores;
4) Participar ativamente da campanha eleitoral, procurando
engajamento à candidatura Lula-Brizola, mobilizando nossas
bases e politizando a sociedade, transformando a eleição
presidencial numa grande derrota ao modelo neoliberal;
5) contribuir com as demais organizações sociais, do
movimento sindical, das igrejas, dos intelectuais e dos
militantes em geral para a construção de um projeto popular
para o Brasil.214 [grifos meus]
Os pontos acima destacavam a retomada do debate sobre a reforma agrária,
buscando a recuperação de projetos que visavam à melhoria da qualidade de vida
nos assentamentos. Outro ponto que chamava a atenção era o apoio declarado do
213
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia da Letras, 1998. p.102.
214
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.176, ano XVI. MST, fev. 1998. p.2.
149
MST à campanha eleitoral para a presidência da República, em 1998. Apesar do
cenário político confortável ao qual desfrutava o governo da situação, o jornal em
tela acreditava na vitória dessa chapa, vista como oposição, mantendo-se
permanentemente engajado na luta pela reforma agrária.
O objetivo de levar ao poder um partido de tendência de esquerda se
configuraria no maior desafio para o MST nos próximos anos. Para isso, o
Movimento atentava-se para a construção de um projeto popular contemplando
reformas de base para o país (desejo latente das forças políticas progressistas
desde a derrubada de João Goulart, em 1964215).
Descontentes com o cenário político vivido pelos trabalhadores rurais e
urbanos, além de grupos sociais organizados, os demais editoriais216 preocupavamse em enfrentar, denunciar e questionar uma série de práticas do governo, setores
da elite e da própria mídia. No editorial intitulado “O medo de FHC” era explicito que
o jornal não poupou adjetivos para exemplificar o comportamento da “elite”,
representada pela “mídia e pelo governo”, que buscava a toda sorte não realizar a
reforma agrária e “combater aqueles que lutam por ela”, ou seja, contestar as ações
dos integrantes do MST.
215
A rigor, a proposta de reforma agrária almejada pelo então João Goulart pautava-se pela
“alteração da § 16 do Art. 141 da Carta Constitucional de 1946, em que condicionava as
desapropriações de terra a previa e justa indenização em dinheiro”. Tal procedimento, sem dúvida,
inviabilizava o pretenso desejo de ampliação de distribuição de terra. A atitude do Presidente gerou
desconforto nos mais diversos setores da sociedade: “proprietários rurais, setores da igreja,
congressistas liberais e conservadores e setores da imprensa”, ambos denunciaram o teor
revolucionário da reforma propalada por Goulart. Segundo Darcy Ribeiro, o que “Jango tentou fazer
não tinha nada de ousado nem de radical. Ele dizia que se o número de proprietários rurais fossem
elevados de 2 para 10 milhões, a propriedade seria muito melhor defendida [...] possibilitando mais
pessoas a comer, a se educar melhor, a viver mais dignamente. Por isso, é que Jango, latifundiário,
queria fazer a Reforma Agrária para defender a propriedade e assegurar a fartura”. Cf.: TOLEDO,
a
Caio N. de. O governo Goulart e o golpe de 64. 17 reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1997.
p.55.
216
Paulo Sérgio Pinheiro assinala que “os jornais fornecem generosas informações sobre a
sociedade de uma época, sobre as condições de vida (ou de sobrevivência) das classes subalternas,
sobre as suas manifestações culturais e se configuram em verdadeiros instrumentos para a
reconstrução da dimensão política da história social no país”. Cf.: FERREIRA, Maria Nazaré. A
Imprensa Operaria no Brasil: 1880-1920. Petrópolis - RJ: Vozes, 1978. p.13.
150
Para o jornal “houve uma reação coesa das elites para combater a
mobilização dos trabalhadores [...] todos os meios foram utilizados para tentar
descaracterizar,
inibir
ou
desmoralizar
as
ações
reivindicatórias
dos
trabalhadores”217, ou seja, tornou-se crescente a tentativa de isolar o Movimento dos
Sem Terra. O editorial denuncia que “o governo tentou nos caracterizar de violentos”
e essa idéia foi divulgada amplamente pelos jornais de grande circulação. As ações
de ocupações de prédios públicos passaram a receber mais espaços na mídia sendo
incorporadas,
posteriormente,
aos
discursos
de
alguns
intelectuais
que
caracterizaram estas ações como “práticas instáveis com inclinação para violência,
justificando a defensiva do estado”218.
Para o jornal, essa postura já era esperada, uma vez que o próprio editorial
confirmava que alguns meios de comunicação da imprensa (não citados) foram mais
além: “buscaram criar um clima de tensão social e a exigir do governo uma ação
mais enérgica contra os trabalhadores”. A rigor, manifestação semelhante teria
ocorrido nos anos 1930, quando “a imprensa paulista expressa o temor dos
dominantes com relação à classe trabalhadora desempregada, desencadeando um
intenso debate sobre a questão social no período [...] cuja preocupação voltava-se
para os sem trabalho”219 (grifos meus).
217
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, março de 1998.
p.2.
218
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2002. p.297-8. O autor justifica a
presença do Estado na tentativa de conter a fúria dos trabalhadores rurais, mas não apóia a violência
cometida pelos policiais militares estaduais contra as ações massivas dos trabalhadores. Alerta que
“a modernização do campo e a concentração da propriedade” tornaram-se fatores importantes para
estas mobilizações agrárias. Destaca que “em 1980 os minifúndios (propriedades agrícolas com
menos de 10 hectares) representavam 50,4% do número de estabelecimentos, ocupando apenas
2,5% da área total de terras. Ao outro extremo estavam os latifúndios (unidades com mais de 10 mil
hectares) constituindo apenas 0,1% dos estabelecimentos, mas detinham 16,4% da área total de
terras”. Os dados apresentados pelo autor por si só justificam as ações do MST.
219
CAPELATO, Maria Helena R. Os interpretes das luzes: liberalismo e imprensa paulista – 19201945. Tese (Doutorado em História), FFLCH, USP, São Paulo, 1986. p.231-2. Os sem trabalho é uma
referência ao projeto liberal propalado pelo Jornal O Estado de São Paulo. À época, houve uma
enorme repressão à mendicância, pois esta era “entendida como um problema social dos mais graves
ao passo que se tratava de elementos negativos, prejudiciais à nossa vida e nocivos ao nosso
151
A posição do jornal era de que as suas reivindicações não justificavam todo
esse esforço do governo e de determinados setores da elite. “O que se cobrava era
pouco”. Na verdade, a questão da reforma agrária é histórica e se esse reparo social
fosse feito de forma responsável e democrática “não se correria o risco de
comprometer as finanças do governo nem o orçamento público, sempre muito bem
estruturado para atender os interesses da elite”220.
Esta última é compreendida como termômetro, que norteia as ações dos
governos, sabendo muito bem o momento certo de entrar e o de sair de situações
conflitantes, sejam elas políticas, sociais ou econômicas. Com isso, o cenário de
incertezas estava posto. Não tardou muito para que parte desta elite percebesse que
a conjuntura política estava ganhando novos contornos, e que alguns de seus
privilégios poderiam ser comprometidos num curto espaço de tempo.221
À luz de uma prática social velada, o JST pontuou que “até então com o
massivo apoio da mídia era possível escamotear a gravidade da crise social vivida
no país”, porém, o cenário de tensão social era outro:
Fome, desemprego, carestia, achatamento salarial, traduzindose em: resistência de camelôs – refúgios dos desempregados
nos grandes centros urbanos; greve de professores
universitários; saques nas regiões das secas nordestinas;
ocupações de prédios e terrenos pelos movimentos de luta
pela moradia; caravana dos desempregados; manifestações de
motoristas de transportes urbanos; mobilizações da luta pela
reforma agrária e dos pequenos proprietários agrícolas por
crédito rural.222
progresso”. Nesse momento, a repressão à mendicância pela polícia foi considerada “ato heróico que
mostra que somos uma terra civilizada”.
220
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, mar. 1998. p.2.
221
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.179, ano XVI. MST, nov. 1998. p.2. O
editorial intitulado “Um pacote ante-social e inútil” trazia manifestação de setores da elite, antes
aliados ao governo e que, agora, à luz das tensões sociais criticavam o modelo econômico em
vigência. O jornal informava que “um grupo de empresários nacionalistas fizeram manifestos
violentíssimos contra o governo de FHC, inclusive a diretoria da Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo (FIESP)”.
222
A rigor, uma vez colocada a questão, não seria possível esconder mais as tensões sociais que o
Presidente insistia em negar. Negação esta traduzida pelo jornal da seguinte forma: “não existe crise
na agricultura. O que existe é apenas agitação política feita pelo MST, com fins eleitoreiros”. O
152
O editorial intitulado: “Governo FHC: quatro anos de enrolação”, publicado
em dezembro de 1998, traduziu como foi a experiência do primeiro mandato do
governo de Fernando H. Cardoso: “foram quatro Presidentes do Incra, três Ministros
da Agricultura, um Ministro extraordinário da Reforma Agrária e muitas mentiras
frente à opinião pública”.
O texto salienta que na perspectiva de reforma agrária do governo
corroborava a mesma visão conservadora de setores da elite agrária, colocando que
“o latifúndio não representa perigo algum para o desenvolvimento do capitalismo e
de seu modelo neoliberal”. Nessa lógica, se “o latifúndio não é problema, não há
necessidade de se aplicar o remédio da reforma agrária, com uma política ampla de
democratização da propriedade”223.
Desta forma, o governo passou a atuar na defensiva, agindo nas frentes de
assentamentos rurais. Isso significa que, aos grupos de sem terra que se
organizassem e resolvessem lutar incessantemente pela sua manutenção na área
rural, logo lhes seria concedido uma pequena gleba de terra, uma vez que, a sua
ansiedade não se configuraria num problema político.
Essa postura se afirmou numa frente de política de compensação social para
evitar maiores conflitos no cenário político nacional, escamoteando-se um projeto de
reforma agrária ampla, conforme anseio de setores da sociedade e dos próprios
trabalhadores rurais. O levantamento feito pelo JST informava que, ao final desses
quatro anos de governo, cerca de quatrocentos mil pequenos proprietários perderam
as suas terras, quase dois milhões de trabalhadores ficaram sem seu trabalho na
agricultura e aumentou a concentração da terra, como atestou também a pesquisa
editorial alertava: “é necessário que os movimentos sociais continuem se organizando e lutando não
só por seus direitos, mas, sobretudo, contra esse modelo econômico implantado pelo governo de
FHC”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.179, ano XVI. MST, maio/junho
1998. p.2.
223
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.185, ano XVII. MST, dez. 1998. p.2.
153
feita pelo IBGE, em 1996. O IPEA revelava ainda, que havia no campo, nesse
momento, cerca de 4,9 milhões de famílias sem terra que precisam de reforma
agrária, corroborando os dados levantados pelo MST e negados veementemente
pelo Presidente da República.
Reportando-se aos recursos federais destinados à reforma agrária, a fonte
evidenciava que, em 1995, o governo cortou aproximadamente 12% dos recursos
aprovados em anos anteriores para essa finalidade; em 1996, eliminou mais 13%;
em 1997, 40% e, em 1998, previsão para 1999, corte de 50%, dados que revelavam,
por si só, a falta de vontade de se realizar uma reforma agrária.
Quanto aos dados de violência no campo, a documentação atestava que
mais de 150 pessoas foram vítimas de mortes nesses quatro anos, sendo que, em
igual período, registraram-se os dois maiores massacres no campo, perpetrados
pela polícia militar: Corumbiara e Carajás.
Estando convencido de que houve mais perdas do que ganho ao longo
desses quatro anos, o jornal indagou-se: o que esperar de um governo assim, que
agora vai começar mais quatro anos224. Os títulos apresentados nas tabelas 3, 5 e 6
sugeriam uma melhor compreensão do embate político vivido no período de 1996 a
1998, envolvendo o MST e o governo. Portanto, os editoriais descortinavam as
ações veladas e traziam o vigor do MST, enquanto movimento social, à luz das
tensões políticas, demonstrando inclusive sua articulação com os mais variados
setores da sociedade.
Em suma, em alguns números do jornal existiam certa variação no que
tange o teor das pressões feitas ao governo reivindicando a reforma agrária. Porém,
224
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.185, ano XVI. MST, dezembro de
1998. p.2. Provavelmente esse sentimento de tristeza era conseqüência da derrota da Chapa
Lula/Brizola à presidência da república, o que tornou cada vez mais distante o sonho da realização da
Reforma Agrária almejada pelo MST e seus simpatizantes.
154
os temas evidenciados nas tabelas citadas eram representativos de cobranças
políticas de ampla magnitude, reportando-se não apenas aos anseios dos
trabalhadores rurais sem terra, mas, sobretudo, pautado por reivindicações de
caráter nacional.
Nesse cenário de tensão e poder, a pesquisa entende o JST como sujeito
histórico, que não se limitou a registrar e a mapear o processo de desenvolvimento
das tensões sociais no campo, mas procurou atuar no sentido de intervir e modificar
a situação social dos trabalhadores rurais desprovidos da terra em todo o país. As
denúncias feitas à sociedade e a constante pressão ao governo contra as
privatizações das empresas estatais (Vale do Rio Doce, Petrobrás, Telefonia e a
política monetária internacional do governo) marcavam uma nova etapa do discurso
propalado pelo jornal.
Seus editorais sinalizaram para um significativo enfrentamento aos governos
anteriores e, de forma mais precisa, ao governo de Fernando H. Cardoso. Apesar
das desigualdades no que tange à correlação de forças entre Estado e movimento
social, não resta dúvida de que o cenário configurou-se numa busca constante pelo
poder, observando que o jornal não se esquivou do seu papel de informar, denunciar
e noticiar as tensões prementes no campo e na cidade. O periódico procurou
enfrentar com clareza o projeto econômico apresentado à nação brasileira pelo
então Presidente da República, bem como colaborou na construção da identidade
do MST e na preservação da memória dos trabalhadores rurais sem terra.
Portanto, em alguns momentos, os editoriais buscaram fazer o papel da
chamada “grande imprensa”, no que tange ao questionamento das privatizações das
empresas estatais e na denúncia formal da ausência de política pública para a
implementação da tão propalada reforma agrária a contento. Sem desconsiderar as
155
pretensões políticas do jornal quanto a sua afirmação no poder e/ou a sua constante
busca pela promoção de outros grupos sociais por ele representados, tornam-se
inegáveis sua oposição aos governos e o enaltecimento de sua bandeira de luta,
principalmente, ao buscar, de forma incessante, a reforma agrária como instrumento
de redução das desigualdades sociais evidenciadas no país, que serão reveladas
nas falas das lideranças entrevistadas pelo jornal e ainda analisadas no próximo
capítulo.
156
CAPÍTULO III - O JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS
SEM TERRA: INSTRUMENTO DE LUTA
O jornal é a nossa voz.
Fazemos tudo para que seja bem distribuído.
Mandamos para os sindicatos
que têm consciência dos problemas do campo.
No acampamento, fazemos a leitura, estudo mesmo, em
grupos.225
225
Entrevista com Fátima Ribeiro, Direção Nacional do MST, Ceará. JORNAL
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177, ano XVI. MST, junho de 1989. p.17.
DOS
157
O presente capítulo debruça-se sobre as experiências de lutas dos
trabalhadores rurais sem terra, aqui representados pelas lideranças do MST, por
traduzirem as memórias do cotidiano dos sujeitos sociais imbricados no Movimento.
Ao serem inquiridos sobre essas experiências, suas lembranças se potencializaram
e ganharam novos contornos, ocupando as páginas do JST, em formato de
entrevistas226, sendo este foi percebido como um espaço privilegiado para a difusão
de suas falas, no intuito de promoção e construção de uma identidade nacional para
o Movimento.
A discussão a seguir procura dialogar com as entrevistas, atribuindo
visibilidade às lideranças formadas no Movimento, que por sua vez contribuíram com
a organização do próprio periódico. Dessa forma, os trabalhadores sem terra
desenvolveram-se politicamente com a percepção de recriarem expectativas, não
somente no campo, mas também em setores da sociedade em áreas urbanas, já
que ambos partilham o desejo de efetivação da reforma agrária para o Brasil.
226
Embora as entrevistas tenham sido elaboradas por jornalistas do JST e não pelo pesquisador,
assinala-se que parte das suas questões corroboram as inquietações propostas nesse trabalho,
principalmente pelo seu caráter histórico e qualidade das suas narrativas. Tal fato levou,
necessariamente, o pesquisador a lançar mão da análise do discurso enquanto metodologia de
pesquisa, viabilizando a interpretação das impressões e/ou posições políticas dos trabalhadores tão
evidenciadas nos seus relatos que, ao serem analisadas, fizeram com que “o objeto de estudo fosse
recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes”, aqui identificados como
lideranças do MST ou entrevistados do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Cf.: AMADO,
Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV,
a
1996. p.xiv. BRANDÃO, H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7 ed. Campinas - SP: Unicamp,
s/d. Após a seleção das entrevistas, passou-se à etapa de análise, destacando “os aspectos políticos
da comunicação do entrevistado, os aspectos psicológicos e éticos”, de modo a valorizar o
documento, expandindo o olhar sobre a problemática da ausência de terra para os trabalhadores
rurais articulados no MST e as ações impetradas por estes junto ao poder público. Porém, nota-se
que as entrevistas anteriores com essas lideranças geralmente apresentaram-se de forma semiestruturada, garantindo ao entrevistado a oportunidade de discorrer sobre o assunto que tinham
domínio. Sobre como proceder e analisar entrevistas, ver: LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A.
a
Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. 1 reimpressão. São Paulo: Editora Pedagógica
Universitária, 1985. p.41.
158
Também, pretende-se recuperar a presença da mulher nesse cenário de luta,
por meio de suas ações e representações nos setores de negociação e da educação.
Com contribuições fundamentais para uma melhor organização das atividades no
campo, elas buscavam uma redução da desigualdade de gênero presente no
Movimento, como ficou explicitado em alguns relatos.
Portanto, coteja-se a trajetória dos trabalhadores rurais antes de sua
inserção no Movimento, como estes observam e explicam a realidade política e
social do país, mas também, de que forma, procuravam intervir nesta no sentido de
mudá-la.
O capítulo em tela traz à luz as ações que envolviam os trabalhadores rurais
sem terra, estabelecendo um diálogo com suas lideranças nas cinco regiões do país,
visando descortinar diferenças e semelhanças no que se refere à atuação destes ao
se inserirem no MST. Nesta pesquisa, pondera-se que suas aspirações foram
compreendidas como experiências de lutas, no sentido da construção de uma
história mais ampla que se caracteriza pela introdução dos conceitos de diferenças e
semelhanças, no que concerne à interpretação dos discursos das lideranças ao “se
fazerem” representantes do Movimento.
Desse modo, para a problematização das nuances, particularizou-se uma
Unidade da Federação por região do país, sendo: na região Nordeste, o estado do
Ceará; na região Sul, o estado do Rio Grande do Sul; na região Sudeste, o estado
de São Paulo; na região Centro-Oeste, o estado do Mato Grosso do Sul; na região
Norte, o estado do Pará. Para cada uma das regiões, selecionou-se uma seqüência
de entrevistas com representantes do MST, assegurando uma melhor percepção do
que estava acontecendo nos estados brasileiros onde o Movimento estava
organizado.
159
3.1 DIÁLOGOS COM LIDERANÇAS DO MST
A partir da análise dos relatos de experiências vividas historicamente pelos
trabalhadores sem terra, revela-se a percepção que estes tinham da realidade
política e social do país, bem como suas aspirações elaboradas a partir de suas
inserções no MST. Porém, percebeu-se que em seus discursos e representações
avaliados anteriormente, ao serem decodificados a “percepção do social, não são de
forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas que tendem a
impor uma autoridade, legitimando projetos e justificando suas escolhas e
condutas”227.
Portanto, nesta trajetória, desvelaram-se sujeitos históricos antes e durante
a inserção no Movimento, descortinando as atuações políticas nos momentos de
tensão, e levando-os a elaborarem novas perspectivas acerca da realidade política,
por eles vivida.
Problematiza-se, também, de que forma o jornal evidenciou os conflitos e a
participação dos entrevistados nas decisões políticas acertadas no movimento,
assim como, suas pretensões enquanto organização articuladora de forças
contrárias ao poder instituído. Observa-se a pertinência dos relatos dos
entrevistados ao descreverem suas conquistas, suas experiências, seus sonhos e
possibilidades de dias melhores nas páginas desse jornal.
Dessa forma, vislumbra-se uma reflexão acerca das intervenções aferidas
pelos entrevistados, no sentido de romper com as estruturas políticas ainda
227
Chartier assinala na mesma direção que “as representações sociais estão sempre atreladas a um
determinado campo de concorrências e de competições, cujos desafios se enunciam em termos de
poder e de dominação”. Observa que “é a partir das representações que se podem compreender os
mecanismos pelos quais grupos se impõem, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os
valores que são seus, e o seu domínio”. Portanto, é nesse cenário, que se discute as entrevistas dos
trabalhadores rurais sem terra, na tentativa de localizar e problematizar os “pontos de afrontamentos”
pensados por Pierre Bourdieu (1979). Cf.: CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e
representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p.17.
160
cristalizadas no país, nas tentativas de mudar o cotidiano e construir outro cenário
para sua sobrevivência e a dos demais trabalhadores imbricados na luta pela terra.
Descortinam-se as representações sociais destes trabalhadores ao se
atribuir visibilidade às suas experiências enquanto sujeitos sociais, focalizando a sua
politização bem como sua percepção do MST e importância deste para a
transformação do espaço social por eles disputados 228 , especificamente para
aqueles que viviam nos campos, mas também nas cidades.
O presente capítulo está estruturado em sete subitens e nestes constam a
discussão de uma seqüência de entrevistas elaboradas e publicadas pelo JST, na
perspectiva de evidenciar e problematizar as representações das lideranças do
Movimento, destacando as falas implícitas 229 e explícitas nas entrevistas dos
membros das cinco regiões do país, representando a Coordenação Estadual,
Direção Nacional e Lideranças de Núcleos e/ou Setores do MST.
Nesse sentido, é importante pontuar que a seqüência de questões pensadas
pelo periódico comum a todos os entrevistados, elas diziam respeito à situação dos
trabalhadores rurais nos assentamentos e acampamentos; aos investimentos do
228
Sob a perspectiva de Bourdieu, qualifica-se a definição de espaço físico e espaço social, sendo o
primeiro definido pela “exterioridade mútua das partes e o segundo pela exclusão ou distinção das
posições que o constituem”. A rigor, “o espaço social é um dos lugares em que o poder se afirma e se
exerce, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica”, emergindo “as lutas pela apropriação do
espaço” físico, transformando-o em espaço social, descortinando os conflitos e as tensões sociais, ao
desembocar na luta da “coletividade”. BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: Idem (Org.). A miséria
do mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p.160-3. No caso dos integrantes do MST, a tensão se
confirma pela posse do espaço e da terra, pelo crédito rural, por melhores estruturas nos
assentamentos, mas também pelo poder, não apenas o poder simbólico de enfrentar as forças
governamentais enquanto movimento social, mas o poder representativo, conforme assinala Martins:
“Quando o MST anunciou que lançaria os seus membros a candidatos para disputarem cargos
eletivos por diferentes partidos, em julho de 1998”, demonstra-se um descolamento dos discursos dos
trabalhadores rurais com relação aos “discursos proletários e socialistas do século XIX e que o
Movimento até então fazia uso.” Essa mudança de postura da organização os tornou “agentes
principais da modernização do campo”. MARTINS, J. S. A sociabilidade do homem simples:
cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Edusp, 2000. p.46.
229
As falas ausentes nos discursos dos entrevistados serão entendidas como silêncios, sendo estes
traduzidos pela prática do não dizer, pelo não fazer transparecer suas estratégias de luta. Essa
postura, portanto, é problematizada na perspectiva do não dito, ou seja, “não pode ser interpretado
como esquecimentos, mas como elementos constitutivos da consciência coletiva”. Cf.: SILVA, Maria
Aparecida de M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da Unesp, 2004. p.87.
161
governo para garantir o desenvolvimento contínuo dos mesmos; reportava-se acerca
da organização dos trabalhadores em cada região e/ou estado; questionava como
as lideranças avaliavam a política de reforma agrária dos governos, particularmente
do presidente Fernando H. Cardoso ao término de seu primeiro mandato. Procurou
questionar quais eram os desafios e perspectivas dos trabalhadores rurais nos
assentamentos e acampamentos; indagou sobre os casos de violência no campo e
como estes foram tratados pelas autoridades, inclusive pelo Poder Judiciário.
Também, procurou captar a percepção das lideranças a respeito dos setores de
produção e educação e o cooperativismo como possibilidade de desenvolvimento
econômico sustentável no campo, por exemplo.
Reportando-se à seqüência de entrevistas trazidas pelo JST dentro do
período delimitado pela pesquisa (1981-2001), alguns critérios tornaram-se
necessários para se fazer o recorte no corpo documental, iniciando-se pela
quantidade de entrevistas com lideranças e os estados que seriam representados
por estas. A escolha dos estados esteve condicionada à quantidade de entrevistas
feitas pelo jornal. Portanto, nota-se que em alguns estados existiu a realização de
uma ou duas entrevistas com lideranças, fator que inviabilizou a sua escolha.230
Para tanto, tentou-se observar dados pessoais que figuravam nas
entrevistas e que, de certa maneira, identificava melhor o entrevistado, possibilitando
uma caracterização mais completa. Nesse sentido, as entrevistas deveriam
contemplar: a procedência das lideranças, naturalidade, gênero, idade, estado civil,
230
A princípio, não se pensou em interpretar a mesma quantidade de entrevista por estado. Em
termos quantitativos, a preocupação era discutir, para cada Unidade da Federação, uma série de três
a cinco entrevistas, levando-se em consideração a aproximação das questões contempladas em cada
uma delas. Por opção metodológica, algumas das entrevistas trazidas pelo JST não foram
trabalhadas nesse momento, tendo em vista, que parte delas figurou com um número reduzido de
questões e com dados poucos precisos para a presente pesquisa. Entretanto, tal opção não significa
afirmar que as entrevistas não usadas sejam irrelevantes enquanto fonte histórica. Ademais, tornouse inviável a utilização de todos os relatos, uma vez que a fonte em questão apresentou um número
expressivo dos mesmos ao longo da última década do século XX, levando o pesquisador a lançar
mão da interpretação destes relatos por amostragem, como pode ser observado a seguir.
162
ocupações exercidas anteriormente ao seu ingresso no MST, bem como, as
atividades desempenhadas nos determinados setores em que eles atuavam no
Movimento.
Também se valorizaram as referências dessas lideranças a respeito da
solidariedade entre os trabalhadores rurais e urbanos, como estas se percebiam e
como compreendiam o outro, num imbricamento do cotidiano de luta, como lidaram
com as incertezas de não obterem um pedaço de terra ou de não conseguirem fazer
a terra produzir após a conquista.
Visando potencializar a “territorialização e consolidação do MST”231 em cada
estado, considerou-se a constituição de uma “estrutura própria”, de modo a
assegurar o funcionamento da Coordenação, da Direção, da Secretaria, dos
Setores, Comissões e Núcleos nos acampamentos e assentamentos.
Desenhando esse cenário, elucidavam-se indícios de que os trabalhadores
rurais sem terra construíram “suas instâncias de representação”, sendo as falas das
lideranças problematizadas à luz desse capítulo. É fundamental destacar que essa
plataforma de organização, definida pelo MST, construiu-se de experiências
históricas de lutas a partir das tensões envolvendo os próprios trabalhadores rurais.
Tais experiências seguiram a tendência de construção de uma organização
autônoma, capaz de socializar “conhecimentos dos direitos, romper com o
isolamento e ampliar as lutas, configurando alguns dos objetivos definidos pelo MST
na tentativa de construção de novos espaços de luta pelo território nacional”232, a fim
de promover a reforma agrária em todos os estados brasileiros.233
231
a
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. 2 ed. Petrópolis - RJ: Vozes,
2000. p.95.
232
Ibidem, p.96.
233
Assinala-se que as falas das lideranças, ao serem transpostas às páginas do JST, configuravam
“memórias às vezes oprimidas, desenraizadas, presentes como vestígios, ao figurar nas frases e
pensamentos dos entrevistados”. Com o registro das ações e representações dessas lideranças,
163
Ao analisar a seqüência de entrevistas, estimou-se para que cada estado
estivesse representado de acordo com a organização do MST, priorizando a busca
por amostragem. Contudo, esta pesquisa contemplou temas vinculados à percepção
das lideranças entrevistadas, revelando o uso que faziam do periódico como
ferramenta de comunicação e de luta.234
Nesse sentido, potencializou-se a participação da mulher como liderança no
Movimento, atribuindo-lhe visibilidade, não apenas como militante, mas também
como esposa e mãe, cotejando sua percepção do cotidiano no campo ao lidar com a
dupla jornada de trabalho.235 Com isso, buscou iluminar a questão da violência no
ecoava “seus saberes e valores, referências básicas, poderes, modos operativos, desejos de
interação e ampliação de outros saberes e experiências”. MAGALHÃES, Nancy Alessio. Direitos e
Vontades de Deixar Marcas. A terra como patrimônio histórico (Guarantã do Norte, MT). Projeto
História. n.33. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da PUC-SP. São Paulo, 2006. p.127.
234
Davis questiona “como a palavra impressa afetou ambientes cuidadosamente definidos” ao se
reportar aos “grupos sociais coesos, nos quais alguns membros eram letrados”. Para a autora, na
área rural “essa definição engloba toda a população fixa de uma aldeia na qual alguém fosse letrado”.
Porém, nas cidades, reporta-se “aos pequenos comerciantes e aos homens de ofícios, e mesmo aos
trabalhadores semiqualificados que tivessem alguma vinculação à organizações urbanas [...]” (p.160).
Na seqüência, assinala que a entrada da “palavra impressa na vida dos camponeses não era apenas
uma função de sua alfabetização, mas de muitas outras coisas: os livros tinham que ser lidos em voz
alta; tinha que haver desejo de informação por parte do camponês, sobretudo o desejo de usar a
palavra impressa para dizer algo a alguém”. No momento, “o mundo rural via a palavra impressa
muito raramente, fosse ela escrita ou impressa” (p.161). Para dizer se existiram conseqüências da
palavra impressa para a comunidade camponesa no século XVI, pontua-se que “elas certamente
foram limitadas. Algumas poucas linhas de comunicação se abriram entre professor e camponês”
(p.171). DAVIS, Natalie Zenon. Cultura do Povo: sociedade e cultura no início da França Moderna.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
235
Os pesquisadores dessa temática têm procurado ampliar o debate sobre as mulheres, trazendo-as
para o centro da discussão, tornando-as objetos e sujeitos de estudos em diversas frentes de
pesquisas, nas quais priorizam o estudo de determinadas especificidades de gênero, em que se
demarcam e se revelam tensões que tomam conta do cotidiano feminino e descortinam perdas
aviltantes em função da dupla jornada de trabalho no âmbito do campo ou da cidade. Thompson
retrata bem esse universo a partir de relatos de uma mulher sobre o desafio da dupla jornada de
trabalho. Para esta, “quando chegamos em casa, ai de nós! Vemos que o nosso trabalho mal
começou; tantas coisas exigem a nossa atenção, tivéssemos dez mãos, nós as usaríamos todas.
Depois de pôr as crianças na cama, com o maior carinho preparamos tudo para a volta dos homens
ao lar: eles jantam e vão para a cama sem demora, e descansam bem até o dia seguinte; enquanto
nós, ai! Só podemos ter um pouco de sono, porque os filhos teimosos choram e gritam [...] em todo
trabalho temos nossa devida parte; e desde o tempo em que a colheita se inicia até o trigo ser
cortado e armazenado, todos os dias, nossa labuta é tão extrema que quase nunca há tempo para
sonhar”. Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos Sobre a Cultura Popular
Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.87-8. Ver também: MATOS, M. Izilda S. de.
Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: Edusc, 2002. Idem; SAMARA, Eni de M.
Cotidiano e Trabalho Feminino (1890-1940). In: SAMARA, E. M. (Org.). Trabalho Feminino e
Cidadania. São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP, 1999. DEL PRIORY, Mary (Org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/ Edunesp, 1997.
164
campo e como esse veículo de comunicação lidou com essa problemática,
discutindo a questão da educação nos assentamentos e a avaliação que os
trabalhadores faziam dos governos na esfera estadual e federal. Desta maneira,
descortinou-se sua percepção acerca dos desafios 236 a serem enfrentados por
aqueles que fazem do MST, um movimento social de significativa expressão política.
Portanto, buscou-se a caracterização dos entrevistados pelo periódico,
evidenciando sua procedência; seus discursos para a sua base de sustentação e
também para fora; sua atuação enquanto integrante do Movimento, mas também,
como representante dos demais trabalhadores rurais em instâncias de decisões
dentro da organização; sua posição política dentro e fora do Movimento; assim
como, sua percepção enquanto sujeitos históricos.
3.2 AS ENTREVISTAS: DESCORTINANDO TENSÕES
A seção denominada de “Entrevistas com lideranças” ocupou, com certa
irregularidade, as páginas do jornal, a partir de 1990. Ou seja, não foi uma regra
figurar em todas as tiragens uma ou mais entrevistas com autoridades ou lideranças.
236
Entende-se como desafio a ser superado pelos trabalhadores: a percepção de unidade entre os
integrantes do grupo e o sentimento de pertencimento a uma classe social; o enfrentamento da
imagem negativa construída por determinados setores da imprensa brasileira frente à opinião pública;
o sobreviver em condições precárias nos assentamentos e acampamentos; o lidar com as ações de
despejos oficializadas pelo Poder Judiciário; o duelo com a força física dos policiais e fazendeiros, ao
fazerem cumprir as Liminares expedidas por Juízes das mais diversas Comarcas Regionais país
adentro; o desafio de enfrentarem as milícias constituídas pelos latifundiários agindo como se eles
fossem os representantes legítimos da lei; o desejo de serem contemplado com um lote de terra e,
assim, recuperarem a sua dignidade enquanto pessoa. Portanto, a análise das entrevistas orienta-se
pela metodologia da pesquisa qualitativa, ao serem abordadas por amostragem, obedecendo à
seqüência de sua publicação. Essa abordagem pretende assegurar a representatividade de todas as
regiões do país, delimitando-se um estado por região. Observo, ainda, que em todos os estados
brasileiros houve mais de uma liderança entrevistada pelo JST, porém, em determinados momentos,
evidenciou-se oscilação no que tange ao número de lideranças entrevistadas. Não obstante, sem
desmerecer o empenho de outras lideranças, as regiões Sul e Sudeste apresentaram um maior
número de lideranças entrevistadas pelo jornal em tela.
165
Esse procedimento dependia bastante do editor responsável pelo periódico e
também do cenário político vivido pelos trabalhadores rurais sem terra.
Não obstante, a década de 1990 se destacou pela quantidade de entrevistas
publicadas pelo JST, especificamente a partir de 1993, contribuindo com o debate
político nos assentamentos e acampamentos. Com isso, promoveu “a visibilidade da
luta, trazendo em seu bojo outros personagens para a cena política: vereadores,
deputados, representantes do movimento social de luta pela terra”
237
, visto que
alguns desses segmentos tendiam a ocupar também as páginas do Jornal dos
Trabalhadores Rurais, colaborando com a publicação de artigos, dados científicos
sobre reforma agrária e se posicionando, em alguns momentos, contra o governo
vigente.
Entretanto, destacava-se que as informações concedidas ao JST estiveram
associadas às pessoas que, direta ou indiretamente, partilharam do ideal de reforma
agrária almejado pelo MST. Além dos militantes, figurou também entrevistas e
artigos de opinião de intelectuais conhecidos nacional e internacionalmente no meio
acadêmico e político.
A título de exemplificação, cita-se: Luis Inácio Lula da Silva, à época,
parlamentar e membro do sindicato dos metalúrgicos do ABC-SP; D. José Gomes,
Bispo da Diocese de Chapecó-SC e presidente da Comissão Pastoral da Terra;
Francisco de Oliveira, professor da USP; Leonardo Boff, Teólogo, militante e
defensor das bandeiras de lutas do MST; José de Souza Martins, Sociólogo e
professor da USP; Darcy Ribeiro, Antropólogo e Senador da República; Ladislau
Dowbor, professor da PUC/SP e consultor das Nações Unidas; Emir Sader,
237
SILVA, Maria Aparecida de M. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora da
Unesp, 2004. p.91. “A luta pela terra não envolve apenas os trabalhadores sem-terra e os
proprietários da área pleiteada para a reforma agrária, inclui políticos e representantes religiosos,
entre os quais a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Ministério Púbico, o Poder Judiciário, a Polícia,
o Estado, as Organizações Não-governamentais (ONGs), Sindicatos, Universidades, etc.”
166
professor da USP; Leandro Konder, professor da PUC/RJ; Jacob Gorender, à época,
professor visitante da USP; José Graziano da Silva, professor de Economia da
Unicamp-SP; Fabio K. Comparato, Jurista e Professor da USP, dentre outros
intelectuais. As entrevistas e artigos de opinião de alguns destes intelectuais serão
retomados no capítulo seguinte.
Portanto, a sua atuação deveu-se em virtude da percepção que os
trabalhadores rurais e as respectivas lideranças do MST demonstraram ter pelo
periódico. Em sua maior parte, os trabalhadores acreditavam que o Jornal traduzia
seus ideais e suas ações, particularmente, quando este foi entendido como objeto
de estudo e de reflexão política nos assentamentos e acampamentos, conforme
salientado na epígrafe que inicia o presente capítulo.
Em face dessa questão, analisou-se a seqüência de entrevistas trazidas pelo
jornal, no sentido de compreender melhor a atuação das lideranças imbricadas no
MST. No entanto, problematizaram-se alguns fragmentos das mensagens nos quais
os representantes das mais variadas instâncias da organização do MST - Direção e
Coordenação Estadual e Nacional - julgaram necessário se dirigirem aos
trabalhadores rurais acampados e/ou assentados e aos seus simpatizantes nas
regiões Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do país, evidenciando uma
aproximação do discurso destas lideranças com suas bases de sustentação.
3.3 REGIÃO NORDESTE: ESTADO DO CEARÁ
Uma das entrevistas analisadas a seguir é a de Fátima Ribeiro 238 ,
representante da Direção Nacional do MST e ex-militante da executiva da CUT, no
238
Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177,
ano XVI. MST, junho de 1989. p.17. No momento da entrevista, encontrava-se no estado do Ceará,
167
Espírito Santo. A entrevistada do JST se orgulhava de ter participado, em 1985, da
construção do Movimento nesse estado, particularmente no Município de São
Mateus-CE, tendo articulado cerca de 300 famílias no entorno da organização, que
esta denominava de “movimento sério, com propostas claras a respeito da reforma
agrária”239.
Antes, porém, Fátima salientou ser originária de família camponesa,
procurando relatar brevemente como se deu a sua inserção no MST:
Nasci na fazenda Mosquito. Meu pai trabalhou 45 anos para o
fazendeiro. Quando ficou mais idoso, mandaram-no embora.
Como entramos na Justiça [grifos meus] o fazendeiro deu uma
paulada na cabeça do meu pai, ficando hospitalizado,
gravemente ferido. Isso em 1986.240
O trecho acima descortina uma questão sintomática, que vigorou nas
primeiras décadas da segunda metade do século XX, subseqüente ao tão propalado
“milagre brasileiro”. Em 1986, o campo estava se modernizando, as fazendas se
transformaram em grandes parques agroindustriais, a agricultura seguia a lógica do
agronegócio, o trabalhador rural já não se enquadrava mais na demanda do
capitalismo em curso. Tudo isso ocasionou “conseqüências evidentes pelo
distanciamento de alternativas para além do capital, na medida em que se adota e
organizando o Movimento. Na oportunidade, ressaltou que o MST realizou a primeira grande
ocupação nesse estado, tendo mobilizado cerca de 300 famílias. Para ela, essa ocupação foi “a maior
do país: dezesseis mil e quinhentos hectares da fazenda Reunida de São Joaquim, Município de
Madalena”.
239
Assinala-se que “é evidente que o MST, com apoio da Igreja, tenha uma proposta de reforma
agrária em que sua forma difere profundamente da forma que lhe dá o Estado brasileiro desde a
elaboração do Estatuto da Terra e, pode-se dizer, desde a promulgação da Lei de Terras de 1850”.
MARTINS, J. de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.104.
240
Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177,
ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4.
168
postula uma ótica de mercado, de produtividade das empresas, não levando sequer
em consideração a questão do desemprego”241.
Este fenômeno ocorreu em larga escala, não apenas no campo, mas
também na cidade, elevando o processo de exclusão social generalizado de parcela
significativa de trabalhadores e conduzindo-os a buscarem formas alternativas que
garantir-lhes a sobrevivência. Nessa perspectiva, o MST e a reforma agrária seriam
os principais caminhos almejados por estes, no intuito de assegurar a sua reinserção
nos processos produtivos.
Nesse aspecto, muitos exemplos de exclusão social se encontram
pontuados ao longo dessa Tese, estando todos associados ao trabalhador destituído
do processo de produção e/ou aqueles que perderam o emprego, que não dispõem
de terras para plantar e os que não conseguem se inserir em outras formas de
produtividade nas zonas urbanas ou rurais. Sem se limitar unicamente aos já
mencionados, alarga-se a compreensão de vários outros tipos de privações como
“os desempregados em longo prazo, os empregados em empregos precários e não
qualificados, os pobres que ganham pouco, os sem-terra, os sem-habilidades, os
analfabetos e os evadidos da escola” 242. Nesse contexto, compartilha-se da idéia de
que
o novo modelo global de produção exige, entre outras
condições, requisitos cada vez mais elevados de desempenho,
agravando a tendência de exclusão social de trabalhadores de
baixa qualificação profissional. A redução de ofertas de
mercado formal faz aumentar a pobreza e o desemprego,
criando demandas sociais que o Estado não consegue atender,
caso sejam mantidas as fórmulas convencionais de
241
ANTUNES, Ricardo. Mundo do trabalho, precarização e desemprego. In: MARQUES, Rosa M.
(Org.). Mercado de Trabalho e Estabilização. São Paulo: Educ, Cadernos PUC/SP - Economia, n.4,
1997. p.32-3. Ver também: Idem. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.
242
DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e futuro do
a
capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p.22. Idem. O mito do progresso. 2 reimpressão. São
Paulo: Ed. da Unesp, 2006.
169
encaminhamentos
trabalho.243
da
organização
e
das
relações
de
Dessa maneira, excluído dos meios de produção e alijado de alguns direitos
natos ao exercício da cidadania, o trabalhador rural citado acima, juntamente com a
sua filha, buscaram apoio em instâncias superiores (diga-se na justiça), no sentido
de reaver perdas do que julgou de direito pelas décadas de trabalho prestado aos
proprietários da Fazenda Mosquito.
Seguindo a lógica dos desmandos ocasionados nas áreas rurais e longe dos
olhos da justiça oficial, o proprietário da fazenda fez a justiça funcionar conforme o
seu interesse, usando de violência244 contra aqueles que tentaram lhe questionar ou
lhe cobrar algo que julgavam necessário e justo. Aliás, a prática exacerbada da
violência não cessa, na maior parte das vezes, segundo o JST e a própria CPT, essa
acaba recebendo anuência de setores dos poderes constituídos.
Não concordando com tais práticas, o MST e seu Jornal tendia a denunciar e
a agir de forma sistemática por meio de ações massivas de ocupação, passeatas e
protestos, ganhando, assim, imperiosa visibilidade em âmbito nacional e
internacional. Nessa mesma perspectiva, foi aferida a seguinte indagação pelo JST à
entrevistada, como se dava a participação das mulheres no Movimento.
243
CAMARGO, Célia Reis (Org.). Experiências inovadoras de educação profissional: memória em
construção de experiências inovadoras na qualificação do trabalhador (1996-1999). São Paulo:
Editora da Unesp; Brasília - DF: Flacso, 2002. p.3.
244
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou estudos sobre índices da violência no campo,
particularizando informações e contemplando os dois últimos anos da primeira década do século XXI.
O documento traz à luz evidências de que, apesar dos números de conflitos no campo estarem sendo
reduzidos, a violência segue aumentando em escala crescente. Para isso, assinala-se que “nos
meses de janeiro a junho de 2009, os conflitos se deram por água, por terra e por questões
trabalhistas, totalizando 366 conflitos, nos quais estiveram envolvidas 193.147 pessoas”. Ao
categorizar esses dados, a fonte atesta que do total de conflitos, “12 foram assassinatos, 44
tentativas de assassinatos, 22 ameaças de mortes, seis pessoas torturadas e 90 pessoas presas. Do
total, 246 foram conflitos por terra envolvendo 25.490 famílias, sendo 393 destas expulsas da terra
por ação dos proprietários e seus jagunços, 4.475 despejadas por ordem judicial”. COMISSÃO
PASTORAL DA TERRA. CPT: Conflitos no Campo Diminuem, mas Violência Cresce. Documento
publicado em 03 de setembro de 2009. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 10 de junho
2010.
170
À medida que o trabalho é feito, os companheiros acreditam
mais. Não importa quem o faça. Nós, mulheres, participamos
em todas as equipes. O importante é que se tenha a
capacidade de realizar as tarefas. Participamos na base e até
no trabalho a nível nacional.245
Apesar da idéia de que todos são iguais e compartilham das mesmas
atividades, já na primeira linha do trecho da entrevista, explicita-se uma tensão
quanto às atribuições da mulher, pois é somente a partir da execução do trabalho,
que estas ganham maior credibilidade dos companheiros. Sem dúvida, algumas
mulheres almejavam um lugar de destaque dentro do Movimento e conseguiram
como é o caso da entrevistada (ainda nesse capítulo, um pouco mais adiante, esse
discurso tende a ser questionado pelas observações de outra liderança, ao destacar
que se o MST não valorizar a atuação das mulheres em todas as frentes, ele só tem
a perder).
Apesar de se observar alguns silêncios na fala, esta explicita que a atuação
feminina no MST se fez presente, ainda que de forma precária. De toda sorte,
ressaltava-se que sua inserção neste movimento, não se deu apenas por questões
econômicas ou sociais, mas, sobretudo, “pela vontade própria e desejo de
emancipação pessoal”246.
Apesar dos avanços nas discussões acerca das questões de gênero,
pontuava-se que estas têm se configurado de forma lenta, evidenciando maior
articulação desse grupo em termos de organização política nos primórdios do século
XIX e meados do século XX.
245
Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177,
ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4.
246
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e Especificidade. In: PINSK, Jaime;
a
PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.284.
171
Nesse sentido, “com o tempo, algumas (poucas) mulheres conquistaram um
poder de influência significativo no interior dos sindicatos, na imprensa operária e
nos partidos políticos de esquerda”247, confirmando, assim, a fala da entrevistada.
Torna-se significativa a observação feita a respeito da postura da UDR frente
à ocupação da fazenda Reunida. É singular a descrição de detalhes feita por Fátima
sobre a ação dos trabalhadores rurais sem terra no Ceará, quando questionada pelo
JST: “e a UDR não reagiu à ocupação?”
A resposta de Fátima sinalizava um ar de vitória para os integrantes do
recém construído MST do Ceará. O que a liderança deixou de explicitar, é que essa
“passividade” do poder público local abriu precedentes para a organização e
grandes ofensivas aos movimentos sociais, principalmente por parte dos “donos do
poder” num futuro próximo.
Ela (UDR) tem sede regional em Quixadá. Foi surpreendida
com a ocupação. Agimos rápido, ocupamos o Incra,
negociamos com o Governador, Secretário de Agricultura, Juiz
federal. O governo se comprometeu a impedir que paramilitares
e policiais atacassem o acampamento. A área tinha sido
desapropriada em 86, sem emissão de posse. Nós a exigimos
segundo a lei. Triunfamos, e a posse saiu em 9 de junho.248
Apesar da descrição desta ação ter sido bem sucedida, os latifundiários
resguardavam-se, armando-se e constituindo suas milícias na tentativa de responder
criminosamente à luz do dia, com o objetivo de defender suas supostas
propriedades em todas as regiões do país. O trecho descrito acima encontra eco na
observação de que após 1964 “a política fundiária se cumpriu como exceção e não
como regra, contraditoriamente, combatia-se o latifúndio nas áreas de tensão social
247
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e Especificidade. In: PINSK, Jaime;
a
PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.284.
248
Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177,
ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4.
172
e gestava-se o latifúndio de empresas em novas regiões, viabilizando novas
tensões”249.
Três anos após a primeira entrevista, Fátima retornou às paginas do jornal,
para falar aos seus leitores sobre os frutos que foram colhidos nos assentamentos
deste estado, após as experiências de 1989.
1993 foi o ano em que iniciamos a colheita dessas sementes
que plantamos em 1989, tanto em termos de organização,
quanto em termos de conquista. [...] Os avanços que obtivemos
este ano foram frutos das experiências já acumuladas nestes
últimos 10 anos. Fomos qualificando a organização, formando
setores, criando símbolos, buscando a implementação de
novas formas de luta. Hoje nós temos uma mística própria que
nos move e que nos renova cada vez mais para a luta e para
os novos desafios, buscando ter propostas claras e justas de
250
acordo com as necessidades dos trabalhadores.
A entrevistada buscou transmitir positividade aos leitores do jornal, tendo em
vista que as questões aferidas pelo periódico objetivando um interlocutor certo: o
trabalhador rural assentado ou acampado, mensagens positivas, como esta,
poderiam motivá-lo a se inserir e/ou a permanecer na luta. Em contrapartida, a fonte
analisada atestava as dificuldades em conseguir a escritura de um pedaço de chão e
de manter-se nele. A liderança não revela as tensões eminentes em cada
assentamento no Ceará, mas desvela preocupações quanto ao futuro do movimento
no estado.
249
A fala da entrevista ressoa na observação de Martins, ao assinalar que para se projetar uma
“reforma agrária tópica e de cunho militar repressivo”, às vezes de forma velada, “o Estado atende a
demanda dos movimentos sociais locais, precários, surgidos na emergência de conflitos inesperados,
e ao mesmo tempo reprime e processa lideranças e apoiadores desse mesmo movimento”. Cf.:
MARTINS, J. de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.76.
250
Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177,
ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4.
173
No ano de 1993, intensas dificuldades sociais foram configuradas nos
assentamentos, o que não foi plenamente esclarecido aos leitores do jornal nessa
entrevista. Mas, assinala que
precisamos dominar a realidade e suas constantes
transformações, para propor novas saídas, implementar novas
formas de luta, buscar novos métodos que contemplem as
culturas regionais e, desde já, para formarmos homens e
mulheres com novos valores.251
Cabe destacar uma inquietação no que tange ao anseio pela dinamização
de “novas formas de lutas, novos métodos”, no sentido de construir “novos valores”
para os homens e mulheres envolvidos no MST. Que valores seriam estes? Que
novas formas de lutas seriam estas? O trecho da entrevista é um tanto obscuro para
problematizar tais indagações, além de revelar certa insegurança, por parte da
liderança, no que se refere à ausência de domínio das questões locais e de suas
constantes transformações.
Fátima Ribeiro salienta a importância de se alterar concepções arraigadas
na sociedade, destacando que “dentro do processo capitalista, não vamos acabar
com os sem terra do país, que são 12 milhões. Temos de conquistar uma vida com
igualdade. Uma mudança para todos”.
No mês de maio de 1995, o entrevistado pelo JST foi Raimundo Nonato
Barbosa 252 , que revelou tensões que não estavam presentes na fala de Fátima
Ribeiro. Se antes, aparentemente foi acessível a posse da terra, quatro anos após,
seria um desafio fazê-la produzir e manter os trabalhadores nela produzindo. Aliás,
251
Entrevista com Fátima Ribeiro. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.177,
ano XVI. MST, dezembro de 1993. p.4.
252
Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, maio de 1995. p.4. Sem dados que viabilize a sua caracterização, o entrevistado fala
das atividades no setor de produção nos assentamentos do Ceará, ressaltando as muitas dificuldades
enfrentadas em virtude de fatores climáticos, além de metas e conquistas alcançadas pelos
trabalhadores rurais nesse estado.
174
“produzir é uma verdadeira batalha” em alguns assentamentos nesse estado,
assinala o entrevistado:
Garantir a subsistência é uma coisa que depende muito do
clima. Se chover, dá, se não chover, não dá. Mas também
temos o assentamento Santana, uma Cooperativa onde nossos
companheiros estão se desenvolvendo muito, tendo em média
quatro salários mínimos de renda por mês. Nas áreas em que a
situação está difícil, os companheiros ficam na terra com a
esperança de que no próximo ano vai haver inverno.253
Apesar de experiências positivas e algumas conquistas obtidas nos
assentamentos, no Ceará, tornava-se evidente o fracasso de alguns trabalhadores
rurais em determinadas áreas, carecendo da tutela do estado para lhes financiar,
ajuda esta que às vezes não apareceu e quando o fez, foi com bastante morosidade,
em função da burocracia.
Nesse aspecto, assegurava-se que, dentre os maiores desafios para a
sobrevivência dos assentamentos, estava o de enfrentar a ausência da água. Notase que tais dificuldades explicavam-se porque “a metade da população do Ceará
(cerca de três milhões de pessoas) passam fome e, nos assentamentos, as
condições são muito mais precárias”, assinala o entrevistado.
Há falta de condições de saúde, de educação e condições de
moradias. Na área da produção é a falta da água mesmo,
porque nem todos os assentamentos têm uma reserva de água
que garanta a nossa subsistência. A água é, portanto, uma das
nossas principais reivindicações.254
Esse trecho da entrevista revela que, em certos momentos, houve apoio do
governo federal e estadual no que se refere aos financiamentos dos assentamentos
253
Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, maio de 1995. p.4.
254
Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, maio de 1995. p.4.
175
no estado. Não obstante, no que tange a mão-de-obra técnica, ocorreram alguns
avanços na luta, pontua-se que os assentados conseguiram significativas melhorias
no aspecto de assistência técnica e de crédito, ponderando que
acabamos de renovar um convênio de assistência técnica com
o governo do estado, que prevê liberação de 20 técnicos e dez
carros para circularem nos assentamentos. Estamos renovando
também o convênio com o Banco do Nordeste, com o Incra e
com o Mara, que é o chamado Contacap, que por meio dele é
contratado quatro equipes de cinco técnicos que ficam em
assentamentos, mas acompanham 300 famílias. Em cada
equipe tem agrônomo, veterinário, assistente social e
contador.255
A informação apresentada pelo entrevistado não explicita uma tensão social
envolvendo trabalhadores e governo, ao contrário, revela calma e passividade por
parte dos poderes públicos em manter uma significativa estrutura para atender os
anseios dos trabalhadores rurais sem terra assentados pelo MST, no Ceará. Para
terem essa concessão, houve “um acampamento de 11 dias em frente à Secretaria
de Agricultura do estado. A partir dali a gente conseguiu estabelecer este convenio
com a Emater, renovando pela segunda vez”.
A ação de acampar em frente aos órgãos públicos evidenciou uma
estratégia de luta que os trabalhadores rurais exerciam sobre os governos e
determinados setores da elite brasileira. Com intuito de se fazerem ouvidos em todas
as instâncias da sociedade e unidades da federação nas quais o Movimento estava
organizado, apregoava-se que: “Juntos, não seremos derrubados. Organizados,
implantaremos um sistema socialista, sem explorados nem exploradores”256.
255
Entrevista com Raimundo Nonato Barbosa. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, maio de 1995.
256
MARTINS, J. de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.45.
Martins assinala que o MST “é uma poderosa organização de camponeses expulsos ou privados da
terra de que necessitam para trabalhar, apresentando como bandeira de luta o socialismo”,
observação essa que vai ao encontro do discurso propalado pela liderança Fátima Ribeiro na
entrevista concedida ao JST. Na mesma perspectiva, PINSKY e Pedro assinalam que “nas lutas pela
176
Outra experiência apresentada e discutida é a da professora Maria de Jesus,
nascida na cidade de Canidé-CE. Ingressou nas tessituras no MST em 1993,
quando foi demitida pela prefeitura daquele município, no qual lecionava e presidia o
Sindicato dos Profissionais em Educação dos Municípios do interior do estado.
Segundo ela, “o tema reforma agrária sempre esteve presente em Canindé e
conhecendo aquela realidade, me sentia convocada a contribuir com a luta do MST”.
Uma das questões aferidas pelo Jornal à depoente reportava-se aos tipos de
representações sociais que perpassam a vida de uma militante no seio do MST. A
entrevistada atestava ter experimentado diferentes jeitos de viver militando.
Quando entrei só tinha a mochila para viajar e desenvolver as
tarefas que o coletivo de educação e a direção me delegavam.
Depois me casei e tive uma filha. É um grande desafio ser mãe
e militante [grifos meus]. Mas sempre tive presente a
necessidade de continuar atuando, não me acomodar só com a
tarefa de mãe. Mas com certeza, esse não é um compromisso
só da mulher, mas sim do seu companheiro e da organização,
que precisa compreender as limitações das mães nas
diferentes fases do desenvolvimento dos filhos [grifos meus].257
A simplicidade evidenciada no relato é peculiar: “Só tinha apenas uma
mochila” ao se inserir no MST, descortinando um despojamento material à luz de um
interesse maior: a contribuição para uma sociedade mais justa e humanizada.
Nesse sentido, o trecho acima indica que “as mulheres não são passivas
nem submissas. Pois a miséria, a opressão, a dominação, não bastaram para contar
cidadania plena, várias trabalhadoras simpatizaram com o socialismo, visto como uma esperança de
igualdade e justiça social”. PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e
a
Especificidade. In: PINSK, Jaime; PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São
Paulo: Contexto, 2006. p.284.
257
Entrevista com Maria de Jesus dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, fevereiro de 1997. p.6.
177
a sua história [...]. Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras palavras, por
outros gestos”258, por outras ações.
Portanto, no momento da entrevista, o perfil social da depoente já havia
mudado, tornara-se responsável pela promoção da constituição e manutenção de
uma família (um marido e uma filha). Nesse ínterim, pontuou que o seu desafio
maior era o de lidar com a dupla jornada: a militância e o cuidar da família.
Não obstante, a liderança atrelou seu discurso, ainda que de forma tímida, à
perspectiva de uma “inversão de papéis pela ‘mulher emancipada’ que reivindica a
igualdade de direitos civis e políticos, o acesso às profissões e recusa, justamente,
confinar-se à vocação materna”259. Em face dessa questão, o relato da entrevistada
revelou que “o papel clássico de condutora do lar e protetora da família foi posto em
xeque” 260 , abrindo novas possibilidades para que ela também atuasse de forma
efetiva e profícua social e politicamente.
Nesse sentido, a entrevistada reiterava a sua fala ao afirmar “que não se
acomodará apenas com a tarefa de mãe”, destacando que essa por si só já se
configura numa grande atribuição. Na seqüência, o homem era chamado à
responsabilidade, uma vez que Maria de Jesus reconhecia que, a criação dos filhos
não é tarefa exclusiva das mulheres, “é também compromisso do companheiro”.
Contudo, essa atribuição era renegada por muitos homens, sobretudo aqueles
oriundos das regiões onde persiste uma cultura sexista.
Outra questão que envolve os integrantes do MST é a da educação. Como
colaboradora dos projetos educacionais do Movimento, a entrevistada procurou
258
Cf.: PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.212.
259
Ibidem. p.183.
260
Cf.: COELHO, Frederico Oliveira. Revolução Comportamental no Século XX. In: SILVA, Francisco
C. Teixeira da (Org.). O Século Sombrio: Guerras e Revoluções do Século XX. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004. p.331.
178
esclarecer aos leitores do periódico os desafios enfrentados pelo projeto de
educação dos trabalhadores rurais sem terra do Ceará. Dentre eles, destacam-se
três:
1) A massificação do acesso à escola de primeiro e segundo
grau (atualmente Ensino Fundamental e Médio) para nossas
crianças e adolescentes;
2) massificar a educação de jovens e adultos para erradicar o
analfabetismo nos assentamentos e acampamentos;
3) trabalhar a nossa proposta de educação com crianças,
professores assentados e as instâncias, para que seja
assumida por todos, dando organicidade ao setor [grifos
meus].261
O termo "massificar a educação" explicita um discurso um tanto banalizado,
não apenas pelos profissionais da área, mas pelos próprios gestores públicos que
não mobilizam recursos para implementar ações adequadas para a educação,
preocupando-se apenas com políticas de governo, inviabilizando os processos
educacionais em múltiplos sentidos.
No tocante, o país assiste a um processo crescente de egresso à escola,
além do reconhecimento de que a qualidade da educação tem deixado muito a
desejar por motivos econômicos, sociais e pela implantação de projetos políticos
educacionais mal elaborados, ineficazes perante as reais condições do processo de
ensino-aprendizagem. Por isso, o MST buscou alternativas nas escolas dos
261
Entrevista com Maria de Jesus dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, fevereiro de 1997. p.6. Para Fernandes, “o MST atua em várias frentes, como as lutas
por reforma agrária, produção de alimentos, educação, melhorias da qualidade da saúde e de vida da
população que está na organização, atuação que extrapola o papel de um movimento social e o
transforma em organização política”. Na mesma linha de reflexão, STEDILE observa que, para o
MST, “o significativo é a manutenção da idéia de movimento de massas”. Assinala também para as
esquerdas que uma organização política é uma organização fechada, de quadros e tal, um fator que
torna o MST diferente. Nesse sentido, o Movimento se reconhece como “uma organização política e
social de massas ou dentro do movimento de massas”. Cf.: STEDILE, João Pedro; FERNANDES,
Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Perseu
Abramo, 2000. p.81. Nesse aspecto, cabe ressaltar também o trabalho de CAPELATO, que se
reporta, sobretudo, ao emprego da propaganda política nos governos Vargas, no Brasil, e o
Peronismo, na Argentina, no intuito de conter os anseios das massas em prol de seus interesses.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no
a
peronismo. 2 ed. São Paulo: Unesp, 2009.
179
assentamentos, opções que versassem sobre as questões do campo, ações que
realmente potencializassem as crianças, jovens e adultos à aprendizagem e reflexão
crítica. Tal preocupação configurou-se num desafio para o MST, como se pode
observar no trecho a seguir:
O MST vai contra toda uma corrente que existe no mundo
inteiro, que defende que o campo vai acabar. Ao criar uma
outra política, cria, consequentemente, uma nova concepção.
O Setor de Educação passa a ter grande responsabilidade,
porque o professor daquela escola rural é um trabalhador rural.
Os pesquisadores que vão trabalhar em determinado
assentamento também são trabalhadores rurais. Essa escola
rural desenvolve conhecimentos voltados para o beneficio e o
bem-estar dos trabalhadores a partir de uma nova concepção
de vida rural. Em decorrência disso, o MST enfrenta uma luta
difícil, que é a de tentar explicar aos educadores, aos
governos, enfim, às pessoas que desenvolvem políticas
públicas, que a escola não pode ser na cidade, que a escola
tem que ser no assentamento.262
Nota-se que alguns entraves emanam do relato de Maria de Jesus quando
esta explicita que, apesar da grande receptividade da proposta educacional pensada
pelo MST, existiu também resistências por parte de professores das escolas de
assentamentos que “não querem desenvolver as aulas a partir das exigências dos
trabalhadores rurais e do MST”. Com isso, construiu-se uma atmosfera de tensão
interna, uma vez que os trabalhadores não aceitam outra proposta senão aquela
determinada pela organização do Movimento.
Na mesma linha de reflexão, a entrevistada assinala que “já houve casos de
prefeituras conveniadas não aceitarem a nossa proposta de educação nas escolas e
os assentados pressionaram o professor a ir contra as orientações dos Secretários
de Educação”. Para essa liderança, representante do Setor de Educação do MST no
Ceará, as escolas dos assentamentos têm como princípio básico “a necessidade de
262
STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo M. Brava Gente. A trajetória do MST e a luta pela
terra no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p.77.
180
ocuparmos o latifúndio da caneta, ao passo que entendemos que em nosso país
este é tão perverso quanto o latifúndio da terra”.
Por fim, a entrevista de Sérgio Pinto 263 apresenta amplo potencial para
discussão. Este se deteve às questões vinculadas à produção de alimentos nos
assentamentos, traduzindo aos leitores do JST algumas experiências processadas
com a implementação do cooperativismo rural nesse estado, avaliando a gestão do
Presidente da República, Fernando H. Cardoso, e a do então governador do Ceará,
Tasso Jereissati.
Nesse sentido, o entrevistado destaca o contexto político no momento da
publicação: estava em fase de expiração o primeiro mandato do Presidente da
República. Enquanto buscavam-se incessantemente articulações junto às bases
aliadas para concorrer ao segundo mandato presidencial, um dos maiores desafios
para o MST era mobilizar forças para coibir esse propósito. Ao problematizar a
questão aferida pelo JST quanto à administração do governo estadual, Sérgio
salientou que “o governador Tasso Jereissati aplicou, na prática, a política neoliberal
– mesmo com o derrame de sangue e o suor das massas de trabalhadores e
excluídos”.
A fonte em tela atesta que “o grupo que está no poder tem as suas raízes
presas ao latifúndio. As 31 áreas de assentamentos estaduais estão nas piores
condições do país, pois nunca receberam os créditos iniciais: alimentação, fomento
e habitação”. Diante desta afirmativa, há um desencontro de informações quanto ao
afirmado pelas lideranças anteriormente entrevistadas.
263
Entrevista com Maria de Jesus dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, abril de 1998. p.5. Sérgio à época da entrevista estava com 28 anos, descobriu com a
sua família a necessidade de lutar pela terra ainda muito cedo. Décimo sétimo filho de uma família de
21 irmãos, cresceu assistindo a luta de seus pais contra os desmandos dos coronéis e seus jagunços
no interior do Ceará. Assentado em Nova Vida, no município de Canindé-CE, Sérgio integra a
Coordenação estadual do MST e contribui no setor de produção. Nesse sentido, o entrevistado relata
sobre a sua história de luta enquanto militante e liderança do movimento em destaque.
181
Nesse sentido, o trecho do relato de Sérgio sinaliza à construção de um
discurso que coloca em evidência a gestão política desses representantes políticos,
uma vez que comprovando a sua ingerência administrativa, comprometem as suas
candidaturas futuras além de atribuir visibilidade a outros atores políticos nesse
cenário. Não é por acaso, que na fala das lideranças emergia o desejo de se
construir um projeto popular de reforma agrária264 para o Brasil.
Reportando-se a uma avaliação acerca do governo de Fernando Henrique
Cardoso, no que tange a avanços no processo de reforma agrária, o entrevistado
salientou que
o presidente mente para a sociedade dizendo que está fazendo
a reforma agrária. Faz sim, acordos com os banqueiros do FMI,
com os ruralistas do Congresso, com os usineiros de Alagoas.
Persegue o MST porque o Movimento ocupa e faz produzir os
latifúndios improdutivos. FHC demonstrou pra nós que é um
não patriota, ao vender para o capital estrangeiro as empresas
estratégicas de nosso país – a Vale do Rio Doce e tantas
outras.265
O trecho acima revela o tom de oposição ao Presidente da República
propalado pelas lideranças do MST, fugindo ao tema central que era a distribuição
da terra e reforma agrária. A fala do entrevistado apega-se a um discurso urbanizado
e formal, provavelmente fruto das observações oriundas da classe média,
264
O projeto pautava-se pela geração de emprego e produção de alimentos, respeitando-se algumas
premissas do MST: “1) o assentamento de todas as famílias acampadas no Brasil; 2) o fortalecimento
dos assentamentos com a implementação de um programa de agroindústria. Com a industrialização
dos alimentos, a produção ganha valor agregado, elevando a renda das famílias; 3) a criação das
agroindústrias vai criar uma cadeia produtiva para a geração de empregos no campo; 4) defender
investimentos públicos para crédito rural e infra-estrutura em áreas de reforma agrária, como
educação, casa, saneamento básico, hospital. 5) defender uma nova matriz produtiva, por meio da
policultura e sem o uso de agrotóxicos, a agroecologia”. Cf.: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
RURAIS SEM TERRA - MST. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 20/06/2010.
265
Entrevista com Sérgio Pinto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril
de 1998. p.5.
182
considerada a “principal frente de luta e as principais lideranças da luta pela reforma
agrária [...] que nada tem a ver com a terra ou com a agricultura”266.
Para tanto, o Jornal assinalava que, por quase uma década, um dos maiores
opositores do MST foi o presidente Fernando Henrique Cardoso, por vários motivos.
Dentre estes, destacavam-se as privatizações das empresas estatais do país, as
aberturas de linhas de créditos a juros baixos para grandes produtores rurais e
latifundiários,
a
viabilização
do
agronegócio
e,
como
conseqüência,
o
enfraquecimento da agricultura familiar, projeto este defendido veementemente pelo
MST.
Apesar da avaliação negativa do presidente por parte das lideranças do
MST, assinala-se que “seria um erro atribuir a este a questão agrária, ao Ministro do
Desenvolvimento Agrário, ou supor que a questão agrária não tem uma história, uma
gênese e desdobramentos históricos, sociais e políticos” 267 . Na mesma linha de
reflexão, chamou atenção para os números de trabalhadores assentados268 nesse
governo, o que também não passa de “bate-boca”, provocando o “desenraizamento
do tema da reforma agrária” que é tão candente. Sobre o sistema de Cooperativas
nos assentamentos, o depoente salienta que este se tornou muito importante na
construção estratégica do MST. Por isso,
266
Para Martins, o fato destas lideranças não terem vínculos diretos com a questão agrária, implica,
sem sombra de dúvida, “em algumas distorções quanto ao debate político” que gira em torno desta.
Não obstante, o JST registra, anteriormente ao relato dos entrevistados, um breve histórico de sua
inserção no mundo rural, portanto, não confirmando a prerrogativa do autor. Porém, apesar de não
figurar na biografia dos entrevistados o seu nível de escolaridade, os registros evidenciam um
conteúdo cuidadosamente elaborado, um pouco acadêmico, dificultando do ponto de vista histórico, a
autenticidade da fonte. Cf.: MARTINS, José de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São
Paulo: Edusp, 2000. p.92.
267
Ibidem. p.88-9.
268
Ibidem. p.102. O autor “considera assentamentos todos os casos em que a família se credenciou
para receber um título de propriedade”. Observa que “apesar dos números de assentamentos no
governo de Fernando H. Cardoso terem ultrapassado os trezentos mil, isso não representa que estes
supriram satisfatoriamente a demanda pela terra por parte do agricultor familiar, pois os números de
sem terra nas ocupações não tendem a diminuir”.
183
a organização para a produção e as cooperativas que vêm
sendo criadas tem sido vistas pela sociedade como a outra
cara do movimento. Além da luta pela terra, vejo que hoje, o
setor de educação do Movimento é a nova cara que está
conquistando a simpatia da sociedade. Este setor, portanto,
situa um trabalho de base, fazendo uma ligeira coligação com a
cooperação do sistema de cooperativas nos assentamentos.269
Na sua argumentação, o entrevistado revelou um aspecto importante do
cooperativismo. Fez conexão entre o setor de produção e o de educação do
Movimento, favorecendo a relação teoria e prática, ao assinalar que “o que se
aprende na escola se aplica no sistema de produção da cooperativa e vice-versa”.
Ademais, destacam-se duas outras questões importantes nessa entrevista.
A primeira reporta-se à percepção que Sérgio apresenta do MST e a segunda
indaga acerca dos desafios a serem enfrentados pelo Movimento. Assim, assinalase respectivamente que
a sociedade continua nos apoiando e muitas pessoas que
perderam seus ideais, depois da queda do muro de Berlim,
estão começando a sonhar e a lutar novamente. A burguesia
nos considera como um principal inimigo no cenário político.
Temos discutido a elaboração de um projeto popular para o
Brasil [grifos do jornal] as eleições presidenciais, a situação da
crise do Brasil. Somos o motor pequeno que esquenta as
turbinas. O operariado da cidade é o motor grande. Porém,
ainda não encontramos a tática certa para mobilizar as massas
indigentes das cidades.270
As observações do entrevistado recuperam lapsos de memórias congelados
no passado, reportando-se à “queda do muro de Berlim”. Apesar de tratar-se de um
momento histórico importante, não intimida o lavrador rural a tecer seus comentários
justificando sua garra enquanto integrante do MST. O trecho da sua fala sinaliza a
269
Entrevista com Sérgio Pinto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril
de 1998. p.5.
270
Entrevista com Sérgio Pinto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, abril
de 1998. p.5.
184
possibilidade da construção de um projeto popular para o Brasil, ressalva feita
quando se trata de desmontar o discurso elaborado das chamadas elites do país.
Sérgio usa uma metáfora para qualificar a atuação dos trabalhadores rurais
sem terra como um “motor pequeno”, mas “que esquenta as turbinas”. O operariado
urbano é o “motor grande”, que do ponto de vista social, age de forma positiva por
dispor de informação, por ter experimentado as mais importantes formas de lutas
contra a opressão política, social e econômica na área urbana e que deveria ser
aproveitada na área rural.
Na seqüência, o entrevistado é inquirido para problematizar hipóteses de
desafios a serem trilhados pelo Movimento. A partir disso, destacou a possibilidade
de construção de “milhares de núcleos de base nesta campanha eleitoral e, depois,
dar organicidade, consolidando o Projeto Popular para o Brasil”. Nesse sentido, é
necessário “realizar lutas massivas, no intuito de obter conquistas para nossas
bases de sustentação sem deixar que os quadros esbarrem na burocracia pósperíodo eleitoral”.
Seria necessário, também, iniciar “o resgate e a implantação de novos
valores dentro dos assentamentos, irradiando para a sociedade”. Tornando-se
urgente “encontrar um modelo tecnológico e de administração que dê segurança
para a agricultura e solidez para as cooperativas”. Enfim, não mais na seção
revistas, mas em uma notícia de pé de página do periódico, pontuou-se que o
estado do Ceará já experimentava a luta pela terra desde o início da década de
1970, quando os trabalhadores rurais do município de Canindé enfrentaram
bravamente as forças repressivas da ditadura militar, implicando em muitas mortes.
Entretanto, naquele povo ficou marcada a experiência de resistência ao poder
instituído.
185
Em 1989, “os sem-terra do Sertão-Central, sentindo a necessidade de se
organizarem”, retomaram o ideal do projeto de reforma agrária impedido pelas forças
repressoras do Estado na década anterior, ou seja, adquiriu-se vida em um cenário
aparentemente democrático. Foi nesse momento que, os trabalhadores, já cansados
de esperar, “articulam-se com o MST e sindicatos de trabalhadores rurais”, para
darem continuidade à luta pela democratização e posse da terra, na perspectiva de
viabilizar a reforma agrária. 271
3.4 REGIÃO SUL: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
O estado do Rio Grande do Sul configurou-se como um dos marcos da luta
pela terra no Brasil, particularmente, a partir de 1979, quando famílias oriundas de
áreas indígenas ocuparam a fazenda Macali, no município de Ronda Alta-RS. Para o
jornal
do
MST,
“apesar
de
ter
a
pequena
propriedade
característica
predominantemente, persiste-se ainda a existência do latifúndio", sinalizando
hipóteses de dissolução do mesmo.
Nesse sentido, algumas considerações devem ser tecidas, destacando que
no momento em que a notícia foi produzida, havia como premissa do estado reprimir
os interesses dos trabalhadores rurais sem terra, utilizando-se das forças de
segurança pública para coagi-los e proteger o latifúndio dos ideais de reforma
agrária idealizados pelo MST, mantendo, assim, a ordem vigente.
271
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. “Ceará, lutas e conquistas”. MST, abril
de 1998. p.5. Conforme dados desta fonte, no ano de 1989, “havia no estado do Ceará 250
assentamentos, seis acampamentos agregando cerca de 450 famílias de trabalhadores rurais sem
terra”.
186
A repressão aos trabalhadores rurais sem terra por parte do
estado tornou-se intensa nessa região. A brigada militar
assumiu o papel dos jagunços e dos pistoleiros, protegendo a
propriedade e combatendo com violência as ocupações de
terra. O número de sem terra é estimado em 140 mil famílias.272
No mês de agosto de 1994, o JST abriu suas páginas para registrar as
impressões de Ênio Bohnemberger273, da Direção Nacional do MST-RS. Este tratou
acerca das celebrações dos 15 anos de atuação do Movimento nesse estado,
avaliando as dificuldades enfrentadas pelo mesmo, mas também, falando da
credibilidade alcançada por este perante as instituições e a população gaúcha.
O Rio Grande do Sul foi o berço do desenvolvimento do MST por retomar,
após várias décadas, o desejo de fazer a reforma agrária no país. Aos seus olhos, o
início das ocupações de terras se deu no povoado de Canudos, no Sertão da Bahia,
abrindo perspectivas para a reflexão acerca do latifúndio no Brasil. Discordando do
entrevistado, cabe observar que a “luta de Canudos foi, em grande parte, uma luta
camponesa, mas não foi diretamente uma luta pela terra”274.
O entrevistado ressalta que essa retomada ocorreu no dia sete de setembro
de 1979, quando “um grupo de 150 famílias tiveram a coragem de ocupar a Granja
Macali”, abrindo caminho para “ocupar também a Granja Brilhante, 45 dias após a
primeira ocupação”.
Ênio descreve que foi uma ousadia dos trabalhadores fazerem as ocupações
nesta data, pois, tratava-se do dia da independência do Brasil e, como se não
bastasse, vivenciava-se o regime militar. Tal pretensão poderia ser interpretada
272
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. “Rio Grande do Sul, marco na luta pela
terra”. MST, abril de 1998. p.3.
273
Entrevista com Ênio Bohnemberger. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, agosto de 1994. p.4.
274
MARTINS, José de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000.
p.108. O autor assinala que “Canudos foi resultado do grande desencontro que separa, ainda hoje, as
elites do povo nas lutas recentes pela terra”. Na sua percepção, portanto, “as elites políticas e sua
massa, a classe média, não tem a menor compreensão dos códigos que explicam o mundo e regem a
vida dos pobres no Brasil”.
187
pelos militares como “uma afronta”; “era uma loucura ocupar terras nesse período”!
Geralmente, nas datas comemorativas, como era o caso do dia sete de setembro, os
militares aproveitavam para ocupar os meios de comunicação com intensa
propaganda governamental, veiculando os seus feitos país afora, e de certa
maneira, encobertando as marcas da violência legadas pela ditadura militar.
Nesse momento, as ocupações das fazendas tendiam a desnudar a
propaganda de país modernizado propalada pelo governo, ao passo que figurava
significativa quantidade de pessoas envolvidas em conflitos por terras, almejando a
sua posse em todo o país. Em face disso, assinala-se que essa ação foi pensada e
calculada, até porque a sociedade assistia a transição política do regime militar para
o Estado democrático.
Em seu relato, o entrevistado sinaliza que as experiências de lutas dos
trabalhadores rurais sem terra nos dois episódios serviram para que o MST se
fortalecesse, enquanto organização social, e se imbricar na luta pela reforma agrária
no estado. Porém, aponta que a atuação dos trabalhadores não “será comemorada
apenas com festas, mas sim com luta e conscientização, porque se entende que 15
anos depois da primeira ocupação, o problema dos sem terra ainda continua e até
com maior gravidade”.
Indagado pelo JST sobre o conjunto da organização do Movimento no
estado, salientou que “desde 1979, foram feitas 35 ocupações de terras, diversas
caminhadas e atos públicos. Conquistamos 95 assentamentos, onde 3500 famílias
estão trabalhando”. De forma implícita, o entrevistado evidencia uma questão
emblemática, o ato de resistir às pressões oriundas dos grupos políticos
constituídos, sendo a resistência uma das práticas mais utilizadas pelo MST.
188
Tivemos avanços, temos muitos desafios, mas já somos
vitoriosos e nos orgulhamos da nossa luta. Enfrentamos
governos estaduais de três partidos: PDS, PMDB e PDT, cujas
políticas foram sempre às mesmas. Enfrentamos a UDR, as
forças policiais e o Poder Judiciário.275
O fato de o enfrentamento ter ocorrido, não representa que a ação foi
vitoriosa, mas, indica que, com o conflito a organização cresceu, ganhou visibilidade,
tendendo a adquirir maior credibilidade da opinião pública, dependendo do lugar
onde o conflito configurava-se. Porém, não significa que o Estado estivesse
adormecido, apático aos conflitos eminentes no campo, pelo contrário, este se
encontrava atento às tensões em curso em todo o país. Pois, desde a década de
1970, foi pensada e colocada em prática uma plataforma de governo, visando
impedir qualquer tipo de ação social, que colocasse em risco o projeto nacional de
desenvolvimento instituído pelos militares.
Desde 1964, justamente em face dos impasses políticos
resultantes da questão agrária, que levaram ao golpe, o Estado
brasileiro criou um aparato institucional para administrar a
questão fundiária, de modo que ela não comprometesse os
planos nacionais de desenvolvimento.276
Reportando-se ao reconhecimento da sociedade civil gaúcha, cabe destacar
que o trabalho em conjunto com esta contribuiu significativamente em vários
aspectos, o entrevistado pontua alguns progressos:
275
Entrevista com Ênio Bohnemberger. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, agosto de 1994. p.4. O trecho do relato encontra eco nas reflexões de Bobbio, quando se
reporta à conceituação de resistência. Para ele, esta implica na contrariedade da obediência, ao
entender que a resistência “compreende todo o comportamento de ruptura contra a ordem
constituída, que põe em crise o sistema político pelo simples fato de produzir-se, como ocorre num
tumulto, num motim, numa rebelião, numa insurreição até o caso limite da revolução”. O autor
observa que tais ações até colocam “o sistema político em crise, mas não necessariamente em
questão”. Cf.: BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.144.
276
MARTINS, José de Sousa. Reforma Agrária: o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000. p.98.
O autor ressalta que o “impasse histórico, a contradição entre capital e terra”, seria traduzido por um
caminho um tanto quanto inesperado “pelo antimodelo de um capitalismo rentista”. Em outras
palavras, pensando no controle e na administração dos “problemas sociais e políticos, o regime militar
editou o Estatuto da Terra e promoveu a reforma agrária constitucional que tornaria aquela reforma
agrária possível” (p.99).
189
Elegemos deputados, fizemos convênios com universidades,
ajudamos em eleições sindicais [...]. Apesar de nossos
avanços, temos que ter a capacidade de pensar que não
somos perfeitos e ainda temos muito que fazer para
conquistarmos uma reforma agrária ampla. Crescemos como
Movimento, nossos adversários também se qualificaram e hoje
somos um dos alvos principais da burguesia do país,
aparelhada através do Poder judiciário.277
O trecho da entrevista revela certa humildade da liderança em reconhecer a
ausência de perfeição em suas ações, criando uma atmosfera de otimismo frente
aos leitores do Jornal, do ponto de vista dos avanços alcançados pela organização
do Movimento. Porém, revela temor, ao afirmar que seus “adversários também se
qualificaram”, estando bem preparados para o enfrentamento. Peculiar, ainda, é a
afirmativa feita por este ao se reportar ao Poder Judiciário como "aparelho ideológico
da burguesia".
Na mesma direção e com um pouco mais de informação, a entrevista de
Ivanete278 ao periódico trouxe subsídios que viabilizam melhor uma compreensão do
que foi alertado por Ênio, ao manifestar temor dos latifundiários, entendendo que
estes iriam fazer uso do Poder Judiciário para enfrentar as pressões eminentes do
MST. Nesse contexto, a liderança assinala que “a prisão dos companheiros é uma
das últimas táticas que o governo e os contra a reforma agrária utilizam para coibir o
MST, para impedir o avanço da reforma agrária”.
Sendo assim, é importante assinalar que a conjuntura política do Brasil, no
ano de 1996, era bastante tensa. A abertura dos mercados nacionais ao capital
estrangeiro foi uma das muitas denúncias feitas pelo JST, por acreditar que a
277
Entrevista com Ênio Bohnemberger. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, agosto de 1994. p.4.
278
Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
março de 1996. p.4. Em face disso, Bobbio observa que “o Estado fundado na opressão de uma
restrita classe de privilegiados sobre uma numerosa classe de explorados é violento”. Reportando-se
à Marx, o autor observa que “o Estado é a violência concentrada e organizada da sociedade”.
BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.155.
190
entrada de produtos agrícolas com preços mais baixos comprometeria a economia
familiar dos pequenos e médios produtores rurais. Nesse aspecto, resultando na
ausência ou redução dos investimentos no setor agrícola por parte do governo,
ocasionando ainda, uma desaceleração no processo de produção na agricultura
familiar.
Outra questão que ganhou visibilidade nas páginas deste jornal e nas
experiências de lutas dos trabalhadores rurais sem terra foi à questão da
implementação da política de privatização das empresas estatais, sobretudo, com a
venda da Companhia Vale do Rio Doce no primeiro mandato de Fernando Henrique
Cardoso. Com isso, aceleraram-se ainda mais os conflitos no campo seguido do
aumento expressivo de ocupações pelo MST em todo o país, como pode ser
observado nos dados explicitados na tabela a seguir.
Tabela 7 - Ocupações e números de famílias: 1990-1996.279
Ano
Ocupações
No de Famílias
1990
43
11.484
1991
51
9.862
1992
49
18.885
1993
54
17.587
1994
52
16.860
1995
93
31.531
1996
176
45.218
Total
518
151.427
Ainda pensando na conjuntura política, nota-se que as ocupações nos
campos e/ou nas cidades colocadas em prática pelos trabalhadores rurais sem terra,
em sua maioria, foram recebidas com reações violentas por parte dos “supostos
279
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.165. MST, janeiro 1997. p.3.
191
donos” das respectivas propriedades, levando à morte dezenas de pessoas
envolvidas nos confrontos (ver capítulo 4).
Em face dessa questão, observa-se que, somente em 1996, houve a morte
de mais de 46 trabalhadores rurais envolvidos em conflitos, destacando-se,
sobretudo, o massacre de Eldorado dos Carajás no Pará, com a morte de 17
trabalhadores. O trecho a seguir possibilita a visibilidade do que estava por trás das
ações do poder público, quando se buscava a inibição dos anseios das forças
sociais no campo, utilizando-se de mandatos de prisões das lideranças, o que
pretendia a desmobilização do Movimento e tornando o espaço de atuação dos
trabalhadores menos promissor:
Ela (a prisão) vem com o objetivo de passar para a sociedade
que quem está preso é marginal, que o MST é um movimento
de baderneiros, por isso eles estão presos na cadeia. Também
faz com que os trabalhadores que se referenciam nessas
lideranças se retraiam e tenham medo de enfrentar a luta pela
terra [...], inibindo a luta, impede-se que se desmascare o que
representa o latifúndio no Brasil e as promessas do governo
[...]. Os policiais e os juízes interrogam-nos colocando a gente
como criminosos. Quando aparece a acusação de que não
somos trabalhadores, não te dão o direito de dizer que a tua
luta é digna, isso provoca angústia, revolta e até medo de
continuar, porque dentro de uma cadeia a gente perde a noção
de mundo. Ela te isola e a gente começa a refletir porque isso
está acontecendo.280
O trecho da entrevista descortina a hipótese de que o governo estava
apático às tensões prementes no campo. Confirma as representações de Ênio a
respeito de seu receio quanto ao aparelhamento da elite, tendo em vista que a
280
Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
março de 1996. p.4. É oportuno assinalar que, em 1989, uma das lideranças do Movimento, José
Rainha, estava sendo acusado de ser um dos responsáveis pela morte de um pistoleiro e de um
latifundiário no Espírito Santo. O JST clamava apoio dos trabalhadores rurais e da sociedade civil, no
intuito de fazer pressão junto ao Poder Judiciário como tentativa de inviabilizar a denúncia feita contra
a liderança, uma vez que, segundo o jornal, o Judiciário “não dispunha de provas para incriminá-lo,
pois José Rainha havia sido transferido para o MST do Ceará seis meses antes do episódio por estar
sendo ameaçado de morte”. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
janeiro de 1997. p.9.
192
prisão era uma forma de desencorajar a continuidade da luta e das resistências dos
trabalhadores.
O ato da prisão envolve também, na maior parte das vezes, forma de
torturas que implicam em delação a respeito de que forma a organização estaria
articulada e suas pretensões futuras. Assim, o Estado não prejudica apenas o
sujeito, mas propala o medo coletivo, pois os trabalhadores engajados no MST
carregam em si, o mesmo objetivo: fazer pressão política com intuito de promover a
reforma agrária.
Nesta perspectiva, emanou um discurso oculto por parte do Estado, frente à
opinião pública, ao efetivar a prisão de um trabalhador rural ou de uma liderança do
Movimento. Porém, nesse discurso, figura-se a hipótese de que, detendo as
lideranças e os trabalhadores envolvidos nas ocupações, existiria uma manutenção
da ordem, uma vez que já se incutiu na sociedade a idéia de que os trabalhadores
são observados como “baderneiros” por infringirem a ordem instituída.
Ao analisar a conjuntura política da organização do Movimento no Rio
Grande do Sul, foi indagada sobre a sua percepção acerca da participação da
mulher no MST, trazendo à luz uma questão importante a respeito da participação
feminina nas tomadas de decisões quanto às perspectivas de ação. Tendo em vista
que todos os integrantes do Movimento possuem os mesmos direitos de se
manifestarem e de galgarem posições políticas de destaque e representatividade, o
trecho da entrevista descortina um discurso velado pela organização:
A mulher trabalhadora rural é duplamente explorada. É quem
mais sofre, porque na medida em que a família não tem terra,
ela sofre enquanto classe, por não ter onde plantar, por não ter
o que comer. Mas ela também sofre pelo fato de ser mulher,
porque a nossa sociedade é machista e dá a ela apenas o
espaço privado de atuação [...]. Se temos 4,8 milhões de
193
famílias sem terra, certamente dois milhões são mulheres e o
MST nunca pode esquecer disso.281
O trecho citado é emblemático, destacando o discurso de igualdade
apregoado pelo MST ao longo de sua trajetória. Contudo, há de se ressaltar que não
se trata apenas da vontade desta organização exercer a igualdade de gênero em
seus quadros, era preciso modificar concepções históricas cristalizadas acerca da
prática do sexismo no Brasil. Nesse relato emana um tom de questionamento e de
indignação frente ao sofrimento feminino, representado de forma dupla ao fazer
parte do Movimento.
Mesmo assim, a entrevistada defende o MST e salienta que “não podemos
olhar para ele e imaginar que a pouca participação das mulheres se dá em função
de que ele é machista. A sociedade brasileira é assim”282. Apesar da pertinência da
fala da entrevistada, esta deixou transparecer um tom de conformismo ao reportarse às práticas de pouca participação feminina nas tramas do MST.
Nessa perspectiva, torna-se salutar e urgente uma contínua discussão sobre
a questão de gênero, visando mudar concepções sexistas arraigadas. Com o devido
reconhecimento de que, apesar dos avanços alcançados com as políticas públicas
sobre essa questão, ainda é preciso potencializar esforços junto aos movimentos
281
Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
mar. 1996. p.4.
282
A violência contra a mulher não pode ser justificada por razões culturais ainda cristalizadas. A
sociedade brasileira nasce sob a égide do machismo herdada do europeu colonizador nos primórdios
da colonização. Pois, na França e na Inglaterra dos Séculos XVI e XVII, postulava-se a inferioridade
da mulher em detrimento da superioridade masculina. Davis destaca as práticas de violência
imputadas às mulheres, particularmente no Capítulo V de seu livro. Porém, a autora desnuda o
discurso acerca da passividade feminina, observando que as práticas de resistências se deram em
larga escala por parte das mulheres. Alerta “que em vários momentos as mulheres figuraram
criticando padres e pastores, tornando-se personagens centrais nas revoltas urbanas e rurais contra
os preços do pão e dos cereais e participando de manifestações contra impostos e outras
perturbações de ordem rural [...]. A autora assinala que no início do século XVII, na Inglaterra, as
mulheres constituíam uma percentagem significativa dos que se revoltavam contra o fechamento dos
campos e a favor dos direitos comuns”. Cf.: DAVIS, Natalie Zemon. Cultura do Povo. Sociedade e
cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p.123.
194
sociais e ao poder público, colocando em prática os projetos existentes e
promovendo outros que contemplem a igualdade de gênero.
Apesar da reconhecida atuação política da entrevistada e da clareza
demonstrada sobre a condição feminina no Movimento, o seu discurso tende a
responsabilizar a questão cultural brasileira e não a atuação dos integrantes. Era
como se a mulher não participasse porque ela não quisesse ou não fosse
competitiva.
Nota-se com isso, que “o MST precisa colocar em prática alguns
mecanismos que garantam uma participação mais efetiva das mulheres em todos os
processos”, ou seja, atestando a ausência da participação política feminina no
cotidiano do Movimento. Para a entrevistada, “a mulher deve participar na discussão,
no levantamento de propostas, assim como da decisão de ação”. Caso isso não
ocorra, “o MST sairá perdendo”.
As mulheres têm um potencial muito grande a ser incorporado
na luta pela terra, especialmente no processo de cooperação
agrícola, pois o assentamento é o espaço onde as pessoas
vivem. Se a mulher participar mais ativamente, certamente
nossos assentamentos terão um avanço muito grande no
processo de cooperação. Muitas de nossas companheiras
ainda não compreenderam isso. Ninguém participa de corpo e
alma, de uma coisa que não entende.283
283
Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
mar. 1996. p.4. A tensão posta é indagar porque a mulher trabalhadora rural não participa das
tomadas de decisões. O trecho elucida as qualidades dessas mulheres, sinalizando hipóteses do que
ela poderia fazer, caso fosse inserida nos postos estratégicos do Movimento, ao passo que coloca
que “ninguém participa do que não sabe”. Outra indagação: por que não sabe o que está
acontecendo se essa mulher esteve imbricada na luta desde a sua concepção, ou não esteve? Essas
são algumas das interfaces da pesquisa que a fonte utilizada não evidenciou caminhos para possível
problematização, carecendo do recurso da História Oral no sentido de compreender melhor essas
inquietações. Reportando-se a práticas sexista que perpassaram o século XIX, estando presentes em
alguns setores no século XX, PINSKY e Pedro assinalam que era comum entre os homens,
enxergarem as mulheres como concorrentes no mercado de trabalho e expediente dos patrões
reduzir os salários, aceitando a idéia de menor valor do trabalho feminino, percebendo-as não como
aliadas nas reivindicações trabalhistas, “por mais dedicadas que fossem aos movimentos dos
trabalhadores, a operária era vista como um trabalhador incompleto, alguém que deveria ficar em
casa”. PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e Especificidade. In: PINSK,
a
Jaime; PINSK, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006.
p.283.
195
O discurso evidenciado norteia possibilidade de participação da mulher nas
tomadas de decisões, além de desvelar um discurso de que muitas companheiras
não atuam pelo fato de desconhecerem o processo da luta. Justifica tal afirmação
alegando que ninguém participa do que não conhece ou não entende.
Essa fala descortina a negação da atuação feminina nas tomadas de
decisões no seio da organização. Salienta que a responsabilidade de inserir a
mulher nesse espaço de luta “é do conjunto de nossa organização, pois não é
possível libertar a classe trabalhadora sem que a gente não se transforme”. Para a
liderança, a organização “não almeja apenas a divisão das riquezas e do latifúndio,
esta tem que discutir também com maturidade a questão de gênero” no seio do
movimento. Pois “não queremos ser mais que os homens. Queremos ser entendidas
enquanto seres diferentes, mas politicamente iguais”284.
Com essa observação a entrevistada reforça que o lugar de submissão que
a mulher ocupava na organização necessitava urgentemente de uma mudança de
comportamento. Apesar de figurar no discurso das mulheres entrevistadas pelo JST
a informação de incipiente participação feminina nas tomadas de decisões, os
relatos revelaram uma presença marcante destas em setores estratégicos da
organização, bastando se debruçar acerca de sua atuação nas cooperativas, nas
frentes de formação no setor de educação e, ainda, no número significativo de
entrevistas publicadas pelo jornal contemplando lideranças femininas.
284
Entrevista com Ivanete Tonin. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
mar. 1996. p.4. Davis pontua que no século XVI, em Paris, embora oriundas de famílias de posses,
mulheres chamaram a atenção dos homens letrados pela sua participação nos processos de tomadas
de decisão, particularmente no que tange o uso da palavra impressa como ferramenta para expressar
os seus sentimentos, os seus pensamentos, inclusive manifestando indignação frente a algumas
práticas um tanto cristalizadas. Os textos publicados por mulheres nesse período eram endereçados
a outras mulheres, “defendendo-se da crítica de que o silêncio é o adorno da mulher”, solicitavam
para que mulheres de letras escrevessem e publicassem seus escritos na tentativa de corrigir os
equívocos a seu respeito. DAVIS, Natalie Zemon. Cultura do Povo. Sociedade e cultura no início da
França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p.178-9.
196
Nesta perspectiva, aborda-se o relato de outra liderança feminina285, Maria
Carlota de Oliveira Amado, responsável pelo Setor de Educação do acampamento
Santo Antonio, Município de São Luiz Gonzaga-RS. Indagada pelo JST sobre a
importância da educação para a transformação social, Carlota pontuou que “está na
hora de pensarmos um projeto que construa uma nova história para a humanidade.
E a educação tem papel fundamental para a formação do sujeito capaz de
transformar a sua própria história” 286 . Na concepção da entrevistada, “o aluno
aprende a partir de sua realidade, sendo assim capaz de compreender e interpretar
o processo histórico, transformando-o”.
Questionada sobre os desafios que o MST deveria enfrentar a partir de
então, Carlota pontuou que “ocupar novos espaços na sociedade” configura o seu
maior desafio. E este, por sua vez, seria sanado ao passo que essa ocupação
fizesse uso constante da educação como ferramenta de luta. De antemão, ela
entende que “só a reforma agrária em si não é suficiente para realmente termos um
novo desenvolvimento que atinja todo o povo. [...] É preciso resgatar esperanças
para poder construir não só o futuro, mas o presente” para a sociedade.
Na seqüência, Milton José Fornazieri 287 registra suas impressões sobre a
gestão do governo Fernando H. Cardoso e avalia a possibilidade de sua reeleição,
285
Entrevista com Maria Carlota de Oliveira Amado. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, agosto de 1998. p.3. A entrevistada informa que no ano de 1968, seus pais foram
expurgados das terras onde viviam por não dispor de recursos próprios para comprá-las, pois eram
arrendadas. A entrevistada rememora que conheceu o MST em 1991, mas só em 1996 percebeu a
sua importância na luta pela reforma agrária. Pontua que a partir de então passou “a ter consciência
de que também era uma sem terra”.
286
Entrevista com Maria Carlota de Oliveira Amado. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, agosto de 1998. p.3.
287
Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, novembro de 1998. p.3. Nesta oportunidade, o entrevistado descreve que a sua inserção no
MST se deu ainda quando estava no Seminário. Segundo ele, “sempre procurou participar das
mobilizações e atos que aconteciam em Porto Alegre”. Começou a militar em 1989, com a ocupação
da fazenda Bacaraí, em Cruz Alta-RS, figurando no momento da entrevista como presidente da
COOPAN (Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita). Assentado nesse município, o
entrevistado salienta que seu maior sonho é “ver este nosso país livre de toda a opressão, com os
trabalhadores dando o rumo que a nação deve seguir”.
197
traduzindo um pouco de suas experiências com o cooperativismo nesse estado,
posicionando-se, ainda, sobre os desafios a serem enfrentados pelo MST.
O entrevistado observa que a necessidade da reforma agrária se dá no
intuito de viabilizar “a distribuição de terras para quem nela deseja trabalhar e tirar o
seu sustento, tornando possível o sonho de trazer ao presente toda a luta e o anseio
de liberdade de milhares de trabalhadores que nos antecederam”. Para esse
trabalhador, “a luta pela reforma agrária é uma luta pelo fim da pobreza em nosso
país”.
Indagado acerca da importância do cooperativismo como forma de viabilizar
o processo de desenvolvimento dos assentamentos, o entrevistado salientou que “a
cooperação agrícola é uma das ferramentas que devemos utilizar, implementando as
diversas formas de cooperação”. Nesse sentido, leva-se em consideração “a
situação concreta de cada assentamento, devendo avançar na assistência técnica,
na ampliação dos investimentos e em projetos rentáveis, que possam trazer retorno
ao assentado” 288 . Ao tecer considerações sobre a possibilidade da reeleição do
então presidente Fernando H. Cardoso, Milton foi categórico ao afirmar que este
representa para a classe trabalhadora o mesmo sofrimento que
passamos nos últimos quatro anos [...] Creio que o período
será extremamente duro, mas, também, será o momento do
despertar da classe trabalhadora e da retomada de grandes
mobilizações de todos os segmentos populares.289
Sobre o setor de produtividade no MST, para Milton “o principal avanço que
estamos tendo é na área da agroindústria, buscando a industrialização em muitas
linhas de produção”. Outro ponto, caracterizado por ele como desenvolvimento para
288
Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, novembro de 1998. p.3.
289
Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, novembro de 1998. p.3.
198
esse setor seria a “capacitação que cada estado desenvolve ao levar o crescimento
da cooperação agrícola e a busca de alternativas mais adequadas à realidade de
cada assentamento”290.
Quanto aos desafios do MST, Milton expressou que o Movimento “tem que
continuar realizando ações de massa, garantindo a luta pela reforma agrária, bem
como a garantia de direitos básicos da sociedade”. Em face disso, pondera-se que o
discurso do entrevistado exprime-se em mensagens construídas, com a noção de
ampliação do que chamam de progresso e avanço político da luta no campo.
3.5 REGIÃO SUDESTE: ESTADO DE SÃO PAULO
Para o estado de São Paulo tornou-se possível analisar quatro entrevistas,
contemplando as impressões de três homens e de uma mulher291, publicadas entre
1994 e 1995. Em geral, as entrevistas traziam em seu bojo inquietações acerca da
conjuntura da luta, na qual o MST era o protagonista.
Algumas das questões presentes nesse subitem são: problemas de
distribuição de terra, organização dos trabalhadores, propostas articuladoras pela
posse da terra, quantidade de pessoas envolvidas nas cooperativas, dificuldades
enfrentadas pelo Movimento, os desafios de ser mulher e ocupar posição de
destaque na organização.
290
Entrevista com Milton José Fornazieri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, novembro de 1998. p.3..
291
Em termos quantitativos, observo que a fonte em questão não me proporcionou analisar os relatos
de forma equânime quanto ao gênero das lideranças entrevistadas. Pois, dentre estas, o JST
priorizou um número relativamente menor de mulheres, em detrimento a um número expressivo de
homens. Essa observação foi feita em todos os estados, onde o MST estava organizado. A título de
exemplo, a seção de entrevistas configurou-se efetivamente nas páginas do JST em 1993, tendo
publicado, no percurso de oito anos, cerca de dezoito entrevistas contemplando o gênero feminino
em todo o país. Assim, revelou a incipiente presença feminina nas instâncias estratégicas de tomadas
de decisões no Movimento.
199
Sobre o andamento da luta no estado de São Paulo, nota-se que esta se
tornou visível “após a grande ocupação da fazenda Getulina”, quando o Movimento
ganhou projeção nacional. Assinala-se que “através das mobilizações, nós estamos
conseguindo levar a luta da reforma agrária para as cidades, rompendo com aquela
visão de que essa luta é coisa de comunista”.
Desse modo, uma parcela importante da sociedade que via
com maus olhos, agora se volta a nosso favor porque os
problemas sociais que enfrentamos no Brasil são muito
grandes e a reforma agrária é uma das medidas mais
importantes para resolver esse problema da fome e da
miséria.292
Nos primórdios da década de 1990, o Movimento desfrutava de crescente
visibilidade, até porque houve certa colaboração de parcela da população urbana e
rural, no que se refere às suas ações coordenadas encabeçadas pelo MST.
Portanto, a entrevista sinaliza que tal visibilidade foi fruto da ocupação maciça da
fazenda Getulina, no interior desse estado. De acordo com o entrevistado, nesse
momento, o MST-SP alcança projeção nacional, particularmente quando se percebe
um despertar por parte da imprensa no que concerne à questão agrária.
Indagado sobre a possibilidade de concentração de terras nesse estado, o
entrevistado observa que “embora seja um estado onde o capitalismo no campo, os
pacotes tecnológicos e os projetos de agroindústria estão implementados, São Paulo
não é diferente dos outros estados, havendo concentração de terras nas regiões Sul
e Oeste”, particularmente
292
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1994. p.4.
200
na região Sul, em que estão grandes áreas de terras devolutas
e irregulares onde se encontram grandes fazendas de pinho e
de eucalipto dominadas quase que exclusivamente pela família
de Antônio Ermírio de Morais. Nesta região o MST conquistou a
Fazenda Pirituba, mas os companheiros trabalhadores de lá
continuam se mobilizando, porque a concentração de terras e a
situação de miséria que eles vivem não lhes dão outra saída.293
Questionado sobre a habilidade que o MST tinha em organizar uma parcela
significativa de pessoas desse estado entorno do Movimento, Mineirinho foi
categórico ao observar que um dos motivos para que isso acontecesse foi o
“desenvolvimento brusco do capitalismo no campo” e, consequentemente,
agregando enormes contingentes de pessoas ao seu entorno. As razões de sua
opção pelo MST são bastante claras:
Sofrendo com as conseqüências da exploração do mercado de
trabalho ou por estar fora dele. É resultado do inchaço dos
grandes centros. É o bóia-fria ou o assalariado rural temporário
que com a mecanização do corte da cana [grifos meus], está
sobrando, ficando sem emprego no campo. Desse jeito esse
pessoal não tem alternativa além de lutar por um pedaço de
chão, porque a maioria é de origem camponesa e ainda sonha
em ficar na terra.294
A fala do entrevistado ecoa na chamada “questão da modernização da
agricultura brasileira”295, ao se destacar que, a partir da década de 1970 até meados
da década seguinte, o cenário do campo brasileiro passou a ser o principal receptor
293
Entrevista com Mineirinho. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
setembro de 1994. p.4. O entrevistado ressalta: “quanto à região do Pontal de Paranapanema,
percebe-se que esta é uma região atrasada, pois é de pecuária extensiva e, além disso, a situação
jurídica das terras geralmente é ilegal, porque as áreas pertencem ao estado. Por isso, nós do MSTSP, acreditamos que tem muita luta pela terra para ser feita por aqui”.
294 294
Entrevista com Mineirinho. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST,
setembro de 1994. Sobre esse assunto ver: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do Fim do
Século. São Paulo: Unesp, 1999. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. Ensaios sobre a
a
afirmação e a negação do trabalho. 5 ed. São Paulo: Boitempo, 2002. HOBSBAWM, Eric J. Mundo
a
do Trabalho: novos estudos sobre a história operária. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1995.
295
SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e
trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.27.
201
de quantidades significativas de insumos agrícolas, tais como fertilizantes,
defensivos químicos e máquinas.
Consequentemente, “aumenta-se a produtividade da terra, aumentando-se
as exigências de mão-de-obra não qualificada por ocasião das colheitas”, sendo
essa última uma das proposições a motivar, em larga escala, a inserção da
mecanização nos campos brasileiros. Porém, ao passo que essa “atinge outras
atividades que não a colheita, acentua a sazonalidade de ocupações dessa mão-deobra”296, desencadeando, por outra via, o desemprego em larga escala no campo,
sendo esse um fenômeno também nas cidades.
Em face disso,
a modernização aumenta as exigências e diminui o período de
ocupação da mão-de-obra não-qualificada numa dada
propriedade agrícola. A solução mais econômica para o
proprietário que moderniza a sua fazenda passa a ser a
substituição do trabalhador permanente pelo volante, com o
conseqüente aumento da sazonalidade do emprego dos
trabalhadores rurais.297
Corroborando o trecho descrito anteriormente, assinala-se que “embora a
atenção pública esteja voltada para os efeitos do desemprego tecnológico nos
setores industriais e de serviços”, questiona-se que processos similares e talvez
mais violentos estejam se configurando nas áreas rurais do país, uma vez que essas
transformações, pouco visíveis, “estão mudando a natureza da agricultura moderna
e, em seu processo, levantando sérias questões sobre o futuro da mão-de-obra
agrícola nos países, em todo o mundo”298.
296
SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa: estrutura agrária, fronteira agrícola e
trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.27.
297
Ibidem. p.30.
298
RIFKIN, Jeremy. O Fim dos Empregos. São Paulo: Makron Books, 1995, p.117. Na perspectiva
desse autor, “as mudanças tecnológicas na produção de alimentos estão levando a um mundo sem
202
Nesse cenário, o entrevistado assinala que os trabalhadores rurais sem terra
prosseguiam alimentando o desejo de que, a partir da luta pela reforma agrária, as
negociações tendem a avançar na “perspectiva de resolver os problemas da fome e
da miséria deste país”, quando, de acordo com as reflexões acima, essa expectativa
torna-se pouco promissora.
No campo da produção, o entrevistado assegura que há uma enorme
dificuldade em obter “recursos para a viabilização desta nos assentamentos”,
indicando os avanços do MST nesse estado, particularmente quando se pensa na
“fundação da Central de Cooperativas dos Assentados”.
Pontua-se que, no ano de 1994, haviam no estado de São Paulo “mais de 40
assentamentos rurais”, frutos da organização do Movimento, que à época
completava dez anos de sua existência. Na seqüência, Delwek Matheus299 destaca
que, dentre várias questões, os maiores desafios do setor eram desenvolver e
massificar a cooperação, além de viabilizar economicamente os assentamentos,
argumentando que
individualmente é difícil superar a política do governo que não
desenvolve nada para apoiar o pequeno produtor, ao contrário
só prejudica! – Por isso é que a gente sempre insiste, batalha
pela cooperação para que os companheiros tenham
consciência e venham desenvolver a cooperação nos
assentamentos que, com certeza, será a garantia da reforma
agrária.300
agricultores, com conseqüências imprevisíveis para 2,4 bilhões de pessoas que dependem da terra
para a sua sobrevivência”.
299
Assentado na Fazenda Pirituba e integrante da Direção da Central de Cooperativas de São Paulo.
Para ele, no momento em que os assentamentos forem viabilizados com investimento, haverá a
possibilidade de se “mostrar para a sociedade a viabilidade da reforma agrária”. JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1995. p.4.
300
Delwek Matheus. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de
1995. p.4.
203
A observação de Delwak surpreende ao afirmar sobre a existência alternada
de participação e abandono por parte das próprias famílias nas cooperativas do
movimento. Qual teria sido o principal motivo a desencadear essa evasão? O
entrevistado explica que
na medida em que você não viabiliza economicamente as
famílias, elas ficam desgostosas e acabam deixando a
Cooperativa. Mas o que acontece é que naquele momento
essas famílias não têm consciência de que não é a cooperativa
que está provocando aquela dificuldade e sim a política do
governo. Nosso grande problema é a falta de apoio do estado.
Os pequenos produtores, em geral, estão perdendo a terra,
independente de estarem em cooperativa ou não, sobretudo
aqueles que estão individuais. O fato dos produtores saírem
das cooperativas é porque naquele momento ele não reúne
consciência suficiente para ver que é um problema da política
do governo.301
Nessa perspectiva, apesar da organização do movimento no estado, escapa
da observação do entrevistado a ausência de unidade ao grupo, assinalando
inclusive uma falta de consciência política por parte dos trabalhadores envolvidos,
desvelando certa tensão. Dessa forma, alertava que o Brasil precisava pensar “numa
política rural de outro tipo, a fim de atrair gente para trabalhar no campo, mas com
base em um modelo novo” para poder, então, enfrentar “o desafio de criar empregos
no campo sem inviabilizar a produção nas grandes propriedades”, promovendo com
segurança “uma agricultura variada” de modo que contemplasse a “produção
comercial e familiar”302.
301
Delwek Matheus. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de
1995. p.4.
302
Nessa entrevista, Furtado assinala que “os integrantes do MST têm norteado suas reivindicações
nessa direção, estão conscientes disso”. Cf.: FURTADO, Celso. O Brasil do Século XX. In: BRASIL.
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. Estatísticas do Século XX. Rio de Janeiro, 2006. p.13. Disponível em: <biblioteca.ibge.
gov.br>. Acesso em: out. 2009.
204
Na
seqüência,
a
discussão
concentra-se
nas
reflexões
de
Maria
Rodrigues303, trabalhadora rural do assentamento de Promissão, membro da Direção
estadual do MST e Dirigente da Central de Cooperativa desse estado. Ela observa
inicialmente que o seu principal papel era o de “organizar os trabalhadores para a
conquista da política agrícola, porque a gente conquistou só a terra. E a gente não
se contenta só com isso”. Argumenta que para alguns trabalhadores o sonho termina
quando se consegue um lote de terra para plantar, porém
o sistema exige que os trabalhadores estejam organizados em
busca de políticas agrícolas para se manter na terra, porque
senão eles voltarão a ser expulsos pelos mesmos fatores que
expulsaram os seus pais. [...] A conquista da terra, do lugar
para morar e viver, para ter sossego, constitui-se no projeto de
vida dos pobres do campo por vários motivos: para criar os
filhos longe das drogas, da violência, da criminalidade urbana;
para livrar-se do pagamento do aluguel, das dificuldades
financeiras, da fome, do desemprego, da dominação e também
para um possível reencontro com um mundo deixado para trás,
mas que permaneceu no imaginário como uma espécie de
paraíso perdido.304
Com visão privilegiada acerca das questões econômicas que regem a
agroindústria paulista, a entrevistada observa que “São Paulo é a capital da
concentração de poder, renda e de meio de produção, por isso a gente sofre maior
303
Maria Rodrigues residiu até os dezesseis anos na cidade de Campinas-SP, quando começou a
articular pessoas para participar do MST e lutar pela reforma agrária. Mãe de quatro filhos, assentada
há oito anos no assentamento de Promissão-SP, ocupou vários cargos no MST. Relata que o seu
retorno para o campo teve vários motivos: o de contribuir mais de perto com a educação dos filhos; o
de se livrar do desemprego, pois havia épocas em que estava empregada e épocas que não estava;
e o salário, que não era suficiente pra suprir aquilo que desejava ou tinha necessidade para a sua
família. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de 1995. p.4.
A fala da entrevistada ecoa nas observações de Matos ao assinalar que “a indústria corroborava para
o despovoamento e a desorganização dos campos, tendo introduzido um fator de desequilíbrio na
‘tradicional ordem econômica e social’ [...]; a cidade, portanto, passa a ser identificada com o
individualismo, a competição, a mendicância e a anarquia, enquanto o campo era o espaço salvador,
pacífico e tranqüilo”, visão esta cultivada pela entrevistada em pleno século XX. Cf.: MATOS, Maria
Izilda S. de. Entre o campo e a cidade: tensões e polêmicas em torno das indústrias de juta. Projeto
História. n.19. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da PUC-SP. São Paulo, 1999. p.74.
304
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Editora
da Unesp, 2004. p.92.
205
dificuldade em trabalhar com pouca estrutura do movimento”. Ela deixa registrado
nas páginas do JST que o assentamento de Itapeva era onde a organização estava
mais avançada, contando com cooperativas de produção e almejando a implantação
de um frigorífico. Nesse caso, o avanço é compreendido pela apropriação de
tecnologias, de geração de emprego e renda nos assentamentos, produção e
escoamento dos produtos em mercados internos e externos.
Não obstante, pontua que no assentamento de Promissão onde residia, a
discussão encontra-se atrasada, estando ausente parte dos benefícios alcançados
em Itapeva. Entretanto, “esse é um dos assentamentos de maior produtividade no
estado, pois as 628 famílias aqui assentadas aumentaram em torno de 30% a renda
do município, dando vida àquela cidade”305.
Sobre algumas ações recentes do MST perpetradas no estado, a
entrevistada observou que:
Em Promissão, após ocuparmos o Banespa por três dias,
conseguimos negociar as nossas dividas e obter financiamento.
Pelo banco nós ficaríamos sem financiamento para a próxima
safra. Mas ele sentiu o peso da ocupação. Para nós, tanto fazia
ocupar o banco três dias, um mês ou dois meses; não
suportando a pressão eles arranjaram um jeito de financiar o
pessoal.306
305
Maria Rodrigues. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro
de 1995. p.4. Nesse cenário, pontua-se que “o impacto da criação de um assentamento rural marca
profundamente o cotidiano de um município, seja do ponto de vista social ou econômico, dando a
terra uma função social; além do mais, disponibiliza-se a um conjunto de famílias instrumentos para a
sua sobrevivência. Após um período de convivência, constroem-se casas, conquistam-se escolas e
começam a produzir. Portanto, a produção garante o abastecimento de alimentos aos moradores das
pequenas cidades e gera renda às famílias assentadas. Desta maneira, cada assentamento busca
desenvolver uma mentalidade e uma atitude de Soberania Alimentar, compreendendo que a sua
função social é produzir alimentos, sendo esta a primeira tarefa histórica do Movimento, a eliminação
da fome no meio das famílias camponesas”. Cf.: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS
SEM TERRA - MST. Disponível em: <www.mst.org.br>. Acesso em: 20/06/2010.
306
Maria Rodrigues. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro
de 1995. p.4.
206
O trecho acima descortina a relação de poder velada entre os
representantes da agência do Banespa e os integrantes do MST, claramente
evidenciada na luta. Por fim, questiona-se sobre os desafios enfrentados por ela
mesma ao ocupar um setor da organização fortemente marcado pela presença
masculina, que é o setor de produção. Nesse sentido, a argumentação da
entrevistada
caminha
na
mesma
direção
que
as
demais,
anteriormente
problematizadas. Com um discurso flexível, a entrevistada traz à luz uma tensão do
passado, mas que figura de forma pulverizada no Movimento, reportando-se à
relação de gênero e suas desigualdades. Para ela
enquanto estão indo na luta pela terra, nas ocupações, são as
companheiras que estão à frente. Quando os companheiros
têm que sair para trabalhar fora, são as mulheres que seguram
a luta nos barracos, com suas crianças. Até aí é praxe as
companheiras participarem das lutas. Na hora de produzir, elas
também estão lá, mas quando é pra ir ao banco, fazer as
documentações, as transações de dinheiro e assim por diante,
elas sempre ficam dentro de casa, ou melhor, trabalhando
dupla jornada, porque também vão à roça, cuidam dos animais,
da casa, dos filhos.307
A entrevistada assinala que “a trabalhadora rural sofre muito mais as
pressões do machismo, porque lá o companheiro costuma dizer que ele é o dono do
lote e é o dono de tudo, logo ela é apenas parte da propriedade dele”. Aos seus
olhos de mãe, de liderança e de mulher, há possibilidades de solução para esse
problema e a noção de submissão da mulher só seria dissolvida com o
desenvolvimento do Setor de Educação, sendo “através dele que nós vamos formar
e capacitar novas companheiras para estar assumindo a luta na produção”.
307
Maria Rodrigues. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro
de 1995. p.4.
207
3.6 REGIÃO CENTRO-OESTE: ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL
Segundo o Jornal, somente no estado do Mato Grosso do Sul havia
aproximadamente “cem mil sem terra”. Além disso, denunciou-se que esse “é um
típico estado onde impera o coronelismo [...] amparados no Movimento Nacional dos
Produtores, são eles que mandam e governam esse estado”. O periódico
evidenciava que o MST-MS avançava na tentativa de conquistar a reforma agrária,
buscando, dentro de suas possibilidades, a neutralização do grupo de fazendeiros
que, politicamente e economicamente, encontravam-se organizados no intuito de
desmobilizar a luta dos sem terra e de qualquer outro grupo social que militasse
contra os seus interesses.
Em face disso, a fonte em tela atestou que “o MST chegou ao estado em
1984, com a ocupação da Fazenda Santa Idalina, no município de Ivinhema”. Já em
março de 1998, este organizou o acampamento 8 de março, com 2.163 famílias, no
município de Itaquiraí, considerada a maior mobilização do Movimento no estado e
um dos maiores acampamentos no país. Ademais, até o momento do fechamento
dessa edição do jornal, o estado do Mato Grosso do Sul “constava com oito
assentamentos – com 653 famílias, 2.250 famílias acampadas e 740 famílias em
pré-assentamentos”308.
308
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, março de 1998. p.3. Nesta
perspectiva, recorre-se ao conteúdo das entrevistas do JST com cinco lideranças do MST no estado,
a fim de problematizar algumas inquietações levantadas pela pesquisa. Para tanto, optou-se pela
interpretação das impressões de José Batista, membro da Coordenação Nacional e da Direção
Estadual do Mato Grosso do Sul, entrevista publicada no JST em julho de 1993, p.4; Egídio Brunetto,
Direção Nacional pelo MS, entrevista publicada no JST em dezembro de 1994, p.4; Laura dos Santos
atua no setor de educação, entrevista publicada no JST em agosto de 1996, p.6; Lúcio Kuhnem
Meurer, Direção Estadual do MST, MS, entrevista publicada no JST em março de 1998, p.3; Nair
Guedes Rodrigues, atuou na Coordenação Estadual, Direção Estadual, no Setor de Frente de Massa
e contribui no Setor de Gênero do Movimento nesse estado, entrevista publicada no JST em outubro
de 1999, p.3.
208
Para José Batista, “em 1993 havia nesse estado 1.603 famílias acampadas
e divididas em sete acampamentos, contando com a presença de 26 assentamentos
com mais de 5.000 famílias”. Questionado a atuação do governo estadual no mesmo
ano no qual a entrevista foi concedida, o entrevistado foi incisivo ao afirmar que “o
governo é comprometido com a estrutura fundiária; além disso, ele também é um
dos latifundiários do estado”.
Nessa oportunidade, figurou-se a denúncia de que o Mato Grosso do Sul
tinha cerca de 400 mil hectares de terras devolutas, e ao invés do estado distribuir
essas terras para as famílias acampadas, ele está regularizando-as em nome de
pessoas do próprio governo. A título de exemplificação, a fonte tornou público que “o
Diretor da Terrasul regularizou 3.400 hectares em nome do seu pai e do seu sócio”.
Aos olhos do entrevistado “o governo mantém uma política de não fazer
assentamentos em seu mandato”, ao passo que se configuram “inúmeras
negociações não passando de conversas e boas intenções”.
Indagado acerca da situação dos assentamentos nesse estado, José Batista
traduziu nas páginas do periódico que “há uma condição semelhante entre os 26
assentamentos: o total abandono”. Pois, a seu ver, “há uma baixa qualidade das
terras, falta de assistência técnica, ausência de capital e péssimas condições de
infra-estrutura social”. De acordo com a fonte, a situação de miséria e pobreza
configurava-se no principal motivo que levava “os trabalhadores rurais a
abandonarem ou venderem os seus lotes”.
Em 1994, com a mudança de governo estadual, agora representado por
Wilson Barbosa, Egídio traduziu aos leitores do periódico as perspectivas da luta do
MST nesse estado. Nesse momento, retoma-se a fala da liderança anterior ao
salientar que “o Mato Grosso do Sul é o estado de maior concentração de terras do
209
país”. De acordo com suas impressões, “a maioria dos proprietários de terras são de
outros estados e os que vivem aqui são as velhas oligarquias que mandam na
política, na economia, na justiça e na imprensa”.
Frente a essa observação, a liderança alertava aos trabalhadores rurais que
“não haverá mudanças políticas em relação à luta pela terra nesse novo governo”.
Pois,
apesar de ele ter fama de democrático, suas alianças com
grupos de latifundiários não indicam boas perspectivas, mas as
duas mil famílias acampadas e os cinco mil duzentos e
cinqüenta assentadas no estado vão continuar com sua
pressão exigindo respostas imediatas do governo.309
O trecho sinaliza a falta de perspectiva do Movimento com a posse do novo
governo no estado, entretanto, observa que os trabalhadores estavam preparados
para avançar na luta e pressionar o governo, no sentido de viabilizar a reforma
agrária no estado. Na verdade, a década de 1990, pode ser observada como o
período das tensões sociais nos campos, com manifestações fortemente marcadas
nas cidades, havendo uma descentralização das reivindicações: as terras estavam
no mundo rural, mas sua conquista indiscutivelmente se dava na cidade.
A respeito de sua percepção acerca da atuação do MST-MS nos últimos dez
anos, Egídio faz um balanço positivo da atuação ao vislumbrar que “o Movimento
obteve muitos avanços” nessa década de luta, traduzindo sua observação em
dados: “140 mil famílias assentadas, muitas com infra-estrutura, créditos, com a
produção organizada; são expressivas conquistas do MST”. Por sua vez, estas
foram frutos de muita luta e garra, assinala Laura dos Santos. 310
309
Egídio Brunetto. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dezembro de
1994. p.4.
310
Antes de ingressar nas tessituras do MST, Laura era funcionária de um posto de gasolina. Em
1991, participou de sua primeira ocupação, tendo ficado acampada mais quatro meses à beira da
estrada. Segundo ela, “as negociações não avançavam”. “Resolvemos forçar as negociações
trancando a rodovia por três dias, chegou à polícia e os trabalhadores conseguiram intimidar. No dia
210
Ao expressar a sua opinião sobre a conjuntura do MST no Mato Grosso do
Sul, a entrevistada pontuou que os trabalhadores “lutaram muitos anos nesse
estado, más sem conquistas”. Reportando-se ao surgimento do MST-MS, ela
indicava que no período de “1984 a 1987 o Movimento desenvolvia seu trabalho
junto com a ala progressista da Igreja Católica – Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Após esse período, constitui a sua própria coordenação”.
No ínterim de 1991 a 1996, concretizaram-se apenas dois assentamentos no
estado: “o de São Manoel em Anastácio e o São Luiz, em Baitaporã”. Entretanto, “já
existem várias áreas com a posse do INCRA, que ocorreram através de muitas lutas:
ocupações, caminhadas, manifestações, atos públicos”. A descrição feita por Laura
desenha um cenário no qual a reforma agrária não seria viabilizada sem a pressão
do Movimento. Reitera, ainda, como mãe e como militante: “quero firmar o meu
compromisso na luta pela conquista da terra, sendo companheira e solidária a tantas
mulheres que também estão nessa luta”.
Partilhando dessa luta, Lúcio311 expressa suas impressões nas páginas do
periódico, ele se posiciona sobre a atuação do governo estadual da seguinte
maneira: “o governo estadual trabalha de forma cautelosa na política de cooptação e
seguinte, a polícia retorna prendendo treze trabalhadores, dentre eles, eu. Houve espancamento,
violência, humilhação e tortura psicológica, tive muito medo. Pois na época não tinha clareza do que
era a luta pela terra e me perguntava: por que estou aqui se só quero terra para trabalhar”? Enfim, na
época em que Laura concedeu a entrevista ao JST ela fazia parte do Setor de Educação e era
convidada a receber um prêmio de reconhecimento do seu esforço junto ao Movimento e aos
trabalhadores rurais sem terra. Tratava-se do recebimento do Título de Cidadã Campo-grandense,
indicado pelo vereador Pedro Taruel, do PT que aos olhos de Laura, “essa foi uma homenagem às
mulheres do campo e ao conjunto da organização”, e não exclusivamente a ela.
311
Oriundo do município de Paranavaí-PR, filho de pequenos produtores, em 1985 mudou-se para o
Mato Grosso do Sul para auxiliar o pai no seu sítio, no município de Ivinhema. A crise obrigou a
família a vender a terra e Lúcio passou a viver como arrendatário. Em 1994, decidiu contribuir com o
Movimento no trabalho de base no mesmo município. Participou da ocupação da Fazenda Sul Bonito,
onde na época da entrevista estava assentado. Não obstante, esse trecho de apresentação inicial do
entrevistado, de certa maneira, descortina a percepção de um passado que o condena. Pois a
liderança que busca a terra, que se percebe como sem terra, que luta para que outros trabalhadores
rurais tenham acesso à terra, também já foi um dia, um trabalhador “com terra”, contradizendo, em
particular, a sua denominação.
211
de privilégio de outros movimentos. O objetivo dele é neutralizar a nossa luta,
tentando nos desmobilizar”.
Sua avaliação sobre o então Presidente da República, Fernando Henrique
Cardoso era negativa. Para ele, esse presidente “não quis mexer na estrutura
fundiária do país – considerada a mais vergonhosa do mundo, onde poucos têm
muito para especulação e muitos não têm nada”. Destacava que em seu primeiro
período de governo havia “oitocentos mil assalariados rurais sem empregos e outros
tantos migraram para a cidade por falta de incentivos”. Em face disso, pontuou que o
presidente “resolve somente casos localizados sem, de fato, fazer a reforma
agrária”, traduzindo os reflexos da ação do governo para os trabalhadores conforme
explicitado abaixo:
Num primeiro momento é o desemprego que coloca os
trabalhadores numa situação de medo, sem coragem de fazer
mobilizações por melhores salários, desmobilizados. Sem
contar com a concorrência que a classe trabalhadora vem
sofrendo frente à automação. Máquinas ocupam lugar da mãode-obra, tanto no campo como na cidade.312
A partir de então, quanto aos desafios norteadores do MST, o entrevistado
tinha uma postura positiva, que consistia em “continuar fazendo lutas. Ocupar
grandes latifúndios, realizar mobilizações para fazer com que de fato, a reforma
agrária saia do papel. É preciso manter o apoio da população”, o que se configura
num grande desafio.
Por fim, discute-se a última entrevista desta série, na perspectiva de Nair
Guedes Rodrigues, em que busca socializar com os leitores do JST suas
experiências de luta. Indagada sobre sua percepção da importância da reforma
agrária para o país, ela assinala “que o Brasil possui mais de 32 milhões de pessoas
312
Entrevista com Lúcio Kuhnem Meurer. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, março de 1998. p.3.
212
vivendo na miséria. Ao mesmo tempo, nosso país possui melhores terras produtivas.
Esta, portanto, é uma forma de melhorar as condições de vida de quem sonha em
voltar para o campo”.
Ao expressar os dados técnicos do número de assentados e acampados
nesse estado, Nair pontua que, em 1999, havia em todo o estado “três mil famílias
acampadas e duas mil assentadas”, número expressivo segundo considerações da
entrevistada.
Indagada sobre as ações a serem viabilizadas pelo Movimento no final do
século XX, pontuou que é preciso “continuar estimulando os movimentos populares
como forma de combater o modelo político que vigora no país, fazer grandes
ocupações e lutas de massivas”313.
3.7 REGIÃO NORTE: ESTADO DO PARÁ
A história recente do estado do Pará atesta que a luta pela reforma agrária
tem sido fortemente marcada pela violência, destacando a tragédia do massacre de
Eldorado dos Carajás. Ocorrido em abril de 1996, esse foi um episódio de grande
magnitude política, extrapolando inclusive às fronteiras do país e revelando ao
mundo como se encontravam os conflitos no campo envolvendo a posse da terra.
Joaquim Ribeiro dos Santos314 ressaltava que a entrada do MST no Pará se
deu particularmente no ano de “1986, quando dispúnhamos apenas de uma
secretaria, em Belém, que funcionava junto com a CUT, onde fazíamos
313
Além do mais, Nair pontua que é necessário “ser solidário, participar de toda luta de massa no
país e conscientizar o povo brasileiro da necessidade de um modelo alternativo de governo, voltado
para a construção do Brasil como Nação soberana e organizar a economia dentro das necessidades
da população”. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, outubro de 1999.
p.3.
314
Joaquim Ribeiro dos Santos integra a Coordenação Nacional do MST/PA. JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, outubro de 1994. p.4.
213
articulações”. Ao observar como estava organizada a luta pela terra, relatou que este
estado era “marcado por conflitos de terra violentos”, porém “há grande simpatia
pelo MST no Pará, por ele ser o único Movimento de massa que conseguiu
conquistar terra dos grandes fazendeiros da região”. Assinala que “para enfrentar o
Poder Judiciário e a UDR, temos que ter organização bastante forte”315.
Não obstante, o segundo entrevistado316 pelo JST Jorge Néri, observa que
“nesta região a luta dos trabalhadores rurais foi caracterizada pela luta de
posseiros”. Assinalou de que forma se constituíram os confrontos iniciais e como o
estado patrocinou estes conflitos. Descrevendo as ações de ocupação por
posseiros, Jorge afirmou que estes “entravam na área e, quando o dono descobria,
agilizava o mandato de despejo via Poder Judiciário e via polícia, e então ocorriam
os conflitos”.
Para ele, nos anos de 1970, “essa luta de posseiros é levada pelos
sindicatos rurais, surgindo posteriormente lideranças na região que levam a luta pela
reforma agrária, sobretudo via CPT”. Assim, os latifundiários se renovavam e, “em
vez de matar indiscriminadamente qualquer posseiro, passam agora a se
especializarem em assassinar lideranças”. O entrevistado cita a morte de “Arnaldo,
Chico Mendes, Expedito Ribeiro e irmãos Canuto”, destacando que essa onda de
assassinatos de lideranças desembocou, ao término da década de 1980, com uma
ligeira queda nos conflitos no campo.
315
Entrevista com Joaquim Ribeiro dos Santos. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. MST, outubro de 1994. p.4. Num tom de brincadeira, o entrevistado salienta: “mesmo que o
Valdir Ganzer e o Lula se elegessem, não haveria mudanças na luta pela terra aqui, porque há muita
repressão sobre os movimentos sindicais e populares que lutam por reforma agrária”. Os dois
políticos citados eram as duas maiores referências em termos de liderança popular no período.
316
Jorge Néri entrou no MST em 1993. Na época fazia parte da Coordenação Nacional do Movimento
e da Direção Estadual do MST-PA. Na sua percepção, “numa região que tem a sua história escrita
com sangue de índios e camponeses, o MST surge como única alternativa de justiça e paz”. JORNAL
DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio de 1996. p.4.
214
Em face disso, foi nesse ínterim que o MST inseriu-se e ramificou-se nesse
estado, acreditando “que a luta só seria possível se fosse massificada”. De acordo
com a fonte,
no ano de 1992, o MST faz ocupação da Fazenda Rio Branco
com 500 famílias. No ano seguinte a gente ganha a área. Em
1994, a gente massifica e faz uma ocupação lá no cinturão
verde com 2.500 famílias que termina no assentamento
Palmares, com 850 famílias.317
Indagado pelo jornal sobre a capacidade de mobilização do MST na região,
o entrevistado descortinou-a como propícia, demonstrando um cenário social velado.
Ampliando seu olhar sobre os problemas sociais da região, sinalizou que “o garimpo
faliu, não existe mais”; “a Vale do Rio Doce não consegue gerar empregos, pelo
contrário, demite toda vez que uma nova máquina é introduzida”.
Além do mais, há constantes “fluxos migratórios da região Nordeste para a
região Norte” e, a seu ver, não existe projeto político para absorção da mão-de-obra
dessa população e, ao ficar à margem desse processo, não se tem outra saída a
não ser
morrer nas periferias da cidade, de fome ou de doença
venérea, na prostituição ou na violência urbana que é enorme,
ou entrar no Movimento Sem Terra que te possibilita, além da
terra, o reencontro com valores que até então haviam sido
perdidos, como o companheirismo, a amizade, a noção de
família, a noção de organização e respeito.318
O cenário desenhado pelo entrevistado remete-se às práticas de
sociabilidade dos trabalhadores rurais, edificadas nas experiências de lutas e no
processo de ocupação das terras, na construção dos acampamentos e no convívio
317
Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio
de 1996. p.4.
318
Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio
de 1996. p.4.
215
dos assentamentos. Nesses locais, com freqüência essa “sociabilidade instável se
abre para os de fora, para o recém chegado”, recuperando sonhos, construindo a
sua história e estabelecendo o retorno aos ideais de “familismo e de vizinhança
rural”319.
Sob o olhar do entrevistado, era inaceitável que num lugar, onde existe “a
maior mineradora do mundo, onde existe reserva de ouro, ferro e bronze”320, exista
também a proliferação da pobreza e da miséria. Ele salientava que “nessa região a
luta pela terra significa a busca por um espaço que possibilite a segurança
econômica, mas também o resgate da cidadania”321.
Dessa maneira, sua percepção acerca do vivido denunciava as marcas
negativas da presença do capitalismo no campo, mas também anunciava “ao
homem comum, na vida cotidiana, que é na prática que se instalam as condições de
transformação do impossível em possível”322. Em face disso,
319
MARTINS, José de Sousa. A Sociabilidade do Homem Simples: cotidiano e história na
modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. p.47. Em face disso, o autor ressalta que “na fase
da luta pela terra, os trabalhadores acabam se ressocializando por força do convívio e dos
enfrentamentos conjuntos com estranhos”.
320
Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio
de 1996. p.4. A sua concepção a respeito do processo de modernização do campo no qual está
inserida a Vale do Rio Doce, encontra eco nas observações de Martins, quando este assinala que o
processo de exclusão, localizado ao lado dessa multinacional, é uma das contradições legadas pela
modernidade. Portanto, a esta se configura numa “espécie de mistificação desmistificadora das
imensas possibilidades de transformação humana e social que o capitalismo foi capaz de criar, mas
não foi capaz de realizar”. O autor pontua que a “modernidade não procura acobertar as injustiças, a
exploração, a degradação humana. Esta é, num certo sentido, o reino do cinismo: é constitutivo dela
a denúncia das desigualdades e dos desencontros que a caracteriza“. Cf.: MARTINS, op. cit., p.20-1.
321
Em face dessa questão, observa-se que “sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre,
em que o acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, percebe-se que os avanços
da cidadania têm a ver com a riqueza do país e a própria divisão de riquezas, dependem também da
luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos”. Cf.: PINSK, Jaime; PINSK, Carla
a
Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.13.
322
MARTINS, op. cit., p.67. O autor reporta-se a Agnes Heller (1978), ao assinalar que “só quem tem
necessidades radicais pode querer fazer a transformação da vida” e, nesse contexto, as fontes em
questão sinalizam para essas necessidades trazidas pelos trabalhadores rurais sem terra.
216
esse processo histórico surgiu de iniciativas humanas e de que
ele é continuamente rompido por novas iniciativas. Quando é
visto em seu puro caráter de processo – e isso acontece
naturalmente em todas as filosofias da história, para as quais o
processo histórico não é o resultado do agir em conjunto dos
homens, mas sim do desenvolvimento e do encontro de forças
extras, sobre e sub-humanas, em que o homem agente está
excluído da história [...].323
Assim, assinala-se que a inserção dos trabalhadores rurais sem terra
representados pelo MST nesta região, não significava apenas uma busca pela
reforma agrária; mas, principalmente, uma mudança de hábito local visando
desenvolver mecanismos que promovessem a organização da população rural,
desencadeando o reencontro destes com um mundo possível.
A terceira entrevista pauta-se pelas observações de Isabel Rodrigues
Lopes324, uma das lideranças, que falou, dentre outras questões, sobre o “massacre”
dos dezenove trabalhadores rurais assassinados em Eldorado dos Carajás, no Pará,
em 1996. Por se tratar de uma das pessoas que presenciou episódio, um trecho de
sua fala remete um sentimento de descaso do poder público com a violência
eminente no campo. Para ela,
foi muito doloroso presenciar aquele episódio, ver o sangue
dos companheiros derramado naquela rodovia. É muito mais
doloroso saber que esse episódio aconteceu por falta de uma
simples negociação. Não da parte do MST; o Movimento
sempre quis negociar, mas pela parte do governo.325
323
ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1993. p.120.
324
Esta entrevistada iniciou a sua militância no MST em 1992. Na época militava na Pastoral da
Juventude, no Serviço de Paz e Justiça. Segundo ela, “quando os companheiros do MST chegaram a
Marabá para iniciar os trabalhos, fomos nós, a Juventude que demos apoio”. “Fomos trabalhando,
entendendo um pouco da luta e, em 1992, quando houve a primeira ocupação de massa na região,
eu comecei a participar efetivamente do MST”. Assentada em 1995 no assentamento Palmares, em
Parauapebas - PA, Isabel residia com dois filhos e fazia parte da Coordenação Nacional do MST. Cf.:
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, dez.-jan. 1999/2000. p.3.
325
Entrevista com Isabel Rodrigues Lopes. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, dez.-jan. de 1999/2000. p.3.
217
A indignação da entrevistada encontra eco na proposição de que “o governo
do Pará e os de outros estados conflagrados não têm condição de exercer e não
exercem nenhuma arbitragem sobre os conflitos sociais” 326 no campo. Com isso,
postergando os resultados conflitantes em função da tão propalada “questão agrária”
que, sem a pressão exercida pelos trabalhadores rurais, não sairia do papel, nem
tampouco dos discursos dos políticos e de determinados setores da imprensa.
Nessa perspectiva, assegurou-se que “a violência ilegal é parte presente da
ação do Estado, sendo fator banal na vida social: o massacre é regra da resolução
do conflito”327, ao passo que a subserviência do Estado em atender aos interesses
de grupos econômicos ou latifundiários locais confirmava a sua conivência ou
omissão diante dos conflitos deflagrados no campo. A entrevistada relata que “hoje,
a gente avalia que o massacre e a farsa do julgamento foram montados pelo
governo do estado, fazendeiros, oligarquia rural e grupos econômicos e políticos na
região”. Com base nessa afirmação coloca-se em destaque a anuência do estado na
manutenção das tensões no campo.
Em um artigo sobre a violência nesse estado, Paulo Sérgio Pinheiro
desnuda o discurso dos policiais do Pará, que enfrentarem os trabalhadores rurais
sem terra enfurecidos, alegando legítima defesa, dando tiros para cima como forma
de intimidar os “revoltados” e manter a ordem local. O autor classifica esse discurso
de “pueril”, ao passo que não encontra sustentação nos laudos das necropsias.
326
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Eldorado do Carajás: impunidade à vista. Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. MST, maio de 1996. p.3. Nesse artigo o autor mostra a farsa que algumas
autoridades usam para permitir, de forma velada, o não cumprimento dos Direitos Humanos
assegurados na Constituição. Segundo Pinheiro, “os dezenove trabalhadores rurais sem terra mortos
foram o resultado visado pela cilada montada pela Polícia Militar do estado”. De acordo com suas
análises acerca da documentação produzida após o massacre, assegura-se que “as mortes não
foram em confrontos. Esta foi uma ficção inventada pelas autoridades locais” para se livrarem do
crime.
327
Ibidem.
218
Observa-se, também, que “apesar das cenas gravadas do conflito, a
verdade inscrita nos corpos dos mortos mostra com clareza os objetivos da
operação,” assinalando que
entre os 19 mortos, doze foram com tiros certeiros desfechados
contra a cabeça, o tórax e órgãos vitais. Com grande precisão,
pois o número de projéteis encontrados nos corpos é reduzido:
no máximo quatro desfechados por revolveres de calibre 38 e
não por rajadas de metralhadoras. Três foram mortos com tiros
à queima-roupa e pelas costas. Sete foram mortos por
instrumentos de corte contundentes, o que indica que já
estavam dominados.328
Dessa forma, o trecho citado revela a forma covarde e despreparada como
esses agentes do estado agiram em nome da ordem, deflagrando mortes de
trabalhadores e ferindo outros, assim como, expondo ao terror os familiares dos
envolvidos no conflito na região. Os massacres de Corumbiara e Carajás
descortinaram os conflitos no campo revelando-os ao mundo, os trabalhadores
rurais colocaram “a reforma agrária no imaginário da população e não na agenda
política do Estado” 329 . Se esta viesse a ocupar lugar na agenda política estatal,
oportunamente se desencadeariam impasses políticos de grandes proporções, que
se não fossem resolvidos, “o país poderia ficar ingovernável. E ele é governável sem
a solução desse problema”.
Portanto, a reforma agrária não entrou na pauta das ações concretas uma
vez que, caso ela entrasse, provavelmente desmontaria o sistema político ou, em
última hipótese, proporia mudanças estruturais no governo vigente. A reforma se
328
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Eldorado do Carajás: impunidade à vista. Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra. MST, maio de 1996. p.3.
329
Para Martins, “os dois massacres já entraram no imaginário novelístico dos brasileiros... é uma
coisa puramente episódica, não vai afetar a próxima eleição. As pessoas vão continuar votando nos
grandes proprietários de terra, inclusive os trabalhadores rurais”. Entrevista com José de Souza
Martins. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, julho de 1996. p.4.
219
tornou uma grande questão, porque o “Estado é oligárquico e latifundista”330, não
possibilitando, portanto, uma reforma agrária ampla, como desejam os trabalhadores
rurais sem terra.
Recuperando a entrevista com Isabel, percebe-se que, dentre outras
questões, ela traz à luz inquietações a respeito do sectarismo presente nas relações
de gênero no MST do Pará, do qual ela é representante. Indagada sobre o desafio
de ser mãe e militante no Movimento, os registros do jornal atestam que o semblante
da entrevistada assumiu um ar de silêncio, seguido de lágrimas. Após se recompor,
Isabel pontua que “é muito difícil falar sobre esse assunto”. Para ela,
ser mãe e ser militante é difícil. Hoje, você ter esse
compromisso, estar nessa luta e ser mãe, é muito difícil. Por
isso nós queremos uma sociedade diferente. Nós temos que
construir dentro de nós, o homem novo e a mulher nova, nós
temos que compreender que fazer as novas relações de
gênero, para que nós possamos compreender o que é ser mãe,
porque na verdade, só a mãe sabe o que é ser mãe. O homem
não compreende essa parte, não entende e por ele não
compreender e não entender, muitas vezes não contribui para
que a mulher participe.331
A entrevista com Isabel denuncia a emergência de discutir na sociedade e
no Movimento as relações de gênero, para que as mulheres, mães e militantes
possam ser acolhidas pelos seus parceiros, de modo a assegurar a continuidade de
sua participação nas ações de ocupação, nas assembléias de grupos e nas tomadas
de decisões coletivas. Enfim, serem compreendidas em todas as instâncias como
pessoas de direitos, sem esquecer que em determinadas situações
330
Entrevista com José de Souza Martins. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, julho de 1996. p.4.
331
Entrevista com Isabel Rodrigues Lopes. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA.
MST, dez.-jan. 1999/2000. p.3. A respeito da dupla jornada de trabalho feminino evidenciou-se, no
início deste capítulo, uma bibliografia que desnuda os discursos sexista nos interstícios da história, às
vezes velado, outras vezes não tanto.
220
o trabalho mais árduo e prolongado de todos era o da mulher
do trabalhador na economia rural. Parte desse trabalho –
especialmente o cuidado dos bebês – era o mais orientado
pelas tarefas. Outra parte se dava nos campos, de onde ela
retornava para novas tarefas domésticas.332
Porém, no discurso acima, o homem é vitimizado e isento de suas
responsabilidades enquanto companheiro, ao se afirmar que “o homem não
compreende essa parte, não entende e por ele não compreender e não entender,
muitas vezes não contribui para que a mulher participe”.
Mesmo com esse discurso e com a carga de responsabilidade legada à
mulher historicamente, as práticas femininas no que tange às lutas, às resistências e
à submissão têm sido evidenciadas, mesmo porque esta última diz respeito aos
interesses provenientes dos patrões, maridos/companheiros e até mesmo de pais ou
irmãos mais velhos. Nesse sentido, as mulheres têm procurado manifestar
indignação frente às mais diversas formas de exploração, criando “estratégias de
luta e de sobrevivência, manifestando resistências à dominação no âmbito do
público e no privado”333.
Frente a essa afirmação, indaga-se: o homem não entende a situação da
dupla jornada de trabalho da mulher ou não quer entender? Que esforço ele tem
feito
para
compreender
melhor
esse
universo
onde
se
configuram
as
responsabilidades, mas também os sofrimentos?
332
Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.287. O autor prossegue assinalando que a jornada dupla de
trabalho das mulheres ainda é uma constante nos “dias atuais, e, apesar do tempo da escola e do
tempo da televisão, o ritmo do trabalho feminino em casa não se afina totalmente com a medição do
relógio” (p.288). Por essa razão, Isabel anseia pela construção de um homem renovado, capaz de se
sensibilizar com as tarefas domesticas e, sobretudo, colaborar nesses afazeres de modo a promover
a autonomia e a felicidade de ambos.
333
Cf.: MATOS, Maria Izilda S. de; SAMARA, Eni de M. Cotidiano e Trabalho Feminino (1890-1940).
In: SAMARA, Eni de M (Org.). Trabalho Feminino e Cidadania. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP,
1999. p.69.
221
Enfim, numa relação de tensão entre história e memória, a análise do JST
possibilita entender, que as falas dos seus entrevistados apresentavam relativa
preocupação com a memória, posto que suas ações, de certa forma, “encontram-se
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”334.
Acrescenta-se que, ao contrário da história, “a memória é um fenômeno
sempre atual, um elo vivido no eterno presente: a história uma representação do
passado. A memória emerge de um grupo que ela une”, sendo este grupo
representado pelos trabalhadores rurais sem terra e suas lideranças, postando-se a
defender interesses coletivos daqueles que viveram no campo e que já não vivem
mais. Suas ações se articulam à memória porque “ela é múltipla, é desacelerada, é
coletiva, é plural e individualizada [...] ela se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto”335.
Em face dessa questão, as falas das lideranças do MST inscritas nas
páginas do JST suscitam discussões e questionamentos, ao passo que estas
explicitaram que o jornal ocupou posição singular em suas representações sociais e
políticas. Tudo isso não apenas pela possibilidade do Jornal ter se revelado o
principal porta-voz desses trabalhadores, mas por, ao longo de sua trajetória, ter se
transformado em um “lugar de memória” da luta camponesa além da sua
versatilidade ao articular “os discursos de homens de escrita com homens de ação,
discurso individual com o discurso coletivo”336 (sendo os discursos de “homens de
escritas” apresentados e interpretados no próximo capítulo).
Portanto, a análise das entrevistas revelou que o processo da luta pela terra
se expandiu ao longo desses vinte anos, deixando marcas na qualificação do
334
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun
Khoury. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, dez. 1993. p.9.
335
Ibidem.
336
Ibidem. p.25.
222
discurso propalado pelo jornal; potencializou a politização das lideranças,
promovendo a inserção de centenas de novos sujeitos ao Movimento e, finalmente,
evidenciou sensibilidade na elaboração de novos discursos, adaptando-os à
realidade política do momento.
Nas palavras de uma das lideranças, assinalou-se que nas idas e vindas dos
trabalhadores rurais sem terra: “uma coisa é certa, apesar de toda insegurança que
a busca por um pedaço de terra pode causar, dentre a violência generalizada por
parte do estado e de alguns setores da elite agrária”, fica patente que “um camponês
sem terra olha para cima, fala, grita e é capaz de ir à lua buscar aquilo que sempre
lhe foi negado: terra, democracia e liberdade” 337 . Por conseguinte, essa tríade
compreendida pela liderança como possibilidades a serem alcançadas, “não se trata
de remendar as fraturas do mundo da vida, para recriá-las. Mas de dar voz ao
silêncio, de dar vida à História”338.
Enfim, de acordo com a análise das entrevistas tornou-se evidente que se
configuraram como estratégias, para que os anseios da Direção Nacional do
Movimento tivessem mais expressividade junto aos trabalhadores rurais sem terra,
em especial, aqueles alocados nos acampamentos ou assentamentos.
O Jornal deixou clara a alternância na formulação das questões
encaminhadas às lideranças, descortinando certa variação em seu conteúdo. Tal
variação implica na afirmação de que, em alguns momentos, se fez presente a
homogeneização das questões elaboradas pelo JST, sobretudo quando as tensões
337
Entrevista com Jorge Néri. JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. MST, maio
de 1996. p.4. As experiências dos trabalhadores rurais sem terra indicam não concordar com o
conceito de que “a liberdade não apenas se encontra no agir na esfera política, mas, ao contrário, só
é possível se o homem abre mão do agir, retira-se do mundo em direção a si mesmo evitando a
esfera política”, confirmando a hipótese de que as experiências humanas tendem a ir contra essa
tradição propalada desde o fim da Antiguidade. Cf.: ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política:
ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. p.121.
338
MARTINS, José de Sousa. A Sociabilidade do Homem Simples: cotidiano e história na
modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. p.64.
223
envolvendo os trabalhadores estiveram mais explicitadas, como por exemplo, na
década de 1990.
Apesar da maior parte dos questionamentos apresentarem o mesmo
conteúdo, um dado que chamou a atenção nos relatos dos entrevistados foi o
conflito na ordem dos discursos, desvelando aproximação e distanciamento destes.
Assim, ausentou-se a hipótese de homogeneização de suas percepções, embora,
na maioria das vezes, as questões tivessem sido endereçadas às lideranças de
forma comum.
224
CAPÍTULO IV - O JORNAL SEM TERRA EVIDENCIA A VIOLÊNCIA NO CAMPO
Envelhecemos reclamando!
Passamos nossos anos sentados nos corredores.
Anos e anos suplicando!
Nunca conseguimos nada!
Os fazendeiros nem sequer atendem aos mandados.
Foram intimados três vezes para audiências.
Três vezes esperamos três dias e três noites.
Não vieram.
Mesmo que esperássemos três séculos não se apresentariam.
Eu lutei pela expropriação.
Estava enganado.
Não cabe expropriação.
Estas terras nos pertencem.339
339
SCORZA, Manuel. Garabombo, o invisível. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
p.152. Esse romance traduz a saga “dos índios do altiplano peruano que retomaram as fazendas
ocupadas por gado e plantações, para voltarem a viver comunitariamente”. Porém, nota-se que
enquanto Garabombo “reivindicava pacificamente a posse da terra ninguém o ouvia [...]. Até que,
aproveitando-se de sua ‘invisibilidade’ organizou rebelião, liderou uma guerra agrária, ficou curado da
‘invisibilidade’, foi perseguido e morto”. SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis.
In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do
dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-34.
225
4.1 O MST, A VIOLÊNCIA NO CAMPO E O PODER JUDICIÁRIO
O presente capítulo tem a intenção de problematizar a questão da violência
no campo, detendo-se aos conflitos no estado de São Paulo, concatenando essa
reflexão a outras regiões do país onde os trabalhadores rurais estiveram
organizados.
Todavia, a análise da documentação buscou trazer à luz os desdobramentos
destes conflitos, como subproduto das sanções imputadas aos trabalhadores sem
terra, sendo estas, em sua maior parte, oriundas de setores representativos do
Estado: Poder Judiciário, delegados de polícia, investigadores e policiais, assim
como, pistoleiros particulares contratados por fazendeiros e representatividade
política, exercida por entidades que defendiam os interesses dos latifundiários à
época, por exemplo, a UDR.340
Nesse aspecto, abordam-se os dados sobre os índices de opressão 341
sofrida pelos trabalhadores rurais no campo, articulados ao processo de ocupação
dos espaços. Dessa forma, analisam-se os questionamentos elaborados por
intelectuais e autoridades religiosas, que utilizaram as páginas do JST como suporte
de diálogo e contato com os integrantes do Movimento, no auxílio a estes
reconhecerem-se enquanto sujeitos históricos, motivando-os à luta e revelando uma
340
Nota-se que este foi o discurso a respeito dos conflitos no campo, que circulou tanto nos relatórios
anuais da CPT quanto nas páginas do JST, como se demonstra ao longo deste capítulo.
341
Sob a problemática da violência, é imprescindível nos remetermos às reflexões de Arendt ao citar
incipiente atenção dos pesquisadores nos estudos desta prática nas atividades humanas. Suas
observações apontam para um pequeno descaso, no que tange ao estudo da tirania enquanto objeto
de reflexão, estando esta ausente em algumas pesquisas por ser comparada a fatos corriqueiros,
portanto, negligenciada nas abordagens sobre história e política. Por isso, pontua-se que “qualquer
um que procurasse algum sentido nos registros do passado, estaria quase sempre destinado a
encarar a questão como um fenômeno marginal”. Cf.: CUNHA, Maria de Fátima. Eles ousaram
lutar... A esquerda e a guerrilha nos anos 60 e 70. Londrina - PR: Ed. da UEL, 1998, p.128. Dessa
forma, observa-se que a questão da violência contra os trabalhadores rurais sem terra ocupa lugar
central na construção do presente capítulo, assegurando a reflexão de algumas de suas interfaces,
como propõe: ARENDT, Hannah. Da Violência. Brasília: UNB, 1985. p.6.
226
tensão iminente sobre a questão da reforma agrária entre os discursos de órgãos do
governo, de acordo com interesses dos latifundiários, e o desejo latente dos
trabalhadores rurais sem terra e entidades civis representativas.
Em face disso, tornam-se pertinente alguns questionamentos: por que tantas
mortes no campo? Em que condições essas mortes se deram? Como estava o
cenário político no momento dos conflitos? Que postura o Estado adotou quando foi
acionado para solucionar as tensões no campo? Que postura assumiu o JST e a
CPT diante da tirania imposta ao campo pelos latifundiários e por determinados
setores do poder público?
Concatenado a essa discussão, os relatórios apurados pela Comissão
Pastoral da Terra342 - CPT, reportagens, notícias, imagens (fotografias), artigos de
opinião e entrevistas publicadas pelo JST e bibliografia especializada serviram de
suporte para a problematização desse capítulo.
Efetuou-se um recorte espacial e temporal no que concerne à identificação
do lócus da violência, as características dos sujeitos envolvidos e a relação do Poder
Judiciário com os atos de brutalidade imputados aos trabalhadores rurais. Enfim,
procurou-se ponderar a postura do periódico frente às tensões envolvendo o MST, o
Estado, o Poder Judiciário, intelectuais e entidades sociais solidárias aos
trabalhadores.
Inicialmente, afirma-se que o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
assumiu a postura de ferramenta de luta dos integrantes do MST e entidades civis
342
O presente capítulo propõe analisar trechos de textos, gráficos e tabelas existentes nos cadernos
Conflitos no Campo (publicação da CPT), visando evidenciar como a violência no campo constituiu-se
numa pratica cotidiana, impedindo as ações de ocupação encabeçadas pelo MST. Por outro prisma, a
discussão deste documento versa sobre a omissão do Estado brasileiro frente à situação de miséria,
na qual os trabalhadores do campo se encontravam, e a incipiente efetividade de ações do Poder
Judiciário, no sentido de amenizar os conflitos no campo. Não obstante, os materiais publicados pelo
JST serão utilizados de modo a dar visibilidade à violência a qual os trabalhadores rurais foram
submetidos, no período compreendido pela pesquisa.
227
que os apoiaram, destacando-se como sujeito histórico pela sua pertinência na
construção e projeção do Movimento em âmbito nacional e internacional.
Desde a publicação de seus primeiros números, ainda como Boletim dos
Sem Terra, o periódico procurou desvelar os anseios dos trabalhadores rurais em
relação à posse da terra, além de denunciar veementemente os desdobramentos de
suas ações, sendo um deles a violência em larga escala, objeto de reflexão do
presente capítulo.
Assim, como instrumento de luta e sujeito histórico, o jornal assumiu um
duplo compromisso com os trabalhadores rurais, sendo primeiramente, o de
anunciar as possibilidades de lutas, de conquistas, de solidariedade, de
companheirismo e de formação destes. Na seqüência, encontrava-se o de denunciar
como os trabalhadores rurais estavam fadados ao descaso do governo, quando este,
por sua vez, aliava-se aos projetos dos latifundiários de banir esses trabalhadores,
apropriando-se de toda sorte do aparato repressivo do Estado e tornando-se “um
dos principais culpados por essa realidade de violência. Ele não é apenas omisso ou
conivente, mas agente ativo da violência no campo”343, ressalta o relatório.
Nesse aspecto, a Comissão Pastoral da Terra publicava anualmente e, às
vezes, semestralmente, relatórios que apuravam e denunciavam, de forma
sistematizada os locais e os tipos de violência na área rural. O Jornal e os Relatórios
da CPT constituíram uma memória dos trabalhadores rurais sem terra, auxiliando na
compreensão de suas visões e possibilidades de uma sociedade mais humanizada,
por meio da distribuição da terra, ou melhor, da própria Reforma Agrária.
343
Assinala o Presidente da CPT, Dom Augusto Alves: “são muitos os casos em que o Estado e seus
organismos agiram ombro a ombro com os pistoleiros, defendendo os interesses privados do
latifúndio contra os direitos humanos”. ROCHA, Augusto Alves. Apresentação. In: COMISSÃO
PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo. Brasil, 92. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1993. p.3.
Dito de outra maneira, essa situação “abre espaço para a repressão violenta da política, que afinal de
contas perpetua a exclusão dos direitos de participação, pela violência, mas em nome do
disciplinamento da ordem”. Cf.: PAOLI, Maria Célia P. M. Violência e Espaço Civil. In: Idem [et. al.].
Violência Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. p.53.
228
Na nona edição do Boletim dos sem terra, publicada em julho de 1981, na
seção “notícias do acampamento”, o periódico iniciou a denúncia da repressão a que
eram submetidas as seiscentas famílias acampadas, em Encruzilhada Natalino-RS.
Dessa forma, assinalou-se, também, o início de uma saga em que a violência contra
os trabalhadores rurais sem terra se generalizava, tornando-a a principal
protagonista desse cenário de luta e de ação.
Utilizando-se de duas viaturas com sirenes ligadas, policiais
fortemente armados com fuzis e metralhadoras, um contingente
da Polícia Militar de Passo Fundo invadiu o acampamento
provocando enorme pavor entre as famílias, principalmente,
entre as crianças que brincavam ao longo da estrada. Depois
de percorrerem todo o acampamento em alta velocidade, com
barulho ensurdecedor das sirenes, os camburões pararam em
frente aos barracos. Em seguida, reuniu-se uma multidão de
colonos curiosos. A reação dos policiais foi imediata:
prenderam um agricultor e o algemaram na porta de uma das
viaturas para “servir de exemplo”, ressaltou o comandante da
operação [...]. Depois de muitas ameaças e provocações, o
povo do acampamento começou a entender o que se
passava.344
Estrategicamente, o Estado utilizou-se da repressão para tolher a “força da
mística”345 que tomava os trabalhadores acampados naquele local, na tentativa de
forçar a desocupação da área. Pautados pelo espírito de luta e pela solidariedade
344
“Sirenes ligadas, metralhadoras e fuzis. Assim a polícia invadiu o acampamento”. COMITÊ DE
APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos
Agricultores Sem Terra. n.09. Porto Alegre, julho de 1981. p.5. A ação de tortura psicológica imposta
aos trabalhadores nesse acampamento encontra eco nas reflexões de Cunha ao afirmar que “a
tortura é um ato de governo. Mais do que confissão, ela busca informações que permitem a
perpetuação do poder. Por meio de rumores que se espalham, a tortura faz com que possíveis
‘contestadores da ordem’, desistam de suas intenções”, reportando-se a: VINCENT, Gerard. Uma
história do segredo. In: ÁRIES, P.; DUBY, G. História da Vida Privada. Vol. 5. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. Cf. CUNHA, Maria de Fátima. Eles ousaram lutar... A esquerda e a
guerrilha nos anos 60 e 70. Londrina - PR: Ed. da UEL, 1998. p.128.
345
Para o MST a mística significava “o conjunto de convicções profundas, as visões grandiosas e as
paixões fortes que mobilizam as pessoas e movimentos na vontade de mudanças, ou que inspiram
práticas capazes de afrontar quaisquer dificuldades, ou sustentam a esperança face aos fracassos
históricos [...]. Na mística político-social age sempre a utopia, aquela capacidade de projetar, a partir
das potencialidades do real, novos sonhos, modelos alternativos e projetos diferentes de história.
Geralmente são os grupos oprimidos os portadores de novas visões, aqueles que, embora
derrotados, nunca desistem, resistem firmemente e sempre de novo retomam a luta”. Cf.: BOFF,
Leonardo. “A mística”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.125. Seção “Estudos”. MST,
maio de 1993. p.3.
229
mútua em processo de construção, as “mulheres e as crianças, de mãos dadas,
reagiram, a sua maneira, diante dos policiais, começaram a cantar, numa só voz, o
hino dos acampados: vamos lutar irmãos, vamos lutar...”, deixando os “agentes do
Estado” desnorteados.
A violência exposta no trecho acima se tornou explícita e sinalizou a que
veio. Não obstante, os trabalhadores compreenderam seu teor e corresponderam de
forma pacífica, humanizada, politizada e com determinação, desvelando a iminência
de um conflito anunciado.
Na tentativa de suportar as ameaças, resistir às dificuldades do
acampamento e superar o terror que tomava conta do mesmo, “a fé era alimentada e
fortalecida todos os dias”. Para isso, organizou-se “uma comissão que preparava a
reza do terço com liturgias bíblicas e reflexões”346. Portanto, esta não se detinha
apenas ao culto religioso, mas também trazia para o centro da discussão a leitura
das cartas de apoio e solidariedade aos trabalhadores ali acampados; liam-se as
notícias do jornal e as debatiam pelo rádio e, caso surgisse algum assunto a ser
questionado, a Comissão convidava todos os envolvidos para emitir a sua opinião.
A edição de número dez do periódico dos trabalhadores, publicada em
agosto de 1981, trouxe informações que revelavam os investimentos dos “agentes
do
Estado”
na
tentativa
de
destruir
essa
identidade
em
construção
e,
simultaneamente, promover a desagregação dos fios que uniam as experiências de
lutas daqueles trabalhadores, sendo estas “consideradas inferiores” sem a
346
“O acampamento de Encruzilhada Natalino antes do Coronel Curió”. COMITÊ DE APOIO AOS
AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores
Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.2. O acampamento foi organizado em comissões,
destacando-se “a comissão central, a comissão de água, a comissão de animação, a comissão de
limpeza, a comissão de alimentos e donativos”, todas construídas com objetivo de “servir aos
companheiros para que todos juntos pudessem ter um pedaço de terra e nela trabalhar para tirar o
seu sustento e o de sua família”, assinala o trecho do jornal (p.2-3).
230
necessidade de “serem transmitidas como experiências coletivas” 347. Isso se deu
com a chegada do Coronel Curió, como denuncia o trecho da matéria a seguir:
A organização surgida dos próprios colonos começa a ser
sutilmente desestruturada [...]. Chega ao acampamento o
coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, membro do
Conselho de Segurança Nacional. Não chegou sozinho. Com
ele aumentou o contingente de polícia secreta infiltrada no
acampamento, chegou o exército além da Brigada Militar que já
fiscalizava o local. O coronel chegou mostrando ser amigo dos
colonos, tentando convencê-los a aceitar terras em outros
estados, sem obter êxito nessa investida. A seguir consultou os
colonos sobre a possibilidade de colocar uma barreira no
acampamento [...]. Na semana seguinte houve uma
Assembléia Geral, onde os colonos optaram pela não
colocação da barreira. Na última semana deste mês, enquanto
cento e oitenta colonos estavam em Porto Alegre, negociando
com o governo e com o Incra, o Coronel Curió baixou no
acampamento dizendo que estava ali a serviço da Presidência
da República e encarregado de “resolver o problema social e
fundiário” de Encruzilhada Natalino. A partir de então, o coronel
passou a ser o personagem central no acampamento, fazendo
tudo girar em torno de si, desrespeitando totalmente a
organização dos acampados e as decisões que já haviam sido
tomadas.348
O excerto registra a patente do representante do Estado, identifica o local de
onde este falava e a sua missão no acampamento. Não por acaso, no topo da
matéria havia uma preocupação latente dos trabalhadores no que tange à tessitura
de sua organização. A negativa dos trabalhadores rurais, prévia e democraticamente,
decidida em Assembléia Geral em relação à proposta do Coronel Curió, demonstrou
a resistência destes sujeitos imbricados na luta pela posse da terra como condição
prévia para a recuperação de sua cidadania.
347
Cf.: PAOLI, Maria Célia P. M. Violência e Espaço Civil. In: Idem [et. al]. Violência Brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1982. p.53.
348
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.3. Na mesma
matéria, o periódico denuncia que o Coronel Curió, ao se instalar no acampamento, cuidou de se
apropriar de um “sofisticado sistema de alto-falantes, através do qual transmitia mensagens
constantemente aos colonos, chamando um ou outro para o seu barraco ou tocando música, não
permitindo aos trabalhadores nenhum momento de sossego para se reunirem e discutirem a nova
situação do acampamento”.
231
O aparato estatal trazido pelo Coronel Curió ao acampamento sinalizava a
presença
do
Estado
patrocinando
a
desarticulação
da
organização
dos
trabalhadores rurais, sem apresentar efetivamente uma saída política para o
iminente conflito que se instituía no campo, revelando visíveis marcas da repressão.
A tentativa de cooptação dos trabalhadores pelo “agente enviado” também ganhou
destaque na matéria, traduzindo-se na preparação do terreno para a semeadura da
violência.
Sempre seguido de um número respeitável de policiais vestidos
à paisana, diz que agora quem manda no acampamento é ele,
que ele é autoridade lá. Quando lhe falaram sobre uma
promessa do governador do RS, ele disse que nada tinha a ver
com o governador, mas com o Presidente da República. Diz ter
recebido uma missão e que quando recebe uma missão, quer
os instrumentos. Seus instrumentos é dinheiro à vontade, que
foi distribuído entre os colonos, um rádio com ligação direta
com Brasília, e inúmeros homens sobre o seu comando e um
armazém da COBAL.349
Em face disso, fica patente a situação tensa que perpassava o
acampamento. Se antes, os trabalhadores rurais sem terra sabiam em qual posição
deveriam movimentar suas peças nesse tabuleiro de xadrez, a estratégia utilizada
pelo adversário, o Coronel Curió, parecia estar no caminho certo para a
desarticulação
dos
trabalhadores.
Com
isso,
conseqüentemente,
abriu-se
possibilidade de dissolução das demandas de distribuição da terra para quem nela
desejava viver e trabalhar.350
349
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.3. Não obstante, é
denunciado nesta matéria que só no primeiro dia da chegada do Coronel ao acampamento “este
distribuiu para os acampados cerca de Cr$ 1.400.000,00 em vales para serem retirados em alimentos
no referido armazém”.
350
De acordo com as reflexões de Freire Costa, havia necessidade premente do trabalho para as
classes subalternas, posto que “o trabalho é um instrumento de sobrevivência física e social”. Além
do mais, este apresenta para esse segmento da sociedade um outro valor simbólico, tratando-se,
pois, de “assegurar aos sujeitos a posse de um predicado que o torna humano como outros homens”.
Em face dessa questão, sublinha o autor: a dupla “trabalho e salário” tornam-se “fundamental na
construção da identidade de um trabalhador”. FREIRE COSTA, 1987, p.25. Apud: LOBO, Elisabeth S.
232
A matéria publicada na décima edição do Boletim evidenciou que o Coronel
Curió usou dois métodos conjugados para coagir os colonos, na tentativa de
convencê-los a aceitarem os “supostos projetos” do governo, que seriam a saída do
acampamento para um trabalho nas cidades circunvizinhas ou serem assentados
em outros estados, sobretudo, naqueles sem infra-estrutura, como era o caso do
Mato Grosso. Para isso, o Coronel, num primeiro momento, procurou se apropriar da
façanha das “boas maneiras, dando a impressão de diálogos em todo o seu trabalho.
Passava o tempo todo falando, explicando e tentando convencer os colonos de sua
boa vontade”351.
Nesse cenário, a mão do Estado agiu de forma velada, expressando sua
tática de uso da violência para resolver um problema de ordem social, sem sequer
permitir o direito de reivindicação dos trabalhadores. Afinal, ele não se colocava
como inimigo, muito pelo contrário, sempre exprimia possibilidade de um diálogo
amistoso com os trabalhadores, descartando a necessidade de um enfrentamento
maior, embora os representantes do Boletim Sem Terra e a maioria dos
trabalhadores rurais já tivessem identificado este intuito desde a chegada dos
“agentes do Estado” no local do conflito, ou seja, “a dissolução do acampamento”,
assegura o jornal.
Trabalhadoras e Trabalhadores: o dia-a-dia das representações. In: Idem. A classe operária tem
dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: SMC/ Editora Brasiliense, 1991. p.95. Ver:
FREIRE COSTA, Jurandir. A consciência da doença enquanto consciência do sintoma: a doença
dos nervos e a identidade psicológica. Cad. IMS. Rio de Janeiro, 1987.
351
A atuação do Coronel Curió nos reporta à referência do “Homem Cordial” feita por Sérgio Buarque
Holanda ao assinalar que “nenhum povo estava mais distante dessa noção ritualista da vida do que o
brasileiro. Essa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez [...].
Equivale a um disfarce que permitiria a cada qual preservar intactas sua sensibilidade e suas
emoções. Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não
precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida.
Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”. Cf.: HOLANDA,
a
Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973. p.1078.
233
A atuação desse agente no que tange ao desejo de resolver os problemas
do latifúndio na região tornou-se um tanto emblemática, pois no momento em que se
pregava o diálogo no assentamento, os trabalhadores percebiam claramente um
“clima de intimidação” e de tensão entre ambos.
O coronel estava sempre acompanhado de um grupo de
agentes policiais a paisana, instalou barreiras policiais nos três
acessos do acampamento, exigindo identificação de quem quer
que fosse. Onde se forma um pequeno grupo de pessoas para
conversar, imediatamente um agente se faz presente. Eles
estão sempre gravando e fotografando quase tudo. Ao mesmo
tempo em que afirma que ninguém precisa ir para outro estado
se não for o seu desejo, imediatamente pontua que no RS não
há terra para eles. Ao passo que os funcionários do governo
que faziam o cadastro das pessoas ressaltavam que quem não
aceitasse terras em outros estados teriam seus barracos
varridos.352
O trecho traz elementos reveladores que indicam a gestação de um
confronto num processo bastante acelerado. Enquanto isso, ocupações de terras
menores estavam ganhando força em regiões próximas daquele acampamento ou
em outros estados. Portanto, dava-se início a espacialização da luta e o expressivo
desejo da construção de uma força social no campo, que seria o fio condutor para
levar o governo à promoção da reforma agrária.
Não obstante, a “paciência e a boa vontade” do Coronel Curió estava-se
chegando a um limite frente ao interesse maior dos trabalhadores rurais sem terra,
que era a regulamentação de sua situação na terra no Rio Grande do Sul.
352
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.4. Deve-se observar
que no momento em que atuava o Coronel com seus procedimentos de repressão no acampamento,
os trabalhadores sem terra já sentiam grandes dificuldades de articulação, pois já não havia mais
espaços para as reuniões, “devido à intensa vigilância que inibia sobremaneira os colonos, posto que
o Coronel sempre procurava manter os trabalhadores ocupados ou distraídos. Portanto, sua tática
sinalizou para o desmonte do acampamento, a destruição das experiências de lutas daqueles
trabalhadores e aos poucos, buscava impingir através de propagandas contínua e ininterrupta o
reassentamento dos colonos em projetos do governo federal fora do RS”.
234
No dia 30 de julho de 1981, quando uma caravana de 180 pessoas se
encontrava em Porto Alegre-RS buscando soluções junto ao governo do estado e ao
INCRA para os acampados de Ronda Alta, “a noite da repressão e do arbítrio se
configurou no acampamento, transformando-o em um campo de concentração”,
explica o Boletim dos Sem Terra.
Aos colonos só se oferecem assentamentos fora do estado, o
acesso ao acampamento foi controlado, a organização e
lideranças desmobilizados, a solidariedade e apoio
manifestada em donativos foi vedada, intimida-se o povo pela
presença constante de policiais de se reunirem e de discutirem
seus assuntos. O governo assumiu a paternidade e
arbitrariamente, através do Coronel Curió e de forte aparato
policial-militar, todo o acampamento, com os encargos de
alimentação e de assistência social, pretendendo decidir,
também, o destino e a vida dos colonos.353
Era o prenúncio da instauração efetiva da violência naquele local, cerceando,
inclusive, o direito de ir e vir dos acampados ou daqueles que tentavam prestar-lhes
solidariedade. O documento evidenciou que o governo, enfim, assumiu posições que
contrariavam os interesses dos trabalhadores acampados e das instituições civis,
apoiando-se, sobretudo, em estratégias antes utilizadas pelo regime militar no
sentido de impedir a organização dos trabalhadores.
Portanto, essa postura do Estado não era apenas política, mas também
ideológica. O fato de trazer para si a responsabilidade de gerir o acampamento, sem
a participação de entidades civis, implicava no questionamento das representações
sociais de um grupo em construção, por meio do abafamento das informações sobre
as incursões feitas por determinados setores do governo, desconsiderando os
anseios dos sujeitos sociais ali imbricados.
353
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.10. Porto Alegre, agosto de 1981. p.15-6.
235
Assim, percebe-se a construção de um processo de dominação por parte
dos “agentes do Estado”, ao tentarem colocar em prática “a ideologia da tutela
assumindo o lugar da participação e da cooperação” 354 entre os trabalhadores,
atitude que, em última instância, permitiu o aprofundamento das tensões internas e
externas aos acampamentos.
Em face disso,
aquilo que foi submissão torna-se revolta, a ação coletiva
integra as humilhações e divisões privadas, um novo sentido é
construído através da noção de direitos [os grifos são da
autora]. O movimento que faz emergir a ação coletiva é tecido
pelas demandas “defensivas” ligadas pelo fio condutor da
dignidade. Através delas as trabalhadoras e trabalhadores
afirmam (ou sonham) com um outro mundo possível.355
O periódico, que fazia circular as vozes dos trabalhadores rurais, publicava
em suas páginas o que acontecia nesse acampamento, relatando a opressão que
havia tomado conta daquele lugar, fazendo chegar a quase todos os rincões do país
informações a respeito dos conflitos no campo envolvendo todo tipo de violência e
os segmentos que ali estavam.
Um ano após a edificação do acampamento de Encruzilhada Natalino-RS,
especificamente no mês de fevereiro de 1982, o Boletim denunciou as pressões ali
impostas pelos supostos “representantes do Estado”, por meio da ação de três
trabalhadores que representavam as trezentas famílias acampadas à espera de
terras no estado do Rio Grande do Sul, quando estes se dirigiram “à Comissão de
Direitos Humanos da Assembléia Legislativa gaúcha e ao Comitê de Apoio de Porto
Alegre” e registraram a denúncia.
354
Cf.: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Ed.
da Unesp, 2004. p.106.
355
Cf.: LOBO, Elisabeth S. Trabalhadoras e Trabalhadores: o dia-a-dia das representações. In: Idem.
A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: SMC/ Editora
Brasiliense, 1991. p.99.
236
O jornal ressaltava que, naquela época, os trabalhadores “acusaram o
governo de ter aumentado as ameaças e a repressão através da inserção de ‘dez
agentes’ secretos que chegaram recentemente ao acampamento”. Denunciou-se,
também, uma forte ameaça da polícia rodoviária estadual (Brigada Militar) aos que
tentavam ajudar os colonos acampados ou até mesmo aos que por ali passavam.
Segundo o documento,
o caso mais flagrante foi com a caminhonete da Cáritas
Diocesana de Passo Fundo, emprestada à Paróquia de Ronda
Alta para transportar e abastecer o acampamento com os
alimentos doados pelas entidades solidárias aos sem terra. O
veículo foi multado em Cr$ 11 mil por estar com uma sinaleira
estragada [...]. Um ônibus que fazia a ligação Ronda Alta com
Porto Alegre ficou trancado numa das barreiras policiais
montadas no acampamento durante a madrugada, enquanto os
policiais obrigavam todos os passageiros do acampamento a
descerem do veículo, multou o ônibus em seguida pela
invalidade de seu extintor.356
O trecho do documento descortina as incursões realizadas pelos “agentes
do Estado”, traduzindo-se em expressões de intimidação e cerceamento à pessoa
no seu direito de ir e vir. Nesse aspecto, observou-se que a repressão no
assentamento envolvendo os trabalhadores rurais e o governo ecoava na crise
vivida pelo Estado brasileiro e seu Direito no final do XX. Embora fique evidente que
as mudanças conduzidas pelo Estado eram “o reconhecimento de pessoas jurídicas,
a criação de limitação administrativa, a sua intervenção na ordem econômica, a
definição da função social da propriedade”, ficando circunscrito que “a propriedade
privada é a máxima expressão do direito individual”, colocando em conflitos
contínuos alguns segmentos da sociedade e, consequentemente, o Estado.
356
COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha de
Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.18. Porto Alegre, agosto de 1981. p.7.
237
Em face disso, assinalou-se que tal crise atingia “exatamente esse direito,
porque deslocou o centro do sistema, que era ordem privada para a ordem pública,
do direito individual para o coletivo” 357 , proposta inaceitável para determinados
grupos econômicos temerosos à organização dos trabalhadores rurais e a tão
propalada reforma agrária.
No editorial do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra acusou-se o governo
pela violência física contra um posseiro, em 1982, e demais ocorrências nas quais
ficaram visíveis a omissão do Estado frente aos conflitos. Esse tipo de informação
transformou-se em denúncia, que perdurou em todas as fases do jornal, inclusive
levando os seus colaboradores à criação de uma coluna denominada de “violência”
(como já observado em capítulos anteriores). De acordo com a análise do
documento, o governo tornou-se sim “o maior responsável pela onda de violência
instituída no campo. Omite-se em casos que deve ser o promotor da Justiça. É
cúmplice em outros momentos e a favor dos que cometem tais violências”358.
Em setembro de 1984, em sua 38a edição, o Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra registrou mais um ato de confronto no campo. Reportava-se,
particularmente, ao conflito desencadeado na região de Santo Augusto-RS, quando
75 famílias ocupavam uma clareira de 30 por 100 metros, dentro de uma área de
730 hectares da Estação Experimental Fitotécnica da Secretaria da Agricultura
daquele município. O periódico destacou que, em Santo Augusto,
357
Cf.: SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de;
PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global.
Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-8.
358
Cf.: COMITÊ DE APOIO AOS AGRICULTORES SEM TERRA. Boletim Informativo da Campanha
de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra. n.28. Editorial “Violência: Governo é o responsável”.
Porto Alegre, outubro de 1982. p.2. O texto pontua a brutalidade a qual o lavrador foi submetido,
“tendo o seu corpo mutilado - olhos arrancados e lábios cortados - por jagunços e policiais civis [...].
Certamente essa tirania serviu para provar ao mandante do crime que Henrique José Trindade foi
realmente morto. A vítima, portanto, pagou com a vida o preço da coragem e da ousadia de querer
defender a sua família e a terra onde plantava” do voraz desejo do latifúndio.
238
a repressão desencadeada pelos soldados não fez diferença
entre homens, mulheres grávidas ou crianças. Com muita
violência, as famílias foram espalhadas pela região, mas
voltaram a se agrupar em um novo acampamento, no distrito
de Fortaleza, interior do Município de Erval Seco, deixando
claro a disposição de continuarem. As denúncias de violência
foram levadas ao conhecimento público e assumiram grande
repercussão resultando na formação de um comitê de apoio
aos sem terra, formado por diversas entidades, entre elas a
Federação dos Trabalhadores na Agricultura [...].359
Nesse aspecto, a repressão instaurada no campo esteve, intrinsecamente,
relacionada à insistência do poder público em não promover a distribuição da terra
entre os trabalhadores rurais, sem encaminhar ações políticas a fim de coibir
confrontos, ora em ocupações de terras públicas, ora em propriedades “particulares”
declaradas improdutivas. Um relato da noite violenta de Santo Augusto foi descrito
por uma vítima e registrado pelo JST da seguinte forma:
A noite caiu e os soldados chegaram chutando as bíblias e as
crianças, esbofeteando as mulheres e homens, derrubaram a
cruz de madeira, cortaram os fios que prendiam as barracas,
espalharam as brasas do fogo de chão, derramaram a água do
chimarrão, quebraram os pratos e viraram as panelas da janta
que estava sendo preparadas. Nós pedimos que eles
esperassem ao menos até o outro dia de manhã. Eles nos
mandaram calar a boca. Não deu tempo de juntar nada. Nós
sentamos no chão e botamos as crianças no colo, mas eles
jogavam as crianças e nos chamavam de vagabundos e de
vadios.360
O cenário delineado pela trabalhadora foi denunciado em várias matérias
publicadas pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ao longo de sua
atuação. Consequentemente, atos violentos como estes se faziam presentes em
359
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. “O despejo na noite violenta”. MST,
setembro de 1984. p.4. Na mesma matéria salienta-se que o governador do estado, Jair Soares, à
época do PDS, recebeu os líderes do movimento, porém “informou que no estado não havia terras,
não havia recursos e que iria continuar reprimindo quem ocupasse áreas particulares”, ou seja, é a
posição do Estado em defesa do latifúndio, observa o jornal.
360
Maria de Lurdes Hoffmann, vítima da violência imprimida pelas forças públicas do RS com
anuência do governador do estado. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38.
Cobertura do jornalista Chico Daniel. MST, setembro de 1984. p.4.
239
quase todos os cumprimentos de liminares de desocupação de propriedades em
conflitos, como atesta a documentação analisada nesse trabalho.
As ações militares utilizadas nos processos de desocupação dos
trabalhadores rurais refletiam na destruição do lugar, pois era nele que se revelava o
sentimento de “pertencimento social, de enraizamento em um determinado território.
Território este que não se traduz em espaço geográfico e físico, mas em espaço
simbólico, que envolve outros significados, a cultura e vida social”361.
O relato da trabalhadora refere-se ao massacre sofrido pelas comunidades
indígenas no altiplano peruano (apresentado na epígrafe desse capítulo), que
buscavam na terra a possibilidade de viverem comunitariamente. Induzidos pelo líder
Garabombo, protagonista do romance de Manuel Scorza 362 , desnudavam-se os
conflitos no campo envolvendo “camponeses mestiços”, que buscavam desmantelar
a selvageria dos “latifundiários semifeudais” daquele país, enfrentando o Estado, coautor da tirania contra aqueles povos, que optou pela defesa dos latifundiários,
transformando “o campo em uma noite de gritos, deixando dúzias de homens e de
cavalos agonizando”363 campo afora.
Contrariando o relato de Maria de Lurdes, vítima e observadora da fúria dos
“agentes do governo” contra os trabalhadores rurais do acampamento erguido nas
terras da Secretaria da Agricultura do Município de Santo Augusto, surgiu um
representante do Comando da Polícia Militar, o qual buscava atenuar o ocorrido,
afirmando que “a retirada dos trabalhadores deu-se de forma pacífica”, apesar das
marcas evidentes da violência presentes no relato daquela mulher.
361
Cf.: SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Ed.
da Unesp, 2004. p.24-5.
362
SCORZA, Manuel. Garabombo, o invisível. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
363
Ibidem. p.203.
240
Outro trecho da reportagem traduz o que aconteceu na noite do despejo
naquele acampamento:
Além de visíveis hematomas nos corpos das vítimas, havia
uma mulher e uma criança de cinco anos com mãos enfaixadas.
A mulher se cortou no arame da porteira, tentando obstruir
[grifos meus] a passagem dos soldados. E o menino foi jogado
sobre um braseiro, onde um soldado acabou pisando em suas
mãos. Ainda assim, para as crianças, o trauma maior foi o
psicológico, pois várias delas se perderam no mato, correndo e
gritando pela noite, enquanto seus pais levavam bordoadas.364
O excerto citado sinaliza um cenário desolador entre os trabalhadores
acampados e, por outra ótica, enfoca a resistência destes, bastando observar a
tentativa da trabalhadora em “obstruir a passagem dos soldados ao acampamento”.
Cabe salientar, que um dia após a invasão policial no local, no dia 31 de agosto, os
sem terra formalizaram uma denúncia de violência junto à Comissão de Direitos
Humanos do Legislativo gaúcho na presença de outras entidades representativas
como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
a Central Única dos Trabalhadores (CUT), visando amenizar o que passara no dia
anterior e uma possibilidade de dar visibilidade à tirania a qual foram submetidos.
Em outras palavras, o relatório Conflitos no Campo – Brasil 92 da CPT considera
que
o elemento mais grave desta conjuntura é a total impunidade
dos crimes cometidos. A poderosa classe latifundiária
beneficia-se do apoio total e incondicional do Estado, através
de seu aparato de “segurança” e de “justiça”.365
364
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.5.
ROCHA, Augusto Alves. Apresentação. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no
Campo. Brasil, 92. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1993. p.6-7. A título de exemplificação, o Relatório
da CPT denuncia que “o aparato policial (Polícias Militar, Civil e Federal) foi acionado 130 vezes no
ano de 1992 com a finalidade de despejar ou expulsar os lavradores de suas terras”. O documento
assinalava que a maior parte das incursões feitas pelas forças de segurança “resultou em atos
violentos contra as famílias trabalhadoras e, em 17 intervenções, as ações foram em conjunta com
pistoleiros e fazendeiros”.
365
241
Deslocando o olhar acerca da violência no RS para a região Norte do país, a
edição de número 38 do Jornal dos Trabalhadores Sem Terra trouxe um relatório
circunstanciado a respeito da violência no Sudoeste do Pará. O documento havia
sido preparado pelo sacerdote Ricardo Resende, que concedeu depoimento à
Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a violência na área rural daquele
estado. Morando na região há sete anos, o autor do relato procurou demonstrar que
nessa região “havia uma verdadeira guerra pela posse da terra, tendo esta a
anuência das autoridades federais que apoiavam a grilagem”.
O padre assinalava, em seu depoimento, que as principais causas das
mortes ocorridas nos campos dessa região davam-se “para tomar posses de terras,
para não se pagar salários, mas também para impedir a organização dos
trabalhadores” 366 . Apoiando-se em dados estatísticos apurados pela CPT, ele
denunciou os altos índices de perdas de vidas em detrimento da violência e abusos
generalizados no Pará, por autoridades públicas em conluio com interesses privados.
De acordo com os dados da CPT, o relatório indica que os índices de violência e a
tirania no campo tornavam-se exacerbados à luz de um país que pretendia ser
democrático:
De janeiro a dezembro de 1983, foram registrados os seguintes
dados no Sudoeste do Pará: 403 pessoas ameaçadas de morte;
114 lavradores presos ou detidos, incluindo os padres
franceses Aristide Camio e François Gouriou; 116 espancados,
torturados e feridos; 1.179 famílias ameaçadas de despejos e
371 despejadas, mais de 262 casas queimadas e destruídas,
com roças e crianças.367
366
No documento intitulado “A lei do gatilho”, o padre Ricardo assinala que “a violência do latifúndio
têm apoio expressivos de figuras da República. Coronéis são deslocados em helicópteros para a
sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia; a Rádio Educadora da
Igreja, que há 19 anos servia à região, foi fechada e o latifúndio conseguiu levar à tribuna, para fazer
a sua defesa, até mesmo o Presidente do Congresso Nacional (à época, Jarbas Passarinho)”.
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.9.
367
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.9.
242
Os dados expressos acima caracterizam o tipo de violência sofrida pelos
trabalhadores rurais do Pará, colocando às vistas os interesses dos latifundiários e
dos políticos locais, conclamando da opinião pública e das autoridades competentes
medidas cabíveis e imediatas para amenizar tais conflitos. O padre Ricardo
esclarece ao término de seu depoimento que:
Estou aqui porque os senhores me convidaram. Não estou a
serviço de qualquer ideologia ou partido [grifos meus]. Estou
como brasileiro e como cristão. Eu os convido para que,
acreditando na esperança, no futuro, no povo trabalhador,
forjemos uma outra História. Busquemos a reforma agrária
profunda que leve à transformações sócio-econômicas [...].
Desejo e espero uma reforma agrária que seja real, verdadeira,
que não nos obrigue e que não nos submeta a vivermos de
casuísmos e conchavos melancólicos.368
Portanto, nota-se no relato do padre Ricardo que, apesar de compartilhar
dos anseios dos trabalhadores rurais sem terra, ao enfatizar os desmandos dos
latifundiários, a omissão do Estado e a inércia dos políticos locais com relação aos
conflitos no campo, traz à luz a intenção de negar a sua inserção na organização do
MST ou de outras entidades representativas. Nesse aspecto, o uso de dados
estatísticos da CPT, organização religiosa da qual o padre fazia parte, contraria a
sua negativa, já que a entidade tornou-se uma das percussoras a organizar os
trabalhadores rurais sem terra, participando, inclusive, de forma ativa da construção
do MST.
Dessa maneira, uma interpretação do seu relato seria que estava ocorrendo
uma evidente aproximação, por parte do padre Ricardo, com a bandeira de luta
defendida pelo MST e também encampada pela CPT, principalmente ao defender a
368
Trecho final do depoimento do Padre Ricardo Resende à Comissão Parlamentar de Inquérito, que
apurava a violência no campo do Sudoeste do Pará. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM
TERRA. n.38. MST, setembro de 1984. p.9.
243
preservação dos direitos do homem do campo. Portanto, seria desnecessária a
afirmação do seu não pertencimento “a qualquer ideologia ou partido político”, visto
que a denúncia não era e não poderia ser neutra, já que sempre vem carregada de
representações, de desejos, de sentimentos, entre outros.
Com destaque, no mês de setembro de 1985, o JST denuncia o “aumento
das mortes no campo”, assinalando que a ampliação da repressão estava associada
à publicação do Plano Nacional de Reforma Agrária, anunciado pelo governo. Nessa
perspectiva, a matéria faz notar que
alguns latifundiários mais afoitos e temerosos em perder suas
terras estariam se armando, ameaçando e matando para
desestabilizar o Plano e, assim, impedir a Reforma Agrária [...].
É certo que o anúncio do Plano estimulou os latifundiários a
matar mais do que antes. Eles não admitem dividir as suas
terras e, para impedir essa divisão, foram até as últimas
conseqüências. A verdade é que o aumento da violência no
campo é para impedir o avanço da organização dos
trabalhadores [...]. Os latifundiários sabem que eliminando uma
liderança, podem, senão impedir, pelo menos atrasaria por
mais algum tempo as mudanças necessárias no campo.369
Em dezembro de 1985, a coluna “violência” do JST fez um balanço da
repressão instaurada no campo neste ano, denunciando que “o ano terminou com
um saldo de 154 trabalhadores assassinados”. Apontava que o estado do Pará
tornou-se “o estado mais violento do Brasil” neste período. O periódico trouxe, além
369
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.47. MST, setembro de 1985. p.8. O trecho
sinaliza que uma das principais razões que levou ao desencadeamento da tirania no campo, por parte
dos fazendeiros, foi a percepção que estes tiveram da proposta do governo em fazer a reforma
agrária. Denuncia, também, que sua ideologia está associada ao fato destes ganharem tempo para
impedir o desenvolvimento do processo, pois esta pode ser uma saída que deve ser levada em
consideração para compreender-se os conflitos no campo. Impedir a organização dos trabalhadores é
uma estratégia historicamente conhecida até nos dias atuais. A questão que se deve pensar e
questionar seria o cenário de impunidade, a inércia do poder público, dos meios de comunicação e da
própria sociedade frente aos crescentes índices de violência pela posse da terra. Segundo o jornal,
“morrem assassinados na ‘Nova República’ muito mais lavradores, índios e dirigentes sindicais rurais
e agentes pastorais do que nos últimos anos da ‘Velha república”. Agora o que se deve observar é
que, “tanto na ‘Nova República’ quanto na ‘Velha república’, a impunidade é a mesma: não são
abertos inquéritos policiais, ninguém é condenado, ninguém vai preso e, quando vai, é por algumas
horas”, destaca a matéria.
244
dessa denúncia, trechos de um documento elaborado por uma comitiva de 210
trabalhadores rurais, que representavam 30 entidades representativas, evidenciando
o aumento nos índices de violência na área rural e fazendo exigências da
implantação da reforma agrária no país.
No Encontro realizado em Marabá discutiram-se as causas da repressão e a
reforma agrária, chegando a conclusão de que “o aumento dos conflitos pela terra e
a intensificação da violência no campo aconteceram pela não realização da reforma
agrária e em razão da total impunidade dos assassinos e de seus mandantes”. O
documento responsabilizava o poder público pela ausência de percepção do que
estava acontecendo no campo ou, se estava, criticou a sua inoperância frente ao
estado de repressão que os trabalhadores rurais estavam inseridos.
Segundo a matéria do jornal, “a atuação do poder público não foi suficiente
sequer para frear o aumento da violência. Em muitos casos, este favoreceu os
latifundiários através da participação das Polícias Civis e Militares” 370 , apontam
trechos do relatório do Encontro. Ao término da redação do documento, os
participantes saíram do nível do discurso e seguiram para o aspecto prático,
assinalando suas exigências.
Com isso, resolveu-se que “para se reduzir a violência no campo seria
necessária e urgente a aplicação da reforma agrária conforme interesses dos
trabalhadores rurais”. Deliberando-se, também, “a solicitação de estradas,
transportes, armazenamento, preços justos, crédito bancário subsidiado, apoio à
produção de alimentos, educação e assistência médica” 371 , por parte do poder
público.
370
371
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.49. MST, dezembro de 1985. p.10.
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.49. MST, dezembro de 1985. p.10.
245
Nesse cenário de tensão e repressão, as exigências dos trabalhadores
perpassavam a questão da terra, lutando por outros direitos sociais além da
aquisição de um lote para trabalhar e plantar, muito embora a sua bandeira de luta
estivesse configurada entorno da redistribuição da terra.
Aos poucos, suas reivindicações foram saindo do plano do discurso e
ocuparam o cenário político. Essa afirmação pode ser observada à luz do trecho do
documento no qual os trabalhadores rurais sem terra entregaram para Ulysses
Guimarães, em 1986, pois o viam como um político de significativa expressão, por
ter ocupado cargos estratégicos no campo da política nacional, tais como
“presidente da Câmara dos Deputados, presidente nacional do PMDB e vicepresidente do Brasil”. Os trabalhadores aproveitavam a oportunidade para enviar um
recado aos demais políticos brasileiros, expressando o sentimento de que:
Se ele (Ulysses) ou quem quer que fosse responsável pela
“Nova República”, não fizessem nada pela reforma agrária, os
lavradores em vez de cantarem com força e com fé, iriam a
Porto Alegre a pé [grifos do jornal], podendo tomar medidas
mais fortes do que os contra a reforma agrária chamam de
medidas radicais. Medidas estas que podem pegar muito mal
para quem mente em fazer reforma agrária em ano de
eleição.372
O trecho revela um cenário de tensão e de cansaço por parte dos
trabalhadores, procurando alertar a sociedade de que, pela forma democrática e
com o diálogo, a reforma agrária não seria realizada, não sairia do papel. Sinalizava,
também, para outros tipos de pressão além das ocupações de fazendas,
caminhadas e passeatas, ocupações de escritórios públicos, locais onde, por
natureza, deveriam ser palcos de negociação.
372
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.54. MST, julho de 1986. p.5.
246
Na mesma edição do jornal, subseqüente à matéria acima destacada,
publicou-se uma entrevista do Frei Leonardo Boff que alertava para a necessidade
de “se desmascarar o governo” (à época José Sarney). Indagado sobre o governo
da “Nova República” e sua relação com os movimentos sociais, o teólogo assinalou
que:
Este governo deve ser desmascarado como prolongamento do
projeto da ditadura militar. Trocou só a forma de poder, não a
natureza do poder. É um poder concentrado, burguês nacional
articulado com o capital internacional, fundamentalmente
elitista e antipopular.373
A citação demonstra que o processo de violência e repressão no campo
envolvendo os trabalhadores rurais e suas lideranças, esteve associado à
subserviência do governo com relação aos interesses dos latifundiários. A título de
informação, Frei Betto observou que a “própria organização da UDR representava a
violência de forma mais eficaz”, na tentativa de assegurar a perpetuação do
latifúndio e de seu status quo. Isso significa a impossibilidade da implantação “da
democracia no campo, porque a reforma agrária, no fundo, é a democratização do
campo”374, que os latifundiários e determinados setores da sociedade e do Estado
não permitiriam avançar, disseminando, à luz do dia, a violência e a prepotência no
campo, como revelam as imagens a seguir.
373
Entrevista com Frei Leonardo Boff. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.54. “O
governo deve ser desmascarado”. MST, julho de 1986. p.5.
374
Entrevista com Frei Leonardo Boff. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.54. “O
governo deve ser desmascarado”. MST, julho de 1986. p.5.
247
Na edição de número 57, as imagens remontam à postura repressiva das
forças públicas para conter as manifestações e ações dos trabalhadores sem terra e,
também, ilustram o que foi observado pelo Frei Leonardo Boff com relação à
natureza e o lugar de manifestação do poder. Se antes, nas décadas de 1960 e
1970, os confrontos davam-se nas cidades, partir dos anos de 1980 nota-se que
estes passam também a se manifestarem no campo.
Observando a figura 4, pode-se notar no plano inferior um contingente
incipiente de forças repressoras do Estado - um só militar. Já na figura 5, as forças
repressoras são significativas, esta mesma imagem permite observar que a
organização dos trabalhadores rurais, apesar de menor, parece avançar em direção
ao território a ser ocupado.
Reportando-se as duas imagens, chama a atenção à presença marcante do
símbolo do catolicismo. A representação da cruz de madeira, carregada e erguida
pelos trabalhadores rurais simbolizava o sofrimento de Cristo em direção à terra
prometida. As faixas brancas que envolviam as partes do crucifixo de madeira,
expressava, de certa forma, o sentimento de paz que movia os trabalhadores,
embora o cenário político no campo não fosse tão receptivo a esta.
248
Figura 4 - A repressão no Campo: governo militar.375
Pautados pela exclusão e sem se conformando com esta, os trabalhadores
rurais buscavam na ocupação da terra a sua inserção no cenário político. Em virtude
da entrada expressiva da mecanização na área rural, estes trabalhadores viram-se
forçados a deixarem o campo indo morar nas cidades em condições precárias, como
já assinalado em capítulos anteriores.
375
Foto: Juan Carlos Gomes. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.56. “O governo
deve ser desmascarado”. MST, outubro de 1986. É oportuno assinalar que um estudo acerca das
imagens/fotografias produzidas pelo MST foi realizado ao término da década de 1990, quando se
problematizou “a fotografia do movimento como uma prática social”, pela sua presença marcante “nos
conflitos, nas conquistas, nas lutas do dia-a-dia”. Para o autor, o MST se apropria dos “equipamentos,
das técnicas fotográficas e das experiências socializadas pelas fotografias, no intuito de realizar um
intercâmbio de práticas, de denúncias e também de divulgação de suas lutas e reivindicações”,
deixando registrado no JST a memória da luta dos trabalhadores do campo. Cf.: SOTTILI, Rodrigo.
MST: A nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social
dos sem terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. p.18.
249
Figura 5 - Repressão no Campo: “Nova República”.376
Não obstante, em resposta ao “consequente processo de concentração da
propriedade e da política agrícola que se voltava para a agroindústria de exportação,
os trabalhadores foram reduzidos à situação de sem terra e sem tetos”377, sendo
levados a ocupar o local enquadrado nas duas imagens. Nesse mesmo cenário, era
notória a militarização dos acampamentos na tentativa de impedir a organização dos
trabalhadores, provocando o imbricamento das forças sociais com as do Estado.
Pode-se perceber nesta segunda imagem que o número de trabalhadores
rurais aumentou expressivamente com relação à primeira, o mesmo aconteceu com
o contingente de policiais que tentava impedir a ocupação da Annoni.
376
Foto: Jurandir Ferreira. JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.56. MST, outubro de
1986.
377
Sobre o confronto envolvendo policiais e trabalhadores rurais no Assentamento Encruzilhada
Natalino - RS, ver: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos
Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. p.78.
250
As imagens de capa desta edição antecipavam as informações que os
leitores encontrariam no corpo do jornal, sobretudo, reportando-se à violência
anunciada no RS, na ocupação da Fazenda Annoni. Dessa forma, as notícias
escritas nas páginas subseqüentes tornavam-se mais claras à luz das fotografias,
evidenciando os caminhos que a luta seguiria a partir de então.
Na mesma seção, a matéria intitulada “Enrolação e violência contra os sem
terra”, fazia notar que “o Movimento dos Sem Terra esteve em Brasília para falar
com o Ministro Dante de Oliveira. Após ter conversado com os lavradores, o Ministro
salientou que era o Poder Judiciário quem estava impedindo a reforma agrária”,
afirmação que descortinou um conflito interno no próprio governo.
A matéria denuncia, também, que “no RS a Polícia Militar cerca e agride os
acampamentos da Fazenda Annoni, é a ‘Nova República’ repetindo o que a ditadura
fez, em 1981, com os acampados da Encruzilhada Natalino, local próximo a fazenda
em destaque”378.
Ademais, em 1982, momento no qual o campo estava ganhando uma
suposta consciência política, buscava-se dentre as regiões aonde o Movimento
encontrava-se organizado, encabeçar “denúncias sobre os crimes e demais atos de
crueldade cometidos contra os colonos”379. Da mesma maneira, observa-se que, em
igual período, a “ala progressista da Igreja Católica, partidária da Teologia da
Libertação, articulada em todo o país”380, era solapada por uma ampla campanha
difamatória, que depreciava suas ações junto ao MST pela “grande imprensa”,
ganhando maior expressividade nas páginas do Jornal “O Estado de S. Paulo, que
378
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.57. MST, outubro de 1986. p.11. A respeito da
ocupação e permanência dos trabalhadores rurais na Fazenda Anonni, ver: IOKOI, Zilda G. Igreja e
Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986.
São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996. p.87-90.
379
Ibidem. p.88.
380
Ibidem.
251
cobriu de forma exaustiva às notícias difamatórias, dentre as quais aquelas que se
referiam ao recebimento de recursos internacionais por parte da Igreja”381.
Em síntese, as duas imagens denunciam a repressão expressiva no campo,
comprovando que “a reforma agrária brasileira estava sendo tratada a fuzil” e não
com diálogo e política efetiva de assentamentos e distribuição de terras. 382
Em outro artigo de opinião, denunciou-se que o problema da violência no
campo ainda persistia, mudava-se apenas o ano e o lugar, ao passo que o seu
desenvolvimento era cada vez mais refinado. Portanto, diante dessa questão, foi
recorrente no jornal a informação de que a “Nova República” também achou que,
para resolver os problemas sociais do campo, seria necessário recorrer ao uso da
polícia, estratégia amplamente empregada no passado pelo regime militar para
conter as reivindicações dos movimentos sociais.
Em face dos anseios dos trabalhadores rurais sem terra, em meados da
década de 1980, notava-se que ao serem acionadas “as forças policiais não
poderiam permitir que os camponeses passassem a viver uma situação de
desobediência às ordens do Estado”383, ou seja, não poderiam e nem deveriam fazer
ocupações de terras públicas ou particulares e/ou locais públicos que prejudicassem
381
IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e Movimentos Sociais no Campo Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996.
382
Assim, três aspectos justificam o não avanço da reforma agrária no país em detrimento dos
interesses dos latifundiários. Para Graziano, a demora na realização da reforma agrária esteve
associada a fatores de “escolha da desapropriação de terra por interesse social como instrumento
principal do Plano Nacional da Reforma Agrária; ao conceito do que eram terras produtivas e
improdutivas e, por fim, à falta de controle do processo de credenciamento de trabalhadores e
fiscalização das terras que seriam desapropriadas”. O autor expressou a sua opinião a favor da
efetivação do Plano, salientando que este foi uma proposta da burguesia, porém, era uma conquista
histórica dos trabalhadores rurais brasileiros que tinham anseio pela reforma agrária. A implantação
do Plano significava um avanço da luta e que não podia haver recuo, devendo haver por parte do
Estado a reativação de uma ampla Campanha Nacional em defesa da reforma agrária. SILVA, José
Graziano da. “A polêmica reforma agrária”. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.46. MST,
agosto de 1986. p.13.
383
Não obstante, a autora assinala que essa tese é dissolvida porque a sociedade civil, por meio de
suas ações de intervenção, “quebrava com essa ordem instituída pelos militares colocando em risco o
processo concentrador do poder”. Cf.: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação
e Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996.
p.88.
252
os “direitos” de outrem, quando na verdade o seu direito à terra estava sendo
negligenciado pelo próprio Estado.
Em 26 de setembro de 1986, um grupo de lavradores é
recebido em audiência pelo governador do RS, Jair Soares.
Comunicam a ele que, devido à demora do Governo Federal
em dar uma solução às 1.500 famílias acampadas há um ano
na Fazenda Annoni, fariam uma caminhada pacífica às áreas já
desapropriadas no estado, mas que estavam sem emissão de
posse. O governador disse que respeitava esta decisão e, mais
do que isto, daria proteção aos lavradores por causa das
ameaças dos latifundiários de impedir a caminhada à bala
[grifos meus].384
Nesse aspecto, observa-se a preocupação do governador em relação ao
evento programado pelos trabalhadores rurais, atenuando que esta preocupação se
dava em virtude da repressão oriunda dos latifundiários, confirmando, portanto, a
percepção de subserviência do Estado aos interesses dos fazendeiros, denunciada
deste a muito pelo movimento. Nesse sentido, indagava-se: quem transformava o
país numa desordem: uma manifestação pacífica de cunho político ou uma incursão
violenta contra os trabalhadores rurais, previamente calculada pelos latifundiários?
No dia 29 de setembro, o cenário político do RS começou a adquirir novos
contornos, ao passo que a tensão nos campos brasileiros parecia não ter trégua,
tornando-se ainda mais expressiva na década de 1990, particularmente em 1996,
quando ganhava maior visibilidade com os massacres de trabalhadores rurais
conhecidos como Corumbiara e Eldorado dos Carajás.385
384
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.57. MST, outubro de 1986. p.12.
Sobre o massacre de Corumbiara, ver: MESQUITA, Helena Angélica de. Corumbiara: o massacre
dos camponeses. Rondônia/ Brasil 1995. Scripta Nova. Vol.VI, nº 119. Revista Electrónica de
Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, 2002. Disponível em: <www.ub.es/geocrit
/sn/sn119-41.htm>. Sobre o Massacre de Eldorado dos Carajás, ver: SOTTILI, Rodrigo. MST: A
nação além da cerca. A fotografia na construção da imagem e da expressão política e social dos sem
terra. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, São Paulo, 1999. p.98-112. BALZA, Guilherme.
Massacre de Eldorado dos Carajás Completa 14 anos com Responsáveis em Liberdade. São
Paulo, 17/04/2010. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/2010/04/17/massacre-de385
253
À luz do periódico dos trabalhadores rurais sem terra, a fala do governador
do estado do RS caiu no descrédito quando o jornal denunciou que
mais de 300 lavradores, dentre homens, mulheres e crianças
que iniciaram a caminhada rumo à cidade de Cruz Alta, RS,
onde estavam as áreas desapropriadas, aproximadamente a
um quilômetro do acampamento foram cercados e agredidos
na estrada por mais de 200 policiais. Cinqüenta trabalhadores
saíram gravemente feridos [...]. O governador gaúcho não teve
palavra. Cedeu às pressões do também gaúcho, latifundiário e
Ministro da Justiça, Paulo Brossard, ao ter alegado que a
caminhada haveria de ser impedida de qualquer maneira, nem
que para isso tivesse que usar as tropas federais. Ao todo
foram mais de 700 policiais, armados de metralhadoras, fuzis
com baionetas e bombas, cercando o acampamento.386
O trecho da reportagem sinaliza claramente algumas hipóteses já previstas,
revelando a situação dos trabalhadores rurais sem terra que pressionavam o poder
público para a efetivação da reforma agrária em todo o país, usando as ocupações
de propriedades como instrumento de luta, ação política e símbolo de enfrentamento
ao poder instituído.
Nesse sentido, despertava-se a fúria de alguns latifundiários que temiam tal
reforma e, sobretudo, as averiguações em suas propriedades, posto que, na maioria
das vezes, as fazendas ocupadas pelos sem terra eram declaradas improdutivas ou
apresentavam alguma irregularidade passível de desapropriação. Face ao interesse
dos latifundiários, seria melhor usar as “forças públicas” e “privadas” para expulsar e,
às vezes, matar os trabalhadores rurais do entorno de suas propriedades, ao passo
que a sua presença e organização se tornavam ameaças constantes.
O excerto desvela como o embate no campo estava concatenado aos
interesses de agentes vinculados ao alto escalão político, que impediam a ampliação
eldorado-dos-carajas-pa-completa-14-anos-com-responsaveis-pelos-crimes-em-liberdade.jhtm>.
Acesso em: 20/02/2011.
386
JORNAL DOS TRABALHADORES SEM TERRA. n.57. MST, outubro de 1986. p.11.
254
do processo de reforma agrária no país. Nesse cenário de tensão e poder, não havia
somente interesse dos trabalhadores sem terra pela distribuição de um lote, mas,
também, de autoridades políticas que lutavam pela manutenção de seu estado de
privilégios, para estas a reforma agrária tornava-se uma ameaça constante. Para
que esse projeto político não se efetivasse, alguns órgãos do Estado foram
amplamente aparelhados em prol dos latifundiários, este processo tornou-se patente
na década de 1990, como será discutido a seguir.
4.2 A VIOLÊNCIA NO CAMPO SE INTENSIFICA NA DÉCADA DE 1990
No editorial de junho de 1989, o JST denunciou que o “latifúndio gera
violência” no campo em todo o país, contestando o discurso da UDR que afirmou na
Assembléia Constituinte, que “a paz voltava a reinar no campo”, após a aprovação
de sua lei de reforma agrária. Ao contrário do que era propalado pela UDR, os
registros da CPT e as matérias do JST apontavam as incursões de violência
cometidas pelos latifundiários, sendo que em alguns momentos a documentação
sinalizou para a anuência do poder público á violência nos campos brasileiros,
destacando que “a existência do latifúndio é a causa geradora dos conflitos, das
perseguições, dos assassinatos, das expulsões de milhares de trabalhadores do
campo”387.
387
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.84. MST, junho de 1989. p.3. Nesse
aspecto, a documentação produzida pelo MST e por seus colaboradores (destacando-se a CPT)
deixou claro o discurso da entidade representativa dos latifundiários (UDR). Segundo Chauí, “a
condição para o prestígio e para a eficácia do discurso da competência como discurso do
conhecimento depende da afirmação tácita e da aceitação tácita da incompetência dos homens
enquanto sujeitos sociais e políticos [...]. Para que esse discurso possa ser proferido e mantido é
imprescindível a inexistência de sujeitos, mas apenas homens reduzidos à condição de objetos
sociais”, condição esta negada veementemente pelos integrantes do MST. Ver: CHAUÍ, M. S. Cultura
a
e Democracia. O discurso competente e outras falas. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2000. p.11-2.
255
Os documentos analisados denunciavam o crescente aumento da repressão
sobre os trabalhadores e suas organizações, assinalando o “arrombamento e roubo
na sede do MST-SC; prisões de lideranças nos estados do ES, SE e PB e ameaças
de morte contra os trabalhadores rurais”.
Na apresentação do Caderno Conflitos no campo, Brasil/1991, o presidente
nacional da CNBB fez notar que, neste ano, “os pobres do campo foram
discriminadamente maltratados por falta de financiamentos para a agricultura e o
país teve a pior safra dos últimos 10 anos”. Destacavam também que “os
latifundiários beiraram o terrorismo, sobretudo nos estados do Pará, Bahia,
Maranhão e Paraná”.
Dom Augusto Alves atenuou que “os pobres do campo estão na luta.
Defendem os peixes e a mata na Amazônia; lutam pelos campos naturais no
Maranhão; combatem a monocultura com agricultura diversificada; ocupam órgãos
do Estado para exigir a terra, justiça, crédito, educação e saúde”388.
A reflexão do representante da CPT revelou que a luta e a indignação dos
trabalhadores rurais se manifestaram para além da aquisição de um lote de terras;
pretendiam assegurar outros direitos fundamentais e coletivos natos ao exercício da
cidadania, direitos estes conferidos na Carta Constitucional de 1988. Nesse sentido,
o trecho expunha apoio do Bispo, representante da Igreja, às ocupações de
propriedades, sendo que essa postura nunca foi negada pela CPT.
388
ROCHA, Dom Augusto Alves da. Apresentação. In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.
Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.5.
Sob a perspectiva de Carlos Frederico, nota-se que a Constituição albergou, criou e possibilitou a
garantia de tantos outros direitos coletivos e individuais, como o acesso à terra, por exemplo.
Entretanto, este não pode ainda ser efetivamente garantido. Ressalta, ainda, que “os direitos
coletivos, portanto, já existem dentro do Direito e não fora dele, mas por ironia do sistema continuam
invisíveis”. Cf.: SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco
de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia
global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-34.
256
A publicação indicava as falhas do Poder Judiciário e sua omissão nos
conflitos existentes no campo. Aliás, essa foi uma questão amplamente denunciada
e polemizada nas edições dos Cadernos Conflitos no Campo Brasil, organizada pela
CPT anualmente. Nesse sentido, a entidade destacava que
o judiciário atuou, em alguns estados, como fiel amigo dos
grileiros, expulsando até comunidades centenárias de negros.
Com alegria ressalva-se a postura de alguns juízes que se
esforçaram para vencer a impunidade: havendo sete
julgamentos e cinco condenações de assassinos neste ano, o
que foi um milagre! Pequeno, mais um milagre! A regra ainda
era a impunidade.389
Nessa direção, observa-se a experiência de um Juiz com relação ao
recebimento de uma solicitação de reintegração de posse, numa fazenda ocupada
por trabalhadores rurais sem terra, no estado do Paraná. Ao contrário do que
sempre ocorria, a emissão imediata de liminar concedendo a desocupação das
propriedades, o magistrado Dr. Mário Sérgio ao
invés de despachar uma liminar, encerrado entre quatro
paredes de seu gabinete, mirando uma fria folha de papel
denominada ‘Transcrição Imobiliária’, assumiu atitude coerente
com sua consciência social. Foi ao encontro da realidade.
Reuniu-se com os ocupantes e solicitou a vistoria prévia da
fazenda. [...] Ao solicitar a vistoria prévia, o Magistrado
preocupou-se em verificar o cumprimento da função social da
terra ocupada, antes de decidir sobre a emissão da liminar de
reintegração de posse.390
389
SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI,
Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global.
Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.307-34.
390
Como jornalista e governador do PR, o autor fez notar que um dos fatores exemplares da decisão
tomada por Mário Sérgio em não emitir de imediato a liminar concedendo a reintegração de posse
aos proprietários da fazenda, foi a sua observação ao “Artigo 126 da Constituição Federal ao
estabelecer que assim que se fizer necessário à prestação do serviço jurisdicional, deve o Magistrado
fazer-se presente no local do litígio. Pois, a proximidade do Juiz com a realidade, traz luz às decisões,
especialmente em conflitos fundiários”, corroborando, portanto, ao trecho louvando atitudes de alguns
juízes com relação aos conflitos no campo, publicado pela CPT. Cf.: REQUIÃO, Roberto. A terra e a
lei: os juízes e a questão agrária. Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. n.122. São Paulo,
janeiro de 1993. p.6.
257
Na mesma edição publicou-se um Manifesto de apoio aos trabalhadores
assinado pelos Bispos participantes da XXIV Assembléia da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, Regional Norte II (Pará e Amapá), realizado na cidade de
Belém, em setembro de 1991. Os integrantes presentes no evento consternavam-se
com a situação da violência explícita, na qual estiveram inseridos os “trabalhadores
rurais, posseiros, lideranças religiosas e sindicalistas”, destacando que o quadro de
repressão na região era desolador, em face de que “os mandantes e executores dos
atos criminosos continuavam na impunidade”, conforme documentação.
Em face do exposto, pontua-se que
autoridades judiciais tomaram aberta e decididamente posição
em favor dos responsáveis pelos crimes e acobertaram aqueles
que prenderam, queimaram casas e espancaram famílias
pobres e indefesas. Pistoleiros conseguiram fugir das cadeias,
enquanto posseiros tiveram seus pedidos de “Hábeas Corpus”
recusados.391
O trecho do Manifesto ressoa na questão da “invisibilidade dos direitos
coletivos evidenciados na Constituição, mas sem respaldo no Poder Judiciário”. Ao
optar por “garantir o cumprimento da lei, fazendo com que os direitos individuais
fossem realizados e executados dentro dos parâmetros por ele estabelecidos”392,
colaborando para que a violência se proliferasse e se perpetuasse na zona rural.
391
Manifesto assinado pelos Bispos: D. José Elias Chaves, D. Luiz Soares Vieira, D. Ângelo Frosi, D.
Vicente J. Zico, D. Ângelo Rivato, D. Patrício, D. Martinho Lammer, D. Miguel, D. Lino, D. José Luis,
D. Capistrano, D. Erwin Krautler. Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo,
Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.6.
392
SOUZA FILHO, Carlos Frederico M. de. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI,
Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia global.
Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.327. O autor concebe como direito coletivo: “o direito a terra, a saúde,
a educação, a moradia, ao trabalho, a segurança” sendo direitos já criados, porém carecendo de
regulamentação para a sua aplicabilidade. Essa observação desvela “uma lacuna no sistema
judiciário, que no caso brasileiro é resolvida, ou tem como proposta de solução o mandato de
injunção e a ação de inconstitucionalidade” na exigência de seu cumprimento. Nesse sentido, o autor
faz notar também que o Poder Judiciário brasileiro “ainda não reconheceu que os direitos coletivos
possam se opor a direitos individuais em ações ordinárias e especialmente a direitos de propriedade
e posse”, fortalecendo ainda mais os conflitos no campo (p.328-9).
258
Articulando o discurso da violência às ações encampadas pelos integrantes
do Movimento, assinalava-se que tais atos passaram a ser observados como
instrumentos de lutas, principalmente “as ocupações de terras e acampamentos”.
Nesse sentido, destacava-se que “as ocupações são ações práticas baseadas
em uma carência objetiva – a falta de terra, de trabalho e de comida”393.
Esta afirmação trouxe à luz possíveis definições acerca da “reconquista da
terra” e os conflitos que desta se constituíram. Para a CPT essa explicação se pauta
pela noção de que
a luta pela terra acontece de maneira muito diversa, porque
diversa é a estrutura agrária, a cultura e a organização do povo.
Diversa é também a situação dos que estão fora dela, dos que
a possuem precariamente e dos pequenos que precisam lutar
muito para, em cima dela, conseguir sobreviver. Para milhões
de brasileiros entrarem nessa luta é condição de vida ou de
morte, sobretudo para os jovens.394
Compreendendo que as ocupações de terras públicas ou privadas pelos
trabalhadores rurais sem terra davam-se como atos pacíficos de cunho
essencialmente político, a CPT utilizou-se da construção de um quadro comparativo
do cenário do campo brasileiro, em 1991, demonstrando que conforme os
trabalhadores rurais organizavam-se, atribuíam visibilidade às ações do MST e as
ocupações tendiam a aumentar expressivamente.
393
De acordo com Coletti, no processo de ocupações de terras encabeçadas pelos trabalhadores
rurais emanam algumas convicções subjetivas, demonstrando haver legitimidade em tais ações,
mesmo indo contra ao tão propalado direito burguês que pregava, dentre outras coisas, a nãoviolação da propriedade alheia – estatal ou privada, produtiva ou improdutiva. Em face dessa
questão, o autor assinala que a subjetividade dessa convicção se traduz como um elemento
embrionário de desafio à ideologia dominante que, enquanto tal pode se desenvolver com base no
papel das lideranças do movimento, no trabalho de formação política dos trabalhadores, no confronto
com Estado e latifundiários. COLETTI, Claudinei. A trajetória política do MST: da crise da ditadura
ao período neoliberal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas - SP, 2005. p.2645.
394
Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz:
viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.10.
259
Tabela 8 - Ocupações de Terra no Brasil – 1987-1991.395
Anos
1987
1988
1989
1990
1991
Total
Ocupações
67
72
90
50
77
356
Famílias ocupantes
11.772
9.986
12.575
7.957
13.844
56.134
Os dados da CPT causaram apreensão, ao desvelar um significativo número
de famílias que estiveram presentes no processo de ocupação das fazendas em
todo o país. Em face disso, indaga-se sobre a origem desses trabalhadores, sobre a
motivação que os levou a se organizar a fim de ocupar latifúndios improdutivos,
terras devolutas expostas à grilagem, terras abandonadas, o que os moveu a
correrem todos os riscos, inclusive os de morte na luta pela reforma agrária.
Embora o foco da pesquisa seja o JST, os dados apresentados pelo
Caderno Conflitos no Campo Brasil, 91 da CPT, tornaram-se reveladores permitindo
afirmar que a saga dos trabalhadores rurais sem terra, nos meandros dessa nova
década. Estes escritos demonstravam que, em geral, esses sujeitos sociais eram
expulsos de suas terras, obrigados a vendê-las por preços baixos para sobreviverem
às sucessivas crises econômicas das quais o Brasil foi palco.
Noutra perspectiva, afirmava-se que esses trabalhadores “foram pessoas
que migraram do campo com destino às periferias das grandes cidades, sem
trabalho e com precárias condições de vida, tornando-se bóias-frias e submetidos à
situação de semi-escravidão”396, em alguns casos. O documento da CPT aponta que
“das 80 famílias que ocuparam a fazenda Itapemirim, a maioria eram de bóias-frias.
Também eram de bóias-frias, em sua maior parte, os ocupantes da fazenda
395
Fonte: CPT Nacional, 1992. Tabela organizada pelo autor.
Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz:
viver é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.14.
396
260
Guairaçá, em Londrina, no Paraná” 397 , afirmação que dissolveu, ou pelo menos
colocou em discussão, a prerrogativa de que os trabalhadores rurais em movimento
não sabiam lidar com a terra ou não queriam permanecer na mesma.
Focalizando o discurso da violência nos atos de alguns representantes do
governo, assinalou-se que, no ano de 1991, o então ministro da agricultura, Antonio
Cabrera, “avisou pela imprensa que não seriam desapropriadas áreas de conflitos
para fins de reforma agrária” 398 . No entanto, os dados da CPT revelavam uma
resistência desses trabalhadores em continuarem ocupando as terras, na esperança
de conseguirem sobreviver com suas famílias, totalizando “setenta e sete”
ocupações e mobilizando um contingente de “treze mil, oitocentos e quarenta e
quatro famílias”, como apontou o quadro acima.
Nesse sentido, os momentos das ocupações de propriedades e de locais
públicos por trabalhadores sem terra não podiam ser consideradas ações isoladas
de um núcleo maior, e sim incursões feitas como resposta aos poderes opressores,
compreendidas como
momentos de desafios em que uma nova ordem emergente
confronta a ordem da representação. O questionamento da
ordem de representação produz o caos epistemológico que
permite às energias emancipatórias reconhecerem-se como
tais [...]. No momento da rebelião, a força do opressor só existe
na medida em que a fraqueza da vítima o permite: a
capacidade do opressor é uma função da incapacidade da
vítima; a vontade de oprimir é uma função da vontade de ser
oprimido.399
397
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver
é um direito. Goiânia: CPT, 1992.
398
Ibidem.
399
Para esse autor, “a reciprocidade momentânea entre opressor e vítima torna possível a
subjetividade rebelde”. Reportando-se à Gandhi (1956, p.118), Santos assinala que esta pode ser
traduzida na seguinte frase: “não somos nós que temos de fazer o que vocês querem, mas vocês que
têm de fazer o que nós queremos” dirigindo-se aos Britânicos. Cf.: SANTOS, Boaventura de Sousa.
a
Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 2000. p.379.
261
O gráfico a seguir é um indicador de como estava a organização dos
trabalhadores no campo, ao passo que a metade da década de 1980 registrava altos
índices de conflitos pela terra no país, em comparação aos anos de 1991,
demonstrando queda expressiva nos números:
Gráfico 2 - Número de Conflitos de Terra – Brasil – 1985-1991.
119
120
100
89
81
80
77
60
40
20
0
1991
1992
1993
1994
Número de Ocupações
Fonte: CPT Nacional - 1994, p.11.
Seguindo os dados publicados pela CPT, da metade da década de 1980 até
a finalização do primeiro ano da década de 1990, registrou-se que ocorreu uma
significativa redução no número de conflitos na área rural, relativamente associada à
intensa repressão impetrada no campo.
Diante disso, desvelava-se a capacidade singular de resistência dos
trabalhadores rurais, sobretudo, quando tiveram que enfrentar a violência, os
massacres, as ameaças de mortes, “as expulsões de um lugar para outro e a
coragem de ocupar, inclusive terras produtivas, justificando só sair dali quando o
262
governo tomasse providências em arranjar terras para se plantar noutro local”. Com
isso, revelou-se uma atmosfera de constante tensão social e política, sem calar-se
diante dessa realidade, formalizavam denúncias a todo instante contra “as injustiças
cometidas pela estrutura agrária, pelo Estado que não realizava a reforma agrária,
largando à própria sorte a maioria da população rural” 400 . Dito de outra forma,
segundo o jornal, às experiências de lutas destes trabalhadores aliava-se à
possibilidade de recuperação da esperança, traduzindo-se no chamado
realismo utópico que preside as iniciativas dos grupos
oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a
alternativa, vão construindo, um pouco por toda parte,
alternativas locais que tornam possível uma vida digna e
decente.401
Por essa razão, nos anos de 1990, o MST era considerado “a única entidade
que conseguia fazer política no Brasil”, ao enfrentar com veemência práticas latentes
que se operavam sistematicamente visando promover a “destruição da fala, do
discurso que reivindicava e que interpelava o outro”
402
. Isso revela um
inconformismo frente à situação de repressão, intolerância e falta de iniciativa do
governo, no que tangia à resolução dos conflitos no campo e na cidade. Sendo
assim, destaca-se que
400
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1991 - Terra, Água e Paz: viver
é um direito. Goiânia: CPT, 1992. p.5. Nesse aspecto, a atuação dos trabalhadores rurais rompia com
a “espera sem esperança”, entregando-se ao “realismo desesperado de uma espera que se permite
lutar pelo seu conteúdo, não em geral, mas em seu exato lugar e tempo em que se encontra [...]. A
esperança reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja
possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito, alternativas que
pareciam utópicas em todos os tempos e lugares”. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo
a
senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 2 ed. São Paulo: Cortez,
2000. p.36.
401
Ibidem.
402
OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do Público, destituição da fala e anulação da política. In:
Idem; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política do dissenso e hegemonia
global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.79.
263
a arma da desmoralização da fala, do discurso, foi uma das
tônicas mais presentes no governo de FHC. Sua arrogância em
nomear como ignorantes, atrasados, burros, neo-bobos, todos
aqueles que se opuseram a seus métodos, não teve outro
objetivo: a anulação da fala e, através dela, a destruição da
política, a fabricação de um consenso imposto, ao modo das
ditaduras [...].403
Frente à resistência declarada dos trabalhadores rurais sem terra contra o
latifúndio no país, o relatório da CPT denunciou que, apesar de ter ocorrido redução
nos conflitos pela terra em todo o Brasil, em 1991 o índice de violência seguida de
óbitos foi relativamente alto com “a morte de 40 camponeses/trabalhadores rurais, 7
índios, 5 dirigentes sindicais e dois menores”, sendo que o maior índice dos
assassinatos deu-se “no estado do Pará com 14 vítimas e 13 no estado do
Maranhão”.
Comparando os dados da violência no campo com vítimas de assassinatos,
no interstício de 1985 a 1991, notou-se uma redução significativa de óbitos a cada
ano. Ou seja, a queda nos conflitos envolvendo a posse da terra repercutiu também
na redução dos assassinatos, como pode ser observado no gráfico abaixo.
403
Essa afirmação dava-se em virtude da resistência demonstrada pelo MST contra as incursões do
governo de Fernando Henrique Cardoso, pois se essa entidade aceitasse ou caísse nas armadilhas
do governo, também estaria condenada ao descrédito político, “como aconteceu com os principais
sindicatos de trabalhadores, que já não conseguiam veicular seus discursos, sendo reduzido ao
silêncio”. Ver: OLIVEIRA, Francisco de; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia.
Política do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.79-81.
264
Gráfico 3 - Assassinatos de 1985 a 1991 em Conflitos de Terra no Brasil.
140
125
120
105
109
100
93
80
75
Assassinatos:
1985-1991
56
60
49
Fonte: CPT
Nacional 1992, p.38.
40
20
0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
O Caderno Conflitos no Campo, que nasceu com a dupla missão de
anunciar e denunciar, especialmente a edição de 1992, apresentava dados do ano
anterior, fazendo notar que o “fato de se matar menos”, como evidenciava a leitura
do gráfico 3, não representava a inércia das forças repressivas no campo, e sim uma
mudança na “pedagogia” traçada pelos latifundiários. Esses passavam a
“selecionarem melhor suas vítimas, ou porque apostaram no terrorismo” e
certamente, também, “pela melhor organização nas ações defensivas e preventivas
dos trabalhadores sem terra”404, buscando em outros espaços o acolhimento e a
solidariedade, como demonstra o trecho a seguir:
404
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1992. Goiânia: CPT, 1993. p.37.
265
Articulação na mídia; articulação com juízes democráticos;
convidar juízes para visitar os acampamentos e assentamentos;
prestar apoio aos juízes alternativos; estender a discussão da
terra às faculdades de direito; trazer o PT e as Igrejas para a
discussão; evitar o isolamento dos companheiros presos;
acionar as entidades: OAB, CNBB, etc. para que eles possam
denunciar a articulação da direita e a violência no campo.405
O documento elaborado pela entidade, em 1992, anunciava a redução no
número de assassinatos no campo, mas também um aumento no que se refere ao
crescente contingente de famílias expulsas e despejadas das terras, articulando,
ainda, a um aumento absoluto de vítimas de “ações terroristas: prática de
intimidação através de disparos de armas, detonação de explosivos contra casas,
acampamentos e reuniões de trabalhadores”, procedimento muito utilizado nos
primórdios da constituição do MST no assentamento de Encruzilhada Natalino-RS.
A rigor, tal procedimento de repressão foi e é um dos estratagemas
utilizados no sentido de impedir qualquer articulação política que comprometesse a
ordem instituída, inclusive na primeira década de século XXI. Porém, notou-se que a
atuação dos “agentes do Estado” seguia em direção a “uma sinistra repetição de
apropriação dos corpos, silenciando-os e vilipendiando-os na tentativa de anular a
construção política das classes dominadas” 406, posto que
405
Estas foram algumas das ações defensivas pensadas e colocadas em prática pelos trabalhadores
rurais sem terra, na busca da superação das desigualdades sociais das quais eram vítimas e sujeitos.
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.120. Seção “Estudos” - A luta e o
Judiciário. MST, 1992. p.13.
406
OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o
totalitarismo neoliberal. In: Idem; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política
do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.64.
266
a violência que campeia na sociedade brasileira e, sobretudo, a
violência que é produzida pelos aparelhos de Estado não é
senão uma pálida sombra da exclusão da fala e da privatização
do público, e, no seu rastro, a anulação da política.407
Em face dessa questão, buscou-se deixar claro que a “justiça legitima o
mecanismo que produz desigualdades, violência e hierarquizações assimétricas”
entre os trabalhadores, demonstrando visível articulação entre o “sistema jurídico e o
poder disciplinador”408 do Estado, no sentido de anular as experiências construídas
na luta dos trabalhadores rurais sem terra, compreendidos como sujeitos históricos.
Embora, os dados do gráfico 3 indicassem uma visível queda nos números
de assassinatos no campo, a edição de Conflitos no Campo, Brasil/1994 destacou,
em sua apresentação e em seu primeiro capítulo, a informação de que 485 conflitos
seguidos de 47 assassinatos eram indícios de incipiente avanço no combate à
violência no campo, reduzindo-se apenas duas mortes em detrimento das 49
ocorridas no ano de 1991.
A imagem veiculada pelo JST buscava destacar o quadro de terror e
violência perpetrado no campo, sob a presença marcante do Estado.
407
OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o
totalitarismo neoliberal. In: Idem; PAOLI, Maria Célia (Orgs.). Os sentidos da democracia. Política
do dissenso e hegemonia global. Petrópolis - RJ: Vozes, 1999. p.81.
408
MARONI, Amnéris. A Estratégia da Recusa: análise das greves de maio de 1978. São Paulo:
Brasiliense, 1982. p.39.
267
Figura 6 - “Colonos Saem da Fazenda Santa Rita, RS”.409
O cenário apresentado nesta imagem é um exemplo da truculência da
polícia do Rio Grande do Sul contra as 450 famílias de trabalhadores rurais que
ocupavam a Fazenda Santa Rita, de propriedade do veterinário e pecuarista
Agamenon Almeida. Para a CPT, “os trabalhadores ocupantes da fazenda alegaram
que as ocupações se deram pela falta de perspectivas de novos assentamentos e
que a área ocupada era improdutiva e sem função social”410.
409
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1994. Goiânia: CPT, Edições
Loyola, 1995. p.6.
410
Ibidem. p.13. Em face disso, a decisão da justiça nesse episódio implicou na tentativa de restringir
os anseios de determinado segmento da sociedade (os trabalhadores rurais sem terra), que buscava
no assentamento condição básica ao exercício da cidadania. Portanto, a intenção da Juíza não pode
ser observada como “decisão irracional”. Pelo contrário! Esta procurou atender “os interesses dos
agentes mais poderosos” em detrimento aos interesses coletivos dos trabalhadores rurais ali
268
Dois dias após a ocupação, “a Juíza de Lagoa Vermelha concedeu liminar
de reintegração de posse ao proprietário, dando-lhes um prazo de 72 horas para
evacuar o local e determinou que a Brigada Militar (BM) vigiasse a área”411. Além da
presença marcante da BM, “os produtores rurais das imediações da área ocupada
vigiavam suas propriedades temerosos de novas ocupações”412 dos trabalhadores
rurais, conforme destacou o documento.
No mesmo período, em manifesto público, a União Democrática Ruralista
(UDR) acusou o MST de ser uma “organização guerrilheira que ameaçava os
direitos básicos dos cidadãos e invadia propriedades privadas”, discurso que circulou
fartamente em alguns meios de comunicação da “grande imprensa”. Na sequência, a
nota de repúdio da UDR ao MST: “a Associação Rural de Vacaria, a Prefeitura
Municipal e a Associação Comercial e Industrial da mesma cidade divulgaram
comunicado atacando os colonos”.
Porém, observou-se que no desenrolar da luta nesse local, o prazo
determinado pela Juíza expiraria, “pois o Ministério Público pediu vistas ao processo,
alegando o perigo que corriam as crianças”. Após essa trégua, o Governo Federal
sinalizou que se os ocupantes deixassem a fazenda de forma pacífica, “em um mês
lhes assentaria”.
Em face da promessa do Presidente da República, a indignação da UDR foi
imediata, manifestando-se novamente em nota: “fomos agredidos e não houve
respaldo à classe ruralista, os invasores saíram vitoriosos”, anunciando o prenúncio
da retomada da luta pela terra no campo, recolocando o tema da reforma agrária na
pauta do dia.
acampados. Cf.: THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.110.
411
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1994. Goiânia: CPT, Edições
Loyola, 1995. p.13.
412
Ibidem.
269
Os gráficos a seguir demonstram o cenário rural brasileiro, apresentando os
números de famílias em conflitos pela posse da terra em todo o país na primeira
metade da década de 1990.
Gráfico 4 - Ocupações de Terra no Brasil: 1991-1994 - Números de Famílias.
25.000
20.516
19.092
20.000
15.538
14.720
15.000
10.000
5.000
0
1991
1992
Número de Famílias
Fonte: CPT Nacional - 1994, p.11.
1993
1994
270
Gráfico 5 - Ocupações de Terras no Brasil: 1991-1994 – Número de Ocupações.
119
120
100
89
81
77
80
60
40
20
0
1991
1992
1993
Número de Ocupações
Fonte: CPT Nacional - 1994, p.11.
1994
Os dados dos gráficos 4 e 5 explicitam os números de ocupações e números
de famílias que desejavam um lote de terra, agravando a situação de tensão no
campo, em face de que os conflitos e a violência estavam longe de chegar ao fim. O
relatório Conflitos no Campo, Brasil, 1994, atenuava que “inegavelmente, as
ocupações se consolidaram como forma eficiente de luta pela reforma agrária,
tornando-se expediente extremo de que dispõem os trabalhadores rurais para
conseguirem um pedaço de chão”.
A dificuldade que se colocava, na situação apresentada nos gráficos, era o
expressivo número de famílias que pleiteava a posse da terra, maior do que as
propriedades ocupadas, dado que deixava o poder público cada vez mais distante
271
da efetivação de uma ampla reforma agrária, como desejava os trabalhadores e
entidades que os apoiavam.
Dessa maneira, o documento tornou visível que não existia linearidade no
que tange à localização das ocupações, pois estas se tornaram dinâmicas ao longo
da luta, uma vez que “se distribuíram por todas as regiões do país, concentrando-se
nos estados e áreas de maior oferta de terras improdutivas e/ou de maior
contingente de lavradores excluídos dos processos de trabalho”413.
Acerca da localização das ocupações no ano de 1994, elas ocorreram em
maior escala na região nordeste, somando 43; já na região sul, eram 16 e,
finalmente, na região sudeste totalizando 22, sendo 16 apenas no estado de São
Paulo414, declara o documento da CPT.
Baseando-se nos dados apurados por esta entidade, destaca-se que no
período de “1991 a 1994, contabilizou-se 199 assassinatos, em 1916 conflitos no
campo, uma média de 479 conflitos por ano, 1,3 por dia e um para cada 9,6 conflitos,
50 por ano e um por semana”. Na mesma perspectiva, o documento alertava “que
estiveram envolvidos cerca de 900 mil pessoas, disputando 17,8 milhões de
hectares”
415
em todo o país, constituiu-se um cenário de contínua tensão
desembocando na perpetuação da violência generalizada na área rural.
A rigor, a publicação do Caderno Conflitos no Campo Brasil/1996, buscou
mostrar o aumento crescente das tensões na área rural, pontuando que estas
“passaram de 554 em 1995, para 750 em 1996; os números de famílias envolvidas
subiram de 63.565 em 1995, para 96.298 em 1996. As ocupações foram de 146
413
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1994. Goiânia: CPT, Edições
Loyola, 1995. p.6. p.11.
414
Ibidem.
415
Ibidem. p.12.
272
para 398, e as mortes de 41 em 1995, para 54 em 1996”416. A parte introdutória do
documento trazia informações de que o cenário nos campos brasileiros estava em
constante ebulição, carecendo, portanto, de intervenção rápida por parte do governo
federal, o que não aconteceu, segundo análise dos documentos.
Focando o olhar na violência no campo no estado de São Paulo, percebeuse que esta esteve presente em virtude da posse da terra, pois já se fazia uma velha
conhecida nas regiões oeste e noroeste 417 . Pleiteando a reforma agrária e a
regularização de uma política agrária efetiva no estado voltada aos anseios dos
trabalhadores, os conflitos com ações organizadas deram-se a partir da inserção dos
trabalhadores no MST, sujeitos que por meio de suas ações e capacidade
organizativa, modificariam, aos poucos, a paisagem da área rural.
Para a CPT, em 1996, São Paulo registrou cerca de quarenta e nove
conflitos em vinte e quatro municípios, envolvendo duzentos e vinte e dois mil,
oitocentos e nove hectares de terras, mobilizando sete mil e noventa e uma famílias.
A CPT informou, ainda, que uma dessas ocupações contou com um maior
contingente de pessoas envolvidas, sendo superior a todas as outras realizadas no
estado neste ano, num total de mil e quinhentas pessoas, reportando-se à ocupação
da Fazenda Santa Rita, em Mirante do Paranapanema, destaca a entidade.418
416
Palavras de D. Orlando Dotti, Bispo de Vacarias e Presidente da CPT - Nacional. Cf.: COMISSÃO
PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1997. p.3.
417
Sobre a ocupação de terras nessas regiões, ver: PENÇO, Célia F. C. A evaporação das terras
devolutas no Vale do Paranapanema Tese (Doutorado), USP, São Paulo, 1988. DI CREDO, Maria
do C. S. A propriedade da terra no Vale do Paranapanema – a Fazenda Taquaral, 1850/1910.
Tese (Doutorado), Unesp, Assis - SP, 1987. MACHADO, Júlio C. Dimensões do processo histórico
de desenvolvimento econômico do primeiro cinqüentenário do município de Assis, 1905-1955.
São Paulo, 2005. MOMBEIG, Pierre. Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. 2ªed. São Paulo:
Hucitec/Pólis, 1998.
418
Os dados aqui descritos foram retirados da planilha organizada pela CPT nessa publicação, na
qual a entidade procurou identificar o nome do imóvel em conflito, o município onde estava alocado, o
total de hectares de cada área ocupada, o número de pessoas envolvidas (não havendo dados
precisos para esse item) e o total de famílias articuladas nas ocupações. Ver: COMISSÃO
PASTORAL DA TERRA, op. cit., p.26-7.
273
Quanto às ocupações de terras nesse estado, o documento revelou que, no
total, ocorreram “trinta e oito, mobilizando o esforço e a coragem de seis mil e
trezentas e vinte e seis famílias” 419 ao todo; era São Paulo em alerta contra a
violência no campo.
A publicação do Caderno Conflitos no Campo, Brasil, 1997, procurou
mostrar que “a violência e os conflitos produzidos pelo latifúndio têm mudado de
forma, mas na essência permaneceram os mesmos. Mudaram de forma, mas não
diminuíram”420.
Pelo endurecimento e intolerância do Governo Federal com relação aos
anseios dos movimentos sociais, sobretudo, aqueles vinculados à questão da terra,
despertava-se nos trabalhadores rurais um desejo latente de retomar as ocupações
de terras em todo o país, particularmente no estado de São Paulo, elevando,
sobremaneira, o número de conflitos e, consequentemente, o número de famílias
envolvidas nestes.
Em agosto do mesmo ano, o Governo Federal acelerou um crescente fluxo
de programas e medidas nas áreas agrícolas e agrárias, traduzindo-se em “linhas
rápidas de crédito para a agricultura familiar, descentralização da reforma agrária,
leilão de terras, recadastramento fundiário”421. Ações que revelavam uma possível
tentativa de se embotar os anseios das classes populares e trabalhadoras, ao
enveredar políticas sem levar em consideração os anseios dos segmentos sociais
envolvidos.
419
Ver. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT,
Edições Loyola, 1997. p.41-2.
420
MOREYRA, Sérgio Paulo (Assessor da CPT). As novas Caras da Violência no Campo Brasileiro.
In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1997. Goiânia: CPT, Edições
Loyola, 1998. p.7.
421
Ibidem. p.8.
274
Em resposta a postura adotada pelo governo da União, os trabalhadores
rurais organizaram ocupações de terras e repartições públicas, passeatas e
manifestações, ações compreendidas pela pesquisa como o construir da luta no
fazer-se político.422 Assim, o clima de terror e violência se configurava no Pontal do
Paranapanema, “quando trabalhadores rurais sem terra acampados eram atacados
a tiros”423. Nesse aspecto, compartilha-se da idéia de que a violência na área rural
estava intrinsecamente concatenada ao latifúndio, ao passo que este se tornava
algo absolutamente anti-humano. Pois, algum dia alguém
chegou e disse: isso aqui é meu e a partir daí começaram as
desgraças todas, porque quem disse “isso aqui é meu”, pôs
imediatamente para guardar aquilo que disse ser seu: a polícia.
E alguém disse: mas não posso ter aí um bocado ou aquilo de
que necessito só para viver? Não pode. E se teima, entra e
insiste, é abatido a tiros ou sacrificado de qualquer outra
maneira.424
A título de exemplificação de como estava a área rural desse estado,
evidenciou-se que, em 1997, a CPT registrou 42 conflitos, num total de oitenta mil,
trezentos e dezoito hectares de terras, envolvendo sete mil, setecentos e noventa e
422
Em face desta questão, recorre-se às reflexões de Thompson, particularmente aquelas que
buscam tecer novos contornos históricos acerca da experiência social a partir de outras referências,
como a própria experiência da classe trabalhadora, por exemplo. Nesse processo de luta, a
“consciência” política desses sujeitos históricos é dada a partir da experiência concreta por eles
vividas e passível de ser observada no seu “efetivo acontecer”, sublinha o autor. Cf.: THOMPSON, E.
P. A Formação da Classe Operária Inglesa I: A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987. p.10. Idem. Tradicion, revuelta y conciência de clase. Barcelona: Grijalbo, 1976.
423
MOREYRA, Sérgio Paulo (Assessor da CPT). As novas Caras da Violência no Campo Brasileiro.
In: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1997. Goiânia: CPT, Edições
Loyola, 1998. p.8.
424
Veredicto de José Saramago no Tribunal Internacional para julgar os massacres de Corumbiara e
Eldorado dos Carajás. Trecho citado por D. Orlando Dotti. Cf.: COMISSÃO PASTORAL DA TERRA.
Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições Loyola, 1997. p.3. O Tribunal Nacional de
Opinião julgou, em 28 de novembro de 1996, em Brasília, os Massacres de Corumbiara e Eldorado
dos Carajás-PA. Para esse evento foram convidados algumas personalidades da América Latina e da
Europa: Eduardo Galeano, Rigoberta Menchu, Chowski, Saramago, dentre outros. O Tribunal foi
presidido pelo então jurista e deputado federal, Hélio Bicudo. O evento contou com a participação de
representantes da OAB, CNBB e um perito da França. Esta foi uma iniciativa da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara Federal, da OAB e da Procuradoria Geral da República. Cf.: JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.163. MST, out./nov. 1996. p.16.
275
três famílias425. Comparando essas informações com as do ano anterior, verificou-se
ligeira queda nos números de conflitos e nas áreas ocupadas, notando-se, porém, o
aumento crescente no contingente de famílias envolvidas.
Enfim, a despeito da violência generalizada envolvendo os trabalhadores
rurais sem terra, presume-se que o Estado configurou-se como um dos principais
agentes da repressão no campo, representado, sobretudo, pelo Poder Judiciário em
consonância com precipitadas decisões tomadas por alguns governadores. Tais
políticos ao concederem autorização às suas Secretarias de Seguranças Públicas de
cumprirem as liminares de reintegração de posse chanceladas por alguns
Magistrados, no que tange à desocupação de fazendas em conflitos, provocavam
sangrentos combates entre trabalhadores, latifundiários, forças policiais e milícias
paralelas a serviço dos grandes proprietários.
Antes, porém, afirmava-se que as decisões encampadas pelo Estado e,
sobretudo, pelo Judiciário estavam concatenadas a duas questões básicas: a
econômica e a política. Não obstante, fez-se notar “que o poder econômico dos
latifundiários esteve associado ao poder político e jurídico”426. Pois, a prerrogativa
das forças públicas tendia a anular as inquietações dos trabalhadores rurais, não
considerando suas reclamações, seus medos e seus anseios.
Portanto, na maioria das vezes, despejos seguidos de atos violentos,
“expropriações” de pequenos trabalhadores e/ou sitiantes tiveram claras e evidentes
a “chancela da Justiça”427.
425
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo, Brasil/1996. Goiânia: CPT, Edições
Loyola, 1997. p.3.
426
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra: experiência e memória. São Paulo: Ed. da
Unesp, 2004. p.30.
427
Ibidem. Idem. Errantes no Fim do Século. São Paulo: Ed. da Unesp, 1999. Sobre casos de
omissão das forças públicas em não considerar as queixas de trabalhadores rurais ao serem
ameaçados de mortes ou de perderem suas propriedades e pertences por pressões de bandos de
pistoleiros a mando de grileiros. Ver: IOKOI, Zilda G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertação e
276
O poder judiciário atuou sistematicamente no sentido de
garantir o direito de posse dos latifundiários. Não conheço
nenhum caso de pedido de liminar de manutenção de posse
que tenha sido negado pelos juízes. Os proprietários
apresentam provas fajutas de posse e o juiz já lhes garante o
processo.428
Não obstante, assinala-se que outros agentes de repressão adentravam o
campo de discussão da reforma agrária. Contratados pelos latifundiários surgiam os
bandos de jagunços e matadores de aluguéis, com a missão de eliminar
trabalhadores rurais e líderes de entidades que lhes representavam, ao temerem o
fracasso do estado em não conseguir manter seus privilégios, acatando as pressões
exercidas pelo MST e forças políticas progressistas. Essas reivindicações visavam
possibilitar a correção do descompasso histórico existente entre aqueles com
imensas glebas de terras (adquiridas às vezes de formas ilícitas, como as terras
griladas) e os sem terra, já caracterizados ao longo desse trabalho.
A luta pela correção desse descompasso histórico por meio da reforma
agrária levou o último grupo social a reivindicar seu direito de propriedade, por meio
do discurso de que “a terra deveria cumprir o seu papel social”. Essa postura induzia
os latifundiários a agirem com sua própria lei, ou seja, apropriando-se do exercício
da violência no campo, criando um constante estado de atenção, com conflitos
seguidos de assassinatos em larga escala, com destaque aos massacres de
Movimentos Sociais no Campo - Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1996.
p.105-12.
428
Segundo o Procurador do estado do Paraná, “isso se deu em virtude de que, quando um juiz
recebia um pedido de reintegração de posse para fazer um despejo de famílias que ocupavam
determinada área, baseava-se no Código Civil: mandava a polícia retirar o pessoal em poucas horas.
Agora com a nova Lei, ele poderá se perguntar: será que a propriedade cumpre a sua função social?
Ele poderá inclusive investigar e fazer levantamentos, antes de tomar uma decisão. Se a propriedade
não estiver cumprindo a função social, em vez de despejo, ela poderá ser passível de
desapropriação”. Trecho da palestra proferida pelo Dr. Luiz Fachin, Procurador Geral do Estado do
Paraná, a respeito da Lei de Reforma Agrária ocorrida na Campanha Nacional de Reforma Agrária
em junho de 1993. Cf.: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.129. MST,
setembro de 1993. p.3.
277
trabalhadores
ocorridos
na
década
de
1990,
conhecidos
nacional
e
internacionalmente.
Portanto, a análise dos documentos permitiu concluir a existência de
profícua articulação política, na maior parte das vezes não jurídicas, “na tentativa de
criminalizar o Movimento dos Sem Terra com base no Poder Judiciário”. Para tanto,
os documentos analisados na construção desse trabalho sinalizaram a necessidade
[...] de controle para o Poder Judiciário. E que o juiz seja um
homem de seu tempo. Ele não pode utilizar-se do cargo que
ocupa para ajudar na repressão social ao movimento. Ele não
pode desconhecer a realidade social; além da reforma agrária
precisamos fazer uma reforma profunda no Poder Judiciário,
criando algum tipo de controle social, sobre ele e a polícia.429
Nesse sentido, assinalou-se a “institucionalização da violência em diversos
níveis de autoridade do Estado”, sendo esta, às vezes, arbitrária e sua solução seria
exclusivamente política. Pois, “tolhido como estava em uma estruturação
burocratizada e subordinada ao Poder Executivo, o Judiciário seria incapaz, portanto,
de ser um efetivo mediador dos conflitos da sociedade civil” 430.
A leitura e interpretação dos materiais publicados pelo JST e pelos Cadernos
Conflitos no Campo Brasil da CPT potencializavam a compreensão dos conflitos que
circundaram a estrutura fundiária brasileira. Desta forma, revelou-se que, ao passo
que a repressão no campo ia se proliferando, as ações do MST também se
qualificavam na direção de enfrentá-la e, sobretudo, no sentido de construir
429
Trecho de entrevista com o advogado do MST, Luiz Eduardo Greenhalgh. Cf.: JORNAL DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. n.154. MST, dezembro de 1995. p.9.
430
PAOLI, Maria Célia P. M. Violência e Espaço Civil. In: Idem [et. al]. Violência Brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1982. p.49. Nesse sentido, “o problema passa a ser, então, a necessidade de uma
modificação da ordem jurídica, de modo a torná-la um poder atuante e próximo da defesa dos direitos
da população”. A violência no campo seguida de mortes, as ocupações, as ordens de despejos, a
resistência dos trabalhadores sem terra permanecendo na terra, a atuação da polícia, a formação de
milícias particulares a serviço de latifundiários, concretizam testemunhos oculares da incapacidade do
judiciário, “seja pelo arbítrio policial que toma o seu lugar, seja pelas imperfeições legais que mais
garantem impunidades e privilégios do que algo próximo a uma distribuição da justiça”.
278
mecanismos para combatê-la, atribuindo visibilidade a seus feitos por meio de
passeatas, protestos, manifestações públicas e denúncias em órgãos de direitos
humanos em âmbito nacional e internacional.
Por fim, todo esse cenário de tensão no campo assinalado e descrito ao
longo do trabalho, não foi fruto deste ou daquele governo. Isso seria simplificar a
trajetória de luta dos trabalhadores a acontecimentos momentâneos e datados. Não
se deve esquecer, que a luta pela terra no Brasil é histórica, e que todas as
tentativas de se fazer a sua redistribuição de forma equânime implicaram, em
massacres inesquecíveis ao olhar da história, como os já mencionados neste
trabalho e na produção historiográfica acerca do tema.
Ademais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus aliados
buscavam, ao longo de sua trajetória, desde 1981 até a presente data, construir e
colocar em prática suas propostas de reforma agrária para o campo, fazendo notar
que estas estiveram para além da aquisição de um lote de terra para se cultivar e
plantar.
As preocupações do MST com a educação, saúde, produtividade nos
assentamentos, preservação das instituições públicas e da natureza, somados a
atenção à construção de um modelo econômico menos degradante ao ser humano,
tornou este movimentos sociais um dos mais significativos do Brasil, na passagem
do século XX para o XXI. Destacando-se, que além da sua inquietação e
inconformismo com as injustiças no campo e na cidade, toda a sua potencialidade
em articular pessoas dos mais variados segmentos da sociedade - vítimas, mas
também sujeitos do processo histórico.
Estes sujeitos são pessoas, que, na maioria das vezes, tiveram suas vozes
cerceadas, assim como, seus corpos e suas mentes anulados pelo olhar
279
“policialesco” do Estado. Mas, sob a perspicácia e coragem de movimentos sociais
como o MST, de entidades representativas como a CPT, JST, Sindicatos e
Associações, tornou-se possível a reconquista dos espaços públicos por estes
sujeitos. Espaços aqui compreendidos não como espaço físico ou geográfico, mas
como espaço de luta, debate, reflexão e ação, espaço político, no qual a maioria dos
trabalhadores e entidades representativas jazia em silêncio, por estarem cedendo às
pressões do então modelo econômico.
A atuação do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra devolveu aos
“invisíveis” trabalhadores rurais sem terra a “visibilidade”, desnudando a miséria, a
pobreza e a violência no campo que circundaram a vida de milhares de brasileiros.
Sua ação dinâmica e articulada se fez ouvida nas mais diferentes instâncias da
sociedade, levando por meio deste Jornal aos mais longínquos grotões desse país,
as falas e os anseios dos trabalhadores rurais sem terra. Sendo estas propostas de
lutas concatenadas às exigências de seu tempo, demarcando, assim, um lugar
singular na política ao longo desse processo de enfrentamentos, diferente de outras
organizações sociais no que tange a questão da democratização da terra em todo o
Brasil.
280
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tentativa de compreensão do tema da pesquisa foi um dilema, que se fez
presente já na minha infância e adolescência quando, no início de cada primavera,
observava o meu pai, juntamente com meus irmãos mais velhos desaparecerem em
meio às estradas empoeiradas, em cima da carroceria de um caminhão, para
trabalhar como “bóias-frias” na Zona da Mata do estado de Pernambuco, a fim de
conquistar o pão nosso de cada dia.
Pautado por essas lembranças e/ou lapsos de memórias, associados à
vasta bibliografia sobre a temática em voga, venho estudando algumas interfaces do
tema desde a minha graduação. Mas, após ter passado por diversas intempéries
frente à escolha, financiamento e desenvolvimento da pesquisa, pude perceber que
a “escolha do tema é tão somente um ponto de partida [...] e não um ponto de
chegada”431. Esta explicação me deixou um tanto inquieto diante dos compromissos
já assumidos anteriormente - trabalho, família, estudos e vida social - atividades que
exigiram grande esforço e algumas frustrações com relação ao término do trabalho
aqui apresentado.
Em face disso, destaca-se que o reduzido espaço de tempo que tive para a
realização do trabalho, deu-se a princípio pelas atividades excessivas que
desenvolvi durante a pesquisa, como professor de Ensino Fundamental e Médio em
duas escolas públicas (município e estado de São Paulo), somando-se a outros
empecilhos que se tramaram na minha vida ao longo dessa caminhada, mas que
não confluíram para que eu deixasse de lado o interesse e carinho pelo tema ora
apresentado e problematizado.
431
Cf.: QUINTANA, Mário. Texto & Pretexto. In: Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2005. p.282.
281
Sem a pretensão de esgotar a discussão acerca desta temática, a pesquisa
bibliográfica revelou incipiente uso do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
como fonte histórica, por outros pesquisadores. A fim de superar essa lacuna, a
pesquisa procurou mapear o periódico, demonstrando sua trajetória histórica e
política enquanto ferramenta de luta para a constituição da identidade do MST,
descortinando suas etapas de formação, tiragem, formatação, conteúdos, grupos de
pessoas envolvidas na sua elaboração, local de publicação e circulação, público
leitor e seus principais objetivos.
Para tanto, selecionou-se alguns de seus editoriais, artigos de opinião,
entrevistas com lideranças do Movimento e representantes de entidades solidárias à
luta dos trabalhadores rurais sem terra, no sentido de explicitar suas falas,
problematizar seus discursos e buscar, pelo viés da historiografia, a compreensão
das ações que trouxeram esperanças a esses trabalhadores no período de 19812001.
Analisando os materiais publicados pelo JST, ficou patente que o MST
originou-se com a prerrogativa de se tornar um dos mais importantes Movimentos
sociais de luta pela terra das últimas três décadas do século XX. Tal classificação
deu-se devido a sua organização política, sua flexibilidade em aglutinar pessoas
segregadas por múltiplos fatores sociais e de todos os segmentos da sociedade,
dentre eles aqueles ligados diretamente ao processo de desenvolvimento do
capitalismo no campo e nas cidades. Nesse sentido, destaca-se sua presença
marcante nos anos de 1990, associado à ausência de políticas públicas que
permitissem a reinserção dos trabalhadores excluídos do sistema produtivo em
projetos sociais de qualificação profissional e de geração de renda.
282
Portanto, foi nesse cenário que o MST desenvolveu-se e o seu periódico
registrou e divulgou denúncias de desigualdades sociais no campo e, também, nas
cidades, de modo a projetar a luta dos trabalhadores rurais sem terra, senão no mais
importante, pelo menos no mais politizados, dos Movimentos sociais, do final do
século passado.
A partir da transposição e análise dos editoriais, entrevistas, notícias e
imagens publicadas pelo JST, a pesquisa demonstrou as representações sociais dos
trabalhadores articulados entorno do MST, visando desvelar a dialética existente
entre o Movimento, a sociedade civil e diversos segmentos do poder instituído.
Nesse aspecto, assumindo posição de ferramenta de denúncia, mas também de
anúncio, o Jornal fez notar que o discurso do Estado brasileiro para a área rural, no
sentido de prover mais empregos, melhoria da qualidade de vida do homem do
campo, teve suas ações funcionando em outra direção.
A análise da documentação e da bibliografia especializada sinalizou para a
constatação de que a aplicação de recursos públicos na área rural contemplou, em
sua maior parte, os interesses dos latifundiários, levando-os a incorporarem a suas
propriedades os sítios circunvizinhos, onde se produzia a agricultura familiar,
complicando ainda mais as relações sociais no campo.
Dessa forma, a pesquisa analisou os discursos de denúncias que o Jornal
fez ao longo de sua trajetória, sobretudo, aqueles que cobravam do poder público
medidas para amenizar os conflitos no campo, mas também os anúncios de vitórias,
as pequenas conquistas e os desejos dos trabalhadores. Enfim, atribuiu-se destaque
para as ameaças de mortes, o número excessivo de óbitos de trabalhadores rurais,
procedimentos de torturas, a perseguição e intimidação de lideranças rurais e dos
católicos solidários ao Movimento, seguidos de outras práticas violentas como a
283
destruição de roças, de acampamentos e de assentamentos por bandos a serviço
dos latifundiários.
Nesse contexto, a partir da interpretação dos materiais produzidos pelo JST,
constatou-se a presença de um discurso que responsabilizava o Estado,
representado por diversos setores, em particular pela omissão do Poder Judiciário,
frente aos conflitos, colaborando, assim para o seu aumento no campo,
simultaneamente, o jornal propunha a reforma deste Poder.
Dessa maneira, a pesquisa trouxe à luz os relatos das condições de vida e
de trabalho pouco humanizado aos quais os trabalhadores rurais sem terra foram
submetidos no curso da história - aqui datada e limitada às relações cotidianas em
nível micro-estrutural, porém, sem desconsiderar os mecanismos maiores que
compõem a História. Mas, dialeticamente, procurou-se anunciar que o homem, aqui
personificado na figura do trabalhador rural sem terra, esteve incessantemente
demonstrando seus mecanismos de resistências, rumo ao intrínseco desejo de
objetivar-se no mundo - realizar-se tornando, assim, a vida mais humanizada.
Essa prerrogativa encontrou eco na posição assumida pelos trabalhadores
rurais e legitimada nas páginas do JST, pois, em sua maior parte, as informações ali
existentes foram produtos das ações dos agentes imbricados na luta por
transformações sociais em todo o país, particularmente aquelas que contemplavam
os anseios dos trabalhadores sem terra.
Assim, a análise dos materiais do JST possibilitou esclarecer que, na maioria
das vezes, os textos remontaram ações que colocaram em vista os discursos do
MST e os do Estado, fazendo notar a sobreposição das duas forças em tensão.
Ademais, as hipóteses norteadoras do presente trabalho tornaram visíveis as
tensões eminentes das experiências vividas pelos trabalhadores, revelando, assim,
284
as investidas do Jornal e do próprio Movimento, ao passo que estes construíam
representações que se fizeram notar pela sociedade civil organizada, entidades
representativas por meio de sua articulação política, evidenciando por meio de suas
ações a percepção de si e do outro enquanto sujeitos históricos.
Não obstante, os anseios que os trabalhadores rurais demonstraram nas
páginas do Jornal, enquanto um instrumento de luta, este periódico se tornou um
referencial significativo da pesquisa ao contemplar as falas das lideranças do
Movimento. Pelo seu significado político, a pesquisa apurou que o Jornal dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra fez chegar até os acampamentos e assentamentos
informações que serviram de base nos momentos de estudos provocando reflexões,
debates e também resistências frente aos poderes instituídos. Estas características
possibilitaram o entendimento do periódico não somente como objeto de pesquisa,
mas também, como sujeito imbricado com a luta pela terra e pela cidadania. Desta
forma, atenua-se que “nos textos do JST, o processo material, em todos os casos
em que aparece, descreve um evento realmente ocorrido”432, o que não se torna
perceptível em outros meios de comunicação de massa.
Sob a perspectiva da pesquisa historiográfica acerca da “questão agrária”,
às informações publicadas pelo JST buscou a reconstrução de uma trama que ao
longo de vinte e cinco anos permitiu o possível “desenraizamento” da luta do MST
pela terra, projetando-o nacional e internacionalmente. Não por acaso, essa
projeção trouxe consigo alguns desdobramentos, dentre eles as diferentes formas
de violência imputadas aos trabalhadores – sujeitos em movimento -, sendo esta
432
Cf. FRANCO, Leila Maria. O MST na Folha de São Paulo e no Jornal dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra: Análise das Práticas Discursivas. Dissertação (Mestrado), PUC-SP, São Paulo,
2003. p.106. No trabalho comparativo entre os discursos propagados pelo JST e pela FSP, a autora
assinala que, com relação às diferenças entre processos e participantes na construção do discurso,
os editoriais ou notícias publicadas pelo Jornal dos Trabalhadores Rurais sempre estiveram atrelados
a um evento que realmente aconteceu. Já para a FSP, o processo material pelo qual se constrói o
discurso se insere no verbal ou mental, portanto, o processo material descreve um evento que não
aconteceu no mundo material.
285
repressão em parte, oriundas de setores representativos do Estado e de instituições
vinculadas aos latifundiários, como atestou os materiais do Jornal.
Nesses termos, a pesquisa buscou contribuir com o debate historiográfico
acerca da reforma agrária, mas, também, desvelar as ações e projeção dos
movimentos sociais que se fizeram presentes nas páginas do periódico. Ainda,
demonstrar de que forma o JST adquiriu uma centralidade no processo de
manifestação das representações sociais dos trabalhadores e de tantos outros
agentes sociais comprometidos com a luta pela terra em todo o país, além do desejo
latente pela redução das desigualdades sociais nos campos e nas cidades.
Por outro prisma, a pesquisa buscou trazer à luz informações que
possibilitem um olhar diferenciado acerca dos discursos emanados das páginas do
JST, considerado porta-voz das representações dos trabalhadores, por denunciar os
conflitos e confrontos que se sucederam na área rural nas últimas três décadas do
século XX. Mas também, por tornar o Jornal um agente articulador das ações que,
dentre outros desejos, visava a reforma agrária e a identidade do MST. Aliás, tais
desejos estimularam o Movimento, no sentido de suportar todas as intempéries
conjugadas aos interesses econômicos dos grupos que estiveram além desses
anseios.
Ao desvelar o conteúdo do JST, acredita-se contribuir com outros
pesquisadores da temática, no sentido de iluminar caminhos que promovam
reflexões. Como já apontado, o trabalho se apropriou de editoriais, imagens,
gráficos, notícias, entrevistas, artigos de opinião de forma abrangente, deixando
possibilidades abertas para outras análises em âmbito mais regional, já que pela
didática assumida pelo periódico registrava-se os acontecimentos e ações do MST
em cada unidade da federação.
286
Por fim, espera-se que a partir das análises e inquietações propostas por
esta tese, sobre as experiências de lutas dos trabalhadores rurais expressas nas
páginas do JST, outros silêncios, ainda latentes, possam ressoar e serem revelados
por meio de outros estudos.
287
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