Artigo original
Perfil dos traumas maxilofaciais em vítimas
de violência interpessoal: uma análise
retrospectiva dos casos registrados em um
hospital público de Belo Horizonte (MG)*
Profile of maxillofacial injury in victims of interpersonal violence: an
analysis of retrospective cases registered in a public hospital in Belo
Horizonte (MG), Brazil
Carlos José de Paula Silva1, Efigênia Ferreira Ferreira2, Liliam Pacheco Pinto de Paula3,
Marcelo Drummond Naves4, Viviane Elisângela Gomes5
Resumo
A violência está presente no cotidiano de cada brasileiro produzindo muitas vítimas com sequelas físicas e emocionais. O
trauma maxilofacial é um tipo de trauma ocorrido na face e na cabeça e pode ser associado à exposição dessa região do
corpo e a uma tentativa de desfigurar a face das vítimas de agressão. Este estudo avaliou o perfil dos traumas maxilofaciais
resultantes de violência interpessoal em vítimas atendidas em um hospital público de referência para esse tipo de trauma em
Belo Horizonte (MG). Foi executada coleta retrospectiva dos registros de vítimas atendidas no período de janeiro a dezembro
de 2007. Foram encontrados registros de 484 vítimas, sendo que 61,6% eram homens e 38,4% mulheres. O principal evento
foi agressão física (98,5%) e o tipo de trauma mais comum foi o trauma de partes moles (50,1%). Encontrou-se diferença
significativa entre os gêneros; os homens estavam associados aos traumas causados por arma de fogo e as mulheres aos
traumas decorrentes de agressão física (p=0,047). Predominaram as vítimas com idade entre 21 e 34 anos (46,0%) e o maior
número de casos estavam concentrados nos finais de semana (44,6%).
Palavras-chave: Violência, trauma maxilofacial, agressão
Abstract
Violence is present in the everyday life of every Brazilian, producing many casualties with severe physical and emotional
consequences. The maxillofacial trauma is a type of trauma occurring in the face and head and can be associated with the
exposure of this region of the body and with an attempt to disfigure the faces of the victims of aggression. This study evaluated
the profile of maxillofacial injuries resulting from interpersonal violence of victims treated in a public hospital of reference for
this kind of trauma in Belo Horizonte (MG), Brazil. The data was based on the retrospective collection of records of victims
treated in the period of January to December 2007. There were records of 484 victims, of which 61.6% were men and 38.4%
were women. The main event was physical aggression (98.5%) and the most common type of trauma was soft tissue trauma
(50.1%). There was a significant difference between genders; men were associated with the trauma caused by firearms and
women to physical injuries from physical aggression (p=0.047). The victims were between the ages of 21 and 34 (46.0%) and
the highest number of cases happened on the weekends (44.6%).
Keywords: Violence, maxillofacial injury, aggression
*Trabalho desenvolvido no Hospital Municipal Odilon Behrens em Belo Horizonte (MG)
1
Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). End.: Rua Padre João Crisóstomo, 167, apto. 203 – Coração Eucarístico –
Belo Horizonte (MG) – CEP: 30535-510 – E-mail: [email protected]
2
Doutora em Epidemiologia pela UFMG.
3
Mestre em Ciência da Informação pela UFMG.
4
Doutor em Estomatologia pela UFMG.
5
Doutora em Saúde Coletiva pela UFMG.
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (1): 33-40
33
Carlos José de Paula Silva, Efigênia Ferreira Ferreira, Liliam Pacheco Pinto de Paula, Marcelo Drummond Naves, Viviane Elisângela Gomes.
Introdução
A violência nas grandes cidades é um dos temas mais
discutidos atualmente no Brasil. Ela produz um grande número de vítimas, altera a arquitetura das cidades por meio
da construção de muros altos, grades nas janelas, manchetes
diárias na imprensa, gera medo e sensação de insegurança.
É inegavelmente um sintoma da vida contemporânea. Para
Gullo (1998), trata-se de um fenômeno que reflete o tipo de
sociedade e revela o contexto das relações sociais, consolidando as estruturas de poder, legais ou marginais, que resultam
da complexidade dos fenômenos sociais.
Ela é inerente ao comportamento humano e deriva da
agressividade instintiva e constitucional do homem (Vilhena
et al., 2002). Para Ridley (2000), a sociedade, ao mesmo tempo
em que gera, tenta restringir a expressão da agressividade e da
violência que ela mesma produz. Caiaffa et al. (2008) observam que, nas cidades contemporâneas, as condições urbanas
podem influenciar a saúde e o comportamento humano,
potencializando problemas sociais e violência. Para Velho
(2000), a urbanização acelerada, as aspirações de consumo,
que quase sempre são frustradas, e o desemprego concorrem
para um aumento das formas de violência.
O trauma maxilofacial é um tipo muito específico de
trauma e ocorre na face e na cabeça. Este, nas últimas quatro
décadas, tornou-se assunto inevitável para os profissionais de
saúde. Seu aumento surgiu associado à frequência crescente
da violência nas cidades. Esse tipo de trauma representa um
impacto na vida social, psíquica e profissional da vítima (Montovani et al., 2006). O trauma maxilofacial pode ser associado
à pouca proteção e à exposição dessa região do corpo, assim
como à tentativa de desfigurar a face das vítimas de agressão,
com o objetivo de afetar sua identidade e autoimagem. As
agressões na face estão relacionadas à função primordial que
esta desempenha na interação entre os indivíduos e também
por ser a cabeça uma região desprotegida, representando
cerca de 50% das mortes traumáticas (Mackensie, 2000). Arbenz (1988) relatou que as lesões faciais representaram 47%
dos traumas, sendo a maioria em decorrência de violência
interpessoal.
O presente estudo objetivou analisar o perfil dos traumas
maxilofaciais registrados em um hospital público municipal
de Belo Horizonte (MG). A partir da década de 1940, a população de Belo Horizonte aumentou vertiginosamente, e a cidade cresceu de forma desordenada. Atualmente, caracteriza-se
por uma expressiva expansão urbana com intensa periferização e elevado índice de criminalidade. Hoje, Belo Horizonte
é a 6ª cidade mais populosa do Brasil; em 2007, apresentava
uma população de 2.412.937 habitantes (Prefeitura de Belo
Horizonte, 2009).
34
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (1): 33-40
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal retrospectivo conduzido no Serviço de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial
do Hospital Municipal Odilon Behrens (HMOB), que é um
hospital de referência no tratamento dos traumas maxilofaciais em Belo Horizonte. Este estudo foi baseado em dados
pertencentes aos pacientes que sofreram trauma e foram
atendidos nesse hospital entre 1° de janeiro a 31 de dezembro
de 2007. Executou-se uma busca retrospectiva de todos os
atendimentos realizados no serviço. Os dados foram coletados
dos livros de registro dos plantões diurno e noturno. Nesses
livros, os profissionais registram, além dos dados clínicos sobre o trauma, também informações demográficas das vítimas
atendidas. Esses dados foram compilados em um formulário
construído especificamente para essa pesquisa, e a coleta de
dados foi efetuada por apenas um pesquisador. Foram excluídos os registros de vítimas de queda da própria altura, queda
de altura, acidentes com veículos de transporte terrestre (automobilísticos, motociclísticos, bicicletas e atropelamentos),
acidentes esportivos, acidentes ocupacionais e acidentes com
animais. Os eventos de violência interpessoal constituíram a
variável dependente e, como variáveis independentes, foram
considerados o tipo de trauma, a data, o período do dia, a
idade e o gênero da vítima.
Os eventos de violência interpessoal foram classificados
em: (1) agressão física resultante de chutes, socos, pedradas,
pauladas, utilização de objetos perfurocortantes, barras de ferro
e de mordedura humana; e (2) agressão por arma de fogo que
eram as agressões causadas por tiros de revólver e espingarda.
Foram registrados como período diurno os traumas ocorridos
do horário de 6h às 17h59 e noturno das 18h às 5h59.
Os tipos de trauma foram categorizados como: (1) fraturas simples (fs) – presença de apenas um traço de fratura;
(2) fraturas múltiplas (fm) – presença de dois ou mais traços
(Montovani et al., 2006); (3) traumas de partes moles (pm)
– presença de lacerações, cortes, abrasões com perda de
substância (Manganello-Souza, 2006); (4) traumas dentoalveolares (tda) – ocorridos nos dentes e tecidos de sustentação
(Andreasen et al., 2007); e (5) traumas cranioencefálicos (tce)
– caracterizados pelo comprometimento neurológico (Ribas,
2006). As análises envolveram estatísticas descritivas, análise
bivariada, teste do qui-quadrado, de Pearson e teste exato
de Fisher. Adotou-se como nível de significância o valor de
p≤0,05. O valor residual ajustado (z>1,96) foi utilizado para
a identificação das variáveis associadas. O software utilizado
foi o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão
17.0. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do
HMOB e recebeu o registro nº ETIC 352/08.
Perfil dos traumas maxilofaciais em vítimas de violência interpessoal: uma análise retrospectiva dos casos registrados em um hospital público de Belo Horizonte (MG)
Resultados
No período compreendido entre 1° de janeiro e 31 de
dezembro de 2007, foram atendidos no Serviço de Cirurgia
e Traumatologia Bucomaxilofacial do HMOB 1.759 vítimas
diagnosticadas com trauma maxilofacial. Desse total, 484
casos se referiam a vítimas de traumas decorrentes violência interpessoal. Dos 484 casos, 298 (61,8%) eram homens
e 186 (38,2%) mulheres. Foi encontrada diferença estatisticamente significativa entre os gêneros e os eventos de
violência interpessoal. Os homens estavam associados aos
traumas causados por arma de fogo e as mulheres às agressões físicas. O principal evento de violência interpessoal foi
a agressão física com 477 casos (98,5%) seguido por 7 casos
de agressão por arma de fogo (1,4%). Quanto à distribuição
dos casos por faixas etárias, a média de idade foi de 28,8
anos (±12,09) com intervalo de 11 meses a 86 anos e predominaram as vítimas compreendidas na faixa etária dos 21
aos 34 anos (46,0%).
De um total de 298 registros de homens vítimas de trauma
maxilofacial, 291 casos (97,7%) se referiram à agressão física
e em 7 casos os homens foram vítimas de agressão por arma
de fogo (2,3%). Todas as mulheres sofreram agressão física
(100,0%). Tanto homens (44,7%) quanto mulheres (58,1%)
sofreram majoritariamente trauma de partes moles. Apenas
os homens apresentaram registro de fraturas múltiplas e
trauma cranioencefálico. Quanto à distribuição dos casos
pelos períodos do dia, no período diurno ocorreram 94 casos
(19,4%) e no noturno 390 casos (80,6%). Tanto os homens
quanto as mulheres foram vítimas de trauma maxilofacial
predominantemente no período noturno: os homens com
242 casos (80,4%) e as mulheres com 150 casos (80,6%). Na
análise, não foi verificada diferença estatisticamente significativa entre eventos de violência interpessoal e períodos do
dia. Observou-se uma maior frequência de casos aos sábados
e domingos (44,6%). Os resultados da análise bivariada são
apresentados na Tabela 1.
Discussão
O estudo totalizou 484 casos de violência interpessoal
com comprometimento maxilofacial, representando 27,5%
do total de casos de trauma maxilofacial atendidos em 2007.
Tabela 1 - Relação entre os eventos de violência interpessoal segundo gênero, período do dia, faixas etárias, tipo de trauma e dias da semana
Agressão física
Gênero
Masculino
Feminino
Período
Noturno
Diurno
Idade
0 - 11
12 - 20
21- 34
35 - 59
60 - +
Tipo de trauma
pm
fm
fs
tda
tce
Dia da semana
Segunda
Terça
Quarta
Quinta
Sexta
Sábado
Domingo
Agressão por arma de fogo
Total
Valor de p
n(%)
R. aj.
n(%)
R. aj.
(n)
291(97,7)
186(100,0)
-2,1
2,1
7(2,3)
0(0,0)
2,1
-2,1
484
0,047
384(98,5)
93(98,9)
-0,3
0,3
6(1,5)
1(1,1)
0,3
-0,3
484
1,000
23(100,0)
90(98,9)
216(97,3)
142(100,0)
4(100,0)
0,6
0,3
-2,1
1,7
0,2
0(0,0)
1(1,1)
6(2,7)
0(0,0)
0(0,0)
-0,6
-0,3
2,1
-1,7
-0,2
482*
0,260
239(98,8)
13(92,9)
151(98,1)
71(100,0)
2(100,0)
0,4
-1,8
-0,6
1,1
0,2
3(1,2)
1(7,1)
3(1,9)
0(0,0)
0(0,0)
-0,4
1,8
0,6
-1,1
-0,2
483**
0,240
45(97,8)
49(96,1)
36(100,0)
76(98,7)
57(98,3)
100(99,0)
114(99,1)
-0,4
-1,6
0,8
0,1
-0,2
0,4
0,6
1(2,2)
2(3,9)
0(0,0)
1(1,3)
1(1,7)
1(1,0)
1(0,9)
0,4
1,6
-0,8
-0,1
0,2
-0,4
-0,6
484
0,724
pm: trauma de partes moles; fm: fratura múltipla; fs: fratura simples; tda: trauma dentoalveolar; tce: trauma cranioencefálico.
* Para duas vítimas não foi encontrado registro de idade; ** para uma vítima não foi encontrado registro de tipo de trauma.
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Carlos José de Paula Silva, Efigênia Ferreira Ferreira, Liliam Pacheco Pinto de Paula, Marcelo Drummond Naves, Viviane Elisângela Gomes.
A média diária foi de 1,32 casos, revelando que, aproximadamente, a cada 18 horas, uma vítima de trauma maxilofacial
decorrente de violência interpessoal recebeu atendimento no
HMOB em 2007. Os traumas maxilofaciais se concentraram
mais em homens que em mulheres, numa proporção de 1,6:1,
refletindo uma possível diferença de comportamento entre
gêneros. Historicamente, as taxas de envolvimento em episódios violentos é maior em homens que em mulheres (Valença
et al., 2010). A mesma observação pode ser feita com relação
às associações entre a agressão por arma de fogo e o gênero
masculino. Entretanto, a proporção de mulheres vítimas de
agressão tem mostrado uma evolução. As mulheres estão
cada vez mais expostas à violência; tal constatação é associada
ao aumento da violência nas cidades, à violência doméstica,
à maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, aos
novos hábitos e comportamentos sociais. Os achados do
presente estudo apontam nessa direção, pois foi encontrada
associação entre esse gênero e a agressão física. O aumento
na incidência de traumas maxilofaciais no gênero feminino
foi reportado em diversos estudos (Le et al., 2001; Davis et al.,
2000; Fenton et al., 2000).
Observou-se um predomínio das agressões físicas com
477 casos, na maioria caracterizadas por socos e chutes.
Também foram encontrados registros de um caso de agressão
com barra de ferro, um caso de paulada, um caso de agressão com objeto perfurocortante, quatro casos de pedrada e
dois casos de mordedura humana. Essas formas de agressão
expõem alguns aspectos peculiares da violência. Os casos de
agressão com barra de ferro, paulada e objeto perfurocortante apresentaram, segundo os registros, o gênero masculino
como vítima e agressor. Os registros de pedrada foram casos
que envolveram brigas de crianças e adolescentes. Nos dois
casos de mordedura humana, um se referiu a uma briga entre
mulheres e o outro a uma mulher que sofreu mordedura do
agressor durante violência sexual.
O predomínio de socos e chutes é amplamente reportado
na literatura. Shepherd et al. (1988) encontraram em estudo
na Inglaterra que os socos e chutes eram responsáveis pela
maioria dos traumas decorrentes de agressão física. No Brasil, Frugoli (2000) relatou que os socos e chutes lideraram
como causa de trauma maxilofacial. Shepherd et al. (1988),
em um segundo estudo na Inglaterra, citaram que 47% das
vítimas relataram ter sofrido mais de um tipo de golpe, sendo que 72% apontaram os socos e chutes como a principal
forma de agressão física. Le et al. (2001) observaram que os
socos foram as formas mais comuns de agressão com 67%
dos casos encontrados em estudo nos Estados Unidos. O
predomínio dos socos e chutes pode explicar os tipos de
trauma encontrados em nosso estudo: trauma de partes mo36
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (1): 33-40
les (50,1%), fraturas simples (32,0%) e trauma dentoalveolar
(14,7%). O padrão dos traumas depende fundamentalmente
do agente, da força e da direção do impacto. Esses meios
utilizados para agressão são meios de pequena ou média
intensidade e, quando desferidos frontal ou lateralmente,
podem determinar fraturas de nariz, mandíbula, dentes,
cortes e hematomas (Manganello-Souza & Rocha, 2006;
Manganello-Souza & Luz, 2006; Silveira, 2006).
A associação entre agressão por arma de fogo e o gênero
masculino encontrada no presente estudo leva a ressaltar a
importância de se considerar esse tipo de etiologia devido ao
seu poder de destruição da face, mesmo ocorrendo com uma
frequência inferior quando comparado à agressão física. Para
Hollier (2001), esses ferimentos podem resultar em consequência devastadora para a vítima, do ponto de vista estético e
funcional. O autor encontrou, em estudo com 84 pacientes
nos Estados Unidos, que 75% das vítimas de arma de fogo
necessitaram de intervenção cirúrgica e, em muitos casos, de
procedimentos complexos para a reconstrução facial. Além
disso, o risco de contaminação é bastante elevado, em virtude
dos corpos estranhos que penetram na região do ferimento
com a força do projétil (Ernst et al., 2009).
No Brasil, existe uma particularidade com relação aos
traumas de face em decorrência de agressão por arma de
fogo, principalmente quando o fator motivador é o uso ou o
tráfico de drogas. Quando um usuário de drogas possui dívidas com algum traficante e não consegue pagá-la, frequentemente é assassinado com tiros na face. Esse procedimento
por parte dos traficantes é carregado de simbolismo, sendo
considerado um código. Nesses casos, o objetivo é mostrar
aos demais devedores que a dívida sempre deverá ser paga,
de uma forma ou de outra, e que aquela morte foi, na realidade, uma execução que frequentemente é citada como um
acerto de contas. O fato de o estudo ter encontrado que as
agressões por arma de fogo foram apenas 1,4% dos casos não
permite apontar que esse tipo de agressão é pouco frequente
na cidade de Belo Horizonte. Muitas vítimas fatais não chegam a receber atendimento nos hospitais, pois esse tipo de
agressão é altamente letal. Em 2006, 33.284 pessoas morreram vitimadas por arma de fogo no Brasil e Belo Horizonte
se posicionou entre as cidades com os maiores números de
vítimas, com um total de 1.168 mortes. No mesmo ano as
mortes por armas de fogo representaram 74,4% dos casos
de homicídio quando comparadas a outros meios utilizados
(Waiselfisz, 2008). As armas de fogo foram uma das principais causas de trauma e morte também nos Estados Unidos
e o uso de drogas estava associado à maioria dos casos, sugerindo relação entre uso e tráfico de drogas, armas de fogo e
assassinatos (Galea et al., 2002).
Perfil dos traumas maxilofaciais em vítimas de violência interpessoal: uma análise retrospectiva dos casos registrados em um hospital público de Belo Horizonte (MG)
No estudo, predominaram as vítimas com idade entre 21
e 34 anos, ou seja, uma população caracterizada por jovens,
formando um quadro bastante preocupante e exigindo uma
reflexão da sociedade, que deve compreender as implicações
da violência nas relações sociais. Resultados similares foram
encontrados nos estudos de Laski et al. (2004) e Karstein et
al. (1996). As vítimas estão teoricamente em uma fase da vida
econômica e social muito produtivas. No Brasil, as vítimas de
homicídio na população jovem, no ano de 2007, representaram 36,6% do total de homicídios. O envolvimento dessa
parcela da população nos casos de homicídios apresentou um
crescimento ao longo dos anos, atingindo seu pico na última
década. Entre as capitais, Belo Horizonte passou do 23° lugar,
em 1997, para o 4° lugar em 2007 (Waiselfisz, 2008). O número de casos encontrados em neste estudo deve ser interpretado
como um sinal de que a população jovem está se envolvendo
mais em atos violentos, e não somente pelo impacto desse
tipo de trauma. Esses casos possuem um caráter inequívoco
da gravidade da violência e da urgência de políticas voltadas
para a redução da violência que envolve população jovem. São
necessárias outras pesquisas objetivando investigar os traumas decorrentes de violência em outras partes do corpo.
Associado a isso, características urbanas das grandes cidades brasileiras, como periferização, exclusão social e deterioração das condições de vida lançam muitos jovens no mundo
do crime e da violência (Feffermann, 2006; Laranjeira et al.,
2008). Alguns jovens entram nas estatísticas de violência
como vítimas e outros como agressores. Para Horwitz (2001),
a privação econômica está intimamente associada à violência
interpessoal e, consequentemente, às agressões. O fato de o
estudo não ter encontrado associação estatisticamente significativa entre os eventos de agressão e as faixas etárias pode sugerir que a violência está se banalizando em nossa sociedade,
ou seja, torna-se algo normal do cotidiano e atinge a todos.
Assim, tornamo-nos vulneráveis a ela. Esse argumento pode
ser sustentado pelo fato deste estudo ter encontrado vítimas
em todas as faixas etárias e expostas a situações de violência
em condições bem distintas, podendo variar daquela sofrida
nas ruas, bares, escolas ou até em locais de trabalho, durante
o dia ou à noite, até aquela sofrida no interior das residências.
Esses locais ou ambientes acabam por estabelecer teoricamente um perfil de vitimização característico no que diz respeito
à faixa etária e ao gênero das vítimas.
Os resultados mostraram que existiu uma clara diferença
nos padrões de violência entre os gêneros. Os homens, muitas
vezes, envolvem-se em episódios de agressão e luta corporal.
Confirmando essa observação, o estudo mostrou que apenas
os homens apresentaram tipos de trauma mais severos, como
as fraturas múltiplas e trauma cranioencefálico. Esses tipos de
trauma apresentam um grande potencial para ameaça à vida
das vítimas e se concentraram apenas no gênero masculino.
Traumas como o cranioencefálico podem potencializar a possibilidade de morte da vítima e as fraturas múltiplas podem
comprometer esteticamente, além de prejudicar as funções
mastigatória e ventilatória, nos casos de fraturas na região nasal, e a acuidade visual, nas fraturas da cavidade orbital (Ernst,
2009). No mesmo ano deste estudo, a população masculina no
Brasil representou 92,1% das mortes por homicídio quando
comparada a feminina (Waiselfisz, 2010). As mulheres, frequentemente, são vítimas de violência doméstica, o que pode
explicar o predomínio dos casos de trauma de partes moles
(58,1%) para esse gênero. Estudos apontam que, em geral, as
mulheres são vítimas de violência praticadas pelo marido, namorado ou ex-companheiros (Krug et al., 2002). Os traumas
de partes moles são de pequena intensidade e dificilmente
colocam em risco a vida da vítima. Se levado em consideração
o Código Penal Brasileiro (2002), que utiliza a definição de
lesões de natureza leve, grave ou gravíssima, provavelmente
tais lesões seriam classificadas como leves.
Nos episódios de violência doméstica, muitas vezes, os
traumas maxilofaciais são causados por socos e tapas. Nesse
tipo de violência, a intenção pode ser a de não deixar marcas
ou cicatrizes importantes do ponto de vista físico, mas subjugar e fragilizar emocionalmente as vítimas. Como a classificação das causas de trauma maxilofacial nos hospitais é baseada
no relato da vítima, é possível que muitos casos registrados
como queda foram, na verdade, eventos de violência doméstica ou outras formas de violência contra a mulher. Nesses
casos, não é incomum que o agressor acompanhe a vítima
durante o atendimento, na tentativa de intimidar a mulher,
impedindo que ela revele a verdadeira causa do trauma. Um
aspecto importante nesses casos é que os profissionais de
saúde envolvidos no atendimento estejam capacitados não
apenas a tratar o trauma, mas também a acolher essa vítima,
inclusive orientando sobre a efetivação de uma denúncia e
notificação da violência. Há que ser considerado também que,
muitas vezes, os vestígios de agressão podem ser minorados
propositalmente pelos agressores, evitando que esses sejam
enquadrados na execução da lei 11.340, mais conhecida como
Lei Maria da Penha (2006a).
A normalidade do indivíduo é refletida pela integração da
face. Por meio dela, as pessoas expressam seu estado de saúde
e suas emoções. Quando a face sofre alguma alteração estética
ou funcional em decorrência de trauma, a probabilidade de
repercussões psicológicas é bastante grande (Silveira, 2005).
Apesar de não ter ocorrido diferença estatisticamente
significativa entre períodos do dia e os casos de agressão, a
maior frequência dos casos no período noturno é uma inforCad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (1): 33-40
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Carlos José de Paula Silva, Efigênia Ferreira Ferreira, Liliam Pacheco Pinto de Paula, Marcelo Drummond Naves, Viviane Elisângela Gomes.
mação importante na condução de políticas que abranjam
a segurança em Belo Horizonte. Peixoto (2003), em estudo
que investigou os determinantes da criminalidade na mesma
cidade apontou que as pessoas que frequentavam as ruas no
período noturno estavam mais expostas à agressão do que os
indivíduos que transitavam durante o dia. Para a autora, os
crimes podem ser motivados após o uso de drogas e álcool,
que são consumidos em maior quantidade à noite.
Para Warburton et al. (2006), locais com grande aglomeração de pessoas, quando associado ao uso de álcool, são
potencialmente importantes na geração de traumas maxilofaciais em decorrência de desentendimentos e agressões. Para
Ross (2001), o risco de vitimização por violência para indivíduos que passam mais tempo em espaços públicos durante a
noite e entre desconhecidos é maior.
Os casos de agressão contra as mulheres podem encontrar
explicação no aspecto citado por Stron (1992). O autor considera
que o período noturno coincide muitas vezes com o horário
em que os homens eventualmente chegam alcoolizados em
suas residências podendo, em virtude disso, agredir esposas ou
companheiras e as crianças presentes no domicílio. Segundo Milani (2008), a violência intrafamiliar é um fenômeno complexo
que envolve questões como a desigualdade social e os prejuízos
na qualidade de vida, sendo evidenciado pelo abuso de poder.
Apesar de ocorrer com frequência, a violência contra mulheres é
difícil de ser reconhecida, pois é cercada pelo medo, dor e silêncio das vítimas (Brasil, 2006b). As expressões dessa violência são
toleradas, silenciadas e desculpadas pela dependência financeira
das mulheres em relação aos homens ou por explicações do tipo:
“eles não controlam seus instintos”, “mulheres gostam de homens
rudes” etc. (Gomes & Pereira, 2005).
O estudo mostrou que os finais de semana apresentaram as
maiores frequências de agressões; entretanto, quando observados os registros nos dias úteis, pode-se perceber que os casos estavam distribuídos de forma relativamente homogênea,
o que pode explicar a ausência de diferença estatisticamente
significativa entre as variáveis (Tabela 1). Esse resultado pode
sugerir que a população estava exposta a fatores de risco distintos para os traumas, como assaltos, violência doméstica,
traumas associados à violência sexual ou até mesmo agressão
por causa ignorada.
A inexistência de diferença estatisticamente significativa
entre os eventos de agressão e as variáveis ‘período do dia’ e
‘dias da semana’ pode ser explicada também pela dinâmica
urbana de Belo Horizonte, que pode imprimir um padrão de
distribuição relativamente uniforme para os traumas maxilofaciais. Belo Horizonte é exemplo claro disso; essa cidade
é conhecida no Brasil por possuir uma movimentada vida
noturna, com muitos bares.
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Para Coelho Junior et al. (2008), grande parte dos traumas
maxilofaciais ocorre principalmente nos finais de semana
devido ao maior consumo de álcool para diversão e lazer. A
maior frequência dos traumas nos finais de semana associados ao período noturno coincide com evidências encontradas
em outros estudos (Freitas et al., 2008; Schroder et al., 1992;
Shepherd et al., 1990; 1987). As bebidas alcoólicas são cultural e socialmente aceitas em muitos países. Existem outros
fatores que podem levar a um aumento do consumo de álcool
como a fácil disponibilidade, o preço accessível para grande
parte da população e a grande publicidade dada às bebidas
(Caetano & Laranjeira 2006). O consumo de álcool pode
alterar a percepção do risco de agressão, induzir a um comportamento violento ou aumentar a vulnerabilidade a uma
agressão (Shepherd et al., 1987). Entretanto, não foi possível
verificar a influência das bebidas alcoólicas nem das drogas
nos casos de agressão encontrados no estudo pela falta de
registros específicos, como de resultados de exames toxicológicos. Nos hospitais brasileiros não é um procedimento de
rotina a investigação ou o registro das informações sobre a
ingestão prévia de álcool antes do trauma, principalmente nos
casos menos graves. Essa informação depende do relato da
vítima, que pode omiti-la, comprometendo dados essenciais
no esclarecimento dos eventos de violência.
Abordando as questões socioeconômicas, o hospital onde
foi desenvolvido o presente estudo está localizado próximo a
uma das favelas mais violentas de Belo Horizonte. Os habitantes apresentam precárias condições de qualidade de vida,
renda, educação e saúde, o que pode promover o incremento
das agressões. Além disso, essa favela é dominada pelo tráfico
de drogas, fato que deve ser encarado como um verdadeiro
sistema de retroalimentação dos casos de agressão ao longo
do ano. Mesmo não sendo objetivo deste estudo, foi possível
perceber, segundo o relato dos profissionais, dois aspectos importantes. O primeiro é que muitos pacientes atendidos eram
residentes dessa favela ou do entorno. Segundo, é que esses
profissionais encontraram muitas dificuldades na identificação da veracidade das informações principalmente quanto à
causa dos traumas – o que, em outras vezes, de acordo com os
relatos, levava à omissão desses profissionais na tentativa de
identificação e registro dos casos. Esses profissionais temiam
retaliação dos envolvidos na agressão. Esse aspecto pôde ser
verificado pela ausência de alguns registros observados durante a coleta dos dados. As situações de violência, muitas
vezes, expõem as vítimas ao constrangimento e à vergonha,
o que pode conduzir a uma notificação imprecisa dos casos.
Como já citado, muitos casos apontados como queda podem,
na verdade, abrigar episódios de violência. Esse aspecto pode
ser apontado como uma limitação do presente estudo.
Perfil dos traumas maxilofaciais em vítimas de violência interpessoal: uma análise retrospectiva dos casos registrados em um hospital público de Belo Horizonte (MG)
Conclusão
A sociedade brasileira parece estar imersa em graves violações dos direitos humanos, principalmente nas grandes cidades, em decorrência da violência. Assim, os casos de agressão
encontrados no estudo não devem ser tratados com frieza ou
desconsiderados, pois, nestes casos, estão implícitas as histórias
de vida de cada vítima. Os registros de traumas maxilofaciais
encontrados não deixam apenas sequelas físicas, mas podem
deixar também marcas emocionais profundas e causam um
impacto do ponto de vista econômico para a saúde pública,
exigindo profissionais altamente capacitados, procedimentos
de alta complexidade e alto custo. O número de homens e mulheres agredidos, os casos que atingiram todas as faixas etárias
indiscriminadamente podem significar uma pequena amostra
do que acontece silenciosamente em muitas outras cidades
do Brasil, pois é possível considerar que muitas vítimas não
buscam atendimento. São necessárias novas investigações, com
outras formas de abordagem desse tema,
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Recebido em: 23/06/2010
Aprovado em: 18/02/2011
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