POR QUE OS LOUCOS ESCREVEMOS LIVROS TÃO BONS
Vila do Triunfo, 19 de abril de 1829
Nasce José Joaquim de Campos Leão, filho natural de Maria Joaquina e de Joaquim de
Campos Leão. É o segundo e último filho do casal. O primeiro filho nasceu morto, de causa
desconhecida.
Joaquim tinha um armazém de secos e molhados e Maria Joaquina era dona de casa. O
pai de José Joaquim possuía um temperamento instável. Ora era cortês com os fregueses, ora
desrespeitoso, acusava-os de velhacaria, de só quererem comprar fiado e os enxotava de sua
loja. Os clientes não protestavam, estavam acostumados com aqueles rompantes periódicos e o
seu estabelecimento era o único comércio da pequena vila. Depois, sabiam que iriam voltar,
seriam bem recebidos e não haveria incidentes até a próxima crise.
José Joaquim foi colocado para trabalhar no armazém quando tinha onze anos de idade,
após ter concluído o primário. Ficou responsável pelo caixa, pois seu pai cismava que estava
errando nas contas e os fregueses, lucrando com a sua ignorância. Com um filho estudado,
pensava, ninguém lhe passaria a perna. José Joaquim fazia as contas e devolvia o troco certo.
Não demorou muito para ser dispensado por seu pai, que não era tão curto de inteligência quanto
parecia. Joaquim achou que daquele modo estava perdendo mais dinheiro do que antes e
reassumiu o caixa. Pensou que o filho teria mais futuro na escola do que no comércio. Com os
estudos, poderia chegar a professor ou algo que lhe valesse mais. No comércio, era um
ignorante.
José de Campos Leão, o avô, havia imigrado para o Brasil no final do século XVIII,
vindo de uma pequena aldeia no norte de Portugal, entre o Minho e o Douro. Nunca teve em
toda a sua vida uma profissão certa porque se julgava um cientista incompreendido. Era dado a
inventividades. Dentre as inúmeras invenções que acumulou ao longo dos anos destacavam-se
a máquina de incutir razão na cachola dos doidos, uma engenhoca para domesticar raparigas e
um realejo que não tocava música nem dava a sorte.
Joaquim desconfiava que José não batia bem ou, então, estava ficando esclerosado. José
Joaquim tinha certeza que o avô era um gênio. Talvez não estivesse tão errado como o seu pai
supunha. José, pouco antes de morrer, inventou um aparelho capaz de reproduzir imagens em
movimento, num lençol estendido, por meio de uma série de fotografias. O invento do velho
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José, criado em 1845, foi o precursor do cinematógrafo, desenvolvido somente meio século
depois pelos irmãos Lumière.
Röcken, Saxônia, 15 de outubro de 1844
Nasce Friedrich Wilhelm Nietzsche, filho legítimo de Franziska e Karl Ludwig
Nietzsche. É o primogênito. Dois anos depois, nasce a irmã, Elisabeth. Após mais dois anos,
nasce Joseph, o caçula, que morre sem completar três anos de idade, de causa desconhecida.
Karl é o pastor da localidade e, como a mulher, filho de pastor luterano. Ministra cultos
protestantes na pequena capela perto do riacho. Ele é muito carismático. Os seus cultos atraem
não só os habitantes de Röcken, mas os dos lugarejos vizinhos, que disputam os bancos da
capela na manhã de domingo.
No lar, Karl é um homem duro com a mulher e com os filhos. E com Friedrich,
particularmente, Karl é mais rígido ainda. Deseja torná-lo pastor, como ele, seu pai e seu sogro.
Cuida pessoalmente da educação do filho mais velho e da sua formação religiosa. Aos quatro
anos de idade o menino aprende as primeiras letras. Aos cinco, ouve preleções sobre moral,
ética e religião. Aos seis, as primeiras noções de grego, latim e retórica.
Quando não está ocupado com o filho, Karl está reconfortando os fiéis. Em momentos
de desespero, muitas mulheres buscam o amparo do jovem pastor. Costuma recebê-las durante
a semana, no meio da tarde, uma a uma. Solteiras, casadas ou viúvas, moças ou velhas, bonitas
ou feias, ele não deixa de acolher uma sequer. Há sempre um lugar no coração do bom pastor
para uma pobre ovelha merina.
Franziska o considera um homem virtuoso. Karl costuma se penitenciar ao chegar em
casa todas as noites. Mal sabe ela das razões de tanta autoflagelação.
Em 1849, Karl cai doente aos trinta e seis anos. Após uma convulsão, parece ter ficado
louco. Morre poucos dias depois por “amolecimento do cérebro”, de acordo com o diagnóstico
de um dos maiores especialistas da época. Tudo indica que tenha sido mais uma vítima da sífilis.
No mesmo dia da morte de Karl, o pequeno Friedrich Wilhelm, apesar da pouca idade,
promete a si mesmo que não terá a mesma profissão do pai e dos avôs.
Vila do Triunfo, 17 de abril de1845
José Joaquim tem quinze anos. Irá fazer dezesseis dali a dois dias. Vai terminar o
secundário no final do ano. Divide seu tempo entre a escola pela manhã e o pastoreio à tarde.
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À noite, janta cedo e vai dormir em seguida. Ou, pelo menos, vai para a cama assim que
anoitece, com as galinhas, como diz sua mãe, ainda que não durma logo.
Mas José Joaquim não tem interesse por galinhas. E, sim, por cabras. Não dorme logo
porque se masturba duas ou três vezes por noite, pensando nas cabras que levará para pastar no
dia seguinte. Elas ficam alvoroçadas quando ele pega o cajado e entra no curral, tocando-as
para fora, em direção ao pasto. Chama cada uma pelo nome. Beth, Chica, Salomé etc. Carlos,
o bode, já investiu contra ele dezena de vezes. Daí ser mantido constantemente amarrado.
Seu pai havia comprado os animais de um criador vizinho, pensando em vender leite e
queijo de cabra no armazém para aumentar a renda da família. As cabras já deram crias, poucas,
é claro. Leite mesmo, nenhum. Joaquim desconfia que o filho esteja fazendo mal a elas. O pai
não deixou de notar o alvoroço que as cabras faziam quando o filho se aproximava. Interrogou
o filho, que negou molestar os animais. Nem uns safanões resolveram. José Joaquim não abriu
a boca.
Seu pai achou por bem contratar um menino para pastorear os animais, com a desculpa
de poupá-lo do serviço braçal, porque poderia dispensar mais tempo para os estudos. José
Joaquim pensou em protestar, mas assim confessaria a culpa, porque há pouco tempo havia
pedido ao pai para não arrumar mais tarefas para ele, pois iriam atrapalhar seus planos de se
tornar professor. Após muito refletir, achou melhor não dizer nada.
Na noite seguinte, dia do seu aniversário, o pai entrou no seu quarto. Haviam
comemorado a data com um farto jantar. A mãe se recolheu cedo, pois Joaquim havia prevenido
a mulher de que sairia com o filho mais tarde. Um assunto de homens, limitou-se a dizer ao sair
de casa.
Partiram a cavalo na direção de Nossa Senhora da Ajuda, uma vila a quinze quilômetros
de distância. Percorreram a estrada de barro que separava as duas vilas rapidamente. Chegaram
ao Lar de Maria, o prostíbulo mais próximo da Vila do Triunfo e apearam dos cavalos. Joaquim
entrou primeiro, seguido do filho, saudou as mulheres e piscou um olho para Maria, a cafetina.
Apresentou o rapaz à mulher, enquanto ela mandava chamar a polaca mais moça do lugar. O
pai falou que ele precisava conhecer uma cabra de verdade. José Joaquim não sabia se o pai
estava fazendo graça dele ou falando sério.
Quando a moça chegou à sala, José Joaquim corou até não poder mais. Não sabia onde
colocar as mãos, nem para onde olhar. Sem demora, ela o levou para um dos quartos e ele
descobriu um passatempo melhor que as cabras.
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A partir daquele dia, José Joaquim passou a dormir mais tarde. E, poucas semanas
depois, seu pai começou a vender laticínios no armazém.
Santo Antônio da Patrulha, 1862
Vive com a mulher e a filha na vila desde o início do ano. Residem em uma meia-água
na Rua da Cadeia, sem número.
É professor de instrução primária do Grupo Escolar Padre Ernesto. Tenta implantar
algumas modificações no ensino do português por achá-lo demais complicado para as crianças
aprenderem. Tem algumas discussões com o diretor do grupo escolar sobre a reforma do
método de ensino.
Campos Leão é réu em um processo movido pelo Juízo da Comarca de Porto Alegre.
Acusado de alienação, muda-se com a família para Alegrete.
Alegrete, 1863
Nasce a segunda filha do casal. Instalam-se em uma casa de cinco cômodos na Rua da
Farmácia, número 22.
Consegue empregar-se como mestre-escola do Educandário Oliveira Pinto, por
recomendação do primo, delegado de polícia, mas as aulas só começam dali a um mês. Nesse
meio-tempo, trabalha como revisor do jornal local, função que acumula com a de professor por
dois meses.
Sem o conhecimento da diretora do educandário, promove o ensino do PortuguêsLeonino, matéria de sua autoria, em que subverte as regras da gramática tradicional.
Os alunos terão que ser alfabetizados novamente. Alguns estudantes não saberão ler ou
escrever pelo resto de suas vidas.
Os assinantes do jornal pedem a sua substituição, alegando que as notícias são ilegíveis.
Novamente acusado de alienação, Campos Leão é réu em um segundo processo movido
pelo Tribunal de Relação da Comarca de Porto Alegre. Inexplicavelmente, foge com a mulher
e as duas filhas, justamente para a cidade onde está sendo processado.
Porto Alegre, 1864
Passam a morar em um sobrado na Rua da Santa Casa, número 111, centro da cidade.
A mulher fica grávida da terceira filha do casal no início do ano. Não demora a achar
emprego. Torna-se professor de português do Liceu de Humanidades. Por ora, decide não
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apresentar o seu Manual do português-leonino, com receio de não ser bem recebido pela
comunidade de professores locais.
Frequenta os círculos intelectuais. Reúne-se com as novas amizades nos bares e cafés
da capital, após as peças de teatro. Pensa em escrever algumas peças, mas não se anima a tanto.
Diversas contribuições n’O Tapa, um jornal literário de vanguarda.
Estimulado pela boa recepção dos seus trabalhos literários, decide submeter seu manual
à apreciação dos colegas em um seminário de línguas realizado no liceu. Constrangimento.
Uma professora passa mal quando ele propõe que a palavra sexo seja escrita com qs no lugar
do x. A sua exposição é interrompida e o diretor o dispensa no ato de suas funções.
Campos Leão é réu mais uma vez em um terceiro processo movido, então, pelo Supremo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Decide não mudar mais de cidade e contratar um
advogado para se defender.
Santo Antônio da Patrulha, Alegrete e Porto Alegre, 1866
José Joaquim de Campos Leão reúne poemas, peças de teatro, esboços literários,
confissões, cartas de amor, reflexões políticas, morais e éticas, anúncios de jornal, máximas e
ensaios escritos ao longo de sua vida em nove volumes denominados Ensiqlopédia qorposantense.
Escreve dezessete peças de teatro entre 31 de janeiro e 16 de junho. As peças encontram-se no
volume IV da Ensiqlopédia.
O nome de alguma das peças: O hóspede atrevido ou O brilhante escondido, A
impossibilidade de santificação ou A santificação transformada, Dois irmãos, Duas páginas
em branco, Mateus e Mateusa, Hoje sou um; e amanhã outro, Eu sou vida; eu não sou morte,
A separação de dois esposos, O marido extremoso ou O pai cuidadoso, Certa entidade em
busca de outra.
Depois de hesitar longamente entre grafar a primeira letra do pseudônimo com C ou
com Q, opta pela segunda e passa a assinar Qorpo-Santo.
Alegrete, 1866
Propõe, no volume IX da Ensiqlopédia, a releitura dos Evangelhos.
Alegrete e Porto Alegre, 1866
Trecho final do volume II:
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Com vistas a tronar, digo, a tornar nossa língua, o português, uma língua
realmente pátria, dado que essa língua falada pelo nosso povo foi importada d’alémmar, pois a nossa língua original era o tupi-guarani e, para não ficarmos apátridas
linguísticos, ou seja, sem uma língua nem outra, sem o português exportado pelos nossos
patrícios de Portugal nem o tupi-guarani falado pelos índios e jesuítas que aqui
estiveram, proponho uma reforma ortográfica do léxico, visando a deixar mais palatável
o “nosso” idioma.
Em virtude do exposto acima, apresento-lhes as humildes sugestões de um
mestre-escola, que tanto lutou para fazer mais simples aquilo que os doutores do meu
tempo insistiram em complicar sem razão alguma para má sorte dos analfabetos e,
principalmente, para desespero dos alfabetizados desse país.
Primeiro, eliminemos as letras sem serventia de nosso vocabulário. Comecemos
pelas letras importadas dos estrangeiros. Lancemos nas lixeiras o k, o w e o y.
Adeus kabuki, kepleriano, ki, kilt, kimberlito, king, kirsch, Kjökkenmödding,
klaxon, Kümmel, kyogen e Kyrie eleison.
Adeus também water closet, Weltanschauung, wesleyanismo, westphalense,
whig, willemita, witherita, wollastonita, writ, W.S.W., wulfenita, wurtzita e
wycliffismo.
E, por fim, adeus yang, yb, yd, yin e yin-yang.
Terminada
a
limpeza
anglo-germano-greco-nipo-franco-austro-russo-
neerlandesa, passemos à faxina brasileira.
Comecemos pela letra s, de sexo, aliás, seqso, com q de qorpo-santo interposto,
a separar a sílaba feminina, o se-, da sílaba masculina, o -so, para que ambas as sílabas
do substantivo, ou melhor, do Verbo, o homem e a mulher, não caiam em tentação e não
conspurquem o Santo Nome do Senhor com sujidades mundanas. Desprezemos o x, essa
letra que invoca as formas lúbricas da mulher oferecida, as pernas erguidas no leito a
revelar, abaixo, o ânus desfolhado, e, acima, a vagina enegrecida.
E, por tocarmos nesse assunto, passemos depois à letra v, de vaghina, com h de
homem de entremeio, mas também, h de hosana, hino e ramo bento do Domingo de
Ramos, início da Semana Santa, quando Cristo entrou em Jerusalém. Inqorporemos o h
na vagina para deixá-la mais cândida e virginal.
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E, continuando, excluiremos o acento circunflexo de ânus. Por que fazer a
circunflexão do anus, isto é, dobrá-lo em forma de arco? Não bastam a sua forma
circular e seu som nasalado, ainda querem fazê-lo arquejar, a dar seus últimos suspiros?
E, se retiramos o acento do ânus, podemos também tirar o s do plural, pois qual é a
necessidade de designar no plural aquilo que, em nosso qorpo, é tão singular? E quem
exclui o s, exclui do mesmo modo o u, porque essa letra não reproduz com perfeição a
forma do órgão que ela representa e inclui o o em seu lugar, o de orifício, letra esta
muito mais apropriada para nomear o dito cujo. E, então, do ânus passamos ao ano, não
só o intervalo de tempo correspondente a uma volta da Terra em torno do Sol, senão,
também, quando o n é duplicado, o anno Domini, ou seja, no ano do Senhor. Não sem
razão, o oposto também é verdadeiro: quando o Senhor é convosco, ele está no meio de
nós.
E, por fim, para concluir o léxico sacro-profano da ensíqlica qorpo-santina,
ressuscitaremos o h de pênis, tornando-o phênis, aquela ave egípcia secular que, se
ardida em fogo, renasce das próprias cinzas. Nada como um pouco de mitologia para
desfazer o maior de todos os mitos, isto é, o de que o pênis um dia morre e não mais se
levanta. Isso pode ser verdade para os pênis sem h, mas não para os phênis qorposantenses, imortais enquanto duros. E duros graças aos qorpos cavernosos e ao qorpo
esponjoso.
Hospício D. Pedro II, Rio de Janeiro, e a bordo do Sainte-Hélène, 1868
Por mando do Meritíssimo Senhor Juiz de Direito Titular da Segunda Vara Cível da
Comarca de Porto Alegre, Qorpo-Santo é levado à corte para que médicos psiquiatras possam
proceder ao exame de sanidade mental, uma vez que as localidades de Santo Antônio da
Patrulha, Alegrete e Porto Alegre não possuem peritos em tal especialidade.
Qorpo-Santo se encontrava bastante exasperado com a ida ao Rio de Janeiro. Embarcou
a contragosto, acompanhado de um oficial de Justiça. Na primeira entrevista com o perito,
talvez pela contrariedade, exaltou-se, afirmou que o médico era no mínimo tendencioso e o
ameaçou com um processo por calúnia e difamação. Batendo com o punho na mesa, saiu da
sala dizendo que estava voltando para o Rio Grande do Sul.
Acabou sendo internado no pavilhão Calmeil por uma semana. Nos primeiros dois dias,
divide o quarto com outro interno, Frederico Guilherme Neto. São muito parecidos, tanto física
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quanto psicologicamente, a não ser pela barba que Qorpo-Santo deixou crescer e pelo bigode
de Frederico Guilherme, que é mais vasto.
Ambos passam sem dormir as duas noites. Escrevem incansavelmente. Um, a obra que
iria abalar toda a filosofia. O outro, um tratado sobre a gemelidade bivitelina, que não chegou
a ser publicado.
No terceiro dia, Qorpo-Santo pede para trocar de quarto. Alega ao enfermeiro chefe que
não tem nada contra si, amor-próprio não lhe falta, mas não consegue conviver intimamente
com duas pessoas tão semelhantes a ele mesmo naquele quarto tão pequeno.
É transferido para outro, onde tenta conviver em harmonia apenas com Campos Leão.
No terceiro e no quinto dia de internação é examinado pelos psiquiatras. Dois outros
peritos foram designados. A entrevista inicial é feita por doutor José de Campos e a subsequente
por doutor Joaquim Leão. Apesar da semelhança dos nomes e sobrenomes, não há
consanguinidade entre os peritos e o examinando, o que poderia colocar a perícia sob suspeição.
No sétimo dia, após a reunião para discussão do caso, os doutores José de Campos e
Joaquim Leão emitem o seguinte parecer, que consta no processo incidental de insanidade, do
qual foram selecionados os trechos mais representativos:
Há, de fato, uma exaltação cerebral, por assim dizer, que o acomete de tanto em
tanto tempo, com periodicidade estimada anual, fases nas quais há uma expansão do seu
estado de espírito, com a autoestima inflada e certa elação do humor acompanhada de
aceleração do curso das suas ideias, cujo conteúdo está intimamente relacionado a
aspectos de grandeza presentes em sua personalidade. Pode-se observar, também, nesses
períodos, que variam de poucos dias a não mais que uma ou duas semanas, uma
loquacidade desmedida, hiperatividade e necessidade diminuída de sono, que, em
conjunto, contribuíram para o surgimento de uma monomania, no caso em questão, o
exercício da escrita, a dar vazão a esse estado de energia aumentada. Em outras fases,
ao invés de escrever dia e noite incansavelmente, direciona todo o seu élan para a esfera
sexual, que resulta em um estado de lubricidade ímpar, seguido posteriormente de culpa
e expiação.
Mas nada indica no seu organismo um estado mórbido permanente, como por
exemplo, a citada prodigalidade, a pôr em risco o seu patrimônio e o de sua família,
motivo maior deste pedido de interdição. Longe de haver vantagem de qualquer ordem
que seja na conservação deste senhor em um asilo para loucos (...); ao contrário, a
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obstrução de sua liberdade, as contrariedades pelas quais tem passado e, acima de tudo,
a ideia que tanto o compunge de que o conservem recluso porque o julgam um louco
furioso, são causas muito poderosas que podem agravar seu incômodo com repercussões
inimagináveis para o seu estado mental.
Assim sendo, recomendamos, então, ao Meritíssimo Senhor Juiz de Direito
Titular da Segunda Vara Cível da Comarca de Porto Alegre que Vossa Excelência (...).
Ao final de uma semana Qorpo-Santo tem alta do hospício e volta para o Rio Grande do
Sul a bordo do vapor Sainte-Hélène. O comandante registra uma nota no diário de bordo
referente à madrugada do dia 18 de junho:
Reclamações dos passageiros das cabines vizinhas à do senhor José Joaquim
Leão. Queixam-se do comportamento inadequado do dito passageiro. De acordo com o
Dr. Frederico Guilherme, que foi o primeiro a vê-lo às 3h15min no convés, o Sr. José
Leão estava em trajes impróprios e pendurado na escotilha de sua cabine e, segundo o
Sr. Guilherme Frederico, que o viu à hora mais avançada, por volta das 4h50min, ele
estava completamente desnudo, a dar piruetas no convés da embarcação. Ordenei que
dois marinheiros fossem averiguar.
Café do Walter, Porto Alegre, 1868
Qorpo-Santo resolve fazer as pazes com o seu duplo, Campos Leão. Pensou que, se não
podia vencê-lo, deveria juntar-se a ele. Para selar o acordo, propôs ao outro sentarem-se juntos
para escrever um livro. Um ditaria, o outro escreveria.
“Primeiro, o título”, Campos Leão ouviu uma voz ditar-lhe ao pé do ouvido. Molhou a
pena e a manteve suspensa no ar, perto do papel.
“Por que os loucos escrevemos livros tão bons”, escutou, atento. Campos Leão sorriu
levemente e um brilho estranho atravessou o seu olhar, antes que ele começasse a rabiscar a
folha.
No balcão, o dono do bar, que observava a cena, comenta com um dos frequentadores:
“Daqui a pouco, esse aí vai falar sozinho, quer ver?”
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Basileia, Suíça, abril de 1870
Nietzsche escreve a Erwin Rohde: “Ciência, arte e filosofia crescem tão juntas em mim,
que um dia parirei centauros”.
Bayreuth, Alemanha, 1872
Durante três anos seguidos, Nietzsche passará as férias com Wagner e a mulher.
Hospeda-se na casa deles vinte e três vezes. Enamora-se de Cosima, mulher do compositor.
Não encontra mais do que desinteressada amizade da parte dela. Frieza e distanciamento
crescentes, da parte dele.
Três anos passados, escreve a quarta Extemporânea, Richard Wagner em Bayreuth. No
ano seguinte, 1876, oito anos depois do primeiro encontro com o músico, afasta-se
definitivamente do casal.
A segunda triangulação da vida do filósofo já havia começado, mas ele ainda nem havia
percebido.
Sorrento, Itália, outubro de 1876
Nietzsche parte para a Itália com os amigos Paul Rée, Mawilda von Meysenbug e Joshua
Körpersant. Na nova família formada, estabelece-se, de início, um triângulo amoroso entre ele,
Rée e Mawilda, que se alterna com outro, tendo o outro amigo no lugar de Rée.
Na verdade, essa maneira de se relacionar com homens e mulheres ainda irá se repetir
uma última vez, a mais emblemática delas, cerca de seis anos mais tarde.
Alguém próximo a Nietzsche nota que o rompimento com os Wagner se dá justamente
em Sorrento, mas achou por bem ficar calado.
Imprensa Literária de Porto Alegre, 1877
Qorpo-Santo manda imprimir duzentos e vinte e dois exemplares do primeiro volume
de sua Ensiqlopédia.
Discussão com o tipógrafo, que se recusa a imprimir o número de exemplares pedidos.
O tipógrafo sugere duzentos ou trezentos exemplares. Ele insiste nos duzentos e vinte e dois. O
tipógrafo argumenta que não pode fazer um número quebrado. Mas concorda em fazer duzentos
e cinquenta exemplares, mediante um pequeno acréscimo no valor da impressão. Qorpo-Santo
aceita a proposta. Afinal, não quer parecer um homem intransigente.
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Ao receber a encomenda, joga fora vinte e oito exemplares. No mesmo dia, funda sua
própria tipografia.
Tipografia Qorpo-Santo, 1877
Imprime oito volumes da Ensiqlopédia.
Saint Moritz, 1879
Nietzsche publica O andarilho e sua sombra.
Porto Fino, costa da Ligúria, 1o de dezembro de 1882
Paul Rée apresentou Lou Andreas-Salomé a Nietzsche. O filósofo se apaixonou por
Lou, quis desposá-la e torná-la sua fiel discípula. Rée também caiu de amores pela jovem.
Disputaram o amor de Lou, que não queria namoro, apenas amizade.
Nova viagem pela Itália. Teve início o “ménage à trois platônico”, como a relação foi
chamada por R. J. Hollingdale. Discutiam filosofia, sonhavam com uma vida pagã, faziam
planos para o futuro da humanidade. Entre um colóquio e outro, Nietzsche flertava ora com
Lou, ora com Rée.
Escreveu à irmã, que fez intrigas e o envenenou com falso moralismo. Passou a tratar
os amigos com desconfiança, pois suspeitava que tivesse se formado um conluio entre os dois.
Foi rechaçado por ambos, que seguiram viagem sozinhos. Acabou por brigar igualmente com
Franziska e Elisabeth.
Após tanta desilusão, pensa em se suicidar. Chega a planejar a própria morte. Irá à praia
ao cair da tarde, dará algumas braçadas mar adentro e deixará o corpo afundar pesadamente.
Todos irão acreditar que ele terá morrido afogado.
Trazido pelas ondas, o corpo foi deixado na praia. O vento forte faz levantar a areia, que
cobre o seu rosto e as mãos com uma fina poeira branca. O sol já não ajuda a secar as roupas
molhadas. Ele sonha acariciar os seios estelares de uma jovem que acaba de sair do mar, com
o corpo adornado por algas, ovas de peixes e cavalos-marinhos. Ela abre-lhe a concha bivalve
e faz desprender, do nácar precioso, um cheiro agridoce que excita suas narinas.
É o cheiro de maresia de Porto Fino que acorda Nietzsche. Chega a erguer a cabeça, mas
torna a deitá-la na areia. Masturba-se vigorosamente, evocando a imagem do sonho. Enquanto
a mão direita manipula o pênis, a esquerda colhe o sêmen ejaculado com violência.
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Em poucos instantes, o sol terá se posto e a lua minguante estará nítida no céu. O odor
característico do esperma reforça ainda mais o cheiro vindo do mar. O líquido opalescente
escorre de sua mão, esquentando um pouco a pele fria.
Nietzsche, contemplando a natureza a sua volta, não pode deixar de pensar que alguma
coisa precisa morrer para outra nascer, ainda que outras já nasçam mortas.
Roma, 2 de dezembro de 1882
Escreve ao irmão de Rée uma carta, da qual apenas o rascunho foi conservado, onde
narra a sua versão do incidente passado entre Lou, Rée e ele:
Prezado Sr. Georg Rée,
Devo vos confessar, com toda a franqueza que a situação exige, que estou
profundamente consternado em ter que pegar na pena nestas circunstâncias para vos
informar sobre fatos aviltantes e mesquinhos nos quais vosso irmão tomou parte, ainda
que passivamente, fatos esses que, duvido, tenha a humanidade, alguma vez, dado
abrigo em seu seio, malgrado toda a pusilanimidade do homem e, principalmente, a da
mulher. Escrevo também para vos prevenir sobre possíveis calúnias e difamações que
minha pessoa sofrerá, das quais, certamente, o senhor virá a tomar conhecimento mais
cedo ou mais tarde por vias as mais diversas, a fim de que nossa amizade permaneça
assente como os Apeninos, que presenciaram toda a minha desdita.
Como o senhor deve recordar, vosso irmão, uma jovem aristocrata russa e eu
empreendemos uma viagem por várias regiões do nosso Velho Mundo, com propósitos
diversos em princípio, que resultaram em uma comunhão aparente de interesses, ideais
e aspirações ao final. De minha parte, buscava climas mais agradáveis e amenos para
esquecer um pouco das adversidades da vida acadêmica, que quase me levaram ao
esgotamento mental no período passado. Da parte de vosso irmão, supunha que o
motivavam os estudos e a disposição em concluir o interminável livro, interrompido
desde que surgiram os problemas envolvendo a Sra. Rée, que não cabe aqui mencionar.
Da parte da Srta. Salomé, julguei que a estimulava a convivência com homens que lhe
poderiam servir de preceptores, papel que tentei evitar na universidade nos últimos
tempos, mas do qual não me furtei, em se tratando de figura tão graciosa àquela época,
como a senhorita o era então. Não somente a possibilidade de privar de parte da
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intelectualidade europeia a impelia rumo à viagem, eu imaginava, mas, também, a
chance de deixar para trás, de uma vez por todas, o seu passado russo que a assombrava.
Ledo engano! caro amigo, se vós ainda permitirdes que eu vos chame assim.
Lembra da foto que vosso irmão vos enviou, que nós tiramos em Podach, em 13 de maio
último? Aquela em que vosso irmão e eu aparecemos atrelados a uma charrete sobre a
qual a Srta. Salomé encontra-se sentada a brandir um chicote com uma das mãos e a
segurar as rédeas com a outra. O que era para ser a representação do pacto de nossa
trindade intelectual, legada à posteridade como uma recordação pitoresca de Zurique,
transformou-se em uma amarga e infeliz ilustração de um tempo que seria melhor não
ter existido para mim e, acredito também, para vosso irmão, o outro boneco desse teatro
de marionetes tocado com mãos hábeis pela eterna russa.
Desculpai-me os termos, mas se à primeira vista a Srta. Salomé pode parecer
uma mulher inteligente e encantadora, um olhar mais atento mostra que ela não passa
de uma macaca seca, suja, fedorenta e de peitos falsos, que tem gosto em acenar com
promessas de prazer aos homens que mantém à volta, negando-lhes qualquer favor, no
entanto, se eles vão buscá-lo no seu regaço. Ides ter com mulheres? Não esqueçais o
chicote! Caso contrário, serão elas que irão montar em vosso lombo e ferir os vossos
flancos cansados de burro.
Nada mais a russa-sugadora-de-cérebros fez do que colocar o vosso irmão contra
mim, que se deixou levar como um cordeirinho, sem nem suspeitar da arma escondida
na mão da pastora. Ela vai imolar o vosso irmão em nome de sabe-se lá qual deus. E o
pior, apesar de toda a doutrina judaico-cristã jogada nas latrinas, é o fato de ela ainda
continuar acreditando em deuses. Não anuncio nenhuma nova verdade se digo que se
faz mais o Mal em nome do Bem do que vice-versa.
Mas essa é a própria história de nosso tempo e, como um drama particular em
que tomamos parte involuntariamente, eu a recebo como se deve aceitar os infortúnios
que volta e meia se desenrolam em nossas vidas, com estoicismo, gênio e vontade.
Estejais certo de que saberei transformar esta farsa em uma comédia na qual o primeiro
e o último riso serão os meus.
Sinceramente vosso,
Friedrich Wilhelm Nietzsche
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Após terminar de escrever, rasga a carta e redige uma nova versão, que é postada no
mesmo dia.
Excerto de narrativa publicada no Gil Blas, Paris, 17 de abril de 1883
Porque uma boa digestão é tudo na vida. É ela quem dá inspiração ao artista,
desejos amorosos aos jovens, ideias claras aos pensadores, alegria de viver a todo o
mundo, e ela permite comer muito (o que é ainda a maior felicidade). Um estômago
doente leva ao ceticismo, à incredulidade, faz nascer sonhos negros e desejos de morte.
Eu o notei frequentemente. Talvez eu não me mataria se tivesse feito uma boa digestão
essa noite.
Guy de Maupassant, Suicides
Assim falou Zaratustra, Alemanha, 1883-1885
Deus está morto. Assinado: Nietzsche.
Porto Alegre, 1885
Após a morte da rica viúva Joaquina de Assis, foi encontrado em sua biblioteca um
volume com as peças de Qorpo-Santo. Sobre a capa, estava escrito a lápis, em letra tremida:
alucinações.
Nos registros médicos da Santa Casa de Misericórdia, onde a viúva foi internada por um
sobrinho, consta que ela teria ficado perturbada após certas leituras.
Morreu louca, sem nunca recuperar a razão. Dizem que o livro foi presente do sobrinho,
que estaria interessado nos bens da tia, mas tal juízo precisa de maiores fundamentos.
Nice, Turim, Sils-Maria, 1888
Início do ano, Nietzsche está em Nice. Depois, em abril, vai para Turim. Última estada
em Sils-Maria durante os meses de junho a setembro.
Escreve e publica O caso Wagner. Pretende escrever um livro chamado Nietzsche contra
Wagner. Deixa de lado o projeto de A vontade de poder e planeja a Tresvaloração de todos os
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valores. De fato, escreve O crepúsculo dos ídolos, O Anticristo e Ecce homo. Coloca o ponto
final em os Ditirambos de Dionísio.
Primeiras manifestações de euforia e exaltação nas obras e nas cartas.
Piazza Carlo Alberto, Turim novamente, 3 de janeiro de 1889
Nietzsche chega à praça de manhã cedo para dar comidas aos pombos. Está com os
cabelos despenteados, barba por fazer e usa apenas uma ceroula. Joga os grãos de milho no
chão, atraindo os pombos dispersos. Dá pequenos saltos e assovia uma canção.
“Eu sou São Francisco, la-ri la-ri la-rá. Os pombos são meus irmãozinhos, la-ri la-ri lari”.
Dois homens passam ao lado dele e comentam em voz baixa:
“Não é aquele professor excêntrico ou eu estou enganado?”
“É ele mesmo, o que será que aconteceu? Ele está tão mudado.”
“Ora, ele continua o mesmo de sempre”, disse, fazendo um gesto para dizer que o
homem era louco, e ambos desataram a rir.
Uma carruagem desponta na rua que margeia a praça. O barulho das chicotadas que o
cocheiro desfere nos cavalos desperta imediatamente a atenção do filósofo. Ele corre em direção
à carruagem e, pendurando-se no pescoço de um dos animais, obriga o cocheiro a parar.
O senhorio de Nietzsche, David Fino, foi chamado às pressas para acudi-lo.
Clínica Psiquiátrica da Universidade da Basileia, Suíça, 10 de janeiro de 1889
Nietzsche, vindo de Turim, é conduzido até a clínica pelos três amigos que o
acompanharam durante a viagem. Overbeck, teólogo, Miescher, médico, e Platzhoof-Lejeune,
escritor.
O doutor Miescher deixa Nietzsche com o outro amigo na recepção e vai ao consultório
do médico que o atenderá para preveni-lo da chegada do filósofo. Conversam rapidamente.
O amigo vem na frente, em seguida chega o médico. Aproxima-se de Nietzsche,
amistoso, estendendo a mão direita e guardando a esquerda nas costas.
“Eu sou Wille”, disse, fazendo uma ligeira inclinação.
“Wille? O senhor não é médico de loucos? Ou será de nervos?”, pergunta, sem dar com
a mão parada à sua frente.
O médico não responde diretamente. Endireita o corpo, apressa-se em retirar a mão,
cruzando-a nas costas com a outra.
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“Tivemos a oportunidade de trocar algumas palavras alguns anos atrás sobre o delírio
de grandeza, não?”, puxa assunto o médico.
“É verdade, mas naquela época eu ainda não era tão grande como hoje. Mas isso não
vem ao caso, principalmente ao meu caso, pois nada mais me interessa. Logo eu, o próprio
Dionísio.”
“Dionísio, o deus grego?”, indaga o médico.
“O próprio”, responde Nietzsche. “Ou Baco, se preferir. Ou ainda, o crucificado. Em
carne e osso, em pão e vinho. Depende do rito. Judaico-cristão ou pagão, como achar melhor,
doutor.”
“E se continuássemos essa agradável conversa em meu consultório?”
“Em seu consultório? Com muito prazer”, disse, levantando em seguida e estendendo a
mão lânguida ao médico.
Clínica Psiquiátrica da Universidade da Basileia, Suíça, 13 de janeiro de 1889
Avisada por Overbeck, Franziska Nietzsche chega à clínica. É recebida pelo teólogo,
que a acompanha até o quarto do filho. Ao entrarem, veem Nietzsche em pé, em frente à janela,
com os olhos perdidos em direção ao jardim.
Ela diz o nome do filho e corre em sua direção.
“Ah, minha querida e bondosa mãe, regozija-me muito te ver”, diz, voltando-se para
abraçá-la, sem verdadeiro ânimo.
Depois de ficarem pouco tempo juntos, a mãe logo sai, alegando que o médico gostaria
de falar com ela.
“Ela parece muito perturbada, você imagina o que possa estar lhe acontecendo?”,
Nietzsche pergunta a Overbeck. O amigo nada responde, olhando detidamente para Nietzsche.
“Posso te confiar um segredo?”, o filósofo pergunta, olhando para a porta.
“Sim, claro.”
“Eu desconfio que essa mulher que acabou de sair daqui não é de fato minha mãe.”
“Ah, não?”
“Não.”
“Então, quem é aquela senhora?”
“É uma impostora, não há dúvidas. Apesar da semelhança física, o mesmo jeito de falar,
o mesmo vestido, ela não pode ser minha mãe. Você sabe, Franziska nunca foi tão amorosa
assim comigo.”
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Overbeck, incrédulo, mal disfarçava o assombramento.
“Você não acredita nas minhas palavras? É uma sósia, estou certo disso. Resta descobrir
o que ela pretende comigo fazendo-se passar por minha mãe.”
Clínica Psiquiátrica da Universidade de Iena, Alemanha, 17 de janeiro de 1889
Franziska retira o filho da clínica psiquiátrica da Basileia contra o parecer dos médicos,
que temiam que Nietzsche pudesse ficar agitado durante a viagem, e o interna na clínica
psiquiátrica dirigida pelo professor Otto Binswanger.
“Não confio nesses suíços”, disse Franziska a Overbeck, justificando a sua decisão. “Ele
é alemão e tem que ser tratado aqui na Alemanha”, completou.
“O professor Binswanger é um homem muito conceituado, a senhora fez bem em trazêlo para cá. E ele é especialista em paralisia geral. Bem, se for mesmo o caso, ninguém melhor
do que ele para fazer o diagnóstico.”
“Nem me fale, meu caro Overbeck, nem me fale. Se uma coisa dessas acontecer ao meu
pobre filho, nem sei o que eu faria.”
“Vamos aguardar a avaliação do professor, não adianta ficarmos nós dois, dois leigos,
fazendo suposições.”
“Se eu entendi bem, a senhora na sala de espera é a sósia de sua mãe?”, pergunta
Binswanger a Nietzsche.
“O senhor entendeu perfeitamente bem.”
“E como isso pôde acontecer?”
“Isso eu ainda não sei, mas não tenho dúvidas do que acabei de afirmar ao senhor. Mas
peço que seja discreto e não comente com ninguém o tema de nossa conversação. O senhor
compreende, isso pode atrapalhar minhas investigações.”
“Claro, claro. E o senhor falou com mais alguém a respeito?”
“Sim, falei com meu amigo, Overbeck.”
“Até compreendermos melhor o que está se passando, acho prudente sermos discretos.
Assim o senhor evitaria uma exposição desnecessária. De minha parte, tenha inteira confiança
de que não falarei nada sobre o que acaba de me segredar”, disse, levantando-se da poltrona e
apertando a mão de Nietzsche.
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Após o filósofo deixar a sala, Binswanger encosta-se na lareira, sobre a qual tem um
óleo de Ludwig Sênior, seu avô. A semelhança física entre os dois é impressionante, mas ele
nunca se deu conta disso.
“Se ele soubesse que esse não é um problema pessoal”, pensa o médico, desconfiado,
olhando alternadamente para a porta e para a janela da sala. “Eles estão em todo lugar.”
Paraguai, junho de 1889
Suicídio de Bernhard Förster, cunhado de Nietzsche, líder antissemita, humilhado pelo
fracasso da colônia ariana que havia fundado três anos antes.
Naumburg, maio de 1890
Julius Langbehn, notório charlatão, convence Frau Nietzsche de que seu filho será
curado.
Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras (Psychologische Mittwoch-Gesellschaft),
Viena, 1902, quarta-feira, 21 horas
Um homem na casa dos vinte anos, de sobretudo preto com um guarda-chuva no braço
e um livro na mão, para na frente de uma casa na Berggasse, número 19. Olha o relógio, são
21h12min. Bate na porta e aguarda impaciente. Uma criada vem abrir a porta e faz uma
saudação rotineira. Ele retribui o cumprimento ao mesmo tempo que lhe entrega
mecanicamente o casaco e o guarda-chuva. Dirige-se ao primeiro andar da casa, dispensando a
criada que se oferecera apenas por obrigação para acompanhá-lo até à sala na parte de cima.
Enquanto ele sobe os degraus da escada, ela ri sozinha, porque achava ridículo ele andar sempre
com o guarda-chuva, independentemente do tempo que fazia.
Diante da porta fechada à sua frente, cofia nervosamente o minúsculo bigode. Ao abrir
a porta da sala, onde outros homens já estavam reunidos conversando, sente o cheiro familiar
de café, bolo e charutos. Pergunta a si mesmo se não vai todas as quartas-feiras à noite àquela
casa apenas para comer, beber e fumar. Logo depois, reprova o pensamento, tentando se
convencer de que o debate intelectual e a convivência com aquele homem que inventara uma
nova ciência é o que realmente o estimula.
Os homens ainda estão de pé, fumando, mas o anfitrião já se prepara para tomar o seu
lugar na mesa oval.
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Rapidamente, Stefan cumprimenta os colegas e se serve de uma xícara de café. Acende
um cigarro sem filtro. Nem mal termina de dar a primeira tragada, ouve seu nome ser chamado
à mesa.
“Stefan, aproxime-se”, disse Schlomo Sigismund, tragando um charuto.
“Sim, Herr Professor”, respondeu vacilante, apagando o cigarro.
“Seu nome foi sorteado. Dê início à conferência de hoje”, falou, expelindo fumaça pela
boca.
“Qual é o tema?”, hesita.
“A loucura e a arte no hemisfério sul.”
Schlomo Sigismund chama os outros homens para sentarem-se à mesa.
“Wilhelm, Alfred, Rudolf, Max, está na hora”, disse, dando outra baforada no charuto.
“Stefan já vai começar a palestra.”
Stefan aguarda os homens assumirem seus lugares. Cofiando o bigode incessantemente,
senta-se por último do outro lado da mesa, em frente a Schlomo. Coloca o livro sobre a mesa.
“Caros colegas, como é do conhecimento de todos, acabo de voltar de uma viagem ao
Brasil, um país exótico localizado no hemisfério sul, por acaso, assunto da conferência de hoje”,
inicia Stefan, parecendo ganhar confiança por conhecer o tema. Contudo, a confiança cede lugar
novamente à hesitação. Olha para Sigismund e tem a impressão que um ricto surgiu em seus
lábios quando pronunciou as palavras por acaso. Agora, no entanto, o rosto do anfitrião parece
impassível, coberto pela densa fumaça.
“Estive nesses últimos dois meses visitando algumas cidades brasileiras, como
Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, não só pelos laços de parentesco que guardo
com esse povo, mas também motivado pelo estudo antropológico do homo brasilis. Para minha
surpresa, prezados colegas, minha pesquisa tomou outro rumo quando, em um sebo de Porto
Alegre, descobri o volume IV da Ensiqlopédia qorpo-santense, de um tal José Joaquim de
Campos Leão, vulgo Qorpo-Santo”, diz, levantando o livro que havia deixado na mesa. Faz
uma breve pausa, cofia mais uma vez o bigode e observa a reação inicial da plateia à exposição.
Os homens estão absolutamente imóveis, as faces não deixam transparecer qualquer emoção.
“Trata-se de uma edição do autor publicada pela Imprensa Literária de Porto Alegre em
1877. O volume IV é composto pelas peças de teatro do autor. Aos outros oito volumes da
Ensiqlopédia não consegui ter acesso. O motivo que me levou a abordar o teatro desse homem
foi a loucura que pude observar em estado bruto em sua obra. Mais que isso, partindo da
experiência pessoal desse insano e a relacionando com o panorama geral da dramaturgia
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brasileira, se é que se trata já de uma dramaturgia stricto sensu, pretendo demonstrar como a
loucura manifesta-se nas suas mais diversas formas na arte sul-americana.”
Antiga casa de Ludwig van Beethoven, Alemanha, outubro de 1903
O filósofo Otto Weininger publicou em Viena a obra Sexo e caráter, utilizando a tese
da bissexualidade para teorizar sobre o desenvolvimento da sociedade ocidental. Tomando de
empréstimo alguns conceitos elaborados por Wilhelm Fliess, opôs o masculino e o feminino,
atribuindo ao primeiro o talento criador e a intelectualidade e, ao segundo, a sensualidade e a
languidez. Assim, via a feminilidade como um perigo social, enaltecendo o ideal masculino
como objetivo a ser atingido pelas sociedades que buscavam a evolução. Apesar de suas teses
resvalarem para uma dicotomia simplista, reavivando até mesmo preconceitos raciais como o
antissemitismo, seu livro tornou-se um best-seller, tendo alcançado vinte e oito reimpressões
até 1947.
Freud analisou um jurista austríaco chamado Hermann Swoboda, amigo de Weininger.
Durante a análise, Freud teria falado mais do que devia a Swoboda sobre suas ideias a respeito
da bissexualidade. Este teria confidenciado ao amigo o teor das suas conversas com o seu
analista. Weininger, astuciosamente, utilizaria os conceitos de Fliess, além daqueles
surrupiados de Freud, para encorpar o seu livro, apropriando-se da fama que caberia sobretudo
ao segundo.
Segundo os biógrafos, Weininger era filho de um pai sádico e antissemita e de uma mãe
deprimida e masoquista. Depois de muito errar, aluga um quarto na antiga casa de Beethoven
e, sem deixar uma palavra sequer sobre o seu ato, dá um tiro no coração. Tinha apenas vinte e
três anos.
Swoboda, um ano depois do suicídio do amigo, ressentido por se sentir lesado, publica
uma obra que faz vir à tona uma sucessão de plágios. Fliess, abrasado por seu amigo Richard
Pfennig, acusa Freud de roubo intelectual por intermédio de Swoboda e Weininger.
Freud, em nota escrita em 1909, a propósito da análise do Pequeno Hans, não deixará
de comentar:
O complexo de castração está na raiz inconsciente do antissemitismo. O
desprezo pelas mulheres jovens também não tem outra raiz. Weininger, esse jovem
filósofo eminentemente dotado e sexualmente perturbado, que se suicidou depois de
escrever o curioso livro Sexo e caráter, tratou, em um capítulo que causou sensação, do
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judeu e da mulher com a mesma hostilidade, lançando-lhes os mesmos insultos.
Weininger era um neurótico inteiramente dominado por complexos infantis; nele, era o
complexo de castração que fazia a ligação entre o judeu e a mulher.
Em outra nota, aposta em 1924 aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud
voltará à carga:
Em alguns círculos não especializados, considera-se que a ideia da
bissexualidade humana é obra do filósofo Otto Weininger, morto prematuramente, que
fez dela a base de um livro bastante irrefletido (1903). As indicações precedentes
mostram com clareza quão pouco justificada é essa pretensão.
Freud ignorava que não se deve chutar cachorro morto. E havia três no seu caminho.
Sociedade Psicanalítica de Viena, Berggasse, 19, 1908, quarta-feira, 21h
No primeiro andar da casa estavam reunidos os doutores Freud, Adler, Stekel, Reitler,
Kahane e Rank, sendo este último secretário e responsável pela ata das sessões. As reuniões
seguem agora um ritual definido.
Exatamente às 21 horas, todos já estão reunidos na sala do primeiro andar. Antes do
início dos trabalhos, são servidos bolos, café e charutos, que são consumidos em grande
quantidade. Após comerem, beberem e fumarem por vinte minutos, os homens das quartasfeiras sentam-se em torno de Freud, ao redor de uma mesa oval. Todos têm a obrigação de
participar dos debates. Não é permitida a preparação prévia dos temas. A cada nova reunião é
sorteado o nome do membro que será o orador da noite. De outra urna é retirado o tema da
palestra. Após a realização de ambos os sorteios, inicia-se a conferência, seguida da discussão.
“O tema da sessão de hoje é Ecce homo, de Nietzsche”, disse Freud, após dar uma longa
tragada no charuto e retirar o papel da primeira urna. “O sorteado de hoje é... sou eu”, falou,
colocando o segundo papel sobre a mesa. “Rank, redija a ata, por favor.”
“Embora o tema de nossa conferência de hoje seja o Ecce homo, devo-lhes dizer, nobres
colegas, que tratarei aqui mais do caso Nietzsche do que propriamente de suas ideias. Tenho
absoluta certeza de que ninguém fará qualquer oposição a essa abordagem, pois todos sabem
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que vida e obra são indissociáveis quando falamos de Nietzsche e, especialmente, desta obra
específica”, disse, lançando um olhar firme a todos os membros presentes.
“No entanto, invertendo o que eu havia dito antes, a primeira afirmação que tenho a
fazer é a respeito do livro. Com exceção do próprio Nietzsche, filósofos nunca são bons
psicólogos e Ecce homo, portanto, ao contrário da opinião em voga na academia, não pode ser
considerado produto da loucura do seu autor, ainda que todos saibam que as primeiras
manifestações da mania em Nietzsche tenham surgido logo após ele ter finalizado o livro em
questão. Os senhores devem se lembrar de que 1888 foi o ano em que o filósofo escreveu e
publicou O caso Wagner, além de ter escrito outras três obras: O crepúsculo dos ídolos, O
Anticristo e... voilà! Ecce homo”, ponderou Freud.
“A segunda afirmação que tenho a fazer é a respeito do grau de introspecção que ele
alcançou ao fazer suas análises. Jamais, acredito eu, alguém chegará a alcançar a compreensão
a que ele chegou, intuitivamente, de temas tão caros a nós, psicanalistas, como a doença, a
paixão, a tragédia, e, por que não admiti-lo, até mesmo a noção de inconsciente?”
“A terceira e última afirmação que tenho a fazer, antes de passarmos à análise do caso,
tem um tom mais confessional do que eu gostaria para uma sessão de psicanálise, mas eu não
posso faltar com a verdade. Mesmo que eu quisesse ocultá-la aos olhos dos meus
contemporâneos, os homens que ainda estão por vir a descobririam sem muito esforço
intelectual”, falou, deixando com curiosidade a pequena audiência.
“A confissão que tenho a lhes fazer é que me mantive sempre afastado de Nietzsche por
causa da semelhança entre nossas ideias, porque eu queria preservar a minha independência e
por guardar certa inveja em razão da originalidade de suas ideias”, disse, olhando para Rank,
que abaixou a cabeça logo em seguida e continuou tomando nota.
“Se me permitem, gostaria de passar agora à análise do caso, que todos devem estar
aguardando ansiosamente”, falou, contrastando com a imagem dos homens, que mostravam
agora certo enfado. A exceção era Rank. Mesmo concentrado na feitura da ata, não deixava de
demonstrar disposição para o embate intelectual que estava por vir.
“Inicio a minha exposição pelo que primeiro chama a atenção do leitor de Ecce homo,
isto é, o título dos três capítulos introdutórios. ‘Por que sou tão sábio?’ ‘Por que sou tão
inteligente?’ ‘Por que escrevo livros tão bons?’ Seriam esses títulos apenas excessos,
originários de uma desinibição e imodéstia sem freios?”
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“Imodéstia sem freios? É bom lembrar”, disse Rank, “que o filósofo se atracou a um
cavalo, também sem freios, segundos os relatos da época, em plena piazza Carlo Alberto,
quando da...”
Freud lançou um olhar fulminante na direção de Rank, que ficou constrangido e logo se
calou. Endireitou os óculos e retomou a ata.
“O tom grandioso”, reiniciou Freud, “pode ser entendido, ao menos em parte, pelas
circunstâncias que cercaram a sua escrita e pelas motivações inconscientes do autor naquela
época.”
Viena, 1911
Theodor Reik, um psicanalista americano que tinha enorme identificação com Freud,
imitava-o nos aspectos mais distintos. Vestia-se como o seu mestre, usava uma barba igual à
sua e fumava a mesma marca de charutos, o que fez com que recebesse o apelido de símile
Freud dado pelo primeiro círculo vienense.
Viena, 3 de julho de 1919
Após ter advogado por curto período, Tausk instalou-se em Berlim onde tentou ensaiar
uma carreira na literatura que não alcançou o sucesso esperado. Acometido por uma
pneumopatia qualquer, seguida por uma depressão grave, internou-se em um sanatório. Após a
alta, mudou-se para Viena. Iniciou os estudos de medicina e psicanálise, subvencionados em
parte pelos membros da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras. Os estudos tiveram que ser
interrompidos com a eclosão da guerra.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Tausk serviu na frente sérvia. Voltou para Viena
depois, onde assistiu à ruína do Império Austro-Húngaro. Embora abalado no pós-guerra, Tausk
continuava a ser muito sedutor com as mulheres, o que não impedia que suas relações
terminassem violentamente. Além da incerteza em relação ao seu futuro, viu-se num impasse
quando a crise econômica sobreveio.
Infeliz com o rumo que sua vida tomava, esperando que a psicanálise resolvesse seus
problemas, pediu a Freud que o analisasse. Este se recusou terminantemente. Mas, diante do
sofrimento e da insistência de Tausk, encaminhou-o para Helene Deutsch, que, por sua vez,
estava em análise com o próprio Freud. Assim, Freud pensou que poderia supervisionar o
tratamento de Tausk através de Deutsch. A maioria das sessões com Deutsch foram usadas para
agredir Freud, uma vez que Tausk sabia que Helene relataria tudo ao seu supervisor.
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O caso terminou em tragédia. Por orientação de Freud, em março de 1919, Deutsch
interrompeu a análise quando Tausk iria se casar com uma ex-paciente, grávida dele.
Tausk não viu outra saída que o suicídio. Foi um homem determinado na vida e não
deixou de sê-lo na morte. A fim de não dar margem ao erro, subiu em uma cadeira, amarrou
um cordão de cortina no pescoço e disparou um tiro na têmpora. Antes de apertar o gatilho,
estava absolutamente convencido do fracasso da psicanálise diante do suicídio.
O corpo pendia inerte no ar quando foi encontrado.
Em seu Diário de um ano, Lou Andreas-Salomé fez o retrato do advogado, médico e
psicanalista austríaco Viktor Tausk, que havia sido seu amante. Lou notou que Tausk abrigava
em si uma força que ela definia como primitiva. Um animal de rapina, como dizia Freud. Lou
registrou em seu diário:
Desde o princípio, senti em Viktor essa luta da criatura humana contra o animal
e era isso que me tocava mais profundamente. Animal, meu irmão, você.
Após a morte de Tausk, Freud teve duas reações. Primeiro, escreveu um necrológio
enaltecedor e, segundo, uma carta a Lou:
Confesso que não sinto realmente a sua (dele) falta. Há muito eu o considerava
um imprestável e uma ameaça ao futuro da psicanálise.
A última frase foi suprimida da edição publicada da correspondência entre Lou e Freud.
Viena, 1924
Otto Rank publica Der Doppelgänger inspirado pela semelhança de ideias entre seu
mentor intelectual e seu filósofo predileto. Intimamente, Rank acreditava que Freud era o duplo
de Nietzsche.
A fim de não revelar o verdadeiro motivo da elaboração da obra, Rank atribui a
inspiração da escrita ao filme O estudante de Praga. Com receio de que a real motivação fosse
descoberta, tinha engavetado por dez anos o texto. Finalmente, decide publicá-lo quando sua
relação com Freud estremeceu.
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Viena, abril de 1926
Rank faz sua última visita a Freud. Leva consigo um presente ao querido mestre: vinte
e três volumes da obra completa de Nietzsche, encadernados em couro branco.
Assim que Rank deixou a sua casa, Freud sentou-se à escrivaninha de seu escritório e
pôs-se a redigir uma carta a Ferenczi:
Caro Sandor, nós demos muita coisa a Otto e é certo que ele fez, por sua parte,
muito por nós todos. Desta forma, não há nada pendente entre nós dois. Ele acabou de
estar aqui em casa por alguns breves minutos, certamente pela última vez em nossas
vidas, mas não me senti compelido a lhe expressar a afeição particular que, apesar de
tudo, guardo por ele. Fui duro e bastante franco como você sabe que sou nessas horas.
Portanto, podemos tirá-lo de nossas vidas.
As teorias de Otto são, sem dúvida alguma, fruto de seu conflito não resolvido
com o pai, que ele transferiu para minha pessoa. Cansei de ser o bom pai para esse
discípulo que só me via como o pai mau. E você, Sandor, sabe que essas alternâncias de
Otto nada têm a ver com as manias e depressões que o fazem sofrer periodicamente.
Karl e Ernest tinham razão.
Paris, 1930
As Éditions Stock publicam a primeira edição do ensaio sobre Nietzsche escrito por
Stefan Zweig.
A obra ganhará mais quatro outras edições: 1978, 1996, 1999 e 2004.
França, 1934
O psiquiatra Gaëtan Gatian acaba de chegar em casa. De manhã, teve uma consulta com
o seu oftalmologista, que lhe disse que não havia muito mais o que fazer para tratar do seu
glaucoma.
“Vou ficar cego?”, perguntou ao colega. Antes mesmo de terminar a frase Gaëtan Gatian
calou-se, pois já sabia a resposta.
Abre a gaveta da mesa de cabeceira e retira uma pistola de dentro. Olha de relance um
maço de folhas no fundo da gaveta. São os seus textos psiquiátricos que serão publicados oito
anos depois pela PUF, assinados Clérambault, nome pelo qual ele era mais conhecido.
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Na sala, sentado em uma poltrona confortável diante do espelho, dá um tiro na boca.
Londres, 25 de junho de 1940
O psiquiatra e psicanalista austríaco Wilhelm Stekel apresenta graves problemas de
saúde relacionados à diabetes. O último desses problemas é uma gangrena no pé.
Após a anexação da Áustria pelos alemães, Wilhelm fugiu para a Suíça e, em seguida,
para a Inglaterra.
Num quarto de hotel, olha mais uma vez Nervöse Angstzustände und ihre Behandlung,
seu livro publicado em 1908 com prefácio de Freud, enquanto ainda não haviam rompido.
Melancólico tanto pelo exílio quanto pela solidão, comete o suicídio com uma dose excessiva
de insulina.
Petrópolis, 22 de fevereiro de 1942
O escritor austríaco Stefan Zweig e a mulher, Lotte Altmann, haviam migrado para o
Brasil em agosto de 1941, antes de errarem pela Inglaterra e os Estados Unidos. Afugentados
pelo nazismo que devastava a Europa, se instalam na antiga cidade imperial.
Zweig ainda tem tempo de publicar o famoso ensaio Brasilien, Ein Land der Zukunft e
de terminar sua autobiografia.
Imersos num calmo desespero induzido pelos barbitúricos, ele e a mulher deixam para
sempre o país do futuro na noite do 22 para o 23.
Nova York, 3 de maio de 1950
O psiquiatra e psicanalista americano de origem austríaca Paul Federn sofre de um
tumor maligno da bexiga. Submete-se a uma cirurgia radical, mas logo depois há uma nova
recidiva do tumor, surgida após a morte da esposa.
Organiza seus papéis, deixando instruções por escrito ao seu testamenteiro e retira do
cofre do banco uma pistola. Antes, na sala, passa os olhos por uma carta que chegara à tarde,
enviada por um colega que pedia uma cópia do seu artigo, “Narcissism in the structure of the
ego”, publicado no nono número do International Journal of Psycho-Analysis de 1928. Mas ele
não tem intenção de responder à carta.
Atende normalmente seus pacientes, brinca como sempre com a sua governanta na hora
do almoço e vai para o quarto no final da noite.
26
Carrega a pistola com duas balas. Escreve um bilhete para o seu filho, Walter,
advertindo o rapaz de que uma bala poderia não ter sido disparada quando seu corpo fosse
encontrado.
Às 3h da manhã, sentado na poltrona do seu consultório, dispara um único tiro.
Paris, 1950
É publicada na França, na coleção “Classiques de la Philosophie” da editora Gallimard,
a tradução de Nietzsche, Einführung in das Vertändnis seines Philosophierens de Karl Jaspers,
editada pela Walter de Gruyter & Co.: Nietzsche, introduction à sa philosophie.
Parece ser a obra mais completa a analisar as imbricações entre a vida e a obra do
filósofo, mas um crítico paranoico diz que o Nietzsche aí retratado é outro.
Ele não estava falando de maneira figurada. Para ele se tratava realmente do retrato de
um impostor. Foi o que pretendeu representar no artigo intitulado “Nietzsche e seu duplo”,
publicado num dos números do Magazine Littéraire do ano de 1972.
Algum teatro de Porto Alegre, agosto de 1966
Um século depois de escritas, estreiam três peças de Qorpo-Santo: As relações naturais,
Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não sou morte.
A recepção das peças foi péssima. A primeira não durou mais do que um fim de semana
em cartaz. Na segunda peça, dois terços do público pagante se retiraram no primeiro ato e o
terço restante ameaçou fisicamente os atores. A terceira só foi assistida pelos familiares e
amigos do elenco.
O primo de um ator exigiu de volta o dinheiro gasto com o bilhete.
Estados Unidos ou Europa, 1968
Em 1968, como o pai, Walter Federn também se suicida.
Apesar da brilhante carreira universitária como arqueólogo, estimulada em parte por
Freud, ele acabou sucumbindo à psicose.
Morreu fazendo greve de fome, acreditando que assim reencarnaria como um deus
egípcio, metade homem, metade animal.
27
Cidade geminada de Frankfurt do Meno, Alemanha, 1970
A Insel Verlag lança Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Lou von Salomé — Die Dokumente
ihrer Begegnung herausgegeben von Ernst Pfeiffer — Mit ansführlichen Erlaüterungen a partir
da correspondência trocada entre os três.
Parece que, na primeira edição da obra, omitiu-se que a correspondência fora
inicialmente coligida por dois outros autores, sendo o trabalho posteriormente retomado pelo
organizador, Ernst Pfeiffer.
O editor da Insel Verlag será processado poucos meses depois pelos dois autores cujos
nomes não foram mencionados.
Argentina, 1972
A psicanalista argentina Arminda Aberastury, atingida por uma devastadora psoríase,
suicida-se aos sessenta e dois anos.
Havia escrito, dez anos antes de morrer, um livro sobre teoria e técnica da psicanálise
da criança.
Paris, 1975
A editora Gallimard publica uma adaptação teatral tripartite de Assim falou Zaratustra,
realizada por Jean-Louis Barrault, na coleção “Le manteau d’arlequin”. Zaratustra é
representado por três personagens na peça: Z, Z1 e Z2.
A peça teatral, representada logo depois, causou polêmica pela irreverência da
concepção cênica e pelas diversas leituras propostas do texto. Dois dias após a estreia no
Théâtre de France, apareceu uma matéria no Le Monde de 2 de março de 1976, intitulada “Le
théâtre et son double”, título retirado de um ensaio de Antonin Artaud publicado em 1938,
recolhendo artigos, manifestos e cartas sobre o teatro.
O artigo do jornal considerava os três Zaratustras como sucedâneos pagãos da
Santíssima Trindade, tendo o diretor a suposta intenção de criticar o pensamento judaicocristão, assim como Nietzsche tinha feito em sua época. Ainda, no mesmo artigo, em viés
psicanalítico, os três Zaratustras eram considerados representantes da figura do pai, da mãe e
da criança.
O diretor, três dias depois da publicação da matéria, enviou uma carta aberta ao jornal,
com cópia ao seu concorrente, o Le Figaro, refutando as interpretações feitas pelo tal crítico.
Segundo o diretor, não haveria leitura(s) nem filiação possíveis, uma vez que a sua montagem
28
não se inscrevia sequer na tradição do teatro do absurdo, como chegou a ser erroneamente
evocado por um suplemento literário parisiense.
Nietzsche, no caixão, deve ter se revirado umas duas ou três vezes.
Paris, 1979
As Presses Universitaires de France editam Nietzsche, Rée, Salomé/correspondance,
traduzida do alemão por Ole Hansen-LØve e Jean Lacoste.
A obra sai com a seguinte ressalva: a edição tinha sido organizada por Ernst Pfeiffer, a
partir de um trabalho comum anteriormente realizado por Karl Schlechta e Erhart Thierbach.
Não só o editor da PUF é um homem bem informado sobre o mercado de livros europeu,
como também mantém boas relações com seus colegas alemães.
Chicago, noite de 12 para 13 de março de 1990
O psicanalista americano de origem austríaca Bruno Bettelheim está fortemente abalado
pela morte de sua mulher. Não bastasse o sofrimento provocado pela perda, sofre de graves
problemas de saúde que limitam consideravelmente sua autonomia.
Assombrado pelo medo da invalidez e pelo desamparo na velhice, asfixia-se com um
saco plástico.
Junto ao corpo foi encontrado um dos seus livros, The uses of enchantment — the
meaning and importance of fairy tales, publicado nos EUA em 1976.
Rio Grande do Sul, 2001
A pesquisadora Denise Espírito-Santo descobre mais um dos três volumes
desaparecidos da Ensiqlopédia no arquivo de uma velha escola. Acha que tem boas razões para
acreditar na descoberta dos outros dois.
São Paulo, 2001
A Editora Iluminuras publica o Teatro completo de Qorpo-Santo.
Eudinyr Fraga faz a apresentação da obra. Destaca uma das inovações da linguagem do
dramaturgo: a multiplicação da personalidade do indivíduo, espelho de um mundo igualmente
multifacetado, cuja apropriação só poderia ser realizada por sujeitos multifários. Os
personagens refletiriam tal fragmentação assumindo mais de uma identidade, mudando de
nome ao longo de uma mesma peça, de um ato ao outro. Cita exemplos: Jorge e Ernesto, que
29
são a mesma pessoa em O hóspede atrevido ou O brilhante escondido, assim como Esculápio
e Larápio, em A separação de dois esposos.
Na edição da primeira peça, o nome Jorge não é mencionado nem no rol de personagens,
nem no corpo do texto. Há uma nota aposta por Qorpo-Santo, sugerindo que o texto deveria
passar por correções necessárias antes da impressão.
Ao final de A separação de dois esposos, a décima peça do livro, há uma nota do editor.
Segundo a nota, o autor teria cometido um erro crasso no primeiro ato, designando o Marido
como Larápio, o que motiva a substituição do nome deste por Esculápio em toda a peça.
Larápio deixa de existir. Não satisfeito, o editor corrige toda a grafia original do autor.
No entanto, Qorpo-Santo continua a ser incorrigível.
São Paulo, 2001
Uma pitada de rapé, página 333. O editor do Teatro completo coloca a última nota de
rodapé na obra:
N. do E.: o texto acaba abruptamente nesse ponto.
Em 1922, um romance escrito em alemão também foi deixado aparentemente inacabado
por seu autor. O romance terminava subitamente no meio de uma frase. O autor teve dois anos
para acabá-lo, mas não acrescentou uma palavra ao manuscrito até o ano de sua morte. Em
1926, o romance foi publicado. Não há nota de editor aposta na primeira edição do romance
nem nas subsequentes, ainda que a estrutura original do livro possa ter sido modificada. Os
críticos debatem até hoje se a interrupção da narrativa foi premeditada ou não, sem estarem
próximos de chegar a um veredicto. Mas nunca houve intenção de apor qualquer nota ao
romance.
Qorpo-Santo acreditava que 333 era o número que a besta usava para não ser
reconhecida pelos cristãos. Em 1881, ele sonhou que suas peças seriam agrupadas e publicadas
cento e vinte anos depois daquela data, no mês dos mortos, em uma edição que redimiria a sua
humilhação sentida perante a família, a sociedade e a justiça, mas teria a marca da besta
impressa disfarçadamente.
Consta que um dos ensaios da Ensiqlopédia tratava sobre numerologia. Pode-se afirmar
que Qorpo-Santo foi o primeiro numerólogo do Brasil. Ele temia o poder dos números. Caso
estivesse vivo, teria motivos para se preocupar.
30
O Teatro completo terminou de ser impresso em 30 de novembro de 2001 ou
30/11/2001. Um numerólogo gaúcho chamado Frédéric-Guillaume ou, como era conhecido
pelo seu nome artístico, Fred de Guy, descobriu o 333 da besta escondido na data da publicação.
O primeiro três era o do trinta. O segundo era o número de zeros do dia, um, somado aos zeros
do ano, dois. E o terceiro três era a soma dos algarismos do ano, ou seja, dois mais zero, mais
zero, mais um.
Então, a besta aparecia pela metade, mas poderia surgir inteira conforme a ocasião.
Bastava multiplicar a soma dos algarismos do mês de impressão, novembro, mês onze, isto é,
um mais um igual a dois, por 333 para ter o 666. De Guy previu que, para mandar imprimir
aquele tipo de edição, besta pela metade ou besta inteira, não fazia tanta diferen
Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 2001
O Jornal do Brasil publica no Ideias, seu caderno literário:
Um Qorpo entre a santidade e a loucura (título)
Poemas Qorpo Santo, org. de Denise Espírito Santo.
Editora Contracapa, 382 páginas, R$ 37. (fichinha)
Rejane Machado (assinatura)
O... (capitular)
REJANE MACHADO é professora de literatura, com doutorado em Filologia
Românica (assinapé)
A
íntegra
da
matéria
pode
ser
obtida
no
sítio:
<http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2001/01/12/joride20010112008.html>.
Banheiro da Biblioteca Pública, Nova York, 2002
O crítico Wilson Martins do Jornal O Globo, enquanto faz xixi, lê na porta do sanitário:
Nietzsche está morto. Assinado: Deus.
31
Rio de janeiro, sábado, 19 de janeiro de 2002
O jornal O Globo publica na última página do seu caderno Prosa e Verso:
O absurdo de Qorpo Santo (título)
Teatro do dramaturgo e escritor gaúcho antecipa Artaud e a arte dos surrealistas
(subtítulo)
Teatro completo, de Qorpo-Santo.
Editora Iluminuras, 336 páginas. R$ 39. (fichinha)
Angela Leite Lopes (assinatura)
T... (capitular)
Autor se achava possuído por luz divina (quebra ou entretítulo)
Atormentado pelo conflito entre a carne e a castidade (idem)
ANGELA LEITE LOPES é diretora da Coleção Dramaturgias (7 Letras/L’acte) e
professora da Escola de Belas Artes da UFRJ (assinapé)
A íntegra da matéria pode ser obtida no Arquivo Premium no sítio:
<http://oglobo.globo.com>.
Estados Unidos, 2002
Dois pesquisadores dos Serviços Neuropsiquiátricos de Vitória da Conquista, na Bahia,
Arthur Chapman e Miriam Chapman-Santana, publicam um artigo no Journal of Nervous and
Mental Disease chamado “The impact of Nietzsche on Freud”.
Mostram como alguns princípios psicológicos elaborados por Nietzsche foram tratados
também por Freud. Conceitos fundamentais da psicanálise, como o complexo de Édipo, a
repressão, a primeira e a segunda tópicas, apareceriam na obra de Nietzsche sob a perspectiva
histórica do indivíduo e da evolução social do homem.
Ao final do artigo, os autores citam duas fontes, reproduzidas aqui integralmente:
32
(1) “L. L. Whyte in his book The Unconscious Before Freud (1960) writes, ‘When I found
that Nietzsche had expressed several of the insights of Freud’s doctrine [about the unconscious
mind] twenty or more years before him, I... could not understand why neither Freud nor his
interpreters had mentioned this significnat fact’” e
(2) “Henri F. Ellenberger (1958), basing his opinion on much less information than is
here assembled, wrote, ‘In fact the analogies are so striking that I can hardly believe that Freud
never read him [Nietzsche], as he contended’”.
Quem desejar ler o artigo na íntegra, favor endereçar os pedidos ao doutor Arthur
Chapman, Caixa Postal 98, Centro, 45001-970, Vitória da Conquista — BA, Brasil.
Niterói, junho de 2003
Ao reler “Explicação”, a nota introdutória d’A impossibilidade de santificação ou d’A
santificação transformada, um leitor atento supõe que Qorpo-Santo fala de si próprio, o
personagem autobiográfico C-S., na terceira pessoa. Não só na introdução o leitor supõe, mas
ao longo de toda a peça o autor deixaria transparecer elementos tanto de sua vida privada quanto
pública. Na segunda cena, Qorpo-Santo teria usado a fala de um personagem para se defender
das acusações e calúnias que lhe foram imputadas na época.
Um médico psiquiatra, descendente de alemães, também lê a peça em uma manhã de
segunda-feira, durante o seu plantão semanal no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, em Niterói,
no mesmo momento em que o leitor faz a releitura do texto. O psiquiatra examina as páginas,
buscando indícios da alienação mental do dramaturgo para fundamentar uma tese de doutorado
que irá defender em 2006. O título da tese é Teatro e loucura: o lugar do páthos na obra de
Qorpo-Santo. A defesa será no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, antigo Hospício Pedro II.
A edição que o psiquiatra usou em sua pesquisa é a mesma do Teatro completo
publicada pela Editora Iluminuras. Na página 54 da referida edição, o médico sublinha as falas
dos personagens Uma Voz e Outra Voz. No seu ponto de vista, o diálogo dos personagens é
reprodução de alucinações auditivas que Qorpo-Santo teria experimentado em algum momento
de sua atribulada vida. Assinala que a fala do personagem C-S., em quem também reconhece
traços biográficos do autor, “o Outro de Qorpo-Santo”, como ele destaca em sua tese, teria um
33
conteúdo persecutório, revelando o sentimento de estar sendo furtado pelas mulheres, ou
melhor, roubado por elas. Esta fala nada mais seria que a recriação literária da suspeita de ter
sido enganado pela mulher com o Juiz de Direito da Segunda Vara Cível de Porto Alegre.
Na página 55, a fala de Qorpo-Santo através de C-S., iniciada ainda na página anterior,
mostraria o conteúdo de grandeza comumente observado nos maníacos. Há um trecho
destacado para análise.
O nome próprio “Napoleão”, a palavra “corpo” e a frase “pela pena, pela palavra e pela
espada!” do trecho foram sublinhados pelo psiquiatra. Algumas páginas antes dessa passagem,
precisamente vinte e seis páginas atrás, na peça Hóspede atrevido, há outro segmento
selecionado. Aí são destacados os mesmos nome próprio, palavra e frase.
Quando o psiquiatra lê o trecho da página 55 e relê a página 29, que havia
completamente esquecido até então, não pode deixar de fazer algumas considerações. Chama a
sua atenção a repetição do nome do imperador francês, do substantivo comum e da frase. Não
foi tanto o conteúdo de grandeza da fala do personagem Ernesto que despertou o seu interesse,
embora não tenha passado despercebida a identificação de Qorpo-Santo com Napoleão, mas,
sim, o conteúdo simbólico dos objetos representativos do falo, como a pena, a palavra, a espada
e o próprio corpo.
No entanto, a análise psicanalítica da obra provocou menos a reflexão do psiquiatra do
que a coincidência observada entre o intervalo de vinte seis páginas das duas peças e a data da
defesa de sua tese, dois de junho de 2006. Não havia acaso para o médico, que enxergou nos
números mais do que uma simples casualidade. Acreditava que, se uma borboleta batesse as
asas no pátio do hospital, um furacão poderia surgir no meio do Pacífico. Ele até convenceu a
si mesmo de que o número vinte e seis era uma das dezenas da borboleta no jogo do bicho, o
que deu maior convicção à fatalidade. Errou por dez: era o dezesseis.
Ao retomar a leitura, seis páginas adiante do ponto em que havia interrompido, isto é,
na página 61, o psiquiatra fica impressionado com outra cena, quase um monólogo, e destaca a
fala do personagem a partir da vigésima sexta linha do texto. O personagem principal Planeta
fala dos seus infortúnios com as mulheres e de sua indecisão em tê-las, gozá-las ou desprezálas. Depois, das brincadeiras e danças com outros três personagens secundários: Rubicundo,
Rebolaio e Caranguejo. Dois objetos fálicos aparecem nesse trecho: uma bengala e um guardachuva.
O trecho faz o psiquiatra pensar na sua própria homossexualidade e no sofrimento
causado pela descoberta do seu desejo, pois até o início da tese não tinha se dado conta disso.
34
Não há como deixar de associar ao sofrer um sentimento de transformação, reforçado quando
percebe que a palavra “passagem” significa para o espiritismo, a sua religião, a mudança, a
transição de um estado para o outro. Talvez, por sentir algo morrer nele e outra coisa renascer
em seguida, tenha se lembrado da fênix, mas não deu muita importância à lembrança.
Sua leitura é interrompida pelo chamado do enfermeiro, que pede a avaliação de um
paciente na enfermaria masculina. Há duas semanas o paciente não está se alimentando bem.
E, a partir de hoje, não vai mais comer alimento algum. Não protesta pela qualidade da comida
servida aos pacientes, que é até razoável, nem por qualquer outra coisa. Pretende se alimentar
apenas de cultura. Afirma que os únicos gêneros alimentícios que passará a ingerir, de agora
em diante, serão o dramático, o filosófico e o musical. O repasto começou pelo teatro, seguirá
com alguns tomos de filosofia e terminará com antigos discos de vinil.
O médico chega ao quarto dezesseis da enfermaria, sem nem dar com isso, e se aproxima
do leito em que o paciente está deitado, lendo o mesmo livro que até há pouco tempo tinha nas
mãos. Na verdade, o paciente é o leitor atento. O psiquiatra pergunta seu nome. Chama-se
Friedrich Wilhelm Newton. É filho de uma alemã com um inglês. Trocam algumas palavras em
alemão. Olha para o Teatro completo em cima da cama, os livros de filosofia em alemão e
discos do selo Chrysalis espalhados pelo chão. Pede ao enfermeiro que os deixe a sós. Pousa a
mão delicada sobre a do paciente.
Não há acaso. A borboleta bateu asas e voou.
Rio de Janeiro, 2003
Um escritor, também filósofo, relê Ecce hommo, recolhendo indícios do pretenso
desequilíbrio mental de Nietzsche para um livro que pretende escrever.
Seguem as partes e os capítulos selecionados com os comentários do escritor-filósofo
feitos à margem do texto.
Por que sou tão sábio
2.
Neologismo e associação por assonância? Ver alteração psicopatológica da
linguagem nos maníacos.
35
3.
Rever definição de Doppelganger
5. e 6.
Jogos de palavras? Estudar as alterações da linguagem nos psicóticos, ver o
equivalente das associações por assonância na psicopatologia germânica.
Jogos de palavras nem sempre reproduzíveis ou insuficiência da tradução?
Por que sou tão inteligente
2.
Idealismo vs. Racionalismo.
3.
Por que aproximar Tristram e Tristão? Assonância ou...?
9.
O duplo e o narcisismo, ver Rank.
10.
Negação da doença.
Por que escrevo tão bons livros
1.
36
Dissociação, megalomania, rever textos Freud e Schopenhauer, procurar
comentário de F. sobre a obra de S.
Instituto de Física Quântica, antigo Laboratório de Pesquisas Nucleares da
República Democrática Alemã, antigo Centro de Astrofísica da República Federal Alemã,
Berlim, 2003
Dois cientistas alemães, gêmeos univitelinos, Joseph e Friedrich Doppel, recebem o
Prêmio Nobel de Física pela formulação da Teoria da Duplicidade.
Um nêutron, que normalmente é composto por dois quarks down e um up, quando
submetido a um campo bidimensional pode apresentar o mesmo tipo de funcionamento, ainda
que seja estruturalmente diferente. A teoria poderia ser resumida na seguinte fórmula: N=Q-S,
onde N é igual a nêutron, Q a quark e S a étrangeté, o número quântico característico do terceiro
quark.
No campo tridimensional, segundo as leis da física quântica, o nêutron permanece com
a mesma disposição até então conhecida, mas no campo bidimensional, o nêutron, ainda que
com uma nova configuração, isto é, a étrangeté subtraída do terceiro quark, tem a mesma função
anterior. Inicialmente, os físicos chegaram a cogitar que a subtração do próprio número
quântico do terceiro quark pudesse fazê-lo desaparecer, como uma espécie de autofagia sutil.
Mas, para surpresa dos dois irmãos, o terceiro, mesmo sem a sua étrangeté peculiar, permanecia
absolutamente normal, não diferindo em nada do quark tradicional.
Em suma, o nêutron, mesmo portando configurações diversas, continuava sendo
nêutron, e não outra partícula elementar da matéria, como diversos cientistas chegaram a supor
quando o assunto correu a comunidade científica, antes de o trabalho ter sido publicado.
A história da descoberta ganha uma nova dimensão quando se conhece um pouco a
biografia novelesca dos dois irmãos. Os irmãos haviam crescido separados, cada um de um lado
do muro de Berlim. Um com o pai, o outro com a mãe. Apesar de terem recebido educações
diferentes, terem vivido sob regimes de governo opostos e de terem sido criados por famílias
bem distintas, os gêmeos não poderiam ser mais semelhantes um ao outro, tanto física quanto
psicologicamente.
Ambos se voltaram para o estudo da física desde a infância em detrimento de qualquer
outra atividade. Não sem desinteresse, inclinaram-se para o estudo da óptica no início. Seus
estudos com espelhos tornaram-se célebres quando eles ainda eram adolescentes. Mas, para
37
ambos, não havia muito mais o que fazer na óptica, nem em qualquer outro campo da física
clássica. Daí a física quântica.
Quando o muro ainda os separava, começaram a publicar isoladamente seus artigos nas
revistas científicas, um sempre acompanhando o trabalho que o outro fazia. Pensava-se que os
dois competiam devido ao clima de rivalidade que existia entre as duas Alemanhas, enquanto
estavam elaborando juntos as bases da teoria ganhadora do Nobel.
Quando o muro caiu, em 1989, e finalmente se reencontraram, não imaginavam que
estavam a apenas quatorze anos da maior descoberta no campo da física desde a teoria de outro
alemão, a Relatividade.
Rio de Janeiro, 19 de abril de 2004
Para comemorar os cento e setenta e cinco anos do nascimento de Qorpo-Santo, uma
companhia de teatro carioca monta Esprit de qorps, uma peça na qual um ator, durante
1h59min, fica de costas para o público sem dizer uma palavra sequer.
Os poucos espectadores que não deixaram o teatro podem ver no grande relógio
iluminado, ao final das duas horas, antes de as cortinas se fecharem abruptamente, o ator com
uma máscara de porco imitar o grunhido do animal sendo morto.
Paris, 6 de maio de 2004
Sábato Magaldi, crítico de teatro, escreveu um texto sobre a história do teatro brasileiro
para o Governo: “Corpo-Santo (1829-1889) échappe aux schémas d’avant, étant un précurseur
du théâtre de l’absurde et du surréalisme”.
O texto completo pode ser consultado no sítio da Embaixada do Brasil na França:
<www.bresil.org/Culture/Theatre.htm>, mas não há mais nada sobre o autor além dessas duas
linhas.
Locos, excéntricos y marginales em las literaturas latinoamericanas, vol. I, publicação
do Centre de Recherches Latino-Américaine-Archivos (CRLA-Archivos) da Universidade de
Poitiers, é editada, em 1999, por Joaquín Manzi. Este primeiro tomo é dedicado às
“manifestações literárias” dos excluídos do século XIX e da primeira metade do XX. Na
segunda parte da obra, Fines de siglo y modernismo, há um capítulo escrito por Flávio Aguiar:
“O precursor do Teatro do Absurdo o Qorpo-santo, o qru e o qozido”.
38
Pode-se
ver
o
índice
do
calhamaço
no
sítio:
<www2.mshs.univ-
poitiers.fr/crla/publicat/publi031.html>, mas nada mais do que isso. Quem quiser saber por que
Qorpo-Santo é considerado um excluído tem que comprar o livro.
Basileia, setembro de 2004
Michaela Publiesco, escritora alemã de origem romena, é acusada de plágio por não ter
indicado a fonte dos dados biográficos contidos no seu livro de ficção publicado um ano antes.
O livro: Nós, as loucas, editado na Basileia pela Karger. A fonte: Dictionnaire de la
psychanalyse, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, publicado na França pela Librairie
Arthème Fayard em 1997.
Rio de Janeiro, 2005
O livro de contos Por que os loucos escrevemos livros tão bons é recusado por várias
editoras do Rio e de São Paulo antes de ser publicado às custas do próprio autor, um psiquiatra
em crise de identidade.
Uma das editoras citada no conto homônimo processa o autor por perdas e danos. Ganha
em primeira instância, ele recorre. Ela ganha também em segunda instância, sendo o autor
condenado a recolher os exemplares das livrarias e a pagar o dobro sobre o valor de capa à
editora por exemplar vendido. Para sua sorte, apenas três tinham sido vendidos desde a noite
de autógrafos.
A autoficção está com seus dias contados, ele pensa, deitado no divã do analista.
Rio de Janeiro, 2014
O autor ainda não recebeu alta do analista, mas não se desespera. Ele sabe que análise é
um tratamento caro e demorado.
Enquanto isso, prepara outro livro no silêncio do seu quarto. O pseudônimo com que
assinará o livro, ele já sabe, vai ser Joaquim José.
39
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POR QUE OS LOUCOS ESCREVEMOS LIVROS TÃO BONS Vila do