16/05/2012
Um crime confessado e outro
anunciado
(*)
O Brasil está desafiado agora, neste momento,
por dois crimes.
Um crime confessado e um outro anunciado.
O crime confessado é o depoimento
estarrecedor de um homem ainda pouco
conhecido da repressão brasileira: Cláudio
Antônio Guerra, um ex-delegado do DOPS do
Espírito Santo e que acaba de contar sua
história de terror no livro “Memórias de Uma
Guerra Suja”, que foi publicado este mês, resultado de dois anos de meticulosa investigação de dois
experientes repórteres brasileiros, Rogério Medeiros e Marcelo Netto.
O espantoso relato do ex-delegado Guerra lança luzes sobre episódios ainda nebulosos do regime
militar brasileiro, pela primeira vez reconhecidos, assumidos e detalhados por um destacado membro
do aparato repressivo do regime instituído em 1964. Como testemunha ocular e participante ativo, o exdelegado de 71 anos, hoje em crise de consciência e convertido como pregador de uma igreja
evangélica, já esteve preso e condenado por dezenas de crimes comuns, pelos quais cumpriu pena.
Mas são os crimes incomuns da ditadura, até hoje não esclarecidos, que permitem iluminar os porões
de nossa História recente.
O ex-delegado Guerra desfaz, com sua memória prodigiosa, mitos e lendas dos anos de chumbo da
repressão. Entre outros temas, conta como foi decidida a morte do delegado Sérgio Fleury, estrela
maior da ditadura em São Paulo, num encontro com militares em São Paulo. Dá detalhes inéditos do
atentado do Riocentro, descreve o assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, relata
atentados contra O Estado de S.Paulo e o jornalista Roberto Marinho e descreve o plano para matar
Leonel Brizola e incriminar a Igreja Católica.
E, pela primeira vez, fala sobre o destino final de militantes de esquerda que ainda hoje integram a lista
de desaparecidos políticos do país. Guerra fala sobre como morreram e como mataram David
Capistrano, Ana Kucinski, Luiz Maranhão, Joaquim Pires Cerveira, entre outros ilustres nomes da
oposição ao regime, incinerados em forno de uma usina de açúcar em Campos, no interior fluminense.
O ex-delegado Guerra não apenas viu. Participou, atuou, foi agente ativo nestes atentados e
assassinatos que hoje remoem sua consciência e que agora chocam a consciência nacional.
O livro já foi entregue e já foi lido, em primeira mão, pela presidente Dilma Rousseff, pelo Ministro da
Justiça e pelos Comandantes das Forças Armadas.
Escoltado por agentes da Polícia Federal, que hoje garantem sua segurança, o ex-delegado Guerra
acabou de percorrer os locais desconhecidos que indica como centros de tortura, execução e
desaparecimento de presos políticos.
Firme e decidido em sua denúncia, o ex-delegado Guerra está pedindo para ser acareado com o
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, com o coronel aviador Juarez de Deus Gomes da Silva e com o
delegado da Polícia Civil paulista Aparecido Laerte Calandra, três sobreviventes do tribunal informal
que decretou a 'queima de arquivo' do delegado Fleury.
Guerra quer uma acareação com todos aqueles a quem acusa pelo envolvimento em mortes e
desaparecimentos ainda hoje não esclarecidos.
Guerra quer mais. Quer depor agora, imediatamente, perante a Comissão Memória, Verdade e Justiça,
já instalada pela Câmara dos Deputados, e quer contar o que sabe perante a Comissão Nacional da
Verdade, assim que for nomeada e instalada pela presidente Dilma Rousseff.
O bom exemplo testemunhal do ex-delegado do DOPS capixaba pode ser o primeiro de vários
depoimentos que ajudarão o país a se reencontrar com sua história, com a verdade, com a justiça.
Não podemos permitir que, ao crime confessado, se siga o crime anunciado — a ameaça de que uma
'operação limpeza' dos criminosos elimine provas, intimide testemunhas e viole os locais e sítios onde
os crimes foram praticados.
Devemos zelar pela integridade física do ex-delegado e, com ele, compartilhar seu terrível passado,
que é o passado terrível que viveu o Brasil e os brasileiros sob o regime militar.
Pela devida proteção a este gesto de arrependimento e coragem, outros tantos que tanto sabem e
nada dizem terão motivo também para vir à luz e fazer este reencontro com suas consciências e com o
Brasil.
Precisamos ser rápidos, ágeis, eficazes.
Precisamos proteger os nomes das vítimas, seus parentes e eventuais testemunhas que o ex-delegado
Guerra aponta em seu livro.
Precisamos preservar e isolar os locais, os centros de tortura e execução e os sítios de sepultamento
clandestino que o ex-delegado Guerra aponta com riqueza de detalhes e absoluta segurança.
Faço, desta tribuna, um apelo urgente, incondicional, dramático à presidente Dilma Rousseff, à ministra
dos Direitos Humanos Maria do Rosário, ao ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, ao Ministério
Público e à OAB para que tomem medidas enérgicas e imediatas para a devida proteção e preservação
deste acervo inestimável de pessoas, lugares e evidências que nos ajudam a conhecer melhor o que
foi o regime de arbítrio no Brasil.
Presidente Dilma, a senhora sabe disso melhor do que ninguém!
Precisamos proteger nosso passado, para proteger ainda mais nosso futuro.
Conhecendo melhor a ditadura de ontem, saberemos reconhecer ainda mais a democracia que hoje se
constrói com tanta esperança e determinação.
Muito Obrigado.
(*) Discurso da deputada Luiza Erundina no Plenário da Câmara dos Deputados dia 09/05/2012.
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