P á g i n a | 12 Debate internalismo e externalismo: as ciências segundo, John Desmond Bernal Gianriccardo Grassia Pastore * Resumo: Este artigo investiga a relevância da produção cientifica de John Desmond Dernal para os novos rumos que a História e a Sociologia das Ciências tomam, principalmente, no que tange ao debate sobre internalismo versus externalismo. Ressalta-se a relevância da atividade científica de Bernal, sobretudo no que diz respeito às ciências humanas ao lançar mão do materialismo histórico como núcleo epistêmico de sua visão de mundo. Palavras-chave: Ciências – internalismo – externalismo – John D. Bernal. Ainda hoje, passado mais de um século da Teoria da Relatividade de Einstein e de todas as transformações que ela trouxe para as ciências (mudanças sócio-políticas vividas durante o “Longo Século XX” e que acabaram por refletir no modo com o qual se passou a encará-las, principalmente as chamadas ciências “exatas”) ainda são vista por muitos, não só pelo “senso-comum”, mas também por alguns acadêmicos, como verdades absolutas, neutras e objetivas. Além da já citada Relatividade de Einstein, fator “intrínsceco” às ciências, podemos também citar outros fatores “extrínsecos” às mesmas, tais como: a falência do modelo Liberal com a Crise de 1929, os horrores das duas Guerras Mundiais e a Guerra Fria, além de outros que levaram alguns historiadores, sociólogos, antropólogos e filósofos a procurarem um novo modo de observá-las. A partir, principalmente, de 1930, as ciências passam a ser objeto de estudo dessas disciplinas. Isso representa uma grande transformação. A interpretação positivista das ciências começa a perder espaço para estudos que passam a considerá-las como produtos da História, do meio político, social e cultural. Essa ênfase, dada a esses fatores, é conhecida inicialmente como “visão externalista” das ciências. O cientista começa a ser visto como um inventor de realidades e não mais como um simples reprodutor de uma suposta realidade já existente e dada no mundo que o circunda. Como muito bem definira Jürgen Habermas (2006), ciências e técnicas são frutos da ideologia. Assim como sob uma possível interpretação gramsciana, o cientista seria um intelectual orgânico. 1 1 Segundo Antonio Gramsci, todos os homens são filósofos. Para Gramsci, o simples fato de dar nome às coisas, por exemplo, é um ato de reflexão, pois os nomes não estão nas coisas, são fruto de uma interpretação e intervenção humanas. Dessa forma, transpondo isto para questões politico-sociais, Gramsci afirma que a burguesia, ao se tornar classe hegemônica, tal qual fora a nobreza e, esta, por sua vez, também o fizera, precisou de intelectuais (que é todo aquele que exerce uma função organizadora na sociedade, desde o administrador, até dirigente sindical, jornalista, acadêmico e, até mesmo, o cientista) para “moldar o mundo” ou torná-lo “natural”, segundo a sua ideologia. Estes são os intelectuais de tipo “tradicional”. Por seu turno, os intelectuais orgânicos. Devido a sua ligação com o operariado, seriam os responsáveis por uma nova “representação” ou “interpretação” de mundo, segundo os interesses dessa Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 13 É nesse contexto de tantas transformações que apresentamos John Desmond Bernal (1901-1971), também conhecido como “Sage” (“Sábio”). Graduado em Matemática e Ciências, dará prosseguimento aos seus estudos com especialização em Ciências Naturais sob a orientação de Sir William Bragg nos laboratórios Davy Faraday, em Londres, tendo, em 1924, determinado a estrutura molecular do grafite. É em seu grupo de pesquisa, em Cambridge, que se inicia em cristalografia (o que poderia valer posteriormente a um dos membros desse grupo, Dorothy Crowfoot Hodgkin, o prêmio Nobel de Química em 1964). Foi professor no Birbeck College, pertencente à Universidade de Londres, onde lecionou Física e, em 1922, tornou-se membro da renomada Royal Society. Em 1929, propõe aquilo que ficaria conhecido como a “Esfera de Bernal”, baseada em um asteróide oco que seria utilizado no espaço em missões de longa duração para colonização deste (SYNGE, 1992, p. 267-278). Ao longo da década de 1930 também estudou a estrutura das vitaminas B1 e D2 e a pepsina, tornando-se um dos principais criadores da Biologia molecular. Durante a II Guerra Mundial, não só participa, como também é o orquestrador daquilo que ficaria conhecido como “O Dia D”, ou seja, a invasão da Normandia pelas tropas aliadas. Porém, para além da sua importância no campo das ciências “exatas” e de sua militância política,2 é reconhecidamente um nome de grande envergadura naquilo que tange ao estudo das mesmas, seja na História ou na Sociologia das Ciências, e é o que nos interessa nesse breve estudo. Pode-se considerar como marco inicial do interesse dos cientistas britânicos pelo materialismo dialético a participação de uma delegação soviética chefiada por Nikolai Bukharim e com a presença de N. I. Vavilov, B. Zavadovski, E. Colman e Boris Hessen, no II Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, realizado em Londres entre 29 de junho e 4 de julho de 1931, no qual foram expostas as posições soviéticas sobre a temática em foco. classe e que, como definira Karl Marx, são antagônicos e inconciliáveis com os da classe dominante, a burguesia. A esta nova cultura dá-se o nome de “contra-hegemônica”. Hegemonia é a capacidade de unificar através da ideologia um bloco social através da persuasão ( GRAMSCI, 1999). . 2 Desde 1923 ingressa nas fileiras comunistas, o que, segundo relata sua filha Jane Bernal, não era bem visto pela Royal Society e que teria lhe impedido de ganhar um prêmio Nobel, enquanto alguns dos que trabalharam com Bernal foram laureados com este. Durante a Guerra Fria também se engajou em muitos eventos pela paz mundial, esforçando-se para que as grandes potências se desarmassem. Vale também aqui ressaltar sua postura independente neste período, posicionando-se criticamente a alguns eventos do lado comunista. (PATIL, Arjun. “J. D. Bernal: A Centenary Tribute”. In: The Marxist, vol 17, nº 1, 2001). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 14 A visita desta comissão soviética não poderia ser mais oportuna, visto o contexto inglês do período. O ano de 1931 marca o colapso do regime capitalista na Inglaterra e o Partido Trabalhista demonstra-se incapaz de solucionar os problemas enfrentados em decorrência da Crise iniciada dois anos antes em Nova Iorque. A descrença com a política tradicional ganha cada vez mais anuência, o que leva muitos intelectuais a buscarem soluções nas ideias comunistas, já que se apresentavam em melhores condições de compreender e solucionar a situação. Por outro lado, a partir de 1932, apesar da certa liberdade garantida aos cientistas até então, a URSS de Stálin começa a mudar, rejeitando, inclusive, as recentes teorias da relatividade e os quanta. É nesse contexto pouco favorável dentro da URSS stalinista que as propostas dos cientistas soviéticos são apresentadas no Congresso na Inglaterra, o que irá gerar algumas tensões no seio do socialismo. Todavia, a apresentação de Boris Hessen sobre os Principia de Isaac Newton, contextualizando-os sócio-economicamente como fruto de uma sociedade burguesa, não obstante alguns erros cometidos e uma “certa ingenuidade”, desperta grande atenção da audiência inglesa, levando muitos autores a revelarem a mudança que suas obras sofreriam. A obra de Hessen é o marco de um novo olhar para a História das Ciências. A partir de então nenhum trabalho nesse campo poderia desprezar a interface das ciências e a sociedade. The social function of the sciences, uma das principais obras de Bernal, é um grande exemplo da influência hesseniana. A forma segundo a qual fora apresentada por Hessen a principal obra de Newton, estabelecia uma dialética com a temática da Física dos anos de 1930. Esse trabalho tornara-se paradigmático nos estudos das ciências, estabelecendo relação com seu tempo, sua cultura e sociedade. Até então, aqueles que haviam se debruçado sobre a temática eram principalmente literatos. Hessen revela a dependência do trabalho de Newton ao mundo que o circundava (CERUTI, 1987, p. 322-323). Muitas das ideias de Bernal sobre Física, Química e Biologia são pilares do atual conhecimento dessas disciplinas e, no que tange ao pensamento sobre elas, ele procurou sempre relacioná-las com a sociedade. Para Sage, as ciências tinham como função permitir a existência de trabalho e comida para todos e deveriam auxiliar a existência de uma socidedade mais justa e igualitária, que não servisse ao interesse da burguesia. Os cientistas teriam, assim, uma função mais engajada, não lidariam apenas com a natureza, mas seriam também agentes de transformação social. Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 15 Segundo Jerome Ravetz, as obras de Bernal de maior relevância são: Ciência na História (1954) e Ciência e Indústria no século XIX (1953). Quanto à primeira, foi elaborada no ano de 1948, por ocasião de convites para uma série de conferências, a partir de notas escritas durante a confecção do livro “A Função Social da Ciência” (1939), considerado o primeiro texto sobre Sociologia das Ciências. No tempo em que escreve “Ciência na História”, durante a Guerra Fria, o mundo vivia entre o medo de uma guerra biológica e de uma nova bomba atômica, bem como alimentava a esperança de dias melhores com as aplicações cientìficas em campos como a medicina e a agricultura. Esses fatos auxiliaram na reflexão sobre qual seria a função das ciências na sociedade. Deveria ser utilizadas a favor da militarização? Como seria sua relação com os governos? E como seria sua relação com a educação etc.? (BERNAL, 1981, p. 394). Bernal expressa nessa obra fundamental toda a preocupação que possuía quanto ao impacto das ciências sobre as sociedades e como elas acabam por moldar o pensamento humano. O autor tem a preocupação de tentar resolver essas questões e inseri-las em uma “cultura organizada”, pois o cientista assume a sua responsabilidade social. Observa igualmente que mesmo a utilização bélica das ciências trouxe benefícios em tempos de paz. E é dessa forma que podemos fazer um resumo do seu pensamento quanto às ciências. Essas deveriam servir à humanidade de forma pacífica, auxiliando na criação de uma sociedade igualitária. Sage oberva ainda que, anteriormente, ao valerem-se da ideia de ciências livres em valores, puras, os cientistas serviram cegamente ao “abuso das ciências”. Convictos das transformações que a Revolução Industrial trouxera, as ciências passam a ser sinônimo de progresso, todavia existe o outro lado, as massas de trabalhadores exploradas e vivendo sob péssimas condições. O produto final do trabalho coletivo é apropriado por uma classe, a burguesa. Além disso, no século XX as ciências já são capazes de destruir toda a humanidade e ainda não tinham acabado com problemas básicos, como a fome. Isso já era suficiente para lançar por terra o ideal de ciência pura. Por isso, defende que o cientista assuma sua responsabilidade social, para que o resultado de seu trabalho contribua para um planejamento da indústria e para que as ciências possam, finalmente, tornar-se parte integrante da vida e do trabalho dos homens. É preciso, como anteriormente foi exposto, contextualizar a obra de Bernal em um período de presença marcante do Estado, das disputas sociais e bélicas. Esses fatores são, de alguma maneira, encontrados influenciando a obra de Sage. Na disputa entre a Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 16 visão “internalista” e “externalista” das ciências, o autor filia-se a essa segunda, na qual os interesses político-sociais são explicitados como de fundamental importância para os resultados científicos. A disputa velada travada por internalistas e externalistas durante a Guerra Fria tinha como pano de fundo o Estado que, mais do que nunca, necessitava de desenvolvimento tecnológico. Durante a década de 1950, falar de ciências era relacionálas com a técnica, como se tivessem essa relação intrínseca. Outro ponto disputado por internalistas e externalistas era a respeito do papel do indivíduo na construção das ciências. Os primeiros destacavam a importância do indivíduo, enquanto os segundos davam ao cientista um papel secundário, destacando o papel das estruturas sociais. Destarte, a oposição indivíduo-sociedade, ou entre estrutura e evento se manifesta nas duas concepções que interpretam as ciências. Para Bernal, muitas histórias das ciências não passaram de crônicas de grandes descobrimentos. Segundo o autor, é indubitável que grandes homens tiveram papel de destaque no “progresso das ciências”, mas as suas realizações não podem ser estudadas apartadamente do meio social na qual se inserem. “Quanto maior é o homem”, afirma, “mais embebido está na atmosfera de seu tempo” Além do mais, observa que nenhum homem, por mais notável que seja, pode se considerar o único responsável por alguma realização, pois nenhum trabalho se realiza sem a existência de centenas que o precederam. Grosso modo, a corrente externalista pode ser interpretada como aquela que subordinou o desenvolvimento científico aos interesses sociais e às demandas econômicas. Ao longo de sua obra, Bernal sempre procurou associar os eventos sociais a essas demandas, pois, segundo sua interpretação, o conhecimento científico advém de necessidades extrínsecas. Segundo Pearce Williams (1957, 471-473), a tese central do livro Ciência na História é a relação entre as ciências e a sociedade, ou, mais precisamente, em termos marxistas, as ciências como parte da supraestrutura. O método do professor Bernal é de analisar e comparar as semelhanças entre a estrutura das ciências e a da sociedade. Contudo, uma crítica pertinente a este trabalho é que Bernal não expõe como se dá a influência da sociedade nas ciências e vice-versa, porém tenta demonstrar o quanto, em última análise, as ciências são direcionadas pelo social. Ao lermos o livro, apesar de o autor organizar em tópicos como: social, econômico, ciência, dentre outros, falta uma conexão entre eles. Em outros momentos, ao tratar da vida de cientistas considerados Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 17 importantes para a História das Ciências, não relaciona suas vidas com o fruto de seus trabalhos. No entanto, é importante reconhecermos o esforço de traçar uma história das ciências de caráter totalizante, típica do período em que viveu Bernal e, mais que isso, do desafio ao qual se lançou, de caráter totalmente novo e de enorme influência para os estudos que vieram a se desenvolver posteriormente. É claro que seria extemporâneo de nossa parte elaborar críticas ao pioneiro trabalho de Bernal a partir das mudanças que a História, a Sociologia e os demais estudos sobre as Ciências sofreram principalmente a partir das décadas de 1970 e 1980. Por isso, a críticas são elaboradas a partir de incongruências dentro daquilo que a própria obra estabeleceu como objetivos. Para finalizarmos essa nossa brevíssima exposição, é preciso ainda dizer que o bernalismo foi perdendo força a partir de 1945, visto o novo contexto histórico no qual o mundo iria se encontrar, e também devido ao fato de o Capitalismo não ter se eclipsado na Inglaterra. Aliado a isso, o grupo ao qual Bernal pertencia não soube distinguir o núcleo central de suas ideias de várias argumentações acessórias indefensáveis, conforme expõe Mario Cerruti. Bernal e os que com ele compartilhavam das mesmas ideias foram questionados incessantemente no período da II Guerra Mundial e também após esse conflito. Alegavam seus opositores tratar-se de um inimigo da liberdade científica. Diziam que as propostas por eles defendidas para a reorganização da vida científica já tivessem sido postas em prática na União Soviética, o que foi pretexto suficiente para os que a ele se opunham citarem as ações de Stálin contra a comunidade científica de seu país e associar o bernalismo a tais práticas. Não obstante tudo isso, os marxistas ainda sofriam ataques dos defensores da ideia de que as ciências seriam algo puro, livre de valores (CERUTI, 1987, p. 330). É dessa forma que a historiografia marxista inglesa não consegue formar uma segunda geração de estudiosos, entretanto, representa, sem dúvida alguma, um ponto de virada na historiografia das ciências desse país. Referências Bibliográficas: BERNAL, J. D. Science in History. Apud: RAVETZ, Jerome & WESTFALL, Richard. “Marxism and the History of Science”. In: Isis, vol. 72, nº 3, setembro de 1981. CERUTI, Mauro. O materialismo dialético e ciência dos anos 30. In: HOBSBAWN, E. J. (Ed.) História do Marxismo: o marxismo na época da III Internacional: problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 18 SYNGE, Ann. Family, School and University. In: The Royal Society of London, vol. 46, nº 2 - julho, 1992, 267-278. WILLIAMS, Pearce. Review. In: Revista Isis, vol 48, nº 4, dezembro de 1957. *O autor é bacharel e licenciado em História pela UFF e Ciências Sociais pela UERJ. No momento está cursando o Mestrado em História e Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, Portugal, e é membro do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT – FCUL / FCT – UNL). [email protected] Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 01, 2014, pp. 12-18, ISSN 2318-9614