CLASSE E GÊNERO: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO Lívia Benkendorf de Oliveira Ainda hoje, os conceitos de classe e luta de classes são muito caros ao materialismo histórico dialético, visto que o capitalismo se mantém como força de produção hegemômica, produzindo, deste modo, duas forças antagônicas, uma que detêm os meios de produção e outra que vende sua força de trabalho em troca de um salário. Não seria possível, portanto, captar o movimento dialético da história sem a compreensão daquilo que para Marx e Engels seria o motor da história: a luta de classes. Muitas são as correntes e teorias que defendem uma sociedade contemporânea livre das amarras modernas do trabalho alienador. Muitas destas não mais atribuem à categoria trabalho a centralidade da produção e reprodução ampliada da vida, dando prioridade a outras categorias como a da razão comunicativa, como assim o faz Jürgen Habermas. Não pretendemos trazer este debate, mas, em se tratando de uma pesquisa do campo do materialismo histórico, consideramos fundamental a categoria trabalho, bem como a de classe social para a compreensão das relações sociais dentro de uma sociedade capitalista. A partir deste pressuposto discutiremos o conceito de classe para Karl Marx e Friederich Engels, de modo a percebermos em que medida dialoga e se relaciona com a categoria gênero. Esta última será analisada de acordo com as perspectivas de pesquisadoras marxistas como Alexandra Kollontai, Heleieth Saffioti, Evelyn Reed e Elizabeth Souza Lobo. Sabemos que a questão de gênero não foi uma das preocupações estruturantes do pensamento marxiano, no entanto, vale a pena lembrar que a desigualdade de gênero fora percebida pelos autores e as considerações sobre o assunto encontram-se dispersadas em obras como o Manifesto Comunista (2010), A Ideologia Alemã (2009), Manuscritos Econômicos e Filosóficos (2004) e em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. As questões relacionadas à mulher e, sobretudo, à família estiveram presentes nas discussões sobre a sociedade burguesa e a divisão social do trabalho que, por sua vez, conduziria à primeira relação de propriedade privada – muito evidente no casamento monogâmico. É indispensável apreendermos as relações entre classe e gênero visto que a divisão sexual do trabalho teve e tem um papel fundamental para a exploração do trabalhador(a) pelo capital, seja no tocante a importância do ambiente doméstico enquanto reprodutor da força de trabalho, seja no sentido de impor às mulheres um trabalho ainda mais precarizado com salários menores que o dos homens. Segundo Engels, podemos identificar as contradições e antagonismos do capital nas relações familiares e isto implica analisarmos o papel social atribuído às mulheres na sociedade de classes. O objetivo desta pesquisa é, portanto, buscar as interseções entre classe e gênero numa sociedade que pretende se valer de inúmeros mecanismos a fim de elevar os níveis de extração da mais-valia. Neste bojo, faz-se indispensável a desigualdade de gênero – bem como as desigualdades étnico-raciais – à medida que fortalece as relações de propriedade privada e, portanto, a luta de classes. 1. O conceito de classe em Marx e Engels: uma perspectiva economicista ou dialética? Muitos teóricos não marxistas apontam como críticas aos escritos de Marx e Engels a presença de um determinismo econômico, de uma percepção evolutiva de história, bem como de uma estrutura de classe que não abrange as particularidades da vida cotidiana. No entanto, tal compreensão parte de uma interpretação dura e economicista desta obra, talvez por influência de uma produção que de fato tenha tomado a estrutura econômica como determinante das relações sociais, desconsiderando a agência humana enquanto resistência de classe que, por sua vez, promove a própria luta e, sendo assim, o movimento dialético da história. Segundo Marx, “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes” (2010, p. 40). Desta maneira, não nos cabe somente identificar as forças antagônicas pertencentes a cada sociedade, mas, mais do que isso, torna-se necessário percebermos as classes em seu movimento de formação e constante transformação. Para que uma classe seja formada é necessário um conjunto de condições econômicas de existência que transformam a população em burgueses ou trabalhadores. Separados por seu modo de vida, pelos seus interesses e pela cultura constituem-se enquanto classe, tendo em vista o compartilhamento de interesses que os organizam em comunidade, em uma comunidade política (2011). Em o Manifesto Comunista, Marx aponta a estruturação das classes sociais em diferentes momentos da história como entre os romanos na Antiguidade – patrícios, cavaleiros, plebeus e escravos – e a sociedade feudal, com os senhores vassalos, mestres de corporação, aprendizes, companheiros e servos. Cada período possui suas gradações particulares tendo em vista o modo de produção vigente. Tal fato nos coloca a importância de compreendermos as classes em sua complexa relação de poder e, por isso, a existência de mais de duas classes. Contudo, o capitalismo configurou-se enquanto um sistema que simplificou os antagonismos de classes, dividindo-nos em dois campos opostos. A formação do Estado moderno apresenta-se como mais uma força que contribui para esta divisão à medida que funciona como “comitê para gerir os negócios comuns da burguesia” (2010, p. 42). A concentração da propriedade no capitalismo permitiu a centralização política nas mãos da classe burguesa. Além de ter produzido as armas que destruíram o feudalismo, produziram também aqueles que se tornariam a ameaça ao próprio capital, o proletariado. Com o desenvolvimento da indústria e da acumulação de riquezas formou-se a classe operária que, dependendo da burguesia, tornaram-se mercadoria. A pequena oficina da corporação patriarcal fora substituída pela grande indústria que demandou um grande número de mão de obra, recrutado em todas as classes da população. Na medida em que as máquinas avançaram, os trabalhadores tiveram seus salários levados a níveis muito baixos e para que fossem ainda mais rebaixados, a força de trabalho masculina passou a ser substituída pela das mulheres e crianças. Camponeses, antigos artesãos e pequenos comerciantes, considerados por Marx como camadas médias, encontravam-se sempre na iminência de tornaremse classe trabalhadora à medida que, destituídos de suas antigas relações patriarcais e de seus instrumentos de produção, não viam outra alternativa senão a de vender-se aos capitalistas (Ibdem). Para além da classe burguesa, da classe operária e das camadas médias existia, todavia, o lúmpen-proletariado que corresponde às camadas mais excluídas da sociedade (Ibdem). Pode servir enquanto exército industrial de reserva, mas, suas condições de vida, normalmente o arrastam a uma alienação prolongada e conservadora. Consideramos fundamental entendermos que a produção das categorias em questão são datadas e refletem um período (século XIX) de empobrecimento de uma população urbana que, em sua imensa maioria, correspondia aos trabalhadores assalariados das indústrias capitalistas. Deste modo, as obras marxianas debruçaramse sobre a formação de classe e a luta de classes como elemento fundamental para a compreensão das transformações recentes e do fortalecimento de um modelo econômico capaz de tornar os próprios indivíduos mercadorias. A classe trabalhadora do século XIX tornou-se sinônimo de classe operária, por ser resultado direto do modo de produção capitalista e, por isso, representavam a “classe verdadeiramente revolucionária” (2010). Os outros grupos, como os camponeses, não eram percebidos enquanto produto autêntico do capital. Contudo, tal apreensão não significa poder afirmar que Marx e Engels não considerassem como trabalhadores outros grupos sociais. Ao longo da crítica ao Programa de Ghota (2012), Marx apontou como equivocada a afirmação de Lassalle que abrangia todas as classes distintas à classe trabalhadora como uma massa reacionária. A crítica é feita levando em consideração o movimento social que pode, a qualquer momento, empurrar as classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos e camponeses - para o proletariado. Nota-se, deste modo, que a concepção de história de acordo com o método materialista em questão compreende tudo como histórico e social e, sendo assim, nenhuma forma de sociabilidade é imutável, bem como as classes sociais não são formas definitivas e eternas, não tendo atingido, ainda, uma forma intransponível. “Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que têm de travar uma luta comum contra uma outra classe; fora disso, contrapõe-se de novo hostilmente uns aos outros, na concorrência. Por outro lado, a classe autonomiza-se, face aos indivíduos, pelo que estes encontram já predestinadas as suas condições de vida, é-lhes dada [angewiesen] pela classe a sua posição na vida e, com esta, o seu desenvolvimento pessoal; estão subsumidos a ela. É esse o mesmo fenômeno que a subsunção de cada um dos indivíduos à divisão do trabalho, e só pode ser eliminada por meio da superação da propriedade privada e do próprio trabalho” (Marx, 2009, p. 93). A totalidade capitalista impõe aos indivíduos uma organização em classes e sua subsunção a ela, mas uma subsunção que comporta reações e resistências. Não nega, desta forma, a existência de outras relações de poder que perpassem as relações de classe, haja vista as relações patriarcais que foram sendo substituídas pela industrialização, mas que ainda coexistem, ainda que de modo não hegemônico. Por este motivo, volto a ressaltar as preocupações de ambos os pensadores com a questão da família e da mulher, mesmo porque são também resultados do modo de produção e da moralidade burguesa. Apreender as contradições através do conflito das classes existentes é indispensável para a compreensão da totalidade e, por conseguinte, das transformações do capital e de suas novas estratégias de exploração. Por ora as classes reuniam-se em grupos de trabalhadores operários que compartilhavam comportamentos, crenças, tradições pouco diversificadas. Em cada momento do desenvolvimento das forças produtivas, as classes se reconfiguram parecendo dissolver-se em meio a uma diversidade de interesses e abrindo caminho para teorias que afirmam a superação das classes sociais e, por conseguinte, da história. No entanto, cabe aos intelectuais identificarmos as expressões e experiências de classe e para tal torna-se relevante considerarmos outras relações de poder que passam pela desigualdade de gênero e de etnia/raça, fato este que não significa enfraquecer e nem fragmentar a luta da classe trabalhadora como defendia Stálin e outros dirigentes comunistas. A todo instante torna-se evidente a preocupação dos pensadores em questão sobre o movimento de formação da classe burguesa e da classe trabalhadora, não representando, portanto, dois grupos homogêneos encerrados em si. Suas particularidades são e devem ser consideradas. No entanto, em se tratando de uma teoria que busca apreender o movimento da história, os escritos de Marx e Engels propõem identificar a classe em uma totalidade relacional e, sendo assim, não existe classe senão quando em conflito e quando percebida em sua complexidade e em sua interseção com outras categorias – de gênero, de etnia, de raça, etc. Tal sensibilidade é percebida, por exemplo, quando apontam que o desenvolvimento da economia implica, também, a transformação da família. A subjugação do trabalhador ao capital o expropria dos meios de produção de modo que todos da família são obrigados a vender-se no mercado em troca de um salário. O proletariado não possui uma propriedade que deverá ser preservada a fim de constituir-se como herança – assim como a família burguesa. Sendo assim, a família trabalhadora se distingue da família burguesa, visto que seus laços familiares são destruídos e transformados em instrumentos de trabalho (2010). Quando propõem a supressão da família, Marx e Engels defendem o fim da propriedade privada que, por sua vez, impõe à esposa e aos filhos um lugar submisso ao dono/patrão, bem como expõe às mulheres à “prostituição pública” (Ibdem). Em A Ideologia Alemã, expõem as relações históricas primordiais para qualquer atividade social e enumeram três ações como: a produção dos meios de subsistência, a produção de novas necessidades, inclusive as subjetivas, bem como a reprodução das pessoas, portanto, da família, em um intercâmbio social e de consciência (2009). A produção da vida surge com o nascimento de novos indivíduos e com a produção de um modo de cooperação que será ele mesmo uma força produtiva. A organização da família e a divisão sexual do trabalho constituem parte desta cooperação e, sendo assim, desta força produtiva. Em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels cita Marx. “A família – diz Morgan – é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentesco, pelo contrário, são passivos; só depois de longos intervalos registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical, a não ser quando a família já se modificou radicalmente (...). O mesmo acontece, em geral, com os sistemas políticos, jurídicos, religiosos e filosóficos” (2012, p. 41). Tendo em vista que para que surja uma nova estrutura é preciso que a antiga se torne antiquada, é necessário que os elementos para uma nova força produtiva já existam no presente e é, por isso, que a família sofre as primeiras modificações a partir das novas formas de sobrevivência e, em um último momento, as regras subjetivas e, portanto, o sistema de parentesco reorganizará, num movimento dialético, todo o conjunto ético e moral de relações. 2. Classe e gênero para as marxistas “...entra em cena sob a forma de escravização de um sexo por outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos, desconhecido até então na préhistória. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro esta frase: ‘ a primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos.’ E hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, inaugurou juntamente com a escravidão e com as riquezas privadas a época que dura até hoje, onde cada progresso é ao mesmo tempo um regresso relativo e o bem estar e desenvolvimento de uns se dão às custas da dor e da repressão de outros. A monogamia é a forma celular da sociedade civilizada, na qual podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que alcançam seu pleno desenvolvimento nesta sociedade” (Engels apud D’Atri, 2011, p. 4 e 5) O trecho acima, muito citado pelas pesquisas feministas dentro da perspectiva materialista histórica, torna evidente a importância da divisão sexual do trabalho para a compreensão dos antagonismos de classe. O modo de produção capitalista, à medida que se desenvolvia, demandava uma nova forma de organização familiar no sentido de manter a propriedade privada. Analisar a família significa também perceber como a mulher passou a assumir novos papéis sociais de acordo com a classe a que pertencia. Se pertencente à classe burguesa era notável a necessidade de manutenção e preservação da propriedade e de seus filhos homens que serão os futuros proprietários. À mulher da classe trabalhadora atribuía-se a função de trabalhadora doméstica, bem como de responsável por parte da renda familiar. Ambas possuíam posição inferior dentro da hierarquia sexual e social. No entanto, o nível de exploração e opressão são distintos. As trabalhadoras sofrem um processo de alienação e estranhamento que comprometem sua independência e liberdade, seja no tocante à questão social quanto à de gênero. A obra Manuscritos Econômicos-Filosóficos (2004), reflete sobre a condição humana no sistema capitalista e a produção do ser humano em um processo de estranhamento e alienação aos resultados de seu trabalho, ao meio no qual vivem, a outros seres humanos e a si mesmos. A concepção de trabalho estranhado tem como pressuposto a ideia de trabalho enquanto mediação entre homem e natureza de modo que dessa interação provém toda a existência humana. As necessidades imediatas são aspectos básicos da atividade social e, por isso, a produção dos meios para a satisfação das necessidades elementares configura-se como primeiro ato histórico (2009). Após as primeiras satisfações novas demandas são criadas de maneira a tornar constante e infinito o esforço por novos trabalhos e instrumentos que produzirão, todavia, satisfações ao espírito. Numa relação dialética, o ser humano modifica a natureza e, por consequência, modifica a si mesmo. O trabalho é o processo pelo qual homens e mulheres exteriorizam-se a partir das condições materiais da vida e é, por este motivo, que a vida determina a consciência e não o contrário. Na sociedade capitalista, o trabalho assume a forma de trabalho estranhado sobre o conjunto das relações humanas alienadas, ou seja, exteriorizada. Na apresentação dos Manuscritos (2004), o tradutor da obra Jesus Ranieri distingue alienação (Entäusserung) de estranhamento (Entfremdung) de forma que o primeiro refere-se à exteriorização e objetivação humana por meio de um produto fruto de sua criação. É o estranhamento que ganha sentido negativo quando se trata de um trabalho não livre, controlado por uma classe dominante que se apropria do trabalho alheio (Ibdem). Trata-se de uma alienação estranhada. O trabalho objetivado no produto é a ele estranhado à medida que não o pertence enquanto criador. É ainda estranhado porque a relação de trabalho, o ato da produção é também uma obrigação. O caráter genérico do homem como ser consciente e livre desaparece quando do trabalho estranhado estranha-se a si próprio enquanto natureza e a si mesmo enquanto dotado de uma função vital. “Faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual”, constata Marx (2004, p.84). A militante marxista e líder revolucionária russa Alexandra Kollontai (18721953) escreveu sobre as consequências da sociedade industrial para as mulheres trabalhadoras que foram lançadas ao mercado de trabalho, tendo em vista a necessidade deste mesmo mercado em absorver uma força de trabalho de baixo custo – como ocorreu com as crianças –, bem como a necessidade por parte das famílias da classe trabalhadora em ter sua renda acrescida. A mulher celibatária representa a contradição do capital que produz em seu seio a ameaça a sua própria existência. A mulher trabalhadora, por ser classe trabalhadora, é também revolucionária. Se o fato de a classe proletária constituir-se enquanto ameaça ao capital se dá tendo em vista sua condição de explorada não podemos afirmar que tanto homens como mulheres sofrem o mesmo tipo de exploração. A nova mulher é fruto das novas relações capitalistas e, ainda que esteja subsumida à exploração e opressão de gênero, passa a alcançar maior independência financeira, assumindo uma nova postura frente aos laços patriarcais que as impunham os limites domésticos e os papéis sociais de mãe e esposa. Kollontai apresentou algumas importantes obras literárias que já traziam personagens femininas independentes, solteiras, intelectuais, profissionais e, segundo ela, “com personalidade”, distinguindo, portanto, da imagem frágil, sensível e inferior. As mulheres celibatárias veem-se no dilema entre o amor e a profissão. A maternidade torna-se um agravante, pois se transforma em mais um obstáculo à sua liberdade, assim como os relacionamentos. A união livre, bem como o matrimônio legal e a prostituição representam dentro da moral contemporânea uma crise sexual que só será solucionada, segundo Kollontai, dentro de uma nova sociedade que supere a propriedade privada e, assim, a mulher como propriedade. Citando Hess, Kollontai concorda que “O amor em si é uma grande força criadora. Engrandece e enriquece a alma daquele que o sente, tanto como a alma de quem o inspira” (1979). Imediatamente faço uma aproximação do amor com o trabalho como princípio educativo. Se este último representa, numa perspectiva materialista histórica, a atividade que faz de homens e mulheres seres humanos, o amor, de acordo com o raciocínio de ambas, seria um impulsionador deste trabalho e interferiria diretamente na forma como interpretam o mundo e dão sentido a ele. Quando o trabalho é alienado tornamo-nos alienados de nós mesmos e dos outros e, deste modo, o amor está comprometido. O amor baseado na posse é também alienador de si e da nossa relação com o outro quando não conseguimos nos perceber em nosso potencial coletivo e em nossa capacidade de nos sentir enquanto seres sociais. “Cada um dos sexos busca o outro com a única esperança de conseguir a maior satisfação possível de prazeres espirituais e físicos para si” (Ibdem, p. 46). Na medida em que o trabalho deixa de ser alienado o amor também o deixa, o mesmo efeito não se dá caso o amor seja transformado primeiramente, já que a propriedade privada não teria se desfeito. Após algumas décadas, o movimento feminista passou a reivindicar não só a igualdade entre homens e mulheres, mas também a superação do capitalismo enquanto modo de produção gerador de tais desigualdades, inclusive a de gênero. Foi a partir da década de 70 que o movimento feminista incluiu em sua pauta a necessidade de se pensar o sistema como uma totalidade geradora de desigualdades e que, portanto, para a igualdade de gênero ser alcançada seria indispensável uma luta que envolvesse toda a classe trabalhadora e a superação do capital. Considerada a segunda onda do movimento feminista, este novo conjunto de lutas trouxe a crítica à naturalização da mulher enquanto ser frágil e inferior. A antropóloga marxista Evelyn Reed foi uma das importantes pesquisadores que inseriu a universidade neste debate. Para tal escreveu Sexo contra Sexo e Classe contra Classe onde pretendeu demonstrar que as sociedades ditas primitivas eram, em sua maioria, matriarcais. Sendo assim, a submissão da mulher ao homem foi construída socialmente a partir da propriedade privada. Muito influenciada pelos escritos de Engels sobre A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Reed demonstrou através de inúmeros estudos antropológicos as modificações da estrutura familiar e, por conseguinte, da posição da mulher. “A descoberta do papel dominante assumido pela mulher na sociedade matriarcal primitiva destrói este mito capitalista [“o segundo sexo”]. A mulher da época selvagem dava à luz seus filhos e continuava livre, independente, e representava o centro da vida social e cultural. Isto vai de encontro a um ponto muito doloroso, porque afeta não somente a ‘questão feminina’ como também a ‘sagrada família’. Tal contraste se agrava pelo fato de que esta igualdade e estas liberdades caminham paralelas também com algumas relações sexuais livres, tanto por parte dos homens como por parte das mulheres em agudo contraste com as rígidas restrições sexuais impostas à mulher em nossa sociedade dominada pelo homem” (REED, 2008, p. 34) No Brasil, Heleieth Saffioti foi uma das pioneiras no tocante ao debate de gênero dentro da academia e na perspectiva materialista histórica. O marxismo deste período fora influenciado por um viés economicista e, por isso, muito pouco ou nada dialético. O conceito de classe social era interpretado de maneira dura à medida que impunha aos trabalhadores um comportamento prévio, tendo em vista os trabalhadores da indústria. Saffioti precisou romper com esta lógica a fim de trazer para a análise de classes a questão de gênero, bem como a questão étnica/racial. Ambas trariam elementos que aprofundariam o entendimento da própria classe trabalhadora, inclusive no que se refere à própria posição dos trabalhadores em relação às trabalhadoras dentro do movimento sindicalista. De acordo com a socióloga, “os homens da classe dominada funcionam, pois, como mediadores no processo de marginalização das mulheres de sua mesma classe da estrutura ocupacional, facilitando a realização dos interesses daqueles que na estrutura de classes ocupam uma posição oposta à sua” (Saffioti apud Gonçalves, 2011, p. 124). As abordagens predominantes nos estudos deste período baseavam-se numa noção de classe estrutural, quase universalizante. Elizabeth Lobo contribuiu para o estudo da prática e da consciência operária com pesquisas sobre as trabalhadoras das indústrias paulistas. Demonstrou que este conceito duro de classe “se fundava numa generalização das práticas masculinas” (LOBO, 2011) e, por isso, era necessário considerarmos que as experiências dos trabalhadores são sexualizadas. Lobo utiliza o conceito de experiência do historiador E. P. Thompson, pois torna possível analisar as manifestações culturais como expressões da luta de classes. Ainda que o pensamento marxista tenha sido muito relevante para as pesquisas de gênero, foi no contexto da década de 80, com o fortalecimento da política econômica neoliberal que o feminismo tomou uma nova forma, passando a ser identificado como a terceira onda do movimento. A resistência por parte dos próprios partidos comunistas, somada às teorias pós-modernas contribuíram para a fragmentação do movimento de mulheres de modo a descolar a luta pela igualdade de gênero daquela que pretendia a superação do sistema capitalista. Muitos são os dados estatísticos e as pesquisas qualitativas que demonstram a precarização da força de trabalho feminina, bem como toda uma moral que ainda as impõem a um papel submisso à figura masculina. A maior escolaridade das mulheres, bem como sua maior participação no mercado de trabalho não diminuíram a opressão e, deste modo, homens e mulheres continuam produzindo e reproduzindo suas vidas num contexto de exploração e opressão capitalista e patriarcal (Nota: Ver Claudia Mazzei Nogueira, A Feminização no Mundo do Trabalho: entre a emancipação e a precarização). Neste sentido, a fim de melhor compreender o movimento de formação da classe trabalhadora e, portanto, da luta de classes, faz-se fundamental apreender que “a classe trabalhadora tem dois sexos” (LOBO) - ou quanto mais forem – e que as práticas e a consciência de classe devem ser consideradas em suas inúmeras formas de ser humano. Conclusão Contrariando muitas teorias marxistas que percebem a relação base e superestrutura de modo determinista, estamos de acordo com as concepções mais fiéis à dialeticidade do pensamento materialista histórico dialético, pois é esta lógica que nos permite apreender a realidade concreta e sua complexidade de movimentos. As militantes e teóricas feministas e marxistas contribuíram para a apreensão de um conjunto de práticas da classe trabalhadora perpassada pelas relações de gênero, por experiências sexualizadas. Quando Elizabeth Lobo (2011) afirma que “a classe operária tem dois sexos” é justamente no sentido de ampliar as possibilidades do ser trabalhador, dos diferentes tipos de dominação e da produção de mecanismos de resistência. Ainda que Marx e Engels não tenham se aprofundado no debate sobre a posição da mulher na sociedade de classes, pretendemos demonstrar suas muitas preocupações com o assunto e com a luta pela igualdade de gênero a partir da superação da propriedade privada e da divisão social do trabalho. Consideramos que a obra marxiana não exclui o debate de gênero e, todavia, nos permite compreender o movimento da luta das mulheres trabalhadoras na produção e reprodução ampliada da vida. Referência Bibliográfica ENGELS, Friederich. A Origem da Família. In A Mulher e a Luta pelo Socialismo. Clássicos do Marxismo. São Paulo: Editora José Luis e Rosa Sundermann, 2012. D’ATRI, Andrea. Feminismo e Marxismo: 40 anos de controvérsias. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n.27, p. 142-156, 2º sem, 2011. KOLLONTAI, Alexandra. A Nova Mulher e a Moral Sexual. 2ª edição, São Paulo: Global Editora, 1979; MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2007. ___________. A ideologia Alemã. 1ª Ed, São Paulo, Expressão Popular, São Paulo: 2009. ___________ e ENGELS, Friederich. Manifesto Comunista. 1ª Ed., São Paulo: Boitempo, 2010. ___________. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. REED, Evelyn. Sexo Contra Sexo ou Classe contra classe. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2008. SAFFIOTI, Heleieth I. B. A Mulher na Sociedade de Classes. 3ª Ed., São Paulo: Expressão Popular, 2013. SOUZA-LOBO, Elizabeth. A Classe Operária tem Dois Sexos: trabalho, dominação e resistência. 2 ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2011.