C a d e r n o s L i n k Entrevista O modelo napoleónico do Estado está obsoleto No caso português, a Administração Pública é ainda hoje encarada, por agentes económicos nacionais e estrangeiros, como uma menos-valia explícita. Mas não estamos condenados a esta sina. Há hoje uma clara janela de oportunidade José Tribolet Presidente da Direcção do INESC 16 N1 - Novembro de 1999 C a d e r n o s L i n k Entrevista ão é necessário fazer a reengenharia organizacional da Administração Pública portuguesa – a sobrevivência de Portugal também não é obrigatória, gosta de dizer, por graça, José Tribolet, o presidente do INESC, parafraseando Edwards Deming, um dos «pais» do movimento da Qualidade Total. Por «reengenharia», o fundador do INESC não entende a vulgata do despedimento de pessoal ou do fecho indiscriminado de serviços. A questão essencial, para ele, está no sistema e não nas pessoas. O que urge é repensar de alto a baixo o sistema e partir do utente e do cidadão (do «cliente», se quisermos falar na linguagem mais simples da gestão) para desenhar uma «nova arquitectura» da Administração Pública, área em que a LINK tem competências para oferecer. Não se trata do «ovo de Colombo», frisa José Tribolet. Noutros países – uns mais perto de nós, dentro do espaço europeu, como o Reino Unido, a Holanda ou os nórdicos, outros mais longe, como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia – este movimento já foi iniciado nos anos 80, sob a bandeira do que viria a ser conhecido pela «Reinvenção da Governação». Os casos dos Estados Unidos e do Canadá referidos pelo nosso interlocutor são brevemente descritos em artigos próprios neste espaço. Trata-se apenas de acertar o passo por essas experiências. Por «dar prioridade à arquitectura do sistema», o nosso entrevistado entende lançar uma pedrada no charco em relação à prática corrente das compras públicas em Portugal. Compra-se em «pacote» em função da arte do fornecedor e, depois, encaixam-se os aparelhos e o software no velho sistema. Mais ainda: cada sector compra o seu «pacote» e a Administração gasta, depois, milhões a tentar pôr a falar estes «pacotes» entre si. Urge inverter esta N sina: primeiro, desenha-se a arquitectura do serviço em função das necessidades do utente e, depois, encomenda-se à medida e com uma perspectiva integrada. Há alguma réstia de esperança de mudar a Administração Pública portuguesa, ao fim de tantas tentativas de reforma? Há. O problema é por onde pegar. Dizse frequentemente que o problema fundamental reside na incapacidade e na falta de qualidade dos portugueses, e especialmente dos funcionários públicos, mas isso não é verdade. Não é essa a questão essencial. Onde reside, então, o problema central? A nível organizacional. A Administração Pública tem de ser objecto de uma revolução organizacional. Mas não é isso que têm feito as ditas reformas nas últimas décadas? Não. A topologia essencial da Administração Pública não tem sido beliscada. Continua a que herdámos historicamente do período napoleónico, assente num paradigma de organização vertical, comparti mentado e sem integração e estandardizado por áreas e objectivos sectoriais. É o velho modelo funcional, hoje obsoleto, que nas organizações empresariais há muito foi posto em xeque pela revolução da gestão. A Administração não está hoje virada para responder ao seu cliente, o utente, mas, pelo contrário, «empurra» para o cidadão os produtos e serviços que entende poder prestar a partir das suas competências sectoriais e funcionais. Então é um problema de visão da Administração que se quer? O que se pretende é uma Administração realmente ao serviço do cidadão. Esta afirmação tão simples implica o quê? Que o modelo de organização seja processual, isto é, que toda a Administração esteja virada para o utente, que as suas competências sejam usadas de acordo com as necessidades dos utentes, que haja uma visão integradora e não compartimentada. No concreto, quer mostrar-nos a diferença? Veja o caso da Saúde. O que é preciso fazer é pensar a sua arquitectura, como nós dizemos no INESC, e não atacar aspectos parcelares. Há que pegar, por exemplo, em três aspectos essenciais para o utente – a informatização da Via Verde nas urgências, as filas de espera e o controlo da prescrição médica – e redesenhar os processos e a organização em função da óptica do utilizador. É inverter o processo actual. Veja outro caso – na Justiça. O que é fundamental é definir metas, do género fixar um prazo máximo, por exemplo, de seis meses, para cada processo que dê entrada e, a partir daí, redesenhar todo o funcionamento e comportamento dos actores envolvidos. Suponha que, na educação pública, se fixa a meta de que não pode haver mais de 10% de fracassos escolares. A partir daí, redesenha-se tudo para atingir esse objectivo. Não é difícil importar essas sementes de mudança para dentro da Administração? É, mas há uma oportunidade actual que não pode ser desperdiçada. Existem duas ocorrências que abrem uma janela de oportunidade, como agora se diz. Por um lado, a nível dos recursos humanos, há uma renovação de quadros, o que é uma excelente oportunidade para uma renovação mental. Por outro lado, há o imperatiN1 - Novembro de 1999 17 Há na Administração Pública portuguesa uma oportunidade actual que não pode ser desperdiçada. Existem duas ocorrências que abrem uma janela de oportunidade, como agora se diz. Por um lado, a nível dos recursos humanos, há uma renovação de quadros, o que é uma excelente oportunidade para uma renovação mental. Por outro lado, há o imperativo das novas tecnologias. Elas têm um papel estruturante na reorganização e na gestão dos sistemas. É preciso aproveitar a inevitabilidade da entrada das novas tecnologias para repensar o sistema. vo das novas tecnologias. Elas têm um papel estruturante na reorganização e na gestão dos sistemas. É preciso aproveitar a inevitabilidade da entrada das novas tecnologias para repensar o sistema. Mas a Administração não tem feito isso com os milhões que tem investido em novas tecnologias? Eu não estou a falar dos Planos Directores Informáticos, da compra de «pacotes» de hardware e software, por vezes quase chave na mão. Os fornecedores dessa área são especialistas na oferta desses «pacotes» e no convencimento da sua aquisição. Antes de avançar com essas compras é preciso pensar a tal arquitectura do sistema de que falámos. É preciso inverter, também aqui, o método – é a informática que deve ser colocada ao 18 N1 - Novembro de 1999 serviço da Administração e não o contrário. Na Administração Pública, durante as próximas décadas, o Estado – nós todos – vai gastar várias Expo-98 na questão dos sistemas de informação. Por isso, tem de saber gastá-los. Veja o seguinte: o caso da Loja do Cidadão, se for multiplicado, implicará o redesenho da Administração. Se não, é mais uma «ilhota» isolada sem efeito global. A União Europeia e a globalização não vão matar o papel da nossa Administração Pública? Bem pelo contrário. Há vários sectores que estão a ganhar importância crescente, nomeadamente com a globalização. A mais-valia ou menos-valia que o ambiente jurídico e processual administrativo proporciona faz a diferença competitiva. A nossa Administração tem sido considerada como uma menos-valia explícita por agentes económicos nacionais e estrangeiros. A onda de privatização gradual não vai pôr em xeque o papel da Administração? Não. Há que fazer uma destrinça entre os serviços que a Administração deve prestar e os que devem ser oferecidos ou geridos pelos privados. Há serviços essenciais que faz sentido serem prestados pelo Estado e há outros que devem ser regulados pela Administração, mas que podem ser executados pela sociedade. ¶ Os princípios-chave arquitecturais A visão do serviço Estabelece o contexto estratégico do serviço público nos seguintes parâmetros: • Focalização no utente; • Gestão de pessoas para o seu empenhamento; • Partilha de soluções comuns; • Parcerias e alianças estratégicas; • Responsabilidade e medição do desempenho; • Tecnologias de informação. 1. Serviços públicos directos aos clientes 2. Serviços transparentes e sem falhas 3. Serviços com valor acrescentado 4. Aprendizagem contínua 5. Ferramentas interligadas e «standards» 6. Soluções partilhadas 7. Informação partilhada 8. Redução do papel A visão operacional Descreve como os serviços redesenhados devem ser fornecidos aos utentes: • Guichet único; • Optimização; • Opção de escolha pelo utente; • Consistência; • Localização e acessibilidade; • Melhoria contínua do serviço. A visão sobre a informação Reflecte o papel fundamental que a informação desempenha na renovação dos processos do serviço público: • Gestão da informação; • Gestão de dados; • Partilha e reutilização da informação; • Transporte da informação; • Protecção da informação; • Retenção da informação; • Armazenamento da informação. A visão das aplicações Alinha os processos com os requisitos da informação: • Sistemas partilhados; • Modularidade; • Desenvolvimento rápido de aplicações; • Reutilização; • Distribuição; • Interfaces inter-aplicáveis standards; • Consistência. A visão tecnológica Endereça as plataformas tecnológicas requeridas e os serviços em rede indispensáveis para satisfazer as necessidades dos vários tipos de utentes: • Modularidade; • Conectividade/portabilidade; • Distribuição; • Orientação worksation; • Orientação rede (network); • Gestão da infra-estrutura. A visão organizacional • Focalização na definição dos processos e das actividades críticas; • Visão integradora; • Atitude preventiva; • Estruturas horizontais intra-organizacionais; • Conciliar descentralização e proximidade da gestão das interfaces dos utentes com a centralização, racionalização global e perspectiva estratégica das operações. © José Tribolet, in «A Administração Pública no Próximo Século», 12 de Maio de 1999, seminário «Portugal, a globalização e o negócio electrónico: que estratégia para a próxima década?»