A EDUCAÇÃO DO CAMPO: UM PROCESSO DEMOCRÁTICO DE CONSTRUÇÃO? Angela Maria Monteiro da Motta Pires Universidade Federal de Pernambuco [email protected] RESUMO: Este texto apresenta um estudo visando apreender até que ponto a construção da Educação do Campo vem se constituindo de forma democrática. Fundamenta-se nas perspectivas teórico-metodológicas de democracia participativa de Boaventura de Souza Santos. Os resultados demonstram que a construção da educação do campo para se constituir em um processo democrático requer uma ação articulada Estado e sociedade civil no sentido de que sejam viabilizadas as condições políticas para que as decisões tomadas coletivamente sejam consideradas; Palavras- chave: Educação do Campo; Democratização; Estado INTRODUÇÃO Este trabalho tem como propósito discutir os resultados de uma pesquisa realizada em instrumentos legais sobre a educação básica e educação do campo. Considerando que a Educação do campo surge a partir de reinvindicações dos movimentos sociais e em contraposição à educação rural, no sentido de uma política pública como direito dos povos do campo, o nosso objetivo foi apreender até que ponto esse processo vem se constituindo de forma democrática. A educação do campo vem sendo construída numa tensão entre os interesses do Estado Brasileiro, dos empresários e da sociedade civil organizada. Por um lado, temos os movimentos sociais, os grupos organizados da sociedade civil, empenhados na luta por uma educação do campo na perspectiva de política pública, como direito dos povos do campo; por outro, o Estado brasileiro, aportando uma legislação que no período anterior a 1998, considerava a educação para as populações do campo apenas numa ótica instrumental, assistencialista ou de ordenamento social. No sentido instrumental e assistencialista, os parâmetros para tais ações se baseiam não nos direitos sociais dos povos do campo, mas na “ajuda”, na “retribuição de favor” às populações 2 desfavorecidas, assim como em uma concepção de ensino que se apresenta de forma restrita, ao contemplar apenas as tarefas laborais simples ou assistencialistas da filantropia, na qual a responsabilidade social daquele Estado com a oferta de educação para as áreas rurais era transferida para a iniciativa privada em troca de incentivos fiscais. Visando ao ordenamento social, o Estado, representado pelos governos desse período, utilizava a educação para manipular o comportamento da sociedade, para atender a interesses econômicos ou políticos, restringindo, na maioria das vezes, a liberdade de expressão e o acesso à informação. Para enfrentar essa problemática, no final dos anos 1990, os movimentos sociais ligados às causas dos camponeses e pela reforma agrária criaram uma “Articulação Nacional Por uma Educação do Campo” (XAVIER, 2005, p.2), composta por movimentos sociais, organizações não governamentais, representantes das universidades e de órgãos públicos. Esse movimento destaca a importância da educação como parte de um projeto de emancipação social e política que fortaleça a cultura e os valores das comunidades campesinas, vinculada ao seu projeto de desenvolvimento autossustentável. Para tanto, preconiza que essa educação seja fundamentada em princípios que valorizem os povos que vivem no campo, respeitando sua diversidade. É nas duas Conferências Nacionais de Educação do campo, realizadas em 1998 e em 2004, em Luiziânia-Goiás, que as discussões advindas dos movimentos sociais e outros setores organizados da sociedade encontraram espaço. A I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo, realizada em 1998, se constituiu em um espaço de debate e mobilização popular, articulada pelos movimentos sociais, em prol da educação do campo. Essa conferência foi, segundo Caldart (2004, p.1), “o momento do batismo coletivo de um novo jeito de lutar e de pensar a educação para o povo brasileiro que trabalha e que vive no e do campo”. Dessa forma foi inaugurada uma nova referência para o debate da educação do campo e não da educação rural ou a educação para o meio rural. A II Conferência Nacional de Educação do Campo teve seu tema alterado de “Por Uma Educação Básica do Campo” para “Por Uma Educação do Campo”(PIRES, 2012,p.97 ) a partir dos debates realizados no seminário nacional, em 2002, sobre Educação do Campo, e das decisões tomadas que demonstravam a preocupação em ampliar as modalidades de educação como direito dos povos do campo. 3 Analisando os compromissos assumidos na II Conferência, apreende-se que há uma forte relação da Educação do campo com a realidade do campo, se distanciando da dicotomia historicamente construída campo-cidade, em que as áreas rurais foram consideradas atrasadas e sua população tratada de forma discriminatória. A superação dessa dicotomia busca valorizar o rural com a sua dinâmica sociocultural específica. Essa valorização passa pelo reconhecimento dos direitos sociais e humanos dos povos do campo e para isso é proposta a inclusão da Educação do Campo como uma política pública. Percebe-se que é colocado com muita ênfase o tratamento específico à educação do campo quando se explicita que “a inclusão somente poderá ser garantida através de uma política pública específica”(PIRES,2012,p.102). Essa concepção deixa transparecer que a forma dicotômica tão questionada no Documento de Referências da Política está sendo, de forma contraditória, considerada, ao se propor uma política específica para as áreas rurais, embora, por outro lado, trata de políticas públicas que garantam a universalização à educação. A construção articulada entre Estado e sociedade civil organizada, da educação do campo, começou, somente, a partir de 2002. Esse movimento ocorreu no sentido da elaboração das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo e a partir desse momento é que se tem um processo de reconhecimento dos direitos dos povos do campo à educação (CHAMUSCA, DELAMORA, HENRIQUES, MARANGON, 2007; MEC, 2002). No sentido de situar a democratização da educação do campo, analisaremos o marco normativo legal norteador da construção da educação básica e da educação do campo, com base em pressupostos e abordagens acerca da democracia refletidos por Boaventura de Souza Santos. PRESSUPOSTOS E ABORDAGENS ACERCA DA DEMOCRACIA Neste trabalho, buscamos revisitar algumas teorias sobre a democracia, no sentido de procurar entender a democratização da Educação do Campo, objetivando verificar até que ponto esse processo vem ocorrendo na direção de uma democracia participativa, que é a perspectiva que adotamos neste trabalho e que se fundamenta, 4 especificamente, nos estudos de Boaventura de Souza Santos. Assumimos esta perspectiva, tendo em vista que a democracia representativa vem apresentando limites quanto à participação dos cidadãos na gestão pública. Entretanto, como processo democrático, ela vai se construindo na tensão entre formas participativas e representativas de democracia, conforme as condições da realidade de construção da educação do campo. Para Santos e Avritzer (2002), a concepção de democracia moderna, não hegemônica, trazia consigo uma degradação das práticas democráticas, o que coincidiu com uma grave crise de dupla patologia: a patologia da participação, com o aumento do abstencionismo, e a patologia da representação, na medida em que os cidadãos se sentiam cada vez menos representados por quem elegeram. Essa discussão leva-nos em direção ao debate entre democracia representativa e democracia participativa apontando para uma nova perspectiva: a das teorias nãohegemônicas. Essa perspectiva tem como prioridade interpretar o fenômeno democrático a partir da ênfase na criação de uma nova gramática social e cultural, compreendendo a inovação social articulada com a inovação institucional “a procura de uma nova institucionalidade democrática”, ou seja, se constitui em uma gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade, em um movimento denominado por Santos e Avritzer (2002, p.51) de “terceira onda de democratização”. Essas concepções vinculam a democracia à forma de vida e a consideram como forma de aperfeiçoamento da convivência humana. É uma concepção de democracia que considera a participação como sendo um componente fundamental ao exercício da cidadania, comprometida com a emancipação política e social dos indivíduos. Essa abordagem apresenta uma forte vinculação com os movimentos sociais, por sua inserção em lutas, objetivando a ampliação de espaços políticos, e, também, na busca de reconhecimento de novas identidades e grupos sociais no interior dos diversos sistemas políticos (SANTOS & AVRITZER, 2002). Coloca-se, assim, uma mudança de enfoque em relação à questão da participação, tendo em vista a existência de uma grande insatisfação com o tratamento que lhe foi dispensado na concepção hegemônica, ou moderna de democracia. Para tanto, a participação deve ser aberta a todo o cidadão, sem nenhum status especial atribuído a qualquer organização e combinar a democracia direta com a representativa, em que os participantes definem as próprias regras internas. 5 Esta análise é reforçada quando Santos (1999, p.269) ressalta que é preciso evitar situações em que o “autoritarismo centralizado do Estado” se apoie no “autoritarismo descentralizado do terceiro setor”, pois abundam experiências de promiscuidade antidemocrática entre eles que identificam situações desse tipo, em que cada um usa o outro para se “desresponsabilizar perante os cidadãos, no caso do Estado; e os membros ou as comunidades, no caso do terceiro setor”. E propõe a democratização do Estado e a democratização do terceiro setor. As perspectivas teóricas aqui propostas nos sugerem apostar na possibilidade de uma ação conjunta e interativa do Estado e da sociedade civil para se construir políticas públicas de educação do campo mais democráticas. Porém, não se deve obscurecer que as relações que se estabelecem entre esses espaços são permeadas por conflitos e tensões, evitando, assim, uma interpretação reducionista da questão. A concepção de sociedade civil como “polo de virtude” e do Estado como “encarnação do mal” faz parte desse reducionismo. Porém, é importante ressaltar “a construção histórica dessas relações, no sentido de que elas são objeto da política e, portanto, transformáveis pela ação política” (DAGNINO, 2002 p.281). As reflexões sobre democracia aqui colocadas são referenciadas nas três teses que Santos & Avritzer (2002) propõem para o fortalecimento da democracia participativa: o fortalecimento da demodiversidade- reconhece que não há uma única forma para a democracia assumir e ressalta a importância da relação entre ‘democracia representativa e democracia participativa” (SANTOS, 2007, p. 90). Neste caso, o sistema político abre mão de suas prerrogativas decisórias em favor de instâncias participativas e cita a deliberação pública ampliada e o adensamento da participação. Santos (2007, p. 93) destaca, ainda, que essa relação deve ser considerada em três vias: a relação entre Estado e movimentos sociais; entre partidos e movimentos sociais e dos movimentos sociais entre si (SANTOS, 2007, pp 90-91).Ao lado disso, propõe uma articulação contra-hegemônica entre o local e o global fortalecida – ao considerar que as sociedades em geral continuam sendo cada vez mais injustas, porque o âmbito local não consegue uma articulação nacional. Esse fortalecimento é pensado no sentido do apoio dos atores democráticos globais aos atores locais, nos quais a democracia é fraca, assim como a necessidade que as alternativas locais têm para se expandirem do plano local para o global, apresentando-se como alternativas ao modelo 6 hegemônico (SANTOS, 2007, p.95); e a ampliação do experimentalismo democrático – Defende a necessidade da multiplicação de experimentos na direção da pluralização cultural, racial e distributiva da democracia e advoga que o formato da participação vai sendo adquirido experimentalmente. Essas três teses precisam ser apreendidas dentro do princípio da indissociabilidade, o qual pressupõe que as condições necessárias à democracia são, ao mesmo tempo, políticas e epistemológicas. Assim, redefinir o conceito de democracia, ampliando-o ao conjunto da vida social, permite redefinir, politicamente, as ações sociais que podem favorecer a sua construção enquanto sistema social fundado em ações democráticas em todas as esferas da vida social (OLIVEIRA, 2006). A partir dos pressupostos teóricos colocados, inferimos que deve haver uma relação entre Estado e sociedade civil, com base em uma ação articulada entre essas instâncias. Essa articulação não implica necessariamente, conforme Santos (2007), a complementaridade entre um e outro e, muito menos, a substituição de um pelo outro. Dependendo do contexto político, essa articulação pode consistir mesmo na confrontação ou oposição. Para tanto, torna-se necessário que tanto o Estado como a sociedade civil, passem por um processo de redemocratização. E as lutas pela democratização do espaço público têm assim um duplo objetivo: a democratização da meta-regulação e a democratização interna dos agentes não-estatais de regulação. A concepção de democracia colocada por Santos (2006, p.372) representa uma forma de alcançar a emancipação social na medida em que pode contribuir para a ampliação da atuação dos atores sociais nos processos decisórios, baseada na sua criatividade. Uma democracia, em que sejam questionadas as históricas e crônicas práticas de exclusão, abrindo, dessa forma, espaços de consolidação de uma nova cultura política, em que os cidadãos promovam controle das ações governamentais, exercendo forças de pressão junto às formas de exercício da democracia representativa. O MARCO LEGAL: BUSCANDO A REGULAMENTAÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO 7 A democratização da educação no Brasil encontra suporte legal, a partir da década de 1980. Foi um período em que a ordem jurídica de caráter democrático se impôs como um todo, contemplando, entre outras, a área educacional. Dessa forma, a gestão democrática da educação se fundamenta na Constituição Federal, no seu art. 37, o qual preconiza os princípios básicos que devem reger a administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Esses princípios, quando efetivados, colocam a transparência, o diálogo, a justiça e a competência como transversais à cidadania democrática. A Constituição de 1988, em decorrência do intenso quadro de debates e de discussões que subsidiaram o processo de democratização do país, ampliou as obrigações do Estado no setor educacional, ao incorporar propostas que expressavam as reivindicações oriundas dos movimentos organizados da sociedade civil. As mobilizações em torno do processo constituinte e a afirmação de uma cultura de direitos garantiram importantes conquistas da população e espaços de participação nas políticas públicas. Isso fez com que essa Constituição se tornasse expressão dessas reivindicações e, consequentemente, se constituísse em um marco para a educação brasileira, ao incorporar entre os direitos sociais e políticos o acesso de todos os brasileiros à educação escolar como uma premissa básica da democracia. Ao colocar no seu Artigo 208 que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, ergueu os pilares jurídicos sobre os quais viria a ser edificada uma legislação educacional capaz de sustentar esse direito pelo Estado brasileiro. No capítulo III da Constituição Federal, relativo à educação, à cultura e ao desporto, no art. 206, entre os sete princípios norteadores da educação, encontra-se o da educação como direito de todos e dever do Estado e da família, além de normalizar, através de seu art. 205, a preparação da pessoa para o exercício da cidadania e para o trabalho. trabalho, garantindo, assim, em termos legais, esse direito: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/ 96, aborda a questão da democratização da educação, ao tratar da gestão democrática, referindo-se ao pacto federativo nos termos da autonomia dos entes federados, conforme já propunha a 8 Constituição de 1988. Tratam-se do art. 3º sobre os princípios balizadores do ensino, inciso VIII – gestão democrática do ensino público na forma da Lei e da legislação dos sistemas de ensino – e do art. 14, ao estabelecer que os sistemas de ensino definam as normas de gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os princípios da participação dos profissionais da educação e da comunidade escolar na gestão da escola. Apreende-se assim que há uma abertura de espaços para a autonomia dos entes federados encaminharem a gestão democrática para além do que está definido na Constituição Federal de 1988. A LDB/1996 considera também a gestão democrática ao tratar da importância do trabalho da escola ser articulado às famílias e à comunidade, “criando processos de integração da sociedade com a escola” (Artigos 12 e 13). No artigo 15, propõe que os sistemas de ensino devem assegurar às unidades escolares públicas de educação básica, uma “progressiva autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira” (BRASIL/ LDB nº 9394/96). No que se refere à educação do campo, a LDB nº 9394/96, ao reconhecer em seus artigos 3º, 23º, 28º e 61º a diversidade sociocultural e o direito à igualdade e à diferença, se pauta em princípios democráticos. Promove a desvinculação da escola rural da escola urbana e preconiza que, na oferta de educação básica para a população rural, busque-se adequá-la às peculiaridades locais (art. 28). A gestão democrática também foi contemplada no Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei nº 10127, de 9 de janeiro de 2001. O PNE trata primeiramente dessa questão nos objetivos e prioridades, ao ressaltar a importância da participação dos profissionais de educação na elaboração do Projeto pedagógico da escola e da comunidade em conselhos escolares ou equivalentes. Propõe, também, que a gestão de recursos seja realizada de forma eficiente e com transparência e, para isso, coloca que é fundamental o aprimoramento contínuo do regime de colaboração entre União, Estados e Municípios, e entre entes da mesma esfera federativa, mediante ações, fóruns e planejamento interestaduais, regionais e intermunicipais. No que diz respeito às escolas do campo recomenda organizar a educação básica de forma a preservar as escolas rurais, no meio rural, e imbuídas dos valores rurais, o que se constitui em um avanço tendo em vista objetivar atender às especificidades da realidade do campo. 9 A partir da organização dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, no âmbito da luta por políticas públicas, uma conquista importante foi a aprovação das “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo” (Parecer nº 36/2001 e Resolução 1/2002 do Conselho Nacional de Educação), que considera o campo como “um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana” (BRASIL, 2001, p.1). Essas diretrizes representam um grande marco para a educação do campo, na medida em que incorporam reivindicações dos movimentos sociais vinculados aos povos do campo. A resolução nº 1/2002 que institui as diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo, faz menção, em seu artigo 10, à gestão democrática, apoiando-se no artigo 14 da LDB, quando se refere ao projeto institucional das escolas do campo. Coloca que esse projeto garantirá a gestão democrática na medida em que constituir mecanismos que possibilitem estabelecer relações entre a escola, a comunidade local, os movimentos sociais, os órgãos normativos de ensino e os demais setores da sociedade. No seu artigo 11 reforça a estratégia da gestão democrática, tendo como perspectiva o exercício do poder, conforme disposto no parágrafo 1º do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, como uma questão fundamental para possibilitar que a população do campo viva com dignidade. Neste sentido, o parágrafo II do artigo 13 das Diretrizes Operacionais enfatiza que as propostas pedagógicas para a educação do campo devem valorizar, entre outras questões, a gestão democrática como uma questão fundamental. Em 2008, foi aprovada a Resolução nº 2 (CNE/CEB, 2008) que estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo, como consta no parágrafo 1º do artigo 1º que a educação do campo terá como objetivos a universalização do acesso, da permanência e do sucesso escolar, com qualidade, em todo o nível da Educação Básica. As ações de educação do campo estabelecem que a participação das comunidades seja uma estratégia fundamental. Segundo esta Resolução, as ações devem ser planejadas com a participação das comunidades e em regime de colaboração Estado/município ou Município/Município consorciados (ART.3º, ART.4º, ART.5º, ART.10º). Apreende-se que do ponto de vista da democratização da educação do campo houve um avanço, em relação às diretrizes operacionais de 2002, na medida em que 10 estabelece o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo. Neste sentido, na Conferência Nacional de Educação (CONAE), em 2010 foram aprovadas emendas no Eixo VI-Justiça social, educação e Trabalho: inclusão, diversidade e igualdade propondo assegurar uma política pública nacional de educação do campo e da floresta como direito humano, articulada com o projeto alternativo de sustentabilidade ambiental e atrelada a uma política pública de financiamento da Educação, incorporando assim os anseios dos movimentos sociais organizados quanto à construção da educação do campo como uma política pública. Nesta Conferência foi aprovado também a criação de um fórum permanente para discussão da implementação e consolidação das metas da educação do campo nos planos nacional, estaduais, municipais e distrital de educação. Neste mesmo sentido é estabelecido no inciso V do artigo 2º do Decreto nº 7352/2010 que Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional da Reforma Agrária (PRONERA) como princípio da educação do campo, o controle social da qualidade da educação escolar, mediante a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais, o que aponta para um processo de construção democrática da Educação do campo. A CONAE que teve como temática: Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação (PNE), Diretrizes e Estratégias de Ação, indicou 38 (trinta e oito) emendas, as quais deveriam ser incorporadas ao PNE 20112020. O Projeto de Lei do PNE estabelece como uma das diretrizes: a difusão dos princípios da equidade, do respeito à diversidade e a gestão democrática da educação. Entretanto, não são colocadas metas e estratégias sobre a gestão democrática, o que vai de encontro às conquistas dos movimentos sociais em articulação com o Estado, deliberadas da CONAE-2010. No que se refere à educação do campo, observa-se que das emendas aprovadas na CONAE-2010, apenas foi colocada 1(uma) meta e 6(seis) estratégias dentro de metas da educação básica. A meta inserida no Projeto de Lei foi a Meta 8- Elevar a escolaridade média da população de 18 a 24 anos de modo a alcançar mínimo de 12 anos de estudo para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% mais pobres, bem como igualar a escolaridade média entre negros e não negros, com vistas à redução da desigualdade educacional. 11 Apreende-se que a meta em pauta trata de jovens que não tiveram acesso à escolarização básica na idade correta e que serão atendidos pela educação de jovens e adultos. No caso do ensino fundamental, em que há especificidades nas áreas rurais, não foi colocada nenhuma meta. Foram construídas, apenas, 6(seis) estratégias relativas à educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação integral, as quais se diluem nas metas generalistas propostas para o PNE 2011-2020. No caso da Meta 8, uma outra questão que se coloca é como concretizar a meta se não foram colocadas no Projeto de Lei do PNE, estratégias neste sentido? CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação do campo apresenta uma forte vinculação com os movimentos sociais, os quais têm uma forte inserção em lutas sociais, principalmente a luta pela terra e cria um movimento de articulação em prol da Educação do campo. Neste sentido objetiva a ampliação de espaços políticos e também a busca de reconhecimento de novas identidades e grupos sociais no interior dos diversos sistemas políticos. Nesse contexto, o Estado cria um aparato normativo legal e institucional para viabilizar a implementação da educação do campo. Entretanto, é fundamental o envolvimento dos atores sociais locais nesse processo de construção e que se apoie na democratização de todos os espaços locais, o que tem respaldo no que afirma Santos (2007, p.62), ao considerar a “democracia como a substituição das relações de poder por relações de autoridade partilhada”, o que denomina de “democracia radical de alta intensidade”. Esta pressupõe uma possibilidade ativa dos cidadãos no conjunto dos processos decisórios que dizem respeito à sua vida cotidiana, sejam eles vinculados ao poder do Estado ou a processos interativos nos demais espaços estruturais. O Estado, através de seu marco normativo legal, busca instrumentalizar as políticas públicas. No caso da Educação do campo, o escopo normativo estatal vem sendo construído a partir das articulações sociedade civil organizada e Estado, apontando assim para um processo de construção democrática em que vem possibilitando aos cidadãos participarem na elaboração e controle das políticas 12 públicas, exercendo forças de pressão junto às formas de exercício da democracia representativa. Compreendendo que um processo de construção democrática de políticas públicas é permeado de conflitos e tensões, a democratização da Educação do Campo no Brasil tem apresentado limites e avanços, construção e desconstrução. Em que pese o fortalecimento do processo democrático para elaboração das políticas educacionais e, no caso, a da educação do campo, com a criação de espaços institucionais de participação da sociedade civil organizada e Estado, instrumentos legais etc. e que vem avançando nos últimos anos, apreendemos através deste estudo, que nem sempre as decisões deliberadas coletivamente nesses espaços são incorporadas aos documentos legais, como no caso das propostas deliberadas sobre a Educação do Campo na Conferência Nacional de Educação -2010, que na sua maioria não foram contempladas no Projeto de Lei do PNE-2011-2020. Depreende-se que, para a construção de uma proposta de educação do campo de forma democrática, faz-se necessária uma ação articulada Estado/sociedade civil, no sentido de que sejam viabilizadas as condições políticas para que as decisões tomadas coletivamente nos espaços colegiados sejam consideradas, de fato, nos instrumentos legais e implementadas as metas e ações decorrentes das decisões políticas. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação .Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB Nº 36/2001. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília: MEC/CNE, 2002. __________.Resolução CNE/CEB nº 01/2001. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília: MEC/CNE, 2002. __________.Resolução CNE/CEB, nº 2/2008. Diretrizes Complementares, Normas e Princípios para o Desenvolvimento de Políticas Públicas de Atendimento da Educação Básica do Campo. 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