Aspectos ético-legais do sigilo profissional médico Paulo Sancho Advogado Quae in coporius, sive mulierum, sive virorum, sive liberum, sive servorum curandis, quaeque citra curationem in hominum vita ae consuetudine vel viderim vel audierim, vel quoquo modo cognoverim, quae in vulgus aliquando efferri non oportent, tanquam arcana, et mystica sacra semper taciturum.” “ O dever de sigilo no Juramento de Hipócrates Situações problemáticas Conflitos de deveres na infecção com VIH; Conflitos de deveres na área psiquiátrica: internamento compulsivo – intervenção da Autoridade de Saúde (Lei de Saúde Mental); O conflito de deveres do médico funcionário público face à tomada de conhecimento da prática de abortos fora dos condicionalismos legais; As informações aos Tribunais, Polícias, Seguradoras e Advogados; O tratamento informático dos dados clínicos. Guardarei segredo sobre o que oiça ou veja na sociedade e não seja necessário que se divulgue, quer seja no domínio da minha profissão quer não, considerando o segredo como dever sagrado. Juramento de Hipócrates Texto original e versão da Declaração de Genebra (WMA, Set. 1948) Código Internacional de Ética Médica O médico deve salvaguardar as confidências dos seus doentes. (World Medical Association, 1949, 1968, 1983) Guidelines Éticas em Tempo de Conflito Armado O segredo médico deve ser preservado pelo médico no exercício da sua profissão. (WMA, 1956, 1957, 1983) Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Oviedo) Artigo 10.º Vida privada e direito à informação 1 - Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde. 2 - Qualquer pessoa tem o direito de conhecer toda a informação recolhida sobre a sua saúde. Todavia, a vontade expressa por uma pessoa de não ser informada deve ser respeitada. 3 - A título excepcional, a lei pode prever, no interesse do paciente, restrições ao exercício dos direitos mencionados no n.º 2. Art.26º CRP Outros direitos pessoais 1 – A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação (...). Lei de Bases da Saúde (L. 48/90, de 21.08) Base XIV Estatuto dos utentes 1 - Os utentes têm direito a: (...) d) Ter rigorosamente respeitada a confidencialidade sobre os dados pessoais revelados; Estatuto da Ordem dos Médicos (DL 282/77, de 05.07) Art. 13.º São deveres dos médicos: (...) c) Guardar segredo profissional; (...) Código Deontológico da Ordem dos Médicos Art.68º Âmbito do Segredo Profissional 1. O segredo profissional abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do Médico no exercício do seu mister ou por causa dele, e compreende especialmente: a) Os factos revelados directamente pelo doente, por outrém a seu pedido ou terceiro com quem tenha contactado durante a prestação de cuidados ou por causa dela; Código Deontológico da OM Art.68º b) Os factos apercebidos pelo Médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros; c) Os factos comunicados por outro Médico obrigado, quanto aos mesmos, a segredo profissional. 2. A obrigação de segredo existe quer o serviço solicitado tenha ou não sido prestado e quer seja ou não remunerado. 3. O segredo é extensivo a todas as categorias de doentes (…) Código Deontológico da OM O segredo na posse das entidades colectivas de Saúde Art.69º 1. Os directores, chefes de serviços e médicos assistentes dos doentes estão obrigados, singular e colectivamente, a guardar segredo profissional quanto às informações clínicas que, constituindo objecto de segredo profissional, constem do processo individual do doente organizado por quaisquer entidades colectivas de saúde, públicas ou privadas. Código Deontológico da OM Art.69º 2. Compete às pessoas referidas no número anterior a identificação dos elementos dos respectivos processos clínicos que, não estando abrangidos pelo segredo profissional, podem ser comunicados a entidades, mesmo hierárquicas, estranhas à instituição médica, que os haja solicitado. 3. É vedado às administrações das entidades colectivas de saúde, públicas ou privadas, bem como a quaisquer superiores hierárquicos dos médicos referidos nos dois números anteriores, desde que estranhos à instituição médica, tomar conhecimento ou solicitar informações clinicas que se integrem no âmbito do segredo profissional. Código Deontológico da OM Art.69º 5. A guarda, o arquivo e a superintendência nos processos clínicos dos doentes organizados pelas entidades colectivas de saúde competem sempre aos médicos referidos nos dois primeiros números, quando se encontrem nos competentes serviços ou, fora deste caso, ao médico ou médicos que integrarem a respectiva administração. Lei de Bases - Base XXXII - Médicos 1 - Ao pessoal médico cabe no Serviço Nacional de Saúde particular relevo e responsabilidade. 2 - É definido na lei o conceito de acto médico. 3 - O ingresso dos médicos e a sua permanência no Serviço Nacional de Saúde dependem de inscrição na Ordem dos Médicos. 4 - É reconhecida à Ordem dos Médicos a função de definição da deontologia médica, bem como a de participação, em termos a regulamentar, na definição da qualidade técnica mesmo para os actos praticados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, estando-lhe também cometida a fiscalização do exercício livre da actividade médica. 5 -…. 6 -… 7 -… Estatuto do Médico (DL 373/79, de 08.09) Art.1º 1 – O presente Estatuto aplica-se a todos os médicos que exerçam funções profissionais nos estabelecimentos e serviços públicos directamente dependentes da Administração Central, Regional e Local (...). Estatuto do Médico (DL 373/79, de 08.09) Art.3º Aos médicos a que se refere o presente Estatuto é garantido o direito ao associativismo próprio e exigido o respeito pelos códigos de deontologia e de ética e padrões para qualificação profissional fixados pela Ordem dos Médicos. Código Penal Art. 195º - Violação de Segredo Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. Excepções “(...) sempre que não seja necessário que se divulgue.” Juramento de Hipócrates Código Deontológico da OM Art.º 70.º Escusa do segredo 1. Excluem o dever de segredo profissional: a) O consentimento do doente ou seu representante quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do Médico e do doente, não podendo em qualquer destes casos o Médico revelar mais do que o necessário e sem prévia consulta ao Presidente da Ordem. Código Deontológico da OM Art.º 72.º Precauções que não violam o segredo A obrigação do segredo profissional não impede que o Médico tome as precauções necessárias, promova ou participe em medidas de defesa sanitária, indispensáveis à salvaguarda da vida e saúde de pessoas, nomeadamente dos membros da família e outras que residam ou se encontrem no local onde estiver o doente. Código Deontológico da OM Art.º44.º Protecção de diminuídos e incapazes Sempre que o Médico chamado a tratar uma criança, um idoso, um deficiente ou um incapaz, verifique que estes são vítimas de sevícias, maus tratos ou malévolas provações, deve tomar providências adequadas para os proteger, nomeadamente alertando as autoridades policiais ou as instâncias sociais competentes. SEGREDO MÉDICO Excepções Legais SEGREDO PROFISSIONAL ALGUMAS EXCEPÇÕES Princípio da prevalência do interesse preponderante: o Art.135º Código do Processo Penal e o Art.519º Código do Processo Civil. DL 143/99, 30.04 – REPARAÇÃO DOS ACIDENTES DE TRABALHO - ART.33º (REQUISIÇÃO PELO TRIBUNAL) L. da Luta contra as Doenças Contagiosas (L.2036, de 09.08.1949); Doenças de Declaração Obrigatória (Port.ª 1071/98, de 31.12, alterada pela Port.ª e 258/2005). Art.135º CPP Segredo Profissional 1 - Os (…) médicos, (…) podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo. 2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3 - O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Art.135º CPP Segredo Profissional 4 - O disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso. 5 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. Médico como Testemunha no Processo Penal Presta depoimento normal Recusa prestar depoimento, invocando sigilo médico Tribunal averigua legitimidade da escusa É ouvida a Ordem dos Médicos Julga a escusa legítima Pode requerer ao Tribunal Superior que decida pela prestação de depoimento com quebra de segredo Tribunal superior ordena depoimento com quebra de segredo Tribunal Superior não ordena a prestação de depoimento Julga a escusa ilegítima Testemunha obrigada a prestar depoimento Testemunha pode recorrer para o Tribunal Superior Provimento Não Provimento Testemunha não é obrigada a prestar depoimento Testemunha obrigada a prestar depoimento Art.519º CPC Dever de Cooperação para a Descoberta da Verdade 1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade (...). 2. Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa (...) 3. A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) (...) b) (...) c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos (...) sem prejuízo do disposto no nº 4. Art.519º CPC Dever de Cooperação para a descoberta da verdade 4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. SEGREDO PROFISSIONAL DL 143/99, DE 30.04 – REPARAÇÃO DOS ACIDENTES DE TRABALHO ART. 33º (REQUISIÇÃO PELO TRIBUNAL) As entidades responsáveis, os estabelecimentos hospitalares, os serviços competentes da Segurança Social e os médicos são obrigados a fornecer aos tribunais do trabalho todos os esclarecimentos e documentos que lhes sejam requisitados relativos a observações e tratamentos feitos a sinistrados ou por qualquer outro modo relacionados com o acidente. L.2036, de 09.08.1949 BASE IX Os médicos que, no exercício da sua profissão, tenham conhecimento ou suspeita de casos de doença contagiosa, deverão comunicá-lo, no prazo máximo de 48 horas, ao delegado ou subdelegado de saúde da respectiva área. SEGREDO MÉDICO Excepções Interpretações da PGR e da CNPD SEGREDO PROFISSIONAL MINISTÉRIO PÚBLICO – INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PARECER DA PGR, DE 95.03.16 As autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal podem requisitar, no âmbito de uma investigação criminal, o envio de elementos do processo clínico de um doente. A requisição pressupõe um prévio juízo da necessidade dos elementos clínicos para a investigação em curso. SEGREDO PROFISSIONAL MINISTÉRIO PÚBLICO – INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PARECER DA PGR, DE 95.03.16 As autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal devem comunicar à entidade hospitalar competente informações que habilitem à formulação de um juízo de ponderação dos valores e interesses em presença, fornecendo-lhes os elementos julgados necessários para esse fim. SEGREDO PROFISSIONAL MINISTÉRIO PÚBLICO – INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PARECER DA PGR, DE 95.03.16 A entidade hospitalar satisfará ou não a requisição recebida, consoante tenha concluído, face ao peso relativo das representações valorativas em confronto, pela prevalência do dever de colaboração com a Justiça ou do dever de sigilo. SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD DELIBERAÇÃO n.º 51/2001, de 3 de Julho SEGURADORAS - FACTURAÇÃO A comunicação de dados de facturação decorre de vontade expressa pelo titular dos dados junto da entidade que prestou os cuidados, no sentido de que – à luz de um contrato que celebrou com uma seguradora – os encargos com a assistência médica serão suportados pela Companhia de Seguros. Assim, entende-se que há legitimidade de comunicação de dados nos termos do artigo 7.º n.º 4 da Lei 67/98 na medida em que a informação sobre facturação pode ser enquadrada nas finalidade de «gestão de serviços de saúde». SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD SEGURADORAS - FACTURAÇÃO Em relação ao detalhe da discriminação considera a CNPD que os dados a comunicar devem ser os estritamente necessários à facturação e à cobrança dos cuidados prestados, não devendo o suporte a enviar conter dados sobre diagnóstico ou que permitam uma violação da intimidade da vida privada do doente. A CNPD admite a comunicação destes dados às seguradoras, desde que essa comunicação seja feita a «profissional de saúde obrigado a sigilo ou a outra pessoa igualmente sujeita a segredo profissional» (cf. art. 7.º n.º 4). A seguradora deverá indicar um profissional de saúde ao cuidado de quem são comunicados os dados. SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD POLÍCIAS Em relação à obrigação de fornecimento da documentação clínica às autoridades policiais (Polícia Judiciária, PSP, GNR) entende a CNPD que não existe disposição expressa que legitime uma obrigação de fornecimento da informação de saúde. O estatuto orgânico destas entidades policiais – pela natureza e formulação demasiado genérica das disposições relativas à «obrigação de colaboração» e às suas competências – não permite concluir que tenha sido objectivo do legislador vincular os serviços de saúde a revelar dados clínicos dos utentes. SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD ADVOGADOS Quando os advogados solicitam informações clínicas, a CNPD tem entendido o seguinte: Art.74º, nº1 EOA: No exercício da sua profissão, o advogado tem o direito de solicitar (...) o exame de processos, livros ou documentos que não tenham carácter reservado ou secreto (...) sem necessidade de exibir procuração. SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD ADVOGADOS Ora, os dados de saúde têm carácter reservado. Assim, em relação aos dados do seu cliente só será admissível a cedência de documentação clínica quando o advogado esteja munido de procuração com poderes especiais para o efeito. SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD FAMILIARES DO DOENTE FALECIDO HÁ QUE DISTINGUIR AS SITUAÇÕES, CONFORME O PEDIDO SEJA FEITO RELATIVAMENTE A: 1. RELATÓRIO DA AUTÓPSIA; 2. DADOS DE SAÚDE. SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD RELATÓRIO DA AUTÓPSIA Mesmo para os casos em que a causa da morte pode gerar um certa discriminação ou intromissão, o legislador presume que a pessoa a quem a informação é revelada preservará a memória do falecido e respeitará a sua intimidade, não divulgando indevidamente essa informação. Os hospitais devem, por isso, informar as pessoas indicadas no art.71º, nº2 do CC (cônjuge sobrevivo ou qualquer ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido). SEGREDO PROFISSIONAL Interpretações da CNPD DADOS DE SAÚDE – POSIÇÃO DE CNPD Se os familiares invocarem a necessidade de acesso para processo judicial (contra o hospital, os médicos, as companhias de seguros, etc.), será legítimo o acesso, por força do art.7º, nº3 alínea d) da L. 67/98. A informação só poderá ser utilizada exclusivamente para essa finalidade. SEGREDO MÉDICO SITUAÇÕES QUE PODEM JUSTIFICAR A VIOLAÇÃO DO SEGREDO MÉDICO Sempre que estejam em causa bens jurídicos de valor superior àqueles que são protegidos pelo segredo e que se reconduzem essencialmente à reserva da intimidade, poderá ficar justificada a violação do sigilo profissional. De acordo com a ordem jurídica portuguesa, são bens jurídicos de valor superior, por exemplo o direito à vida e o direito à saúde de terceiros. SEGREDO MÉDICO A medida em que seja excepcionado o dever de sigilo terá de obedecer a uma necessidade objectiva e naquilo que seja estritamente indispensável para a protecção da vida, ou da saúde do doente ou de terceiros ou os legítimos interesses do médico ou do doente . Os critérios a seguir ou as medidas a tomar terão pois de obedecer aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade. Recai sobre os médicos a ponderação dos riscos e das medidas que devem ser tomadas. “In the long run, preservation of confidentiality is the only way of securing the public health.” Justice Rose Aspectos ético-legais do sigilo profissional médico Paulo Sancho Advogado