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1ª edição revista
Itabuna / Bahia, 2009
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© 2009 Adylson Machado
Todos os direitos desta edição reservados à
VIA LITTERARUM EDITORA
Rua Rui Barbosa, 934 - Térreo - Centro
Itabuna - Bahia, Brasil - 45600-220
Tel.: (73) 4141-0748 :: e-mail: [email protected]
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A
Lúcia, esposa de sempre e para sempre
Cláudia Irene, Vinicius e André, rebentos a
mim por ela ofertados
Yan, que me faz Gillenormand
Revisão
Antonio Pazos Garrido,
Adylson Machado e Júnia Martins
Projeto Gráfico Alencar Júnior Concepção da Capa
Vinicius A. Machado
Diagramação e Capa
Marcel Santos
In memoriam
Adelaide, mãe e heroína, que nos faz viver a
compreensão mais extrema do significado de
saudade
Valmir Rosa, para que viva com este texto o
que não pôde em vida
Ilustração da Capa
Pietro Antognioni
Texto da Quarta da Capa
Júnia Martins
Agradecemos aos que ansiaram pelo “parto”
desta obra, tanto que já quase não acreditavam em
sua edição: José Orlando, Geraldo e Robélia, Jéffi-
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M149a
Machado, Adylson Lima.
Amendoeiras de Outono / Adylson Lima
Machado. – 1. ed. rev. – Itabuna : Via Litterarum, 2009.
392p.
ISBN: 978-85-98493-10-7
1. Romance brasileiro. I. Título. II. Série.
ton, José Cairo, Brandão, Eduardo, Amilton, Aprígio,
Giovana, Júnior, Mendonça e Aray. Diante deles nos
vimos, e vivemos, como Orlando Tejo parindo o vaie-vem do sai-não-sai do antológico “Zé Limeira, poeta
do absurdo”, tanto o tempo da espera.
E a Leno, Miro, Antônio “Gordo” e aos anônimos todos que constroem a Literatura cotidiana viva,
com suas pesquisas e causos.
CDD 869.93
Ficha catalográfica : Elisabete Passos dos Santos CRB5/533
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P r i m e i r a Parte
P
á, palá,
patinha
tinha, tinha
de Dondé
Sol-sol, sol-lá sol-sol, sol-lá, sol-fá, mi-ré, dó. Absorto ainda
ouve, repetido, o estranho poema melodiado nas colcheias, semicolcheia e mínima, solfejado indolentemente no improviso
enternecido para o neto que apalpa uma pata de barro, cabeça
comprida e curvada para baixo, adquirida de romeiro de Semana
Santa – “ligítimu caxixi, de Nazaré das Farinha, cumádi”. Presenteada meses antes o fazia sorrir, anjo curioso descobrindo o
mundo humano, para deleite da avó, debruçada sobre ele com
tamanho embevecimento que o ambiente fugia da terra para
entronizar-se em paraíso emoldurado sob pincel renascentista.
Não entenderia o significado das palavras que integravam o verso
– a não ser a melodia fonética que em si produzia, redundante –
limitadas apenas a expressar sonoridade. Nenhuma erudição, referencial estético. Ausente preocupação de que reconhecida como
tal. Tão somente a liberdade do inopino, a espontaneidade, a
ingenuidade amparada na singeleza, manifesta da vontade natural
de embalar crianças, nascida como centenas. E, como primórdios
de infâncias, tendente a perder-se no tempo, desaparecendo aos
poucos, no ritmo que acompanha o próprio desenvolver etário.
Suficiente o sorriso, solto, descompromissado, alegre como todo
riso infantil, gutural no desdobro, para justificar a existência da
composição, impregnada aprioristicamente no menino. Decodificada às primeiras notas, fazia-o – com o indicador – apontar a
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Continuava o canto doce, suave, entremeado com os risos do
neto, disparados a partir de algum instante da melodia, aleatoriamente. De onde esse tal Dondé? – pensava. Ou seria d’ondé? De
que língua, dicionário ou vocabulário? De estória antiga, dessas
contadas por negras bás, nascidas nas senzalas, nos cantos tristes
da obrigação de acalentar? Ou de busca inconsciente, sonho de
menestrel desfiando versos aos heróis sebastianistas, perdido no
imemorial nordestino? Se não tivesse origem definida o seria,
quando nada, perfeita antítese da caixinha de pandora, guardada
no profundo do coração de todos os avós, e negação de males
como tudo o que sai da mente de quem detém o repositório da
experiência. Em Os Miseráveis, Victor Hugo, na personalidade
dedicada expressa por Gillenormand, traduz uma verdade que
percebe absoluta, observada, a primeira vez, não quando da leitura de trechos do francês, no original imposto pelo Professor
Josealdey Ladeia nos idos de ginásio em Itapuhy, mas no abstraído
viés da ponderação de Argemiro Leal, há mais de quarenta anos,
lá em Monte Alegre: mais fácil pai odiar filho que avô deixar de
gostar de neto. Verdade plena, cabal, sim. “Casos de agressões a
crianças pelos pais, quase uma constante; de avô raridade, se ocorreu alguma!...” – confidencia o velho amigo, sapiente, realçando
compreensão das coisas dos homens, como quem se debruça,
na de avô, sobre o recém-nascido e nele vê o mistério todo do
universo na descoberta tardia, que escapou quando na de pai,
também percebendo em si a existência e a essência da vida.
Dispensa o café proposto pela garçonette. Quando a se
afastar, chama-a pedindo um coquetel. Sentado à mesa, escolhida
ao acaso, sente-se personagem viva de um Monet, retratado em
enfumaçado traçado impressionista. O olhar parado num ponto
qualquer o remete à antessala de casa, onde guarda com carinho
escultura de putumuju: a “Vidas Secas” de Adilson Ferreira
remonta-o ao sertão nordestino, e ao memorial de realidade
permanentemente viva, tantos anos decorridos. Em frente o
pedido, posto sob o sorriso gentil de quem o trouxera. Agradece.
Na cidade universal que o recebe, como a tantos no curso de
metrópole, esmiúça a paisagem urbana, mitos, lendas. Traz da
juventude os acordes de Le galope du Diable, e lembranças, das
quais se desvia. Perpassa escritores que povoaram a existência
milenar, como cenário de histórias e ficções. Circula o olhar em
torno à procura de algum. Sublima-se cidadão de Montparnasse,
referência intelectual em tempos não distantes. Apátrida pelas
circunstâncias abraça a urbe que o guarda. Depende dela, da
fama, dos que o remuneram. Para os quais descendente dos
“irresponsáveis” perante a mata e o índio: – se a este matam,
àquela extinguem. Triste conceito, que entende errôneo, a estigmatizar os seus. Serve entidade que defende povos e coisas da
Amazônia: “nations” – como preferiam afirmar. Defesa diversa
da esposada antigamente. Concretizava o antissonho, reconhecia,
do devaneio em dia de exaltada oração justificando cachaça no
buteco provinciano. Não importava o ideal, os povos, a hileia socorrida em discursos inflamados, com unhas e dentes no passado,
fisionomia apopléctica, indignada, contra a sanha da universalização oferecida como dogma de fé. Quimera se tornara o que
o enlevara como ideia em priscas eras. Satisfazia-lhe o presente.
Sobrevivência burguesa: boa morada, vizinhança ilustre, saraus,
banquetes, filhos na universidade, expectativa de Sorbonne. Vida
em velocidade de largo barroco sob solo de oboés e fagotes. O
devaneio de casar a filha na Sacré Cöeur.
O sol coava cansaço de fim do dia, fazendo adormecer o
crepúsculo, tornando ao leito, carinhoso, a noite. Olhou em torno
sem enxergar. Tropa de gongos, de todos os tamanhos, infieira
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patinha, guardada na estante de tábuas sobrepostas a tijolos, junto
ao berço tosco, voltando-se então para a cabeça que pendulava
no ritmo em que cantava.
Pá, palá
patinha
tinha, tinha
de Dondé
ascera numa roça pros lados de Pintadas, arruado
próximo ao Bonsucesso, na baixada plana a poucas
léguas do Monte da Santa Cruz, meca para a região, referencial
de romaria na Semana Santa, capelinha branca solta no cume,
destacada do fundo azul do firmamento, recebendo promessas
dos que alcançaram milagres. Cabaça. Tornou-se único com a
morte do que viera primeiro. Segundo dos seis de Tião e Zefa,
retirantes de outros tempos, vindos de algum ponto da Chapada
Diamantina, que não precisavam, que homiziara antepassados
de um baálé fugindo do retorno forçado à África. Dos que enfrentaram a sociedade no janeiro há quase um século, na cidade
da Bahia, diluída a tradição no esparsar da fuga. O levante vivo
nas memórias, arquivado no silêncio de tantos anos, mesmo que
não soubessem porquê, revelando medo que não sabiam explicar.
Segredo guardado a sete chaves, como o que os fizera vinculados
ao torrão original na transmissão oral dos costumes, travestidos
na devoção dos brancos. Não dependeu do aparo da parteira,
que chegou atrasada, dada a rapidez entre sinal e choro, ainda
que estropiando o burrico ofertado como transporte. Mesmo
assim, recebeu nome em homenagem à aparadeira, que teria
aparecido – segundo Zefa – e ajudado no parto, quando ainda
longe do lugar. Os pais acolhiam-no como mais uma boca para
dividir frutos de palma, de xiquexique, a farinha curta e a pouca
água na estiagem prolongada. Mas, lado bom, quando crescesse,
menino mesmo, constituiria mais um par de braços na enxada,
para ajudar a cavar o esturricado nos dias de expectativa de chuva, oportunidade em que semeariam no pó escassas sementes
de feijão e milho, pondo em disputa estômago e terra, quase
sempre esta levando vantagem. Afinal, a poeira fazia-se torrão
– se encontrando apoio tornava-se pródiga, e o sendo, certa a
estocagem de grãos, à espera de outra incerta aguagem, esperança
de alimentação para futuro distante.
Sobreviveu ao mal de sete dias, o que o fazia olhado com
atenção, respeito. Leite secou no peito de Zefa. Comeu papa
escaldada, de farinha com água, levada à boca pelos dedos da
mãe. Ultrapassada a fase, descambou no mingau de café preto
com farinha de mesa, ralo aquele, para economizar, alternativa
ao quase nada disponível. Cresceu naquele carrasco, aprendeu as
artes dos meninos do lugar. Poucas, por sinal, porque no sertão
caatingado logo descobrem a necessidade de lutar, correndo atrás
de comida e água. A barriguda ensina-os a preservar o líquido,
reduzindo neles o impacto da beleza rubra das flores, importância
menor no contexto. Difícil compreender a razão de na estiagem
a árvore perder as folhas. Reter líquido, meio de a folhagem não
consumir água, e que tudo acontecia sob as “ordens de Deus”
– ouviu. Parecia morta, galharia exposta, mas vivinha dentro,
água reservada. Os olhinhos curiosos descobriram feijão e milho
colhidos, guardados em barricas de bacalhau lacradas com breu,
resina de jatobá, restos de vela. Maneira de distanciá-los dos
insetos e do gorgulho. E fazê-los durar. A inteligência se desvia
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indiana imensa cortando a caatinga, aflora ao intelecto, passos
escutados através dos buzos da infância. Perdido em pensamentos, reminiscências difusas começam a formar imagem concreta,
perceptível na viagem ao passado. Na esteira da saudade busca
a terra distante, deitada em aconchego de travesseiro na fuga do
descambo da mata inculta e daninha do Orobó, beijando a encosta Piemonte da Chapada Diamantina, antigo pouso dos que
buscavam as minas de Robério Dias, em Jacobina, no início do
século XVIII. Semeada na Santa Rosa de Cima pelas mãos de
Severino Gomes de Oliveira, para alimentar a futura freguesia de
Nossa Senhora das Dores de Monte Alegre. No Brasil distante,
outro lado do oceano. Som do chén-nhén-nhén chafuscando
n’água da imaginação. Canção ao fundo:
Pá, palá
patinha
tinha, tinha
de Dondé
N
para conhecer os mistérios sertanejos: sempre em torno da água
e da comida. Tesouros. Bufa-de-gambá, frutinhos amarelos, doces, que davam sono. Beber do olho do licuri. O umbuzeiro, o
juazeiro, mestres maiores, símbolos vivos de proteção da gente
do lugar: o primeiro, ofertando sombra, galhos dispostos à rede,
batata na raiz guardando água cristalina e fria, mesmo a terra
rachando sob o sol inclemente. O juazeiro, o verde a qualquer
tempo, dentifrício natural, oráculo de chuvas, sombra perene e
alimento para a criação em tempos estios.
A dureza das estiagens legava histórias, tornadas lendas na
força do repetido, chegando aos versos dos cantadores. Como a
que ouviu haver acontecido com Sinhá Inhana, que os pais contavam para lembrar a pedagogia da economia de água e a eternizar
o drama da seca, fixando-a no imaginário com as tragédias que
origina. Pusera no mundo Zé da Inácia, caboclo forte, famoso
no dia-a-dia da roça, habituado a romper léguas à procura de
trabalho quando o que fazer escasseava nas redondezas. Mas
com a família no fim de semana, trazendo parte do pouco que
sobrava do eito. Demora mais quando descambava para os lados
de Campo Formoso, fazendo vida de capangueiro a serviço de
alguém, premiando a mulher com um ou outro lacaio. Morava
num fim-de-mundo, dos primeiros a faltar o de beber, a duas,
três léguas de Cuscuz, desnorteando pro Gavião. A mulher e a
filharada na companhia da velha Sinhá Inhana, que ajudava nas
coisas de casa, olhar menino, apesar dos noventa “de sofrido”.
Certo dia a caneca raspou o fundo do pote e voltou vazia, sinal
de água de beber no fim. Estando Inácia torrando em febre, o
precioso líquido não fora suficiente para atender às exigências
de sede da doente, tendo-se acabado ainda no início da semana,
quando o homem da casa longe. Sem pessoa a quem transferir a
obrigação, rompeu, acompanhada do neto mais velho, que não
chegara aos dez, em demanda da cacimba de Eleutério, duas léguas
distante. Preocupada com a meninada que ficava, encarregou a
mais velha de olhar pelos outros, já esgoelando de sede, enquanto
suava a cântaros, lábios rachando. O sol feria o olhar e sapecava a
pele quando os dois desandaram, potes de barro sustentados em
cabeças arrodilhadas. Pouco se sabia do que ocorrera no trajeto
da ida e da vinda. Marcado para sempre o fato de que, pelas
cinco, quando o amarelo avermelhava indiferente no poente,
Sinhá Inhana chegava, ofegante, ao terreiro, o neto se arrastando
atrás, com a salvação da semana. Os meninos, em pranto, que
pensou de sede, corriam para ela. A vista turvou-se. Cambaleou. Sentiu a imperiosa necessidade de não tombar. A queda
seria a de todos, dependentes do que trazia. Tropeçou sobre
si mesma. Aprumou-se. Algo longe zunia nos ouvidos, cabeça
nuclearizando milhares de estrelas à frente, miudinhas e velozes,
acendendo, apagando, acendendo, apagando... A noite soava nos
tímpanos. Acelerando. A vista nublou-se. Percebeu-se desfalecer.
Não tinha como evitar. Perdeu a força dos braços, na dormência
despencados. O pote caiu desastradamente, no instante em que
se aproximavam. O neto, ao tentar segurá-la, não evitou a queda
do seu. Quando Lindu passou, estropiando o jumento para não
tardar em casa, deu de cara com a cena: a velha Sinhá Inhana,
inerte, corpo ainda quente. Em torno os meninos lambiam a terra
recém-molhada, disputando com ela cada gota, em desespero. Lá
dentro, também morta, Inácia tinha as roupas ainda ensopadas
pelo suor, sugado devagar pelo filhinho de braço.
Nunca encontrou tempo de viver a infância como soia
acontecer à criança de outras paragens. Nenhuma bramura.
Quieteza de menino sertanejo vem mais da fraqueza do corpo
do que da educação do lar. A pindaíba fere a mente, a leseira
judia, escorraça as coisas naturais à criancice, nega conceitos da
psicologia para a idade. Calundus nunca os teve, nem mesmo os
conheceu ou aprendeu. O isolamento não permite descobri-los.
Raros carões. De pequeno, ainda tenra a idade, ajudava nos
trabalhos de carrego de água, corte da palma para a criação, capinagem do terreiro quando o sol não se desincumbia, arranque
da mandioca, colheita e debulho do milho, enchimento das talhas
esvaziadas das chuvas, preparo da palha para feitura do legume
do pai. Passar o fubá na urupemba. Encher moringa, catar achas
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N
para alimentar o fogão. Juntar ovos espalhados pelos poucos
ninhos do terreiro e redondeza. Identificar fujona do piopio
buscando ampliar a prole em prejuízo da alimentação. Carrear
licuris, para auxílio à dieta e à renda familiar na elaboração de
rosários. Postar o cambau na criação antes da solta. Evitar círculo de cabras olhando chão em torno de ouricurizeiro, certeza
de jaracuçu amuado, na espreita. Dos deveres a si incumbidos,
com reverência especial, temor acelerando o coração, o cobrir
espelhos quando relampiava, debruçando o medo sob as orações
que sabia – atropeladas – para evitar que o mundo desabasse
sobre as cabeças. Depois, correr para o quarto, jogar-se sob os
andrajos, agarrado às irmãs, repartindo o pavor. Utilidade para
o fenômeno somente livrar mordida de cágado. Acompanhava
o pai nas buscas por comida, rastreando a caatinga, em dias de
céu inube, seguindo o faro de Boto, cabriolando pelo carrasco.
Nambus, perdizes, juritis, rolinhas, pombas, preás, às vezes um
tatu, teiús. Jiboia não facilitasse. Até cascavel, se o tamanho permitisse sobra depois de decepada a um palmo da cabeça e da
cauda. Quando a estiagem apertava, calangos e catendes serviam
de repasto, no espeto, retiradas as vísceras. Nem os ossos, frágeis,
dispensavam. Tomavam partido no rumo da batalha contra a
fome. Tudo dividido, por menos que fosse. Olhinhos esbugalhados, os dele e das irmãs, fundos e compridos, em torno da
novidade surgida, contendo a ansiedade, confiando na aritmética
materna a lecionar a ética dos necessitados. Enfrentar o caminho
de cabras daquela vida sem esperança, ou, quando muito, de pouca. Acostumando-se a não chorar a morte da bezerra. A crueza
do cotidiano não oportunizava dengos. Só o véspero permitia
o lúdico despertar para o mistério da infinitude, único devaneio
admitido até que o lusco-fusco se perdesse no encontro com a
noite, quando chamado para o quase-nada. E aguardar a manhã
seguinte, quando, ainda pendido no céu, o guardado no ébano
desapareceria tomado pelo amarelo.
ove horas. O Chevete, dirigido por Gilvan, se aproxima.
No banco dianteiro o companheiro de empreita, Carlão.
Incumbidos de conferir se Ferdinando se encontrava na venda da
esquina, comprovando o levantado durante a semana. Como observado, diariamente, entre dez e meia e onze, deixava o Sindicato Rural
e vinha encontrar-se em João com os amigos. Antes já passara pela
Drogaria, ponto de prosa, cachacinha, courinho de porco, piabinha
e ovo cozido como tira-gosto. Haviam-no acompanhado durante
oito dias. Trajeto sempre este. Saía do trabalho, andava cinquenta
metros, dobrava a Rua Almeida Sodré à direita, percorria mais
cem até curvar a Carlos Gomes, à esquerda; dali, cento e cinquenta
adiante, entrava na Drogaria, pedia uma “pequeninha” de figo e um
“courinho” – comido ritualmente, zoando o craac... craac... craac.
Quando a terminar levava a dose à boca e num só gole a sorvia.
Mastigava a sobra. Então pedia outra. E um courinho. Assim que
terminava o primeiro, enquanto “esquentava” a bebida. Vinte a
trinta minutos. Gastando prosa: futebol e vida alheia, conversa-quase-nada. Saía, então, rumo a João, circundando dez metros
adiante a Getúlio Vargas. Outros cem até o destino. Permanecia até
o meio-dia, como obrigação. Haviam estado em frente à sua casa.
Tinham a ficha dele. Pessoa sem inimigos. Todos gostavam do jeito
alegre e brincalhão. O mesmo após o casamento e o nascimento das
duas filhas. Quatro e dois anos.
Confirmado. Já em João. A mercearia, na esquina da Getúlio
Vargas com a Ruy Barbosa, fazia parte de um comércio ativo juntamente com as casas de José de Itati, Antônio Silva e João de Abílio,
todas em esquinas. A de João possuía seis portas, distribuídas pela
Ruy Barbosa – duas – e Getúlio Vargas – três – uma na quina da
construção. Cereais espalhados pelo centro da casa, mantas de charque
empilhadas junto à parede, uma aberta sobre as demais; bebidas em
uma das prateleiras próxima ao balcão, para facilitar o servir, tendo
ao lado a bacia de esmalte, três-quartos d’água para a lavagem dos
copos utilizados; a outra, tomada de marcas de perfumarias e sabonetes, que se misturavam a panelas de alumínio, meadas, agulhas,
macarrão, arroz. Próximo do balcão, o mais procurado; distante o
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s fazendeiros deslocavam os peões, acompanhados das
mulheres e filhos, vestidos como em dia de festa de padroeiro, de eleição ou de batizado, para as compras na cidade.
Em caminhões ou picapes e jipes. Alguns com as famílias em
carros de boi, ou charretes. A penca de filhos segura pelas mãos.
Uma festa. Trajados como pra missa de domingo. Um ou outro
mais para cuiú-cuiú. Para o patrão o orgulho de mostrar a gente.
Prestígio. Mais “agregados”, maior presunção de propriedade
grande, da força do “coronel”. A expressão motiva demonstrar
humildade, fazer-se pequeno quando a vaidade se impunha:
– Coronel que nada, burareiro – meneava a cabeça, se assim saudado, para um lado, para o outro, lentamente, buscando
impressionar na modéstia e aparente submissão.
Maior motivo de prestígio somente a “amizade” com os
políticos. Antigamente Gileno Amado, Henrique Alves. Últimos
de uma estirpe que representara referência. Tempos de inteira
dependência com a quase inalcançável Itabuna. Quando o lugar
abria nova fronteira econômica, planejada para fornecer gado à
velha Tabocas e Ilhéus. O coronel o cabo eleitoral, segurador do
“cabresto” nos confins das matas. Prestigiado na eleição. Corres-
pondido se carecia de jagunços para engrossar fileiras em briga
pessoal, nomear delegado calça curta. Amigo de chefe político
podia refletir tratado de paz. Ou garantia de invadir metros das
terras vizinhas. Palmos, às vezes, no empurrão às cercas. Se o
líder no poder. Inimigo nem pensar!
Muitos se fizeram na força dos contratos. Forma de ampliar
domínios, experimentada com sucesso nas terras do cacau. Chegados nos primórdios da conquista, detinham pequenas glebas,
alimentaram uma cultura voltada para sobrevivência, distantes
dos centros litorâneos. Não porque léguas fossem muitas, mas a
quase intransponibilidade da mata os fazia isolados nos cafundós.
Roças dispondo, quando muito, de precárias instalações, tocadas
à coivara e técnicas primitivas, rondavam áreas fronteiriças aos
córregos e riachos. Ali não aparecia o capital financiado, tanta a
ausência das garantias exigidas. Permaneceram nesse marasmo
durante anos, desprovidos da possibilidade de a ambição fazer-se
presente no ampliar dos teres. Quando o arruado deu-se a ganas
de gente e as levas retirantes aportaram, saturadas com a expansão
do litoral, a parceria do contratista permitiu o surgimento das roças
de cacau e uma outra forma de aberta para a pecuária. Esta na área
cedida para a agricultura de subsistência, enquanto a mata caía sob
o machado para o capim ao lado alcançar o ideal de exploração,
madeira sendo moeda dividida. Aos poucos os pequenos lotes
foram-se ajuntando na conquista do mais forte e melhor organizado no trato dos recursos. Assim chegaram ao poder visualizado
que hoje transitava pelo comércio e feira da cidade.
A freguesia, aos sábados, constituída fundamentalmente dos
trabalhadores dos coronéis. Paravam veículos, animais e carroças
já na porta do comércio preferido e nas imediações, quase não
deixando alternativa para os agregados desenvolverem cultura
de atores da concorrência. A entrada em qualquer delas consistia o mesmo que cabrestá-los para nelas comprar o da semana.
A palavra de “garantia”, se algum o fazia “na cardeneta”, valia
mais que assinatura de gerente de banco. O melhor círculo. Safra
boa, dinheiro correndo, prateleiras esvaziadas. Safra pequena,
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de menor demanda. Na parte mais baixa das prateleiras açúcar,
arroz, macarrão, perfumarias, linhas e meadas; na alta, que exigia
escada para alcançá-la, panelas de variados tamanhos, vasilhames de
alumínio e esmalte. Junto às portas, pilhas de vassouras de piaçava,
em pé, desnudas como buscando vestir-se, sacos de feijão e açúcar
não abertos encostados à parede, no rumo do balcão. Três mesas de
madeira, rodeadas por quatro tamboretes cada, espalhavam-se desordenadas pelo centro do empório. A procura pelo estoque pontuava
alto aos sábados. Freguesia certa, definida, da Mantiqueira, Serra Torta,
Colônia, Itati, São José, Gameleira, Ribeirão de João Dias, Cebola, Vela
Branca. As mercadorias, umas sobrepostas às outras, sobre o balcão, conforme o pedido do freguês, conta feita no papel de embrulho que depois
ajudava a enrolar o sabão, ou as porções de tempero seco.
O
mercadorias encalhando, pouco negócio, lamento comerciante.
Ao pé do balcão as conversas: safra, temporão, valia das coisas,
trabalhador, chuva, estiagem, seca, pragas, preço do boi, aftosa,
raiva, mela. Regadas a aperitivos, de vinhos populares a aguardente, na profusão de infusões, e solicitada por cada uma delas. Nas
escassas mesas (duas, raramente três, para não ocupar espaços)
concluía-se a compra ou a venda de pedaço de terra, de roça de
contratista. Acertadas contas. Organizado um caxixe. E o sinal,
ao pé do ouvido, para empreitada mais complexa, quando a vida
de alguém em jogo. Em casos mais amenos, aceno para a surra
no que ofendera filha do agregado, caminho mais curto para
convencê-lo a constituir família, se o delegado não houvesse
conseguido garantir o casamento.
Se dentro da venda o espaço para negócio dos “coronéis”,
no passeio as trocas, os rolos promovidos pelos peões: rádio,
relógio, frutas, anéis, facões, canivetes de “estimação”, jumentos,
mulas, cavalos, bezerros, porcos. Canários da terra, sete-cores,
coquis, cancães, papa-capins, sabiás, pintassilgos, bicudos acomodados em gaiolas penduradas nas mãos propagandistas. De talisca
e de arame. Alguns ainda em alçapões. Tudo para escambo. A
ciganagem do ambiente denominou o espaço de “ilha-de-ratos”.
Perto, a banquinha de relojoeiro, para conferir a qualidade da
mercadoria oferecida, quando se tratava de relógios. E compra,
venda ou troca de usados, expostos nos cordéis ou espalhados
sobre a superfície, desarrumados.
A bebida exaltada forma discussão, gera briga. Os contendores rolam-se pelo chão poeirento, ou enlameado, se choveu.
Alguém tenta apartar, e termina no rolo, depois de receber um
sopapo. Uns deixam as compras para assistir à peleja, formando
um círculo em volta, que se engrossa quanto mais tempo leve o
angu-de-caroço. Outros nem se abalam, tal a experiência com
freges. O grito de “lá vem a polícia” – partido de um moleque
qualquer – logo acaba o aranzel. Em instantes tudo como dantes. Na gritaria das trocas, no fôlego do mercar. Como se nada
houvesse acontecido.
Mas, nem sempre assim se dera. Agora o lugar existia como
cidade. Centro de prestígio político na região. Três deputados.
Um na Capital da República, dois na Bahia. Mas – repetia para
si mesmo – nem sempre fora assim. Muito diferente dos tempos
em que chegou ainda rapazola, fugindo, com a família, de uma
seca no sertão da Bahia.
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A
parado, como a maioria, pelas mãos de Fausta Marcelina. Beirando os sessenta, liberta pela Lei Imperial 3.353
quando contava vinte e dois anos, quase todos de labuta para o
Coronel Libório, que a comprara menina, tirando-a de família que
residiu em usina entre Feira e a Bahia. Escapara, com trejeitos, do
compromisso de mucama, de quem “a pretendia para prazeres”,
dos quais soube fugir – dizia – “na prosa”. O Coronel – falava
orgulhosa – passou a ter-lhe grande estima, “protegendo-a dos
malfazejos” deste mundo. Tinha sido como um pai. – Fez falta
quando morreu, inhô – a lágrima brotava do olhar, ao relatar
esse instante. O seu, que quase não conheceu, chegara cabiúna
e servira de cambá. Morrera longe, deixando infieira de filhos na
senzala. Não sabia se mesmo sobrevivera à guerra.
Quando menino ouviu da própria negra – batendo-lhe carinhosa na cabeça, depois da bênção, obrigação de aparado – que
“escorregara como quiabo”, jeito de elogiar a arte, o sangue bom,
com a ajuda de Nossa Senhora do Parto. Rezava a tradição: se
mulher sentia “as dores” alguém corria à casa de D. Hormezinda de Pedro Lima, que cuidava de dirigir-se ao “quartinho dos
santos”, abrir o nicho e colocar o Menino Jesus nos pés da Virgem, até que trazida a notícia do nascimento com vida, quando,
então, o Menino Deus voltava aos braços da Sagrada Mãe, sob
o pálio do agradecimento. Com ele igual. Benigna, a empregada
resmungona – a pitar cigarro de palha – mensageira nas duas
oportunidades, espalhou o acontecido. Pesado na balança de
vender sabão, pratos forrados com folhas da Revista da Semana
e d’O Tico-Tico, tornou-se a festa da casa, alegria de primeiro
filho. Lixívia, o aroma que conheceu antes do alfazema. Motivo
de pirão de parida, para o resguardo. Galinha cozida na panela
de barro e mexida com colher-de-pau para não fazer mal. Depois outros sete, um morto aos dois meses. Diarreia que nem o
médico conseguiu conter, nem os chás de folha de bananeira e
de olho de araçá impediram subisse ao céu ainda novinho. De
lá saiu rapazola, nove, dez anos no cangote, acompanhando a
família, fugindo da seca que estourava mamona no pé. Receberia por nome Fausto se já não houvesse tantos na cidade, em
homenagem à negra aparadeira, que não deixara sequelas do
parto. Registrado, no entanto, em homenagem a Santo Antônio – compromisso da mãe – e ao tio, tudo no prazo de lei no
cartório de Castorina. Batizado na Igreja de Nossa Senhora das
Dores, cabeça molhada por Padre Antônio. Corria o junho de
1926 quando chorou. Exatamente o 26. Dia em que a Coluna
ocupou Monte Alegre.
G
ilvan circulara pela Ruy Barbosa, como combinado. Vira-o
no Armazém de Arlindo. Caberia, agora, buscar Faustino,
retornar pela mesma Ruy Barbosa, novamente passar em frente ao
armazém, acompanhar pelo retrovisor a saída de Solano – a senha – a
entrada na venda de João, onde se encontrava Ferdinando. Então o
veículo estacionaria, o motor funcionando, ele ao volante, enquanto
Carlão e Faustino saltariam e entrariam, cada um por uma porta
diferente, e em instantes distintos, apesar da pequena diferença entre
um e outro. Tomariam posições diversas em relação a Ferdinando.
Carlão junto à parede em frente às portas da Getúlio Vargas; Faustino,
chapéu calado sobre os olhos, no balcão, a dois, três metros da vítima.
Pediria conhaque, para disfarçar o tempo, já que nunca pusera tal
natureza de bebida na boca, e aguardaria o primeiro disparo de
Carlão. Como acertado. Sinal para a saída de Solano do armazém
de Arlindo, independente da passagem do Chevete, a entrada no
recinto de Crispim, confirmando se encontrar na venda. Trocariam
cumprimento indiferente, sairia. Como ocorreu.
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N
ascera ainda no sábado, dor do parto despertada com a
manhã, quando tudo se precipitara na esteira da notícia.
Para uns a três, para outros a cinco, seis léguas da cidade. Quem
comprara no amontoado de barracas – onde vendidos farinha de
mandioca, legumes, verduras, feijão, arroz na casca, milho seco e
na palha, tubérculos vários, carne seca, rapadura, doce de araçá
e de marmelo na folha de bananeira, sandálias de couro cru,
cachaça, naqueles verdadeiros empórios ao ar livre. Espalhados
pelo chão, mesas, camas e cadeiras rústicas, bules e sopeiras, moringas e talhas de barro, caçuás, esteiras, candeeiros e lamparinas,
alpercatas sarga-bunda, chapéus de couro, barrigueiras, selas,
subprodutos do sisal em vassouras e bonecas, gaiolas e alçapões
de talisca, algumas enxertadas de papa-capins, caga-sebos, sanhaços, sofrês, sabiás e tudo mais que falario nordestino possa
reunir – sentiu tudo em volta atordoar-se num ruído somente
possível em imaginário apocalíptico. A feira, como toda feira
provinciana, circundada, quase completamente, pelas tradicionais
barraquinhas de café. Nos restaurantes a céu aberto mungunzá,
mingau de milho (verde, quando havia), fubá ou puba, para
o desjejum. O almoço farto com sarapatel, viúva-de-carneiro,
mininico, cozido de carne com osso fresca, galinha ensopada,
rabada, carne na brasa em espeto de pau, rolinhas e nambus
assados, um tatu ou paca de vez em quando, servido em pratos
de esmalte, a colher como talher, misturando-se tudo, salpicado
com molho de pimenta, acompanhado da “abrideira” com cobra
(fechar o corpo), pratudo (prevenir qualquer mal), pau-de-rato
(solicitada pela freguesia masculina), capeba (para os males dos
rins), erva-doce (calmante) e uma infinidade de motivos nominando a canjebrina de cana contidos na “drogaria” popular.
Esse círculo tornava-se, na balbúrdia, escudo que impedia a saída
dos que se perdiam nos encontrões. Em meio ao que se tornara
suplício, Aladim, fazendo a feira semanal – pensando na mulher
que deixara com os sinais do parto em companhia da sogra, que
já pusera sobre os pés da imagem de Nossa Senhora do Parto a
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eira alta quando a notícia chegou, levando à dúvida se
comeriam o comprado, já que a fama dos revoltosos, a
eles aportada, envolvia pilhagens... Essa, pelo menos, a verdade oficial manifestada pelo Leitão. De roldão a moral familiar.
Estupros. Crianças violadas na presença dos pais. Pior que o
“comunismo” infame que arrancava unhas na ponta de faca ou
de alicate, como revelado pelos cossacos ano antes, atrocidades
praticadas sob o cnute do “stalinismo ateu”. O povo escutara
assombrado a fala do intendente, alto em erudita vaidade, recém-chegado da Bahia, revelando o dito pelas “autoridades da República”. Os desgraçados – dizia, circunvindo vaidoso com tantos
à volta escutando-o sem interrupção – resistiam ao exército de
Horácio de Matos, armado pelo Ministério da Guerra. Haviam
descido do Norte, atravessado o São Francisco, após saírem da
Jatobá pernambucana, passarem em Lençóis, Minas de Rio de
Contas, Condeúba, Jacarací, entrando em Minas Gerais até Serra
Nova e a Jatobá mineira, “quase chegando a Belo Horizonte”,
voltaram em cima do rastro em manobra de vulto, e subiram
novamente para a Bahia, ladeando o Gavião, atravessando o
Rio de Contas; chegam a Ituaçu, passam próximos a Lençóis,
margearam Remanso, atingem Sento Sé, e quando imaginavam
ultrapassado novamente o São Francisco, desciam no rumo do
Sudeste, como se quisessem “tomar Feira e a Bahia”. Estariam
próximos de Mundo Novo, e Monte Alegre parecia caminho
traçado. E ninguém pegava os infelizes. Os homens do Batalhão
Patriótico atordoados. Sumiam sem que ninguém visse. Tinham
parte com o tinhoso. Por isso os lenços vermelhos no pescoço,
sinal daquela patuleia, com certeza.
A confusão estabelecera-se, alarido imenso. Alguns correram ao prédio dos Correios e Telégrafos, ansiosos por ouvirem
de Augusto, o telegrafista, ou de Alaor, o auxiliar – que displicentemente obliterava selos – a confirmação da informação do
esbaforido Nemésio, estropiando o jumento que lhe servia de
montaria, escambado dos lados de Mundo Novo, pelos caminhos do Angico. Bijão perdeu o cavalo de estimação no curso da
balbúrdia, e atribuiu, de logo, a responsabilidade pelo prejuízo
aos “desprezíveis”. Antera, de D. Nosinha, no desespero, sem
entender o que acontecia, na falta de árvore para esconder-se,
esfolou-se ao subir no mandacaru do fundo do quintal. Ovídio
de Margarida tratou de esconder a vaca araçá, estima maior, longe
do Recreio. Maneca e Rapamundo abandonaram o gamão no
passeio, sobre o banco, esquecendo a aposta, quase ganha por
Maneca, momento em que Rapamundo ameaçava jogar os dados
sobre o telhado, como ocorria quando em desvantagem. Agostinho Navarro, trancando as portas do bar, nem se preocupava
em receber o dinheiro das bebidas vendidas aos fregueses que
se esbaforiam porta fora. A notícia, como pororoca amazônica,
arrastava a cidade. Os nichos enchendo-se de contritos perdões
a Deus, o apocalipse se avizinhando. O falario agravando o desespero de perdição.
No alvoroço, santos invocados na penitência improvisada
à capela – a igreja, o orgulho do lugar, em homenagem a Nossa
Senhora das Dores, não estava concluída, e muito faltava – surpreso ficou o Padre Antônio. Para ele o ansiado há tanto. Em
prédicas e sermões, recheados de escatológicas citações sobre
a necessidade de mais ajuntamento de fiéis na casa do Senhor,
e não encontrando o eco desejado para as súplicas, há muito
acreditava só em milagre, que parecia acontecer naquele instante,
quando a cidade e redondezas prostravam-se em frente à capela,
rezando atropeladamente, sem chamamento, muito menos toque
de finados no sino. A missa do sábado terminara. Também os
batizados – que haviam rendido tão pouco. Não precisava falar
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do Menino Jesus – quase levado pela multidão desesperada em
busca de abrigo e proteção. Para os da cidade, os lares; para os da
zona rural, a casa dos amigos, dos conhecidos, ou simplesmente de quem entendesse a aflição e fizesse a caridade de ofertar
amparo, fortaleza na imaginação de cada um. Parte considerável
descambara para a igreja, último e único torreão disponível.
F
na fraca coleta. As forças se esvaíam e o ideal de ver concluída
a igreja nova se desmoronava a cada sábado, domingo, nova
missa ou terço, onde motivava os fiéis para o divino objetivo,
em comoventes orações em púlpito. Mas aquela manifestação,
espontânea, só podia ser o sonhado no cantinho do imponderável
da mente dedicada às coisas do Eterno. A surpresa aumentou
ainda mais, ao notar o Coronel Josias Macário, dono de quase
tudo no lugar – verdadeira sesmaria entre Bonsucesso e Aroeira – acotovelando à volta, na correria para o altar. Ah! pensava
Padre Antônio – arrumando apressado os paramentos – se não
fosse tão herege – que Deus me perdoe – a igreja estaria concluída. Mas o desastrado, que Deus me perdoe – repetia, batendo
três vezes na própria boca, com a mão direita – negava galo
para leilão da Padroeira, ou para o que arrecadava recursos
para Maria Beata. Absorto nos pensares – misto de orgulho
e humildade, como só na ordenação – sentindo-se realizado
como pastor de almas, olhava a realização do prodígio, e como
a confirmar as conjecturas, na babel que se formara, braços
erguidos sinalizando silêncio, a muito custo conseguiu ser
ouvido pelos que lhe estavam próximos:
– Dominus vobiscum! – iniciou, olhos fechados em contrição,
elevando a mão direita em movimentos suavemente definidos,
construindo no espaço o sinal cristão. – Chegado o grande dia
irmãos! Para a Glória de Deus, reunidos sem nenhum convite, a
não ser o do Altíssimo, que nos tocou doce e silenciosamente o
coração, como no dia da Criação. Redenção de culpas, de pecados, graças divinas caem sobre seus filhos, imagem e semelhança
d’Ele – apontava o céu, abrindo levemente os olhos. Como a
confirmar a abertura do Paraíso para o rebanho.
Enquanto falava, a multidão, inchada com novas buscas
de abrigo na igreja, o escutava atônita, engasgada com a notícia
recém-chegada. A suadeira gerava um fedor insuportável no
calor de Saara. O Coronel Josias Macário, postado no primeiro
banco, sem entender do que dizia, pensou que ficara “louco”.
Incrédulo, desabafou, sem ser ouvido: “tinha se tornado adepto
do comunismo ateu, elogiando os revoltosos!” Como podia dizer
ser “aquele um grande dia?”. – “Endoidou de vez, só podia ser
isso” – concluiu, num muxoxo, categórico em si.
O comércio fechara as portas, e os proprietários ainda corriam alvoroçados para as casas buscando um meio de proteger a
família, e Padre Antônio na prédica, caminhando para o êxtase,
enquanto o povo ampliava o alarido. Se pela zoeira ou não, na
casa de Aladim, as dores aumentavam, denotando a proximidade
do parto de Adélia. A parteira, logo chamada, cuidava de acelerar
o nascer como forma de reduzir o sofrimento. Mesmo assim,
quase à meia-noite chorou, descobrindo o mundo. Sábado. Ainda
nas cinzas do São João.
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A
prendeu a compreender a dor da perda, na própria pele,
de repente, como coisa presumível, comum, tal a naturalidade com que acontecia naquelas paragens. Deitara sem nada
perceber de anormal. Uma irmã, menor que ele, tossia fraco há
dias. Sentia haver algo estranho em razão da preocupação desdobrada da mãe, debruçada sobre o fogão preparando chás e
mezinhas, o pai pelos matos à procura de mel de uruçu para juntar
aos preparados à base de raiz de fedegoso e mastruz; leite de
cabra arrecadado das criações vizinhas para ajudar. Fisionomias
mais tensas e preocupadas. Dia seguinte, quando amanheceu,
ausente o rebuliço da cozinha, procurou logo se levantar, martelado o juízo, a dizer-lhe que algo acontecera. Esfregando os
olhos encaminhou-se para a porta, sonolento, buscando a razão
do silêncio. Encontrou o pai abrindo buraco no chão, perto do
umbuzeiro, não longe da casa, mais comprido que quadrado.
Ficou olhando, sem ainda entender. Imaginou que ideava água.
Mas não carecia. Talhas cheias. Ele mesmo não as enchera? Viu-se
lacrimejar quando a mãe passou com a irmãzinha, enrolada em
panos. Camisinha de pagão bastara para cobrir-lhe o franzino.
Par de chiquitos esfarrapados completava o enxoval, lanando os
pezinhos que deles não mais careciam. Bracinhos despencados,
inertes na magreza. Posta na cova acabada de abrir. Os andrajos
que serviram de lençol envolviam-na. Terra jogada por cima.
Pedras a circundariam. Pareceu-lhe, no entanto, que o pai não
queria sepultá-la, tão lento repunha a poeira de onde tirada antes
de colocado o corpo infante. Cruz tosca enfiada no fofo, marca
para lembrança. Olhava o vazio do quadro, refletido nos pais. A
mãe não chorava, com lágrimas, mas imensa a tristeza no rosto.
Prantear representaria pouco para a angústia no olhar distante,
descobrindo fim de mundo, contemplando a terra-do-sem-fim
jogada sobre o corpinho pelo marido, aos poucos, como se
quisesse com isso trazê-la de volta. O pai reagia, instintivo, a
cada porção recolocada, como se o fizesse apenas para evitar
que o rebento rumasse levado por asas negras, coisa anticristã.
Perdia-se nos movimentos, lentos na construção da angústia
que o atormentava. Percebeu-se em prantos somente quando
a mãe enxugou-lhe as lágrimas, com os próprios dedos – após
instante infinito de olhar para a cova como a penetrá-la atravessando o mundo, e buscasse rever o milagre de Lázaro no sertão
caatingado – e ao voltar-se para o casebre encontrá-lo de pé,
perdido no pensamento refletido no olhar distante, afogado em
trovoada. Uma angústia imensa tomava o ar e ocupava o espaço
vivo. Notou, infinitude do instante, que ocorria com a família
a história que ouvia e imaginava só acontecer com as outras.
Uma diferença, no acontecido com a irmã, distanciava-o, no
entanto: não houvera ladainhas e encomendações da alminha à
noite, como soia acontecer nos arredores, e testemunhara tantas
vezes, muito de obrigação do que gosto. Mas a história, a mesma: a terra ressequida, vez em quando, abria-se para seus filhos,
como a se renovar, tanto, talvez, à falta de adubos. Levara mais
um que teimara em nascer naqueles carrascos de fim de mundo.
Só não entendia por que a irmãzinha. A inclemência da morte
juntava-se à aspereza daquele torrão, daquela gente, que nesse
instante aprofundava em aprendizado na própria pele. Conflitos e contradições, passados despercebidos, reconhecidos em
instantes como aquele. E uma tristeza, como nunca sentira,
apertava o peito, como em viagem sem volta. Instantes depois
só restaria chorar baixinho, longe de casa, escondido entre as
pedras do caldeirão seco. Recordando as brincadeiras entre
ambos. Subindo pelo umbuzeiro que agora quase a abrigava.
Chegou ainda a esmiuçar na mente se não haviam passado
cuspe no corpinho da irmã. Tantas vezes vira aquela prática,
de ser posta a saliva sobre a parte doente, enquanto rezada a
simpatia. Por que não dera certo?
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“Jesus, Maria, José
cuspe lembrado
remédio é”
U
m dia a estiagem se tornou seca, prolongada nos quase
dois anos. Os caldeirões escassos não mais davam para
arrasto da cuia. Chuva de cambueiro não caíra, mais uma vez.
Umbu desapareceu. O xiquexique, o mandacaru, a coroa-de-frade pediam água. O rícino esturricava. Faltou banana até para
o godó, e nem a malamba seria feita, já que os frangos, poucos,
destinados a negócios para ajudar na compra dos mantimentos
que não produzia o esturricado. Tempo em que aprendeu, ajudando, a fazer farinha-de-bugã e de olho-de-boi – este que precisava de lavar em sete águas. A pouca encontrada nos tanques,
trazida gota a gota, arrastada do fundo lamacento para encher
o carote, denunciava tragédia iminente. A perda do pedacinho
de terra – e o como aconteceu – marcou-o para sempre, muito
mais que o infortúnio do estio prolongado-se sem fim. Nela
nascera, terra-escola primitiva onde conhecera o pouco da vida.
As raízes fincavam-no àquela realidade, descoberta à unha, parida
a fórceps. Chão que o fez herói ao trazer para casa a primeira
rolinha. Perícia no badoque. O velho Tião, percebendo vocação
para a sobrevivência, ampliou chances presenteando-o com uma
espingarda fabricada nos fundos do casebre. Nunca dera dia de
trabalho para ninguém. Afinal, a vizinhança, igual a eles: cavando
chão como tatu e olhando para o céu adivinhando chuva. Os
sonhos do menino – muitos. As lembranças esvaíram-se temporariamente na viagem para a cidade, substituídas pelas novidades
no arranchamento e, finalmente, na busca da ferrovia, novo ponto de partida, não sabiam para onde. Os carros de boi e aquela
cantoria, encontrados estrada afora, levando retirantes, fixava
na mente a marca da tristeza. Vinha-lhe à memória um carreiro
antigo, que lhe dissera, respondendo à pergunta curiosa de como
o imobilizava, que a junta colocada logo depois do carro devia
de se constituir dos bois de freio, os mais fortes: parados estes,
os demais o faziam. O velho Agnelo tinha sabedoria, sim, daí a
admiração e certo deslumbramento com a figura de barba longa,
pele tostada. A quem ajudava, vaidoso, vez em quando, como
guia. Sentia-se sábio. Deter daquelas informações fazia-o maior,
autoestima ampliada. Voltar a pé, após guiar o gemedor, nada
representava, diante do orgulho de que podia fazer alguma coisa,
ser útil. Só não explicara o carreiro o porquê daquele som brotado
da degola, que tocava tão fundo a alma do menino sertanejo. Certamente de toda a gente sertaneja. Som mistura de rabeca, como
a que o cego Zé Beato tocava, emitindo a cantoria triste – como
há de ser a nascida da tristeza de quem não enxerga – anúncio de
passagem esmolando, saco pendurado num dos ombros, vários
embornais, cada para um tipo de caridade oferecida. Já o carro
de boi, moroso, sem pressa, gemente, com jeito capenga – cai,
como cambota, ora de um lado, ora de outro – desarrumado, estropiado, apanhando – acostumado – do sol escaldante. Atravessa
as variantes do trajeto, feito mais para ele, às vezes entre angicos,
baraúnas, catingueiras e oiticicas, afugentando passarinhos, calangos, lagartixas e outros bichos de beira-estrada. Seu gemido
ecoa no fundo da terra, responde nos serrotes, cala no sentimento
do sertão, corta a imensidão da caatinga, assistido pelo juazeiro.
Vai, natural, desinteressado, consciente da importância, lento,
desfiando escarpas, despreocupado com buracos, indiferente às
lombadas, lajedos ou chão. Com o canto orquestra a harmonia
para a melopeia do aboio que invade o descampado, encaminhan-
do o rebanho espalhado em meio a macambiras, xiquexiques,
coroas-de-frade, cansanção, mandacarus, oiticicas e marmeleiros,
descortinando vez em quando um juazeiro, para o destino desejado pelo homem. Não tinha saudade de escola, porque nunca
viveu a intimidade de livros, mas lembraria sempre da cantoria
do ABC e da tabuada dos que frequentavam uma sala apertada
no Bonsucesso, quando acompanhou o pai em busca do Coronel
Josias Macário. A lousa, instrumento desconhecido, estranho.
Nem a régua, acionada no lombo de um ou de outro, deixara de
chamar-lhe a atenção, sem causar, no entanto, estranheza ou temor, tão envolvido com a cantilena. Mesmo assim, com reguadas
ou não, sentiu amadurecer o estar no meio dos que poderiam ler
e escrever. Ou, pelo menos, tornar um dia os filhos que viesse
a ter objeto de lambadas para aprender o que não conseguira.
1928. Quatorze anos a idade. Vontade de encontrar um
pedaço de seu, diferente da jacobina em que nascera. Para não
ter que viver como o pai então vivia. Amadurecendo como
determinação. Só que longe do tipo de gente que os expulsara
do torrão onde vira a luz e crescera. Na mente, a imagem dos
homens da coluna passada em Monte Alegre. Que mexeram no
rapazola, despertando o espírito de aventura. A mesma que norteara o sonho de liberdade e independência daqueles andarilhos,
como veio a saber quando revelada, anos depois, a verdadeira
história, desprovida da paixão de quem contava e da propaganda
dos coronéis. Encaminhando reflexões. Amadurecidas no curso
dos anos. Descobrindo a luta como veículo para a transformação
da vida miserável, saída na qual passou a admitir como possível
para mudança “de Norte a Sul” nos destinos dos homens. Que
se repetia, teimosa em ser aprendida, porque único meio de
viver, de permanecer jogando o olhar para o alto a cada dia.
Que se confundia com a própria fé que tinha nos santos de
que falava o padre na missa do Natal, liderados pelo menino
nascido há tanto para mudar a todos. Como esperança. Expectativa, pelo menos. O tempo diria.
Na fuga, não levou coisas materiais. Não as tinha. Nem
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mesmo a espingarda, presente do pai. Mas, bem retidas na mente
simples, mais do que quaisquer outras, as histórias contadas por
um tio, irmão de Tião, surgidor nas épocas de romaria para o
Monte da Santa Cruz, descambado de Capivari, e que falou das
coisas de Canudos e do Conselheiro que a construíra, convocando todos para “encher as religiões, povoar os desertos, deixar as
riquezas e desprezar o mundo”. Combatera na guerra santa, sob
o comando do apóstolo Pajeú, homem de confiança do Santo
e um dos seus generais, ao lado de João Abade, Macambira e
Antônio Beato. Escapara da matança e da “gravata vermelha”
por milagre – dizia num misto de surpresa, tributando o fato à
presença do “profeta” – já que um dos muitos que acompanharam Vilanova na missão, mandada pelo próprio Conselheiro, de encontrar voluntários na caatinga para a defesa do
lugarejo. Quando voltaram com reforços – nunca esquecera
– o arruado cercado pelas tropas do governo, com cerca de
seis mil soldados restados dos mais de dez mil que a atacaram
para vingar Moreira César, “o Degolador”, o “Corta Cabeça”.
Tiveram apenas a condição de assistir, impotentes, a destruição do lugar. Antes escapara da morte, quando da tentativa
de tomar a “matadeira”, oportunidade em que perdeu a vida
o chefe na missão, Macambira.
As histórias enchiam-no de medo e pavor, quando focadas
nas tragédias da degola. Também não o atraía a relação dos lugares sempre citados pelo tio, orgulhoso na sapiência de ainda
conhecer o universo da geografia do conflito: Angico, Fazenda
Velha, Favela, Calumbi, Cambaio, Caldeirão Grande, Jetirana, Juá,
Lagoa de Laje, Barriguda, Tipipã, Pinho, Macambira, Trububu.
Tanto nome cansava-o, e que interesse podia trazer-lhe?... Mas,
o heroísmo de Canudos, a vida mansa e pacata, onde “tudo
de todos”, e a resistência aos poderosos, marcaram-no o resto
da vida, mesmo depois que o tio se foi para os companheiros,
ano antes de deixar o sertão com a família. Devia, presumia,
estar comemorando, no paraíso, o tiro, “saído” de sua espingarda naquela tarde, que acertara o coronel Moreira César,
emboscado na ratoeira armada em Pitombas, às margens de
um ribeirão em S, jurando, vaidoso, que dele ouviu a expressão
“eu já levei um”.
Não mais morando em Monte Alegre soube da existência
de um herói, filho do lugar, no tempo da refrega de Belo Monte:
Francolino Pedreira, então capitão, que evitou o desastre das
forças do governo, quando assumiu e organizou a batalha contra
os comandados de Pajeú, que o surpreendera nos arredores de
Canudos, a primeira da última expedição. Contavam, também,
lenda ou não, orgulhar-se de haver espetado criança na ponta de
baioneta quando da tomada do arraial. No desespero, esvaindo
os sonhos com a morte do lugar, entregavam em holocausto
o futuro gerado, atirando os filhos à soldadesca, fazendo-o na
aflição de verem desaparecer um mundo diverso do em volta,
para a glória do Conselheiro, e exemplo para outros povos.
“O homem não pode ser escravo do homem” – pregava o
Santo. E a gente do governo queria retornar a escravidão.
Nunca chegou a conhecer o herói local, mas nutria contra
ele certo horror. Saber que ali nascera alguém que combatera
o Profeta deixava-o indignado com a terra e a família que o
gerara. Um anticristo, só podia ser, como todo o que ajudou
a calar a esperança que espraiava do Vaza Barris, e a desaparecer a expectativa que norteara a vida sertaneja há trinta
anos, ceifando as que não faziam mal a ninguém, cumprindo
certamente o mandado do cão, espalhador de miséria e penúria
nesta terra de Deus.
Não entendia porquê, mas levava as imagens dos capados
do terreiro. Tomavam conta dos pintinhos ao largo do quintal. Brigando contra os inimigos. Mal cantavam como galo a
primeira vez e logo castrados. Criavam melhor que as próprias
mães. Marcava-o a capação. Triste. Cortado a capa-garrote bem
amolado. A quicé não se prestava para o mister. Os bagos
trazidos na ponta dos dedos. Mastruz pisado para cicatrizar.
Tiravam a ninhada da galinha. Dois dias. Depois nem mesmo
permitia encostar-se à “sua” família. Espojava a terra, ciscava o
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entrada dos revoltosos, os pais e os mais velhos contavam, dentre eles Tinhô de Eulália, encontrou a cidade
quase abandonada. As dores disparadas com a notícia o fizera
nascer duas antes da meia-noite, quando acampados no lugar.
As casas tornaram-se centro de oração. Crianças postas a dormir
mais cedo, ou melhor, a irem para cama, porque não dava para
conciliar o sono, tanto o clima de tensão. Olheiros em pontos
estratégicos das estradas que davam acesso ao lugar. Ninguém
podia prever por onde entrariam. Perseguidos pelos homens
de Horácio de Matos – imaginava-se – dando voltas sobre si
mesmos na Chapada. As forças regulares nunca os encontrava.
Tinham parte com o demo. O Diabo os envultava. Combinado
um sinal com cada um dos postos nas estradas; uma fogueira
acesa no Monte da Santa Cruz, assim que a duas léguas da cidade
estivessem. Se dia, abafada. Para que fizesse fumaça. Os de maior
respeito e autoridade aguardaram, do final da manhã, trancados na
intendência, a coluna maltrapilha, que arrastava a poeira vermelha
como matiz na indumentária, empastelada em lama assim que a
chuva desabou, torrencial, a quatro quilômetros da cidade. Para
os de fora reunião importante, proteção dos habitantes. Para os
de dentro a covardia, o piriri.
O intendente delegara representação para a tarefa ingrata
ao Coronel Severiano, que buscava proteger os próprios bens
muito mais do que os da comunidade. Até porque perder algo de
seu, seria privar a razão de existir. Melhor disputá-los, portanto,
mesmo que a vida em jogo. Mais que coragem, a garantia de
preservar algum pertence. Imaginava – caso não convencesse o
comando a passar ao largo – estabelecer negociação que livrasse
o patrimônio particular, ou parte, de qualquer ameaça. Isso o
que o encorajava. Encontrou um jeito para auxiliá-lo na tarefa
delegada. Expusera a ideia: melhor solução receber bem aquela
gente e que Deus se apenasse se incerto o raciocínio. Chamando
Aurelino de Dadu, bom de mandado, ao pé de ouvido ordenou
a convocação de “mestre” Alcides Navarro e da Filarmônica da
Sociedade Lítero-Recreativa 7 de Setembro. Que estivessem a
postos, tocando o melhor do repertório quando chegassem. Na
realidade a lira estava desativada há muito, sem ensaios regulares.
Entretanto, quando necessário, promovia-se o arrebanhamento
para a tocata. Assim naquele dia. Logo que contatado, o mestre
procurou José Brasil – o “Zé Queixoso” – Pedro Lima, Macilon,
Manoel Coin, Amador Leal, Agripino Dórea, Edson Moreira,
João Matos (o “Astro dos Pratos”). Alguns fugiram à responsabilidade, alegando a proteção da família. Outros, disseram as
más línguas, sofrivelmente sopravam os instrumentos enquanto
as calças se molhavam. Fizeram circular, ainda, que Prestes falara
a Siqueira Campos: “Nos recebem com música porque não o
podem com bala”. Conversa maledicente, certamente, dos que
diminuíam o ato da furiosa que tanto agradara e que, com certeza,
faria a terrinha entrar para o diário da coluna, não somente como
mais um lugar no trajeto áspero percorrido.
Silêncio sepulcral, quebrado pelo tropel, em ritmo de trote. Centenas de maltrapilhos e empoeirados, a pé, enlameados
com a chuva que os pegara. Estrondou tal a surdez que pairava
sobre o lugar. Ocuparam todos os lados, surpreendendo em
operação de guerra. O telégrafo descoberto, onde instalados dois
dos chegantes. Os da cidade se encontravam em casa, reduto
escolhido assim que o mundo desabou com o sinal emitido lá
do monte. Os que não conseguiram espaço na igreja, centro de
não programada penitência. Só que esperavam por um lado,
e surgiram de todos os pontos que permitiam acesso. Três da
tarde, sábado de junho. A que Padre Antônio entendeu como
milagre, até quando o sacristão – outro Antônio – o tirou do
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lixo, cocorocava vaidoso chamando a filharada. Doravante dele.
De sua maternidade avessa.
O homem, sofrido. Como cortado a cada dia pelo capa-garrote. E não tinha nem a alegria de capão!... Sem razão pra viver.
Nem a de ser pai-e-mãe de filhos alheios. Não havia esperança.
E começou a construir, sem mesmo o saber, uma utopia.
A
êxtase. Assim que Nemésio confirmou a notícia, buscou acalmar
os fiéis. Fora uns poucos curiosos, ou destemidos, como Dona
Filhinha com o filho Afonso ao lado, segurando-a pela barra
da saia, que esperou-os empunhando felpuda branca, pesando
com cada gota de chuva, para demonstrar a boa vontade e a
paz da localidade. E liderou a gente, que a seguiu em cortês
recepção aos da Coluna, aproveitando o mote da presença da
filarmônica. Símbolo da sensatez, do equilíbrio. E da verve
feminina montealegrense.
Não houvera tempo para perceberem nada. O que espiou
por frestas de janelas e portas descobriu a cidade ocupada, de
forma rápida e planejada, como terra inimiga em tempos de
guerra. À frente de homens, mulheres e crianças empoeirados,
enlameando-se com a chuva forte que caíra minutos antes, o
próprio Luís Carlos Prestes, a pé, ladeado por Siqueira Campos
e João Alberto. Na entrada o vazio fê-lo apelar para que não
tivessem medo, nada aconteceria a quem quer que fosse. Não
eram bandoleiros. Precisavam de animais, roupas, remédios,
alimentos, armas e munição. Tudo pago com bônus do novo
governo, formado após a caminhada vitoriosa. Evitava usar a
palavra revolução. O povo precisava aderir, compreender – continuava – o País exigia mudanças, que pudessem alcançar todos
os brasileiros. Milhares, comprometidos com o futuro da Pátria,
haviam-se levantado em armas em São Paulo, Aracaju, Manaus,
Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro. Falava a uma cidade fantasma,
para casas que pareciam vazias, como se abandonada. Imaginou.
Pelo menos por uns instantes. Minutos entre o término da fala
e a iniciativa do Coronel Severiano, obsequioso na tarefa de
boas-vindas. Para surpresa dos chegantes a filarmônica apareceu,
saudando-os. Armavam barracas ao largo da Praça da Matriz,
afastando os restos da feira, a baixada do Bonfim tomada, a Rua
da Baixa, como a do Dendê, a Rua do Capim, a do Sacramento
e o Campo do Gado, obstruídas as estradas de Baixa Grande,
Viração e Angico. Mulheres desembalavam trouxas, utensílios
de cozinha, ajudadas por crianças maiores, quando deixaram o
que faziam diante da festa oferecida. A Minerva executava
dobrados militares, polcas, marchinhas, maxixes e valsas. Sem
o respeitado contraponto do bombardino de Pedro Lima, não
encontrado por mestre Alcides, fugido para esconder mulher
e filhos na Jabuticaba, a rocinha que possuía. Aos poucos o
abrir janelas, pescoço fora à procura do que ocorria. Engrossando o grupo que fizera a festa da recepção. Envolvendo o
cansaço e a fuga na melodia da filarmônica, os comandantes
viram aproximar-se a comitiva, destacando-se alguém, dois
passos à frente:
– Bom dia, Comandante – saudou, tenso, o Coronel Severiano, dirigindo-se ao que vira falando para a praça vazia.
– Pois não – respondeu Prestes, após deixar nas mãos de
um companheiro a sela que retirara do animal que servira a estropiado combatente. – Com quem falo? – indagou.
– Coronel Severiano, seu criado, encarregado pelo Conselho
Municipal para dar-lhe as boas vindas e ver de que o senhor e
sua gente precisam.
– Satisfação – disse-lhe o Comandante, retendo o sorriso
cansado, barba desalinhada no rosto jovem, satisfeito em ver que
suas palavras produziram efeito, e ainda surpreso com a festa.
Aquele homem, mesquinho na aparência, de qualquer forma servia de interlocutor entre os que marchavam e a cidade – pensou.
E que os recebia de forma inusitada. – Podemos marcar uma
reunião para daqui a duas horas – afirmou. Incluindo a presença
de outros representantes do lugar, especialmente comerciantes,
proprietários de terras e de animais – procurou definir, quanto
aos participantes.
– Certo, Comandante – retrucou Coronel Severiano, solícito.
– Junto à minha barraca – definiu, senhor da situação.
– Certo – repetiu o nativo. Todos estaremos lá... E mais
Comandante – continuou, prazeroso – hotel e pensões à disposição: água morna, toalhas de banho frescas, lençóis, travesseiros e
fronhas lavadinhas aguardando vosmicêis para um descanso. Não
dá para todo o mundo; cabe ao seu comando designar os que
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vão se beneficiar do pouso. Cortesia do intendente. E se afastou,
célere, em direção à Intendência. Lá os interessados no resultado
do diálogo não escutado, observando pela fresta das janelas o que
se passava – os que não integraram o grupo de onze destemidos,
que o acompanharam na missão, da qual – graças a Deus – se
desincumbira bem, pelo menos até o instante.
O Coronel Severiano coordenou as conversas com Prestes
e Siqueira Campos, quando se encontraram junto à barraca de
campanha, rodeada de outras que a protegiam, deixando-a no
centro de uma “praça de guerra”. Ouviram do Comandante que
não tivessem medo. Não eram bandidos. Mas defensores de um
Brasil mais justo. Que não podia ser governado sob permanente
estado de sítio. Afinal – como disse o companheiro Juarez Távora
– “a revolta é o último dos direitos a que deve recorrer um povo
livre para salvaguardar os interesses coletivos; mas também é o
mais imperioso dos deveres impostos aos verdadeiros cidadãos”.
Esse o caminho que tiveram de enfrentar, sem outra saída. – Cada
morte nesta luta nos leva a prosseguir. Perdemos Gumercindo
há pouco. Mais um que ficara pelo caminho. A campanha os levaria à vitória final, em breve. Queriam, como de outros lugares
por onde passara, o apoio espontâneo, democrático e cívico,
representado por animais descansados, medicamentos, roupas,
cobertores, pólvora e munição, tecidos e mantimentos. De logo
o que requisitava – deixou claro. Todos os colaboradores receberiam, parte em dinheiro, parte em bônus da futura administração
do país, que seriam resgatados, com juros, após a instalação do
governo vitorioso, antes mesmo da realização das eleições gerais,
depois de implantado o voto universal para homens e mulheres.
Esperava a compreensão cívica dos cidadãos daquele lugar, a ser
lembrado pela história que se fazia construir. Registrariam no
diário o inesquecível acolhimento, e a cidade estaria presente
na memória dos homens de bem que sonhavam pátria mais
digna no futuro graças, inclusive, à hospitalidade, com registro na
história oficial que se escrevia a partir daquela luta. Finalmente,
que ficassem tranquilos. Se houvesse alguma dúvida, pudessem
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perguntar. Apenas o convite para o recital e um jantar ao estado-maior da Coluna.
No dia seguinte, portas do comércio abertas. Nem parecia
domingo. Só para a freguesia chegada. Propriedades vistoriadas,
e relacionadas pelo futuro governo, como cada um dos animais
delas saídos. A carne abatida das rezes, carneiros e cabritos criteriosamente pesada antes de salgada. Nenhum medicamento e
gaze ficou nas farmácias. Tecidos e cobertores escolhidos pela
dimensão da utilidade, não da vaidade. Cada um recebeu, como
anteriormente definido, o valor do vendido. Batizados realizados
pelo Padre Antônio. Comunhão para os revolucionários. O sermão pedia por eles. Rezando para que a “tal” revolução vencesse,
o mais depressa possível, os Coronéis Severiano e Josias Macário, os maiores colaboradores, segundo o próprio Comandante
Prestes, bolsos repletos de bônus do futuro governo.
O
céu, de nuvens macias, contrasta com a dureza da terra
rachada. Disputa com os lajedos o direito de traduzir a
crueza do ambiente. Materializam ambos, na peculiaridade dos
contrastes, a esperança e a realidade. Vez em quando o verde
trazido pela chuva confunde-os. Transforma o pecador em deus.
Naquele mundão vazio envolvem os mistérios todos da vida:
quando vestem a serra fazem o homem reviver, quando escondem o horizonte elevam-no a Deus, instante em que percebe o
infinito inalcançável na ponta dos dedos, em hora do ângelus.
Beira a contemplação mística a postura do sertanejo nordestino
a olhar o firmamento. Peculiar estesia. Concretiza a esperança de
alimento, de água para mais tempo. Aprende, pela necessidade, a
ler o espaço, a acompanhar o deslocamento do nuvear, o rumo da
brisa, o voo das aves. Os fatos da natureza integram-se à existência, confunde o etéreo impalpável em concreta consubstanciação.
O amanhecer pode refletir a esperança de chuva, conforme as
cores que manifeste. O mais ou menos do avermelhado da aurora traduz reações como o alimentar, o matar a sede. Aquela
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permanente convivência torna-o um estóico, impassível ante a
dor e a adversidade, transforma-o num único ser. Panteísta nas
atitudes, se integra à própria essência das coisas que vislumbra
com o olhar perscrutivo na teimosia do dia a dia, que decodifica
na sua construção empírica.
Como a beleza, ou outro sentimento abstrato, a vida que o
circunda não pode ser definida. Apenas sentida. Em dimensão
próxima à incompreensão do que à volta, porque este o universo,
limite de percepção e conhecimento. Sua razão, uma antítese platônica: carece de fugir do mundo real para encontrar aparências, já
que a realidade é a mais cruel manifestação de que poderia dispor
como espécie dotada de algum valor crítico. Bem e mal perdem
a identidade particular, sobrevivida apenas no instante em que
invoca um ou outro, trazendo-os ou afastando-os conforme a
dependência do instante. Especula o modelo mecânico e o divino,
fazendo uso no momento preciso em que cada interpretação se
configure necessária. Extrapola, entretanto, a dimensão estética
formal, extasiando o observador, objeto da própria observação,
endógeno-exógeno, alfa-ômega do cosmos que cria através de
sutil aprendizado, vivenciado na teimosia, dia a dia, mês a mês,
ano a ano, amparado no empírico da repetida tragicidade. Vive
para perder. Vitória o desafio de continuar perdendo ao tempo
em que sobrevive. Assim, sublima o tempo, derrotando-o a cada
dia de sobrevida, em surda vingança, quando a própria vítima
não reconhecida em si mesmo. Herói se torna na dialética do
nascer-morrer, síntese no sobreviver, que ali adquire foros de
ressurreição diária. Não tem outra história para conhecer senão
a de que dispõe: a sua história. O conceito de civilização esgota-se
no grotão, no leito do córrego seco, cavando-o em busca de água.
Limita-se na possibilidade de o mandacaru frutificar, na espera do
amadurecimento do fruto, aí tornado alimento, percebido quando
fulorou. Ética vincada ao dia-a-dia deste resistir, razão por que não
fere o semelhante para tirar-lhe o pouco que lhe falte. Antes, até,
divide com ele o quase nada que dispõe. Compreende a existência
observando-a de fora para dentro, buscando o interior, o âmago,
razão por que da incompreensão de tanta angústia, sacrifício, do
qual não escapa, apesar de não ser o criador. Nunca fecha totalmente a porta, no entanto. Deixa sempre uma fresta para que a
esperança material possa um dia entrar, e não se negue a fazê-lo
sob a alegação de que não encontrara a chance. Confia, mesmo
apanhando diariamente, numa eternidade de vida.
A assertiva esotérica ou alquímica de que tudo que está em
cima está embaixo e vice-versa, vivida sem nunca ter ouvido de
quem quer que seja sobre tais mistérios, tidos para iniciados.
Chega-lhe através das superstições, das adivinhações, das simpatias, das reverências, das incelenças, das rezas para tudo. E assim
a terra rachada torna-se nuvens macias, brancas, caminhando
devagar no espaço, alternando-se em bois, carneiros, corredeiras,
semblantes vários, produzindo um conjunto de fartura que o leva
a sorrir ainda quando o sol inclemente caustica a pele tostada.
Miragem divisada, repetida como consolo. Então descobre-se
caminhando sobre as nuvens, permitindo-lhe olhar do alto a
terra em mosaico, rachada, agora embaixo. Esperança renovada.
A cada dia. E tudo, nesse instante, paisagem confundida, traduz
rumores de imenso campo no qual restam apenas um ramalhar
de árvores frutíferas, agitadas pela brisa querubina, embalada ao
som de harpas, tendo ao fundo suave ronronar de corredeiras
que rolam águas de entre grotões cobertos de arco-íris. Onde
não mais nem céu, nem algodões, nem a dureza da terra rachada.
Ao fundo, a melopeia monótona e plangente de um aboio que
dá o ritmo à vida naqueles fins de mundo.
Às vezes a imagem de Dom Sebastião, ressuscitado de
Alcacerquibir, norteia a permanência da esperança, trazida do
inconsciente... das histórias ouvidas, não sabe quando, dos
tempos imemoriais. O rei menino, por ter sido rei e menino,
nunca morreu. E se faz naquelas paragens através de qualquer
manifestação carnal contra o status quo: jagunço, cangaceiro,
beato, político destemido, desde que envolto no traçado comum
de gritar por melhores condições de vida. Essa, sempre contida
no binômio alimento-água.
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esde a passagem dos revoltosos o desencanto com o lugar. Estiagens mais longas. Mais uma vez, além da chuva
de cambueiro, faltara a de “todos os santos”. Permanente carão
na vida do sertanejo. Recorria com mais frequência ao Coronel
Josias Macário nos empréstimos para comida. Muitas vezes
nem mesmo dinheiro. Apenas quatro, cinco pratos de crueira a
moeda do mútuo. A alimentação da família. Complementada com
pimenta. Ou um ovo de galinha, cozido, esmigalhado em farofa,
dele rarefeita, licuris para disfarçar. Depois de algum tempo de
relação negocial, percebeu que parecia de olho em coisa sua. Deu
de andar mais pros lados da terrinha, como fizera com a dos outros, quando quis delas se apossar, sabia. Chegava faceiro, como
não quer nada, puxava prosa. Relanceava a vista para dentro da
tapera, amiudando os olhos, enxergando longe. O que buscava?
– pensou Tião. Não sabia. Tampouco presumia. O desgraçado
metrava a casinhola, imaginando-a de seu, com o pedacinho de
terra, quando não mais pudesse pagar os pratos de farinha tomados? – não sossegou consigo mesmo. Não podia ser... sempre
não cumpria no prazo? Não, o condenado não tomaria aquelas
terras como o fizera de outros como ele – afirmou convicto.
Não entendia. Mas começou a botar tenência nas visitas. Zefa
também desconfiando. E a suspeita aumentou quando do acerto,
depois de retornado da Marujada de São Benedito, em Jacobina.
Lá na casa dele, em Bonsucesso. Não tão ríspido, como nas vezes
anteriores. Já três anos naquele puxa-encolhe de tomar e pagar,
não imaginava novidades como aquela: agrados do Coronel. Até
que não se conteve. Pediu licença a Tião para visitar a casa com
regularidade como pretendente à Maria Antônia, a filha de quinze
anos. A proposta quase o levou ao chão. Mesmo informando-o
ser muito nova para assumir compromissos fincou pé. Passou as
mãos pela cabeça do filho, que o acompanhara na viagem. Ainda
mais essa! Zefa estranhou o amor perdido, e começou a matutar
sobre o que se passava com o libertino. A fama corria até a Bahia
das coisas que fazia com as mocinhas das redondezas, jogadas
depois na rua da amargura. De corar nos tempos de casa-grande
e senzala, quando muita coisa tolerada pelas circunstâncias. Respeito nunca teve por nenhuma, que o dissessem as desonradas
a troco de um mísero prato de farinha para alimentar pai, mãe,
irmãos menores. Vivendo agora em casas de tolerância. Por que,
de repente, com Maria Antônia, menina quieta nos afazeres, caseira?
– alguma coisa queria aquele istrupiço. “Sai mandu, praga rúin, laia
de serpente” – bodejava consigo mesma, enquanto fazia o sinal
da cruz. Não disse nada a Tião. Procurou a filha, contou-lhe o
ocorrido. A menina estremeceu, pedindo pelo amor de Deus que
a mãe não deixasse aquilo acontecer, e revelou-lhe o nojo que
nutria pelo Coronel, desde o dia em que a encontrou buscando
água no Caldeirão Grande encostado ao umbuzeiro de Eleuté-
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Tudo, no entanto, parece contrastar com uma permanente
tentação de abandonar o sertão. Uma constante. Como a resistência em permanecer, combater, enfrentar. Olhando para
o céu, decifrando o imponderável. O mar, mistério maior para
os que chegam a conhecê-lo. Centro de lendas para o distante
sertão sertanejo, ressequido. “O sertão vai virar mar e o mar
vai virar sertão” – a profecia inexplicada oriunda da Canudos
mítica, como a imagem do fundador. Interpretada nas noites
de lua e prosa, misturada aos contados de valentia em época de
lobisomem e boitatá, sob fundo de viola. O oceano atrai o bronco, não pela majestade física, mas por existir em essência: água.
Em quantidade impossível de ser gasta. Extasia-o. Certamente
o sal o repelirá, trazendo-o à reflexão, de que “Deus dá tudo no
limite do merecimento”. E a vontade de fugir reforça o caráter
atávico de permanecer, repetindo, em cada geração, a vocação
de sofrer à espera de dias melhores. Olhando para o alto, decifrando nuvens... Ampliando o alfabeto. Se do espanto nasce a
filosofia, como via Hegel a origem fenomênica do resultado do
questionamento grego, o sertanejo cristaliza o próprio espanto,
aristotélico porém, ato e potência, explodindo a origem de tudo
que o cerca.
D
rio: conversa mole, saltou da mula queimada, perguntando pela
família, e ela sem desconfiar. Até quando disse que era bonita e
que, muito bondoso, tava ajudando a família a comer, que merecia
gesto de apreço. Ao se aproximar mais, se sentindo imprensada
entre ele e a árvore, o miserável agarrou-a pelo braço. Apesar
da recusa e do pedido para que a deixasse em paz, passou-lhe
a mão por entre as pernas, arrastando a barra do vestido para
cima, não respeitando nem os nomes de Deus e de Nossa Senhora que fizera pronunciar, na conclusão do pedido. Tentou
escapar, mas não deu como. Rasgou a calcinha, ao tempo em que
tentava beijá-la. Abaixou uma alça do vestido, fazendo-o ainda
mais descer, para trazer às mãos um seio enrijecido, sobre o qual
babou sôfrego. Abafada, sem ar, não conseguia respirar. Perdia
a noção das coisas. Desesperada, percebeu a nova investida da
mão direita dele nas coxas, forçando-as a abrirem-se. Conseguia,
no desespero, trancá-las em torquês. Ele lambendo os dois seios,
trazido o outro como o primeiro. Tomado de ânsia incontida,
passeava o colo com língua e dentes. Agora, num arrefecimento de seu esforço, a mão penetrava no sexo, arrancando pelos,
dolorindo. Perdia as forças da resistência. O pavor aumentava.
Esmorecia. Moral e fisicamente. Estava a ponto de esquecer-se,
não resistir, não tinha mais como suportar, “que Deus tivesse
pena”. Perdeu a noção do tempo. Os instantes pareciam horas. O
corpanzil jogou-a no chão, ofegante. Vestido afastado para cima.
O que restava da última vestimenta íntima acabada de rasgar,
coxas afastadas. Já se debruçara o desgraçado sobre ela, mãos
afobadas, uma prendendo-a ao chão à altura dos ombros, outra
abrindo a braguilha, trazendo para fora “a porcaria”. Sentiu,
desesperada, que o maldito se encaminhava para penetrá-la,
grunhindo como um porco, depois de haver lambuzado a perseguida com cuspe. Aproveitara-se do fato de haver soltado o
ombro para tentar desvencilhar-se. Jogou as pernas para cima, e
voltou a firmar os pés no chão, impulsionando o agressor para
fora com a força dos quadris elevados da terra endurecida. O
Coronel cambaleou, o corpo lançado para trás. Maria Antônia
levantava-se, incontinente, buscando a fuga. Recuou, no entanto,
diante da ameaça do miserável em espancá-la. No breve instante
do recuo, jogou-se sobre ela, rolaram pelo chão. Quase a violou na
primeira investida, assim que conseguiu imobilizá-la novamente,
uma das coxas arqueada, jogada para o tronco, em seguida para o
lado, que deixou à mercê do malfazejo toda a intimidade. Porém
o aboio do pai, ali perto, tangendo a criação, fê-lo sair às pressas.
Enquanto o instrumento do tinhoso descambava pela caatinga,
saíra em desespero à procura da casa, arrumando as roupas, o
sexo dolorido. Não, preferia morrer, a ver-se noivando com
aquele imoral, coisa ruim, condenado, miséria de gente, mundiça.
Zefa nada contou a Tião, temendo a reação do marido. Mas o
convenceu a negar a mão da menina.
No domingo, quando Coronel Josias Macário apareceu
em busca da resposta, mais enfeitado que madrinha de tropa,
envolvido em banho de “meia-hora”, já se imaginando com
direito a passear com Maria Antônia, Tião foi direto no assunto,
dizendo-lhe que não podia deixar de escutar Zefa, que achava
ser a menina muito nova. “Nem mulher ainda...” – mentiu. O
tabacudo não insistiu – “desculpa mais esfarrapada!” Saiu, acabrunhado, sentindo-se desmoralizado por aqueles pés-rapados,
afirmando que aquilo não ficaria assim. Podia agora compreender
porque nem um cafezinho os pistiados lhe ofereceram, após mal
indicarem o banco tosco de três pernas para sentar-se, depois
de uma eternidade.
– Nova uma pinoia! – expressou indignado, pisando o chão
como a penetrá-lo.
Não demoraram duas semanas, presença dos cabras do Coronel, cinturas realçadas, para acertar os últimos pratos de farinha.
Não adiantou explicar que o prazo não vencera. Aguardassem
a colheita da mandioca, daqui a três meses. Deram tempo de
não mais que vinte e quatro horas para arranjar o dinheiro, ou
vender a terra para pagar o débito. Voltearam a casa, conferindo
nada. Com um pau de lenha quebraram uma das talhas. Resto
de água esvaindo pelo chão, como se esvairia o último gesto de
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resistência. Dois dias depois deixavam a roça – agora propriedade
de Josias Macário, de papel passado – com destino a Monte
Alegre. Tempo até demais para arrumarem os andrajos em três
gamelas e tomarem o rumo da cidade, arrastando dois carneiros
e um bode, a cabra Rajada, nas mãos um capão e quatro galinhas
presas pelos pés, dúzia e meia de ovos para venda pelo caminho.
Boto acompanhava o séquito retirante, sempre rondando a beira
da estrada, espantando calangos, quando conseguiam escapar-lhe da oportunidade de saciar a fome, fazendo cabriola aqui e
ali, indiferente ao drama. Sobre o lombo de Magriço duas malas
de madeira, e algumas trouxas em dois caçuás com o que lhes
restara, a caçula escanchada na cangalha. A vaca araçá passou
como retrato em sua frente, no preciso instante em que a viu
morrer de fome e sede, aos poucos, não fazia muito tempo, numa
das estiagens, junto à cacimba rachada em mosaico; a fonte do
leitinho ia-se, deixando-o e às irmãs ao relento do mingau de café
para o desjejum. Não veria brotarem do esturricado os cágados
lançados no buraco escavado com o mijar jabota, vencendo a
inclemência do chão na indolente preparação da descendência.
A lembrança desanuviou-se no salto em que Boto merendou a
lagartixa preta saída de um tronco apodrecido. Encontrando o
carro de boi do velho Agnelo encurupitou-se até perto de Monte
Alegre, empevitado no cambão, mãos postas sobre um boi e
outro. Entre morrer e fugir, Tião preferiu a segunda hipótese.
Desse modo o Coronel Josias Macário ampliava domínios em
Bonsucesso e Aroeira. A compreensão infante não alcançava
como acontecia. Seguia a família sem saber para onde. Lembrou
de tudo que viu e viveu. Na saída um olhar distante o fizera correr para o umbuzeiro. Despedir-se da irmã que se tornara anjo.
Levantou a vista para o céu azul sem nuvens, como a vê-la para
despedida. Acenou-lhe do alto, agradecida pela lembrança, de
entre as almofadas de algodão do paraíso, antes que a luminosidade fizesse fechar os olhinhos e os desviasse do alto, retomando
a realidade do cotidiano imediato.
De Monte Alegre, depois de dois pernoites ao lado da
igrejinha do Bonfim, e de venderem os carneiros, o bode e a
cabra Rajada a Pedro Lima “da Jabuticaba”, dono de olaria ali
perto, buscaram a estrada de ferro, em Piritiba, cortando Mundo
Novo pelos lados do Angico. Na bagagem duas latas com farofa
do que foram o capão e as duas galinhas, as outras vendidas a
“seu” Macilon para ampliar recursos. Seguiram para a Bahia,
após negociarem Magriço para comprar os bilhetes. O jumento
pareceu humanizar-se, quando tirado para o novo dono. Correu-lhe lágrima, vista pelo menino, que chorou junto, a ele abraçado, na despedida do amigo. Dia seguinte desciam na Calçada,
estupefatos com a cidade grande, com o mar. Sem saberem o
que fazer. Arrancharam-se na estação. No outro dia, abordados
por funcionário do Governo que os encaminhou ao porto para
embarque no vapor “Itacaré” que se dirigia a Ilhéus, no Sul da
Bahia. Dádiva do céu a oferta de transporte com destino à região
desconhecida, mas de muito futuro, como dissera “seu” Libório,
“onde não faltava comida nem trabalho”. Para todo o mundo
sempre havia um pedacinho de chão. A família de Tião, envolvida
na esperança de um futuro melhor, começava a esquecer Monte
Alegre, Coronel Josias Macário, estiagens.
– Sai, alma sarapantosa – disse para consigo mesmo Zefa.
Espantando o passado. Que começava a deixar para trás. Sem
nada para herança, como incerto o futuro.
A viagem ficou marcada mais pelos enjoos do que pela novidade que em si representava. Entremeados com a lembrança
de Boto espavorido com o apito do trem lá em Piritiba, sumindo
antes de posto na gaiola dos bichos. A perda do amigo, parceiro
das caçadas, ainda mais angustiava o balançar do vapor. Muitos
como eles buscavam o eldorado, carregando análoga esperança.
Não soube, tampouco perguntou, se alguém ali pelas mesmas circunstâncias. O sufoco na idêntica procura tornava-os solidários:
dividiam a pouca farinha e rapadura, partilhavam esperança igual.
Nas conversas ouviu de um mulato forte, que se dizia de Almas,
“perto de onde nascera Lucas da Feira”, como fazia questão de
frisar, sobre a certeza afirmada por “seu” Libório lá na Bahia de
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que para onde iam não faltava comida nem trabalho:
– Ié, já uví falá muinto de tudo isso, mininu... – e após um
certo tempo: cumida pode inté fartá, mai trabai é difíci iscassiá. E com entonação que refletia mistério, fala arrastada para
fazer-se mais entendido: – Lá num farta trabai memo... prumode
quanu num na inxada, iá na ripitição – e olhou-o profético,
estremecendo-o.
Coube-lhe – sentiu-se na obrigação de fazê-lo – construir
uma profissão de fé: – Pode ser, moço... mas nunca vou matar
vivente de duas pernas. Nem que seja pra comer.
Sentiu Boto, cochilando ao lado, parecendo compreender o
conversado, abrindo um olho de censura, e continuar a modorna,
revolvendo o esparramo da estação em Piritiba. Estremeceu. O
alarido da primeira classe desviou os pensamentos, tangendo a
imaginação pelos caminhos do fausto que a gente engomada
envergava, observada quando do embarque.
erdinando ria da piada contada por Juca de Zeca, amigo dos
tempos de escola da professora Vane. Ainda com a cabeça para
trás, gozando a anedota, virou-se ao ouvir seu nome. Recebeu o primeiro tiro, quando voltado para o balcão, de lado para o estranho
que entrara há pouco mais de um minuto. A bala atingiu-lhe a fronte
e fê-lo saltar gritando “ai, meu Deus, o que fiz...?” Não entendia o
que ocorria, e não teve tempo para dizer ou pensar mais nada. O
segundo e terceiro de Carlão, auxiliados pelos de Faustino – chapéu
calado sobre os olhos – dirigidos ao tórax. Os que estavam em volta
protegiam-se, buscando saídas, embaixo de mesas e balcão, atrás
de rolos de corda, nas costas uns dos outros. Cambaleou e dançou a
cada novo projétil que o empurrava para a porta, como a fugir do
inexorável, na coreografia bissexta construída nos últimos instantes de
vida. As armas pistoleiras esvaziavam-se em serviço profissional. Só
encontrou forças para cair junto ao meio-fio, vivendo o final. Quase
despencara o metro e setenta sobre a mirrada D. Estela, que sofreu um
cangolé diante do impacto da cena que a atropelava, esparramando
as compras recém-feitas no empório de Sabino.
Solano apenas colocou para fora a cabeça de onde se encontrava.
Assim que o Chevete passara pela segunda vez, ainda cruzando com
Crispim dentro do recinto, deixou o Armazém de Arlindo, atravessou a rua, entrou na venda de João, que apenas serviu de trajeto,
saindo imediatamente pela porta que dava acesso à Getúlio Vargas,
dirigindo-se ao posto telefônico. Duas horas antes se encaminhara
à Delegacia e tornara a denunciar a perseguição que sofria. Exigia
providências. Afinal, na semana passada seu Maverick, mesmo envenenado, fora perseguido pelo Chevete a dez quilômetros da cidade,
e apresentava disparos de arma de fogo. Corria perigo. E agora,
quando se dirigia para a cidade, avistara-os, tomando o rumo de
Itati. O Delegado, sem viatura, buscou a Prefeitura para conseguir
veículo para a diligência, iniciada logo depois, envolvendo todo o
destacamento. Chevete sem placas, que circulou pela cidade, parando
no hotel Paris, onde pernoitavam passageiro e motorista. O plano
funcionara perfeito. Solano pôde perceber os estertores de Ferdinando,
enquanto os matadores disparavam pela Ruy Barbosa. O povo que
se ajuntou com o tiroteio sabia da perseguição alardeada. O assunto
da semana. Parecia – diziam os “informados” – ser uma “questã” de
terra envolvendo interesses do tio de Solano, que o queria eliminado.
Os pistoleiros, afirmavam alguns, buscavam-no, e se enganaram de
vítima, atirando em outro pensando que o faziam nele. Sim, só podia
ser isso. Ferdinando nunca teria inimigos. Fora lamentável engano.
Matutou depois de o Chevete deixá-lo perto da matinha, oito
quilômetros de onde fizera o defunto, confirmado que ninguém
os perseguia. Os companheiros seguiam para destino ignorado.
Como de outras vezes, não seria reconhecido. Molhou o rosto com
a água fria do córrego, brotado perto, para facilitar a retirada da
“dissimulação”, amolecendo a goma de araruta que colava os fios à
pele. Não precisaria procurar o Coronel. Já recebera a empreitada.
A frieza substituída por certa tristeza. Aquele menino pagava por
coisas que não fizera, pelo menos aparentava. A discussão não lhe
parecia motivo suficiente para que finasse a existência. No entanto,
filho de Zé Cordeiro, como filho o de Belarmino, que se fora. E a
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F
história daquelas bandas ainda vivia o olho-por-olho-dente-por-dente
para alguns. Mas o que estava a pensar? Já fizera o serviço. Não a
primeira vez. Agora competia comprar umas coisinhas pra casa,
pagar continhas aviadas em bodegas que lhe forneciam o pó de café,
açúcar, costelas de porco salgadas para dar gosto ao feijão. Tinha
que cuidar da família. Complementando a renda pouca com um
servicinho, vez em quando.
L
embrava-se da infância em Monte Alegre, dificuldades
da família, dinheiro pouco. Dos casos contados: Coluna,
cossacos, Lampião – cabeças de parte do bando morto ali perto,
entrando pelas mãos da volante, levantadas dos sacos na Rua da
Baixa – procissão dos Passos, promessas peregrinas ao Monte
da Santa Cruz. Do avô Pêdo, guardando nicas durante o ano
para distribuí-las aos esmolés no trajeto da devoção, ziguezagueando para atender as margens da légua de acesso ao centro
de peregrinação; uma para cada um, não faltava para ninguém.
As que sobravam, deixadas na caixa dos pobres da matriz. Ele e
as irmãs cuidados e alimentados no carinho da mãe, e no dengo
dos avós maternos, os que conheciam. Os paternos moravam
distante, mundão do Gavião, nas terras dos Leitões. Ali, recordava, conhecera a realidade das estiagens, aprendeu a valorizar
cada gota d’água, grão de arroz, de feijão, de milho, bocado de
farinha. “Quem tudo come, tudo caga”, filosofava um tio avô
desbocado, Dativo, gargalhando das digressões em sua tenda
de seleiro. Mas a verdade do dito, passado à mulher, forma de
aprofundar a economia que precisavam fazer, o marcaria, tantos
anos depois. Ela entendia. E cumpria. Quando havia dinheiro,
alguma reserva se fazia.
Recordava o tempo de criança. A seca. Dinheiro pouca
serventia... Faltava o que comprar. Frutos-de-palma no desjejum. Uma festa levantar cedo, e com as irmãs, seguros pela mão,
guiados pelo pai, dirigirem-se aos fundos da usina de força para
derrubar frutos, espetá-los com garfos, retirar-lhes os espinhos
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florados com a faca, como se raspassem maxixe, cortá-los e saborearem a polpa caroçada com gostinho insosso ligeiramente
adocicado. Se não houvesse o manjar, voltariam ao mingau de
café, em colheradas ávidas de quem somente tem aquilo para
matar a fome. Ao meio-dia, feijão e maxixe. A carne, sempre
com osso; caldo ajudando a aumentar o consumo de farinha.
Vez em quando a raridade se manifestava sentida, recusada
pelos filhos, sensíveis no olfato. Farra se havia laranjada. A mãe
espremia com as mãos a d’água quase murcha, como o eram as
encontradas naquelas bandas. Punha água suficiente a torná-la suco para quatro copos, número dos filhos à época da
recordação. Sobrava o bagaço, que comia sôfrega, enquanto
os meninos aguardavam o motivo do regozijo. Coisa rara.
Houve dias em que só farinha misturada à pimenta e a um ovo
estalado, transformados em farofa, na quantidade suficiente
para todos. À noite, café com leite e pão, geralmente seco.
Se havia manteiga (feita dos restos da nata do leite fervido),
passada somente em um dos lados, feito juntar ao outro para
melhor distribuir o bissexto conteúdo. Comum o molhado
no café preto. Lúdico acompanhar o branco tomando ares
de marrom. Depois a picula, esgotar-se fisicamente até que
chamado para dormir. Pensando nos frutos de palma que
vira amadurecendo, esperança de desjejum amanhã. Se não
chegassem outros antes deles.
Ir ao casarão dos avós constituía oportunidade para comer
e brincar. Folhear as figuras dos almanaques do Biotônico e do
Capivarol. Encantar-se com os vitrais coloridos das janelas. Dispensar o colo do avô e a cantiguinha que dele ouvia, “dos tempos”
de Santana do Camisão, originada nos terreiros de batalhão na
“bata do feijão” ou na “buia do milho”, conforme o caso:
Marruá urrô
no pé da ladeira
no pé da ladeira
marruá urrô
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Adeus feijão
se Deus quisé
inté para o ano
quanu Deus nos dé
tela um lençol branco.
A fome sempre espantalho. Afastado com a dignidade da
economia conduzida pela mãe. As bananas-d’água, vendidas pela
negra Fausta, uma esperança de mudança no cardápio. Quando longe ainda na rua, ouvia-lhe a cantilena arrastada, inconfundível:
– Bananá... Ói a bananá. Deztões a dúza... Bananá...
Corria à porta, confirmava o que sabia certo, voltava e
avisava a mãe. Se não havia dinheiro a negra fiava até a semana
seguinte. Com elas o doce – se possível “desperdiçar” açúcar – e
assada, saboreada sofregamente à noite, amassada, e salpicada
de canela.
Chegou a imaginar a possibilidade de carregar o cavalete do
homem do quebra-queixo, ou, quem sabe, ajudar “seu” Hermínio,
do tabuleiro de lelê e cuscuz com coco ralado, que toda manhã
batia à porta, antes do café matinal. Podia receber um pedaço,
levar pra casa, fazer-se importante. Ou – quem sabe? – auxiliar
“seu” Meira, das pamonhas. Os projetos sucumbiram na determinação materna de que não carecia daquilo, “tinha gente mais
precisada”. – Pobres, sim, mas nem tanto.
Tempo especial o das chuvas. Juntava-se à meninada, correndo atrás das nuvens de formigas aladas. Enfiar-lhes um palito
ou espinho “na bunda”, deixando-as voejar, no bater de asas em
busca da liberdade. Alimento nobre, a fritada na gordura. Festa
ansiada. Pelas tanajuras espetadas, pela fritada. Caçada apoiada
na cantoria em alarido.
Dolente o canto, quase o fazia dormir. Mas, que cantiga, que
nada; queria naquele paraíso os presentes da avó, nunca faltados.
(Depois a descobriria, hipocondríaca, viciada em “Pílulas de
Vida do Doutor Ross” e “Leite de Magnésia de Phillips”, para
combater a prisão-de-ventre que dizia afligi-la diariamente – um
volvo, achava). Desde doce de marmelo na palha, de leite com
rapadura, ofertados com a alegria “de botar o menino a perder”,
como reclamava a mãe, até goiabas verdes, a brilhantina e os
tomates cagador, que davam dor de barriga se consumidos em
excesso. Desvendar o quintal grande, de hortelã graúda, veludo –
de vermelho forte – mimo-do-céu e bambu emaranhando muro
acima (cobrindo os cacos de vidro que protegiam a casa dos malfazejos), de cisternas (ladeadas pela infieira de talhas), de pinhas,
sentina no fundo. Os murundus, crótons e fetos tornavam-se
montanhas e florestas para esconder as caravanas dos seriados
de Nyoka e Tom Mix, vistos na matinée do cinema de tio Sérgio.
Os cágados, alguns centenários, aceitavam, indolentes, a montaria
na aventura. Os gatos corriam parede acima quando chegava,
conscientes da necessidade de fugir a tornarem-se tigres e onças.
Até porque se o arranhassem receberiam a chinelada da guardiã da liberdade de dispor, usar e abusar daquele território. O
oitão imensamente alto, corredor comprido, terreiro de piculas.
A marquesa grande na cozinha, onde sentava para merendar.
Perto dali as brevidades, feitas por Maria Beata – a mestra das
bonecas e bichos de pano – presenteadas pela avó Hormezinda e
consumidas com o café com leite. Em tempos de Semana Santa,
debruçava-se no batente da janela para espiar os passantes em
busca do Monte da Santa Cruz. Aos domingos o cineminha do
tio, quase em frente, ocupando as cadeiras arrumadas no salão
de bailes da Sociedade Lítero Recreativa 7 de Setembro. Por
Natal. Marcava-o a tristeza, fazia ponto a decepção. Ele e as irmãs.
Chinelos embaixo das camas, esperança de o velhinho deixar o
pedido: carros, bonecas grandes. Manhã seguinte nada. Em volta
a algazarra, o júbilo alheio. Eles pendurados na janela, olhos de
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“Cai, cai
tanajura
na panela
de gordura”
inveja infantil, inocente, sem pecado. De quem não compreendia.
Não tinham escrito o bilhete, relatando o comportamento durante o ano... rezado o pai-nosso e a ave-maria antes de dormir, todos
os dias... respeitado os mais velhos... ouvido o catecismo? Haviam
deixado de pedir ao anjo da guarda por papai, mamãe, vovô,
vovó, titio, cada um dos irmãos? Talvez a curiosidade frustrara
a entrada do presenteador. Afinal, insistira em ficar acordado até
meia-noite para vê-lo chegar, contando as badaladas do relógio,
na hora, meia-hora e quarto!... Para agradecer pessoalmente.
Certamente isso. Adormecera muito antes... Mas, curiosidade e
desobediência davam nisso, sabia, tanto alertado. Afinal, Deus lê
os pensamentos! A mente atropela justificativas, olhos perdidos
no embaçamento da vista que nubla na alegria das vizinhas. Chorar no fundo do quintal, atrás da cisterna, solução. Ou desviar a
tristeza com o mané-gostoso, piruetando desengonçado sob o agito
das mãos pressionando ritmadamente as varetas que o sustentam.
Melhor do que esperar que perguntassem o que ganhou e não
ter o que dizer. Ia cuidar da fazenda de bois-de-osso, sim, muito
melhor. Até que o tempo passasse, suficiente para a vizinhança
gastar a festa dos brinquedos recebidos. Voltar à normalidade,
acostumando o sonho para o ano seguinte.
Sem o perceber, a terra começou a constituir-se num centro
de indagações. Como o país para os que por ali passaram, em
tempos não tão distantes, quando chorara a primeira vez, tendo-a
também como centro de mensagem da mudança. Tudo depois
de haver visitado, a passeio, a pequena Jabuticaba, a rocinha do
avô Pedro, entranhada às margens da estradinha que passava em
frente do Bonfim. Mamona estalando no pé, caindo no terreiro,
como a fugir do calor sufocante, para saltitar no chão esturricado em busca da água que não existia. Gado magérrimo, igual à
sua boiada, só que ainda andando. Explicação nenhuma para o
que acontecia. Seu questionamento, sem resposta do avô, não
o encontrava ainda no amadurecimento que a realidade exigia,
que o fizesse compreender as razões de tudo aquilo existir. Mas,
despertava a mente para as coisas que, ainda sem o saber, o ator52
mentariam no futuro e o fariam viver a indignação como motivo
de luta. Principalmente depois daquele dia, da cena estranha. Por
que todos dela não participavam? Nunca compreendeu o que
testemunhara, perdido no tempo, quando correu à janela para
descobrir a razão do alarido. Um homem, cabisbaixo, coberto
com um couro lanzudo, acompanhado pela multidão, conduzido
à cadeia. A prova do delito, a pele do ovino. Abatera de Coronel
Josias Macário um carneiro para matar a fome da mulher e dos
filhos, após negado um prato de comida – a conversa ouvida.
Pagaria, na palmatória, à noite, o crime de matar a fome dos seus,
em época de escassez de trabalho. Os gritos na noite ecoaram
sempre em suas indagações, nunca respondidas pela sociedade
dos josias macários, que castigava os que nada possuíam porque
uns poucos tudo detinham.
O
velho relógio de parede repetia em moto perpétuo o toc-toc, toc-toc dos segundos, somente interrompido a cada
meia hora. Dormira, cansado após as piculas. Acordara em meio a
pesadelo: ponte imensa, de ferro e madeira, se tornava passadiço,
corda se rompendo, como aventura de cinema. Mexia-se para
não cair. O inimigo perseguia de perto. Sentia a dor das lanças,
no ventre. Em vários pontos. Escapava. A passagem balançava.
Canibais ameaçavam comê-lo, dentes afiados dilacerando a barriga. Gritava por socorro. A voz não soava. Se saía, ninguém a
ouvia. Os antropófagos fugiam de alguma coisa – Graças a Deus!
No entanto não o sossego que precisava. O motivo da fuga se
voltava contra ele. Animais ferozes. Tentava subir na árvore.
Caía. Garras afiadas penetravam o abdômen. Ursos, preguiças,
onças enormes, pretas, pintadas. Fugia desatinado. Olhava para
trás. Nenhum animal. Alívio. Sentava-se a descansar. Não havia
tempo. De novo as feras, monstruosas no tamanho. Garras de
todos, juntos, mais dilaceravam. Sempre no abdome. De dentro
para fora, vulcânicas.
Comera demais naquele dia. No casarão dos avós. Reação à
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escassez de casa. Misturara todas: verdes, maduras, de vez. Araçás
e pinhas. Gulodice. Não deixara um só cagador no pé. Quando
não suportava o engolido vomitava para reiniciar a comilança.
A barriga doía, e ronronava anunciando o que viria. Mudava de
posição. Nada. De um lado para outro. O nada ainda mais profundo. O mundo de dor aliada ao toc-toc do relógio. Um suplício.
Chinês. A dor aumentava. E a escola de manhã, como iria daquele
jeito? Lembrou-se do bacio, em baixo da cama. Sentou-se no
grabato, os pés para fora, apoiando-os numa borda do papelão
que servia de lastro para o urinol. Tentou evitar, mas não houve
jeito. Levantou-se. Em seguida abaixou-se, sonolento, e puxou o
papelão, que trouxe o vaso. Sentou. Entre gemidos descarregou
o comido. Enchendo o bispote. Aliviando a dor. Espantando
animais – agora mortos e putrefatos – pontes frágeis, canibais,
lanças e garras. Como fundo o toc-toc...
Recordou a velha Abigail, e sua voz que lembrava, ao falar,
o som de água escorrendo pelo ralo, onomatopeia ambulante.
Lembrança não da voz esfanhada, desbragada, antipática. Lá no
fundo da usina, caminhando à procura de frutos de palma viu
calango esbaforido correr de entre as ramagens. Ao procurar a
razão do esbaforimento do teídeo encontrou-a, saia levantada,
de cócoras, gemendo pra se desfazer de uma caganeira.
Acordou mais cedo. Despejou a louça na sentina e nada disse
à mãe do que sofrera à noite. Medo da repreensão pelo exagero.
Temor, inclusive, de tratamento à base de óleo de ricino, castigo
maior do que as dores. E como justificar, se o pretendesse, não
ir à escola? Cabia-lhe estudar. Estudava, pois. Único futuro que
reservava a família, diziam-lhe pai e mãe. Não outra a razão
de sentir-se, às vezes, dominado por sonhos de olhos abertos,
descobrindo-se líder mundial como o foram crianças como ele,
nascidas sem bafejos materiais. Amanhã, doutor. Afinal, não
houvera um presidente lenhador? – lera há pouco tempo. Mas,
tinha que começar de baixo. Por outro lado, orgulho maior não
podia haver, quando no final do ano, agraciado com a medalha
de “honra ao mérito”, tornava-se alvo de todos os elogios, me-
lhor aluno da turma, recebia abraços, olhares de inveja, e via-se
superior aos colegas abastados, que não conseguiam ser como
ele: menino inteligente, dos discursos nas festas cívicas, recitador
e representante oficial da escola nas solenidades. Esquecia-se
da humilhação de vê-los merendando farto, dividindo com os
colegas, não por solidariedade, mas por abundância, enquanto
se escondia num canto convivendo com o ronco do estômago
vazio. Na luta entre eles fazia-se vencedor, estudando, tornando-se o melhor. Uma coisa dizia que se não fosse dessa forma
nunca chegaria a lugar algum. Os bafejados tinham a riqueza.
Construiria a própria. Primário, aos poucos, edificado. Calça
azul-marinho, camisa e meia brancas, sapato preto. Não podia
imaginar, no entanto, o por acontecer. Quando a manhã adiantada
sentiu novamente a perseguição. A experiência anterior em nada
o ajudava. Olhou para o relógio da parede. Quinze minutos para
o recreio. Um alívio – pensou. Aguardaria, apenas quinze minutos. No entanto, enquanto as feras arranhavam-lhe o abdome, os
quinze se passaram. A professora não liberou ninguém, decidira
encerrar a aula mais cedo, sacrificando o intervalo. Sentiu-se desesperar. Não tinha o penico. E o salão que servia de sala de aula
não dispunha de uma mísera cloaca. Quis utilizar-se da tabuinha
da “licença”, sempre sobre a mesa da professora para controle
das saídas. Reteve-se. Temia denunciar, como se fora crime, o
que se passava. O exagero cometido. E aquilo não era sonho. As
dores aprofundavam ainda mais a agonia. Dezesseis... dezessete
minutos... O tempo contado daqui a pouco não em minutos,
mas... em segundos, sim. Percebeu-se amarelecer, ou enverdecer.
Arco-íris em sofrimento. Sentiu-se mal. A vista escureceu. Meia
hora... uma hora... Onze da manhã. Não suportava mais. Iria
jogar as feras ali mesmo. Não podia... Vergonha demais. Pediu
licença. Para ir em casa, temendo negativa. Surpreendeu-se com a
concessão. Não saiu depressa, como precisava. Não porque não
o quisesse... Não podia. Os passos precisavam ser medidos. As
pernas roçando uma na outra... com força. Duzentos metros.
Caminhados palmo a palmo, contados de um a um como quilô-
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metros. De vez em quando uma parada. Para a força, controle
da dor. Que o levava ao desespero. A cada metro andado, mais
lento o passo. O percurso feito em outros dias tão rapidamente
parecia levá-lo agora ao fim do mundo, horizonte inatingível, fim
de arco-íris. Avançava, como em campo de guerra, minado. Aos
poucos. Escondendo-se nas paredes. Fugia dos inimigos. Como
nas estórias que lia. Certamente qualquer que o visse naquela
situação não entenderia os esgueirares. Contaria um dia tamanho
sofrimento? Sobreviveria? Acostumou-se a aceitar a distância.
A morte parecia avizinhar-se, a foice imensa quase a alcançá-lo.
Tantos metros percorridos e os restantes inalcançáveis. Quase
chegando à porta parou uma última vez. Lívido. Para num esforço último reter o que ameaçava expelir e poder prosseguir
os últimos passos de suplício. Sentiu o mundo desabar em
trovões e tempestades. Sobre um universo de carniça. Olhou
para os lados. Não viu ninguém. Nenhuma testemunha, felizmente. Entrou em casa. Ensopado. Calça azul-marinho colada
às pernas. Meias brancas manchadas, rajadas em marrom e
amarelo. Inusitada aquarela em sapatos cheios. E um séquito
pestilento, empestiando o ambiente. Feliz, no entanto. Sem
dor. Sem mais precisar fazer força.
ora empreitado por Belarmino, fazendeiro de Palestina, para
vingar morte passada, por questões de terra em Itapuhy. Duzentos contos. Ganho de ano e meio de trabalho para convocar a véa
da foice. Para apoio “gente de Itacaré do Almada”, como gostava de
nominar o lugar onde dera de vir ao mundo, e veículo com “profissional do ramo”. O fazendeiro não esquecera a morte do filho, filho de
criação, de vinte e três anos de idade. O que tomava conta das roças.
Quando Zé Cordeiro adquiriu a gleba vizinha não imaginara que
adviessem problemas. Começados quando aviventaram os rumos a
pedido do outro. Os engenheiros encontraram diferença, justamente
na área que lhe pertencia. Cinco tarefas. Onde já plantado cacau,
safreiro. Comprara a terra de João Bigode. Não observou se a planta,
o título de propriedade, os limites se encontravam em ordem. Olhara,
gostara e fizera negócio. Nela a existência e a grande paixão. Nem
mesmo quando se mudou para Palestina, para melhor instrução aos
filhos, deixara-a de lado. Somente escasseou visitas quando o enteado
tomara tino e ocupou o administrar. Menino bom. Não sangue de
seu sangue, mas nenhum do casal merecia tanto a atenção. Até que
a tragédia aconteceu. O juiz mandara a polícia garantir a ocupação
das tarefas para Zé Cordeiro. O menino afobou-se, não aceitou a
mudança da cerca, discutira e entrara em atrito corporal com um
policial, puxara canivete. Atiraram nele. Finou dois dias depois,
ardendo em febre e pedindo que não o deixasse morrer. No delírio
falava da roça, plantava, projetava o futuro na família que iria
ali constituir, para crescer junto com o cacau. Belarmino escutava,
apenas. Até não mais poder ouvir, coração dilacerado empurrando-o
para longe da beirada da cama do agonizante. Impotente, chorava
pelos cantos para que ninguém visse. A agonia do menino, muito
mais que as cinco tarefas perdidas, transformou a dor em compromisso de vingança. O filho do vizinho tinha a idade do seu. Tempo
chegado. Até na era dos mortos. Esperara quinze anos. Não dormia
sem lembrar do moribundo implorando para que não permitisse
aquele sofrimento. E não houve médico que desse jeito. O dinheiro
não o salvou. Não esquecera. Nunca falara com ninguém sobre o que
preparava para o vizinho. Nem à mulher. Somente agora – transferindo para o matador o sofrido nesses anos, como a sublimar no
gatilho pistoleiro a ação do próprio indicador – pensou. Não estava
diante de um mandante, não havia profissionalismo nas palavras
– observou. Ninguém antes o acertara de forma tão direta como
aquele homem. E contando os motivos. Calou fundo o sentimento
de Belarmino com a morte do filho. Verdade que não importavam
os intuitos e sim o quanto lhe pagavam para ter uma razão contra
até quem nunca vira, como lá em Itapuhy, quando só deparou com
a vítima na hora que apontada, após a reza. Geralmente havia intermediário. Nunca sabia do verdadeiro interessado. Mas naquele
caso o próprio chamava-o, acertava pessoalmente o serviço, e, como
a desculpar-se, contava-lhe o escopo do mando, justificando-se,
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F
uando chegara, trabalho mesmo o foi para Coronel João
Borborema, depois de uns tempos com o vizinho. Primeira atividade a justificar o nome. Mandado para as cabeceiras
do Colônia. Abrir roça, derrubar mata, espantar camacã e pataxó,
ocupar as taperas recém-adquiridas aos posseiros. Disputando
com a febre a sobrevida na semana seguinte. Naquele lugar
competia-se com onça esturrando no quintal. Fugindo da seca
aportara em Ilhéus, em vapor custeado pelo governo, terceira
classe, depois da estirada de trem até a Bahia, sobrevivendo aos
enjoos, vômitos e diarreias, que os deixara mais pálidos e amarelecidos. Enfrentara os primeiros dias de espanto com o que
encontrava. Casarões davam dimensão de presépio ao imaginário
do chegante. O fausto do cacau, refletido naqueles palacetes.
Mais que isso, entretanto, a chuva. A cidade tomada pelo dilúvio,
que não parava nunca. Diferente do sertão caatingado. Duas
semanas depois pegou a trouxa, despediu-se de todos, mãe em
prantos (que percebia o primeiro momento da diáspora familiar),
enfrentou os caminhos de Itabuna. Lá o sertão esturricado: aqui
outro, o de mata. Não seria ali o paradeiro. O pai se arrumara
alugado, pondo os costados a serviço do cais, carregando sacas
de cacau para as alvarengas, trabalho duro e raro, dependente
de navios ao largo. Aquelas terras tinham dono. E disputa. Esta
a primeira decepção. Tomou a estrada, margeando o rio. Em
alguns pontos, quase se confundindo nele; noutros, avistando-o
mais de cima, imponente, correndo altaneiro, lavando as pedras
oferecidas. Cumpria evitar a Sempre-Viva, antro de escravidão e
morte – dissera “seu” Tertuliano na saída de Ilhéus, no Fundão.
O que o ajudou a atravessar aquela coisa sobre o mundão de
rio, tanta a tremedeira. “– Os home deru nome de ponte, feita
ano passado” – afirmara-lhe o salvador. Cinco léguas adiante a
promissão. Caminhou deslumbrado a margem esquerda. Indaga
aqui, ali, ouve sobre trabalho. Coronel Firmino Alves, indicação
de alguém. Não tinha ocupação, mas não se frustrasse. Encontraria. Andasse um pouco mais. Arrastou-se na azáfama da cidade,
centro de movimento, de poder, de mando. Passou de Itabuna.
Poucas horas permaneceu, o suficiente para esquadrinhar ruas
e vielas, ao longo do marzão imenso. Transitou o Burundanga.
Descobriu Ferradas e o Coronel daquela fazenda que distava légua
dos dois arruados. Sede de sobrado, voltada para o rio. Procurou
trabalho. Outra frustração. Mas, uma indicação para o vizinho.
Alojaram-no, observando-o.
Sucedera que, apesar das facilidades existentes, da fartura
nunca vista, trabalho não encontrou como imaginara. O sonho
de ganho farto e permanente na força dos próprios braços não
se materializava. Fome não passava. Frutas, caça fácil e fértil, por
si só, mostravam o outro lado do mundo, diferente daquele de
onde viera. Entretanto, tinha um desejo: o de seu. E haveria de
consegui-lo. Não importava como, tampouco os meios. Fim e
compromisso: o sonhado chão. Talvez centrado numa vingança
contra o Coronel Josias Macário: a de voltar a Monte Alegre
um dia, que não seria distante, terno branco de linho inglês,
bater na porta do verdugo, atendido pelo próprio, perguntar se
o reconhecia, ouvir o não, então dizer ser filho do velho Tião,
aquele expulso das próprias terras por ele, cobrando uns pratos
de farinha e, para gáudio, diante da indiferença e impassividade
do interlocutor, despejar-lhe a informação de que falava com
“fazendeiro de sesmarias no Sul da Bahia, em terras de matas,
cacau e gado”. E bem podia trazer a família para testemunhar
o instante. No mais, o sonho. Como o da maioria dos que vieram na mesma leva retirante. Alugado, comumente a saída. Mas
com ele nem isso. Aos poucos teve que se adaptar à realidade.
Jagunço, o destino para a maioria. Ouvira pelo caminho e, ao
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com jeito de quem fazia pedido – matutou. Depois de acordado,
ouviu agradecimentos, desejos de boa sorte para a família e até
mesmo colocou-se à disposição. E deu-lhe todo o acertado, coisa
que nunca acontecera, já que geralmente pagavam uma metade
ficando a outra para depois de provado o resultado, quando para
o destinado preparavam o velório.
Q
chegar, de outros já moradores, como tudo acontecia, como a
vida construía um “fazedô di difunto”. Pensou resistir. Mas, uma
maneira de garantir trabalho. Um lugar comum dava conta de
que somente os capazes de portar o pau-de-fogo detinham passaporte para atividade estável. Começou a repensar a promessa
falada no navio, de que nunca mataria para comer. Agora não
só comida. Também a terra, que não se achava de mão beijada,
pudera confirmar. Muitos ali, inclusive, tornaram-se grandes
guerreando por ela, tingindo-a e às águas de vermelho. Sim, um
modo de garantir o trabalho. Por que não? Mais aliviado do que
na roça. Bastava aprender a manejar o distinto. Certamente não
o utilizariam, se se oferecesse para o mister. Os mais experientes,
os requisitados, se houvesse necessidade. Ele, não. Nunca seria
exigido. Os outros sim, antigos soldados nas conquistas não
distantes, sobejamente avaliados. Quando muito, testado, quanto
à possível qualificação exigida. Como alvos um jupará – macaco
que falavam ser da região, e que ainda não dera de conhecer – um
gavião. Urubu não, recusaria, dá azar. A necessidade falava pela
realidade construída. Já ouvira dos coronéis, e como! E sabia o
que os tornava coronéis... Não somente a patente da Guarda Nacional, sob a influência do dinheiro e da política no passado, ou,
simplesmente, a autodenominação, ou, ainda, como na maioria
dos casos, a outorga originada na subserviência dos que viviam à
volta. Aqui não se matava como no Norte: pra vingar família, lavar
a honra da mulher ou da filha, ou, como na história que ouvira
sobre Lampião, quando sem jeito de voltar atrás se tornou refém
da vontade dos donos de terras nordestinas, depois que mataram
o pai desarmado junto da própria casa, como declamavam os
que defendiam o cangaceiro e sua luta. Mas descobriu, na pele, o
que não queria admitir. Contrariando a formação. Aqui se finava,
na maioria das vezes, por finar, para experimentar a mira, para
provar ao futuro contratante as qualidades que possuía. Apoio
para garantir a terra, e o poder que dela emanava, absoluto.
Com ele não fora diferente. Bisbilhotando o quarto das
armas segurou repetição, mirando em coisa nenhuma. Um dia
percebeu o caminho sem volta. Não podia esquecer o tremor
com a ordem para mostrar qualidades. Lembrou-se apenas, num
relance de eternidade, da profecia do mulato no vapor da Bahiana.
Em resposta sobre a encomenda ouviu apenas “qualquer um”.
Ficou atordoado. Como acabara de receber o dinheiro pelo acerto
de um roçado, um caboclo forte, meia estatura, caminhava lento
contando as cédulas, cuspindo saliva na ponta dos dedos. Ao
perceber indecisão, com um olhar, o Coronel, com os lábios em
movimento para frente, elevando um pouco o queixo, indicara-o,
e o confirmara com um aceno de cabeça, movida para cima. Num
segundo pela mente a morte da irmã, a história de Sinhá Inhana,
as cenas de desterro, a viagem de trem, o aportamento em Ilhéus,
o despedimento da família, a viagem até ali, a procura de trabalho.
Tudo de trás pra frente, como se já estivesse ao pé do umbuzeiro,
chorando a morte da irmãzinha. O medo do retorno fê-lo retesar
os músculos, levado pelo instinto de sobrevivência, como náufrago disputando a mesma tábua que salvaria um com a morte
do outro. A necessidade impunha a circunstância, o destino. Não
pensava, não raciocinava. Agia movido por voz que dizia não
haver escolha. Naquele fim de mundo não existia bem e mal, só o
existir, empurrando-o para permanecer, ou voltar sozinho. Agora
sem pai e mãe. Para enfrentar outros josias macários. Sentiu-se
imensamente só, a cabeça esvaziando-se de valores, estômago
ditando a consciência que ora construía, a ambição de tornar-se
grande avizinhando-se. E, trêmulo, suando em bicas, levantara o
papo-amarelo, várias vezes mais pesado que a velha espingarda
de espoleta, presente do velho Tião, apontara e atirara, como a
pedir que o disparo pisasse, não acertasse, desejo tornado último
fortim de sua consciência ética. Ouviu o pulo do alvo. E a queda. Após o tiro que o atingiu nas costas. Com a vista embaçada,
assustado, querendo demonstrar tranquilidade, encostou a arma
na parede do alpendre, depois de perpassá-la com um olhar
longo de profundo conhecedor da “arte”. Olhava-o, indiferente,
por baixo das sobrancelhas, cabeça ligeiramente inclinada, lambendo a palha para fechar o cigarro de fumo, o Coronel, como
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a verificar a “disposição” do testado. Teve tempo ainda de ver,
enquanto retiravam o infeliz, que alguém lhe tirara as cédulas e
os níqueis. E o choro de uma mulher e três crianças a ela grudadas, debruçadas sobre o corpo esvaindo a vida, querendo falar o
que não mais podia, agarrando-se desesperado na companheira,
buscando reencontrar a existência que finava. Quase não ouviu a
ordem ao capataz para que o alojassem melhor. À mente, de bem
distante, as histórias de tio Joaquim, das “gravatas vermelhas”,
da matança sem motivo dos que atacaram Canudos. Acabara de
matar um homem. Que nem conhecia. Sem qualquer razão. Ele
que só finara passarinho. Ave maior, nambu. Passarinho, pra
comer. E o homem? Caminhava matutando. Ouvindo o choro
da mulher e filhos do infeliz. Esqueceria aquele olhar atravessado
da viúva acabada de ser, buscando o autor do encaminhamento
do marido para o além?
Passou-se uma semana. Sem ordem de serviço. Também
não soube do atirado. Se enterrado. Se jogado no rio. A família
se fora, arrastando os andrajos permitidos e a ninhada de cinco
crianças em escadinha, duas delas de colo. Os companheiros
pouco conversavam. Fisionomia igual: fala pausada e arrastada,
conversa miúda. A comida não faltava. Levada ao alojamento por
uma negra velha e gorda, que os olhava com reprovação, sem
dizer palavra. Bem arranchado, sem dúvida. Consciência ao léu.
Não se acomodava, ruminando sem fazer nada. Vez em quando
à mente vinha-lhe o olhar de desprezo da velha gorda. – Mente
parada, oficina de Satanás – ouvira da mãe, espantando o calor
causticante da caatinga, mão passando sobre o rosto para tirar o
suor, colocando-o a trabalhar.
Três semanas depois o capataz trouxe-lhe a recomendação
de que procurasse o coronel vizinho. E que, sob suas ordens,
seguisse para as cabeceiras do Colônia com a comitiva que
formava. Passou-lhe uns réis, como pagamento dos dias trabalhados naquele não-fazer-nada. Recebeu as determinações do
novo patrão. Seguir adiante. Para abrir roça. Se preciso empurrar
camacãs, pataxós e onças mais para longe. Uma Winchester e
munição, capa-colonial, chapéu de couro, um vinte embainhado,
carne seca, farinha, feijão, pó de café, aguardente, querosene.
Não esqueceu de levar a capanga com carne enterrada, coisa que
aprendera a fazer, vendo o pai cortando miudinho restos de carne
assada para jogá-los dentro da farinha. Pertence de seu somente
o cangá, único vínculo que ainda o unia ao passado, à terra distante, à família da qual se desgarrara e nunca mais soubera. Devia
acompanhar a tropa de mantimentos para os que desbravavam
na cabeceira. Dois dos burros carregavam panacuns, com o que
precisariam no dia. Para facilitar o manejo. Como companheiros:
Zé Andrade, Mocó (cifótico acentuado, percebia-se, assim que
tirava a camisa), Justino, Felisberto e Guaxinim. A tropa com
dez burros. Comida, armas e munição carregados nos animais.
Os homens a pé, rasgando a mata no facão, na foice, onde carecesse. Madrugada de outubro, rumo às cabeceiras. Breve rocio
caiu quando puseram o pé na estrada, coisa sem importância,
que não dava de impedir o andar. Observando-os, do sobrado, o
Coronel. Sob as sobrancelhas. Pitando o cigarro de palha acabado de fazer, de fumo picado, cortado em capas jundiás, fumaça
soltada aos poucos, devagar. Afastado uma dezena de metros, o
vizinho que o acolhera primeiro. Do que poderia ser chamado
de quintal, tão grande a extensão, pendurando roupa no arame
sustentado em três estacas, a velha preta, no peso da gordura,
fixava-o enigmática, profética, fazendo-o estremecer.
A cajarana quase toda amarela, desfolhando-se vadia para o
vento que tornava folhas em meros papelotes, rodopios pelo ar,
para caminhos que ninguém conseguia identificar. Como fauno
raptando ninfas. E a velha árvore, sádica, como se risse de tudo
aquilo. Apenas esperando a nova folhagem verde. Enganava o
vento, que se imaginava dono do espaço, gestor de suas folhas,
guia e encaminhador das pendidas e caídas amarelas. Em baixo
dela sentara-se depois do tiro, no dia em que mostrou serviço.
Frondosa, galhos imensos, sombra boa, servia de local para amarra de animais. Nunca a esqueceria. Agora que viajava, voltou-se
para ela, desconfiado de que guardava alguma coisa, um segredo,
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e tinha consciência disso. Estremeceu, outra vez, com a possibilidade de contar o que sabia. Dos outros e de si. Evitou divisar
o alpendre vizinho, instintivamente. Temendo o olhar da velha
preta gorda, certamente cortando a linha de observação.
V
iajou a primeira vez, acompanhando o avô Pedro, para
visita ao tio Sérgio, que passara a residir em Itatinga.
Hospedou-se na “pensão de Maria de Afonso”, em Feira de
Santana. Cidade grande em demasia, enorme para os olhos do
menino, não acabava nunca. A velha marinete sacolejara quase
oito horas, parando em todo o trajeto de mais ou menos trinta
léguas. Pontos em muito de namoricos, o chauffeur paparicado,
saudado da janela de cada casebre, artista dirigindo o monstrengo
sertão afora, atualidade mitológica naquele imaginário. Buzina
acionada dando prestígio ao buzinado. Reciprocidade garantida.
Abóbora e melancia aqui, requeijão ali, baldezinho de leite acolá:
motorista e cobrador realizando a feirinha com os presentes
dos costumeiros passageiros, tornados amigos, fornecedores
de bens, coniventes. O sempre rápido dedo de prosa na entrega
da carta, um galanteio, a compreensão dos passageiros. Um quê
de admiração e respeito, até. Em determinado ponto saltavam
para um “café”. Os que tinham dinheiro. Outros abriam sacolas,
embornais e vasilhas, retirando farofa, que tomavam com café,
levado em um quente-e-frio. Todos se conheciam, permutavam
o que possuíam. Para motorista e cobrador a mesa pronta com
farofa de carne, ovos estrelados, pão, bolo. E o sorriso gentil e
malicioso da mocinha que os serve. A jardineira parecia uma velha
mãe, zelosa e ciumenta com a prole. Pernoitou para aguardar o
dia seguinte, quando viajaria para o Sul da Bahia. Outra parada
em Vitória da Conquista.
Espanto dos hóspedes quando pedira a rolha para tampar a
pia. E meio copo com água para escovar os dentes. Queria fazê-lo
para que pudesse por água na pia para lavar o rosto. Hábito em
casa o de usar a bacia de esmalte, quantidade limitada, tornando
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luxo o ato de higiene. Não conhecia a corrente. Desperdício imperdoável deixarem a torneira enquanto escovavam os dentes
e lavavam o rosto. Acostumado ao balde jogado no fundo da
cisterna, boca para baixo, batendo fofo sobre o líquido – tchibuuumm – puxado pela corda, trazendo-a medida e contada. A
bacia com meio caneco do líquido, mais que suficiente... Tinha
que ser. Já ali aquele desperdício. Deus podia castigar.
A rigidez de costumes pela constante falta de chuvas fizera-o
assim. Até hoje não se acostumara com o esbanjamento naquela
região. Como Deus podia fazer assim? Gente morrendo de sede lá
no sertão e aqui tanta água e tanto desbarato. Se pudesse levar um
pouco daquela fartura pra lá, ninguém ia precisar caminhar léguas
para buscar o de beber. E como ficariam agradecidos a Deus. Bem
que podia permitir isso. Agora voltavam a utilizar a bacia, ou litros
d’água para controlar e economizar. Parecia o tempo de menino.
U
m filho ardia em febre nos braços maternos, que buscava mil
maneiras de acalentá-lo, aos choramingos. Os outros, deitados
pelas esteiras espalhadas em dois quartos quase sem divisão entre um e
outro (tapume não concluído), ressonavam – como os anjos dos quais
falava o Padre – aos olhos da mãe que os observava. Entre baforadas
do cigarro de palha, matutava se arranjaria trabalho na próxima
semana. O bueiro, sem fumaça àquela hora, dava o limite da ração
disponível. O leocádio vazio. Precisava de dinheiro – ninguém mais
que ele – e a semana que findava, fraca. O pouco que arranjara tinha sumido na farinha, na carne seca – meio quilo – num punhado
de feijão. – Que mais pobre pode ter na hora da mesa? – indagava
a si mesmo. Alguns caídos, quando muito, o alimento para um
ou dois dias. Não tinha vocação pra vida de cabundá. E ainda o
menino doente. Da receita passada por Doutor Carlos Cabral não
pudera comprar nada. O remédio, tomava dado pelo dotô. – Home
bom! – deixou escapar, olhando de relanço as pucumãs, dedo coçando
bicho-de-porco. Não cobrou consulta e ainda deu remédio pro filho
– ponderou, agradecido, consigo mesmo. Pediu, ainda, que levasse os
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outros para consultar. E também a mulher, para a Doutora Vanda dar
uma olhada. Povo bom. Antes dele a família se curava com as rezas de
“seu” Ambrósio, homem pacato, aguadeiro antigo, forte na oração.
O juízo atabalhoava. Atropelando. Abespinhou-se num canto
da tapera, para remoer pensamentos. Buscou o canivete, talhou o
amarelinho que se fazia no canto da unha do dedão, juntou os polegares, expulsou o intruso, estalou os ovos. Lembrou-se de quando saíra
do Norte na grande seca – e riu enquanto ruminava a expressão, “lá
toda seca é grande!” Maior só a miséria da gente. O Coronel Josias
Macário tinha emprestado farinha ao pai durante algum tempo, e
terminara por tomar-lhe as trinta tarefas de caatinga, depois de botar
jagunço para acertar a conta. Tinham chegado armados, enquanto ele
semeava meio litro de feijão no fundo da burara, para aproveitar o
chuvisco da noite anterior. Deram o prazo, vinte e quatro horas, dois
dias, “no máximo”, para saírem. Tempo até demais para arrumarem
os fiapos em três gamelas e rumarem para a cidade, arrastando dois
carneiros e um bode, o cachorro Boto, nas mãos quatro galinhas
presas pelos pés – se não se esqueceu de alguma coisa nos cantos da
lembrança – os restos dos andrajos em dois caçuás postos sobre Magriço, o jumento. Que lhe dera uma queda, jogando-o ladeira abaixo,
enquanto a irmã gargalhava, suportando os sacolejos do animal,
segura na cruzeta da cangalha, sentada na garupa.
Agora se via nesta dificuldade – o que não era lá novidade –
mas, o menino tão doentinho. O eco do aboiado sertanejo, em meio
à caatinga, parece à porta, aprofundando melancolia e sofrimento.
Esmagou, displicente, entre as unhas dos polegares, o filhote de ruduleiro arrancado do cachorro que madornava junto a ele. A lembrança da irmãzinha sepultada no amanhecer junto ao umbuzeiro
relampejou a mente. Passava dificuldades nesta terra – tão fértil
no passado, e já começando a caatingar – as mesmas que o pai no
Norte, na grande seca. E nem tinha tarefas, nem mesmo uma, pra
trocar por farinha...
Trinta anos passados. O trabalho escasseara. A crise não acabava nunca. Parecia castigo do céu. Até ele, respeitado, sem trabalho.
Absorto, quase não ouviu o “ô de casa”, e só entendeu o que se passava
quando a mulher avisou que alguém o procurava.
– Um estranho – adiantou, antes que perguntada. – Com um
recado de um tal Belarmino, lá da Palestina – completou.
Depois de perquirir pelo jeito do visitante – se tinha modo de
carregar armas, se conhecido, como se vestia, onde fixava o olhar,
se a pé ou montado – deixou-se dirigir à porta. Encontrou, ainda
afastado um pouco da soleira, um indivíduo forte, preto de pele
brilhosa, azulado na negritude, vestindo mescla, que bufada pelo
uso não permitia distinguir a cor verdadeira. Na mão o chicote e o
cabresto, laço preso ao animal. Dele ouviu que o Coronel Belarmino,
fazendeiro na região, morador em Palestina, pretendia falar-lhe com
urgência, não sabia o porquê, o patrão não adiantara, mas que tivesse
com ele com celeridade e presteza. Antes que dissesse não dispor de
recursos para viajar, lhe foram passadas algumas cédulas para despesas, e um pedaço de papel de embrulho com o nome da fazenda
onde encontrá-lo e a localização, margens da estrada principal, perto
da Salomeia, uma casa no alto, curral perto. Achando suficiente as
informações, rasgou o papel, escondendo a falta de leitura, e prometeu
viagem para breve. Tinha algo para resolver. Ouviu do chegante a
pressa do patrão, mas podia ser dentro daquela semana. Levou a
certeza de que iria no dia seguinte. Imaginou que trabalho, para
quem parado, não podia esperar. Na realidade, tempo a gastar só o
suficiente para dar uso à parte do dinheiro recebido com a compra
de algum mantimento para a família – graças a Deus.
Almoçara o feijão-de-corda com carne assada no espeto. O
homem comia pimenta e temperos como indiano, um “gringo” que
conhecera lá pros lados de Itabuna, nos tempos em que chegara para
a região. Para cada colherada, hortelã graúda, miúda, uma dentada na pimenta-de-cheiro. Rapadura da Lapa completou a refeição.
Bebera meio litro d’água. Pitou um cigarro, depois de tomado o café
caldeado forte. Tirou do bolso o pacotinho com umburana-de-cheiro:
jogou uma na boca, mastigando devagar, para garantir a boa digestão. Comera muito. Proseio no alpendre. Últimas recomendações.
Viajou, lembrando que seria procurado por alguém, como dissera
Belarmino – para orientar a empreitada.
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C
erto dia, quando com nove anos, ouviu conversa de não
ouvir. Do pai com a mãe, após retorno de viagem ao Sul
da Bahia, de que a região guardava o futuro. Sentiu que a posição
adotada não encontrava apoio. Não porque frontalmente contra,
mas pelas circunstâncias que envolviam o instante em que surgia
a iniciativa paterna. As ponderações não prevaleceram, no sentido
de que fosse na frente, assegurando estabilidade em trabalho,
segurança para a chegada da família. Ali, se faltavam recursos
e a escassez dificultava a sobrevivência, tinham morada, não
pagavam aluguel. Continuaria vendendo o sabão feito por ele,
como o vinha fazendo, bastava produzir para o futuro, bastante
para o tempo de ausência. Mesmo que faltasse para comerciar,
restava a água das cisternas, que vendiam “para beber”, ainda
suficiente para dois, três meses de fornecimento a uma clientela
certa. Tinham amigos, para superar dificuldades mais próximas.
Sem falar nos parentes. Por outro lado, o menino estudando, o
melhor da turma, segundo a Professora Any de Belinha, durante
o ano passado, cursava o segundo ano e continuava centro de
atenção na escola, elogiado pela Professora Iraci, que ponderara
em torno do evidente prejuízo caso saísse em momento como
aquele. Demonstrava pendor para a leitura. Não desprezava os livros de Felisberto de Carvalho, os que tinham sido dela, recitando
versos, lendo as histórias relatadas, descobrindo vaidoso novos
universos. Até recitava a primeira estrofe de “Dous vestidinhos”.
Inteligente, nunca reprovado. Rabiscava a pedra de escrever com
desenvoltura, ensaiando contas, copiando frases. Divertia-se com
o ábaco presenteado pelo avô Pêdo, fabricado na marcenaria do
fundo do casarão. Ano perdido de estudos, castigo para o menino.
Que findava, mais um mês e as aulas acabavam. A pressa deixava
de fazer sentido. Ninguém corrido da polícia e Lampião não
fazia piseiro por ali. Aguentara a estiagem durante os meses em
que ausente, e não seria mais um ou dois que os levaria à morte.
O que precisavam, insistia, que enviasse, periodicamente, algum
recurso, mesmo pelos correios, já que não exercia atividade de
ganho, visto que mulher inteiramente voltada para o trabalho do
lar e criação dos filhos. Isto caso demorasse mais do que o tempo
que daria para vender a produção de sabão que deixasse. E se a
água de que dispunham para vender, por castigo acabasse. Afinal,
entendia, sair daquela forma, não passava de aventura, apressada
e desnecessária. Dentre os argumentos nem mesmo tocou na
gravidez, sexto mês, barriga tomando o rumo da boca.
Não convenceu. Alegava o fato de que não havia sebo na
região, decorrência da seca, o que inviabilizava a produção de
quantidade razoável de sabão, para que pudesse fazer o dinheirinho do dia-a-dia. A água das cisternas, para tirar, risco e esforço
muito grande – achava – mormente no estado em que se encontrava. Demais disso, insistia, sozinho naquele fim de mundo.
Sentia falta deles. E a família lhe era muito importante. E não
queria estar longe na hora do parto. Sofreriam, sim, mas juntos.
Por outro lado, melhor viajar com a criança ainda na barriga do
que novinha em boleia de caminhão. Mais difícil o atendimento
nos traçados de uma estrada, poeira em demasia, além do risco
de estranhar o clima. Os argumentos do pai definiram a conversa,
não diante da impossibilidade de réplica – ponderações havia –
mas para não defrontar com a teimosia que o marcava. Aceitou
o decidido, mais tocada na proteção da cria do que em qualquer
outra justificativa. Venderiam a terra, esturricada pela seca, onde
o rícino espoucava com o sol. Apurariam com os animais que
ainda não tinham morrido. A casa para o frete do caminhão. E
assim ocorreu. De progresso para ela, da conversa, a conclusão
da camisolinha azul enfeitada de sianinha ao fim do diálogo.
Início de outubro, a mãe grávida de sete meses na boleia.
Ele e as três irmãs na carroceria do caminhão de Aristóteles,
juntamente com outras cinco famílias, em busca do paraíso
sul-baiano a cento e vinte léguas. Um infinito. Novo tipo de retirante. Mais sofisticado. Que viajava com destino certo, menos
tempo para cobrir o trajeto. Ouvira falar de outros, antes deles.
A pé, poucas léguas a cada dia, durante meses. Morrendo pelo
caminho. De caruara, às primeiras colheradas, se lhes davam um
prato de comida. Ou simplesmente de fome. Por onde passavam
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estes – ouvira do avô – a tragédia mesma dos que caminhavam.
Não tinham apenas a coragem destes. Nascida muito mais da
necessidade do que da certeza de novo dia. A miséria, anônima,
unia no cordão sem contas. Bastava um poço na beira da estrada,
ou simples copo de água barrenta para alimentar a esperança.
Um pouco que lembrava dos contados. Ele e os seus não testemunhavam esses retirantes. Vendido tudo para aventurar em
novas terras, mas o faziam de caminhão. As ideias se perdem
ao tempo em que surgem, atropeladas com a cantoria que
espanta o tédio. E aproxima o sertanejo de suas raízes, sublimando a realidade, no sonho de dias melhores, em qualquer
canto de romaria. Incluindo lembranças de uma Juazeiro do
Norte, marcada pela morte recente de Cícero Romão. Que
ouvia, mas não entendia.
não doía como as outras, fazia sofrer apenas. Seu coração
parecia diminuir a cada metro rodado, adernando em meio
aos buracos da estrada. Distância aumentando. Incerteza um
dia rever os deixados. Dor que parecia matar. E não matava.
Só doía. Apertando o coração, espremendo e botando a alma
pra fora como carnegão.
“Bendito e lovado seja
no céu a divina luz
e nóis também na terra
lovemos a Santa Cruz”
A cantilena no imaginário retirante. A saudade do lugar, dos
avós, dos amigos, das professoras Any e Iraci, do primo Jorge,
parceiro no jogo de botões (arrancados, cada um, dos paletós,
buscados no chão das alfaiatarias quando a vista do “mestre” se
desviava deles) e que sonhava ser padre, colegas de escola e das
piculas no recreio, que tivera que abandonar por conta da viagem,
tudo amargurava. Lembrava do canto do ABC, da tabuada: dois
e um três, dois e dois quatro, dois e três cinco, dois e quatro...
Deixava para trás a rua, o apoio de uma vizinhança. Pra onde ia
tinha careta de carnaval? Corria delas, apavorado. Mas esperava o ano seguinte para assustar-se outra vez. Uma dor que
O canto se arrastava, triste, merencório. Sofrimento traduzido daquela gente. A música, não estranhava, comum nas
procissões. No Ramos, festa especial: a avó escancarava as janelas, enfeitadas de brilhantina, bambu e crótons sobre toalhas
de linho recém-lavadas e engomadas que forravam os batentes.
De segunda em diante tristeza: Via-Sacra. Quinta, procissão dos
Passos. Sexta, da Paixão. Roxo predominando. Sinos calados. À
memória os peregrinos do Monte da Santa Cruz, na Quinta e
Sexta-feira Santa. Como esquecer aquele instante? Apoiado ou
sentado no batente da janela (quando admitido a fazê-lo), trajeto
obrigatório para a Meca regional, dos de Camisão, Ruy Barbosa,
Capivari, Piritiba, Jacobina, Viração, França, Baixa Grande, Mundo Novo, Miguel Calmon, Pintadas, Itaberaba, grande parte a pé.
Imprimindo ao canto o sofrimento e a morte de Cristo, lembrados
naqueles dias. As mulheres, enlutadas na penitência. Arrastando
os joelhos pela estrada de cascalho, ensanguentando-os, para
desistirem adiante, buscando do padre outra penitência para a
promessa não cumprida. A rua e o trajeto ladeados de pedintes.
Cegos guiados por crianças ou cães, esfomeados todos, esquálidos,
iguais na tragédia da mendicância. Animais e gente. Mãos estiradas,
olhares fundos e compridos em busca da caridade do semelhante,
materialmente pouca coisa melhor que eles. Talvez só na miseração do dividir o resto que lhes dá o condão de proprietários de
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– “Minha Santa
Beata Mocinha
eu vim aqui
vim vê meu Padim
– Meu Padim
fez uma viagem
foi e deixou
Juazeiro sozim”
Deixa-se envolver pela cantoria, descambada no cantochão,
tamanho o arrasto no fraseado, no desinteresse pela existência
melódica, fixada na comiseração traduzida em cada texto. Ali,
por via carpideira, a saudade do rincão que vai ficando na lonjura
anestesia a dor e o pesar pelos parentes e amigos que ficaram.
Distanciando da fome, da seca, da desesperança. Será que a
viagem não é uma nova aventura? Quem irá recebê-lo? Terá
amigos, como os primos lá de Monte Alegre? E cinema?... para
onde ia levado na cacunda do tio. As recordações vão perdendo
o geral, para ocupar apenas o pessoal. Os problemas já não são
agora de todos, como antes. Mas, dele, apenas dele. Os outros
devem, mesmo cantando – pensa – matutar como ele, maturando
os sonhos por melhores dias. A cada lembrança da Dinha, do
Pêdo, a tristeza apunhala a alma, como testando para saber se
sobrevive. Suas lágrimas, na despedida da noite que antecedeu
a viagem, parecem ainda molhar o rosto. Nunca mais crótons,
veludo, mimo-do-céu, brevidades e café com leite na merenda,
doce de rapadura, cágados como montaria. Um poema vem-lhe
ao pensamento, declamado na escola, que falava da saudade do
poeta, de sua terra distante. Um outro aflora à mente, falando
da infância buscada, então perdida no adulto. E parecia ver-se
crescido para sentir-se menino saudoso da própria infância. Ali
vivida na angústia. O povo no caminhão continua cantando. O
sol morrendo por trás das serras e elevações, para reaparecer
depois da curva. E, aos poucos, avermelhando-se apopléctico,
para falecer com o fim da tarde. Envolvendo os pensamentos
com o enlutamento do dia.
Quase uma semana de viagem, presume, na vaguidão do
descompromisso com o tempo. Realizada somente durante o dia
claro. À noite a prosa junto da fogueira, para espantar o cansaço
e os mosquitos, antes de pesarem as pálpebras; estórias de onça,
mula manca, sem-cabeça, saci, curupira, boitatá... mulheres de
branco levando homens salientes em noites escuras para o cemitério, fantasmas de assombração. Olhinhos arregalados, embolado
nos outros meninos retirantes, sem dizer palavra. Escutando.
Até quando adormece. Assim que se abre o clarão, Aristóteles,
motorista e dono do caminhão, acordava os que ainda dormiam,
com duas buzinadas. Buscavam o mato, para satisfazer necessidades – homens para um lado, mulheres para o outro, arrancando
folhas de beira de estrada. Os primeiros a retornar já o vinham
com pedras e paus; trempes construídas, fogo acendido, chaleiras
fervendo, cheiro de café fresco tomando o ar. Após o desjejum
subiam no carro, para mais um dia de viagem, sacolejando. Uma
parada para o almoço, quando desentranhados os bocas-pios e as
latas de comida. Outras, para botar água no radiador.
A chegada deixou-o aturdido. Às dez, o transporte, agora só
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quase nada, à procura da esperança no Bom Jesus do Monte para
manterem-se, quando nada, naquela realidade de poder partilhar
migalhas. Vivendo a metanoia permanente. Sublimando.
“Perdão meu Jesus
perdão Deus de amor
perdão Deus clemente
perdoai Senhor”
Ouviria, muitos anos depois, mesmas cantigas, mesmo pesar,
entoadas junto aos que participavam da procissão levando pedras
na cabeça, acompanhando imagem de São José, na penitência
por chuva, quando as estiagens começaram a se tornar lugar
comum na região, antes pródiga em dilúvios. Expiando outras
penas. Os pensamentos se atropelavam. Olhar longe, concentrado
no horizonte que balançava. “Dai nossa fé, ó gente” – percebe,
distante, o que cantam agora:
“o brado abençoado
queremos Deus
que é o nosso Rei
queremos Deus
que é o nosso Pai”
com eles, encostou junto a uma casa, em noite de chuva, rua de
barro vermelho, “da Cancela” – que nome! – luz no poste, mais
fifó à mamona. Faltava fumaça e fuligem. A cidade que deixara,
e que se encontrava no limbo com as observações da estrada,
as serras e ladeiras antes conhecidas nos sonhos, na imaginação
dos caminhos sinuosos construídos no fundo do quintal, onde
transitavam o carrinho de lata de querosene ganho no Natal,
rodas de tampa de remédio (arte do pai) ou a boiada de bois-de-osso, retornava viva ao consciente, envolta em angústia. Não
ia se acostumar ali, com certeza – afirmava-se em pensamento.
A impressão que o lugar trazia, para conflitar o menino, diante
do que ficara para trás, não podia ser mais trágica. Pior do que
poderia imaginar. Esqueceu de tudo, adormeceu sobre uma trouxa
de roupas, cansado, reencontrou o torrão distante e os amigos,
em sonho. Encontrou-se herói universal, correndo mundo, nas
histórias geradas na imaginação, nascidas das estampas do Sabonete Eucalol, da coleção do tio Sérgio, guardada no casarão dos
avós. Haviam se passado quatro dias no percurso. Séculos.
P
assando dias em Palestina, Solano o conheceu. Fizeram amizade. O moço tinha conversa agradável. Parecia disposto, valente.
Até mostrara-se bom de tiro. Nas conversas aprofundaram confiança.
Ouvindo mais. Um dia falou-lhe de uma vingança, quando matara
em Macuco. Para vingar o tio. Belarmino desdobrando a atenção;
deu razão. Quase todos os dias um dedo de prosa. Procurou saber de
onde o rapaz viera, a família. Pensou que de olho em alguma filha.
Gostava dele. E tinha dentro de si a desforra do acontecido há quinze
anos, casando com contados pelo jovem. Um dia contou o ocorrido.
Não disse da intenção de vingar o filho de criação, braço direito,
esvaindo a vida aos poucos, pedindo para não morrer. Prontificou-se
a ajudá-lo. Se precisasse. Não pretendia vingança? Se o quisesse nada
mais justo. Até podia fazer o serviço. Não custava nada. A amizade
do amigo bastava. E justificava. O palestino ouviu. Não disse nada.
Dormiu pouco aquela noite. Pensando no escutado do moço. O tempo
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chegando. Passados quinze anos de de vez. O filho de Zé Cordeiro
na idade do que se fora. Tempo maduro. E o moço compreendia a
sua dor. Tanto que se oferecia como bálsamo. Assunto pra pensar.
Com calma, mas pra pensar.
C
aminhou entre sacos de farinha, feijão, milho, frutas,
verduras, até encontrar a barraquinha de Joana de Coló.
Pelo caminho, os cumprimentos:
– Bom dia Zezé, tá vendenu bem hoje?
– Bom dia seu Fausto, a coisa tá mais ou menos.
– Oi, Severo, o cumpadi comprou a banana de quem?
– Bom dia cumpadi... de Coronel Antoninho, lá na Rua de
Palha.
– E o sarapatel, D. Isabel, como tá hoje – ouve a resposta
de que “no jeito”, e avança pelo emaranhado da feira.
Na barraca de D. Joana, acomodou-se no banco de madeira.
Copo de arroz com leite, polvilhado com canela, tomado aos
poucos, com uma colher, saboreando os pedaços em lasca e
cravo, especial manjar matinal. Terminado o mingau pediu um
cafezinho, servido em copo dos também usados para cachaça.
Sentia-se respeitado. Ninguém conhecia o outro lado. Apenas
o de cumpridor das tarefas, conceituado entre os fazendeiros. Que entregavam o serviço dispensando fiscalização. A
confiança o orgulhava. Trabalhador como ele, raro – diziam.
Lembrado para o que exigia competência, responsabilidade.
Retardavam o que fazer, aguardando-o. Acertavam com meses
de antecedência.
V
iu passar os companheiros de empreita. Não podia chamálos. O moço de que falara Belarmino o procurara. Acertaram
detalhes. Só faltava ensaiar o feito. A longa barba postiça já no
alforje, pra ser colada com goma de araruta sobre a cara. Ninguém
o reconheceria. Como nunca o fora antes.
75
P
erto da barraquinha um propagandista demonstrava as vantagens da mercadoria, vez em quando espantando mulheres
e meninos com a jiboia, que dizia chamar-se Genoveva. Caminhou,
em volta, aproximando-se como quem não pretendia encostar.
– Pra lumbago, dor de barriga, cabeça-inchada, olho vesgo, dor de caluna; figo da ponta branca, reumatismo, remorso,
sapiranga e dordói; mau-olhado, ventosidade, dente cariado, impotênça, sonolênça; insônia, lombriga, solitária e inapetênça; farta
de apetite pra comida e pra mulher; tá escondido cuspino sangue,
síflis, pereba braba; coceira e rouquidão, hemorróida de pus ou
de sangue; estreitamento das via urinária, inframação do figo, rins
e bixiga; tosse, catarro crônico, bronquite, asma e fraqueza de
quarqué espéce; doenças venéra e pobreza de sangue – disparava a
catilinária, mecanicamente, com entonação de quem recita poesia,
versos longos buscando melodia modal, atonal, sem compromisso
com a divisão.
Aproximou-se, mãos para trás. Arrodeou-se do grupo que
ouvia boquiaberto a carretilha do homem. Admirado pelo estranho aparato manifestado pela jiboia, indiferente ao que ocorria
à volta.
– Esta maravia senhores e senhoras – levantava uma garrafinha numa das mãos, volteando-a para que todos a vissem
– contém na composição jurubeba, catuaba, pau-de-resposta,
boldo e fedegoso; anis-estrelado, chapéu-de-couro, pixurim,
noz-noscada e carqueja; quebra-pedra, velame-do-campo,
fitopel, angico e guaraná do Amazonas. E dando tempo apenas a inspirar o ar que realimentaria o derrame verbal: – E
ainda mais: espinheira-santa, ipê-roxo, salsaparrilha e mel de
uruçu; pau-d’arco, catinga-de-porco, pau-de-rato, umburana-de-cheiro e jatobá; tanto a casca como a resina – explicava.
Aprofunda a erudição:
– A vantagem teraprêutica de cada planta, folha, casca ou
raiz me permite, distinto público, afirmar que o conjunto contido
nesta garrafada é capaz de curar até tumor malígrino. E continua,
para não perder o mote:
– Se o cavalheiro sente aquela pontada na ponta do figo,
que responde cá no pé da espinha... Ou quando toca na boca
do estombo parece que bateu em tambor de macumba... Se não
pode ficar no meio de gente porque a ventosidade espanta até
urubu... Se abre a boca chama o dito cujo pro telhado... Se a
patroa, toda dengosa, lhe chama de “beeém” – entoa com voz
melosa, fazendo rir os circunstantes – e convida o cavalheiro pra
espremer cravo na cama e vossa senhoria diz que tá cansado... Se
ocupa o pinico não tem força que alivie o sacrifício... os intistino
mais parece cachoeira ou queda d’água... Quer se abaixar e não
consegue; o rim não deixa, a espinhela não ajuda... Se tosse parece
que o peito estoura... Tá nascendo furunco inté imbaxo do braço,
nas ponta do cutuvelo. Taqui a solução.
– Uma é cinco, três é dez – anuncia o preço e a pechincha.
O vendedor, autoalcunhado de propagandista, lugar comum
nas feiras livres do interior nordestino, inerente à paisagem do
comércio informal provinciano. Negocia produtos arrimado em
parte na ausência de um serviço de saúde pública que atenda
com dignidade a população mais carente. Vende remédios e
ilusões. Com tiradas jocosas, brinca com um ou outro à volta,
torna-se figura imprescindível de ser vista. Tem público cativo,
como os cantadores e poetas. Se o médico figura no imaginário
do caboclo, circunspeto, distante com sua teoria da linguagem
simples, o propagandista está perto de todos, mesmo aparecendo
de tempos em tempos para vender saúde. Muitos se acercam
tão somente para ver as curiosidades apresentadas antes das
“explicações científicas”, sempre originadas de rincões inalcançáveis, reservadas aos iniciados nas ciências ocultas herdadas
de antigas gentes, trazidas ao lume do repositório de caboclos
ainda escondidos da civilização nas brenhas da mata virgem,
conhecedores da flora e de sua utilização a serviço do homem.
Raro não comprar, mesmo que chegado sem essa determinação. Às vezes apareciam tocadores de sanfona, triângulo e
zabumba. Um menino, cego, de nome Zé Barbosa, chamado
de “Zé Ceguinho”, nascido em Guarany, impressionara. Tão
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novo e tocando tanto. Canta xotes, xaxados, baiões, cocos,
variedade musical e rítmica da cultura nordestina. Quando a
multidão se reúne, a música para. Assume a festa o vendedor do
milagre. Uns deixam o espaço, outros permanecem. Terminam
adquirindo-o. Alheio a tudo, embarca no passatempo de ouvir
o propagandista. A cantilena continua:
– Se as criança tão sem apetite, a mãe faz a comida, bota
na mesa e elas faz cara feia; a pele tá amarela, cheia de mancha...
sono inquieto, cheio de pesadelo, deixanu as bramura de lado...
não qué estudá, tá perdendo de ano na escola... pode ter certeza
que a lombriga tá acabando com ela.
Isso ele entendia. Menino doente. Barriga grande, comendo
um torrãozinho de terra aqui e acolá. Tratado à base de leite de
quaxinduba quando descoberto em trabalho de destruição das
paredes. E prestou mais atenção ao que dizia o falador.
– Se os minino tão roendo as unha... comendo terra... As
criança alevanta dormindo e sai andando... é verme, das pirigosa;
esta aqui.
Procurou se aproximar mais para entender o “colorido” das
verminoses, espalhado no chão pelo artista, que estampa “ciência”
sobre os malefícios de cada doença. Deixou-se deslumbrar com
fotografias e desenhos, analisados pela erudição do vendedor. “Ah,
as compridas conhecia; desgraçada de lombriga. A outra, miúda,
a caseira”. Debruçado sobre a aquarela nem percebeu a mudança
de indicação do propagandista, voltada para outro milagroso medicamento, uma pomada de peixe-elétrico da Amazônia:
– Se o cidadão tá com aquele fortum debaixo das oxila, que
espanta as namorada, não alevanta o braço no meio de gente,
cabeça-de-prego não deixa... As junta entrevada... Se o telhado
da casa vira campo de aviação pra urubu quando o cidadão tira
as botas, leve esta pomada.
Deixa-se impressionar com a afirmação do vendedor, valorizando o produto:
– Acabando este, acabou-se a festa – provoca a assistência,
como a acelerar o negócio e transformar a mercadoria em ouro.
Enquanto a fala se manifesta, os gestos da entrega do
produto à freguesia e o recebimento do dinheiro se alternam.
O tempo aproveitado plenamente. O arrecadado posto sobre o
pano que forra o chão, ao lado dos pacotes de medicamentos,
espécie de propaganda – se alguém compra, o que vende é bom,
e o arrecadado à vista de todos o demonstra. De quando em
quando, uma parcela substancial vai para um embornal, cédulas
maiores de preferência – para não criar usura.
– Uma garrafinha desta resolve o problema – volta-se, agora,
para o elixir, dispensando temporariamente a pomada milagrosa.
Toma uma colher das grandes, pela manhã, em jejum; outra antes
do almoço e outra no jantar.
E repete a ladainha, necessária diante de outra leva de
curiosos que chega:
– Cêis nem vão acreditar. Como adquirir esta maravia da
ciência moderna, combinada com a experiênça dos caboco da
Amazônia e dos tupinambá de Olivença? – Cinquenta mil réis
– define, e emenda no fôlego – mas por ordem do diretor da
empresa, para que a saúde possa chegar aos cidadões mais humildes, no lançamento do produto tá sendo vendida uma por
cinco mil réis... quem vai levar... uma para o cavalheiro... outra
para o cidadão aqui... quem leva três paga dez... três aqui pro
cavalheiro... uma pro cidadão...
Ria com a multidão diante dos improvisos. Que – depois da
venda de um bocado de garrafinhas – voltava a ser apresentada
à pomada milagrosa.
– Quando Deus não quer, remédio não presta e reza não
vale nada – filosofou o mascate dos remédios, talvez expondo o
que o inconsciente reflete quanto ao que vende.
– Use a pomada. Só não cura dor-de-corno, pois se curasse
eu já tava são pirito.
Gargalhada geral com o mote. Enquanto as virtudes do
unguento são postas à disposição da assistência, o “distinto
público” é buscado:
– Veja o cheiro, meu irmão... – e ordenando ao auxiliar
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Certa vez, na feira do Bonsucesso, viu-se esquecido, hipnotizado, descobrindo aquele estranho sentado na escadaria da
igreja, barba longa esbranquiçada vestindo parte da viola de dez
cordas, olhos cozidos, voltados para o sol do meio dia, desfiando a miséria sertaneja envolvida na esperança de um mundo
melhor para os homens – o outro mundo. Cantava a tristeza da
cegueira, conformando-se com o reservado por Deus para estas
plagas, agradecendo o dom de cantar a glória do Altíssimo para
quem enxergava, mas não via como ele as coisas. Sustava, vez
em quando, o improviso: a cuia de lata de banda de queijo prato
sacudida devagar, fazendo soar algumas das moedas, jogadas
para cima, seguidamente. A gente em volta, então, contrita na
tristeza do canto, tirava da algibeira um ou outro níquel, parte
do próprio pão, lançando-o na cuia, gerando ruído, como se assim registrasse a identificação por aquele que não enxergava,
e para ouvir, a cada tilintar, o “Deus l’e abençoe”, “Deus l’e
pague”, “Deus proteja a famia”. Sentindo o número de moedas atiradas na cuia, voltava a bordoar o instrumento, com os
novos motivos para desfiar a lamúria. Falava do Conselheiro,
cantando a tragédia, traduzindo o que ouvia pelos sertões,
dizendo-se testemunha viva da igualdade em que vivera aquela
gente, arrasada sob os algozes de Satã. Àquela primeira vez
repetira-se uma outra em Monte Alegre. Tais oportunidades
na feira traziam lembranças da infância. Razão por que não
podia ver ou ouvir um propagandista, um cantador de versos,
um tocador de sanfona sem deles se aproximar.
Muitos anos depois, houve um outro, lá de Itabuna, que,
vez em quando, aparecia em Itapuhy, pendurando versos na
corda, ou espalhando-os pelo chão. Seus romances atraíam a
gente simples. Estórias escabrosas, de homens desalmados que
desrespeitavam a palavra de Deus, abandonando a senda do bem
pelas promessas de riqueza fácil oferecidas pelo tinhoso, e se viam
castigados pelo fogo do inferno após a morte, às vezes até antes,
quando queriam fugir da obrigação. Minelvino Francisco Silva,
“O Trovador Apóstolo do Brasil”, famoso em todo o estado.
Enxergava. Da Lapa do Bom Jesus – para onde se deslocava
todos os anos em romaria – aos rincões do cacau, seus versos
tocavam o coração dos homens, que neles viam as próprias
vidas relatadas. Através deles sentiam-se heróis, o que refletiam
no cotidiano. Lembrava da primeira vez que o viu. Cantava os
versos sondando a assistência a cada pausa da leitura. Conferindo
a venda, efetivada através de ajudante. Sobre a cabeça um chapéu
de couro, de vaqueiro do sertão.
Só uma vez não gostou nem admitiu crença nos ditos do
poeta. Quando cantou que o Conselheiro tinha matado a mãe, por
engano, quando queria matar a mulher. Não podia ser verdade.
Homem santo, como dizia o tio Joaquim, o Profeta se dedicava
ao bem. Nunca feriu ninguém. Sempre incomodado. Bastava ver
o que fizeram com ele em Jeremoabo. Fora perseguido, dele disseram aleivosias. Tudo para apagar da mente a solução dada para
as mazelas e sofrimentos do povo: viverem como irmãos, todos
trabalhando para todos, sem propriedades, sem impostos, sem
governos injustos. Sob as ordens de Deus, ninguém pensando
ou praticando o mal. Não, o poeta errava. O Conselheiro, um
santo, e morreu por causa disso. Não tinham matado também
Jesus, o próprio filho de Deus? Imagine um nordestino catingueiro
como ele e tantos outros sofredores! Sem parentes nem derentes.
Aquela história só podia ser mentira. O Santo do Belo Monte
nunca matara nem mataria ninguém. Muito menos a mãe. E o
tio Joaquim dissera que ficara órfão quando tinha ainda cinco
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– põe nas mãos dos home, de minino não. Não quero negócio
com minino. Minino só presta pra bufar no meio de adulto
e atentar a gente.
Esqueceu da vida. Dos compromissos. Estirou o costado
da mão para a esfrega da miraculosa. Levou para casa, além da
feira, um pouco de saúde – como imaginava, aceitando a verdade
propagada – nas garrafadas e pomadas. Que ficariam ao lado
da jalapa e da purga-de-batata, indispensáveis para os casos de
derrame e das inflamações.
anos!... Como podia ter matado a mãe, se dela dependia? E o
pior – como podia ter mulher, ser casado, com apenas cinco
anos de idade? O poeta errava na poesia, sim. Sempre assim.
Também não disseram que tinha ido atacar Juazeiro? Mentira
deslavada para justificar a perseguição à anunciada comitiva de cobrança e transporte da madeira pelo velho Chico até Jacaré, paga
ao coronel João Evangelista e não entregue, para cobertura da
igrejinha, insuflada pelo juiz Arlindo Leone, que não gostava dele
desde os idos de Bom Conselho, onde predicara contra a cobrança de tributos. O não cumprimento do contrato transformado
em édito verbal, fuxicaria aumentada, de que invadiria a cidade,
assaltaria o comércio, feriria de morte o magistrado da comarca.
A ponto de mandarem contra sua gente cem praças da polícia
da Bahia, atacando, sem motivo qualquer, a utopia sertaneja em
seu reduto, de onde ninguém fizera nada, tampouco cometera
qualquer delito que pudesse justificar iniciativa daquele porte. Os
que, em debandada, saquearam e incendiaram Uauá, frustrados
na missão inglória. Mas, assim mesmo. Repetia o cordelista o
interesse dos grandes. Talvez sem o saber, reproduzia a mensagem dos detratores do Conselheiro. Dos que estavam contra
o povo. O preconceito obnubilava ainda uma visão objetiva da
realidade sertaneja envolta na esperança daqueles deserdados da
sociedade, afastava qualquer critério de avaliação, então sedimentada na defesa da cultura arcaica, misto feudal e escravocrata, a
intolerância presente. Quando não a difamação e o detraimento,
o silêncio absoluto sobre a verdade, levando ao esquecimento,
tornando o acontecido estória da carochinha. Transformando
a verdade em mentira e o contador num mentiroso. Durante
muito tempo fugiu do poeta, temendo que novamente falasse
mal do Santo de Belo Monte. E tivesse que intervir, para dizer
que faltava com a verdade... O que o povo ia achar, ou entender
desta reação? Chamariam-no de doido. Melhor distanciar. Isso
mesmo, melhor evitar. Pelo menos durante uns tempos. Mesmo
depois que soube de que eram quase conterrâneos. Ele de Monte
Alegre, o outro de Mundo Novo.
82
S
olano não dormiu. Matutava sobre a roça prometida e não
dada. Precisava de um jeito para pressioná-lo. A terra tinha
que ser sua. De papel passado no cartório. Mas como pressionar? De
conversa tentara tudo. Até falar em suicídio. A tia desmaiou, o tio
sentiu-se mal. Nem assim conseguiu o que queria. Mas a conversa
com Belarmino abria um caminho. Por conta se oferecera para vingar
o amigo. Sim, perfeito o plano engendrado. O fazendeiro topando
proporia que o trabalho fosse acompanhado de pistoleiros profissionais,
dois outros bastavam. Seria o terceiro, para não ter erro, diria. Para
não falhar a empreita. O plano caminharia por aí. O filho do tal Zé
Cordeiro morreria. Mas faria crer que houvera engano. Que escapara
por sorte. Do mando do tio – muitos pensariam. Sentiria a pressão.
Espalharia a perseguição. Tiros no carro. Alguém queria matá-lo.
Quem? – indagariam. Não podia crer – diria – mas parecia coisa
do tio. Faria com que acreditassem não admitir tal fato.
Preparação para o crime. Dos pistoleiros, um conseguido em
Coaraci. Outro arranjado por Belarmino, que encaminhava homem
da própria confiança. Tudo devia transparecer ser ele o visado. Auxiliado por Crispim levantaria sobre a vítima: hábitos, trajeto, horários.
Uma, duas semanas bastavam. Enquanto preparavam o prometido, a
história da perseguição cresceria. No dia todos teriam certeza do engano. Ferdinando morto. Belarmino vingado. E ninguém desconfiaria.
Tio pressionado. Como, na verdade, aconteceu. Assustado, vendeu as
terras que possuía, a prazo de égua. Como para livrar-se de um peso,
de algo cometido por ele. Pelo menos em pensamento.
D
ura a lição. Logo aprendida. A terrinha visava conseguir.
Difícil, sim. Via o que acontecia em volta. A esperança
da Calçada, na fala de “seu” Libório, não se construía com
trabalho. Mas com esperteza, no mando, na força, no caxixe. A
saga do cacau, percebeu, não ocorrera nos moldes do respeito
às relações entre trabalhadores e patrões. Dispensada a senzala.
Desnecessária. O obreiro, escravo disfarçado. A honra ferida,
amparada na vingança, acolhida pela conveniência da porteira,
83
ajuntava o jagunço e o trabalhador numa só pessoa, instrumento
de apropriação capitalista. O coronel compra no armazém sem
pagar. Se o vendeiro recusa, jagunçada busca, no trabuco. De
nenhuma serventia anotar. Para eles ainda o barracão em muitas
das fazendas. Outros ferros, diverso tombadilho. Algemados,
atados como cordão umbilical, com risco permanente de mal-de-sete-dias. Melhor viver, e se esforçar para recuperar o levado.
Pedir as contas, acertar o contrato: ilusão de liberdade. Mais certo
a cova rasa, comida de peixe, de urubu. Lenha para o secador
da Sempre-Viva. Então todos se mantinham juntos. Mesmo
estranhos, pouco se falando. Remoendo o sonho da liberdade.
Não, aquela vida não dava romance. Pesadelo. Sempre-Viva, o
exemplo.
Confissão. A lição tomada. Choro convulso, incompreendido,
atrás da porta. Lição aprendida. Doravante, melancia só chocha,
quando liberada...
-C
elancia chocha com farinha. Dádiva, divina, se safrada
na chuva de umbu. Miolo fofo – toc-toc-toc – provocando arranque, avanço sobre a safra, reduzindo a renda pouca.
Demanda reprimida estourando a consciência da cautela, fazendo
esquecer do passado que será futuro. Não distante. Aberração.
Temia ver o sete-estrelo no maio. Barriga ronronando. Cheiro
de pão queimado na chapa do fogão à lenha, quimera. Não lhe
saía da cabeça a arrancada quase verde, devorada na roça mesmo, longe da censura familiar. Deus assistindo o não dividir.
Compreendendo a ambição desmedida. Pecado impossível de
perdão. Possível só a chocha, quando liberada pela economia da
casa. Redenção inalcançável. Caminhou lento, passos de cágado,
o retorno à tapera moradia. Penitência implorando. Certeza de
fogo eterno. Em casa, irmãs no quase nada. Mãe e pai pedindo
resguardo de comida. Ele farto. Flagraram-no no pesadelo. Luxo
de quem come demais. Agressão maior só palitar os dentes
diante de retirante em estiagem grande. Não houve explicação.
Palmilharam a roça. Descobriram no dia seguinte o talo recentemente deflorado. Perto a casca, em torno sementes. Naqueles
cafundós quem efetivara tamanha ignomínia? Nenhuma resposta.
hove e nun trovoa, meu fio – repetia Filó, toda vez
que, no verão, chovia sem trovejo e relampaguear. –
A terra fica sem sustança. O relampo dá vida, agarante certeza pro
prantio. Mata um vêis in quanu – pondera – mai ié da vida.
A trovoada “cum relampo”: mensagem de Deus, indicativo
para o plantio. Se não demorada nos dias, “prumode nun imbebedá as pranta”. Água e energia se completavam, para oferecer à
humanidade o melhor da natureza. O resto não passava de resto:
brotar, crescer, colher. Em sua mítica, se em época “das água de
truvuada” chovia sem relampaguear, não devéra di sê bom sinal
para as safras plantadas naquelas circunstâncias.
– O cacau nun ié o memo, fio – explicava, levando o corpo
com a explicação – o café nun ié o memo. Dá, mai nun ié o memo.
Farta de sustança na terra. Nun madroce bem.
Assim mesmo. Cheio de cisma, credulidade sempre posta à prova. Vinculado às coisas simples, dos costumes mais
pretéritos. Chegado a uma rinchona, ficava falador, cismado,
com dose a mais. Mormente em roda de relancin na cafua. Se
tornava perigoso. Diferente da figura mansa fora da bebida.
Às vezes dobrava o soluço na peruagem do carteado, emitindo
emoções estranhamente. Noutras deixava a implicância de lado
e tornava-se hilário, gaio, cheio de brincadeiras, anedotas, jogo
de corpo contando causos. Bastando apresentar-se onde quer
que fosse se tornava motivo de riso. Pessoa querida. Famoso
ouvido de teiú, escutava longe. Bigode ralo, branqueado, boné
caindo sobre os olhos. Curvado sobre si mesmo. Caneta Parker
e lápis no bolso acompanhando a cadernetinha de arame, para
ilustrar importância.
– Quantas braça, cumpadi? – buscava saber, se pedia alguém
ajutoro de conta.
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M
Puxava a cardeneta, o lápi; lambuzava a ponta do grafite,
riscava as garatujas no papel. Se carecia de anotar em outra folha,
molhava a ponta do indicador com saliva, para ajuda no folhear.
Não errava cálculo de tarefa, qualquer que fosse a geometria da
área posta à disposição. Dava lição a engenheiro. Nunca usava a
caneta-tinteiro, “um luxo”, presente de Dr. Aristóbulo, ofertada depois que lhe fizera as contas das terras adquiridas lá pros
lados do Palmeira, para conferir, não confiando na medição
dos “apareio” de Manoel Batista, como denomina o teodolito
do engenheiro local. A caneta ficava no bolso, como mostra
de importância, símbolo do reconhecimento de sapiência “nas
aritmética”, sua arte e ciência maior:
– Graça do dotô Aristóbu – apontava, orgulhoso, para demonstrar o respeito que merecia como fazedô de conta.
Caboco mandureba na labuta. Pau pra toda obra: curral,
foice e facão; serrote, martelo, enxada, trado, trancha e enxó.
Referência de honestidade. Companhia de Gabriel Bruno de
Montalvão, o “Bié”, na parceria de cana, irmanados na mesma
boceta de Pandora: paixão não correspondida. Cantavam os
amores fugidos, compreendiam-se, aprofundavam sofrimentos
que se esvaíam em cada dose no desvão do esquecimento. Ou,
pelo menos, na ilusão de que esqueceriam o que os amargurava.
Até o dia seguinte, quando tudo recomeçava.
– Facin, facin, cumpadi, mistéro ninhum – expunha, enquanto
em volta torcem o nariz, engúiam com a receita. – Pra tirá o misca
limão, cardo de cana em profusão, três a quatro litros, arfavaca de
galinha. Deitá a carne, em pedaços, no môi durante um tempo.
Depois, deixá no soli pra enxugar. Em siguida muquiá. Cozer
ensopado, tempero a gosto.
– Mai a bicha deve de sê macho – concluía. – E muquiada.
Definia o que chamava de prato dos melhores, divino. – Mió inté
que carne de afitim – esgotava o tema.
Ninguém como ele sabia “quebrar a dormença” das sementes
para o plantio. Deixava ferver a água em fogo lento, de pouca lenha. Em seguida retirava a panela de barro da trempe, aguardando
a água deixar de borbulhar, para então lançar nela as sementes.
Durante um tempo que, se cronometrado, levaria dez minutos,
observando reações que somente ele via, retirava-as, para então
jogá-las na água fria. Depois as punha a secar, guardando-as em
lugar fresco durante quatro dias, oportunidade em que as considerava preparadas para o sementeio. O método, afirmava e já
dera prova, permitia o florescimento em tempo bem mais curto
que o normal, sem a técnica.
– Mai, coidadu, fio – alertava – nem toda sumente ié dada
a tar mistéro.
Com isso retinha o segredo, o controle da informação. E
o prestígio, pela dependência do conhecimento. E orientava,
didático:
– Certos prantio só cum sumente quebrada a dormença, e
sumiada adispois qui trovoa, quanu a terra tem sustança. E na
quadra certa da lua.
Muitos afirmavam – testemunhas oculares – da capacidade
como rezador para espantar cobras. Reza forte, de coalidade.
Os fazendeiros, quando as peçonhentas queriam tomar conta
do terreiro, descobriam-no. Circulava nos três cantos da propriedade, deixando o quarto por onde as danadas escapariam.
Preciso uma saída. Não podia matá-las, só espantá-las; segredos
e mistérios, que não revelava a ninguém. Não tardava, diziam os
que testemunharam, a infieira de cobras, de mamanu a caducanu,
abandonava o território.
– Mai só ieu pra entender onde pispiar a reza – outro alerta
– segredo dos caboco, mistéro qui nun se conta, prumode nun
perdê a sabença.
Se a leseira de vento acontecia chamava-o de volta, estivesse
onde estivesse. Assoviava, longo, e lá vinha ele, no modo de brisa. Devagar. Chegando. Dando voltas. Refrescava. E ia embora.
Fiiiiiiiiuuuu... e o danado voltando. Matreiro, pedindo desculpas
por ter ido tão cedo.
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Segunda Parte
V
iagem às Cabeceiras do Colônia, experiência inédita.
Fantástica para o nordestino afeito às estiagens, o que
só antes conhecera. Não ainda à terra estranha. Mato e teimosia
de chuva não faziam parte do imaginário. Não se aprende o que
se desconhece. Seca, estiagem, terra rachada, isto sim. Aguaceiro encontrara em Ilhéus, coisa da região. Para ele inteiramente
virgem. As matas faziam-no viajar sempre na sombra. Diferente
da vegetação rarefeita, rala, aguada, diáfana, quando havia, típica
de onde viera. Lá a macambira, o icó, o pau-de-rato, o gravatá, o
sisal; aqui o jequitibá, o cedro, a peroba, o angico, a maçaranduba,
o pequi, a aroeira, o jacarandá, a sapucaia, o ipê, o putumuju.
Tudo profuso e imponente. Embaúbas e gameleiras sobrando,
preguiças fartas e indolentes escolhendo onde comer. No distante, a mata catingueira, retorcida e emaranhada, não o protegia
do sol escaldante. Ao contrário, dela se defendia, encourado. Aqui
sombra, chuva. Tão densa que se tornava noite interior. A picada
da estrada real, de pouca utilização, exigia de quando em quando
ação. Deles. Com facão, foice. Às vezes machado. Zé Andrade,
Justino e Guaxinim conheciam o trecho. Mocó em primeira ida.
O angico também matara alguém pra mostrar serviço? Certamente. Falavam, à boca miúda, entre sussurros de temor, que
fora gente de Coronel Basílio, de peso na defesa dos Mutuns.
Alguns afirmavam-no cauaçu antes de arrebanhado para a luta
contra os Badarós. Outros, rabudo sob comando direto do Coronel Marcionílo de Souza, peça de confiança muito próxima,
presente na ocupação das vilas de Poções e Boa Nova. Talvez
essa a razão de gostar de carne seca, assada no forno de lenha e
batida no pano até fiapar, utilizada sobre o leite como se canela
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