HOUVE UM TEMPO PROCHNOW, SIMONE B.1 UNIRITTER LAUREATE INTERNATIONAL UNIVERSITIES Rua Orfanotrófio 515, Alto Teresópolis, Porto Alegre, RS, CEP 91.849-440 [email protected] RESUMO Este artigo traz reflexões sobre o projeto arquitetônico como ferramenta para a preservação do patrimônio histórico. Busca demonstrar a viabilidade da permanência desse patrimônio paralela à atual condição de vulnerabilidade em que se encontra o conceito de memória. Exemplifica esta questão com as dificuldades existentes entre produção imobiliária e preservação do Patrimônio que ocorrem hoje em um antigo distrito industrial, chamado no IV Distrito, na cidade de Porto Alegre. Através de estudo bibliográfico e iconográfico revelam-se estratégias já utilizadas em situações semelhantes no Brasil e em outros lugares do mundo. O artigo aponta algumas soluções para impasses atuais. É uma mostra da importância do saber construir sobre o construído - uma necessidade do mundo hoje. Palavras-chave: memória; patrimônio histórico; projeto arquitetônico 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU UNIRITTER em Convênio com a FAU MACKENZIE. Considerações Iniciais Este artigo tem como objetivo trazer reflexões sobre o projeto arquitetônico como ferramenta para a preservação do patrimônio histórico. Busca demonstrar a viabilidade da permanência desse patrimônio face à atual vulnerabilidade do conceito de memória. Exemplifica esta questão com edifícios sujeitos ao desaparecimento, devido à crescente e constante produção imobiliária em Porto Alegre, mais especificamente no IV Distrito. O estudo bibliográfico de opiniões críticas e iconográfico de situações similares visa mostrar algumas maneiras de pensar e também estratégias de sucesso que podem ser aqui adotadas. Esses casos mostrados têm intenções e proposições que buscam dosar ineditismo e familiaridade, manter a história e saciar a necessidade de novos lugares - uma premissa pós-moderna. Através da correlação entre edifícios tombados e subutilizados na cidade e de análise de projetos bem sucedidos já existentes, busca-se o conhecimento necessário para um exercício fundamental nos dias de hoje: construir sobre o construído, trazendo urbanidade a lugares obsoletos. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro HOUVE UM TEMPO Houve tempo... em verdade eu vos digo: havia tempo. Tempo para a peteca e tempo para o soneto Tempo para trabalhar e tempo para dar tempo ao tempo Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto... Vinicius de Moraes, trecho do Poema A Cidade Antiga Se conseguirmos parar para pensar, o que atualmente já é difícil, realmente nos daremos conta de como não há mais tempo. Tempo para brincadeiras de criança, tempo para a poesia, tempo para alguns valores. As pessoas não sabem mais dar tempo ao tempo, as rápidas conexões com o mundo tomam conta do nosso tempo. Não há mais tempo para envelhecer sem antes ficar obsoleto - a velocidade já é intrínseca ao nosso tempo. Conceitos no mínimo intrigantes como pós-modernismo, capitalismo cognitivo, multipertencimento, vida líquida, nos são apresentados diariamente de uma maneira frenética e de algum modo tentam explicar esta estranha sensação de falta de tempo. Segundo Françoise Choay (1925), em 1913 Giovannoni já avalia o papel inovador das "novas técnicas de transporte e de comunicação" e prevê seu crescente aperfeiçoamento - são esses sem dúvida conceitos que dão base ao imediatismo que tanto nos aflige atualmente. Thomas Carlyle em meados do século XIX, quando fala a respeito da Revolução Industrial, expõe uma interessante preocupação: "Não é somente o mundo físico que está agora organizado pela máquina, mas também nosso mundo interior espiritual (...) nossos modos de pensamento e nossa sensibilidade. Os homens tornaram-se tão mecânicos em seu espírito e corações quanto em suas mãos." (CHOAY, 1925, p. 20). Levando em consideração a atual revolução do "virtual" e do "sem tempo" na qual estamos inseridos, nas mesmas proporções de Carlyle, como fica nosso espírito, nossa sensibilidade, nossa maneira de pensar e, consequentemente, de viver nossa história, nossa arquitetura? Segundo o conceito de vida líquida, por exemplo, as realizações individuais hoje não se solidificam em posses permanentes. Não tem forma definida. A fluidez da existência contemporânea leva a um alucinante ritmo destrutivo-criativo, onde a existência é transformada em efemeridade. A " liquidez" é a essência máxima do ser contemporâneo. Segundo Zygmunt Bauman - autor da teoria - a transformação das relações humanas e dos próprios homens em mercadoria produz um sentimento de fragilidade e incerteza que domina todas as esferas da vida afetiva e social. Para sobreviver seria imperativo que o homem se libertasse de qualquer vínculo com o passado, adotando como visão de mundo a fugacidade e o aspecto descartável de seres e coisas. Isso é bastante preocupante quando pensamos em patrimônio, legado, memória. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Para o arquiteto e filósofo catalão Ignasi de Solá-Morales, a consideração do movimento e a inserção do tempo como dimensão arquitetônica estão no cerne da caracterização da liquidez da arquitetura. Entretanto, Solá-Morales aborda essa questão sob um distinto ponto de vista. Ele não investe na desmaterialização da arquitetura nem na instabilidade da forma, mas sobretudo na consideração do uso dos espaços. Para ele, na arquitetura líquida a ação humana introduz a noção de fluxo, deslocando o paradigma do espaço para o tempo. Ele considera que a arquitetura deve ordenar movimento e duração, e não mais dar forma e conformação do espaço, deve trabalhar a mudança ao invés da instabilidade, assimilando assim a fluidez que existe na realidade, libertando-a da condição de permanência (CRUZ, GRILLO, 2010, p. 182). Mas sendo pelo menos uma parte da nossa memória composta por permanências, como virá esta a se constituir daqui para frente? Segundo Odo Marquard, filósofo alemão, vivemos na época da estranheza ante o mundo. "É fugaz a relação entre o sujeito e seu mundo, condicionada pela velocidade com que a mudança se reproduz." Sabemos que a memória gira em torno da mudança. Seria possível ao menos controlar a velocidade dessa mudança? A instabilidade a que está sujeita nossa memória? De forma muito clara, Fernando Diez em Summa+, 128 conceitua o patrimônio como "antídoto" para a crise de identidade que se apresenta, invertendo a noção que o movimento moderno tinha tornado determinante: que o velho deveria ser substituído pelo novo. Inesperadamente o desejo de que o novo substituísse o velho sucumbiu à necessidade do presente ser salvo pelo passado. Uma interessante maneira de expor esta onda conservadora preservacionista que entra em cena. Misturando o apreço e a necessidade à grande obsolescência a que são colocados inúmeros edifícios atualmente. Quando Charles Bloszies (2012) define edifícios históricos como o comfort food da arquitetura hoje, ele sinaliza com pontos extremamente fortes a favor da preservação. Os edifícios antigos teriam um apelo estético perante os cidadãos, além é claro de serem parte importantíssima na legibilidade da cidade. Também a sua forma facilmente reconhecível traz uma sensação positiva ao olhar. A favor da permanência, surgem conceitos que puxam a balança da incerteza de volta para o equilíbrio. Um deles é o upcycling - um passo além do recycling - cujo objetivo é evitar desperdício de materiais potencialmente úteis, fazendo uso dos já existentes. Uma radical reciclagem in situ do edifício industrial existente, por exemplo. Utiliza o existente e o ressignifica. Prioriza ações sustentáveis que geram uma nova linguagem estética. Obtém-se uma considerável redução no consumo de novas matérias-primas durante a criação de novos produtos e/ou lugares (conforme Martin di Peco em Summa+, 131). Nos exemplos abaixo, podemos observar o seguinte: no primeiro, o programa morar e trabalhar é colocado na estrutura de um antigo celeiro. Uma caixa de vidro e metal é inserida na casca pré-existente 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro de alvenaria. No segundo, um antigo depósito na China foi transformado em hotel de luxo. A carcaça de concreto permanece e a ela são acrescidas paredes de aço corten. Fig.1: Walden Studios, Califórnia - Fonte: www.busyboo.com / The WaterHouse, Bund District Sahngai - Fonte: http://guidepal.com/shanghai/hotels Outro ponto importante considerado é a escala destes edifícios com relação à escala humana. Giorgio Grassi enfatiza em seu livro "Architecture Dead Language" a importância não apenas da forma dos edifícios antigos, mas da relação que estabelecem no espaço com a sua presença. A escala é "puxada" de volta para a escala humana, diferentemente dos mega projetos dos empreendimentos modernos, onde metros e metros de muros intermináveis segregam o indivíduo e monotonizam a paisagem. Reforçando esta posição, Jan Gehl (2013) defende este conceito de escala quando fala da "cidade para as pessoas", de como o nível de atividade é muito maior em frente a uma fachada ativa, que tenha relação com as pessoas e não seja apenas passiva. Neste exemplo em Madrid o andar térreo é suprimido, fazendo de todo este negativo área de entrada ao novo edifício. O largo a sua frente torna-se um convite. Observam-se também o uso da figura estética da ruína e a aproximação da escala. O que antes "atrapalhava" a cidade e escurecia o entorno agora é magneto dentro de toda a região, atraindo pessoas locais bem como turistas estrangeiros. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Fig.2: Caixa Fórum Madrid - Fontes: www.arcspace.com e foto da autora. A arquitetura tem o poder de ir contra essa gigante onda de velocidade e imediatismo que os atuais meios de comunicação nos oferecem e que o capitalismo nos impõe. Ela perde algumas batalhas, mas é forte. Através da arquitetura podemos experimentar e perceber ciclos que ultrapassam nossas existências individuais e isto é fantástico. Além disto, a arquitetura consegue mudar o modo de vida, criando "lugares" onde nossa história, nossas relações e nosso dia a dia em sociedade ainda podem ser saudáveis. "Lugares conversáveis" como explica Lineu Castello (2007), onde nossa convivência pode ser incrementada - convivência esta fundamental e que já faz falta. Espaços onde além da conversa dos homens entre si, acontece também o diálogo permanente entre o próprio lugar e os indivíduos que o frequentam. Afinal somos seres sociáveis. Estratégias de sobrevivência Atendendo aos propósitos de permanência, de criação de novos lugares, de resgate da memória, uma outra série de conceitos se apresenta. Maneiras diferentes de trabalhar o patrimônio - novas estratégias de sobrevivência desse patrimônio. São os REs da arquitetura: reforma, reciclagem, reuso, revitalização, recuperação, reabilitação, reconversão e também re-arquitetura. Inúmeras são as definições desses conceitos, mas aqui serão descritos alguns. Segundo Carlos Eduardo Comas em Summa+, 115, a reforma requalifica a forma. Foi o que aconteceu por exemplo no Mercado Público de Porto Alegre. Após reforma em1912, o edifício teve sua forma alterada com o acréscimo de um pavimento superior. Suas funções originais de comércio foram reforçadas com este novo pavimento, que abriga órgãos governamentais e 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro algumas repartições públicas. Estes novos inquilinos prestam atendimento diariamente aos cidadãos usuários não apenas do mercado mas também do centro da cidade. Ainda segundo Commas, a reciclagem requalifica a função em dimensão simbólica, operacional, espacial e técnica, separadamente ou em conjunto. Reforma e reciclagem são caras e coroam a mesma moeda. Objetivando este tipo de requalificação, alguns métodos podem ser utilizados. No SESC Pompéia, por exemplo, um processo de desnudamento através de jato de areia nas paredes de tijolos buscou mostrar a essência do edifício. Sua original função industrial foi transformada em espaço público, de interação social e cultural. O restauro é a reforma ao quadrado, modificação em relação ao estado presente do edifício e em relação ao seu estado original. Um recente exemplo é um casarão, hoje restaurado, que abriga a Pinacoteca Rubem Berta no Centro Histórico de Porto Alegre. "Reconstruir é refazer, construir de novo. Reconstruímos uma estrutura, um esqueleto que perdeu partes de seu corpo. É importante manter sempre presente sua antiga fisionomia ou procurar restabelecê-la o mais fielmente possível."(COMAS, 2010, p. 59). A polêmica obra do Teatro Romano de Sagunto, dos arquitetos Manuel Portaceli e Giorgio Grassi, emerge do passado simulando o que outrora existiu. Ressurge um edifício que nasceu, viveu e desapareceu, deixando uma simples pegada em nossa história. Volta a aparecer como um novo cenário que se localiza no presente e pode ser novamente utilizado. Já o termo re-arquitetura foi definido pelo professor José Artur D'Aló Frota e tem origem na disciplina por ele ministrada no Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Re-arquitetura trata do papel do projeto ante os espaços da memória, ... entendendo a construção da cidade moderna enquanto enfrentamento contemporâneo consciente de suas pré-existências. Atua num espaço amplo, que vai do objeto ao espaço urbano. O projeto como mecanismo de intervenção, que pode, e deve, ser ao mesmo tempo restaurador e reabilitador do lugar contemporâneo. Um excelente exemplo de rearquitetura é a Pinacoteca do Estado de São Paulo. O edifício foi preparado para enfrentar um novo tempo, uma nova realidade. Antes Liceu de Artes e Ofícios, hoje funciona como ponto focal de cultura e entretenimento na cidade. Podemos afirmar assim, que todas estas maneiras de manipular o pré-existente reforçam um componente importantíssimo da memória: a evolução. Uma evolução que registra o "querer da arte " de cada época (conceito de Kuntswollen nomeado por Aloïs Riegl em 1903). Essa evolução que é condicionada a alterações: o patrimônio não tem como permanecer congelado no tempo. Mas como isto acontece? De que maneira projetar sobre uma pré-existência? Para Michael Sorkin, no artigo Patrimônio Arquitetônico e Metrópoles em Extensão, a melhor 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro defesa de uma arquitetura histórica autêntica é o complemento de uma autêntica arquitetura contemporânea. Uma arquitetura que transforma e preserva simultaneamente. E transforma justamente por se reconhecer como parte do processo histórico. Diálogo de tempo e não submissão. Justaposições A boa arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de qualquer período anterior, o que não combina com coisa alguma é a falta de arquitetura. Lúcio Costa Segundo Artur D'Aló, a intervenção contemporânea não deve estar a priori subjugada a parâmetros impostos exclusivamente pela investigação histórica. Esta induz limitações no rol de estratégias que é parte do próprio ofício arquitetônico e que obviamente inclui muitos matizes na interpretação e no diálogo com a história. Sendo a utilidade a melhor forma de preservação de um edifício, conforme DeGracia em Architecture, Dead Language, nada mais recomendável do que "retrofitar" tecnologicamente um edifício, para que este fique em boa forma novamente, modernizado para ser continuamente utilizado, mantido e consequentemente preservado. O retrofit pode e deve buscar, com eficiência, dotar o edifício de atualidade tecnológica que possa traduzir-se em conforto, segurança e funcionalidade para o usuário mas mantendo a viabilidade econômica para o investidor. Grandes metrópoles, com escassos espaços em zonas nobres para novos lugares apostam nesta formatação. Na cidade do Rio de Janeiro um bom exemplo desta estratégia é o edifício Francisco Serrador. Localizado no centro histórico, ficou bastante valorizado após passar por uma total transformação tecnológica. A estrutura e a forma originais são mantidas e revigoradas por este tipo de inovação. Mas quando se pensa em projetar algo novo, DeGracia diz que em muitos aspectos não há sentido algum em se fazer distinção entre o projeto sobre o preexistente e o projeto sobre o espaço em branco. Até mesmo porque este espaço em branco não existe. O compromisso em responder ao contexto em que o edifício será construído está sempre posto ao arquiteto. Esta adição ao pré-existente, segundo Cesare Brandi, é um novo testemunho do fazer humano e, portanto, da história e nesses termos tem o direito de ser conservada. A remoção ao contrário deve ser justificada, pois a pesar de se inserir igualmente na história, destrói um documento e não documenta a si própria, o que equivaleria a um cancelamento de uma passagem histórica. Disso decorre que, para a historicidade, a conservação da adição é norma, enquanto que a remoção é excepcional. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Sendo assim, nota-se que o objetivo maior é sempre buscar o diálogo entre o novo e o antigo, sabendo-se que deve flutuar entre a autonomia e a codependência. Um diálogo especial entre formas e tempos - como coloca Fernando Diez em Summa+, 128. Excelente exemplo é o complexo Radialsystem em Berlin, uma antiga estação de bombeamento de água transformada em um espaço para a criatividade, dentro de uma zona agora residencial. A harmonia entre novo uso, a adição e a permanência é plenamente visível. Uma justaposição que se mostra bastante coerente e que enfatiza as qualidades de ambas as partes componentes do projeto. Fig.3: Radialsystem V em Berlin. Fonte: foto da autora. "Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo" diz Carlos Nelson dos Santos em seu artigo, com este título, publicado na revista Projeto no ano de 1986. O autor enfatiza a cidade como meio de constantes mutações e produto de pluralidades. Revendo essas premissas, Lineu Castello, em seu livro A Percepção de Lugar, argumenta a favor da criação de novos lugares até mesmo usando o termo "clonagem" para trazer qualificação para a cidade contemporânea. A perspectiva aberta pela clonagem oferece um caminho honrado para a sobrevivência das velhas peças do passado, armazenadas no presente das cidades. Buscando atender às necessidades de mudança e também de novos lugares nos dias de hoje. Lugares de urbanidade, de convivência, de uso, de interação. Casos no IV Distrito Na cidade de Porto Alegre, uma região chamada de IV Distrito, tem exemplos numerosos dessas peças do passado. Um território historicamente industrial e operário. Sofreu processo 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro de êxodo das indústrias que preferiram seguir rumo à Região Metropolitana e a outros polos industriais onde o custo do solo era mais atrativo, havia maior oferta de mão de obra e incentivos fiscais. Hoje é alvo fácil da produção imobiliária, pois é muito bem localizado - entre o centro histórico e o aeroporto - e próximo de bairros de excelentes qualidades urbanísticas. De relevo plano e muito arborizado, possui ruas largas e terrenos de vários tamanhos. Algumas ações positivas já foram tomadas na região, como a reciclagem da Cervejaria Bopp, construída pelo arquiteto Theodor Wiedersphan. Essa obra revitalizou toda uma área, muito maior do que a sua própria. Restaurada e com novos edifícios em seu entorno a importante edificação é hoje parte do cenário da cidade. Com um mix de atividades comerciais, culturais e de serviços, tornou-se lugar de grande ocupação. Mas a crescente produção imobiliária a que o IV Distrito está exposto se mostra no entanto voraz e necessita de espaço. O desafio está em acomodar estes interesses de forma a contemplar os novos lugares, as características históricas do ambiente e suas atuais qualidades urbanísticas. O IV Distrito se apresenta como um verdadeiro terrain vague, aberto a mudanças e aceitando novos desafios, mas que precisa ser devidamente avaliado para poder ser ao menos parcialmente preservado. Alguns novos empreendimentos imobiliários já estão fazendo uso do Patrimônio industrial edificado, como é o caso do Rossi Fiateci - uma grande área edificada pertencente à uma indústria têxtil desativada, está sendo utilizada para a construção de torres residenciais. Estas terão apoio de áreas comerciais e de estacionamento que farão uso dos galpões remanescentes. Certamente a obra surtirá efeitos positivos na movimentação da região, proporcionando seu crescimento e melhoramento. Ainda em execução, já sofreu várias críticas, mas conseguiu equalizar o problema patrimônio versus especulação. Ainda se questiona a mudança de perfil dos moradores, já que a região possui em determinados pontos problemas sociais como prostituição e drogas, e o novo projeto tem como público alvo uma classe social média alta. Talvez o importante seja iniciar por algum ponto esta proposta de melhoria geral da região. A listagem de edifícios de interesse patrimonial é imensa, para alguns já existem projetos de reciclagem, que os transformariam em espaço de uso misto: comercial no térreo e residencial nos pavimentos superiores. Projetos ideais para as necessidades atuais. Mas sempre envolvem-se poder público, iniciativa privada, investimentos e principalmente uma grande dificuldade em conciliar interesses. Isto torna o processo lento. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Fig.4: Moinho Germani, no Bairro Floresta - Fonte: www.skyscrapercity.com Mas não o torna impossível. Tantos outros exemplos de sucesso no mundo podem ser citados, de regiões degradadas ou simplesmente abandonadas que são hoje a menina dos olhos de suas cidades. Mas nestes casos o Patrimônio foi visto como qualidade, como ponto positivo e não como barreira para uma transformação. Foi visto como ponto de partida para um projeto de arquitetura que respeite o passado tanto quanto o presente - tendo em mente sempre o futuro. Conclusão Nossa memória é feita de lembranças e esquecimentos, e tanto uns quanto os outros são fundamentais para sermos pessoas saudáveis vivendo em sociedade. Ruth Verde Zein em Summa+ 135. Mas como trabalhar com as pré-existências, sob quais parâmetros, com quais diretrizes. Por mais que cada caso seja específico, a busca de diretrizes para a realização de bons projetos que viabilizem a permanência do patrimônio é de suma importância. Além dos exemplos já mostrados, alguns experts encaminham diretrizes. Ignasi de Solá Morales diz ser preponderante tornar transparente a distância insuperável entre o Zeitgeist de uma época e outra... Aloïs Riegl, em sua obra Der Moderne Denkmalkultus, valorizava a noção de preservação, mas seu compromisso com o presente é explícito: "Renegar o novo por ser novo equivale a sacralizar o passado e negar à contemporaneidade seu próprio direito à história". 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro Já segundo Helio Piñon, a história não é constituída só de continuidades mas também de rupturas. São, portanto, várias as maneiras de projetar sobre uma pré-existência, o que torna a maioria das situações viável se ponderada e bem projetada. Estudos de viabilidade urbana que considerem índices construtivos ideais para o projeto com a pré-existência incluída, total ou parcialmente são sempre bem-vindos. Bons exemplos já são muitos e encontrados sob os mais diferentes graus de adversidades. É extremamente pertinente, porém, a colocação de Françoise Choay quando define em três itens a luta pela defesa de nossa memória e consequentemente de nossa identidade. Esses itens são a mais perfeita combinação de prioridades numa ordem cronológica efetiva. Em primeiríssimo lugar precisamos de educação e da formação - aquisição de um saber histórico. Em seguida, a utilização ética de nossas heranças edificadas - dotando estes lugares de novos usos adaptados à demanda contemporânea, associando o respeito ao passado à aplicação de tecnologias de construção de ponta. E, por último, a participação coletiva na produção de um patrimônio vivo - as esferas pública e privada, juntamente com as associações de moradores precisam trabalhar juntas para a solução das problemáticas patrimoniais. Realmente não há como preservar sem educar, não há como preservar tendo em mente uma ideia de conservação intransigente. Por fim, a dinâmica do uso é que comprovará o sucesso da permanência do patrimônio como um verdadeiro lugar. Preservar é combinar as possibilidades, conceber espaços múltiplos de várias dimensões sociais e funcionais que atendam às necessidades da época em que se encontram. Para isso um projeto arquitetônico que atenda a essas premissas é fundamental. Considerando nossa existência em ciclos, quem sabe um dia este ritmo alucinante em que hoje vivemos também cederá à parcimônia e a uma nova velocidade, menor. Se hoje preservarmos, mais adiante poderemos então entender por onde passamos, quais etapas percorremos, como construíamos nossas cidades e nossas relações. Esse tempo seria ótimo. REFERÊNCIAS ASCHER, François. Os Novos Princípios do Urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010. BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BLOZSIES, Charles. Old Buildings, New Designs. Nova York: Princeton Architectural Press, 2012. 3° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS Belo Horizonte, de 15 a 17 de setembro CASTELLO, Lineu. A Percepção de Lugar. Repensando o conceito de lugar em arquitetura urbanismo. Porto Alegre: PROPAR/UFRGS, 2007. ______. A cidade dos lugares conversáveis – ARQTEXTO17. Porto Alegre: PROPAR/ UFRGS. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade UNESP, 2006. ______. O Patrimônio em Questão. Belo Horizonte: Fino Traço Editora Ltda., 2011. COMAS, Carlos Eduardo. 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