PROJETO COMPANHIA TEATRO ÍNTEGRO A Musicoterapia e o Teatro: uma proposta de inserção social e profissionalizante do indivíduo com autismo [estudo e prática de Musicoterapia Músico-centrada] MT André Brandalise1 RESUMO Este artigo expõe uma conexão bastante significativa entre a Musicoterapia e um outro campo de conhecimento no tratamento do indivíduo com autismo: o Teatro. Com esta relação, podendo ter o Teatro como um recurso terapêutico de importância no processo musicoterápico, discute a abrangência de atuação do musicoterapeuta e da Musicoterapia no tratamento do autismo. Ação esta que pode ocorrer além setting tendo como foco o contexto e a cultura dos agentes envolvidos no processo: uma proposta teoricamente baseada nos modelos de Musicoterapia Músico-centrada, Community Music Therapy e na Musicoterapia baseada na cultura (Culture-centered Music Therapy) PALAVRAS-CHAVE Musicoterapia, Autismo, Teatro, Cultura, Contexto 1 André Brandalise é Especialista em Musicoterapia (CBM-RJ), Mestre em Musicoterapia (NYU, EUA) e Doutorando em Musicoterapia (Temple University, EUA) onde é bolsista como professor-assistente. Brandalise é diretor-fundador do Centro Gaúcho de Musicoterapia, em Porto Alegre, onde trabalha como clínico, supervisor e orientador. É autor dos livros “Musicoterapia Músico-centrada” (2001) e “I Jornada Brasileira sobre Musicoterapia Músico-centrada” (2003). 1 FAZER TEATRO NOS DESABAFA TRAZ ALEGRIA E MUITO SOM AQUI FALAMOS, AQUI PENSAMOS O QUE SENTIMOS E MUITO MAIS (G.M., 30 anos, autista, integrante da Companhia Teatro Íntegro) Parte da origem do musicoterapeuta, parte da origem do trabalho Sou o filho mais velho de uma dupla de atores de teatro. No ano de 1958 meu pai, juntamente com o diretor Mário de Almeida e os atores Paulo José e Paulo César Peréio (estes dois últimos, atualmente, atores da rede Globo de Televisão) fundaram o Teatro de Equipe, na cidade de Porto Alegre. Mais tarde, minha mãe passaria a integrar a companhia. O Teatro de Equipe encenou diversas peças de autores brasileiros e estrangeiros e trabalhou até 1962. Esta, certamente, uma marca que possuo. Marca também impressa no musicoterapeuta que sou e, consequentemente, na maneira como pude vir a escutar e acolher a demanda de pessoas envolvidas em dinâmica de saúde e criatividade. Esta pequena introdução objetiva falar sobre origem. Parte da minha e, por consequencia, parte da origem do trabalho que é exposto neste artigo. Deste modo propõe uma reflexão sobre a clínica musicoterápica. Este texto tem intenção, entre outras, de pensar a importância de uma dinâmica (que envolva relação) tendo a história e o contexto como elementos bastante presentes. Como podem alterar uma maneira de pensar o fazer musicoterápico podendo torná-lo mais amplo, mais flexível, mais social. Origens, enfim, atuando no fazer musicoterápico, atuando sobre o chamado musicing: movimento, ação humana em Musicoterapia. Elliot (apud Aigen, 2005, p. 65) diz: “agir não é meramente exibir um comportamento. Agir é mover-se deliberadamente, com controle, buscando objetivos...Musicing, no sentido do fazer musical, é uma forma particular de ação humana...fazer música é agir". Quando reflito sobre minha carreira como musicoterapeuta identifico o teatro lado a lado apoiando o musicing, nas ações humanas na musicoterapia que faço, juntamente com meus pacientes. E este teatro (dramatizações) não somente como elemento intermediário mas como território singular na dinâmica. Como mais uma oferta de espaço num mesmo setting, que é musicoterápico. Não é mera coincidência ter 2 tamanha importância. É, isto sim, a cultura e o contexto dos agentes envolvidos no processo fornecendo indicações de quão abrangente podem ser as atuações musicais, corporais, verbais. Dando indicações de quão amplo poderá ser o acolhimento clínicocriativo nos diferentes momentos da dinâmica. Para o musicoterapeuta norte-americano Kenneth Bruscia, é na história e na cultura que ocorre o unfolding2, a des-coberta. “O caminho humano em direção à individualidade implica inserção na cultura e no coletivo...há que se considerar a relevância dos processos culturais em terapia. A noção relacional de saúde mencionada acima nos conduz a uma averiguação do aprendizado através da participação em contextos culturais e sociais.” (Stige, 2002, p. 214) No ano de 1991, ingressei na equipe do Espaço TEACCH Novo Horizonte (em Porto Alegre) e iniciei trabalho com um grupo de adolescentes com Transtorno Invasivo do Desenvolvimento. Em sua maioria, meninos e meninas com autismo. Era estudante acadêmico de música e me propus a fazer um trabalho musical com este grupo sob supervisão de profissional da saúde (terapeuta ocupacional Viviane de Leon), diretora técnica da equipe. A demanda daqueles meninos e meninas era bastante nova para mim. O repertório que escolhiam, o motivo de o escolherem, os benefícios destas escolhas. Enfim, tudo muito específico e fascinante ao mesmo tempo. Era fascinante, ao meu olhar e à minha escuta, o uso muito singular que era feito de um repertório musical que, à medida que o tempo passava, ampliava-se e contava (ou recontava) a história de cada uma daquelas pessoas e do próprio grupo. Foi no final deste mesmo ano, de 1991, que me vi rodeado por inúmeras criações que cada um dos integrantes do grupo tinha feito em interação com a música. Realmente um mistério (utilizarei propositalmente o mesmo termo descrito por Thayer Gaston (1982, p. 30) em seu livro, publicado no ano de 1968). Segundo Stige (2002, p. 79), “algo intrigante” existe em música. Via ali, a música como nunca antes havia visto. A música podendo ultrapassar sérias barreiras, que tendem a limitar o indivíduo em vários aspectos, causadas pela condição crônica imposta pelo autismo. A música convocando à externalização de conteúdos internos, convocando à expressão e busca das necessidades 2 IN: Stige, 2002. Unfolding é termo utilizado pelo Modelo Nordoff-Robbins de Musicoterapia (Musicoterapia Criativa) e significa abertura, desbloqueio de determinadas limitações impostas pela patologia (condition child) a partir da Experiência Criativa. 3 de cada indivíduo. Enfim, a música convocando as forças criativas de cada integrante do grupo. Como consequencia, o amadurecimento do processo de construção de um grupo cada vez mais coeso e mais útil no sentido de auxiliar a busca por ampliações de possibilidades, à busca por saúde. E, entre os inúmeros movimentos criativos realizados pelos integrantes deste grupo nos vi acompanhados por diferentes cenários, figurinos, personagens, diálogos, gestos. Se por nós e para nós se apresentavam, certamente muito diziam respeito à nossa relação e história. Entendi que era importante acolher aquela forma de criação, aqueles conteúdos naquele contexto. Penso que aqui encaixa-se a reflexão geral que Stige (2002, p. 5) propõe sobre relacionar a sessão de Musicoterapia e o contexto ao qual pertence. Neste enfoque, entendo que se possa expandir a atuação e a reflexão do musicoterapeuta. Ansdell3 descreve Community Music Therapy como sendo: “uma abordagem que visa trabalhar musicalmente com pessoas em um contexto: entende que é importante reconhecer os fatores sociais e culturais de suas saúdes, doenças, relacionamentos e músicas...reflete a realidade do musicing…o objetivo é auxiliar clientes a acessar uma variedade de situações musicais e acompanhá-los ao longo do processo até alcançarem contextos mais abrangentes do musicing. Envolve ampliação da função, dos objetivos e locais de trabalho para musicoterapeutas.” Enfim, o Teatro passava a fazer intersecção com os processos musicoterapêuticos dessas pessoas. Primeiramente, então, pensamos sobre o que “trataríamos” em nossa primeira estória a partir das criações já existentes. Seria nossa primeira peça de teatro. Título: Padre São José de Portugal. Muito motivados decidimos juntos mostrar a criação aos parentes e, nas instalações da própria clínica, a primeira peça de teatro, fruto do trabalho musical, foi apresentada. No ano seguinte, a segunda peça intitulada “O Labirinto de um Senhor”, ainda nas dependências da clínica. Desta vez, algo novo: o espaço físico não foi suficiente para que todos os familiares pudessem prestigiá-la. Surgia a necessidade de expandir as ambições do projeto que unia as experiências musicais com o drama. Surgia a necessidade de expandir o setting. Perguntados, os integrantes do grupo disseram que 3 apud Turry, site www.voices.no, 05/2005. 4 gostariam de realizar as próximas apresentações em sala de teatro e não mais na clínica. Eu e a equipe do Espaço TEACCH Novo Horizonte encontrávamos agora uma questão importante, delicada a ser pensada. Teria condições um grupo formado por adolescentes com autismo de enfrentar um ambiente diferente do da clínica? Mesmo sendo apoiados pelo grupo de profissionais com o qual já estavam vinculados, estando em um teatro submeteríamos cada um daqueles indivíduos a condições nada previsíveis. E sabíamos que a imprevisibilidade, que o desconhecido, que o ambiente não familiar podia gerar na pessoa autista desde um grande desconforto a uma crise comportamental significativa. Enfrentávamos um dilema: uma demanda (que vinha do próprio grupo e de seus familiares já que não havia sido possível que todos os interessados pudessem ter prestigiado o último espetáculo) versus a possibilidade da inserção no ambiente totalmente desconhecido gerar significativo problema a algum ou alguns dos adolescentes. Arriscaríamos pois estávamos frente a possibilidade de auxiliar pessoas com autismo a realizar integração social através de suas criações, seus textos, músicas e falas. Decisão importante apoiada pelos familiares, é claro. Os adolescentes adoraram a notícia de que, a partir daquele ano (1993) passaríamos a apresentar nossas estórias em teatros da cidade. No final do ano, então, a clínica locou uma sala de espetáculo na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, e a peça “A Cidade dos Mil Arcos” aconteceu. E aconteceu muito bem. Aqueles adolescentes estavam “soando” com uma maior abrangência social, estavam “falando em público” e não somente tendo suas falas restritas aos ambientes de casa e da clínica. Havia sido uma conquista. Uma conquista que me fez pensar ainda mais diferentemente sobre o mistério e o poder da música e sobre a atuação da Musicoterapia. Ano após ano, músicas, criações, estórias, roteiros, apresentações. Completavam-se dez anos de uma prática que unia música e teatro. Criatividade e transformação. Ao todo, houve a criação e a montagem de dez peças em um trabalho musicoterápico (com o recurso terapêutico do Teatro) que intitulei “Projeto Um Novo Horizonte de Criação”. 5 A Criação do Projeto Companhia Teatro Íntegro Ano de 2001. Havia concluído meu curso de especialização em Musicoterapia (no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro) e o Mestrado em Musicoterapia (na New York University, nos Estados Unidos). Havia fundado, em Porto Alegre, o Centro Gaúcho de Musicoterapia com as missões de tratar, ensinar e pesquisar musicoterapia. Fundei o Projeto Companhia Teatro Íntegro: a inserção social e profissionalizante do indivíduo com autismo e com necessidades especiais. O Projeto foi bem aceito pela comunidade de familiares e profissionais e, de diferentes Centros e/ou escolas, meninos e meninas começaram a ser encaminhados ao Centro Gaúcho de Musicoterapia. O Teatro Íntegro é composto, atualmente, por 10 integrantes jovens-adultos com necessidades especiais (autismo e deficiência mental). Este grupo reune-se uma vez por semana no trabalho de Teatro, em sessão com duas horas de duração. O processo do trabalho de Teatro abrange as seguintes Etapas: ETAPA 1: a criação de personagens, figurinos e cenário; Neste momento o grupo já se encontra acompanhado por inúmeras criações tais como canções, personagens, alguns cenários, alguns bonecos (geralmente confeccionados por um dos jovens). As criações vão ocorrendo ao longo do trabalho da própria dinâmica de encontros no teatro e na Musicoterapia (oito dos integrantes da Companhia estão também envolvidos alguns em processos individuais e outros em processos grupais de Musicoterapia). ETAPA 2: a criação de uma estória; Esta dinâmica ocorre de diferentes formas. A partir de conversas sobre o material criado, que passa a fazer parte da rotina (material terapêutico), objetiva-se ir atribuindo a ele uma forma. Torna-se mais compreensível e nos indica possíveis posicionamentos na estória que começa então a ser pensada. Obviamente, tendo o tratamento (a terapia) como fim, entendo que à medida que o material criado vai recebendo, pelo grupo, uma forma mais clara temos este movimento sendo refletido novamente ao grupo promovendo assim um ciclo constante de tratamento criativo. Um dos integrantes, por exemplo, escreve suas idéias em folhas de caderno e as entrega a 6 mim sempre no início das sessões de teatro. Em um determinado momento da sessão eu as leio ao grupo e discute-se. Nem todas as personagens (ou canções ou cenários) que se apresentam nesta etapa do trabalho de construção da peça de teatro acabam integrando o roteiro final pois o tempo de duração previsto para as apresentações é de no máximo quarenta minutos. Esta etapa é finalizada com grande parte da estória esboçada. ETAPA 3: criação de trilha sonora; Acompanhados, nesta etapa da criação, por diferentes canções (algumas criadas em dinâmica de teatro e outras em dinâmica de Musicoterapia) é o momento de se pensar sobre a trilha sonora. Surgem diferentes questões: que tipo de estória está sendo criada? Como deve-se pensar os contrastes envolvendo tensões e relaxamentos? Que diferentes estilos musicais comporão a trilha? E sobre as tonalidades e melodias? Como deveria ser a música na apresentação do vilão (se há um vilão na estória, obviamente)? Quantas canções solo e quantas canções de grupo? ETAPA 4: contratação de músicos (profissionais e/ou amadores) para formar a banda que interpreta, em cena, as canções criadas pelo grupo; Nesta etapa começa-se a esboçar o arranjo e, consequentemente, formaliza-se o convite a que músicos participem do espetáculo. Um dos objetivos é estimular a interação dos integrantes do Projeto com músicos (e diferentes instrumentos) bem como a integração de profissionais não terapeutas ao convívio com os integrantes do Projeto. ETAPA 5: a produção do roteiro (rotina de trabalho); Esta função cabe a mim (musicoterapeuta). Uma vez que a trama (ou o argumento), as personagens e a trilha sonora estão definidos realizo a organização do roteiro que tem como objetivos principais garantir o tempo da apresentação, a sequência rítmica, os momentos de tensão e relaxamento, a iluminação, as entradas e saídas de personagens de cena, as possíveis trocas de figurino. Porém, o mais importante: na construção do roteiro a percepção de que se trata da construção de uma “rotina de trabalho”. Rotina esta que garantirá uma previsibilidade necessária (um início, meio e fim) em um espaço que não é o familiar para os atores e atrizes da Companhia. Penso o roteiro como também uma elemento fundamental de acolhimento dentro do qual manifestam-se e relacionam-se materiais terapêuticos criados anteriormente. O roteiro é 7 continente que também oferece a possibilidade da improvisação (o aqui-e-agora da Experiência criativa que acontece durante a própria apresentação). Se há um roteiro há também a possibilidade de afastar-se dele por algum tempo sem perdê-lo como referência. ETAPA 6: construção de cenário e confecção de figurinos; Já com o roteiro e com os diferentes momentos da estória sendo “ensaiados”, decide-se o tipo de cenário necessário a partir da movimentação teatral. Uma vez definido, a Companhia conta com a ajuda de arquiteto, que o desenha, e contrata-se marceneiro que o executa. ETAPA 7: contratação de profissionais de apoio; Uma vez que o roteiro está finalizado e cenário e figurino sendo produzidos verifica-se o número de profissionais de apoio que será necessário. O grupo de apoio é composto por: terapeutas (no máximo dois, já vinculados com o grupo de teatro) que participa auxiliando o ensaio geral (que é realizado horas antes do espetáculo no próprio teatro), as trocas de figurino, o lanche e a higiene. Quando este terapeuta é um musicoterapeuta realiza também apoio musical à banda (que interpreta as canções em cena). Também faz parte do grupo de apoio o transporte, responsável pelo cenário, e o iluminador. ETAPA 8: divulgação do espetáculo e venda de ingressos; A equipe, juntamente com os pais, encarrega-se de realizar a divulgação do evento bem como a venda de ingressos. É a partir deste esforço que ocorre a remuneração de cada um dos pacientes. ETAPA 9: apresentação pública (inclusão social) em sala de espetáculo na cidade de Porto Alegre; Em uma data específica, em alguma sala de teatro da cidade, locada antecipadamente realiza-se a apresentação do espetáculo construído. A Companhia conta com a presença de familiares, terapeutas e professores (de diferentes instituições) que também trabalham com estes jovens bem como oferece espaço para sociedade em geral. Uma das propostas é a de que possa 8 ocorrer uma integração afetiva entre todos aqueles que dedicam atenção à vida de cada um dos integrantes da Companhia Teatro Íntegro. ETAPA 10: recebimento de cachê (a integração da vivência - O TRABALHO), Na semana seguinte a cada apresentação, em envelope timbrado da Companhia (inclusão profissionalizante), todos recebem valor referente à venda de ingressos (ao público que compareceu). Entre os objetivos gerais do Projeto destaco: * estímulo ao fazer criativo musical e em grupo; * a detecção e desenvolvimento de áreas de interesse e de habilidades; * ser mais um espaço-continente (a sessão de Teatro e o próprio roteiro criado) para externalização de conteúdos internos; * promoção da inclusão social e profissionalizante; * promoção de experiência de trabalho em área de interesse (todos os integrantes da Companhia são remunerados, em envelope com o timbre do grupo, após cada apresentação) Reflexões Teóricas acerca da Dinâmica do Projeto Na produção deste texto dois termos foram adquirindo significativa força: CONTEXTO e CULTURA. E aqui a proposta não é a de uma reflexão destes dois conceitos baseada na história singular de uma pessoa ou de um grupo somente. Penso que este rumo de discussão, apesar de obviamente não esgotado, já encontra-se bastante difundido entre a comunidade da Musicoterapia mundial. O objetivo, neste artigo, é de pensar a possibilidade de se estar integrando as vivências clínico-criativas, que envolvem mundos de terapeuta (motivo pelo qual a introdução deste artigo pontua parte das origens do terapeuta) e paciente, ampliando o setting, ampliando as possibilidades do e para o musicing, ampliando o ser/estar, a disponibilidade do musicoterapeuta e da Musicoterapia que acontece. Nordoff-Robbins nos apresenta como um de seus conceitos fundamentais BEING IN e WITH, ou seja, poder a relação terapêutica estar na e com a música. Acrescentaria: poder a relação terapêutica estar na e com a Experiência Criativa em um setting com possibilidades de ser expandido. 9 Expus, no início do artigo, justamente minha percepção a um determinado movimento que o grupo realizava a partir de suas vivências criativas. Mencionei perceber-nos “acompanhados” por cenários, figurinos, personagens, diálogos, gestos. Chamo a atenção para o verbo que utilizei: acompanhados. Todo aquele material (terapêutico) havia sido lançado ao centro do setting musicoterápico por ações musicais (musicing), por demandas humanas. Passavam a “nos acompanhar” (to be with us). Fezse necessária a ampliação do setting. Fez-se necessária a ampliação de nosso being in e with. Abertura para o contexto, era também percebido como de extrema importância no fazer musicoterápico para Paul Nordoff, musicoterapeuta norte-americano. Da mesma forma o conceito de liberdade criativa. Em Healing Heritage4, obra que considero conter inúmeras essências legadas à musicoterapia mundial, Nordoff indica de uma maneira ou de outra esta crença hoje ampliada por novos modelos e pensamentos advindos de diferentes partes do mundo. Mais especificamente faço referência a Community Music Therapy, Musicoterapia centrada na cultura (culturecentered Music Therapy) e Musicoterapia Músico-centrada. Na Exploração quatro intitulada “A Vida dos Intervalos”, de Healing Heritage, Paul Nordoff (IN: Robbins & Robbins, 1998, p. 32) defende que um determinado intervalo melódico (mais especificamente a relação intervalar de Bb e Db, terça menor) colocado em diferentes “contextos” ocasiona diferentes sensações a quem o experencia. Da mesma forma, defende que diferentes sensações podem ser ocasionadas por dissonâncias, posicionadas em música, em diferentes contextos. Logo, existe um fenômeno chamado de Força Dinâmica que diz respeito à demanda criada a partir de movimento gravitacional em direção à tônica. Posso pensar que trata-se justamente da força advinda do contexto sobre o qual movimentos melódicos, rítmicos e harmônicos serão construídos. Alterando-se o contexto altera-se a força dinâmica. Nesta dinâmica teremos sempre instaladas as relações DissonânciaContexto, Estrutura-Contexto e Relação Intervalar-Contexto, como alguns exemplos. Amplio este pensamento inferindo que pode-se pensar estes diferentes contextos relacionados aos diferentes movimentos psíquicos que vão ocorrendo ao longo de um 4 Livro publicado no ano de 1998, organizado em dezoito Explorações (ao invés de capítulos), que divulga curso ministrado por Paul Nordoff no ano de 1974, curso este considerado por muitos como a oficialização da Nordoff-Robbins (ou, Musicoterapia Criativa) como modelo de Musicoterapia. 10 processso musicoterápico. O Contexto carrega os fatores sociais e culturais de saúdes e doenças, relacionamentos e músicas e reflete a realidade do musicing5. Nordoff (IN: Robbins & Robbins, 1998, p. 87) costumava dizer que quando se ouve uma significativa Hello song (canção de abertura de sessão, canção de “oi”) ou uma Goodbye song (canção de fechamento de sessão, canção de “tchau”), deve-se encontrar estruturalmente o que: - seja vivo - apoie - estimule - mova Para Aigen (2005, p. 65) a prioridade de qualquer abordagem músico-centrada é facilitar a inserção de uma pessoa em um state of musicing. Estado de Musicing, possibilidades de Encontros e de transformações. Para que tais intenções clínicas possam ocorrer, penso que há que se ampliar recursos, estratégias, técnicas. Há que se ampliar os “arredores”, o social. Considerações Finais Penso que a maior contribuição deste artigo é a reflexão sobre um fazer musicoterápico (fazer clínico-criativo) que possa ser o mais amplo possível, o mais abrangente possível no tratamento com aqueles que têm seus mundos limitados por uma determinada condição. Que possa ser também além-setting. A Musicoterapia músicocentrada, a Musicoterapia centrada na cultura e a Community Music Therapy, propostas bastante atuais no cenário da Musicoterapia mundial, certamente possuem suas diferenças. Porém, entre suas semelhanças destaco a reflexão moderna que trazem acerca do aprofundamento e da ampliação de práticas, discussões e teorias que pensem ser humano, música e criatividade relacionados com História, Cultura e Contexto. FAZER TEATRO NOS DESABAFA TRAZ ALEGRIA E MUITO SOM AQUI FALAMOS, AQUI PENSAMOS O QUE SENTIMOS E MUITO MAIS 5 Ansdell apud Turry, site www.voices.no, 05/2005. 11 Nesta sequência de versos criados por um dos meninos com autismo, integrante da Companhia Teatro Íntegro, focalizo no último deles: E MUITO MAIS. Diz: “aqui pensamos, aqui sentimos e muito mais”. Penso que o “muito mais” possa ser o que expressa os Encontros criativos, as tomadas de consciência, os insights, as peak experiences6. Penso também que pode estar contido neste “muito mais” uma chamada à uma cada vez maior ampliação da escuta e do olhar musicoterápicos. E aí seremos mais amplos, mais sociais, mais crescidos e maduros. Acredito que a Musicoterapia será, então, ainda mais benéfica ao indivíduo com autismo. Bibliografia AIGEN, Kenneth. Music-centered Music Therapy. Gilsum: Barcelona Publishers, 2005. GASTON, Thayer. Tratado de Musicoterapia. Barcelona: Paidós Ibérica, 1982. ROBBINS, Clive; ROBBINS, Carol. Healing Heritage: Paul Nordoff Exploring the Tonal Language of Music. Gilsum: Barcelona Publishers, 1998. STIGE, Brynjulf. Culture-centered Music Therapy. Gilsum: Barcelona Publishers, 2002. 6 Experiências culminantes através do fazer clínico-criativo (Musicing). 12