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ANA CAROLINA DE ARAÚJO ABIAHY
REPRESENTAÇÕES DA TENSÃO ENTRE O SUJEITO FEMININO
E A SOCIEDADE EM CLARICE LISPECTOR: UMA ANÁLISE DOS
CONTOS “A FUGA”, “A IMITAÇÃO DA ROSA” E “AMOR”.
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
João Pessoa
2006
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ANA CAROLINA DE ARAÚJO ABIAHY
REPRESENTAÇÕES DA TENSÃO ENTRE O SUJEITO FEMININO E A
SOCIEDADE EM CLARICE LISPECTOR: UMA ANÁLISE DOS CONTOS
“A FUGA”, “A IMITAÇÃO DA ROSA” E “AMOR”.
Dissertação de Mestrado
Universidade Federal da Paraíba
Literatura e Cultura
Orientadora: Profa. Dra. Liane Schneider
Essa dissertação é apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba
como pré-requisito para a obtenção do diploma de mestrado.
João Pessoa - UFPB
2006
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A 148r Abiahy, Ana Carolina de Araújo.
Representações da tensão entre o sujeito feminino e a
sociedade em Clarice Lispector: uma análise dos contos “A
fuga”, “A imitação da rosa” e “Amor”. / Ana Carolina de
Araújo Abiahy. – João Pessoa, 2006.
170 p. Orientadora: Liane Schneider.
Dissertação (mestrado) – UFPB/CCHLA
1. Crítica literária. 2. Mulheres na literatura.
3. Lispector,Clarice.
UFPB/BC
CDU:82.09 (043)
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Dissertação Representações da tensão entre o sujeito feminino e a sociedade em
Clarice Lispector: uma análise dos contos “A fuga”, “A imitação da rosa” e “Amor”, de
Ana Carolina de Araújo Abiahy, defendida e aprovada com distinção, no dia 24 de maio de 2006,
como condição para obtenção do título de Mestre em Letras, na área de concentração de
Literatura e Cultura, pela Universidade Federal da Paraíba.
BANCA EXAMINADORA
Liane Schneider
orientadora
Sônia Ramalho
examinador (a)
Luis Mousinho Magalhães
examinador (a)
Valéria Andrade
suplente
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Dedicatória
Às Elviras,
que viram o navio do sonho se afastar,
às Lauras,
que sofreram com os espinhos interiores
e às Anas,
que se descobriram “parte forte do mundo”.
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Meus sinceros agradecimentos
À minha mãe Yêda, que foi professora de crianças quando solteira, mas que trocou a
escola pelo lar, onde dá lições eternas aos filhos.
Ao meu pai Osiris, por dividir comigo o encantamento com a literatura.
Aos meus irmãos, Helionora e Horácio, apoiadores e incentivadores em tudo.
À Dra. Liane Schneider, a quem cabe muito bem o nome de orientadora, pois sabe que o
conhecimento só aflora através da partilha e respeito mútuo.
Aos amigos que sempre me estimulam, particularmente, minha amiga Sheylla Galvão,
companheira nas incertezas e satisfações do mundo acadêmico.
Aos colegas da pós-graduação, pela parceria de sempre.
Aos professores, fundamentais no nosso amadurecimento intelectual, em especial, à
professora Valéria Andrade, que participou da minha banca de qualificação.
Aos examinadores Sônia Ramalho (UFPE), Luis Mousinho Magalhães (UFPB) e Genilda
Azeredo (UFPB) pelo excelente debate e contribuição.
Aos funcionários do PPGL, pela eficiência nas agruras da vida burocrática.
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RESUMO
Analisamos a representação das protagonistas dos contos “A fuga”, “A imitação da rosa”
e “Amor”, de Clarice Lispector, investigando a desestabilização que a autora realiza
acerca do perfil de mulher moldado pelo patriarcado, no Brasil dos anos 40 e 50. Nosso
estudo objetiva mostrar que, através dessas narrativas, Clarice Lispector expressa
conflitos vivenciados pelos sujeitos femininos em uma época de transição, quando a
entrada mais massiva das mulheres no mercado de trabalho começa a trazer alterações na
organização das relações de gênero. Dessa forma, enxergamos a obra clariciana em
diálogo com as tensões sociais do Brasil do século XX, ao contrário do que muitos
críticos apontam. A fundamentação teórica de nosso estudo tem como veio norteador os
estudos da mulher, de orientação feminista e que enfocam a categoria do gênero na
análise dos textos literários. O principal conflito que as personagens Elvira, Laura e Ana
enfrentam é a necessidade de superar os ensinamentos de uma moral patriarcal, que
subjugou os interesses da parcela feminina na busca pela realização pessoal. As
personagens estão encerradas na esfera doméstica e na atenção aos interesses da família,
especialmente os cônjuges, enfrentando problemas na construção de suas identidades.
Para expressar a angústia das protagonistas, o texto clariciano se utiliza de técnicas
desenvolvidas a partir das vanguardas modernistas, como o fluxo da consciência, e a
quase indistinção entre a voz narrativa e a consciência das personagens, que se perdem na
não-ação. Essas e outras características presentes nesses contos claricianos são analisadas
em consonância com o contexto subjacente, mostrando o paralelo que a autora constrói
entre a literatura e a sociedade.
Palavras-chave: mulher – gênero – representação – patriarcado.
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ABSTRACT
Our aim is to analyze the representation of female protagonists by Clarice Lispector in three of
her short stories, namely, “A fuga”, “A imitação da rosa” and “Amor”, investigating the
questionings she develops in relation to women’s roles in patriarchal social groups. We intend to
demonstrate that, through her narratives, Lispector expresses conflicts experienced by women
along a period of transition in Brazil in terms of social roles, that is, the decades of fifties and
sixties. At that time, women’s massive entering the working market caused inevitable changes in
terms of gender organization. In this sense, we perceive the literary production by Clarice
Lispector as in dialogue with such new social tensions that took place along the XX century. We
ground our analysis in concepts developed by the area of women studies, focusing gender as our
main analytical category. The three protagonists, enclosed in the domestic sphere, have to deal
with conflicts of identity, what can be identified, along the text, in the use of new modernist
techniques such as the stream of consciousness, the interior monologue, the use of multiple
narrating voices, among others. Our idea is to indicate the inevitable link Clarice Lispector builds
between literature and society, showing that individual issues are always connected to the wider
social context.
Key-words: woman – gender – representation – patriarchy.
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É que o mundo de fora também tem o seu “dentro”, daí a pergunta, daí os
equívocos. O mundo de fora também é íntimo. Quem o trata com cerimônia e
não o mistura a si mesmo não o vive, e é quem realmente o considera “estranho”
e “de fora”. A palavra “dicotomia1” é uma das mais secas do dicionário2.
1
[Do gr. dichotomía.]
S. f.
1.
Método de classificação em que cada uma das divisões e subdivisões não contém mais de dois termos.
4.
Lóg. Divisão lógica de um conceito em dois outros conceitos, em geral contrários, que lhe esgotam a
extensão.
2
LISPECTOR, Clarice. Citado nos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2004. Nº 17 e 18. p.83.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------
p. 11
1. Clarice Lispector: uma obra sobre o conflito eu-mundo ------------------------
p. 16
Contos claricianos: laços mais estreitos com o conflito
p. 25
2. A fortuna crítica: olhares sobre a obra de Lispector __________________________ p. 32
Pegadas deixadas na trilha da crítica
Caminhando mais de perto com alguns estudiosos
p. 33
---
p. 37
3. Fundamentação teórica: feminismo, gênero, identidade e vida privada --------------- p. 48
Feminismos, feministas e estudos da mulher
p. 49
O patriarcado
p. 53
Estudos de gênero, questões de gênero
p. 55
Identidade e identidades
p. 59
A formação da vida privada --------------------------------------------------------------------------
p. 61
4. “A fuga” de Elvira: livre no pensamento, mas presa na inação ----------------------
p. 67
Uma fuga para lugar nenhum
p. 69
O navio se afasta
p. 81
5. “A imitação da rosa”: A mente dividida de Laura ------------------------------------
p. 92
A imitação da perfeição
p. 94
As rosas de Laura
p.104
A rosa perfeita desabrochou o fruto do (des)equilíbrio
p.110
A mimesis do pensamento
p.111
O social internalizado que exterioriza esteticamente o conflito feminino
p.116
6. O “Amor” de Ana liberta a força aprisionada no lar ----------------------------------
p.121
As sementes da rotina
p.124
O jardim
p.131
O fruto
p.139
CONCLUSÃO -----------------------------------------------------------------------------
p.149
BIBLIOGRAFIA --------------------------------------------------------------------------
p.159
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INTRODUÇÃO
Eu admito a literatura claramente participante. Se não faço isso é porque não é
do meu temperamento. A gente só pode tentar fazer bem as coisas que sente
realmente. Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para
mim o importante não são os fatos em si, mas a repercussão dos fatos no
indivíduo. Isso é que tem muita importância mesmo para mim. É o que eu faço.
Acho que, sob esse ponto de vista, eu também faço livros comprometidos com o
homem e a realidade do homem, porque realidade não é um fenômeno
puramente externo.3
Essa declaração de Clarice Lispector, em 1971, parece responder, de uma vez por todas, à
cobrança feita tantas vezes à autora sobre a falta de engajamento social em sua obra. Embora a
própria autora tenha destacado a sua intenção de retratar o ser humano em sua inserção social,
muitos estudiosos se debruçam sobre sua obra sem notar que se trata de uma ficção constituída a
partir de um relacionamento com a realidade coletiva, assim como ocorre com a maior parte da
produção artística cultural. Muitos dos contos de Lispector que retratam a vida privada e se
centram nas angústias individuais das personagens, através da focalização nos processos
psicológicos, tendem a ser analisados como sendo desvinculados de qualquer conflito de ordem
social. Contudo, percebemos que esses contos abordam, sim, situações contraditórias da
sociedade brasileira da época em que a autora viveu. Entre eles, o da construção de um novo
perfil de mulher, menos contido pelas amarras do patriarcado.
Essa parcial cegueira dos críticos nos parece semelhante à própria negação das questões
que envolvem a discriminação da mulher em sociedades patriarcais. Da mesma forma que a
ideologia patriarcal tentou naturalizar o papel da mulher como marcado pela passividade e
3
Declaração de Clarice Lispector ao jornal carioca Correio da manhã, publicada no dia 2 de novembro de 1971 na
matéria “Clarice: um mistério sem muito mistério”. Citada nos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São
Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004. nºs 17 e 18. p. 62
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submissão, limitando a atuação feminina ao cuidado com os outros, também grande parte das
análises literárias não levam em conta as particularidades de grupos tradicionalmente oprimidos,
já que percebem o texto como produzido por um ser humano teoricamente neutro, o autor,
quando na verdade, essa autoria se apóia, muitas vezes, no androcentrismo e nos valores sociais
hegemônicos. O exercício de uma teoria e de uma crítica feminista pode colaborar com a
ampliação do olhar acerca da produção cultural ao denunciar essa falsa neutralidade da literatura.
No caso da escrita de Lispector, uma leitura marcada pelo viés feminista nos parece muito
apropriada para analisar os conflitos interiores vividos pelas personagens femininas, via de regra,
suas protagonistas.
Dessa forma, utilizamos a teoria e a crítica feminista como eixo principal da análise de
nosso corpus, ou seja, os contos: “A fuga”, um dos primeiros de Lispector, de 1941, publicado na
época em jornal, mas recuperado postumamente para compor a coletânea A bela e a fera, de
1979; “A imitação da rosa” e “Amor”, presentes no livro Laços de família, lançado em 1960, que
reúne contos escritos na década de 50. Nos detivemos, principalmente, na construção das
personagens Elvira, Laura e Ana, protagonistas dos três contos, respectivamente. As três
protagonistas retratam mulheres dedicadas ao universo doméstico, representando, aparentemente,
o perfil idealizado pela ideologia patriarcal para os sujeitos femininos da época. No entanto, essas
três personagens vivenciam conflitos que problematizam o perfil ditado pelo patriarcado, que
colocou a maternidade e o casamento como parte obrigatória e essencial na vida das mulheres, ao
longo da história. Ao nosso ver, essas narrativas expressam angústias vivenciadas por mulheres
brasileiras educadas sob o estigma da idealização da esposa, mãe e dona-de-casa que, na época
em que os contos foram produzidos, sofria alterações. Assim, vemos que essas narrativas de
Clarice Lispector estabelecem vínculos entre a literatura e as tensões sócio-históricas e é isso que
esperamos demonstrar ao longo da dissertação.
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O diálogo realidade-literatura que propomos como foco central da análise da obra de
Lispector não é pautado em nenhuma intenção da autora em transpor o histórico para o ficcional;
contudo, percebe ecos no ficcional-literário que demonstram o quanto o material artístico
analisado coaduna com as temáticas e tensões da época em que foi elaborado, no que diz respeito
às questões de gênero, principalmente. Além disso, nosso olhar acredita que a autora, em sua
interpretação da sociedade, colaborou para uma representação mais crítica das mulheres e,
especialmente, de uma parcela delas tidas como invisíveis, as donas-de-casa. Essas são os
sujeitos que se viram abaladas pelos novos arranjos sociais, a partir da segunda metade do século
XX, originados, principalmente, da inserção de grande parcela da força feminina no mercado de
trabalho.
Considerando o que Antonio Candido nos aponta como caminho para a análise literária,
tentamos “averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura
literária, a ponto dela ser estudada em si mesma, e como só o conhecimento desta estrutura
permite compreender a função que a obra exerce” (1985a, p.2). É a partir dessa “estrutura” que
Antonio Candido vai falar em texto e contexto, pois a medida em que esses fatores externos, que
compõem o social, se integram aos fatores internos da obra, quer sejam ficcionais, quer digam
respeito aos elementos e ferramentas literárias, temos um todo que aponta para a funcionalidade
daquela determinada obra no momento histórico.
É o que percebemos em Clarice Lispector, que utilizou as ferramentas literárias que se
afirmavam na época, as quais apontam para o fluxo da consciência, a descontinuidade entre
tempo e espaço e a mudança no foco narrativo, para representar as preocupações dos sujeitos em
determinado momento histórico. A função que essas técnicas narrativas desempenham para
contar a história desses sujeitos femininos em conflito é algo em que nos detivemos ao longo das
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análises. Da mesma forma, analisamos o papel que a ideologia dominante desempenhou para a
formação do imaginário feminino.
Nosso primeiro capítulo, “Clarice Lispector: uma obra sobre o conflito eu-mundo”,
aborda como a autora trabalha a temática da esfera doméstica e da inadequação dos sujeitos às
limitações de seus papéis sociais. A fim de ilustrar o tema de forma mais ampla, faremos uma
breve discussão geral sobre a obra clariciana.
O segundo capítulo “A fortuna crítica: um olhar sobre a obra de Lispector”, se espraia
pelas diversas interpretações acerca da obra de Lispector, destacando óticas que se coadunam
com a nossa perspectiva.
O terceiro capítulo, “Fundamentação teórica: feminismo, gênero, identidade e o mundo
privado”, estabelece as bases em que nosso estudo foi desenvolvido, descrevendo a trajetória dos
estudos de gênero, sumariamente, de modo a identificar os conceitos de patriarcado e família,
bem como o papel da esposa, como componentes estruturados a partir de uma lógica
androcêntrica.
A segunda parte da dissertação se volta para as análises dos contos, cada qual formando
um capítulo à parte. “‘A fuga’” de Elvira: livre no pensamento, mas presa na inação” demonstra
as dificuldades enfrentadas por um sujeito feminino na busca pela realização em uma sociedade
ainda extremamente hostil a qualquer modificação no perfil tradicional de mulher. Para isso, nos
detivemos na inação da personagem, mas extrapolando a limitação das teorias literárias que não
levam em conta as questões de gênero.
O capítulo seguinte, “‘A imitação da rosa’: A mente dividida de Laura”, aborda a
explosão do conflito de identidade vivenciado pela protagonista, ao analisar, dentro do universo
do lar, os questionamentos que angustiam essa personagem, desejosa de atingir um novo modo de
agir, mas incapacitada de mudar, devido à moral patriarcal imposta, que vai levá-la à fuga através
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da insanidade. Aqui, a interpretação do monólogo interior que toma conta da narrativa se fez
necessário a fim de mostrar que a identidade da personagem é imbuída de discursos moralizantes,
expondo a construção idealizadora e falsificadora do pensamento hegemônico no que se refere às
relações de gênero.
“O ‘Amor’ de Ana liberta a força aprisionada no lar” é o terceiro capítulo dessa segunda
parte, mostrando a epifania como possibilidade para que a personagem alcance outra
compreensão acerca do seu papel como indivíduo. Referências à Bíblia e à mítica grega, que
fundam o pensamento da sociedade patriarcal, são analisadas para entendermos a formação de
dicotomias como razão-emoção, sociedade-natureza e masculino-feminino, já que vemos a
personagem Ana superar essas diferenciações hierárquicas e se fortalecer.
Na conclusão, apresentamos um comparativo entre esses três contos, observando a
representação ficcional que a autora faz de conflitos extraliterários, analisando as técnicas
narrativas que foram trabalhadas de modo a problematizar os aspectos vivenciados por mulheres
brasileiras em um dado momento histórico. Desse modo, esperamos destacar o papel que essas
narrativas de Lispector desempenharam ao interferir no pensamento hegemônico do século
passado, inscrevendo na literatura nacional questões do universo feminino que foram
fundamentais para a superação de modelos discriminatórios presentes em nossa sociedade.
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1. Clarice Lispector: uma obra sobre o conflito eu-mundo
Nesse capítulo inicial, lançamos um olhar sobre as obras de Clarice Lispector, já nos
direcionando pela temática enfocada em nosso corpus, ou seja, o doméstico e os conflitos de
identidade, para apontar semelhanças e diferenças entre os contos que analisaremos e as demais
narrativas da autora. Nos parece importante, antes de partir para a análise específica da
representação das donas-de-casa nos três contos, destacar o interesse de Lispector em abordar o
mundo privado, o casamento, a maternidade e a busca pela realização pessoal, visto que a
aproximação com esses temas demonstra uma conexão da autora com o aspecto social e com os
problemas comumente associados ao universo feminino, algo pouco valorizado em sua obra e
que é o alvo de nossa pesquisa. Independentemente de trabalhar essa temática de valores
relacionados ao feminino, o que vemos Clarice enfocar, não só em suas personagens femininas, é
o embate entre os anseios do indivíduo e as exigências do mundo externo, que marca toda a sua
produção e é nesse conflito que se constrói o cerne dramático dos contos que analisaremos.
Também não deixamos de apontar alguns aspectos formais das narrativas da autora que parecem
apropriados a esses propósitos temáticos.
O primeiro romance de Lispector, Perto do coração selvagem, lançado em 1944,
provocou espanto na crítica pela ruptura que representava com as narrativas até então traçadas na
literatura brasileira. Fazendo uso de técnicas como o fluxo da consciência e a mudança do foco
narrativo, apresentava-se um romance de ação psicológica. Em lugar de um tempo e espaço
demarcados, as personagens faziam de suas consciências um tipo de paisagem interior, onde se
deslocavam frente à angústia do presente, as perspectivas do futuro e o passado que nunca
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terminara. Essa opção da voz narrativa é congruente com a proposta do romance, que conduz a
trajetória de Joana na busca pela individuação.
Contudo, mesmo mergulhando no universo interior, essa personagem se depara com as
máscaras sociais que adotamos ao longo da vida. Joana é um indivíduo que se lança às
indagações e quer construir o próprio caminho, longe das convenções familiares e sociais. Desde
o início, a personagem é apresentada como se sentindo inadequada no ambiente que a cerca. Órfã
de mãe logo após o nascimento, é criada pelo pai que também falece ainda na sua infância, o que
a faz ser levada para viver com os tios que a colocam em seguida em um internato. Esses planos
temporais da infância e adolescência de Joana se interconectam com o tempo presente dela,
marcado pelo casamento com Otávio. O romance finaliza com a perspectiva da viagem de Joana,
após a separação de Otávio.
No entanto, como a própria Clarice revela, não são esses fatos que interessam, mas sim,
como eles repercutem nas personagens, fazendo-as indagar sobre os sentimentos e atitudes que
têm de tomar frente aos outros e ao compromisso com sua própria realização. E essas angústias
são semelhantes àquelas enfrentadas pelas personagens Elvira, Laura e Ana, protagonistas dos
contos que analisaremos. Há elementos que vemos já ensaiados nessa primeira obra e que se
desenvolvem nas narrativas seguintes: o questionamento de estereótipos femininos e a
desestabilização do modelo da mãe. O sufocamento dentro do universo doméstico também se
destaca nesse romance, bem como a problematização das convenções sociais pela personagem,
que tenta construir outra apreensão do mundo: “Desejava ainda mais: renascer sempre, cortar
tudo o que aprendera, o que vira, e inaugurar-se num terreno novo onde todo pequeno ato tivesse
um significado, onde o ar fosse respirado como da primeira vez” (LISPECTOR, 1995, p.93-4).
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Interessante observar que, enquanto Joana enfrenta as angústias, as três donas-de-casa do
nosso corpus fogem. Joana desestabiliza o cotidiano armado pelas normas sociais e culturais,
enquanto as outras só conseguem permanecer no questionamento interior. Joana provoca aquilo
que a incomoda em busca de suas próprias respostas. Já nas protagonistas dos contos, o que é
passível de causar ruptura parece insuportável demais para ser questionado e pode acabar sendo
oculto, pois elas também anseiam por liberdade, mas parecem não conseguir se entregar ao
desordenamento da busca interior. O modo, porém, da autora tratar dessas questões é semelhante
ao que será empregado em outras narrativas. Vemos o fluxo da consciência guiando a voz
narrativa, que mergulha na mente das personagens, mudando, por vezes, o foco narrativo para
evidenciar não só Joana, mas também Otávio, seu marido, e Lídia, a amante dele. Utilizando tal
técnica para guiar os pensamentos das personagens, é compreensível que o romance não tivesse a
ordenação lógica (começo, meio e fim) das narrativas tradicionais. É notável também que, ao
invés de traçar um perfil-fotografia das personagens, a autora as construa segundo um molde
mais impressionista: as descrições físicas que surgem no texto estão concatenadas a um estado de
espírito.
Na obra seguinte, O lustre, publicada em 1946, Clarice Lispector intensifica esse modo
impressionista de narrar. As descrições de ambiente são cada vez mais incorporadas ao estado
interior das personagens. Novamente, vemos uma protagonista, Virgínia, e seu desejo de partir,
que se esboça logo no início da juventude, quando se encaminha com o irmão Daniel rumo à
cidade, para longe de Granja Quieta, a fazenda em que foram criados pelos pais juntamente com
a irmã Esmeralda. Porém, só ao longo do romance é que Virgínia vai conseguindo se
desvencilhar do peso das convenções e construir o caminho rumo ao prazer, caminhada que
esbarra na inquietação e no desconforto de estar no mundo, culminando com sua morte em plena
rua, atropelada, e apontada pelos transeuntes.
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Tanto Virgínia quanto Daniel tiveram uma infância mergulhada nos elementos vitais da
natureza, que em outras personagens de Clarice são somente anseios longínquos e inexplicáveis.
A experimentação do mal, da culpa, do prazer, que dominava Joana, surge também aqui, onde o
questionamento da maternidade, do casamento e das convenções sociais é vivido de modo ainda
mais amargo. Vemos em Virgínia a realização do que nas personagens dos contos é apenas um
desejo longínquo: ganhar as ruas. Essa experiência é, a princípio, desconfortável e estranha para
Virgínia, mas torna-se um hábito conquistado, enquanto nas outras personagens é mera ilusão
passageira. A liberdade é o tema que volta aqui e se não vemos Virgínia realizada ao final da
narrativa, ao menos ela desenhou os próprios erros, ao contrário das três personagens do nosso
corpus, que se limitavam a ter os passos guiados. A mãe de Virgínia se assemelha bastante a
essas personagens, pois, para ela, o casamento é o sufocamento da personalidade, que vai se
apagando com a rotina. Até mesmo a própria Virgínia se esconde, por vezes, na comodidade do
cotidiano: “E assim preparava-se para viver-diariamente, disposta a transformar-se no que não era
para ficar bem com as coisas ao redor” (LISPECTOR, 1999a, p.106).
Quem igualmente não estava em paz com as coisas que a cercavam era Lucrécia,
protagonista de A cidade sitiada, de 1949. Reconhecemos nela a mesma inquietação de tantas
outras personagens de Clarice, mas, em meio aos poucos fatos, o impressionismo do ambiente
cede lugar a uma quase simbolização. O caráter pouco dramático da narrativa difere muito da
proposta dos três contos que analisaremos. Ainda assim, vemos a preocupação da autora em
questionar o destino de uma mulher, fechada no pouco diálogo com a mãe, e que deseja alcançar
a liberdade, vendo-se, contudo, limitada por um casamento banal.
A narrativa inicia com Lucrécia Neves, solteira, em S. Geraldo, região suburbana, na
década de 20. Essas coordenadas da voz narrativa em nada colaboram para traçar um panorama
objetivo, pois tudo o que é visto no lugar é absorvido pelas impressões de Lucrécia, que se sente
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inadequada e superior ao local. Nessa narrativa, a autora traz à tona o sistema patriarcal, pois a
personagem se submete à inutilidade de seus dias, esperando casar. Nessa busca, trava
relacionamento com os rapazes da cidade, Felipe, Perseu e o médico casado Lucas, até que se
casa com o comerciante Mateus Correia e é levada como prêmio do forasteiro para a cidade
grande. Tudo é tratado com um tom de ironia pela voz narrativa, já que, ao contrário de outras
personagens que parecem confundidas em meio ao sistema patriarcal, Lucrécia se vê como parte
dessa engrenagem, sem ilusões. Talvez por não ansiar mundos maiores, ela finda a narrativa com
um grau de satisfação, viúva, com filhos, e libertada da incômoda familiaridade do casamento,
retornando a S. Geraldo, que está se transformando em metrópole. A voz narrativa reitera que a
personagem não pensava, apenas se deixava guiar pelo fluxo da vida. “Distraída, sem nenhuma
individualidade” (LISPECTOR, 1998a, p.80).
Essa postura é oposta a de Martim, o protagonista de A maçã no escuro, romance escrito
em 1956 e publicado em 1961, que foge buscando inventar uma linguagem, após cometer um
crime que só é desvelado ao final do romance. Martim encontra abrigo em uma fazenda, onde em
confronto com a racionalização excessiva vivida em sociedade, busca encontrar o aspecto natural
da vida. Martim tenta se desvencilhar dos modelos adotados para viver em coletividade, não
sendo à toa que esse processo se dê em um refúgio. Do contrário, a experiência estaria, desde o
início, lograda ao fracasso. Lá, ele conhece Vitória e Ermelinda e, pelo relacionamento dos três,
podemos perceber uma problematização do que seriam os perfis do masculino e do feminino. As
duas mulheres, primas, vivem de lembranças, medos e decepções, fortalecendo Martim na sua
tentativa de se refazer, questionando os valores construídos culturalmente. Novamente,
sentimentos como o amor e o ódio são colocados em consonância e a culpa aparece como
importante elemento a ser trabalhado pelo personagem em seu caminho pela libertação das
normas. Martim tenta, efetivamente, achar uma outra saída, se desgarrar das correntes que o
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aprisionam a uma lógica coletiva, mas aos poucos ele vai compreendendo que “do que se desiste,
se vive” (LISPECTOR, 1998c, p.173) e “um homem afinal se media pela sua carência” (p.174).
Aqui, Clarice indica que mesmo um homem que busca inaugurar o próprio mundo, feito à sua
medida, é limitado pelos tentáculos da sociedade, pois, ao final, Martim é descoberto e punido
pelo crime que cometera, tentar matar a esposa.
Em 1964, Clarice Lispector publica uma de suas obras mais destacadas: A paixão segundo
G.H., onde o ser e a linguagem são colocados em questionamento, por meio de imagens
poderosas. O conflito entre o eu interior e a casca social de que nos revestimos, por meio de todos
os ensinamentos e do imaginário cultural, é levado ao extremo, de onde a personagem busca
retornar. O romance mostra até onde se pode ir quando as frestas da familiaridade do cotidiano se
rompem. G.H. conseguiu alcançar o que as personagens do nosso corpus não arriscaram. Ela é
consciente também dos valores e normas que nos aprisionam, mas conseguiu, ainda que
momentaneamente, desvestir-se do pensamento cartesiano, do ordenamento racional. A
personagem conduz a narrativa em primeira pessoa, repensando e tentando compreender sua
experiência, pedindo a mão do leitor para adentrar com ela nos mistérios do ilógico; justamente o
oposto do que ocorre com as personagens que não conseguem vencer o silenciamento. Assim
como o processo de entendimento e aprendizagem é algo contínuo, também esse texto se
apresenta de forma cíclica. Uma série de travessões é o primeiro sinal gráfico e o último também,
seguindo o ritmo dos parágrafos que terminam com uma frase retomada no início do parágrafo
seguinte. É a experiência revivida de G.H., como se o acontecimento estivesse se refazendo
dentro dela, na busca por compreensão.
O acontecimento que a leva até esse estado é revelado em meio ao cotidiano banal. G.H.,
uma escultora, vai arrumar o quarto da empregada Janair, que tinha sido despedida. O quarto
entra em choque com o resto da cobertura, nas paredes dele estão desenhados uma mulher, um
22
homem e um cão, a carvão. Inicia aí a repugnância da proprietária que não vê a sua marca no
lugar, primeira afronta a sua individualidade. Uma barata no guarda-roupa eleva o seu asco e ela
ergue a mão para esmagá-la. Ao invés de se afastar do inseto, porém, G.H. come da massa branca
esmagada, reconhecendo naquele ser a mesma essência de vida que pulsa nela. O caminho rumo
ao natural desperta em G.H. o desmascaramento de uma série de valores criados para a
sobrevivência em sociedade. Através desse processo, o tempo racional, bem como as divisões de
classe e sexo, explodem em falta de argumento.
As artificialidades a que nos agarramos, e que são a fragilidade das personagens que
analisamos, são mostradas como algo distante da matéria viva de que somos feitos. G.H.
demostra que na racionalização da vida adiamos o prazer: “até agora o que a esperança queria em
mim era apenas escamotear a realidade” (LISPECTOR, 1998d p.83). No entanto, se a experiência
de G.H. a coloca em contato com o aspecto animal e natural do mundo e com as esferas
cósmicas, por outro, a afasta da convivência com os humanos e é por isso que ela tenta
racionalizar o momento de comunhão com a barata. Ao final, a personagem faz o caminho de
volta ao cotidiano, saindo da epifania, porque não suportaria a solidão da clarividência. É um
indício de que não bastaria uma busca solitária, as inquietações pela descoberta de uma essência
do ser, seria preciso restabelecer os laços com outros seres humanos ao redor.
Lóri, a protagonista de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, publicado em 1969,
também busca por si mesma. Diferentemente de G.H., que quer se desvestir de sua parcela de
humanização e encontrar uma essência de vida que esteja presente tanto nela quanto em uma
barata, Lóri procura respostas para seu destino como mulher junto aos indivíduos. Lóri é uma
professora primária que “a vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não
ter dor” (LISPECTOR, 1998f, p.56) e depois do encontro com Ulisses, professor de filosofia,
quer aprender a expandir-se e a encontrar-se com o mundo e os seus semelhantes. Por mais que
23
seu aprendizado passe pela solidão, é o envolvimento amoroso com Ulisses que suscita essa
experiência. Já aí se percebe a singularidade de Lóri, personagem que busca compartilhar e que
não se descobre sozinha.
Também nela percebemos as problemáticas de personagens femininas claricianas: o fato
de se enxergar menor que os homens e a dificuldade em lidar com a inutilidade do tempo. No
entanto, a personagem consegue encontrar saídas para tais limitações. Lóri, que no início da
narrativa parece sufocada ou intimidada pela influência de Ulisses, vai aos poucos construindo a
própria força, se desvencilhando do professor e aprendendo consigo mesma e com o mundo ao
redor. Trajetória difícil para as personagens Elvira e Laura, mas que Ana já consegue esboçar.
Lóri, que é apelido de Loreley, sereia da lenda germânica que seduz pescadores, consegue
concatenar desejo e realidade. Não é só aluna de Ulisses (nome do herói greco-latino que escapa
dos cantos das sereias com sua astúcia), mas também ensina ao professor que outros sentidos
além do lógico-racional existem. Lóri vislumbra uma harmonização do conflito eu-mundo, marca
da obra clariciana: “um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha
extrema individualidade de pessoa mas seremos um só” (LISPECTOR, 1998f, p. 73).
Água viva, que Lispector publicou em 1973, representa uma ruptura com os gêneros
narrativos estabelecidos, tanto que a autora o identifica como ficção, apenas. No próprio texto, a
voz narrativa declara que a delimitação de gêneros é armadilha que não a prende mais. A voz
narrativa é um eu, feminino, que escreve a um tu, que pode ser o leitor, mas parece ser também o
alguém de quem esse eu acabou de se desprender. É um texto, pois, na primeira pessoa, que
muitas vezes se assemelha a uma carta, e outras a um tratado sobre variados assuntos. A
narradora, única personagem, é identificada apenas como uma artista plástica que resolve se
desvelar através do fluir livre da escrita.
24
Pode-se dizer que é um livro sobre as sensações, sobre os sentidos e limites de nossa
existência, e sobre o “instante-já” que atormenta a voz narrativa dos escritos de Lispector desde o
início de sua produção literária. Entre os temas tratados, estão as artes, a liberdade, o amorprisão, o medo de se lançar na descoberta de si mesma e mergulhar no caos de uma lucidez
incompreensível para os demais. Porém, esses temas recorrentes na obra da autora são tratados de
modo distinto, pois a personagem parece mais corajosa do que outras, até mesmo do que G.H.,
que também quer extrapolar os limites colocados pelas convenções e lógicas da civilização que
nos rodeia. É como se o eu de Água viva reafirmasse a trajetória harmônica que Lóri construiu na
descoberta de si mesma, agora de modo ainda mais livre. Em Água viva, a personagem tenta
trabalhar o passado de modo a compreender o presente, e construir o futuro a partir do instante-já.
Nesse sentido, podemos dizer que ela se livra das frustrações que atormentam outras personagens
da autora. Ela consegue ir ao encontro do outro que existe dentro dela, não se nega a tal processo,
como ocorre com tantas protagonistas claricianas. Ao invés de crer nas convenções que
aprisionam, tenta descobrir uma outra possibilidade de enxergar a vida. “Não quero ter a terrível
limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade
inventada” (LISPECTOR, 1998i, p.20).
A mesma coragem de fazer perguntas e tentar compreender é desenvolvida por outra
personagem, incapaz, porém, de alcançar qualquer resposta: Macabéa, a personagem de A hora
da estrela, publicado em 1977. Nessa novela, o narrador identificado como Rodrigo S.M. é
também uma personagem, mas nem a sua biografia inventada consegue ludibriar o leitor das
semelhanças com a autora, Clarice Lispector. As mesmas inquietações presentes nos textos de
Lispector, tantas vezes explicitadas em crônicas, são lançadas novamente. É o narrador quem se
detém nos pensamentos de Macabéa, tentando alcançar o que para ela é inatingível. A história
melodramática da nordestina pobre no Rio de Janeiro retrata muito bem a exclusão social, sob o
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ponto de vista de Lispector, ou seja, a escassez material é mostrada em consonância com a
angústia existencial. E mesmo com uma vivência tão diferente das outras personagens burguesas
da autora, Macabéa se identifica com aquelas no que tange ao desamparo. Ela também se sente
diminuída frente ao namorado, Olímpico de Jesus, nordestino como ela, mas que exercita a
esperteza na cidade grande, pois tem lá suas ambições. Macabéa nem sequer consegue entender a
distância em que estão os seus desejos de se tornarem realidade. Assim como outras personagens,
ela tem medo de querer demais da vida, como se isso provocasse o castigo da morte: “Então
defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta
não acabar” (LISPECTOR, 1998k, p.32). Paradoxalmente, é a morte ao final da narrativa, em um
atropelamento na rua, que lhe concede o momento de se sentir uma estrela (ela queria ser estrela
de cinema). Também é nos últimos momentos de vida que a personagem consegue encontrar um
pouco de esperança (ainda que envolta em ilusões): consultando uma cartomante que vislumbra
uma mudança para melhor na sua vida. O futuro maravilhoso que encontra, porém, é a morte,
finalizando uma existência que não estabeleceu diálogo algum.
Postumamente, em 1978, foi lançado Um sopro de vida, identificado pela autora apenas
como “pulsações”. Evidente que Clarice pretendia escapar a rotulações, visto que essa obra era,
justamente, um questionamento da autoria e da inspiração. A autobiografia e a pessoalidade, ou
impessoalidade, da voz narrativa são aqui discutidas, bem como o processo de formação das
personagens. Lispector escolheu tratar desses temas justamente fazendo um texto que se divide
entre as figuras do Autor e de Angela Pralini, que seria uma personagem criada por ele. São dois
livros que o leitor irá acompanhar, então, mas que se colocam em diálogo e em confronto. Muitas
vezes o confronto é entre o caráter objetivo que uma ficção tem de assumir e os aspectos
emocionais que tomam conta dele. O autor é, a princípio, identificado com a racionalidade, e
Angela com o expressar-se livremente pelo fluir da escrita. No entanto, esses papéis, às vezes, se
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confundem e adentra mesmo a figura da autora Clarice Lispector, sendo impossível se
desvencilhar dela como a indagadora das duas formas de narrar. O Autor e Angela encarnam
também um duelo entre o masculino e o feminino e esse texto é novamente uma oportunidade de
se discutir as questões de gênero.
Contos claricianos: laços mais estreitos com o conflito
Em 1960, Clarice Lispector publica a coletânea de contos que entra para a história da
literatura brasileira: Laços de família. Segundo o escritor (e amigo da autora), Érico Veríssimo,
essa foi a mais importante coleção de narrativas curtas desde Machado de Assis. Os contos
trazem personagens e ambientes mais bem definidos, fazendo alguns críticos os considerarem
mais bem construídos. Essa acepção não nos parece relevante, visto que uma tal diferenciação
não implica em uma maior ou menor qualidade da obra literária em questão. No entanto, não
negamos que nos contos encontramos personagens com perfis sociais mais delineados e
ambientes de fácil reconhecimento na realidade brasileira. Porém, a proposta da autora
continuava sendo o íntimo das personagens, mesmo que enxerguemos aí, mais claramente, a
ponte com o contexto social.
Dois contos que compõem o nosso corpus estão incluídos em Laços de família e ali já
vislumbramos, pois, essa temática da angústia das personagens femininas no universo doméstico
e o questionamento do papel que desempenham na realidade circundante. Como iremos nos deter
mais demoradamente nesse aspecto, listamos aqui outras temáticas presentes nesses contos. A
atmosfera principal da obra parece ser o insólito que rompe o tédio cotidiano e possibilita o
indivíduo sair de seu automatismo, questionar-se sobre si mesmo e os valores que adota. O
27
curioso é que a situação insólita pode ser um fato comum, sendo que o olhar da personagem
consegue colocá-lo em outra dimensão.
Mais uma vez, o tempo desperdiçado é enfocado pela autora, principalmente quando a
narrativa aborda o universo de mulheres casadas. Poderíamos listar ainda outros temas: idosas e
adolescentes às voltas com o desejo que não se apazigua, suscitando frustração; as ligações
familiares que sufocam; a violência que se esconde nos pequenos gestos; a inadequação dos
indivíduos frente às convenções sociais; a culpa; os valores morais e o seu questionamento
através das crianças; a maternidade e a força do feminino incompreendida pelos homens; o lado
anímico dos indivíduos que se mostra em contato com a natureza; as fantasias mais íntimas
ocultas nos fatos corriqueiros. Em algumas situações é como se os indivíduos se percebessem
maiores que o mundo, em outras eles descobrem que seria preciso se diminuir para caber nele.
No mesmo ano em que publicou A paixão segundo G..H., Clarice lançou a coletânea A
legião estrangeira, dividida em duas partes: sendo treze contos e outros fragmentos que foram
chamados de Fundo de gaveta, publicados postumamente, em 1978, com o título Para não
esquecer. Nos contos, a infância volta a ser retratada e, dessa vez, percebe-se mais claramente o
fundo autobiográfico em que foram gerados. No entanto, em muitos escritos, as vivências de rua
e de escola são retomadas para entender conflitos e traumas do presente. Noutros, a infância é
trabalhada como tentativa de se aproximar do universo dos filhos e de lidar com o ser em
formação, já confrontado com as coerções sociais de que será vítima ao longo da vida. Os
símbolos da religiosidade aparecem nas narrativas como uma discussão sobre o exercício da
solidariedade. Podemos perceber a injustiça social como uma preocupação da autora, em que se
questiona a indiferença pelo outro. Mais uma vez, a culpa e o crime compõem o argumento de
algumas narrativas. Nessa coletânea, o conto “Os obedientes” parece ter grande relação com
nosso corpus. Nele, é enfocada a vivência de um casal, e a voz narrativa tem papel preponderante
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para interpretar os “acontecimentos” sob uma ótica de ironia, que desmascara muitos valores da
sociedade patriarcal.
Nos textos de Fundo de gaveta, podemos ver o argumento inicial de futuros contos ou do
perfil esboçado de futuras personagens. Encontramos explicações de Lispector sobre o processo
criador e a inspiração para algumas narrativas. As crianças são o argumento para textos que
parecem um alerta sobre a domesticação a que os indivíduos estão sujeitos na sociedade e o
constrangimento da ordem. Textos sobre a arte, a escrita, poemas, retratos e relatos de viagem
também compõem a coletânea. Tal atmosfera domina A descoberta do mundo, coletânea de
crônicas publicadas por Clarice ao longo de sete anos no Jornal do Brasil e que são reunidas em
1984. Lá, também encontramos o cerne de futuras ficções da autora, desabafos autobiográficos e
opiniões sobre assuntos em voga na sociedade brasileira na época.
Muitos contos de A legião estrangeira aparecem, em 1971, na coletânea Felicidade
clandestina, alguns até com o título modificado ou pequenas alterações. O desencanto é um tom
presente em certas narrativas e vemos a figura de Deus e o questionamento da culpa como um
fator recorrente. A tentativa de entender a produção literária reaparece, bem como textos que
lidam com a puberdade e com os animais como metáforas do lado irracional. O doméstico está
presente em narrativas sobre as criadas, nas quais notamos a preocupação de Lispector em
abordar outras realidades sociais e a vivência de indivíduos marginalizados.
Toda uma literatura marginalizada é o que vai surgir com A via-crúcis do corpo, de 1974,
coletânea de contos “eróticos”, encomendada à autora, que pensava em se ocultar através de um
pseudônimo. A própria Clarice diz na “Explicação” que aqueles contos são lixo, mas argumenta
que o lixo também é necessário. Essa afirmação fez alguns críticos ignorarem a coletânea,
tratando-a como algo completamente distinto da produção da autora. Contudo, a temática
trabalhada coincide em muito com a trajetória construída por Clarice. A repressão das
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personagens femininas é evocada, novamente, principalmente por ser o sexo a principal temática
solicitada por seu editor.
Se os leitores forem em busca de relatos picantes, característicos das narrativas eróticas,
decepcionam-se com a coletânea. A autora até se esforça nos relatos, mas seu estilo de lidar com
reflexões, ao invés de descrições, tão caras nesse tipo de narrativa, logo demonstra que a
encomenda saiu nada convencional. Porém, muito além da proposta, as narrativas representam
um questionamento dos modelos de gênero. Até mesmo nas histórias pouco convencionais, em
que surgem indivíduos marginalizados como prostitutas e homossexuais, os papéis do masculino
e do feminino estão ali para serem discutidos. “Praça Mauá” é marcante como uma desconstrução
dos perfis rígidos de gênero, pois o travesti aparece como “mais mulher” do que sua rival, uma
esposa que se transforma em prostituta à noite. O adultério é um tema que aparece também para
desestabilizar conceitos convencionais sobre relacionamento. Em “O corpo”, vemos uma relação
bígama, onde duas mulheres se mostram submissas ao marido em comum, tal qual prevê o
patriarcado. No entanto, as parceiras lésbicas, que são traídas pelo cônjuge, passam a viver seu
amor e subvertem a situação, matando o companheiro. Na obra, vemos ainda o questionamento
de dogmas religiosos, e personagens idosas, retratando o desejo que não some com a velhice.
No mesmo ano, é lançada outra coletânea de contos: Onde estivestes de noite. Aí, surgem
alguns textos que tinham sido publicados como crônicas na coluna semanal no Jornal do Brasil,
até mesmo trechos do romance Uma aprendizagem, pouco modificados. Certas imagens que
dominam a obra de Clarice, como os cavalos, aparecem como “estudo”. Porém, duas narrativas
nos despertaram maiores atenções nesse livro: “A procura de uma dignidade” e “A partida do
trem”. Em ambas, estão personagens idosas, vivendo a angústia de não serem mais vistas como
mulheres ou indivíduos, apenas como velhas. A solidão e a morte aparecem, não de forma
idealizada, mas como realidades prementes. Quem procura dignidade é uma sra. Jorge B. Xavier,
30
identificada através do nome do marido, e que se vê reconhecida, socialmente, apenas como
esposa. Ela mostra a frustração de quem abdicou do próprio destino para assumir uma máscara
anônima. No entanto, em seu íntimo, guarda desejos irrefreáveis. No trem, confrontam-se duas
mulheres com experiências diferentes: Angela Pralini (que vai reaparecer em O sopro de vida) e
Dona Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo, que pelo nome encarna uma tradição familiar.
Ambas “conversam”, mas a narrativa se constrói pelo diálogo interno, no qual cada uma pensa
em seu destino, o que é expresso nos monólogos interiores. Dona Rita amargura o destino
sacrificado pelo marido e filhos, a falta de sentido na velhice, tentando se agarrar a valores
morais que não lhe trazem qualquer apaziguamento. Angela Pralini representa uma mulher que
tenta criar suas oportunidades, buscando a própria sexualidade, mas que nem por isso se sente
menos desamparada e perdida. Essa narrativa parece um encontro de dois perfis de mulheres na
sociedade brasileira em transformação.
Postumamente, em 1979, é lançada A bela e a fera, que reúne narrativas dos últimos anos
de vida da autora e outras, do início da sua trajetória, na década de 40. Através dos contos mais
antigos, é possível perceber que já eram trabalhados por Clarice temas como: o tempo inútil; o
adultério feminino; a mulher voltada para os outros e sem chance de refletir sobre si mesma; a
adolescência e as jovens que anseiam por um destino maior, bem como os percalços da criação
literária. Nessa coletânea, foi publicado A fuga, um dos contos que compõem o nosso corpus. O
lançamento de Outros escritos, agora em 2005, também recupera contos da década de 40, onde se
vê a preocupação da autora em lidar com questões de gênero, tentando discutir formas de
relacionamento mais harmônicas entre os indivíduos.
Clarice Lispector se lançou ainda na literatura infantil, com a publicação dos livros O
mistério do coelhinho pensante (1967); A mulher que matou os peixes (1969); A vida íntima de
Laura (1974); Quase de verdade (1978) e Como nasceram as estrelas (1984). As entrevistas que
31
realizou para veículos como as revistas Manchete e Isto é, Senhor foram publicadas em 1975, em
De corpo inteiro. Em todas encontramos elementos para compreender melhor a obra da autora,
até mesmo nas Correspondências, organizadas por Teresa Montero, mas não adentraremos aqui
nas considerações sobre esses textos, por não estarem, diretamente, vinculados à nossa análise
literária.
O caminhar pela obra de Clarice, que tentamos realizar de forma breve, sem dúvida
permitirá que nossa aproximação com os contos a serem analisados se dê de forma menos estática
e parcial, em sintonia, portanto, com o tecer literário da autora como um todo.
32
2. A fortuna crítica: olhares sobre a obra de Lispector
Em nossa intenção de lançar mais uma moeda na imensa fortuna crítica que se gerou em
torno da obra de Clarice Lispector, faz-se necessário percorrer os caminhos já traçados antes.
Embora alguns não sirvam de atalho para a nossa proposição, são indispensáveis para construir a
visão geral sobre a obra da autora e, assim, nos fazer caminhar por terreno mais seguro quando
adentrarmos nas análises específicas dos contos que são o corpus dessa dissertação. Afinal,
mesmo a análise detalhada de uma frase, ou um vocábulo utilizado pela autora, fica enriquecida
quando não esquecemos que se insere dentro da totalidade de uma obra. Além disso, o diálogo
com os demais críticos evita uma possível incongruência de nossas observações e estimula o
debate sobre a obra da autora.
Decidimos partir das críticas gerais sobre a obra clariciana, que dão a dimensão da
contribuição que ela trouxe para a literatura brasileira, nos detendo em concordâncias e
confrontações com os estudiosos que se dedicaram às análises específicas sobre a criação
ficcional de Lispector. Não nos interessa aqui analisar os estranhamentos que a obra de Lispector
causou quando de seu ingresso nas letras brasileiras. Mas, já que poucos autores tinham
adentrado como ela nos limites da nova experimentação do romance moderno, só restava aos
críticos da época intuírem sobre o seu vanguardismo, ou melhor, pioneirismo, em adaptar, ou
arriscar, outras formas de narrar, utilizando a descontinuidade de tempo e espaço e focalizando
mais os monólogos da consciência vivenciados pelas personagens.
Mesmo assim, muitos críticos atuantes na época de estréia de Clarice Lispector, embora
tenham apontado como defeitos o que eram características e como falha, ou falta, o que, na
33
verdade, eram proposições estéticas (posteriormente validadas como qualidades), já conseguiam
dar indicativos dos caminhos pelos quais sua obra seguiria. Tais críticos poderiam até não possuir
instrumentos para avaliar as transformações inauguradas por ela na literatura brasileira, mas,
apesar disso, já reconheciam núcleos temáticos e características estilísticas da escrita clariciana.
Pegadas deixadas na trilha da crítica
Olga de Sá (2000), em seu brilhante trabalho de reconstituição histórica e analítica da
crítica sobre Clarice Lispector, nos informa que o primeiro crítico a escrever sobre a obra de
estréia, Perto do coração selvagem, foi Sérgio Milliet, no dia 15 de janeiro de 1944. O livro havia
sido lançado em 1943, mas só surpreende a crítica e recebe prêmios no ano seguinte. O texto
recuperado em seu Diário Crítico4, nos fala da curiosidade intensa sobre a descoberta rara que
lhe encheu de satisfação, referindo-se ao livro de Lispector. Contudo, parece se desculpar por
estar admirando uma obra escrita por uma mulher. Milliet fala de seu estranhamento com o nome
da autora, que pensa tratar-se de pseudônimo, e diz que esperava mais uma das “mocinhas cheias
de qualidade”, “que morreriam de ataque diante de uma crítica séria” (MILLIET apud SÁ, p.27).
Apesar da relutância, o crítico se rende à leitura e percebe na autora uma linguagem
pessoal, adjetivação segura e aguda, originalidade e fortaleza do pensamento. Ele percebe
características positivas também em O lustre, em sua análise de 15 de fevereiro de 1946, onde
reitera o raro poder inventivo, o profundo valor poético e uma sutileza psicológica rica de
promessas. Porém, Milliet aponta o que considera desgaste, e que vê comprometer a estrutura do
romance seguinte, A cidade sitiada, o menos elogiado da autora: o excessivo preciosismo. Para
Milliet, “o rococó mascarou com sua interminável série de ornatos a estrutura da obra” e “a forma
4
MILLIET, Sérgio. Diário Crítico. 1944. São Paulo: Brasiliense, 1945. Citado por SÁ, Olga de. A escritura de
Clarice Lispector. 3ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
34
virou fórmula” (MILLIET apud SÁ, p. 31). Mais tarde, quando analisa Alguns contos, publicado
em 1952, Milliet vê a penetração psicológica utilizada com equilíbrio. Ele coloca Clarice no mais
alto patamar desenhado por Ezra Pound: o da criadora. Afinal, diz que sua obra não tem a
habilidade dos imitadores, pois se arrisca em falhas, insistências e excessos.
Outro crítico que faz questão de frisar tratar-se de uma autora, preocupando-se em colocar
Clarice à parte é Álvaro Lins. Por coincidência, mais um a ter problemas com o nome da autora,
pois o artigo, datado de fevereiro de 1944, chama-se “A experiência incompleta: Clarisse
Lispector”5. Nele, Álvaro situa o livro de estréia na “literatura feminina”, pois o romance teria
“as características do temperamento feminino”, que ele cita como sendo o narcisismo e o
potencial de lirismo. Justamente por ter essa expectativa, ele afirma que na personagem Joana
está a “presença visível e ostensiva” da autora. O indício sugere uma leitura biográfica, mas não é
o que faz Álvaro Lins, até por faltar conhecimento sobre a vida da autora. Percebendo
semelhanças com as técnicas desenvolvidas por Virginia Woolf e James Joyce, Lins defende uma
crítica de influência. A exigência de Álvaro não é pouca, pois ele diz que Perto do coração
selvagem, “é um romance original nas nossas letras, embora não o seja na literatura universal”
(LINS apud SÁ p.33). Para ele, a experiência de Lispector estaria incompleta porque não soube
criar um ambiente mais definido para os personagens. Depois, analisando O lustre, ele aponta
outras características de Clarice, como a sinestesia, mas critica o recurso à poesia em uma obra de
prosa, dizendo tratar-se de excesso de verbalismo.
Em 1946, a articulista Gilda de Mello e Souza também critica o que viria a marcar
qualitativamente Clarice: o uso concomitante de diferentes gêneros literários, especialmente da
poesia na prosa. Por outro lado, Gilda coloca em termos claros a contribuição de Clarice ao
5
LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos (1940-60). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963.
35
concatenar forma e conteúdo, afirmando que a autora é “dos poucos que meditaram sobre a
oposição, de certo modo irreconciliável, existente entre o mundo da palavra e o mundo
contraditório do espírito, ensaiando para o problema uma solução pessoal” (MELLO E SOUZA,
1989, p.171). Gilda fala ainda de um processo de animização e personalização das coisas, que
violenta o sentido lógico da frase e impregna a obra de Lispector, e mais especialmente O lustre,
objeto da análise. Vê proximidade de O lustre com o romance simbólico e aponta que a autora
oferece sua visão de mundo através de um mito. Afinal, Gilda percebe que a utilização no título
da imagem do lustre, herança do casamento da avó da protagonista, indicaria uma ruína dos
valores da sociedade tradicional burguesa. É uma observação interessante, pois percebemos que a
trajetória da personagem principal não segue a rota traçada pelo patriarcado para as mulheres.
Ainda destacamos em Gilda o reconhecimento de que Lispector leva em conta o panorama
histórico em sua obra, afinal, comparando o texto clariciano com o de Franz Kafka, ela aponta
que: “tais obras corporificam, por assim dizer, os problemas mais essenciais do indivíduo, de uma
situação, ou de uma época – conforme o caso – atingindo através dessa personalização uma força
e um poder extraordinariamente mais fortes” (1989, p.173).
José Américo Motta Pessanha, em 1965, escreve Itinerário da Paixão, que aponta
perspectivas interessantes sobre a trajetória de Clarice. Conforme Pessanha, toda a obra de
Clarice se encaminhava para A paixão segundo G.H., cuja personagem representaria o
condenado, o humano rebelado, em confronto com a linguagem e a razão discursiva. A aparição
de animais e bichos remontaria à necessidade de aproximação com o primitivo e a raiz das coisas,
enquanto A maçã no escuro de Martim seria o banquete que antecede o sofrimento, páthos, de
G.H. Para ele, a personagem busca “emudecer as racionalizações tradicionais, cristalizadas, e os
hábitos de vida” (PESSANHA, 1989, p.184). Parece-nos que seriam mais adequados aqui os
verbos problematizar ou questionar do que emudecer. Segundo o crítico, na ficção clariciana, a
36
personagem procura sua própria “essência”, que não se confunde com o seu eu. Aqui nos parece
que se encontra o cerne do conflito que domina as personagens analisadas nessa dissertação.
Ainda é de se ressaltar a atenção que o crítico dispensa à importância do silêncio na obra
clariciana, o que destacamos também.
Em sua História concisa da literatura brasileira, redigida no final dos anos 60, Alfredo
Bosi faz considerações acerca dos rumos que a ficção brasileira tomou a partir de 1930, dividindo
as narrativas conforme quatro tendências que identificam o grau de tensão que as obras
possuíram em seu relacionamento com o mundo exterior e o estético. Bosi aproveita muito das
idéias de Lucien Goldmann em A sociologia do romance, abordando a tensão entre o herói e o
mundo. Assim, Alfredo Bosi situa a obra de Clarice Lispector entre a tensão interiorizada e a
transfigurada. Para Bosi, o herói (ou anti-herói, como adota com mais propriedade) das obras de
Lispector procura ultrapassar o conflito com o mundo indo alcançar “uma transmutação mítica ou
metafísica da realidade” (1997, p.392). Ele destaca que autores como Lispector tentariam a
“construção” de uma outra realidade, ao invés da “transposição da realidade social e psíquica”
(Cf Bosi, 1997, p.394) ao investirem em uma linguagem experimental, que rompe até com os
limite do gênero literário. Aí discordamos um pouco de Bosi, para quem a obra clariciana apenas
bebe nas fontes da história individual (Cf 1997, p.394), pois não acreditamos em uma ficção
desvinculada da realidade coletiva. Contudo, é compreensível que Alfredo Bosi tenha adotado tal
perspectiva já que estava mais interessado na passagem que Clarice Lispector realiza do “puro
psicológico ao experimental” (Cf 1997, p.392). Para o autor, Clarice vai “da ficção egótica à
ficção suprapessoal” (Cf Bosi, 1997, p.422), colocando em crise a própria subjetividade em seus
escritos. Nos contos de nosso corpus, vemos a subjetividade em um permanente relacionamento
com o extraliterário. Consideramos pertinente o apontamento que o crítico faz do uso intensivo
da metáfora insólita na escrita clariciana, bem como da entrega ao fluxo da consciência e da
37
ruptura com o enredo factual, aspectos que também verificamos na obra da autora. Bosi percebe a
obra de Lispector como uma “corrente da consciência”, “um contínuo denso de experiência
existencial”, “aberta ao passado da memória e ao futuro do desejo” (p.424-5).
Caminhando mais de perto com alguns estudiosos
Justamente o que foi criticado por alguns estudiosos, como a indefinição de tempo e de
espaço, o aproveitamento de outros gêneros dentro do romance e o relacionamento poético entre
significado e significante, é o que será percebido por Antonio Candido como a proposta da
composição de Clarice Lispector. No texto “No raiar de Clarice Lispector”, publicado em julho
de 1944, hoje disponível como “Uma tentativa de renovação”, Candido percebe que não é na
fabulação dos fatos que os críticos devem se ater quando analisam Perto do coração selvagem (e
por extensão, posteriormente, as demais obras da autora). Conforme ele observa, é na linguagem
que se dá a experimentação e o trabalho de Clarice. Ele chega a afirmar que até o lançamento
desse livro nenhuma outra obra tinha tentado pensar a nossa língua. Reconhece que a autora
penetrou pelos “labirintos mais retorcidos da mente” (CANDIDO, 1985, p.98) e “colocou
seriamente o problema do estilo e da expressão” (p.99). Sobre isso, Candido frisa “que a língua
adquire o mesmo caráter dramático que o entrecho” (p.100).
Compreendendo que Clarice tenta transformar os processos já usados, Candido faz a
observação lúcida de que a obra “parece dar menos importância às condições de espaço e tempo
do que a certos problemas intemporais, encarnados pelas personagens” (1985, p.100). O crítico
evidencia ainda o ritmo de procura presente nesse romance e a tensão psicológica que vai marcar
também as obras posteriores, fazendo mais uma observação valiosa: “O tempo cronológico perde
a razão de ser ante a intemporalidade da ação, que foge dele num ritmo caprichoso de duração
interior” (CANDIDO, 1985, p.100). Com muita pertinência, Candido percebe a função no uso de
38
técnicas como o fluxo da consciência, na própria digressão e na indefinição dos planos temporais
e espaciais, que afastam a costumeira linearidade das narrativas baseadas na ação, por estarem
mais relacionadas às representações dos estados psicológicos. Assim, Candido não se limita a
apenas perceber semelhanças entre a proposta estética de Lispector e aquela de Joyce ou Woolf,
mas analisa a funcionalidade que ela pode ter dentro do romance Perto do coração selvagem. Na
contramão do que Álvaro Lins coloca como incompletude, ele vê realização e afirma sobre a
tentativa da estreante: “Soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêem
mais do que sons ou sinais” (CANDIDO, 1985, p.102).
Desde 1961, quando escreve Tempos brasileiros, Massaud Moisés costuma incluir textos
de Clarice Lispector em suas observações. Nos parece que as suas primeiras análises soam
incongruentes quando sugerem que os contos de Lispector não se adaptam bem à estrutura
narrativa curta. Todavia, essa perspectiva ele próprio vai corrigir, ao considerar um outro
propósito na utilização das digressões pela autora, mais relacionadas às técnicas do fluxo da
consciência e do romance de tempo psicológico. Inicialmente, porém, ele refutava como falhas a
interrupção do lance dramático na autora, caindo no equívoco de conferir mais importância aos
fatos nas obras de uma escritora que não tinha a ação e a fabulação como uma de suas
preocupações maiores. Ele também aponta como problema em Lispector a insinuação, nos
mínimos pormenores, de cargas metafísicas e abstratas, que confeririam ao texto um ar fora da
realidade.
O próprio Massaud Moisés, posteriormente, consegue rever a questão, percebendo que
tais características são apropriadas nas narrativas que tratam da ação psicológica ou interior. A
consideração está espraiada em A criação literária (2003), em que ele faz observações
pertinentes sobre o uso do foco narrativo e do ponto de vista na autora, bem como reitera a
aproximação do texto clariciano com a poesia. Além disso, Moisés localiza algumas das
39
narrativas curtas de Clarice como contos de personagens e considera o uso do tempo-obsessão
como uma contribuição da autora para as letras brasileiras.
As observações do crítico sobre a “memória involuntária”, e como ela reaparece por
associações na situação presente de uma personagem, nos parecem importantes para a análise dos
contos que compõem o corpus do nosso trabalho. No entanto, torna-se incongruente em Massaud
Moisés a insistência em defender uma espécie de normatividade nos gêneros literários, o que
cega a compreensão para os avanços que a autora empreendeu na literatura de língua portuguesa.
Também não nos parece acertada a observação dele sobre a pluralidade dramática em Clarice.
Considerando que no romance existe menor quantidade de planos ou núcleos dramáticos, ele não
percebe que isso não está associado a uma simplificação, podendo haver grande indefinição e
mistura nesses planos utilizados. Olga de Sá refuta diversos pontos lançados por Massaud
Moisés, que também nos parecem inaceitáveis. No texto “Clarice Lispector: visão e cosmovisão”,
Moisés chega a afirmar que as personagens de Laços de família e Legião estrangeira são
destituídas de imaginação ou vida interior profunda. O crítico vê as personagens como inseridas
na “banalidade”, mas não percebe a função que isso pode exercer na proposição da narrativa, não
compreendendo a falha na comunicação entre as personagens e nem a pertinência que a presença
de bichos e animais possui nesses contos. Ele afirma ainda que a ficção de Clarice Lispector não
interpreta o mundo, sendo esse um dos pontos a que pretendemos voltar no decorrer de nosso
trabalho, já que tais afirmações parecem destoar com nossa leitura das narrativas analisadas.
Luís Costa Lima é outro crítico que parece não compreender que a preocupação de
Lispector não está no relatar dos fatos. No verbete sobre a autora que fez para A literatura no
Brasil, organizado por Afrânio Coutinho (1986), Costa Lima acusa Clarice de esmagar a matéria
novelesca e de diminuir a realidade ao subjetivo. É como se Luís Costa Lima cobrasse uma
racionalidade da vida e daí critica Clarice por representar uma desarticulação com o real. Ele
40
enumera os efeitos disso: a hipertrofia da realidade, o desvario abstratizante e a atração
irracionalista. Embora as considerações sejam feitas utilizando detalhadamente Perto do coração
selvagem, o crítico espraia esses comentários por O lustre, A cidade sitiada e A maçã no escuro,
reconhecendo alterações apenas em Laços de família. “A vantagem da narrativa curta para a
autora está em que ela evita as tiradas filosofantes, reduz o vício da intelectualização e a
subjetivação da realidade” (COSTA LIMA, 1986, p. 549). Os contos dela são, de fato, o gênero
onde a realidade se apresenta de modo mais objetivo, no entanto, não vemos razão aqui para
constituir essa hierarquização qualitativa que o crítico insinua.
O autor traz análises mais específicas sobre os contos “Amor” e “A imitação da rosa”. Por
ora, nos parece necessário refutar as observações de Costa Lima, que percebe um “engano da
linguagem” em Clarice Lispector. O crítico é que parece ter se enganado ao enxergar como falha
a maior intimização das personagens, sem se preocupar em compreender porque ela se dá.
Segundo ele, a autora reduziu a luta contra a opacidade e a estaticidade do mundo “à dimensão
privada”, onde as personagens não conseguem encontrar saídas para resolver esse embate eumundo. “Em síntese, a tensão entre o status quo (opacidade) e o momento de ruptura em que se
restabelece o contato sempre perdido com o vital termina por não passar de uma promessa de
grande alcance expressional, que não se realiza” (COSTA LIMA, p. 536). Ao invés de tentar
compreender esse fracasso das personagens, o crítico parece atribuir a falha do projeto das
personagens à autora. Ele insiste em cobrar fatos, quando a ação não era o foco de Clarice
Lispector. E o mais relevante para nossa proposta: considera defeitos o que vemos ser uma
dimensão enriquecedora do trabalho da autora. “Os atos sociais se encolhem à mera dimensão
individual” (p. 544). Ao longo dessa dissertação, pretendemos problematizar essas afirmações.
Benedito Nunes, com instrumental teórico adequado, é quem vai explicar muito do que os
outros críticos apenas apontavam, até negativamente, como a presença do existencialismo em
41
obras de Clarice. A partir de 1966, ele desenvolve vários estudos sobre a autora. Embora situando
a análise com referências teóricas de seu campo de atuação acadêmica, a filosofia, suas
observações sobre os meandros da criação literária de Lispector são bem mais pertinentes do que
outras lançadas por especialistas da área. Muitas vezes, partindo de comparações com os textos
de Jean-Paul Sartre, Benedito Nunes consegue trazer elementos importantes para a análise da
obra clariciana.
Por ora, basta salientar que seu estudo opera competentemente com a esfera filosófica
presente no texto clariciano, apurando a nossa percepção sobre como os conflitos de identidade
vividos pelas personagens aparecem na obra da autora. Mesmo a temática do silenciamento,
abordado por outros críticos, surge de modo coerente na interpretação de Benedito Nunes, que vê
a falha da comunicação na obra de Clarice como uma reação do indivíduo que anseia por
mudanças e que não quer se conformar com a lógica que reina ao seu redor. “A inquietação que
neles tortura os indivíduos é o desejo de ser, completa e autenticamente – o desejo de superar a
aparência, conquistando algo assim como um estado definitivo, realização das possibilidades em
nós latentes” (NUNES, 1976, p.132).
Em O drama da linguagem, Benedito Nunes (1995) observa que o diálogo em Lispector,
ao invés de unir, pode separar, e que o monólogo, muitas vezes, evidencia a ruptura com a
sociedade. Segundo ele, na obra da autora é possível encontrar o monólogo-a-dois ou diálogos-aum, quando a subjetividade excessiva leva ao extremo da consciência de si. Muitas das
personagens (entre elas, vinculamos as três protagonistas dos contos) desenvolveriam uma
espécie de autocomentário lírico, quando a voz narrativa funde-se com a intimidade delas. Para o
estudioso, as obras de Clarice se constroem conforme a relação que as personagens estabelecem
com o cotidiano: há aquelas, como é o caso de G.H., que se afastam dele porque a experiência as
42
conduziu para o cósmico e o orgânico, enquanto outras buscam reconstruir laços com a realidade
circundante, o que ocorre com Lóri.
Analisando os contos de Clarice, o crítico conclui que eles “seguem o mesmo eixo
mimético dos romances, assente na consciência individual como limiar originário do
relacionamento entre o sujeito narrador e a realidade” (p.83). Nos contos, a história, como tal,
episódio único que serve de núcleo à narrativa, é um momento de tensão conflitiva. É um
momento de crise interior, e nele o confronto pode ser trabalhado pela potência mágica do olhar
ou pelo descortínio contemplativo silencioso, que interceptam o circuito verbal, situações estas
balanceadas pela voz narrativa, muitas vezes através de uma prática meditativa. Voltaremos a
essas considerações, no que tange diretamente aos três contos.
Embora tenha iniciado a sua análise centrado no aspecto existencialista da obra de
Clarice, Benedito Nunes afirma que essa condição é até suplantada na autora pela perspectiva
mística. Ele também tece considerações sobre o papel que as amarras cotidianas desempenham
no processo de alienação das personagens. “As relações práticas parecem consolidar e agravar, no
mundo de Clarice Lispector, uma alienação sem remédio enraizada na própria existência
individual” (NUNES, 1995, p. 101). Conforme o estudioso, é para escapar de tudo isso que as
personagens perseguem o autêntico de si próprias, embora não possam encontrá-lo. A forma de
Clarice lidar com essa divisão interna que atormenta o indivíduo “é uma escritura conflitiva,
autodilacerada, que problematiza, ao fazer-se e ao compreender-se, as relações entre linguagem e
realidade” (p.145). Buscaremos compreender em nossa análise se essa forma harmoniza-se com o
conteúdo, em um diálogo entre texto e contexto.
Amariles Guimarães Hill, em “A experiência de existir narrando”, aponta que as
personagens claricianas aparecem envoltas em um processo de transformação e que tanto o herói
quanto a voz narrativa estão desde o princípio entregues à possibilidade de uma coisa poder ser
43
outra, tomados por símbolos. Hill enxerga na construção dessa mudança, através da busca por um
eu, o veio norteador das narrativas de Clarice Lispector: “O outro – lado oposto do ser algo – é
que orienta o discurso clariceano para a figura do paradoxo. Isso autoriza o estudo a ver na obra
duas fases. Podemos chamá-las heroização e a deseroização” (HILL, 1976, 143, grifo no
original).
A heroização seria o primeiro momento da personagem que “corresponde à investigação
de um existente em busca do seu lugar no mundo” (HILL, 1976, 144). Nessa fase de heroização,
a personagem só consegue alcançar um mundo organizado, que acredita perfeito e onde não se
admite nenhuma interferência. “Na primeira etapa o herói é dotado de um orgulho e uma
agressividade absolutamente indispensáveis à sua instalação no mundo. O orgulho é seu ponto de
apoio para a construção de um espaço habitável” (HILL, 1976, 144). Na segunda fase, da
deseroização, há o processo de identificação com o mundo ao redor, o reconhecimento de seu
próprio tamanho nesse mundo e de suas limitações. Nessa etapa, a necessidade é outra: voltar
para o interior, buscando o seu íntimo e não só a máscara física que exibia. Para Hill, esses
processos de heroização e deseroização, corresponderiam a fases na trajetória literária de Clarice.
A sua crítica também sugere que as personagens de Clarice representam símbolos e remontam a
lendas. Assim, Hill vê A maçã no escuro como a retomada do tema bíblico do Paraíso, mais
relacionada à fase de heroização, bem como Perto do coração selvagem, e A paixão segundo
G.H. é a que contém a busca intensa pela deseroização, que também é vista na readaptação do
mito da sereia Loreley/Lóri em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Porém, vemos que os
processos de heroização e deseroização também podem estar presentes na estrutura interna de
cada texto. Afinal, são comuns as narrativas claricianas iniciarem com as personagens seguras de
si ou aparentemente iludidas sobre a sua própria condição como indivíduos, o que corresponderia
44
a uma fase de heroização. Porém, no decorrer do texto, essa situação se subverte, fazendo esses
indivíduos se dilacerarem em questionamentos sobre si mesmo, em uma espécie de deseroização.
Olga de Sá, que fez a retomada da fortuna crítica, indispensável ao nosso trabalho, é uma
das estudiosas que se deteve nas formulações da estrutura interna da obra de Lispector. A
estudiosa vê essa obra como auto-reflexiva, pois a linguagem volta-se para si mesma e constitui
um questionamento existencial, não se tornando mero veículo para proposições parafilosóficas.
Assim como Massaud Moisés, Olga de Sá também analisa a função do tempo na narrativa
clariciana, para compreender o reaparecimento da memória nas personagens, bem como as
digressões. Considerando o trabalho de Hans Meyerhoff e de Sigmund Freud, Olga de Sá
demonstra que o passado e o sonho podem reaparecer como símbolos. Como considera o estilo
de Lispector inserido em um pólo metafórico da linguagem, Olga de Sá observa
competentemente o lado formal da autora, vendo as funções que desempenham oxímoros,
antíteses e paradoxos nessa obra em que o texto vai buscando a si mesmo, em uma espécie de
aproximação, pois que é voltado para as analogias, concretizadas em muitas comparações. A
análise de Olga de Sá percebe, ainda, a presença dos quatro elementos (água, terra, ar e fogo) na
obra de Clarice “constituídos em eixos privilegiados de uma escritura metafórico-metafísica”
(2000, p.217).
Para nosso trabalho, é proveitosa a análise de Olga de Sá sobre os significados em
Clarice, pois ela deixa claro que a inventividade da autora não está no nível dos significantes,
como Guimarães Rosa, por exemplo. “Clarice tem percepção aguda dos clichês morais e, pelo
desgaste deles, consegue uma desautomatização do leitor, provocada pelo estranhamento de
certas imagens e colocações: a bondade faz vomitar, a oração é uma espécie de anestesia, a
maldade aproxima-se da plenitude da vida” (SÁ, 2000, p. 132). Outra abordagem incisiva de
Olga de Sá é sobre a epifania, que considera não uma técnica, tema ou motivo na obra da autora,
45
mas sim um procedimento. Olga de Sá se debruça em comparações de Clarice com James Joyce
para explicar que a epifania é um processo fundamental na autora, enquanto estiver integrado à
sua visão de mundo (2000, p.134). A crítica também observa de modo pertinente a função do
silêncio na obra de Lispector. Essas afirmações nós pretendemos retomar, porque explicam muito
das situações em que as personagens Elvira, Laura e Ana se encontram.
O que nos parece questionável nas considerações de Sá é o fato de ela perceber muitos
conflitos como sendo desvinculados do contexto, desconsiderando ecos que a realidade
circundante têm sobre a obra de Lispector. Isso se deve ao fato de sua análise apontar em Clarice
uma presença do metafísico, que é inegável, mas que não é a única em jogo. Sá aponta como
sendo metafórico-existencial a escritura de Lispector, abordagem satisfatória para as obras que
ela tomou como análise. Porém, deixando de lado os contos, percebemos que ela não se debruçou
sobre outras particularidades da obra de Clarice.
Abordagem fecunda sobre a obra de Clarice é desenvolvida por Lúcia Helena (1997) em
Nem musa, nem medusa e que nos parece mais condizente com as preocupações que também
temos ao ler o texto clariciano. Para ela, é impossível “não ler o tema da emergência do feminino
em Lispector” (1997, p.27). Helena se mostra ocupada em compreender como Lispector
“questiona noções herdadas de gender6, sujeito, escrita e história” (1997, p.23). Para Lúcia
Helena, Clarice Lispector toma “a figuração do feminino como mote insistente para investigar
não só a singular emergência da mulher na sociedade, marcada por enorme repressão, mas
principalmente para recolocar a questão da mulher e a da inscrição do sujeito na história” (1997,
p. 27). Ao observar que em Clarice há também personagens masculinos em um aprisionamento,
6
“Cabe informar, aqui, que a designação remete a gênero (masculino e feminino) não como referência ao
imediatamente sexual, biológico, ou natural, mas como uma relação cultural, social, prejudicada pela oposição dos
dois sexos biológicos” (HELENA, 1997, p.23). Achamos importante transcrever parte dessa nota da autora, embora
também tenhamos que revisitar esse conceito em nossa fundamentação teórica. Helena aproveita essa nota para
justificar a manutenção do termo gender em inglês, pois buscou evitar uma confusão com “gênero literário”.
46
“numa sociedade de bases patriarcais”, Helena identifica, assim, elementos para demonstrar a
ampliação da proposta estética de Lispector, vinculada a uma interpretação do sujeito fora da
lógica cartesiana, envolto no descentramento de si mesmo.
Ainda segundo Helena, Clarice discute formas de escrita da representação cultural, pois
seus textos tratam das relações de poder e de alteridade na sociedade, criticando o pensamento
maniqueísta e binário. No aspecto temático, Lúcia Helena vê semelhanças entre o percurso de
Clarice e de Walter Benjamim, pois ambos “perturbam a noção de individualidade como um todo
unificado e estável” (1997, p.24). No plano formal, a autora é comparada a Maria Gabriella
Llansol com as suas “cenas fulgor”, sendo que as alegorizações de Lispector são levadas em
conta, também. As indagações ou até mesmo a incapacidade de fazê-las são outros aspectos dos
textos observados na análise. Para Lúcia Helena, existe um material reprimido que obscurece o
mundo das personagens e é colocado em relevo durante o conflito com os papéis sociais que lhes
são reservados. “Lispector, registra, assim, nos lampejos de sua criação arguta, a luta de homens
e mulheres colhidos pela falta de correspondência entre a consciência e o sentido, entre os nossos
projetos e o mundo” (HELENA, 1997, p.37). Esse drama serviria para questionar os códigos
habituais. “Se, por um lado, o círculo vicioso da oposição de gender e dos binarismos próprios da
estrutura patriarcal não são destruídos, por outro eles são submetidos a um permanente processo
de corrosão” (HELENA, 1997, p.44). Algumas análises pormenorizadas da pesquisadora serão
retomadas adiante, pois dialogam mais diretamente com nossa proposta.
47
3. Fundamentação teórica: feminismo, gênero, identidade e vida privada
Em nosso estudo, que propõe uma análise da representação literária de mulheres ligadas
ao universo doméstico, se mostrou imprescindível a escolha da teoria e da crítica feministas para
abordar a questão. Como nosso olhar se detém justamente no caminho entre a sociedade e a
literatura, nos parece impossível fechar os olhos aos estudos sobre os textos escritos por mulheres
e/ou que tiveram como protagonistas sujeitos femininos. Esses estudos nos mostraram que essa
produção feminina serviu, muitas vezes, para interferir no cânone que, anteriormente, reduziu a
experiência literária apenas ao imaginário patriarcal. Não queremos aqui afirmar que todos os
textos escritos por mulheres teriam essa preocupação, afinal, muitos até serviram para reafirmar a
ideologia patriarcal. Tampouco afirmaríamos que os escritores-homens seriam incapazes de
produzir textos que contrariassem a ideologia patriarcal. Essas afirmações são freqüentes entre
aqueles que se recusam às leituras feministas ou do campo dos estudos de gênero. A análise
literária não se volta para as afirmações essencialistas, mas se detém no material que está em
mãos. Assim, esperamos demonstrar, com o auxílio dos estudos feministas e de gênero, que esses
três contos de Lispector contribuíram para discutir o imaginário patriarcal vigente à época de sua
produção. Afinal, a perspectiva do gênero busca justamente sair do essencialismo, falsamente
natural, de que determinada conduta seria apropriada para mulheres e outra, para homens. Dessa
forma, nossa análise sobre esses três contos da autora, analisando as protagonistas donas-de-casa,
irá se deter nos elementos apontados pela teoria e crítica feminista e de gênero. Para tanto, esse
capítulo aborda alguns desses conceitos.
48
Feminismos, feministas e estudos da mulher
Mapear a trajetória do feminismo é recuperar histórias de quando o termo feminista ainda
não entrara em voga, mas a luta pelos direitos das mulheres já fazia circular um saber e um
questionamento das práticas e dos valores dominantes. Hoje, um novo perfil da história, que se
volta também para o cotidiano, recuperou diversas trajetórias de mulheres que atuaram pelo fim
das desigualdades e, assim, foram construindo um imaginário sobre o feminino e possibilitando
as discussões acerca da representação dos papéis sociais. O que essa história mostra é que é
impossível desvincular a teoria e a crítica feministas (e/ou as pesquisas sobre mulheres) de uma
prática dos movimentos de mulheres, ainda que, hoje, se compreenda a abordagem diferenciada
entre o estudo e a mobilização política organizada.
Em relação aos marcos dessa trajetória dos estudos da mulher, podemos apontar os textos
de Mary Astele, “Some reflections upon marriage”, escrito em 1730, ou de Marie Olympe
Gouges que, em 1791, escreveu “Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne”, e ainda
o de Mary Wollstonecraft, que redigiu “Vindication of the rights of woman”, em 1792. Esse
último texto foi adaptado para a realidade nacional por Nísia Floresta Brasileira Augusta, em
1832, sob o título “Direitos das mulheres e injustiças dos homens”. O que essas reivindicações
têm em comum são o fato de representarem vozes de um grupo reprimido, no caso, as mulheres,
que busca alterar os valores e as mentalidades dominantes na sociedade, lutando, assim, contra as
desigualdades atreladas à diferença sexual. Dessa forma, antecipam o que o feminismo articula,
posteriormente: desestabilizar as hierarquizações da organização social e questionar
representações do sujeito feminino.
A própria produção literária de autoras européias do século XIX, como Georg Eliot e
George Sand (pseudônimos de Mary Ann Evan e de Amandine Aurore Lucile Dupin,
respectivamente), denuncia a situação de submissão das mulheres, assim como o primeiro
49
romance de uma brasileira: Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, de 1859. Todas se constituíam em
iniciativas para rediscussão das configurações dos papéis sociais, de forma concomitante com a
mobilização de grupos de mulheres em ligas, associações e federações que, inicialmente,
reivindicavam o direito feminino ao voto, mas, posteriormente, ampliaram a luta por outras
garantias de ocupação de espaços na sociedade. No Brasil, muitos jornais, panfletos e semanários
foram produzidos por mulheres que tornaram públicas suas idéias de independência, enquanto
outras lutavam por espaço nas colunas dos periódicos de maior circulação no país. Tal produção
textual era variada, abarcando desde textos que reforçavam perfis de mãe e esposa (garantindo,
assim, a permissão para adentrar os lares) até publicações que pregavam idéias revolucionárias,
como o anarquismo. Em quase todas, há reivindicação por respeito, pelo fim da violência e o
acesso à educação e à atuação social.
Paralelamente a esses artigos que ocupavam espaço na imprensa, foi se construindo uma
tradição da literatura produzida por mulheres. Como não é nossa intenção aqui fazer um trabalho
de resgate que, aliás, vem sendo bem desenvolvido por vária(o)s estudiosa(o)s, apenas indicamos
dois textos que colaboraram para nos dar a compreensão da trajetória literária feminina:
“Escritoras, escritas e escrituras”, de Norma Telles, e “A literatura feita por mulheres no Brasil”,
de Nádia Battella Gotlib, que inclusive aponta como primeiro romance feminino brasileiro
Aventuras de Diófanes, publicado em Portugal, em 1752, pela brasileira Tereza Margarida da
Silva e Orla, que foi para a Europa aos cinco anos e não mais voltou.
Da mesma forma que foi se constituindo uma literatura feita por mulheres e cuja temática
dizia respeito, inegavelmente, aos temas do universo feminino, foi se elaborando a metodologia
para interpretar esses textos, função essa desempenhada pela teoria e crítica feminista. Os estudos
feministas começam a se desenvolver concomitantemente às lutas pelos direitos civis, na
efervescência política e cultural dos anos 60 e 70, reforçando assim a relação entre pesquisa e
50
prática. Bem antes disso, podemos considerar os ensaios de Virginia Woolf como marcos na
discussão da literatura feminina, tendo a escritora inglesa respondido claramente às cobranças dos
críticos sobre a qualidade dos textos feitos por mulheres. Segundo Woolf, a escrita artística
precisa de liberdade e de condições materiais para florescer, dificuldades enfrentadas pelas
mulheres que estavam começando a trilhar o caminho no mercado de trabalho formal e tinham
seus discursos cerceados por todo um imaginário construído sobre elas, gerando expectativas com
base em valores patriarcais que limitavam a recepção desses escritos. Considerações de Woolf
sobre a mente andrógina de quem escreve, apesar de muito criticadas posteriormente pelas
feministas, já representavam um certo avanço sobre as discussões acerca do aspecto não-fixo dos
papéis sexuais. Os textos Um teto todo seu, Women and writing, “Professions for women” trazem
contribuições valiosas para a discussão, mas devem ser considerados no contexto da época, ou
seja, as primeiras duas décadas do século XX.
Simone de Beauvoir também contribuiu fundamentalmente com o feminismo, embora
muitas das suas considerações tenham sido combatidas pelas pesquisas feministas posteriores.
No entanto, seu livro O segundo sexo, publicado em 1949, tentando completar as lacunas que o
existencialismo deixou ao não considerar a influência do sexismo na formação dos indivíduos,
levou muitos a compreender que a cultura e as condições sociais são as responsáveis pela
configuração da identidade feminina ou masculina que os sujeitos irão desempenhar. Portanto, a
sua acepção famosa de que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher” foi um avanço para as
pesquisas sobre gênero de que iremos tratar logo adiante. Porém, o que não fica claro nas
considerações de Beauvoir é como se procede essa internalização dos valores culturais, pois as
concepções existencialistas sobre a liberdade do ser, que está aprisionado apenas pelo
desconhecimento, não avançam na compreensão dos sistemas que levaram a mulher à
subjugação, ao longo da história.
51
É esse processo de materialização dos valores culturais femininos e masculinos nos
sujeitos que vai ocupar as preocupações das pesquisas feministas posteriores, que buscam, ora na
psicanálise e seus conceitos sobre o imaginário e a falta, ora nas condições materiais da
existência, em uma perspectiva marxista-materialista, a chave para entendê-lo. O diálogo entre as
considerações de estudiosas dessa área (e aqui poderíamos citar Luce Irigaray, Kate Millet e Julia
Kristeva como representantes de perspectivas diferenciadas do discurso psicológico) vai
construindo formas de se entender como ocorreu a identificação da mulher com o outro, aquele
que excede um sistema de poder fincado nos valores do masculino. Trata-se aí de uma fase de
efervescência desses estudos, que prosseguem em uma linha crescente, no contexto das décadas
de 60, 70 e 80.
Esses estudos chegam até o Brasil, inicialmente em pequenos grupos de pesquisa, nos
anos 70, onde são interpretados sob a perspectiva nacional, até que se firmem no meio
acadêmico. É um trânsito feito, às vezes, em consonância e, por outras, em conflito, com as
práticas dos movimentos sociais de mulheres. Para entender como se deu esse trânsito em nosso
país, o livro Uma história do feminismo no Brasil, de Céli Regina Jardim Pinto (2003), é
elucidativo. Elisabeth Gross (1995) também é atenta a esse entrelaçamento que a perspectiva
feminista faz entre prática e teoria, como uma forma de intervir nos sistemas de poder, mesmo
dentro do campo de atuação acadêmico. Em sua indagação sobre o que é o feminismo latinoamericano, Gross afirma que a teoria feminista converte-se em uma “prática teórica”, já que
questiona a conceituação dicotômica da relação entre teoria e prática. Para uma compreensão dos
estudos feministas, por vezes contraditórios, tivemos o livro de Toril Moi (1991), Sexual/textual
politics, como diretriz, onde pudemos identificar as linhas nesse campo, graças a seu trabalho de
reconstituição histórica e analítica.
52
Existem três tipos de orientação na pesquisa feminista: o resgate e re-interpretação de
textos das escritoras precursoras, o qual já mencionamos; os estudos que buscam uma tipologia
da escrita feminina, se debruçando sobre mecanismos, técnicas e a simbologia presentes nessas
narrativas (que seguem a tradição francesa e sobre os quais trataremos mais adiante) e os
trabalhos sobre autoria e representação, que têm mais relação com as tendências anglo-saxãs. É
nessa linha que percebemos maior afinidade com nossa proposta, visto que o estudo das
representações ficcionais, isto é, as personagens, nos possibilita discutir o entrelaçamento entre
literatura e sociedade, nos fornecendo elementos para configurar um posicionamento dessas
autoras no contexto em que viviam.
Devido ao caráter interdisciplinar de nossa proposição, fazemos uso de textos da
sociologia, história, psicologia e filosofia, entre outras, que, certamente, colaboram para a
configuração de uma perspectiva feminista da literatura. Ao longo desses estudos, foram sendo
desenvolvidos os conceitos que iremos explicitar nesse capítulo.
O patriarcado
O primeiro conceito que utilizamos amplamente desde o início desse texto é o de
patriarcado. Na dissertação de mestrado de Liane Schneider (1995), está bem configurado o que
se compreende pela palavra patriarcado e a necessidade de considerar tal conceito na presente
pesquisa. “Um estudo que pretende examinar a construção da subjetividade feminina e os
problemas relacionados a sua representação tem de discutir as relações de poder implícitas nos
arranjos sociais” (SCHNEIDER, 1995, p. 13, tradução nossa)7. Segundo Schneider, o patriarcado
implicou, ao longo da história ocidental, em uma autoridade centralizada em uma figura
7
“A study that intends to examine the construction of female subjectivity and problems related to its representation
has to discuss the relations of power implicit in social arrangements” (SCHNEIDER, 1995, p.13, no original).
53
específica, cujo símbolo é o pai. Essa figura é vista como a responsável pela organização
econômica dos núcleos familiares, mas, em contrapartida, explora a força de trabalho dos outros
indivíduos que mantém. Esses indivíduos podem ser facilmente identificados com as crianças e
mulheres, embora, no início do sistema industrial, o patrão tenha desempenhado para os seus
empregados um papel semelhante. Devido à relação de dependência, que é, a princípio,
econômica, (mas que cria laços emocionais) permite-se a essa figura patriarcal interferir nas
escolhas dos demais membros que lhe são dependentes.
No campo da literatura feminina, é difícil fugir das relações entre experiência e ficção,
visto que as primeiras mulheres a se lançarem nas letras enfrentaram as barreiras criadas pela
sociedade patriarcal. Se nessa sociedade reinava o silenciamento dessas vozes, tentar incluir a sua
palavra no discurso significava uma atitude revolucionária, ainda que muitas mulheres não
quisessem ousar assumir esse estigma. Até mesmo nas representações de sujeitos femininos
entregues à lógica do patriarcado é possível identificar a dificuldade das mulheres em escapar
desse sistema. É o que aponta Schneider: “Um dos mais sérios desafios para as mulheres
escritoras é a construção de representações do sujeito feminino que sejam livres dos estreitos
muros impostos pela cultura patriarcal” (p. 20, tradução nossa)8. Segundo a pesquisadora,
representar o processo de significação das mulheres é, obviamente, uma ação política. Afinal, ao
inscreverem-se no discurso, as mulheres abriram a discussão de seu papel na sociedade. Além
disso, a presença de vozes outras dentro do discurso dominante colaborou para iniciar a
desestabilização do sistema patriarcal. Segundo Schneider, além de representações literárias, as
autoras expressavam suas subjetividades livres das distorções impostas pelo patriarcado e
8
“One of the most serious challenges for women writers is the construction of representations of the female subject
that are free from the narrow walls imposed by patriarchal culture” (SCHNEIDER, 1995, p. 20, no original).
54
questionavam as estruturas do sistema de poder estabelecido9. Acreditamos que nem sempre as
autoras conseguiriam expressar as subjetividades de modo livre, mas até a impossibilidade servia
para denunciar os limites a que as mulheres estavam submetidas no sistema patriarcal.
Estudos de gênero, questões de gênero
Essas últimas considerações já apontam para o termo gênero. Surgido para ampliar as
considerações da teoria e crítica feminista, o termo consegue extrapolar as significações do
masculino e feminino, em isolamento, colocando-os em diálogo e possibilitando as pesquisas
sobre homossexualidade e outras categorias de expressão da sexualidade. Em nossas leituras,
encontramos muitas definições de gênero e, embora esses confrontos teóricos gerem polêmica,
percebemos que, longe de serem antagônicas, essas diferentes explicações podem ser
complementares. O ponto pacífico é a origem do termo “gênero”, que parte da observação da
categoria gramatical de gênero. Ao perceber que o masculino, em praticamente todas as línguas,
funciona como a norma para as palavras e que o feminino é sempre flexionado, atentou-se para o
fato de que a linguagem já foi construída para que os valores masculinos fossem compreendidos
como universais, enquanto os femininos entrariam no discurso como uma distorção ou adaptação.
Essa formação do sistema lingüístico, que coloca o feminino como o que excede ao normal, é
semelhante ao papel tradicionalmente destinado ao sujeito feminino dentro da sociedade: o de ser
enxergado como o outro.
9
“Thus, women writers representing a female subject are also imagining and constructing a sphere that has always
been invisible to patriarchy. They are liberating representation and, at the same time, their subjectivities from the
distortions imposed by the patriarchal system, as well as questioning the very structures of an already established
power system. However, in order to be successful in this project, women writers have to deconstruct not only the
traditional representations of themselves but the whole gender system they were taught to see as ‘natural’”
(SCHNEIDER, 1995, p.21, grifo nosso).
55
Elaine Showalter (1989), em “The rise of gender”, retoma a trajetória desse termo, que
surge na década de 80, possibilitando uma ampliação das perspectivas feministas, visto que passa
a ser utilizado para estudos gays e da masculinidade, perpassando as áreas da antropologia,
história, filosofia, psicologia e as ciências naturais. A autora frisa a distinção entre sexo e gênero,
postulando que o gênero é o significado social, cultural e psicológico imposto sobre a identidade
biológica sexual. O gênero é, pois, diferente da sexualidade que tem relação com a orientação
sexual ou o comportamento, opção sexual do indivíduo (1990: p.1-2). Showalter mostra a
acepção diferente que o termo gênero pode assumir dependendo da linha teórica que utiliza essa
categoria de análise. Ela esclarece que para as críticas feministas de orientação psicanalítica,
(Lacaniana e Freudiana), que desenvolvem mais pesquisas sobre linguagem, o gênero é visto
como construído através da aquisição da linguagem, quando, ao adentrar no sistema simbólico,
regido pela Lei do Pai, o sujeito assume uma posição como “ele” ou “ela”, sendo, a partir de
então, “gendrado”. Tal concepção leva em conta considerações da psicanálise, como a inveja
feminina do falo e o medo da castração. Embora a Lei do Pai sirva para simbolizar o discurso
dominante, que tem sido marcadamente masculino, na maioria das grandes sociedades, o seu uso
corre o risco de essencializar, com base em pressupostos biológicos, um conflito que muda de
feição conforme o desenrolar histórico. Afinal, para as críticas feministas de orientação marxista,
que trabalham mais no campo da história, o gênero é construído diante de um sistema ideológico,
sendo o discurso cultural alterado de acordo com as evoluções sociais. Nessa perspectiva, a
questão de gênero torna-se uma discussão sobre a organização de poder, em um sentido mais
amplo, e não apenas sobre uma diferença entre os sexos.
Aliás, a vantagem que o termo gênero traz, em todas as correntes teóricas que o utilizam,
é o de impulsionar a discussão para além do terreno da diferença sexual. Afinal, a diferença não é
entendida mais como um paralelismo, pois foi inscrita sob hierarquizações, construindo
56
assimetrias entre os sujeitos. Além disso, o termo propicia um diálogo com as questões de classe,
raça e sexualidade, já que, desmascarar que o discurso dominante foi construído com base nos
valores masculinos tidos como universais, a discussão de gênero esfacelou a unidade desse
sujeito-modelo colocado como norma. Esse sujeito tido como universal era o homem, branco,
ocidental e de tradição judaico-cristã. Assim sendo, as discussões sobre gênero colaboram no
sentido de mostrar que não são apenas as mulheres as categorias excluídas do discurso
dominante.
Uma autora que defende esse ponto de vista, de coadunar a categoria de gênero com
outras como classe social, opção sexual e raça, é Judith Butler (1990), que discute a questão em
Gender trouble: feminism and the subversion of identity10. A autora problematiza a acepção que
relaciona gênero ao significado cultural do sexo biológico, para explicar como essa categoria de
gênero se inscreve nos sujeitos, não como uma opção ou uma forma de paralelismo entre sexo e
cultura. O interesse de Butler é reformular o pensamento sobre o gênero para abranger as relações
de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo que omite a produção da operação do
discurso:
Gênero não deve ser concebido meramente como a inscrição cultural do
significado sobre um sexo pré-dado (uma noção jurídica); gênero deve também
designar os vários aparatos de produção por onde esses sexos são estabilizados.
Assim sendo, gênero não está para a cultura assim como o sexo está para a
natureza; gênero é também o significado discursivo/cultural pelo qual a
“natureza sexuada”, ou o “o sexo natural”, é produzida e estabilizada como “prédiscursiva”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre o qual
a cultura age (BUTLER, 1990, p. 7, tradução nossa)11.
10
Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade.
“Gender ought not to be conceived merely as the cultural inscription of meaning on a pre-given sex (a juridical
conception); gender must also designate the very apparatus of production whereby the sexes themselves are
established. As a result, gender is not to culture as sex is to nature, gender is also the discursive/cultural means by
which ‘sexed nature’ or ‘a natural sex’ is produced and established as ‘pre-discursive’, prior to culture, a politically
neutral surface on which culture acts” (BUTLER, 1990, p.7, no original).
11
57
Para Butler, a possibilidade de escolha, adaptação ou formulação do gênero aparece
limitada pelos termos do discurso hegemônico pré-determinado em estruturas binárias que são
vistas como linguagem de racionalidade universal (p.9). É aí que se entende a noção jurídica que
a autora interpreta a partir de Michel Foucault, quando menciona os sistemas de poder que
regulam o sujeito, através da proibição, regulação, do controle e até proteção, fazendo-o
concordar a uma determinada forma de definição do gênero12. Justamente porque a associação
entre o indivíduo sexuado e o binômio masculino/feminino aparece limitada pelas escolhas dos
sistemas de poder é que Judith Butler considera o gênero, além de uma dimensão ou um fator de
análise, uma marca da diferença biológica, lingüística e cultural inscrita nos corpos. Dessa forma,
o gênero pode ser compreendido como uma significação que um corpo já sexualmente
diferenciado assume. Porém, essa significação só é tecida em uma relação de oposições, sendo
assim o gênero pode ser considerado uma relação ou uma rede de relações e não um atributo
pessoal: “Como um fenômeno mutável e contextual, gênero não denota um ser substantivo, mas
um ponto de convergência relativo entre formas de relações historicamente e culturalmente
específicas” (BUTLER, 1990, p.10, nossa tradução) 13.
Linda Nicholson, em “Interpretando o gênero”, aponta que o termo “tem suas raízes na
junção de duas idéias importantes do pensamento ocidental moderno: a da base material da
identidade e a da construção social do caráter humano” (2000, p.10). Dessa forma, a autora
problematiza os termos gênero e sexo, nos fazendo ver que até as concepções sobre a distinção
sexual e biológica não têm inscrições definitivas, posto que são as valorações das sociedades que
12
“Juridical notions of power appear to regulate political life in purely negative terms – that is, through the
limitation, prohibition, regulation, control and even ‘protection’ of individuals related to that political structure
through the contingent and retractable operation of choice (…) But the subjects related by such structures are, by
virtue of being subjected to them, formed, defined and reproduced in accordance with the requirements of those
structures” (BUTLER, 1990, p.2, no original).
13
“As a shifting and contextual phenomenon, gender does not denote a substantive being, but a relative point of
convergence among culturally and historically specific sets of relations” (BUTLER, 1990, p.10, no original).
58
constituem o nosso entendimento sobre o corpo. A contribuição da autora é importante na medida
em que afasta qualquer essencialização dos indivíduos, alertando que se observe o contexto
específico em que os sujeitos se expressam. O que mais gostaríamos de marcar na acepção dessa
autora é o entendimento de identidade como algo conjugado com as construções sociais, pois isso
avança na discussão do próximo termo.
Identidade e identidades
Já falamos o quanto essa concepção do sujeito universal, falsamente neutro, passou a ser
minada pelos estudos feministas; na verdade, não só por eles, mas também por uma nova
configuração de história que analisa as experiências dos grupos oprimidos, bem como pelas
pesquisas pós-estruturalistas, de Jacques Derrida e Roland Barthes, com as quais muitas
perspectivas do feminismo tecem diálogos. Também Michel Foucault (1995) demonstra como o
sujeito contemporâneo está distante da perspectiva logocêntrica formulada por René Descartes na
frase “penso, logo existo”. Michel Foucault, ao analisar as instâncias de poder que oprimem o
indivíduo, consegue evidenciar que até nosso pensamento tende a ser formulado pelas ideologias
mistificadoras. Sendo assim, ele percebe a identidade como um processo construído em meio a
confrontações de toda a ordem, com representações contraditórias existentes na sociedade, sendo
que algumas se impõem para formar uma ilusão de unidade do sujeito. No entanto, Foucault não
apresenta o sujeito como uma marionete ao bel prazer das instâncias de poder, visto que existem
resistências aos procedimentos de formulação de uma identidade pré-determinada. Essas
considerações estão presentes ao longo de toda a obra de Michel Foucault, estando especialmente
bem sintetizadas no texto “O sujeito e o poder”. Aí o estudioso aborda o papel das condutas e dos
instrumentos que fazem os sujeitos se submeterem aos valores e comportamentos defendidos
pelas instâncias de poder, retratando, também, as formas de confronto a esse exercício do poder.
59
Esses são processos importantíssimos para nossa análise dos conflitos vivenciados pelas
personagens femininas de nosso corpus, que aparecem em confronto com um ideal de formulação
da identidade.
São essas resistências, fugas, reações e conflitos que expõem o caráter multifacetado de
um indivíduo e que vão levar Stuart Hall a falar no processo de descentramento por que passa o
sujeito nesse período histórico. Em “Nascimento e morte do sujeito moderno”, Stuart Hall (2001)
historiciza os marcos do esfacelamento da ilusão de uma unidade do sujeito, e que permitem falar
a partir de uma perspectiva pós-moderna. O feminismo é um desses marcos, pois questionou
acepções que asseguravam a falsa unidade do sujeito pretensamente neutro. Ao problematizar o
privado e o público e tratar da formação de uma identidade masculina ou feminina, o feminismo
estava movimentando as tensões existentes nessa falsa unidade. Em outro texto, “Identidade e
diferença”, Hall (2000) explicita como o conceito de identidade é estratégico e posicional, e não
essencialista. Porém, compreender esse processo não é nada pacífico para o sujeito e, sim, um
processo bastante conflituoso. Afinal, segundo Hall, nós ainda parecemos acreditar que as
identidades têm uma origem com a qual temos relação, quase de uma forma substancial, sem
explicações. Hall explica que essa crença em uma essência de identidade vem do imaginário e do
simbólico com o qual lidamos, sem perceber que eles são construídos também conforme as
realidades históricas, sociais e culturais específicas:
As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado
histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas
têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da
linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo
no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos”
ou “de onde viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos
tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta
a forma como nós podemos representar a nós próprios”. (HALL, 2000, p.108109).
60
É assim que uma imagem de mulher é construída ao longo da história e os sujeitos
femininos se sentem partilhando desse imaginário. No entanto, essa partilha é feita à custa de
silenciamentos das contradições internas. Segundo Hall, as identidades são construídas através da
articulação do sujeito ao fluxo do discurso e do esquecimento de que elas são posições
temporárias, passíveis de serem transformadas. Porém, a transformação é limitada pelas
modalidades disciplinares e regras. É esse conflito que vemos ocorrer com as três personagens
que analisamos que buscam sair dos limites construídos para suas identidades.
Segundo Nelly Richard (2002), o processo de construção de uma identidade é ainda mais
conflituoso para os sujeitos femininos, fortalecendo uma contradição interna “porque a relação da
mulher parte de uma inadequação básica, de se sentir estrangeira ao pacto de adesão e coesão
sociais, que sela a auto-identidade, através do consenso sociomasculino” (p.138). Afinal, o
imaginário patriarcal posicionou o feminino à margem das configurações da identidade social,
pois, conforme lembra Nelly Richard, a mulher foi sempre vista como a falta ou o excesso nos
limites da categorização cultural. São essas fronteiras que Nelly Richard aponta como necessárias
de serem enfrentadas, através de práticas contestatórias, por textos que problematizem esses
papéis desempenhados pelos indivíduos no sistema sócio-cultural.
A formação da vida privada
Para compreender o que angustiava essas donas-de-casa de Clarice, encarceradas no lar e
divagando na imaginação, é fundamental uma abordagem do universo doméstico, enfocando as
mudanças por que passou a estrutura familiar no século XX. Já que, embora a ideologia patriarcal
queira naturalizar a função da mulher na estrutura familiar, os estudos comprovem que a família,
como entendemos hoje, é também uma construção histórica.
61
O texto “Lição de sociologia”, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, é bastante
esclarecedor sobre essa ilusão de um modelo de família eternizado. Os autores também destacam
o papel que a família tem de controlar os institutos do indivíduo, fazendo-os reconhecerem a
autoridade. Na visão desses autores, a família foi fundamental para formar uma consciência de
ética do trabalho, que incute nos sujeitos a obrigatoriedade de servirem a outros, mesmo após a
ruptura com o modelo de servidão encontrado no feudalismo. Assim, os autores vêem que a
família desenvolve modelos de relacionamento entre seus membros em função do sistema social
externo que determina papéis específicos para esses indivíduos:
Historicamente, a família aparece inicialmente como uma relação espontâneonatural, que vai posteriormente se diferenciando até chegar à figura moderna da
monogamia, criando – em virtude desse processo de diferenciação – uma esfera
separada, a esfera das relações privadas. Essa última se apresenta à consciência
ingênua como uma ilha em meio ao fluxo da dinâmica social, resíduo do
idealizado estado de natureza. Na verdade, a família não apenas depende da
realidade social em suas sucessivas concretizações como também é socialmente
mediatizada até em suas estruturas mais íntimas (ADORNO e HORKHEIMER,
1981, p.213).
Em “A história da família, da propriedade privada e do Estado”, Friederich Engels já
denunciava que o casamento monogâmico, uma das formações culturais que distingue a
sociedade ocidental da oriental, não surge como uma “reconciliação entre o homem e a mulher, e
menos ainda como a forma mais elevada de família” posto que aparece “sob a forma da sujeição
de um sexo ao outro” (1981, p.78). Embora, o marxista afirme que a monogamia é que vai
proclamar um conflito entre os sexos desconhecido na história, o que não tem comprovação,
posto que mesmo na poligamia a situação da mulher já é inferior, seu texto é importante porque
já aponta a diferenciação de função entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos como
a primeira divisão de trabalho e que instaura um conflito, mencionado por ele como o
antagonismo de classe original. Ele destaca que esse modelo chega ao seu auge na formação da
sociedade burguesa e é nesse período que nos deteremos.
62
Somente a partir de uma maior democratização do acesso à moradia digna, com espaço
suficiente para cada membro da família, compartimentação dos cômodos por atividades e acesso
à higiene, ao contrário da casa-aglomerado-promíscuo, é que se pode falar em vida privada,
dando lugar à individualidade. A competente coleção História da vida privada nos mostra que
essas transformações no universo doméstico e nas próprias relações familiares foram ocorrendo
após a superação da fase mais cruel da Revolução Industrial, a partir da conquista de direitos
trabalhistas e da tomada de responsabilidades sociais por parte do Estado. Era a superação de um
modo de vida rural e coletivo por novos paradigmas que colocam a individualidade e a formação
das cidades como processos irreversíveis. Antes, era o espaço em que nem as intimidades podiam
ser ocultadas e reconhecidas como tal, posto que as famílias eram numerosas e dependentes dos
patrões até sob um ponto de vista moral, já que a separação entre o lar e o trabalho também foi
uma conquista tardia. A casa, com a possibilidade de escolha entre os espaços internos, leva a
uma distinção marcada entre a vida profissional, externa, o lazer coletivo, e a vida familiar,
privada, onde se desenvolve a individualidade.
Apesar das transformações advindas com a instauração da família nuclear e a conquista de
uma individualidade maior nos lares, as relações continuavam a ser regidas pela ideologia
patriarcal. O marido era o chefe da família, a mulher casada precisaria ter a sua autorização por
escrito para abrir uma conta no banco ou para administrar seus próprios bens. Era ele quem
exercia o pátrio poder. Já no espaço privado do lar o poder era “efetivamente” exercido pela
mulher. Embora o homem exercesse externamente o papel de chefe da família, era a esposa quem
de fato dava as ordens na administração da casa. Feministas alegam que esse era um poder fraco
porque o espaço externo, a política, a “representação” familiar, as transações importantes
ficariam sempre a cargo do homem. Mas, na medida em que o sucesso na vida familiar era o que
importava, pois o indivíduo valia pela família que tinha, nessa época de valores domésticos
63
centrais, vemos que esse poder designado às mulheres não era tão fraco assim, mas decisivo.
Avalia-se que os homens refugiavam-se em bares justamente pela sensação de que o território da
casa pertencia à mulher. Também por isso os homens buscariam espaços contíguos a casa, como
a garagem e a oficina para terem sua própria organização. A conquista da vida privada passaria,
assim, por uma divisão dos poderes e territórios domésticos entre o homem e a mulher.
Há todo um questionamento de valoração aí, pois trata-se, sem dúvida, de poder, em
ambas as situações, externamente para a sociedade e internamente no recôndito familiar, contudo,
é preciso encarar que esses poderes são vistos de forma diferente. O poder privado não é o que
despertava a ambição. Só mais recentemente, com valorização de outras formas de saberes, o que
é tão bem colocado pela micro-história do cotidiano, é que o poder das mulheres no lar passa a
ser reconhecido como de suma importância para o resto da sociedade. Até então, tratava-se tão
somente de um enaltecimento moral, evocado pela idealização da figura da mãe, principalmente,
na mentalidade religiosa, longe de estimular uma valorização da auto-estima. Com o trabalho
regular fora de casa, a sujeição feminina em casa ficou evidente e o próprio casamento é
desmascarado como contrato injusto, como analisa muito criticamente C. Delphy:
O casamento é um modo de produção doméstico que se caracteriza pela extorsão
de um trabalho gratuito de uma categoria da população, as esposas. O contrato
de casamento constitui uma forma particular de contrato de trabalho, não
explicitado como tal, pelo qual o marido se apropria da força de trabalho de sua
esposa (DELPHY14, 1994, p.300, apud ARIÉS).
A própria figura da esposa é algo que se modifica ao longo da história para atender ao
interesse do patriarcado. Muitos estudos se detêm nesse processo de formação de uma
mentalidade social que contivesse uma idéia da mulher como naturalmente submissa à ordem,
dedicada unicamente ao marido e aos filhos e para quem o trabalho fora do lar fosse visto como
14
C. Delphy. “Mariage et divorce: une impasse à doublé face” In: Les temps modernes. Nº 333-334. Paris: Des
femmes, 1974. p.1815.
64
incompatível15. Esse disciplinamento da mulher vai agir justamente após o sucesso da ocupação
dos postos de trabalho no período das duas Grandes Guerras. Para o retorno dos homens a essas
ocupações, entra em cena a grande propaganda de configuração da “esposa-dona-de-casa-mãede-família” como a estudiosa Margareth Rago destacou em seu livro Do cabaré ao lar. A obra é
importante porque analisa esse processo no panorama brasileiro das primeiras décadas do século
XX, mostrando, assim, como se constituiu o quadro retratado pela autora Lispector em suas
personagens: “À mulher cabia, agora, atentar para os mínimos detalhes da vida cotidiana de cada
um dos membros da família, vigiar seus horários, estar a par de todos os pequenos fatos do dia-adia, prevenir a emergência de qualquer sinal da doença ou do desvio” (RAGO, 1997, p.62).
Rago se detém nas análises sobre a classe operária em formação no Brasil, mas mostranos o quanto a propaganda desse ideal de mulher, que tem uma origem burguesa, conseguiu se
espalhar por outras classes sociais do país. A pesquisadora destaca ainda a moral dominante que
impregna as mulheres com um sentimento de culpa quando pensam em si mesmas ou na busca de
uma realização fora do lar, o que detectamos nas personagens claricianas. Rago ressalta que
mesmo a mudança dos costumes, com o crescimento das cidades e a entrada da força de trabalho
feminina no mundo urbano, não consegue apagar antigas crenças incutidas nas mulheres: “Ao
contrário, quanto mais ela escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade
burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do
abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho”
(RAGO, 1997, p.63). A depreciação da mulher e o enaltecimento da abnegação, que encontramos
nas protagonistas dos contos, é algo também analisado pela pesquisadora:
Certamente a construção de um modelo de mulher simbolizado pela mãe
devotada e inteira sacrifício, implicou sua completa desvalorização profissional,
política e intelectual. Esta desvalorização é imensa porque parte do pressuposto
15
O livro Marilyn Yalom, História da esposa, faz uma boa análise historiográfica da mudança dessa “categoria”.
65
de que a mulher em si não é nada, de que deve esquecer-se deliberadamente de
si mesma e realizar-se através dos êxitos dos filhos e do marido (RAGO, 1997,
p.65).
Acreditamos que Clarice Lispector, através dessas narrativas que selecionamos para nosso
corpus, desconstrói e questiona formas de organização social que foram constituídas com base
nos princípios de gênero. Principalmente mediante a ironia, a autora exibia as construções sociais
forjadas no sistema de gênero, fazendo as personagens questionarem-se sobre suas identidades.
Elas não são heroínas que, de um momento para o outro, rompem com esses limites; ao contrário,
mostram como as engrenagens do sistema patriarcal podem ser difíceis de romper. Com
verossimilhança, o questionamento das personagens só aflora naquelas situações que interferem
no cotidiano mecanizado, desconstruindo a lógica da rotina, através da epifania. Esse
questionamento do sujeito feminino se insere na literatura contemporânea que expressa as
angústias dos indivíduos em relação aos papéis sociais que desempenham. Assim, Clarice não se
restringe a reproduzir representações femininas ou masculinas, mas traz o conflito de identidade
para dentro da arena cultural. Pretendemos voltar a essas considerações, ao longo da análise, para
demonstrar como a autora procede nesse caminho. Por ora, nossa intenção foi destacar os
conceitos que serão fundamentais para a compreensão do nosso corpus.
66
4. “A fuga” de Elvira: livre no pensamento, mas presa na inação
“Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou procurar um
lugar onde pôr os pés...” (LISPECTOR, 1999e, p. 73)16. A frase referente a Elvira, protagonista
do conto “A fuga”, revela a preocupação principal das personagens de Clarice Lispector: a
sensação de não-pertencimento e inadequação. A narrativa, escrita em 1941, mas que, como
outros escritos iniciais da autora, só foi publicada postumamente, revela que desde o início de sua
carreira literária, Clarice Lispector enfocava, através da angústia de suas personagens, as raízes
de uma sociedade patriarcal. Tereza Montero e Lícia Manzo, organizadoras da recente coletânea
Outros escritos, que recolhe material clariciano inédito, inclusive contos da década de 40, já
destacavam que “é possível observar em cada um deles a construção de personagens femininas
que anseiam por liberdade e autonomia, num mundo ainda predominantemente criado por e para
os homens” (2005, p.10).
Analisando também os contos claricianos, Maria Lúcia Rocha-Coutinho (1994) destaca
que, no Brasil, poucos autores souberam captar a problemática feminina de modo tão
questionador como a autora, ainda mais fazendo “oposição aos efeitos do poder e às
representações mistificadas impostas à mulher” (1994, p.84). Rocha Coutinho ressalta que a
condição da mulher é um dos temas centrais da autora. Dessa forma, vemos que a escritura de
Clarice estabelece, sim, laços entre o social e a literatura, expressando preocupações que vão
marcar a escrita dita feminina.
16
Doravante, citaremos apenas o número da página em parênteses quando se tratar do conto “A fuga”, objeto dessa
análise, já que as referências são todas da mesma edição.
67
Na análise desse conto, percebemos que assim como as protagonistas claricianas que não
conseguem se mover dentro de uma estrutura patriarcal, que lhes tolhe os movimentos e sufoca
até os desejos, também as bases teóricas tradicionais direcionadas à análise de personagens
limitam a compreensão de narrativas como a de Lispector, que são desestabilizadoras de um
pensamento hegemônico que coloca os padrões masculinos como sendo os únicos capazes de
expressar a civilização humana. É por essas razões que nos voltamos, ao longo dessa análise, para
teóricos consagrados como Georg Lukács que, sem dúvida, trouxeram contribuições enormes
para a compreensão das personagens, mas que podem se mostrar insuficientes para compreender
alguns aspectos de textos literários como o Lispector, que externalizam conflitos calcados nas
relações de gênero. Aspectos como a inação das personagens, apontada pelo teórico Theodor
Adorno, pareceram determinantes para nossa análise desse conto. Contudo, percebemos que falta
um esclarecimento maior acerca das motivações para essa imobilidade atrelada à protagonista
Elvira, já que as relações de gênero não são consideradas em enfoques teóricos mais tradicionais.
Portanto, é a teoria feminista que nos dá elementos para compreender personagens como
Elvira, que externa as dificuldades de reagir à configuração patriarcal de um papel feminino, na
sociedade brasileira da primeira metade do século XX. Nos propusemos a observar o que Toril
Moi (1991) aborda em Sexual/textual politics sobre a necessidade de se estudar os componentes
de construção do texto, não só a partir da situação pessoal do autor e de suas intenções, mas sim
dos conflitos e contradições que envolvem narrativas, calcadas nas influências ideológicas,
econômicas, sociais e políticas (Cf p.94) de uma dita época. A nosso ver, “A fuga” é uma
narrativa que expressa uma determinada fase enfrentada pelas mulheres no Brasil, em que as
tentativas de escapar a uma situação insatisfatória quanto às relações de gênero só podiam ser
vivenciadas no nível da ilusão. Toril Moi aponta que a perspectiva feminista, estudando as
construções históricas das categorias de gênero, pode influir na transformação das categorias de
68
grupos oprimidos (Cf 1991, p.95). Acreditamos que a própria narrativa literária tem esse poder e
o que pretendemos destacar nessa análise é que Lispector foi uma autora capaz de expressar uma
determinada situação social das mulheres brasileiras que, vista com o distanciamento histórico,
demonstra que ela interferia no modo de representação hegemônica da literatura brasileira, já que
traçava preocupações em relação à condição feminina. O mais marcante é que a autora fez tudo
isso sem deixar de lado a preocupação estética, visto que sua obra utilizou-se para tanto das
inovações nas técnicas literárias, desafiando ainda hoje a crítica que se debruça sobre seus
escritos. Vejamos como o conto “A fuga” exemplifica essa situação.
Uma fuga para lugar nenhum
Resumindo a trajetória vacilante de Elvira, podemos dizer que o conto trata de apenas um
dia na vida da protagonista, que poderia ser igual a tantos outros, salvo sua disposição de torná-lo
marco de uma nova etapa. Elvira é a mulher que rasga as roupas em meio a uma chuva que cai
torrencialmente, enquanto estava se preparando para prosseguir a repetida rotina: ler um livro à
janela, como fazia todas as tardes. Vestindo-se rapidamente e juntando o dinheiro que encontra
em casa, ela parte para a rua. O desejo inicial é mesmo de fuga, mas o plano acaba frustrado e
Elvira retorna à casa e ao marido.
O conto inicia com a personagem perambulando pelas ruas, a voz narrativa revelando que
Elvira sentira medo quando começou a escurecer. O mundo não parecia nada acolhedor, pois “a
chuva caía sem tréguas” e ao mesmo tempo “passavam pessoas de guarda-chuva, impermeável,
muito apressadas, os rostos cansados” (p.71). Mesmo assim, o cenário pouco confortável não
parece intimidar a personagem, pois a voz narrativa diz que Elvira “não sentia a chuva e não se
importava com o frio” (p.71). Na verdade, não é o cenário externo que parece problemático para
69
Elvira e, sim, suas preocupações interiores, já que ela sentia “só mesmo um pouco de medo,
porque ainda não resolvera o caminho a tomar” (p.71). Assim, Elvira escolhe um banco de praça
como ponto de repouso e espaço para reflexão. “Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e
ela prosseguia na marcha” (p.71), demonstrando que a sua pausa não seria tampouco tranqüila.
O caminhar a esmo de Elvira representa a resposta para a falta de direção em sua vida. A
personagem surge como atormentada pelo que vai acontecer “agora” e isso revela o quanto ela
não costumava agarrar as rédeas de sua vida. Embora Elvira não consiga encontrar “solução”,
também está decidida a não regressar para o ambiente doméstico. “Tonta como estava, fechou os
olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do ‘Lar Elvira’, aspirando-a violentamente e
recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária” (p. 71). Essa cena
imaginária mostra o temor de Elvira em retornar à rotina de monotonia e de repetição. “Você não
voltará”, ela diz para si mesma (p. 71). Essa decisão a enche de esperança e Elvira chega a
acreditar que está passando por uma renovação:
Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa,
gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas: ‘Bem as coisas
ainda existem’. Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era
casada e três horas de liberdade restituíam-na quase inteira a si mesma: primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam. Se representasse num
palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber-se desperta. O que
tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar (p.71-2).
A palavra “descoberta”, ironicamente, coloca a personagem como em uma espécie de
aventura, tal qual estivesse sendo lançada em uma selva e lá ficasse maravilhada com o que
encontrasse. A selva para essa dona-de-casa era tão somente a rua, o mundo público. Afinal,
conforme destaca Anna Yeatman (1984), em seu estudo sobre a exclusão da sociabilidade
doméstica em meio à prevalência do universo público, único visto a fundamentar as teorias da
70
construção social: o indivíduo contido na esfera privada não se sente participante da sociedade. É
o que Anna Yeatman esclarece ao analisar que os valores de liberdade estão tradicionalmente
relacionados apenas à vivência no mundo externo. “As idéias mutuamente dependentes de
liberdade e sociedade estão, necessariamente, associadas com o mais inclusivo, e desenvolvido
tipo de sociabilidade, a sociabilidade pública” (YEATMAN, 1984, p.35, tradução nossa)17.
Michel de Certeau (1996) em A invenção do cotidiano considera o caminhar dentro das
cidades como uma possibilidade de criar configurações outras, individuais, no espaço definido
para a coletividade. Para uma personagem que é totalmente envolvida e limitada pelo espaço
doméstico, esse ato de caminhar livremente ganha ainda maior importância. O autor coloca a
caminhada a pé no mesmo patamar que a fala assume dentro do aparelho formal da linguagem.
“O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o speech act) está para a
língua ou para os enunciados proferidos” (CERTEAU, 1996, p.117). Segundo o autor, no
caminhar há a apropriação do espaço com um olhar táctil e existe mais interferência assim como
na fala, modificada pelas interpelações do diálogo, pois ele diz que o pedestre cria atalhos e
itinerários: “O caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura
de um próprio” (CERTEAU, 1996, p.183). Essa caminhada representa ficcionalmente o
deslocamento do papel social que Elvira vivencia, fora da casa, escapando, ainda que
temporariamente, aos limites impostos pela ideologia patriarcal.
Compreendemos assim porque Elvira sentia-se livre em sua experiência na rua, sem
deixar logicamente de achar-se confusa. No trecho do conto já citado, vemos que ela chega a
comparar a situação de liberdade que está experimentando ao despertar de um pesadelo que
associa ao casamento de doze anos. A personagem demonstra ainda a vontade de não representar,
17
“The mutually dependent ideas of ‘freedom’ and ‘society’ are, necessarily, associated with the more inclusive, and
developed type of sociality, public sociality” (YEATMAN, 1984, p.35).
71
indicando que está cansada disso, ou seja, insinua que não tem feito outra coisa senão encenar um
papel. E agora, mesmo vivenciando o que classifica como tragédia, não deixa de enxergar aí um
ponto positivo, pois percebe em suas descobertas pela rua que a vida ainda existe, demonstrando
assim que o mundo doméstico representa um espaço inerte, em que nada acontece. O estudo de
Luiz Antônio Mousinho Magalhães (1997) sobre os contos de Clarice Lispector que tratam do
universo doméstico salienta bem esse aspecto: “A percepção dos limites cotidianos e das
possibilidades existentes para além da prisão familiar – tal percepção dada por contraste, é um
dos maiores méritos dessas narrativas curtas de Clarice Lispector” (p. 138).
Mesmo essa libertação momentânea, vivida aqui por Elvira, parece ameaçada pela
continuidade de uma trajetória difícil de ser deixada para trás. “Não havia, porém, somente
alegria e alívio dentro dela. Também um pouco de medo e doze anos” (p.72). Esses doze anos de
casamento são repetidos ao longo da narrativa quase como um mantra a lembrar à personagem de
que seu destino, a volta ao lar, parece inevitável. Apesar disso, Elvira segue em frente.
“Atravessou o passeio e encostou-se à murada, para olhar o mar. A chuva continuava. Ela tomara
o ônibus na Tijuca e saltara na Glória. Já andara para além do Morro da Viúva” (p.72).
Interessante observar o nome dos lugares que marcam a caminhada de Elvira. Em que
pese a menção de localidades realmente existentes no Rio de Janeiro, o que serve para diferenciar
alguns contos de várias narrativas de Lispector, principalmente os romances, pouco preocupados
com uma indicação externa e, sim, voltados ao fluir da escrita, não é isso o que desejamos
destacar aqui. Tijuca na língua tupi retrata o pântano, o atoleiro, a lama, o charco, ou seja, é de
onde saiu a personagem que se sentia presa e enredada nas teias de seu próprio lar. Ela chega à
Glória, palavra que representaria o ápice de sua libertação, o orgulho, a alegria, a satisfação.
Agora a personagem se encontra depois do Morro da Viúva, sintomático para quem deseja
afastar-se do casamento e fugir, matando simbolicamente o cônjuge.
72
Na murada da Glória, Elvira começa a olhar o mar que “revolvia-se forte e, quando as
ondas quebravam junto às pedras, a espuma salpicava-a toda” (p.72). Observando o mar, a
personagem parece traçar um paralelo com a sua existência. “Ficou um momento pensando se
aquele trecho seria fundo, porque tornava-se impossível adivinhar: as águas escuras, sombrias,
tanto poderiam estar a centímetros da areia quanto esconder o infinito” (p. 72). Tal qual a
personagem, que não sabe o caminho a seguir e nem consegue encontrar em si mesma as
respostas. Nessa meditação diante das águas, Elvira lembra-se de um jogo mental que adorava
praticar. “Bastava olhar demoradamente para dentro d’água e pensar que aquele mundo não tinha
fim. Era como se estivesse afogando e nunca encontrasse o fundo do mar com os pés. Uma
angústia pesada. Mas por que a procurava então?” (p.72). A personagem conta que a brincadeira
da imaginação é antiga e que ela agora resolveu tentar de novo porque estava livre (p.72). “No
capítulo da força da gravidade, na escola primária, inventara um homem com uma doença
engraçada. Com ele a força da gravidade não pegava... Então ele caía para fora da terra, e ficava
caindo sempre, porque ela não sabia lhe dar um destino. Caía onde?” (p.72).
Esses pensamentos sobre afogamento e queda poderiam representar um desejo
inconsciente de suicídio. A leitura psicanalítica trouxe sérias contribuições à interpretação da
obra de Clarice e nela podemos citar o trabalho de Yudith Rosenbaum (2004), atenta às pulsões
presentes no texto, principalmente, a pulsão de morte, conceituada por Sigmund Freud. Segundo
Yudith, encontramos em Clarice personagens que vivem um conflito entre a condição alienante,
protetora, que as insere na coletividade, e uma desagregadora, que problematiza a representação e
as pode lançar no desamparo. Muitas dessas personagens se apresentam com medo, agindo na
defensiva, evitando questionamentos mais profundos, que significariam não aceitar de pronto o
papel social que lhes é reservado. Outras, se exercitam na dissolução, que lhes abre uma nova
consciência. Elvira parece sentir-se no meio das duas situações e talvez, por isso, anseie pelo
73
fundo do mar que não tem fim, já que lá não precisaria desenvolver nenhuma resposta para esses
dois estados de ânimo.
Percebemos que os delírios de Elvira envolvem situações em que não existe limite e
tampouco amparo. O sujeito sem gravidade vive fora do mundo, não tem um destino. O ser
criado em sua imaginação não está sujeito sequer às leis naturais, parece uma projeção do que
deseja a personagem, presa a normas sociais e comportamentais. O fato é que Elvira não
consegue resolver onde o homem doente vai encontrar repouso, indaga se ele continuará
comendo e caindo, dormindo e caindo ou se morrerá assim. A falta de resposta está de modo
igual instalado em sua vida, pois ela não consegue decidir o rumo a tomar. “Mas nesse momento
a recordação do homem não a angustiava e, pelo contrário, trazia-lhe um sabor de liberdade há
doze anos não sentido” (p.72).
Esse peso do casamento e da vida de insatisfação é o problema a ser solucionado, só que a
personagem não consegue enfrentar a situação de modo prático. Considerando as narrativas de
Clarice Lispector e de outros autores do século XX, Arturo Gouveia pontua a representação da
não-ação e a valorização extrema dos pensamentos. Segundo o crítico, há uma “dicotomia
insuperável entre pensamento e ação” nas personagens claricianas:
Muitos de seus personagens – de várias classes sociais – não têm condições
concretas de estabelecer rupturas, ainda que breves, contra a opressão do mundo
externo. O refluxo para a interioridade constitui uma tentativa de avaliar sua
situação crítica, para fins de autocompreensão e elucidação de si mesmos.
Entretanto, as investidas introspectivas não sinalizam qualquer mudança. Os
personagens não conseguem sair desse ciclo obtuso de imaginação disforme
(GOUVEIA, 2004, 38).
No trabalho de Arturo Gouveia, a opressão do mundo externo é representada pelo avanço
do capitalismo, que mina as individualidades e tenta construir a visão falseadora de que a
74
felicidade só existe nos valores da pequena burguesia. Nessa narrativa de Lispector, pontuamos
que a opressão é particularizada no sistema de relações patriarcais em que vive a personagem.
Embora o patriarcado esteja intimamente relacionado ao funcionamento do sistema econômico,
pois a divisão de tarefas conforme o papel sexual serviu para efetuar a construção de
sociabilidades diferentes no modo de produção, esse não é aqui o ponto nevrálgico, visto que a
personagem se angustia mais com as insatisfações que vivencia no âmbito psicológico, não se
preocupando tanto com as condições materiais.
O fato é que o grande sistema de poder descrito por Gouveia, a partir das observações de
Adorno, já oprimia as mulheres muito antes do desenvolvimento do capitalismo. O que o século
XX vai exacerbar é o questionamento desse sistema de poder patriarcal, na medida em que novas
oportunidades de estabelecer a força de trabalho vão sendo conquistadas pelas mulheres18. No
conflito vivido pela personagem, o desejo de liberdade pode até advir do conhecimento dessas
alternativas ao seu modo de vida. No entanto, a força das ideologias patriarcais introjetadas no
íntimo de Elvira consegue sufocar qualquer possibilidade de resistência e mudança. Afinal, é na
passividade que a personagem vive, sentindo-se acuada até em seu próprio lar:
Porque seu marido tinha uma propriedade singular: bastava sua presença para
que os menores movimentos de seu pensamento ficassem tolhidos. A princípio,
isso lhe trouxera certa tranqüilidade, pois costumava cansar-se pensando em
coisas inúteis, apesar de divertidas (p. 72).
A caracterização do esposo de Elvira remete ao mundo da seriedade e do controle, o
oposto de sua imaginação, que anseia pela liberdade. É bom lembrar que tais pensamentos de
Elvira entremeiam o conto da mesma forma que as indicações de ação apresentadas pela voz
narrativa, conforme destaca Magalhães acerca da produção de Lispector: “O narrador entra e sai
18
Não é demais relembrar que no período da Primeira Guerra Mundial as mulheres ocuparam postos de trabalho dos
homens e a sociedade não pôde negar que o fizeram competentemente. No Brasil, nessa década de 40, as imigrantes
abriram a porta para trabalhos fabris, mesmo na administração e nas atividades burocráticas começava a crescer a
presença feminina.
75
da pele-voz da personagem, revelando-a pelo seu avesso” (1997, 107). É assim que a lembrança
do marido é seguida da constatação de que parou de chover, do fruir da sensação de que está frio
e da determinação de não voltar para casa, pensamentos díspares, mas que se sucedem de uma
frase para outra. Parece apropriada aqui a observação de Theodor Adorno sobre as obras que vão
à esteira do caminho aberto por Proust: “o comentário está de tal modo entrelaçado na ação que a
distinção entre ambos desaparece, o narrador está atacando um componente fundamental de sua
relação com o leitor: a distância estética” (ADORNO, 2003, 61).
A separação entre a voz narrativa e o pensamento da personagem não é nítida,
misturando-se ao longo da narrativa. Apesar do excesso de atividade mental de Elvira, que tem
ação quase nula, é mais apropriado falar em monólogo interior do que em fluxo da consciência,
pois o pensamento da personagem não se desagrega com tantas digressões, sendo possível
identificar os temas que a absorvem de cada vez. Seu pensamento, no entanto, não conhece
limites e enquanto Elvira não consegue seguir uma trajetória e traçar seu caminho, a mente é
capaz de percorrer, em um só lampejo, o restaurante, o hotel, o navio, enfim, todos os lugares que
a personagem só visita na imaginação.
É exatamente através dessa flexibilização da distância entre narrador e leitor que obras
como as de Lispector se consolidaram, pois a intenção das mesmas não é mais expor uma
verdade de mundo que só a voz narrativa conhece. Ao contrário, pretende-se, nessas obras,
desvelar as inseguranças do próprio ato de narrar, em um universo em que a literatura não se
apresenta mais como uma alternativa de compreensão, e sim de conflito e discussão, pondo por
terra as pretensões didáticas que só arruínam o prazer estético.
Dessa forma, não se poderia jamais imaginar personagens como Elvira entretidas em
fabulações e peripécias da ação narrativa, porque aqui o enredo se constrói a partir das angústias
psicológicas. Na rua, ao invés de se ocupar com o rumo a tomar, Elvira se perde em conjecturas
76
sobre sua vida, tentando reforçar interiormente a determinação de não mais voltar para a casa e
analisando se o marido ficará surpreso:
Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se
e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar
adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se
brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha a transformá-la
(p. 73).
A vida que Elvira tem medo de ver transformada é tão somente a repetitiva rotina. “Vive
atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o
verão e ainda as chuvas de novo. Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a
lâmpada do bom senso” (p. 73). O medo de não ter a vida alterada é sintomático da sensação de
fraqueza do indivíduo diante da força das engrenagens do mundo, visto em suas ideologias
sufocadoras e normas opressivas. Como destaca Gouveia: “o isolamento do personagem não é
apenas uma opção de fuga ou subterfúgio; é antes produzido por uma gigantesca máquina de
opressão e subjugação” (2003, 42).
O fracasso já é esperado tendo em vista que não existe sequer uma compreensão da causa
que coloca o indivíduo nesse estágio de insatisfação. “Cada vez mais os personagens perdem sua
condição de ‘agentes’ do conhecimento e dos fatos. Eles se confinam nos monólogos em busca
de algum conhecimento produtivo, sobre si mesmos e o mundo, mas não alcançam o menor
êxito” (GOUVEIA, 2003, 41). Ao invés de se colocar contra o sistema patriarcal que inscreveu as
mulheres na passividade, Elvira volta-se em críticas ao marido, fundamentais para a compreensão
do conto, já que elas ajudam a compor o imaginário das frustrações da personagem em relação a
sua situação familiar e conjugal:
Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom
e nunca erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que
77
está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o
horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo
os macacos se reproduzem com maior rapidez (p. 73).
Quanto a si mesma, ela só pensa que vivia como o homem sem gravidade, caindo, e a
constatação de sua situação a leva a rir de si mesma, em plena rua. Elvira sente que sua risada
despertou a atenção de um estranho. “Que é que eu faço? Talvez chegar perto e dizer: ‘Meu filho,
está chovendo’. Não. ‘Meu filho, eu era uma mulher casada e sou agora uma mulher’. Pôs-se a
caminhar e esqueceu o homem gordo” (p. 73, grifo nosso). Até essa frase, que significaria o
despertar de que ela é um indivíduo autônomo, fica calada na consciência, demonstrando a
distância imensa entre a vontade individual e a ação. Aliás, é sintomática nessa narrativa a
ausência de diálogos, ou seja, não existem embates, duelos verbais, nada que possa colocar a
personagem em confronto com uma outra realidade ou visão de mundo. Sequer essa frase,
reveladora do estado de espírito que ela deseja atingir, é proferida, ficando só na intenção, como
tudo o mais em relação aos seus sonhos, desejos e vontades.
De certa forma, isso se relaciona com o que Georg Lukács apontava acerca de obras da
modernidade, onde o “descompasso entre interioridade e mundo torna-se, assim, ainda mais
forte” (2003, 118). Nesse tipo de narrativa, que Lukács caracteriza como romantismo da
desilusão, há uma tendência à passividade. A fabulação do enredo é substituída pelas freqüentes
reflexões sobre os estados de ânimo e pela análise psicológica. Vemos que essa caracterização de
Lukács é pertinente ao conto, que intensifica os questionamentos da personagem, porém sem
apresentar qualquer contrapartida de ação. Assim é que Elvira, ao invés de se preocupar com o
futuro, já que fugira em busca por mudanças, só se volta ao passado, tentando compreender a
própria atitude: “Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por essa
renovação? Só hoje, depois de doze séculos” (p. 73). Aqui, é de se destacar o sentimento de
78
fraqueza dessa personagem, que se sente enlaçada por uma realidade vista como imutável ou
quase, não sendo gratuito Elvira enxergar o tempo decorrido como praticamente eterno. A
personagem tenta compreender o próprio desejo de mudança e rememora a circunstância em que
deixou o lar, visto como espaço de sufocamento e de repetição de uma rotina monótona. A ficção
assemelha-se aos depoimentos que Betty Friedan (1963) colheu e apresentou em seu livro The
feminine mystique acerca do “problema que não tinha nome”, indicando o mal-estar que tomava
conta das donas-de-casa insatisfeitas naquele momento histórico. “Uma vez, uma mulher contoume que o sentimento foi tão forte que ela correu para fora de casa e andou através das ruas”
(FRIEDAN, 1963, p.21, tradução nossa)19. A descrição da saída de Elvira remete a esse mal-estar
indefinido:
Saíra do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era
diferente de todas as tardes dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava.
Abriu todas as janelas e as portas. Mas não: o ar ali estava, imóvel, sério,
pesado. Nenhuma viração e o céu baixo, as nuvens escuras, densas. Como foi
que aquilo aconteceu? A princípio apenas o mal-estar e o calor. Depois qualquer
coisa dentro dela começou a crescer. De repente, em movimentos pesados,
minuciosos, puxou a roupa do corpo, estraçalhou-a, rasgou-a em longas tiras. O
ar fechava-se em torno dela, apertava-a. Então um forte estrondo abalou a casa.
Quase ao mesmo tempo, caíam grossos pingos d’água, mornos e espaçados (p.
73-4).
O sufoco é vencido com uma atitude de revolta, quase uma destituição simbólica da
civilização, ao rasgar as roupas. É como se a personagem atendesse a um chamado natural, tendo
em vista a repetida referência aos elementos climáticos que aparecem vinculados a um estado de
espírito. Como a demonstrar que a personagem agora quer ingressar em uma outra ordem e não
mais ser guiada pela artificialidade de seus rituais diários, visto como sem significado. O
estrondo pode ser relacionado a um trovão, já que ele precede a caída da chuva. Mas, além disso,
19
“Sometimes a woman would that the feeling gets so strong she runs out of the house and walks through the streets”
(FRIEDAN, 1963, p.21, no original).
79
ele reforça a imagem da casa abalada, a partir do terremoto que seria provocado pela sua
ausência, semelhante à menção do “turbilhão saindo do lar Elvira”, citado no início.
Mais uma imagem de catástrofe natural aparece quando a personagem resume o que
sentia, imóvel, no meio do quarto, ofegante, enquanto o barulho da chuva aumentava no
tamborilar do zinco do quintal e a empregada gritava recolhendo a roupa: “Agora era como um
dilúvio” (p.74). Vale mencionar que o dilúvio na tradição bíblica representa o fim de um mundo,
a destruição de um tempo e o início de uma nova era. Seria a nova vida que Elvira imaginava ter:
Agora está com fome. Há doze anos não sente fome. Entrará num restaurante. O
pão é fresco, a sopa é quente. Pedirá café, um café, um café cheiroso e forte. Ah,
como tudo é lindo e tem encanto. O quarto do hotel tem um ar estrangeiro, o
travesseiro é macio, perfumada a roupa limpa. E quando o escuro dominar o
aposento, uma lua enorme surgirá, depois dessa chuva, uma lua fresca e serena.
E ela dormirá coberta de luar... (p. 74).
Nessa nova vida, imaginada, tudo tem sabor de renovação, enquanto o período do
casamento é visto como o fim de todas as vontades, até mesmo as vitais. Mais do que isso, a
fome ganha no contexto uma acepção maior do que a intrinsecamente orgânica. A fome pode ser
encarada como a representação do apetite de viver, da voracidade, do desejo de saciar-se. Já a
descrição da atmosfera imaginária se opõe a do sufocamento do lar, não sendo à toa que Elvira
deseje se instalar em um hotel, lugar de passagem, transitório, e anseie por ares do estrangeiro,
querendo afastar-se da domesticidade e do conhecido. Nesse mundo, ela tem liberdade e a
expectativa do luar claro e aberto. O ar que a sufocava em casa era como o marido, sério e
pesado, denso como a realidade, diferente da leveza dos seus devaneios.
Tais desejos e anseios são imaginados na noite do passeio sem rumo, em que ela só espera
pelo amanhecer. É de se destacar a presença dos verbos conjugados no futuro (entrará, pedirá,
surgirá, dormirá, amanhecerá, terá), afinal a personagem só imagina as ações que deseja executar,
80
mas não consegue colocá-las em prática. A imagem que Elvira constrói de sua viagem é como a
de um renascimento, em que nada mais a perturba ou sufoca:
Amanhecerá. Terá a manhã livre para comprar o necessário para a viagem,
porque o navio parte às duas horas da tarde. O mar está quieto, quase sem ondas.
O céu de um azul violento, gritante. O navio se afasta rapidamente... E em breve
o silêncio. As águas cantam no casco, com suavidade, cadência... Em torno, as
gaivotas esvoaçam, brancas espumas fugidas do mar. Sim, tudo isso! (p.74).
O navio se afasta
Infelizmente, nada disso Elvira alcança. O conto tem uma separação, marcada pelo
espaço, e essa segunda parte, final, corresponde à volta de Elvira ao lar, o retorno à rotina e à
realidade, a morte do sonho. É significativo que essa parte inicie com a constatação realista da
impossibilidade de concretizar o sonho da viagem de navio: “Mas ela não tem suficiente dinheiro
para viajar. As passagens são tão caras” (p. 74). A consciência de seu lugar social e de sua
dependência lhe ocorre com intensidade, quando Elvira cogita ir a um hotel. “Mas os hotéis do
Rio não são próprios para uma senhora desacompanhada, salvo os de primeira classe. E nestes
pode talvez encontrar algum conhecido do marido, o que certamente lhe prejudicará os negócios”
(p. 74). Aqui, vemos a preocupação com o marido aparecer em primeiro lugar, demonstrando que
as amarras patriarcais a dominam, pois ela não consegue esquecer os ensinamentos tradicionais
que colocam o cuidado com o cônjuge em situação privilegiada sobre o desejo individual. Assim,
a personagem cai em si sobre o fim do sonho:
Oh, tudo isso é mentira. Qual a verdade? Doze anos pesam como quilos de
chumbo e os dias se fecham em torno do corpo da gente e apertam cada vez
mais. Volto para casa. Não posso ter raiva de mim, porque estou cansada. E
mesmo tudo está acontecendo, eu nada estou provocando. São doze anos (p. 7475).
Novamente, a personagem evoca o peso dos doze anos de casamento indicando que não
tem força alguma diante de uma realidade que parece imutável devido à sua própria fragilidade
81
em empreender esforços. Elvira parece pedir desculpas a si mesma e se culpa pela tentativa de
fuga, quando retorna a seu “cárcere”. Ao dizer que nada provoca e que tudo acontece por si só, a
personagem reforça a idéia de ser um sujeito sem ação. Assim, Elvira volta à casa, onde somente
a apatia a espera.
Lá, o marido está lendo na cama, e a voz narrativa só deixa entrever o “diálogo” que eles
travam através da fala de Elvira, que deixa a sensação de falta de uma efetiva comunicação,
principalmente porque a informação trocada é baseada em uma mentira. “Diz-lhe que Rosinha
esteve doente. Não recebeu seu recado avisando que só voltaria de noite? Não, diz ele” (p.75).
Tentando amenizar o fracasso íntimo, Elvira se volta aos atos ordinários, conformando-se com a
falta de apetite de viver. “Toma um copo de leite quente porque não tem fome. Veste um pijama
de flanela azul, de pintinhas brancas, muito macio mesmo. Pede ao marido que apague a luz. Ele
beija-a no rosto e diz que o acorde às sete horas em ponto. Ela promete, ele torce o comutador”
(p.75).
Conforme observa Mousinho Magalhães, as narrativas de Clarice Lispector tem o poder
de denunciar a banalização cotidiana e o que existe de artificial na vida familiar, mostrada através
do uso dos lugares-comuns: “o que se vê no universo familiar é insosso, sem sentido, e revela a
crueldade do ritual cego vivido por seres postos a se regularem uns aos outros” (1997, p. 107).
Para Elvira, o último momento de alento em meio a toda essa automatização pode ser visto na
referência à lua, que estava presente em suas divagações e aparece ao final. Mas, a sua “luz
grande e pura” surge “dentre as árvores” (p. 74), presa, limitada, como a própria Elvira. “Fica de
olhos abertos durante algum tempo. Depois enxuga as lágrimas com o lençol, fecha os olhos e
ajeita-se na cama. Sente o luar cobri-la vagarosamente. Dentro do silêncio da noite, o navio se
afasta cada vez mais” (p. 74).
82
Elvira não consegue partir no navio que deseja e nem se fazer inserir em uma nova
realidade. As amarras do lar a trazem de volta e vemos aí que o poder de internalização das
normas comportamentais é, para ela, intransponível. E esse processo de “acomodação” não tem
nada de pacífico; as lágrimas de Elvira, invisíveis para seu marido, comprovam isso. A
personagem inicia o conto circulando na amplidão das ruas, imaginando um futuro e termina
trancafiada, embaixo do lençol, repetindo as mesmas cenas diárias. Lembrando o que Mikhail
Bakhtin apontava sobre as narrativas que expressam a falta de coincidência do sujeito consigo
mesmo e com o mundo que o cerca. Justamente porque não consegue se encarnar na substância
sócio-histórica de seu tempo permanecerão nesse indivíduo “as virtualidades irrealizadas e as
exigências não satisfeitas” (BAKHTIN, 1993, p.425).
Vemos que tais conflitos formam a substância do conto “A fuga”. A narrativa parece
representar o que Theodor Adorno destacava, considerando as acepções de Max Weber sobre o
“desencantamento do mundo”. A protagonista até tenta vencer os limites, mesmo não sendo de
modo racional, mas logo vê o tamanho de sua força como ínfimo e isso a leva ao isolamento em
um mundo interior, onde só lhe resta sonhar e imaginar. Como destaca Lúcia Helena, uma das
maiores estudiosas de Clarice Lispector, isso é o que ocorre em grande parte dos contos da
autora: “Um mundo em que a tentativa de libertação era quase sempre marcada pela ruína e pelo
malogro da falta de saída” (1997, p.35).
Acomodada no mundo fracassado, só resta à personagem a ausência de franqueza no
“diálogo” com o marido e o falso contentamento com os rituais domésticos. Já no título do conto,
se destaca a situação de Elvira: incitada a fugir por um impulso emocional, ela não tem qualquer
plano, simplesmente se ausenta do enfrentamento, nem sequer cogita vencer a insatisfação de
forma concreta. Isso nos possibilita situar a narrativa no conceito de epopéia negativa, visto que a
ação não é marcante para a personagem, que permanece trancafiada em seus desejos e delírios,
83
sentindo a opressão do mundo externo como muito maior do que suas próprias forças. Como
destaca Arturo Gouveia, isso é a mimese da retração do sujeito que se sente insignificante diante
de uma máquina gigantesca de poder e é empurrado para o excesso de introspecção: “A busca da
plenitude apenas no pensamento invalida a ação prática e concorre para a autoliquidação do
sujeito” (2004, 19).
No caso de Elvira, essa grande máquina é a sociedade patriarcal cujo poder, de ditar as
normas de comportamento e papéis fixos com base na diferença sexual, parecia invencível.
Gouveia ainda nos alerta que “os indivíduos interiorizam os estigmas do sistema e conformam-se
a eles sem resistência” (2004, 26). É o que parece acontecer a Elvira, que se vê incapaz de
transitar no espaço social, encarado como mundo masculino por excelência, o que se percebe na
cena em que ela desiste de ir a um hotel por medo de encontrar um conhecido do marido e lhe
prejudicar o trabalho. Mesmo antes de ser posta em dificuldade na prática, na mente de Elvira já
estão construídas barreiras.
Assim como Elvira não se sentia capaz de ser acolhida nos espaços sociais, vemos que as
teorias tradicionais, que se baseavam em um conceito de sujeito masculino posto como universal,
não conseguiam abordar a questão feminina. Mesmo antes do capitalismo, as mulheres sempre
estiveram à margem e foram definidas como “o outro”, tendo as suas funções como sujeitos
reduzidas. Logicamente, a partir do momento em que as mulheres passam a exercitar-se na
produção literária, esse assunto não deixaria de ser colocado em discussão. Obviamente, não
pretendemos simplificar a questão nesses termos, como se toda escritora viesse a ter essa
preocupação. Mas, não podemos menosprezar esse aspecto na obra de Clarice Lispector, já que a
temática aparece destacada. A autora se preocupa em retratar a angústia e a inadequação dos
indivíduos, não só das mulheres; nessa narrativa, contudo, vemos que esse sentimento de
dissonância consigo mesmo e com seu destino pode ser particularizado. O “algoz” da
84
personagem parece ser a ideologia vigente, que condenava as mulheres à passividade e aceitação
de um papel de sombra da figura masculina.
É essa particularidade que não vemos contemplada nas considerações apresentadas acerca
da epopéia negativa, em que as mazelas do capitalismo parecem ser apontadas como a única
causa do estágio de letargia em que os indivíduos se encontram nessas narrativas do século XX.
Não cometeríamos o absurdo de negar a reificação trazida pela lógica capitalista; no entanto,
acreditamos ser necessário analisar a categoria do gênero para compreender melhor esse conto de
Clarice Lispector.
O curioso é que nessa narrativa poderíamos ser levados a ler determinadas cenas como a
confirmação de que tudo recai na reificação. Afinal, Elvira justifica como a causa da
impossibilidade de viajar, fugir e, conseqüentemente, alterar seu destino, a falta de dinheiro.
Contudo, tal leitura seria simplista. Embora não tenha mesmo acesso ao dinheiro, só podendo
juntar o pouco que encontra em casa na ausência do marido, caracterizado como o homem de
negócios, Elvira tampouco conseguiria escapar se tivesse condições materiais. É o que nos parece
demonstrar o conto, ao apresentar uma personagem tão consciente do seu lugar social, que desiste
de tentar o seu sonho para não atrapalhar os negócios do marido, enxergando os próprios
pensamentos como inúteis. Se ela se submete à situação de insatisfação cotidiana não é apenas
devido a questões materiais, mas porque culturalmente se enraizaram valores acerca de sua
imagem como mulher e do papel que ela acredita ser obrigada a desempenhar que a impedem de
reagir.
É por isso que não é possível identificar a personagem Elvira como um “pobre-diabo”,
embora percebamos afinidades com a caracterização feita por José Paulo Paes. Elvira nos aparece
com uma “vocação para o fracasso” porque se perde em divagações que já sente como inúteis e,
embora tenha uma consciência de revolta, cai nas atitudes de covardia. Mas, ao contrário das
85
personagens que se sentiam um nada social, do ponto de vista das angústias materiais, e por isso
quase não desenvolviam auto-estima, a personagem chega a ter lampejos de autovalorização,
quando desfruta da liberdade (temporária) e sente a força de ser não mais uma esposa e sim “uma
mulher”. Além disso, os pobres-diabos parecem nem sequer almejar alteração, enquanto que
Elvira tem ainda o desejo de escapar de seu destino, embora tenha medo da mudança,
paradoxalmente.
Em intenção, a personagem ainda parece buscar um ideal, imagina para si uma vida de
liberdade, só que não sabe configurar a sua aspiração e vivencia, então, uma angústia existencial.
Parece, por isso, apropriada para ser inserida no que Georg Lukács considera o ‘romantismo da
desilusão’, mas não vive, a bem dizer, o grau mais extremado desses desiludidos, a ponto de ser
vista como um pobre-diabo. Elvira não é, pois, encarcerada na imobilidade; ela tenta escapar,
mas fracassa porque se vê de antemão como incapaz, devido aos nós muito fortes das regras
sociais que lhe aprisionam. “Uma sofreguidão excessiva e exorbitante pelo dever-ser em oposição
à vida e uma percepção desesperada da inutilidade dessa aspiração; uma utopia que, desde o
início, sofre de consciência pesada e tem certeza da derrota” (LUKÁCS, 2003, 122) parecem
marcar a personagem Elvira.
Porém, percebemos que a teoria de Lukács não poderia ser aplicada inteiramente a Elvira.
O mergulho em sua subjetividade não parece ser um juízo de valor ou um desprezo pelo mundo
porque se acha superior a ele. É antes um escape, uma transferência, tendo em vista que se vê
impossibilitada de atuar nesse mundo. Seus ideais, também, não são maiores que os oferecidos
pelo mundo, tampouco sua alma é melhor que ele, como considera Lukács acerca dos
personagens do “romantismo da desilusão”. Porém, a protagonista de Lispector se apresenta
também em dissonância com o destino que lhe é oferecido, mas a sua falta de atuação não é uma
86
escolha, como o teórico considera acerca das personagens que analisa, é, sim, uma conseqüência
da consciência de sua fraqueza.
É isso que a teoria feminista consegue abordar, na medida em que se volta para as
narrativas que expressam a condição feminina a fim de perceber e analisar aí as condições sociais
que estão sendo debatidas através da representação da mulher. Diferentemente de Lukács, que
criticava esses personagens desiludidos, divididos, fracassados e sem ação, e cobrava a
construção literária de tipos ideais, consistentes, capazes de representar reações ao capitalismo,
vemos que a teoria feminista vai se voltar justamente para analisar os motivos e as repercussões
desses seres ficcionais tão angustiados e conflitados. Toril Moi destaca que o trabalho da crítica
literária feminista é o de justapor a análise cultural com os fatores políticos, tratando das relações
entre o social e o artístico, tentando perceber, então, porque muitas narrativas, especialmente de
autoria feminina, expressam seres em conflito que parecem estar em um entre-lugar – os desejos
individuais germinados na esfera privada e a incapacidade de agir no espaço público. Em Sexual
textual politics, Toril Moi vai criticar autoras feministas como Elaine Showalter que seguem
Lukács, cobrando a construção de personagens femininos capazes de reagir à situação opressora
do patriarcado.
Showalter expressa esse pensamento no texto “Virginia Woolf and the flight into
androgyny” em que critica A room of one’s own pelos métodos utilizados pela autora inglesa
como a paródia, a ironia, a repetição e os múltiplos pontos de vista, ao invés de expressar sua
própria experiência como escritora que conquistou espaço e abriu brechas para mulheres. Toril
Moi demonstra como Showalter se torna, nesse texto, tão cega quanto Lukács, que acredita
apenas na representação realista e baseada na ação como a única capaz de demonstrar na
literatura reações ao status quo. Moi resgata Virginia Woolf desses ataques ao analisar como a
autora inglesa consegue expressar reações ao patriarcado e às visões de mundo androcêntricas
87
através de uma escrita desconstrucionista, que expõe a duplicidade da natureza do discurso,
praticando uma forma de literatura não essencializadora: “Ela também revela uma atitude
profundamente cética com o conceito humanista-masculino de uma identidade humana
essencial”20 (1991, p.10, tradução nossa). Mais adiante, Toril Moi destaca a ilusão de acreditar
em um realismo que representaria de modo mais fidedigno a realidade, tal como Lukács defende.
Toril Moi ressalta que há níveis de consciência sobre os quais ainda não temos domínio. Dessa
forma, nosso discurso sempre vai deixar escapar pré-entendimentos, pressuposições fundamentais
e pontos cegos que não estão estabelecidos e que até reprimimos. Assim, Moi demonstra como a
visão de Lukács acerca das narrativas contemporâneas é reduzida: “Tal visão recusa-se
terminantemente a considerar a produção textual como um processo complexo altamente ‘sobredeterminado’ com vários e conflitados determinantes literários e não-literários (histórico,
político, social, ideológico, institucional, genérico, psicológico)21” (1991, p.45, tradução nossa).
Nos permitimos citar essas críticas de Toril Moi acerca de Lukács e até de autoras
feministas que coadunam com sua visão porque tal defesa de um realismo e de uma literatura que
se mostraria combativa apenas quando suas personagens fossem idealizadas de forma heróica
também limitaria a compreensão de obras como a de Lispector. Afinal, apesar de representar
personagens em estado de angústia, percebemos que as narrativas claricianas estão longe de
serem vistas apenas como pessimistas, pois se transformam em espaço para discussão das
relações de poder, se configurando, assim, em desestruturadoras do imaginário que quis construir
a ilusão da divisão de papéis entre o masculino e o feminino como algo pacífico e natural. Dessa
20
“She also reveals a deeply sceptical attitude to the male-humanist concept of an essential human identity. For what
can this self-identical identity be if all meaning is a ceaseless play of difference, if absence as much as presence is
the foundation of meaning? The humanist concept of identity is also challenged by psychoanalytic theory” (MOI,
1991, p.10, no original).
21
“Such a view resolutely refuses to consider textual production as a highly complex ‘over determined’ process with
many different and conflicting literary and non-literary determinants (historical, political, social, ideological,
institutional, generic, psychological and so on” (MOI: 1991, p.45, no original).
88
forma, promovem, sim, reações às formas de poder hegemônico. Se fossemos atribuir as
considerações de críticas feministas que seguem o viés lukácsiano (e aqui Toril Moi não cita
somente Elaine Showalter) às narrativas de Lispector, essas obras seriam vistas sob uma
perspectiva limitadora. Esse viés crítico não reconheceria o talento de Lispector, pois ela não
representa mulheres consistentes, firmes, enfrentando o patriarcado, mas seres fragilizados,
inquietos e indecisos, que, através de questionamentos interiores, contribuem para abalar a visão
tradicional que temos da sociedade.
Segundo Lúcia Helena, a autora consegue criticar não somente a imagem da mulher
confinada ao lar, mas também daquela incapaz de se livrar dos símbolos internalizados de
submissão: “Ela oferece uma importante contribuição à crítica do patriarcado e às mitologias do
humanismo burguês” (1997, p.106). Segundo Helena, Clarice conseguiu “para além da oposição
entre formalistas e conteudistas” conduzir “a possibilidade de uma estética feminista que
considere (e consiga) enlaçar os aspectos político-culturais e político-textuais das obras literárias
de homens e mulheres” (1997, p.105).
Não queremos dizer, assim, que Lispector soluciona esses conflitos, porque a literatura
não tem tal poder, mas, certamente, ela insere outras vozes dentro do universo da automatização.
Afinal, Clarice não se limita a representar e denunciar o mundo patriarcal. “Nela se constrói, isto
sim, um campo de meditação (e de mediação) em que se aprofunda o questionamento das
relações entre a literatura e a sociedade” (HELENA, 1997, p. 109). Representando a passividade
e a imobilidade dos sujeitos, através do mergulho mais intenso na interioridade das personagens e
desmascarando os discursos que servem para regular as posturas dos indivíduos, Clarice
Lispector consegue mostrar que as angústias não têm apenas motivações psíquicas ou
emocionais, mas, estão, também, profundamente relacionadas às problemáticas da conjuntura
histórica de nosso tempo:
89
Deste modo, a figuração do feminino conjuga-se com um processo de
textualização peculiar, que implanta em nosso imaginário cultural novas formas
de se refletir não apenas sobre os pactos reguladores do universo burguês,
presente na maioria de suas obras, mas também sobre o universo da falta,
habitado pelos seres marginais que recria. (HELENA, 1997, p. 113).
Ao representar essa parcela da sociedade oprimida pelas práticas reguladoras da
identidade de que nos fala Judith Butler, Clarice Lispector estava inscrevendo na narrativa
brasileira um imaginário que diz respeito à agenda feminina, a necessidade de transformar o
espaço social em que as mulheres atuavam em um determinado momento histórico do país.
Esperamos nessa análise ter demonstrado que assim como a personagem de Clarice não pôde
abrir brechas naquele determinado momento histórico brasileiro, também a crítica literária
tradicional que não leva em conta a categoria de gênero não consegue interpretar de modo devido
obras que tem essa representação da condição feminina como uma viga mestra. Desse modo, é
preciso romper também com a identificação da obra de Lispector só com os aspectos subjetivos,
psicológicos, pois, a crítica feminista nos mostra que o social é um fator determinante nessas
narrativas. A trajetória da protagonista de “A fuga” mostra-nos que naquele momento histórico
brasileiro existiam muitas etapas a serem vencidas na luta das mulheres e, possivelmente, é por
isso que Lispector constrói uma personagem convincente, que não reage heroicamente ao
patriarcado, já que não estava munida de instrumentos para isso. Contudo, sua infelicidade e
frustração já apontavam a necessidade de mudar a estrutura sócio-cultural que limitava a
satisfação pessoal de ampla parcela da sociedade.
90
5. “A imitação da rosa”: A mente dividida de Laura
Era preciso tomar cuidado com o olhar de espanto dos outros. Era preciso nunca
mais dar motivo para espanto, ainda mais com tudo ainda tão recente. E
sobretudo poupar a todos o mínimo sofrimento da dúvida. E que não houvesse
nunca mais necessidade da atenção dos outros – nunca mais essa coisa horrível
de todos olharem-na mudos, e ela em frente a todos. Nada de impulsos
(LISPECTOR, 1998b, 45, grifo nosso22).
Esse parágrafo do conto “A imitação da rosa”, de Clarice Lispector, publicado em 1960,
no volume Laços de família, é denunciador da cobrança social que os indivíduos enfrentam e que,
por extensão, as obras literárias retratam. Porém, mais do que um trecho onde o leitor percebe a
aflição da personagem Laura em respeito às exigências da sociedade, o excerto atesta que a
própria obra artística não consegue se furtar a transpor em termos estéticos as práticas sociais, as
relações dinâmicas que os indivíduos vivenciam uns com os outros. Foi acreditando nessa interrelação entre o contexto social e o texto literário que o teórico Antonio Candido (1985) elaborou
a base para seu trabalho crítico. É também seguindo por esse caminho que construímos essa
análise, cientes de que, a vasta fortuna crítica que se criou em torno de Lispector se deteve
competentemente nos aspectos de subjetivação de sua escrita, mas não se voltou com a mesma
atenção para suas páginas imbricadas de questões sociais, principalmente, da representação dos
conflitos advindo das relações de gênero.
“A imitação da rosa” é exemplar na retratação dessa temática e representa uma tarde na
vida de Laura, dona-de-casa que volta às atividades domésticas após um período de afastamento
devido ao desequilíbrio emocional. O discurso da personagem é imbricado de valorações quanto
ao que é normal ou desregrado para o papel da mulher. Laura segue um modelo de
22
Daqui em diante, indicaremos nos trechos citados do conto apenas a página, entre parênteses, posto que todas as
referências são provenientes da mesma edição.
91
comportamento que, para ela, é o caminho perfeito para a administradora de um lar no bairro da
Tijuca e a esposa de “Armando”, nome repetido com orgulho ao longo da narrativa. No entanto,
esse molde em que a protagonista busca se encaixar vai mostrando fissuras a partir do momento
em que Laura mergulha em um diálogo interior com suas outras vozes e vontades que vão
tentando romper com esse padrão. Ao final, esse conflito se agrava e ela sucumbe em meio ao
ideal de perfeição que desejava atingir e embarca no “trem” da insanidade.
No texto “Quem precisa de identidade”, Stuart Hall destaca o pensamento de Michel
Foucault acerca dos discursos que são incorporados pelo sujeito e nos auxilia a compreender o
processo pelo qual passa Laura que, em muitos momentos, parece ser uma simples repetidora das
normas sociais propagadas pela ideologia patriarcal. Atacando o mito da interioridade e
promovendo a historicização da categoria de sujeito, Foucault mostra que “o sujeito é produzido
‘como um efeito’ do discurso e no discurso, no interior de formações discursivas específicas”
(HALL, 2000, p. 119-120). Ele trabalha o duplo caráter de sujeição/subjetivação do processo de
formação do sujeito, mostrando a centralidade da questão do poder e a compreensão de que o
próprio discurso é uma formação regulativa e regulada do convívio social (Cf HALL, 2000: 121).
Dessa forma, compreendemos que discursos regulados pela sociedade estão a todo
instante modelando a mente da personagem feminina analisada. O próprio título do conto deixa
clara uma idéia de representação. Segundo Hall, o processo de fixação de uma identidade passa
pela identificação que pode ser construída através de três formas: o reconhecimento de uma
origem comum; de características partilhadas com outros grupos ou a partir de um ideal (2000:
106). Hall destaca, porém, que na abordagem discursiva a identificação é vista como uma
construção nunca completada, como algo sempre em processo, mostrando que o ego ideal é
composto de identificações com ideais culturais que não são necessariamente harmoniosos. É o
que veremos em Laura, a partir da explosão de seu conflito.
92
Não é a toa que o texto de Clarice Lispector trate justamente do conflito gerado em uma
mulher que se vê forçada a seguir um modelo de identidade fixa e estereotipada. Stuart Hall nos
fala ainda de “um eu coletivo, capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural ou
uma unidade imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças – supostamente artificiais” (p.
108). Nos parece que Laura quer se sentir inserida em um tipo de eu coletivo e percebemos que
esse outro eu idealizado atende ao modelo determinado para uma dona-de-casa no Brasil na
época em que o conto foi escrito.
A imitação da perfeição
Desde a primeira frase de “A imitação da rosa”, fica patente que a personagem Laura está
a todo o momento se esforçando para atingir um modelo como indivíduo. “Antes que Armando
voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que
pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como
antigamente” (p. 34). São abundantes os verbos como “dever”, indicando o modo em que as
coisas têm de estar na vida de Laura. Considerando que Laura ainda está tentando se readaptar à
rotina, depois de um período de ausência causada pelo desequilíbrio emocional, o uso de tais
verbos seria algo compreensível à primeira vista, pois a personagem estaria projetando segurança
em um futuro próximo, ao assegurar para si mesma que as coisas vão acontecer como o
planejado, o “normal”. No entanto, ao longo do texto, constatamos que essa necessidade de se
encaixar na dita vida “normal” (após a experiência de afastamento) e o próprio condicionamento
a que a personagem foi exposta ao longo da vida pela ideologia patriarcal internalizada estão
profundamente inter-relacionados.
O trecho inicial do conto é o primeiro de muitos em que percebemos o pensamento de
Laura projetando um futuro próximo. Durante todo o conto, vemos a ansiedade dessa dona-de-
93
casa que predetermina as atividades de sua vida e o quanto essa ansiedade cresce, até se
transformar na angústia que resulta, posteriormente, em desequilíbrio emocional-mental. Porém,
o que seria apenas um problema individual de Laura (a predisposição para a ansiedade), tem
raízes em todo um sistema social. É de se destacar o uso do advérbio de modo como, para frisar
que tudo não passa de representação, já que a personagem está em uma fase de adaptação,
esforçando-se em assumir um papel do qual foi destituída quando estava imersa no desequilíbrio
mental. “Ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele” (p.34).
A personagem enfatiza a necessidade de ser invisível, de não sentir o olhar dos outros,
algo não só causado pela fase de adaptação pós-desequilíbrio, mas que se constitui em uma busca
constante para ela. O estado normal para Laura só seria alcançado na volta à “insignificância”
porque esse seria o lugar considerado ideal para uma mulher, segundo os conceitos adotados pela
protagonista. Por isso, seu esforço é por voltar ao espaço apagado que ocupava e que o
desequilíbrio emocional acabou por destacar. “Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos
eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos
marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de
mulher” (pg. 35).
O adjetivo “modesto” ocupa um lugar importantíssimo porque evidencia a carga de
valores presente no discurso de Laura. A caracterização de Laura, como estudante de um colégio
religioso e tradicional, o Sacré Coeur, criada no bairro carioca da Tijuca, e entregue pelo pai e
pelo padre ao marido, ajuda a compor o seu perfil como o de uma moça dos Anos Dourados,
moldada para seguir um padrão de comportamento rígido. A “sabedoria” daquela época ditava
que para ser do “bem”, normal, distinta e respeitada, a mulher deveria se fazer apagada,
ressaltando apenas a imagem do homem que era seu tutor.
94
Em um estudo sobre essa moral dos Anos Dourados, a historiadora Carla Bassanezi
destaca o que era preciso no Brasil dos anos 50 para se conseguir “o respeito social e a confiança
do marido”. Ela aponta apenas algumas das muitas regras a serem adotadas e das quais Laura
parece ser uma fiel seguidora. “Não deveria ser muito vaidosa ou chamar a atenção, ao contrário,
esperava-se que uma mulher casada se vestisse com sobriedade e não provocasse ciúmes no
marido” (BASSANEZI, 1997, 628). Laura parece seguir essa cartilha quando se trata da própria
aparência:
Ela castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser. Ter cabelos
pretos ou louros eram um excesso que, na sua vontade de acertar, ela nunca
ambicionara. Então, em matéria de olhos verdes, parecia-lhe que se tivesse olhos
verdes seria como se não dissesse tudo a seu marido (pgs. 42-43).
Ainda segundo Bassanezi, “não importavam os desejos femininos ou a vontade de agir
espontaneamente, o que contava eram as aparências e as regras” (1997, p.615). Assim, vemos a
representação de Laura como a de um sujeito formado na circulação de imagens e discursos da
época, em meio ao processo social e histórico de produção de sentidos e ela se posiciona a partir
das visões de mundo que se superpõem à experiência, como forças reguladoras do cotidiano. É
dessa forma que vemos o sujeito Laura reproduzir certos discursos que apregoam uma imagem de
mulher ligada à figura da passividade e rejeitar, ou tentar evitar, a adoção de modelos
contestatórios. A forma como ela vivencia esse processo, tal qual os demais sujeitos, não é nada
pacífica. Para Laura, a própria descoberta do que seria espontâneo é difícil, ela parece ter medo
de descobrir a si mesma, buscando, por isso, o impessoal. A casa é comumente tida como espaço
revelador do íntimo de seus moradores e, nesse caso, é de se destacar o fato de Laura querer
transformar seu lar numa casa alheia, para viver na impessoalidade de uma sala de espera:
Sentou-se no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que, tão
recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranqüilidade de uma casa
alheia. O que era tão satisfatório: ao contrário de Carlota, que fizera de seu lar
95
algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em fazer de sua casa uma
coisa impessoal; de certo modo perfeita por ser impessoal (p.37).
Esse é o outro traço importante da personagem: o seu desejo de impessoalidade e a
dificuldade em questionar a si mesma, autoconhecer-se. Essa atitude de fuga de si mesma é o
oposto da estratégia definida por Foucault como necessária para o confronto com a forma de
poder que nos impõe uma identidade. Para Foucault, ao nos questionarmos sobre quem somos é
que podemos recusar as determinações que nos são impostas. Mesmo que o autor reconheça a
impossibilidade de escapar às relações de poder, ele percebe que as lutas pela individualidade são
estratégias para se opor às representações mistificadoras impostas às pessoas (Cf FOUCAULT:
1985, p. 235).
Aos poucos, as certezas nas quais Laura vai tentando se agarrar sofrem interferência e a
primeira evidência de que ela tem uma contradição interna é a constante referência à “amiga”
Carlota, em tudo caracterizada como diferente dela. Laura devota um sentimento de inferioridade
em relação a Carlota, e, embora critique o posicionamento da amiga, tão diversa de si, ao final vai
buscar elementos que são pertencentes ao universo de Carlota. É o que revela a sua luta interior
quando se defronta com as rosas silvestres. Na indecisão quanto a doar ou ficar com as rosas,
duas vozes internas se chocam em Laura. Uma é a voz que tenta fazê-la permanecer na linha da
obscuridade que leva à abnegação; e a voz dissonante é a que busca a auto-afirmação dos desejos
reprimidos de poder e posse.
Carlota é a colega de colégio com quem Laura e Armando devem jantar mais tarde, e que
estará acompanhada do marido João. Embora se esforce por imaginar que todos iriam estar
“recostados na cadeira com intimidade” (p.34), notamos que dificilmente Laura se sentiria à
vontade, pois nem com a “amiga” vivencia uma relação de igual para igual. Em relação a Carlota,
96
Laura tende a repetir o relacionamento hierarquizado que mantém com o marido, porque somente
consegue encontrar um lugar apropriado, se este for inferiorizado ou subalterno:
A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem
sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas
de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo
enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e
não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade – e vendo enfim
Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à
insignificância com reconhecimento (p. 34).
A caracterização de Carlota deixa patente que ela representa uma ameaça, o perigo de se
viver fora dos padrões sociais. Laura nos conta que a amiga era ambiciosa e original, “rindo com
força”, desde os tempos do colégio. Enquanto Laura sempre fora arrumada, limpa, e com “horror
à confusão”, além de ser “lenta” (p.35) e de procurar se manter sempre lenta. O cuidado de Laura
em manter-se lenta parece ter as raízes em ensinamentos tradicionais sobre o comportamento
feminino, apregoando que a mulher deveria se ocultar:
A boa esposa – a principal responsável pela paz doméstica e a harmonia
conjugal – além de não discutir, não se queixa, não exige atenção. Não aborrece
o marido com manias de limpeza e arrumação, futilidades, caprichos,
inseguranças ou necessidades de romantismo fora de hora – atitudes típicas das
mulheres (BASSANEZI, 1997, 630).
Nesse modelo descrito, reconhecemos Laura “com seu gosto minucioso pelo método”,
com suas “listas metódicas para o dia seguinte”, “com o mesmo gosto que tinha em arrumar
gavetas, chegava a desarrumá-las para poder arrumá-las de novo” (p.42). Todas essas atividades
ela executava com prazer em fazer o tempo render, pois tinha inveja das pessoas ocupadas que
diziam ‘não tive tempo’ (p.40). Tais atividades, porém, se eram para Laura a “íntima riqueza da
rotina” (p.40), não passavam de insignificância para o marido e até mesmo para Carlota, devendo
ser evitadas como referência para a conversação:
[...] Carlota na certa pensava que ela era apenas ordeira e comum e um pouco
chata, e se ela era obrigada a tomar cuidado para não importunar os outros com
detalhes, com Armando ela às vezes relaxava e era chatinha, o que não tinha
importância porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe
97
contava, o que não a magoava, ela compreendia perfeitamente bem que suas
conversas cansavam um pouquinho uma pessoa, mas era bom poder lhe contar
que não encontrara carne mesmo que Armando balançasse a cabeça e não
ouvisse [...] (pg. 41).
Ao considerar como era o seu “diálogo” com o marido, Laura deixa claro as regras em
que o casamento se baseava, segundo Bassanezi muito comuns: “Com distinções nítidas entre
feminilidade e masculinidade, a comunicação era provavelmente mais difícil, mesmo porque o
diálogo entre iguais não era algo a ser buscado, não fazia parte do modelo de felicidade conjugal
proposto aos casais, e, especialmente, às mulheres da época” (1997, 629-630).
As regras, no entanto, foram deixadas de lado depois do período de afastamento de Laura
devido ao desequilíbrio emocional, sendo agora, portanto, laços mais frouxos aos quais ela tenta
se agarrar. No período de distanciamento, a mercê de enfermeiras que a lançavam “como a uma
galinha indefesa no abismo da insulina” (p.40), ela rompeu esse pacto e, por isso, vê essa fase
como uma traição que quer extirpar de seu currículo de boa mulher. Na volta, ela se vê “como um
gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um
pires de leite esperando” (p. 34). Essa comparação com o gato “vira-latas” mostra que tal
ausência é vista como uma vadiação, um tempo onde reinava o desregramento.
Na tentativa de voltar ao que considera a normalidade, ou seja, a continuidade das
atividades de esposa e dona-de-casa, Laura tenta se impor outras regras comportamentais ainda
mais rígidas. Dentro desse modelo de bem-viver, entra a receita do médico: tomar um copo de
leite entre as refeições para não ficar com o estômago vazio, o que atrairia a ansiedade. A dica é
seguida com o fervor de quem se devota a uma oferenda, não a si mesma, mas aos outros, com
quem trava relações, enxergando neles um valor superior a ela própria. Escondendo, assim, os
seus sentimentos de culpa como uma mulher de quem todos esperam muito e que abandonou,
mesmo que temporária e involuntariamente, sua “missão divina”:
98
Encaminhou-se para a cozinha e, como se tivesse culposamente traído com seu
descuido Armando e os amigos devotados, ainda junto da geladeira bebeu os
primeiros goles com um devagar ansioso, concentrando-se em cada gole com fé
como se estivesse indenizando a todos e se penitenciando (p. 36, grifos nossos).
Analisando a orientação do médico, Laura constata uma contradição “embaraçante”
(p.36). Embora tenha lhe recomendado tomar o leite, o médico disse também que ela deveria
abandonar-se e tentar tudo suavemente, sem se esforçar para conseguir, esquecendo
completamente o que aconteceu para que pudesse voltar à rotina naturalmente. O aparente
dualismo do pensamento do médico parece já preceder a atuação das forças contrárias com as
quais Laura vai ter de se debater internamente. Ela revela que tinha dificuldade em encarar com
desprendimento o gesto de tomar um copo de leite, porque “queria seguir com o zelo de uma
convertida” a “ordem precisa” (p.36). Por isso, “tomava sem discutir gole por gole, dia após dia,
não falhara nunca, obedecendo de olhos fechados, com um ligeiro ardor para que não pudesse
enxergar em si a menor incredulidade” (p. 36).
É marcante nessa narrativa a importância que o médico tinha para a personagem, já que a
Medicina aparece como uma instância reguladora dos indivíduos, especialmente dos sujeitos
femininos. Michel Foucault, no texto “O sujeito e o poder”, destacava o papel das instituições de
poder como a Igreja, o Estado, a Escola e a Medicina como instâncias responsáveis por essa
regulação dos indivíduos e como instrumentos que colaboram para cristalizar uma identidade. É
interessante ver que o conto localiza a personagem como fruto da influência dessas quatro
instituições sociais. Foucault ressaltava que nas sociedades modernas a atuação constante dessas
instituições não se dá por uma repressão explícita, visto que ao longo do tempo elas já fizeram
emergir na mentalidade dos indivíduos uma série de “condutas” para o viver.
99
Assim, Laura revela que o copo de leite “terminara por ganhar um secreto poder” (p.37),
pois ela buscava, através de cada gole, renovar a forte palmada nas costas que ganhara do
médico, recobrando assim o estímulo que ele lhe transmitira. Novamente, ela recorre a algo
externo para se sentir segura, não cogitando que a força pode vir de dentro de si mesma, tendo
que ser alcançada fora, como um pequeno presente ou agradecimento por ser uma boa menina. É
por isso que ao estar com o “copo quase vazio” (p.37) nas mãos, Laura sente um cansaço bom,
como se tivesse terminado de cumprir uma tarefa.
O cerne da discussão parece ser a indagação sobre o que seria natural ou espontâneo e até
se existimos ou não fora das regras. Tal resposta Laura não se sente preparada para enfrentar e
por isso evita qualquer questionamento que a afaste do previamente assegurado. Quando Laura se
senta no sofá da sala de estar e finge naturalidade em sua casa arrumada para parecer impessoal, a
impressão é de que estamos assistindo ao ápice da representação do que é ser uma boa esposa e
administradora de lar. Ao tragar os goles de leite, fingindo naturalidade, parece que,
simbolicamente, Laura está mostrando como se realiza a internalização das normas sociais,
encarnando a sua função nesse teatro do gênero. Com a mesma dedicação com que bebe cada
gole, ela se submete a todas as regras que são típicas do papel feminino definido em seu grupo,
representando, na verdade, aquela “imitação” do que se entenderia por “feminino”.
Dessa forma, evidencia-se o que Candido coloca como sendo a transposição estética do
social ou a transmutação artística de fatores externos do real para o interior da obra ficcional.
Essa percepção de que o fator social pode atuar “na constituição do que há de essencial na obra
enquanto obra de arte” é a grande colaboração de Literatura e sociedade e que vemos ser
possível aplicar a esse conto de Clarice Lispector. Acreditamos que a representação do conflito
feminino é um componente da estruturação de “A imitação da rosa”, sendo a narrativa construída
a partir das angústias que Laura vivencia, tentando se acomodar a um papel de mulher.
100
Acreditamos que a angústia de Laura é a representação de conflitos de mulheres em um momento
histórico determinado. Uma citação de Antonio Candido esclarece a forma como percebemos o
social no conto em questão. “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”, (CANDIDO, 1985:4, grifos do autor).
Analisando o comportamento e os pensamentos de Laura, vemos como os padrões sociais
patriarcais foram internalizados. Após tomar o copo de leite, Laura fecha “os olhos com um
suspiro de cansaço bom”, o cansaço de ter passado a ferro as camisas de Armando, de ter ido à
feira de manhã, e ela se enxerga como participante de uma engrenagem perfeita do mundo. Chega
a imaginar o espanto que “uma pessoa perfeita do planeta Marte” sentiria se descesse à Terra e
soubesse que as pessoas aqui se cansavam e envelheciam. “Sem entender jamais o que havia de
bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam
essa nuance de vício e esse refinamento de vida” (p. 37).
Mesmo sendo uma visão idealizada do funcionamento da vida, isso representa a ordem do
mundo da qual Laura, na fragilidade de seu desequilíbrio emocional, quer fazer parte. No entanto,
o conto revela que o mundo invejável a qualquer alienígena não passa de espaço de sufocamento
para Laura. Afinal, o papel que lhe cabe na dança da vida parece limitar seus passos para derrubála mais adiante no mundo do alheamento e da loucura. Até arriscaríamos dizer que, por falta de
uma participação efetiva e completa na sociedade, Laura destoa do ritmo da engrenagem do
mundo e por isso desemboca no desequilíbrio mental.
Precisamos entender porque o cansaço é tão bem-vindo para Laura. Ele é como a marca
final de quem atuou, agiu, o indicador de que houve atividade. Sabemos que a ação é considerada
atribuição tradicional do papel masculino e à função ativa, atrela-se a garantia do poder e da
posse e a conseqüente valorização como indivíduo dentro da sociedade, em última instância, até o
101
acesso “facilitado” à realização. Tudo o que faltava a Laura, marcada pela inação, imobilidade e
alheamento durante todo o período de afastamento. Porém, a necessidade e a ênfase no cansaço
indicam o quanto a possibilidade de agir é algo distante de Laura. Se o cansaço é algo tão
valorizado por ela, e se inveja tanto as pessoas ocupadas, é porque não encontra meios para atuar
em sociedade, tendo um tempo vazio.
Esse tempo vazio de Laura corrobora o enclausuramento ao qual as mulheres foram
submetidas pela divisão de papéis realizada segundo a lógica patriarcal. À mulher criada para ser
dona-de-casa não cabe a ação ou a luta no mundo externo e, sim, a repetição de tarefas que levam
à passividade. Conforme Anna Yeatman (1984), a diferenciação nas formas de atuação de
homens e mulheres constrói duas sociabilidades diferentes, além de fundar o sistema de divisão
de trabalho. Em tal lógica, o espaço interno é reservado tradicionalmente às mulheres, apontadas
como indivíduos parciais e incompletos, que não teriam se desenvolvido plenamente, enquanto o
homem é visto como aquele capaz de lutar por um lugar no mundo externo (Cf. Yeatman, 1984,
p. 34).
As atribuições que restam a Laura no tempo vazio, que ela precisa fazer render, são as
atividades domésticas rotineiras. Por elas, Laura ganhava a recompensa da fadiga, a garantia de
que não teria “aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si” (p.38),
descrição que ela utiliza para caracterizar o período de afastamento da realidade circundante.
Interessante que a descrição é semelhante àquela do momento em que se olhou no espelho e
lembrou-se de que não era mãe. “Por acaso alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que
havia no fundo de seus olhos, alguém veria a falta dos filhos que ela nunca tivera?” (p. 35). Nesse
ponto, a semelhança indica que também a maternidade, mais do que um desejo individual, é vista,
também, como um papel que Laura teria que cumprir.
102
Descrevendo o estágio em que estava tomada pelo ponto vazio e acordado, maravilhoso
dentro de si, ela diz que estava “subitamente super-humana em relação a um marido cansado e
perplexo” (p. 38). Ou seja, o estado de desequilíbrio emocional, ao qual ela teme voltar, era o
único espaço onde se via superior ao marido, sendo algo considerado como anormal e temerário.
“Não mais aquela terrível independência” (p. 38), ela implora.
O estado anormal em Laura leva ao isolamento, à independência de tudo e de todos. Nesse
estágio de alheamento, quando não estava “bem”, ela permanece afastada dos outros a seu redor.
Justamente o oposto do que Laura é em seu estado “normal”: uma mulher inteiramente voltada
para servir aos interesses de outros, tentando ser o que esperavam dela. Afinal, até a sua ambição
se baseava na necessidade de dependência em relação a outros. “Ela, que nunca ambicionara
senão ser a mulher de um homem, reencontrava grata sua parte falível” (p. 37).
As rosas de Laura
Ao mesmo tempo em que Laura reitera o seu cansaço, o prazer de ser mais uma vez uma
pessoa ocupada, imersa nas tarefas e obrigações rotineiras, notamos que o pensamento dela tornase mais enovelado. Os parágrafos ficam maiores e as repetições vêm mais intensamente. É que,
apesar de todos os goles de copo de leite, a ansiedade não foi afastada e o conflito vai tomando
forma naquela sala de estar. Ela refaz mentalmente a lista de atividades seguintes, recorda as
conversas com Armando (com diálogos repetidos) e as intimidades entre eles, mas nada pode
manter a carapaça feita para ofuscar o estado interior em desordem.
Surgem então, pela primeira vez, as miúdas rosas silvestres que ela tinha comprado na
feira, de manhã, e arrumado enquanto tomava o sagrado copo de leite das dez horas. No próprio
ato da compra das flores, está o contraditório, pois, para evitar qualquer culpa, ela diz que
comprara porque “o homem insistira tanto”, e, em seguida, confessa ter adquirido as flores “em
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parte por ousadia” (p. 42). A partir de então, tudo se torna um afirmar e um negar, o discurso se
reprimindo e ao mesmo tempo se revelando, pois se encontram presentes duas vozes dentro de
Laura, a que quer possuir as rosas e a que quer manter distância delas.
O conflito interior se materializa, então, mediante as rosas. Notamos que as flores surgem
em meio à impessoalidade; é a natureza e o espontâneo brotando da artificialidade. Mesmo sendo
uma flor tão “domesticada” pelo olhar humano, pois a rosa é a mais cantada e louvada pelos
indivíduos, ela cumpre no conto a função de ser um contraponto em meio a toda a encenação que
Laura vive, trazendo um pouco do selvagem e natural para o universo artificializado da dona-decasa. Afinal, as rosas parecem não ter nenhuma utilidade ou funcionalidade dentro da
engrenagem do cotidiano doméstico, estão ali só para embelezar. E é com essa gratuidade que
Laura não consegue conviver, pois tudo para ela tem de ter alguma serventia dentro de sua
necessidade de ocupação rotineira.
Justamente por serem estranhas ao universo desenhado para Laura, as rosas passam a
despertar nela sentimentos incômodos que a tiram da letargia em que se encontrava. As rosas irão
despertar a “curiosidade”, o “embaraço”, a “atenção”, o “suave prazer”, indo até a “surpresa”,
fazendo Laura se sentir “um pouco constrangida, um pouco perturbada”, “sem saber por quê” (p.
43). Ao final, o estranhamento diante da beleza excessivamente reiterada das rosas revela a
necessidade de contenção de Laura. “Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema
incomodava” (p. 43). A personagem sugere que a beleza era algo da qual uma mulher distinta
deveria se afastar; no entanto, Laura buscava ser a mulher perfeita. O que a princípio eram
valores opostos para Laura, a beleza estética e a perfeição, vão se unir na imagem das rosas, em
uma incongruência com a qual ela não consegue lidar e que, por isso, a incomoda tanto.
As rosas parecem encarnar a perfeição que Laura deseja atingir, mostrando-lhe que tal
perfeição é perigosa, pois, na tentativa de atingi-la, pode-se alcançar a paixão, oposto do estado
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de equilíbrio que ela pensava estar conquistando. As flores suscitam indagações sobre o que é
normal ou imperfeito e, por isso, Laura explode em conflito diante delas. Assim, as flores não
compõem, de forma alguma, elemento gratuito ou decorativo, sendo peças-chave para o
entendimento do texto, a fruição da elaboração artística.
Ao afirmar que “aquela beleza extrema incomodava”, Laura tem “uma idéia de certo
modo original”: pedir a empregada Maria que passe na casa de Carlota e lhe dê as rosas de
presente. Ela mesma se questiona porque as rosas incomodam tanto e responde que é devido ao
risco. Em seguida, nega a afirmação e interroga de novo por que elas seriam um risco. Responde
então para si mesma que as flores apenas incomodavam e eram como uma advertência,
perguntando-se novamente porque seriam uma advertência. Percebemos aí o acelerar do processo
de questionamento da personagem, despertado pela presença das rosas. Iniciando-se, assim, a
desestabilização efetiva de Laura, quando o seu ego dissociado se mostra em toda a plenitude.
Interessante que nesse processo de cisão do ser, a referência a Carlota continua cada vez
mais forte. Ela chega a imaginar a conversa que teria com a amiga quando recebesse as rosas.
“Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir beata, ela chamava a si mesma de ‘Laura’,
como a uma terceira pessoa” (p. 44). Nesse trecho, fica evidente a tentativa de construir uma
personalidade, uma máscara que esconderia as fissuras de sua personalidade.
Em uma análise desse conto, Maria Lúcia Homem (2004) destaca a artificialidade de
Laura também, como indivíduo que tenta se moldar apenas através de padrões externos. Mais do
que isso, percebemos que há a construção identitária da imagem da fragilidade, tradicionalmente
relacionada ao feminino. Nesse ser frágil que é Laura, o que reina é a instabilidade, ainda mais no
período posterior a internação clínica devido ao desequilíbrio mental. Nessa fase, todo o cuidado
é pouco, e ela se vê capaz de, a qualquer momento, despencar no abismo do desequilíbrio. Por
isso, justificam-se os verbos usados no futuro do pretérito: deveria, caminhariam, jantariam, são
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projeções do estado de equilíbrio que ainda não está presente, mas que ela tem de acreditar que
está por vir.
Outro destaque de Maria Lúcia Homem é para a função da imitação dentro do texto, pois
todo o discurso de Laura e a auto-representação são feitas mediante comparativos. Laura nos diz
que “deveria” se comportar “como” um tipo de esposa e adota determinados modelos, estando
ciente de que estrutura uma “carapaça simbólica” para sustentar-se como um sujeito socialmente
inserido. “Essa formatação de Laura – a delimitação da realidade a partir de elementos que
forjam uma ordenação – poderia ser chamada de artificial, pois há algo construído a partir do
fora, fôrmas externas à personagem, no limite de um fingimento necessário” (HOMEM, 2004,
52). Fingimento esse que é necessário para ingressar em uma determinada ordem social que
reserva às mulheres o papel de ocultação. A própria Laura nos revela o tipo de mulher que deseja
ser e como se esforça em se ver. “Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e grata
e tranqüila, Laura, a da golinha de renda verdadeira, vestida com discrição, esposa de Armando,
enfim um Armando que não precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas
conversas...” (p. 44).
Durante toda a divagação em que imagina dar as rosas a Carlota, ouvi-la agradecer, e até
observar o olhar de espanto de Armando com a conversa das duas, Laura se esquece de qualquer
ocupação e só se absorve das rosas. Nessas passagens do conto, são comuns a afirmação e o
seguinte desmentido, mostrando quão confusos estão os pensamentos de Laura. É freqüente ainda
a reiteração de que ela deveria livrar-se das rosas, esquecer a sua beleza, se possível doando as
flores porque “dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas” (p. 44). Portanto, aqui o
pensamento de Laura é dividido: por um lado teme despertar o espanto dos outros, por outro,
tenta lembrar-se do ensinamento do médico de abandonar-se e esquecer-se do olhar externo. Para
Laura, sobretudo, era importante não despertar a atenção daqueles que a olharam mudos durante
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o período de desequilíbrio, que ela classificou de extravagância, pois estava fora de sua rota como
esposa ideal. Seu lema era: “Nada de impulsos” (p. 45).
Tentando agir de forma que acredita ser coerente, Laura chama a empregada e lhe pede
que leve as rosas, “tão lindas e tranqüilas, com os delicados e mortais espinhos” até Carlota (p.
45). Após fazer um arranjo que analisou com “julgamento imparcial e severo”, Laura ouve a voz
contraditória. “E então, incoercível, suave, ela insinuou em si mesma: não dê as rosas, elas são
lindas. Um segundo depois, muito suave ainda, o pensamento ficou levemente mais intenso,
quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se um pouco: porque as coisas nunca eram
dela” (p. 46, grifos nossos). Dentro dessa Laura que tentava se agarrar a certezas, surge, pela
primeira vez, o questionamento que leva à indecisão, se imiscuem as palavras insinuar e tentador
mostrando o quanto as falsas certezas vão sendo minadas pela dúvida.
Aos poucos, vemos que Laura consegue, mesmo simbolicamente, através das rosas, ir
desconstruindo conceitos estabelecidos sobre o seu papel como mulher. “Pois quando você
descobre uma coisa boa, então você vai e dá?” (p. 46), é o que questiona a sua voz dissonante, em
um argumento que procura desestabilizar valores como o da abnegação, tão internalizados por
Laura. Sentindo que essas interrogações podem ser pecadoras, por irem de encontro a uma lógica
naturalizada, Laura tenta justificar que a posse não é tão perigosa, e aponta que as rosas iam
perecer. “O fato de não durarem muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura
lógica de mulher que peca” (p. 46, grifos nossos). A seguir, ela reitera que não teve culpa, pois só
comprara a rosa porque o homem da feira insistira, e assim assume um papel de vítima, buscando
ocultar de si mesma a idéia de que fora egoísta ou vaidosa, papéis inadmissíveis para ela.
Mesmo com tantas argumentações internas, Laura se sente impossibilitada de ficar com as
rosas, porque acredita ser incoerente já que havia comentado com a empregada Maria que daria
as flores a Carlota. A voz dissonante tenta reagir, fazer Laura inventar uma mentira e dizer que
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daria as rosas à amiga mais tarde. No entanto, vence a batalha a voz que abre mão de tudo.
“Porque devia dá-las (...) E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber,
não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se ‘ser’. Sobretudo nunca se deveria ser a coisa
bonita” (p. 47). Nessa lição, reconhecemos ecos da educação tradicional e de valores atrelados ao
pensamento judaico-cristão, que ensina as mulheres o dever de se doar e se abnegar.
Continua a luta interna das duas Lauras, uma que não admite mudar de pensamento e por
isso mantém a decisão de dar as rosas e a outra que tenta ensinar que é possível ir se refazendo,
sem precisar provar nada a ninguém. “(E mesmo – e mesmo elas eram suas)”, esse é o último
argumento antes de Maria perguntar pelas rosas, e é representado entre parênteses, como a dizer
que era um sussurro para a própria Laura, algo a ser ocultado, pois não se podia querer possuir
algo apenas pela gratuidade. Ainda no aspecto da posse, é interessante notar que Laura sempre se
refere a si mesma como a esposa de Armando, caracterizando uma espécie de propriedade.
Laura observa as rosas, parecidas com algo que imaginara e quisera ser. “Olhou-as, tão
mudas na sua mão. Impessoais na sua extrema beleza. Na sua extrema tranqüilidade perfeita de
rosas. Aquela última instância: a flor. Aquele último aperfeiçoamento: a luminosa tranqüilidade”
(p. 48). Mas, cumpre “vagamente dolorosa” o “heróico sacrifício”, já com a “boca seca” , como
uma viciada, vivenciando “aquela inveja, aquele desejo”. Em sua trágica despedida, a afirmação:
“Mas elas são minhas, disse com enorme timidez” (p. 49). Quando Maria carrega o embrulho de
flores, Laura olha e cogita que poderia ficar com uma rosa apenas, e depois “nunca mais se
deixaria tentar pela perfeição” (p. 49). Mas, a porta da rua bate e Maria se vai com as rosas.
A rosa perfeita desabrochou o fruto do (des)equilíbrio
Então, então, então... Três vezes essa palavra aparece quando as rosas vão embora, para
representar a falta de perspectiva e de rumo que se apossa de Laura. Os planos para o jantar não
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mais importam porque parece ter se aberto um abismo sob seus pés. “Mas o ponto ofendido no
fundo dos olhos estava maior e pensativo” (p. 50) e esse ponto era a falta dos filhos que ela não
pudera ter por “insuficiência ovariana” (p. 41). Essa impossibilidade de gerar filhos é uma falha
no projeto de Laura como mulher perfeita, já que a maternidade é vista como fundamental para se
cumprir um destino feminino, segundo a ideologia patriarcal. Vale salientar a voz de Judith
Butler no texto de Hall, reafirmando que o ‘sexo’ é construto ideal forçosamente materializado ao
longo do tempo (2000:127) e assim poderemos compreender que a frustração de Laura em não
ser mãe é fruto também de uma imposição social e não apenas de um desejo individual. Essa
figura propalada do sujeito-mãe, Laura não consegue atingir. “E as rosas faziam-lhe falta.
Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objeto e pela marca
mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar
sem poeira e sem sono dentro dela” (p.50).
Aos poucos, todos os sintomas anteriormente lembrados como aflitivos voltam e ela nem
sequer percebe a noite chegar. Afinal, não havia mais cansaço, a claridade toma conta de si e ela
imagina Armando chegar, deixando a nu todo o ritual diário que eles encenavam: o alívio do
marido em encontrar a esposa e o fingimento dela em não perceber que ele vivia apreensivo em
relação a ela. A referência à claridade, à luz, em analogia à revelação divina, está sempre
presente, ressaltando não só a epifania freqüente nas narrativas de Clarice Lispector, mas uma
forma de reiterar que é nesse estágio de aparente desequilíbrio mental em que Laura vê as coisas
com mais nitidez.
Como Laura está perdida em suas revelações interiores e já entregue ao isolamento
mental, o foco narrativo se distancia dela e se aproxima de Armando que acaba de chegar em
casa. Assim como ocorria em relação à Laura, conhecemos os pensamentos do esposo desde que
ele vira a chave da porta. O pensamento de Armando vem mesmo a confirmar o que Laura já
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adivinhara: a falta de naturalidade e confiança que ele sentia em relação à esposa, pois a cada
instante ficava na expectativa de que o desequilíbrio se manifestasse.
Esse momento de desacordo de Laura para com o mundo ao redor é representado através
da luz: a mulher está “com a serenidade do vaga-lume que tem luz”, “ela fizera o possível para
não se tornar luminosa e inalcançável” (p. 53). Essa caracterização da luz marca o fracasso do
projeto que Laura tentava seguir: ser oculta e apagada como uma mulher deveria ser. Ela é vista
como desequilibrada justamente porque escapa ao modelo de minimização do sujeito feminino.
Por necessitar de cuidados especiais devido à fragilidade mental, ela inverte a lógica tradicional
que atribui à mulher a responsabilidade de cuidar dos outros.
A mimesis do pensamento
Notamos que o entrelaçamento do enredo se realiza através dos pensamentos das
personagens. Primeiro, em quase toda extensão do conto, é a mente de Laura que guia o leitor; ao
final, são as idéias de Armando que se dão a conhecer. O narrador se materializa nos poucos
momentos em que orienta ações, a ida de Laura à penteadeira, a arrumação das rosas, a
aproximação com a empregada, a chegada de Armando. No entanto, na maior parte da narrativa,
esse narrador se coloca por trás das idéias de Laura e, depois, do esposo. Vale salientar, sem um
limite de tempo, pois os pensamentos que tomam conta da personagem, enquanto observa a casa
em apenas uma tarde, rememoram as antigas aflições do tempo do colégio e vão até a expectativa
com as horas seguintes.
Desse modo, observamos que o simples narrar não serviria ao conto porque as ações são
internas, mentais, o conflito não é vivenciado em uma batalha materializada com um oponente,
pois a luta é interior. O herói é ao mesmo tempo seu próprio algoz. E só tal narrativa guiada
através do pensamento da personagem daria a dimensão de todo o conflito psicológico que ela
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vivia, tornando-se assim a tônica dramática do conto, centrada no questionamento do que seria
“normal” ou patológico.
Erich Auerbach (2002) em seu admirável ensaio “A meia marrom”, tomando como base
um trecho da obra To the Lighthouse, de Virginia Woolf, analisa a função fundamental que novas
técnicas narrativas desempenharam ao longo do século XX. Ele já apontava para a presença, em
uma mesma obra, de dois tipos de narrador. O que pouco aparece é o narrador tradicional, que se
ocupa de “indicações correspondentes a curtos acontecimentos periféricos”, e o narrador que
predomina é o que quase não se mostra como tal, visto que nele preponderam os “movimentos
que se realizam na consciência das personagens” (Cf. AUERBACH, 2002, pp. 477-482).
Acreditamos ser esclarecedor apontar características estilísticas que Erich Auerbach encontra em
Woolf e estende às narrativas que utilizam o fluxo da consciência: “O escritor, como narrador de
fatos objetivos desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito aparece como
reflexo na consciência das personagens do romance” (2002, p. 481).
Auerbach destaca que os recursos como o monologue intérieur haviam sido usados já no
século XIX, porém, o crítico ressalta que o meio era empregado de forma diversa da que passou a
ser desenvolvida a partir do século XX. De acordo com Auerbach, antes os autores se
preocupavam em expressar pensamentos das personagens, mediante monólogos ou discursos
indiretos livres, desde que eles tivessem função para o encadeamento das ações, como reflexão de
um acontecimento anterior ou preparação para eventos futuros. Nesses casos, o narrador
continuava mantendo o papel de onisciência e introduzia, claramente, avisando ao leitor, que o
personagem ia refletir isso ou aquilo. Depois, com as vanguardas do século XX, qualquer aviso
ou introdução revela-se desnecessário, pois a orientação tornara-se outra. Conforme Auerbach, a
ficção contemporânea tenta “reproduzir o vaguear e o jogar da consciência, que se deixa impelir
pela mudança das impressões” (2002, p. 483).
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O tratamento do tempo é outra peculiaridade nas narrativas contemporâneas e, como
Auerbach frisa, é fundamental para o entendimento da proposta da ficção moderna. Ao se propor
uma representação centrada nos fatores externos internalizados pelos indivíduos, a narrativa
contemporânea lança mão da tentativa de expressar “o caminho percorrido pela consciência” que
é completado “muito mais rapidamente do que a linguagem é capaz de reproduzir” (Cf.
AUERBACH, 2002, p. 484). Tentando expressar os percursos mentais, as narrativas vão
elaborando um “contraste entre tempo ‘exterior’ e tempo ‘interior’ (2002, p.485)”.
Analisando o conto “A imitação da rosa”, percebemos que, durante um simples ato de
beber o copo de leite, Laura faz todo um passeio mental entre memórias e projeções, e se lembra
das admoestações das colegas no colégio, dos passeios com Armando, das folgas das enfermeiras
que cuidaram dela em seu afastamento. Tomando emprestadas as palavras de Auerbach, não é a
“causalidade do motivo externo” que será importante, mas o desencadeamento do “processo
interno” (2002, p. 485).
Na obra clariciana fica patente que o acontecimento periférico só assume importância para
a compreensão da narrativa na medida em que desencadeia os pensamentos. Como afirma
Auerbach: “O que é essencial é que um acontecimento exterior insignificante libera idéias e
cadeias de idéias, que abandonam o seu presente para se movimentarem livremente nas
profundidades temporais” (2002, p. 487). Auerbach ainda reforça que a ação é só ocasião para
que se desencadeiem processos mentais que têm o maior peso para o entendimento da narrativa.
“As representações da consciência não estão presas à presença do acontecimento exterior, pelo
qual foram liberadas” (2002, p. 487).
Tais peculiaridades de autores contemporâneos atendem a uma proposta estética, segundo
Auerbach. A disposição não é mais se reportarem “a grandes mudanças, momentos cruciais
exteriores da vida”, como seria naquela visão tradicional, mas, deterem-se nos acontecimentos
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pequenos, insignificantes, na “confiança de que em qualquer fragmento escolhido ao acaso, em
qualquer instante, no curso da vida está contida e pode ser representada a substância toda do
destino” (Cf. Auerbach, 2002, pp. 492-3). É o que vemos no conto clariciano, que em uma tarde
pode apresentar uma espécie de panorama do que tem sido a vida de Laura. O crítico ressalta que
os escritores modernos confiam mais nas sínteses, preferem exaurir acontecimentos quotidianos,
em poucas horas e minutos, do que tentar reproduzir cronologicamente num decurso integral
exterior uma existência. Auerbach é brilhante ao afirmar que os escritores modernos “receiam
impor à vida, ao seu tema, uma ordem que ela própria não oferece” (2002, p. 494). Para ele, é
possível garantir a síntese de interpretação através do fluir da consciência da personagem
representada.
Em “A imitação da rosa”, vemos que a organização ou direcionamento da narrativa se dá
através da focalização na mente das personagens, principalmente da protagonista. Dessa forma,
técnicas narrativas, como o fluxo da consciência, apresentam maior relação com o próprio sentido
que o texto possui, fazendo uma aproximação mais evidente entre o conteúdo e a forma. Assim,
os escritores contemporâneos mostram que o que está sendo dito não poderia ser dito de outra
maneira. Vejamos como isso se realiza no conto em questão.
Quando pensa que está “bem”, “normal”, Laura aparece sozinha na narrativa, no momento
em que o conflito emocional cresce dentro de si, ela “dialoga” com a empregada, e, ao final,
entregue ao desequilíbrio mental, aparece o marido Armando. Ou seja, antes, ao pensar que está
em equilíbrio, a personagem é representada sozinha, porque os outros parecem estar
internalizados em seu discurso. No entanto, ao desembocar no mundo do desequilíbrio mental, e
até se reconhecer como pertencente a essa esfera, é a figura do marido que se materializa na
narrativa, sendo representado também através do fluxo da consciência. Nesse momento, a
presença externa parece não significar tanto, afinal Laura já está lançada no mundo da
113
independência e se vê como super-humana, isto é, não está mais tentando construir laços, ainda
que artificialmente, com os outros indivíduos. Assim, estar na presença de Armando não lhe diz
mais respeito porque Laura está inserida dentro de outra lógica, a do isolamento mental.
Percebe-se a divisão do conto em três instâncias. A primeira retrata Laura sozinha em
casa, mas fazendo referência a terceiros, projetando-se no futuro em relações com outros ou
voltando-se em lembrança para os laços que constitui com os indivíduos. Segue-se a fase em que
há a contradição interna e Laura se encontra dividida entre duas ações ou atitudes distintas, sendo
“auxiliada” pela empregada que surge para pôr fim ao impasse, carregando as flores para longe.
E, por último, quem domina a cena é Armando, no fim do conto, pois Laura não está mais lá,
posto que sua consciência embarca no “trem” da insanidade.
Na primeira parte, vemos Laura vivenciando a sensação de ter voltado ao seu mundo
“normal”, ou seja, até encontrar as rosas silvestres. A segunda fase ocorre quando ela vive o
conflito entre doar ou permanecer com as rosas, quando as suas duas vozes interiores dialogam e
se embatem. A terceira fase é a da instalação do desequilíbrio emocional, quando as flores já não
estão mais lá. Enfim, a narrativa é toda estruturada a partir da presença ou ausência das rosas.
Obviamente, além da utilização do fluxo da consciência, é determinante no conto outra
peculiaridade das técnicas narrativas modernas, apontada por Auerbach: “a mudança da posição
da qual se relata” (2002, p. 492), pois o texto inicia com a focalização narrativa em Laura e se
encerra com o foco narrativo sobre Armando. Todas as técnicas aliadas, o stream of
consciousness23, a duplicidade do foco narrativo e a estratificação do tempo, atuam
simultaneamente para formar o todo que é o conto, cumprindo a função de representar o universo
de Laura, deixando o leitor ciente dos dramas que permeiam a personagem.
23
Fluxo da consciência.
114
O social internalizado que exterioriza esteticamente o conflito feminino
Percebemos que a angústia de Laura é calcada no padrão feminino que ela desejava
encarnar, o qual não lhe dá possibilidades de realização. A personagem busca construir uma
imagem artificial para usufruir a chance de viver em coletividade, pois é atingindo a visão de
mulher perfeita que idealizou e internalizou para si mesma que ela acredita estar cumprindo sua
missão no mundo. Talvez não seja gratuito o fato de, ao final do conto, as rosas silvestres
acabarem sendo destinadas à Carlota.
No entanto, a medida em que tenta alcançar o ideal de indivíduo estabelecido como norma
em seu grupo social, ela aproxima-se da loucura. Enquanto esse conflito se potencializa, levando
ao desequilíbrio mental, Laura luta com duas vozes internas. Percebemos que uma das vozes é a
que lhe impulsiona para a satisfação de um desejo (a posse das rosas) e a outra voz é a que sufoca
essa possibilidade de alcançar o prazer. A voz que lhe impede de possuir as rosas, de alcançar a
beleza, é a que repete chavões e lemas para que se perpetue um padrão de comportamento. É a
que faz propaganda dos valores da abnegação, do recolhimento e do controle. A voz que
direciona Laura para lutar pelo que deseja pode ser vista como desafiadora desses padrões,
trazendo argumentos contrários à lógica segundo a qual ela sempre viveu. Podemos até dizer que
essa voz é mais identificada com a imagem de Carlota, amiga que é o oposto de Laura, e que
aparece caracterizada como independente porque mostra marca própria.
Em uma passagem sobre Carlota, Laura reflete que “a amiga tinha um modo esquisito e
engraçado de tratar o marido, oh não por ser ‘de igual para igual’, pois isso agora se usava, mas
você sabe o que quero dizer” (p. 42). Percebemos aí que Laura estranha essa atitude de Carlota,
mas ao mesmo tempo não condena. Ela sente que não há motivos para criticar uma relação de
equilíbrio com o marido, porém, irracionalmente, vê que algo a incomoda. A personagem
115
aparece, portanto, como dividida entre duas formas de exercer o papel feminino e de atuar em
sociedade.
Ao querer afastar-se de Carlota, o que Laura faz é evitar o encontro com tendências
conflitantes do ‘eu’ que forjou para si mesma. Hall nos lembra a afirmação de Laclau: “se uma
identidade consegue se afirmar é apenas por meio da repressão daquilo que a ameaça” (2000:
110). A tentativa de Laura em inserir-se em um determinado modelo do feminino é a tentativa de
escapar dos conflitos desordenados que convivem no seu ego. Hall destaca ainda que, no
processo de identificação, que é uma construção e uma articulação, sempre há algo faltando ou
em excesso, como uma roupa justa ou folgada demais. Essa construção da identidade em Laura é
o que Hall destaca como “fundada na fantasia, na projeção e na idealização” (2000, p. 107).
Ao se opor às posturas de Carlota, vemos que Laura põe em prática a modalidade descrita
por Hall para que assumamos uma identidade perante a sociedade. Mais do que o encontro com
uma identidade, ou essência do que somos, nos construímos mediante a expulsão do outro, ou
melhor, daquilo que está presente nele e que não aceitamos ou fomos levados a acreditar que não
devemos aceitar. O texto de Hall destaca que a questão da identidade tem a ver não com o que
somos, mas com o que nos tornamos, tendo em vista locais históricos e a experiência. É desse
modo que Laura se ilude, acreditando possuir uma identidade una, formada pelo poder
normatizador. É a necessidade do processo de sujeição, em que é preciso sufocar os outros
sujeitos contraditórios para assumir a posição soberana sobre si mesmo, ainda que essa situação
crie a figura de um quase-sujeito:
(...) [As identidades] emergem no interior do jogo de modalidades específicas de
poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do
que o signo de uma identidade idêntica, naturalmente constituída, de uma
‘identidade’ em seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade que tudo
inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação alguma
(HALL: 2000, 109).
116
Analisamos “A imitação da rosa” como espaço onde Clarice Lispector representa
literariamente conflitos vivenciados pelas mulheres na sociedade brasileira da época. O conto,
lançado no início da década de 60, coincide com a aparição mais forte de um modelo feminino
que aos poucos foi sendo alcançado nas sociedades ocidentais: a mulher que não escora o seu
destino na ilusão da “proteção masculina”, como faz Laura. Analisando o conto, vemos que ele
realiza o que Antonio Candido aponta como uma transposição de mecanismos sociais para a
estrutura literária. Conforme o crítico ressalta, existem obras onde é possível detectar que a
questão social não é apenas afirmada abstratamente, nem só ilustrada com exemplos pelo artista,
“mas sugerida na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a
matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade” (Cf CANDIDO, 1985, p.7).
Antonio Candido direciona essa citação à análise que faz de Senhora, de José de Alencar.
Com o mesmo método, ele pretende que os demais críticos consigam ver os entrelaçamentos que
a arte tem com o real, compreendendo que o texto é feito a partir de um contexto. Mas Candido
ressalta que esse contexto não serve apenas como conteúdo ou pano de fundo, sendo utilizado
esteticamente pelos autores. Segundo ele, mesmo dentro da interpretação estética, nós devemos
assimilar a dimensão social como fator de arte. Nas palavras dele, quando consegue perceber o
elemento externo do real se tornando interno na obra de arte, “a crítica deixa de ser sociológica
para ser apenas crítica” (Cf CANDIDO, 1985, p. 7).
No caso de “A imitação da rosa”, percebemos que a autora traz para a obra literária a
questão social da divisão e dos conflitos vividos pelas mulheres diante da mudança de
paradigmas quanto ao seu papel em sociedade, utilizando-a como tessitura estética. O fato de
representar a mente da personagem Laura dividida entre duas formas de atuação, cindida por
vozes antagônicas exemplifica isso. Mostrando Laura como uma mulher que submerge no
desequilíbrio mental e emocional, arriscamos dizer que a voz narrativa pretende ressaltar a
117
impossibilidade das mulheres de serem felizes enquanto estiverem apenas limitando-se a copiar
estereótipos, ao invés de procurarem seguir a voz interna que as deixa livres para buscarem seu
próprio destino.
O desestabilizador nessa narrativa literária é que a personagem, embora percebida à
primeira vista como alienada, tem consciência do caráter de representação e a consciência
extrema é que vai levá-la a ser incluída entre os desequilibrados, afinal, para desempenhar um
papel na sociedade é preciso esquecer que tudo é encenação e acreditar na ilusão de que somos
um ser uno. Hall nos fala da consciência que temos sobre o caráter performativo que
desempenhamos:
(...) as identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora
‘sabendo’, sempre, que elas são representações, que a representação é sempre
construída ao longo de uma ‘falta’, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do
Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – idênticas – aos
processos de sujeito que são nelas investidos. (HALL, 2000, 112).
Foucault nos revela que, mesmo diante dessa representação formada através das forças
institucionais, é possível resistir, ainda que escapando, como ocorre com Laura, que foge do
controle das relações patriarcais, adentrando em outra lógica, a da loucura. “Não há relação de
poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder
implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta (...)” (FOUCAULT, 1995, p.
248). Percebemos que a loucura em Laura pode ser representada como a única alternativa de fuga
para os limites tão rígidos em que se encarcera a personagem, que se amortalha em normas
sociais incorporadas em seu íntimo. Talvez a partida no trem da loucura fosse o único meio de
respirar naquela vida sufocante.
Esperamos, ao longo de nossa análise, embora centrada em apenas alguns aspectos do
texto literário, ter demonstrado como o conto foi construído com base em um todo indissolúvel
que revela a transposição de elementos e questões do mundo “real” para o universo da ficção,
118
levando em conta as alternativas estéticas. Percebemos que Clarice Lispector trata dessas
questões sem fazer panfletagem, trazendo-as intrinsecamente ao texto literário, ao viés dramático
da narrativa. O conflito interior vivido por Laura representa as contradições em jogo na
sociedade, quando as visões tradicionais da mulher ligada ao lar vão sofrendo abalos com a
incorporação de outros modelos femininos que vivem papéis de maior independência. Carlota
seria essa nova mulher, mas o texto só a traz pelo olhar de Laura, que é um misto de recriminação
e admiração. Laura se vê como a defensora da moral e dos bons costumes, mas tal visão altaneira
é carregada de fragilidade e por isso ela não suporta viver no altar destinado a si mesma,
sucumbindo à loucura.
119
6. O “Amor” de Ana liberta a força aprisionada no lar
“Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de
nele caber como se o tivesse inventado” (LISPECTOR, 1998b, p.2024, grifos
nossos).
A frase acima nos fala do destino de mulher que a personagem Ana, protagonista do conto
“Amor”, publicado por Clarice Lispector em Laços de família, em 1960, cumpre. Tal “destino”,
como a própria voz narrativa destaca no trecho citado, não foi algo determinado pela personagem
e parece forjado pela ideologia patriarcal que, ao longo da maior parte da história, colocou as
mulheres no espaço da previsibilidade e de uma rotina sem “surpresa”. É justamente esse dia-adia previsível, encerrado no doméstico e na dedicação aos entes familiares, que a personagem
relata ao leitor, através da voz narrativa, logo no início do conto. Porém, nessa narrativa, a donade-casa Ana vivenciará uma experiência que a coloca em confronto com outras formas de
apreensão da vida ainda incompreensíveis para ela. É essa vivência ambígua de Ana que
pretendemos analisar, por acreditar que ela revela muito acerca do imaginário criado para
entender o feminino, bem como sobre as limitações que foram colocadas na capacidade de ação
da mulher e as estratégias possíveis para ludibriar esses mecanismos de controle.
Ana é uma dona-de-casa que imagina sua vida rotineira como ideal, que teme lançar-se à
fruição do prazer, mas que vai se deparar com um momento epifânico, que a levará a questionar
os seus valores e vivenciar conflitos ligados à culpa. Essa epifania ocorre a partir do momento em
que repara em um cego no ponto do bonde em que está se deslocando, retornando para casa após
cumprir atividades rotineiras, direcionadas à família. Essa visão do cego a faz perder o rumo e
24
De agora em diante citaremos apenas o número da página em parênteses quando se tratar do conto “Amor”, objeto
dessa análise, devendo ser considerada a edição listada na referência bibliográfica.
120
adentrar, sem planejar, no Jardim Botânico, onde descobre na natureza formas de apreensão do
mundo diferentes, voltando para o lar com um novo entendimento sobre a vida e sobre si mesma.
A trajetória de Ana nos remeteu a narrativas basilares da cultura ocidental, como o texto
bíblico e a mitologia grega. Afinal, palavras como piedade e culpa aparecem no conto de modo
marcante, levando-nos a repensar a imagem tradicional que a mulher ocupa na sociedade
patriarcal, que tem suas raízes tanto no mundo greco-latino, quanto no judaico-cristão. A conduta
que Ana adota em sua vida, como o cuidado com a família, a valorização da piedade e o
esquecimento do prazer, é nitidamente o que a civilização patriarcal incutiu nas mulheres, e nos
homens, como sendo anseios naturais dos sujeitos femininos. Através das mudanças sociais
advindas da ocupação dos espaços públicos pela mulher, aceleradas no século XX, uma outra
consciência começa a se espraiar pela sociedade, levando ao questionamento das atribuições
“naturais” ao feminino. É isso o que os estudos feministas conseguem avaliar com competência,
mostrando que a abnegação e o sacrifício, estimulados pela ideologia patriarcal, não seriam
jamais atitudes “naturais” das mulheres. Estudos como o de Betty Friedan, acerca do mal-estar
que dominava as mulheres dedicadas somente ao doméstico, na década de 50, época em que o
conto foi escrito, nos auxiliam a tecer algumas considerações acerca desse conto.
A literatura, ao discutir esteticamente a formação artificial dessa figura da mulher, vai
levar à desestabilização desse papel feminino fundado em uma hierarquia entre os sexos. Nesse
ponto, o conto “Amor” é brilhante, pois coloca o contato de Ana com a natureza como a abertura
para um novo portal de entendimento do mundo, mais sensorial, intenso e prazeroso, por isso,
vedado pelos tabus da sociedade patriarcal. A força desse mundo “natural” era algo que Ana
desconhecia, embora a tendência histórica relacione o feminino à natureza.
Em um texto sobre o relacionamento entre mulher e natureza, Helena Parente Cunha nos
lembra que a natureza é o que se apresenta por espontâneo em si mesmo, enquanto a cultura é o
121
que existe por meio da convenção e que passa pela representação. “Assim, no campo da natureza,
encontra-se aquilo que tem um modo de ser próprio, tal como efetivamente é, enquanto na esfera
da cultura, o propósito humano determinou o modo de ser” (CUNHA, 1992, p.78). Parente Cunha
explica ainda como se deu a associação entre a mulher e a natureza, a partir dos relatos míticos e
da sociabilidade de comunidades antigas, onde a fertilidade e o poder de dar a vida eram tidos
como sagrados, fazendo as mulheres serem adoradas: “Os mitos da Deusa Mãe ou da Mãe Terra
que criou o mundo, correspondem ao período matricêntrico, no qual os homens e as mulheres
viviam imersos na natureza, seu espaço vital” (CUNHA, 1992, p.85). Ao restringir o papel
feminino à reprodução, as sociedades foram se constituindo em patriarcais, fundando leis que
colocam a mulher na sujeição, separando-se, assim, de um contato mais harmonioso com a
natureza, já que a própria natureza torna-se, nessa lógica, passível de ser dominada pela técnica,
que é algo do âmbito da cultura, e que esteve, via de regra, sob o poder masculino. É assim que
os binômios natureza-cultura e feminino-masculino passam a ser uma oposição e não uma
composição de planos, como defende Helena Parente Cunha (Cf. 1992, p.80).
Ao final desse conto, no retorno ao lar, a personagem Ana parece incorporar, no seu dia-adia, uma compreensão acerca da força da natureza e de seu próprio papel na esfera da sociedade.
Nessa medida, a narrativa serve a questionar acerca da interdição das mulheres a formas de
apreensão do mundo que, na verdade, poderiam sempre estar ao alcance delas. Tal pensamento
nos leva ao que a teórica Nelly Richard (2002) afirma sobre as práticas contestatórias de um
discurso feminino que rompe com os ensinamentos do pensamento hegemônico. Afinal,
identificamos a narrativa de Lispector com essas ações, pois é como se Ana empreendesse
fissuras nos ensinamentos da sociedade patriarcal, elaborando um outro modo de pensar sobre si
mesma, e esperamos ao longo da análise deixar isso claro.
122
As sementes da rotina
O destino de mulher em que Ana veio a cair é descrito no início do conto em total
consonância com o que a ideologia patriarcal “inventa” para as mulheres. A voz narrativa relata o
dia-a-dia de Ana como uma proliferação de obrigações que são vistas, porém, como naturais,
tanto que suas ações são colocadas em equivalência com sementes lançadas e germinadas. O
verbo usado para todas as suas atividades (e para as situações que vivencia) é crescer. “Cresciam
as árvores. Crescia a conversa com o cobrador da luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam
seu filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o
canto importuno das empregadas do edifício” (p.19). Tudo condizendo com o que o patriarcado
prescreve ao colocar a função de cuidar da casa, dos filhos e do cônjuge como atribuição
“natural” das mulheres.
Contudo, a artificialidade desse contrato de Ana com o lar parece denunciada logo em
seguida pela informação dada pela voz narrativa de que “certa hora da tarde era perigosa” (p.19),
pois ela nada mais tinha a fazer para os de casa e estava só consigo mesma. Ana se incomoda
com o ócio, que parece atividade indigna para as donas-de-casa, afinal, na lógica patriarcal, tudo
está a serviço de cuidar do outro. É o que confirma a frase: “Quando nada mais precisava de sua
força, inquietava-se” (p.19).
Força parece ser a palavra-chave para entender a diferença que Ana insinua frente a
outras personagens claricianas que se dedicam ao universo doméstico. Uma diferença salta aos
olhos nesse conto: o sujeito “nós” é empregado com naturalidade pela voz narrativa. “O calor era
forte no apartamento que estavam aos poucos pagando” (p.19, grifo nosso). Até certo ponto, Ana
se percebe como sujeito atuante também, que compõe um “nós” ativo. O texto sempre enfatiza o
que Ana faz, como ela atua e como isso é determinante para o curso da vida de quem a rodeia:
“Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida” (p.19).
123
Mesmo assim, essa mulher que é capaz de gerar filhos “bons, uma coisa verdadeira e
sumarenta” que usa cortinas “que ela mesma cortara” não é capaz de evitar “certa hora da tarde”
em que “as árvores que plantara riam dela” (p.19). É justamente tentando escapar dessa perigosa
hora da tarde, no início do conto, que o leitor flagra a personagem. Ela está retornando de mais
uma tarefa, compras, que fora fazer para fugir da solidão do lar. Somos apresentados a Ana no
bonde, onde “um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô”, ela recostase, “procurando conforto, num suspiro de meia satisfação” (p.19). Ou seja, o destino que cabia na
cozinha espaçosa parece não ser suficiente, nesse momento. O sorriso é de meia satisfação,
parecendo fingimento para si própria.
No trajeto do bonde, a voz narrativa nos fornece mais elementos sobre o presente de Ana
e até insinua um pouco o seu passado. A partir daí, intensifica-se a relação entre a voz narrativa e
a personagem, como comumente ocorre nos textos claricianos. Como muitos críticos apontaram,
não adiantava Clarice Lispector narrar em terceira pessoa, seus textos sempre se abrem para o
discurso indireto livre das personagens, parecendo mesmo estarem em primeira pessoa. Luiz
Antônio Mousinho Magalhães, no texto “Clarice e o germe da escritura” (1995) destaca essas
mutações no perfil do narrador, analisando mais de perto os manuscritos do conto “A bela e a
fera ou a ferida grande demais”, mas alcançando uma compreensão que vale para outras obras da
autora e para essa narrativa com a qual nos ocupamos. Segundo Magalhães, é como se essa voz
narrativa rumasse ao “enfraquecimento da onisciência” para “preocupar-se menos em contar
fatos, concentrando-se em sondar as sensações que tomam a personagem” (1995, p.414).
No conto “Amor”, a voz narrativa vai apresentando Ana e seu passado ao leitor, o que
pode ser também a própria consciência da personagem, se auto-avaliando. Afinal, aqui o passado
se imiscui de modo sutil ao presente, enquanto a personagem tenta minimizar a importância dos
fatos e desejos pregressos, tentando encontrar um sentido útil para eles em seu dia-a-dia. “Todo o
124
seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e
belos; com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem”
(p.20, grifos nossos). Nesse passado, já se insinuava a desordem interior que a personagem vai revivenciar mais adiante. Outras frases apresentam esse passado de Ana como algo fluido, visto
como incompreensível, em contraste com o presente tão material:
Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela
havia aos poucos emergido para descobrir que também sem felicidade se vivia:
abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas que viviam como quem trabalha –
com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar
estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas
vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim
compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera (p.20, grifos
nossos).
Grifamos as referências ao passado de Ana que possuem semelhança com a situação que
ela vivenciará ao entrar no Jardim, onde nem tudo cabe na lógica que ordena os dias, seguindo as
necessidades de arrumação e alimento. A mocidade da personagem parece semelhante à de
Lucrécia de A cidade sitiada, sempre à espera de que algo aconteça, pairando sem finalidade na
vida. Já no cotidiano atual, as preocupações de Ana são mais materiais e imediatas, embora ela
pareça inventar atividades, para tentar escapar da ociosidade, tendo uma sensação de espanto
quando vê os móveis limpos, inúteis para as suas mãos. Ana reitera que esse é o destino que
escolhera. Mas, a afirmação entra em contradição com o que foi dito no início: que ela caíra
nesse destino de mulher, como se o tivesse inventado.
A frase, que é repetida mais adiante, “assim ela o quisera e escolhera”, soa tal qual a
sentença bíblica “Deus disse e assim se fez, e Deus viu que era bom”25 (Gn 1, 9-10). Tal analogia
é compreensível, pois a personagem também parece querer forjar um mundo para si. Aqui, vale
destacar novamente o verbo crescer evocado no início do conto. “Ela plantara as sementes que
25
“Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa”. (Gn 1,3-4) Bíblia sagrada. Coord.
Ludovico Garmus. Petrópolis, Vozes, 1982. p. 27. As origens. 1. As origens do mundo.
125
tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores” (p.19). É como se Ana não
conseguisse parar de se sentir responsável pelo destino dos demais, como demonstra a frase que
caracteriza a sua angústia. “Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da
tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família
distribuído nas suas funções” (p.20, grifos nossos).
Vemos que a personagem se acha esvaziada de uma função, agindo só em favor dos
outros. É a prática incutida em muitas mulheres, cuidar e servir aos outros, nada exigindo para si
mesmas, analisada no artigo “Diferenças de gênero e desenvolvimento moral das mulheres”, de
Thereza Montenegro (2003), que enfoca o ato de cuidar como constituinte do sujeito feminino. A
preocupação de Thereza Montenegro é abordar a polaridade entre o cuidado e a racionalidade, o
primeiro associado à ideologia maternalista, fundamentada na experiência, enquanto o outro seria
um aprendizado da filosofia kantiana, que se baseia em princípios da justiça legal e política. A
autora trata das dualidades expressas na filosofia de Kant, que distingue razão e emoção,
vinculando-as ao par universal-pessoal, identificando os homens com o primeiro e as mulheres
com o segundo. Vemos aqui reaparecer mais uma oposição, como no binômio cultura-natureza.
Por ora, nos interessa o que Montenegro pesquisa sobre o significado cultural do cuidado para as
mulheres, analisando o trabalho de Carol Gilligan e de outras autoras como S. Kathryn Boe26,
para quem a dedicação ao cuidado é um fator que contribui para manter o sujeito feminino em
uma posição inferior na sociedade, pois desestimula a realização pessoal (Cf. 2003, p.494-5):
A ética do cuidado, apreendida na forma como as mulheres respondem a dilemas
morais, traduz-se em busca de intimidade e sensibilidade às necessidades do
outro, diferenciando-se da ética do direito que vinha fundamentando a psicologia
do desenvolvimento moral, centrada na busca de realização individual, levando à
definição de maturidade como sinônimo de autonomia pessoal. Segundo
Gilligan27, as mulheres norteiam-se por um princípio moral distinto, que as leva
26
BOE, S. Kathryn. “Language as an expression of caring in women”. In. Antropological linguistics. V.29, n.3, Fall,
1987. p. 270-285.
27
GILLIGAN, Carol. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1982.
126
a priorizar o outro em suas ações morais, indo além do princípio de justiça
(MONTENEGRO, 2003, p.498).
Tal lógica é bem compatível com o que é vivenciado pela protagonista, como demonstra
esse trecho: “Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da
família à revelia deles” (p.21, grifos nossos). O cuidado com os familiares é apresentado quase
como obsessão ou vício, o que nos faz tecer conjeturas: a questão aqui é controlar os outros para
que ela própria não saia do controle? Novamente, o cotidiano é enfatizado, como nas outras
narrativas de Clarice e vemos que de forma análoga à condição de Sísifo28. Ao invés de uma
punição dos deuses, os movimentos são coordenados para esquecer de algo em que não se deve
pensar. “De manhã, acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo
empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos” (p.21).
A personagem parece enfrentar “o problema que não tem nome”, já mencionado, que
Betty Friedan preocupou-se em analisar em seu livro “A mística femina”, onde faz uma meaculpa do que realizou enquanto era editora de revistas femininas nos Estados Unidos. Embora o
livro trate da realidade americana, percebemos agudas semelhanças com a situação das mulheres
do Brasil na mesma época. Não é demais lembrar que a própria Clarice Lispector viveu nos
Estados Unidos durante a década de 50 e o conto foi escrito justamente em 1954. A autora
destaca que as mulheres somente relatavam seu dia-a-dia quando era solicitado nas entrevistas
que expressassem o incômodo que sentiam em suas vidas. Depois do sucesso da publicação,
muitos insistiram em achar uma causa orgânica para esse mal-estar, que tem relações com as
28
Sísifo era considerado o mais astuto dos mortais, mas, por sua traição a Zeus, foi punido, sendo enviado aos
Ínferos e condenado a empurrar uma pesada rocha de mármore de uma planície montanha acima. Quando achava que
tinha atingido o cume, a rocha se voltava e rolava para baixo. Assim, Sísifo foi condenado a repetir, incessantemente
o feito. Cf. SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da Antiguidade Clássica: os mitos de Grécia e de Roma. São
Paulo: Paz e Terra, 1996. Vol 1. Metamorfoses e mitos menores. (p.112)
127
questões de identificação dos sujeitos femininos. O livro serviu para expor um lado da sociedade
que foi tradicionalmente incentivado a permanecer no anonimato.
Muitas mulheres relataram a Betty Friedan que se sentiam totalmente anônimas, quase
confundidas com um móvel da casa. Estranho é que a voz narrativa nos diz que Ana “alimentava
anonimamente a vida” (p.21). Essa negação da própria presença tem a ver com o que Betty
Friedan coloca sobre a “mística feminina”, imaginário que age sobre as mulheres nas sociedades
patriarcais, e que as leva ao esquecimento da satisfação pessoal: “A mística feminina permite, até
encoraja, que as mulheres ignorem a questão de sua própria identidade (FRIEDAN, 1963, p.71,
tradução nossa)”29. Como observa Friedan, as mulheres se acostumaram a responder a pergunta
“quem sou eu” dizendo “a mulher de fulano ou a mãe de beltrano”.
A desocupação, o tempo ocioso, parece trazer perguntas sobre identidade e é justamente
disso que Ana pretende escapar, buscando adiantar o “fim da hora instável”, quase aliviada pela
chegada da noite e a possibilidade de retornar ao lar e a família. “Ana respirou profundamente e
uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher” (p.21). Curiosa a presença da palavra
aceitação como sendo algo associado à mulher, pois, tal sentença parece até assemelhar-se às
descrições que são feitas acerca de Maria, quando se resigna a seu destino de ser a mãe do
Salvador, na visita do Anjo Gabriel30. Mas, embora a aceitação transmita uma sensação de
recolhimento no interior do sujeito, Ana está exposta à rua, pois “o bonde vacilava nos trilhos,
entrava em ruas largas” (p.21), ou seja, a protagonista não está mais encerrada no lar. Isso abre
possibilidades e antecipa a entrada em outra dimensão da narrativa.
29
“The feminine mystique permits, even encourages, women to ignore the question of their identity” (no original,
FRIEDAN, 1963, p.71).
30
“Disse então Maria: ‘eis aqui a escrava do Senhor. Aconteça comigo segundo tua palavra!’” (Lc, 1,38). Bíblia
sagrada. Coord. Ludovico Garmus. Petrópolis, Vozes, 1982. p.1238. Novo Testamento. Evangelho de São Lucas.
128
Essa nova dimensão surge através do susto, da retirada das engrenagens da vida posta sob
trilhos tão seguros, que se arrastavam, com tempos mecanizados. Ana pensava em descansar ao
longo do caminho para casa, até que ela vê um cego mascando chicles. Essa visão de alguém que
não lhe vê abala a dona-de-casa que, rapidamente, quer afastar o pensamento da cena, tentando
lembrar-se dos compromissos que têm logo a seguir, como o jantar na companhia dos irmãos. No
entanto, a tentativa é malfadada porque a visão do cego altera seus batimentos cardíacos e lhe faz
pensar em vários sentimentos, afastando sua mente dos afazeres diários.
O bonde arranca e surpreende Ana, jogando-a para trás. Com o susto, ela grita, chama a
atenção dos passageiros que sorriem da cena, pois o embrulho cai no chão e os ovos se quebram.
“Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e
avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia” (p.22). Todos os
passageiros continuam seu rumo com o bonde, esquecidos da cena de Ana ao derrubar os ovos,
mas a dona-de-casa parece ter o pensamento fincado na cena do cego: “A rede de tricô era áspera
entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde
era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música,
o mundo recomeçava ao redor” (grifos nossos, p.22).
Na frase que grifamos, a voz narrativa torna a situação de Ana semelhante a de um
encantamento31. É fácil perceber que o encontro com o cego, paradoxalmente, faz Ana ver as
coisas com mais intensidade. Por que o cego parece atrair tanto a atenção de Ana? Ele não sente
tanto a hora perigosa da tarde, que antecede a escuridão, já que vive mergulhado no escuro. Ele
se lança com as mãos para frente para agarrar o que possa acontecer, enquanto a protagonista
parece temer o futuro. O cego simbolizaria então a relação que temos com o futuro, não
31
Lembramos aqui da imagem da flauta encantada do conto egípcio musicado por W. Amadeus Mozart.
129
enxergando o que temos pela frente. Seria esse o medo de Ana? Após a visão, ela não se sente
mais enredada no cotidiano que traçara, mas parece aberta ao fluir livre do pensamento:
O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas
amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas
na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da
escuridão – e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas
não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana
agarrou-se ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas
pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram (grifos nossos
p.22-23).
A primeira palavra que destacamos nos remete ao que foi analisado por Betty Friedan
acerca das mulheres que se ocupam para esquecer da insatisfação que as invade. Mal-estar fica
ainda dentro do campo semântico da náusea, que vai ser mencionada na narrativa e que é
impossível de ser dissociada de Jean-Paul Sartre. Benedito Nunes, conforme mencionamos antes,
é um crítico que analisa muito bem a função diferente que a náusea desempenha na autora. A
náusea, segundo ele, entendida como a forma emocional violenta da angústia, que brota dos
momentos de distanciamento da familiaridade, quando o ser humano está em contato com a
existência de modo solitário, é verificada nas situações-limite em que diversas personagens de
Lispector se encontram e está presente de modo especial em Ana: “Em ‘Amor’, a náusea é a crise
que suspende a vida cotidiana da personagem. A lembrança dos filhos, a presença do marido,
ainda têm forças para reter Ana à beira do perigo de viver, que diante dela se abre como um
abismo sem fundo” (NUNES, 1976, p.101). A náusea marca o momento em que a personagem se
desvencilha da racionalização cotidiana e ingressa em um estágio caótico de inquietação e
confrontação consigo mesma. Benedito Nunes ainda continua a nos apontar o que parece ser uma
tentativa de enfrentamento à realidade circundante, ainda que subjetiva:
Para Clarice Lispector, a náusea apossa-se da liberdade e a destrói. É um estado
excepcional e passageiro que, para a romancista, se transforma numa via de
acesso à existência imemorial do Ser sem nome, que as relações sociais, a
130
cultura e o pensamento apenas recobrem. Interessa-lhe o outro lado da náusea: o
reverso da existência humana, ilimitado, caótico, originário (NUNES, 1976,
pp.101-102).
O jardim
Esse caminhar de Ana para longe do cotidiano regulado começa a se insinuar já na
menção de que está expulsa de seus dias, referência que parece ter semelhança com a expulsão do
paraíso no Jardim do Éden. O caos também é inferido a partir do medo de Ana em ver uma
ausência de lei no mundo e pelo temor da mudança. O mundo patriarcal a que foi acostumada
parece passível de ser transformado, pois, tudo começa a perder o sentido e a personagem vê que
a ordem das coisas pode ser alterada. Essa exaltação de ânimos lança a protagonista em uma
outra forma de observação da vida, em que não parece mais existir o certo e o errado e em que os
opostos se unem em uma harmonia assustadora: “O que chamara de crise viera afinal. E sua
marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se
tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas” (p.23). A descrição é como
a de alguém que tem seu estado de percepção alterado, em uma espécie de transe.
No entanto, o que Ana observa nada mais é que as ruas e pessoas comuns; o que se
modificou foi o seu olhar. Agora, tanto a felicidade quanto a violência que observa nos outros é
pensada em relação ao cego. “Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as
pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam” (p.23). A palavra piedade vai aparecer outras
vezes no texto, parecendo ser a principal preocupação da personagem, sendo importante no
contexto que abordamos, anteriormente, a respeito do cuidado com o outro. Ironicamente, a
preocupação dessa personagem sobre a falta de piedade surge na passagem pela rua Voluntários
da Pátria, nome que remete aos brasileiros que se alistaram “espontaneamente” na Guerra do
Paraguai e foram responsáveis por uma das maiores carnificinas da América do Sul, mas, para
131
quem o país construiu uma imagem de cidadãos da ordem e da honra. A preocupação de Ana
com a piedade parece emergir do imaginário judaico-cristão, que a coloca como um sentimento
natural das mulheres. Mas, agora a piedade parece incomodar a protagonista ou, pelo menos, ser
vista de outra forma, passível de questionamento, pois “Ana caíra numa bondade extremamente
dolorosa” (p.23).
O jogo contraditório entre os sujeitos e os adjetivos é bem marcante nesse conto, já que a
temática envolve o descobrimento de novas valorações por parte da personagem. “Ela apaziguara
tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. (...) E um cego mascando goma
despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a
boca” (p.23). As novas sensações atraem a dona-de-casa, mas lhe trazem repulsa também. Porém,
ela segue como que hipnotizada em perseguição a essa nova realidade. Nesse momento, parece
viver situação semelhante à do cego, pois também está com dificuldade de locomover-se em meio
ao escuro, e está perdida, sem direção:
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza
em que estava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis,
olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não
conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite (p.23).
Em 1974, Clarice vai escrever Onde estivestes de noite, conto sobre o imaginário obscuro
que habita cada ser humano e que afloraria na noite, nos sonhos. Helena Cunha nos lembra que
“o relaxamento do sono (e do sonho) propicia a soltura das amarras repressivas, impostas pelas
leis culturais” (1992, p.84). Parece ser essa sensação de liberar o imaginário que começa a se
apossar da personagem: “Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os
arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais
132
misterioso rodeava-lhe o rosto” (grifos nossos, p.24). Tal qual Adão32 Ana recebe um sopro de
vida e descobre seu lugar reservado no jardim. Aqui, é o Jardim Botânico, espaço da natureza
domesticado pela civilização, mas que vai mostrar-se ainda selvagem, livre de controles.
Também Ana encontra-se livre, sem ninguém por perto, a sociedade se distancia e ela ingressa no
reino da natureza. Filhos, marido, casa, tudo isso ficara lá fora. “Não havia ninguém no Jardim.
Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo”
(p.24). A mulher coloca os ovos de volta para a natureza, parecendo uma oblação. A perda da
noção de tempo é fator que mostra a quebra no ritmo do cotidiano da dona-de-casa. “A vastidão
parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si” (grifos nossos,
p.24). É um outro estado de consciência que a personagem parece alcançar.
A narrativa a partir daí é uma descrição do ambiente em que Ana se encontra, “no meio
sonho pelo qual estava rodeada” (p.24). Abelhas, aves, gato, pardal, aranha, esquilo e insetos
passam pela personagem, assim como ela percebe as plantas e frutas que a cercam. Ela fica em
silêncio e não consegue nomear e entender a situação que está vivendo, apenas sente. Helena
Parente Cunha destaca que a cultura é que é passível de maior representação do que a natureza e,
por isso, vemos que no contato de Ana com o Jardim ela parece estar boquiaberta; não fala por
estar imersa no maravilhamento do olhar. Segundo Helena Cunha, a natureza conectada com a
physis situa-se “no plano do que se manifesta, mas se subtrai à representação e ao símbolo”, se
ocultando “no indizível e no mistério” (Cf 1992, p.78). Por sua vez, “a representação torna a
cultura o lugar do dizível” (Cf. Cunha, 1992, p.78) e é por isso que Ana consegue falar sobre seu
cotidiano, totalmente mediado pelas convenções sociais, enquanto na natureza, que escapa ao
32
“Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem se
tornou ser vivo. Depois o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, ao oriente, e ali pôs o homem que havia
formado. E o Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto atraente e saborosas ao paladar, a
árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2, 7-9) Bíblia sagrada. Coord.
Ludovico Garmus. Petrópolis, Vozes, 1982. p. 27. As origens. 1. As origens do mundo. (p. 29-30).
133
controle de regras culturais, não há palavra suficiente para descrever, representar, abordar. A
experiência é vivida na carne e na mente, levando-a ao conhecimento de outras formas de acesso
ao saber, não mediadas pela cultura.
A situação de Ana é parecida com a de Martim, de A maçã no escuro, que encontra a si
mesmo, ao ver-se imerso na natureza. “E de repente, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.
Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber” (p.24). A dona-decasa se vê como uma refém, rendida, enfeitiçada, envolta em uma magia que assusta e atrai. “A
crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos”
(p.25). O mundo fora das regras sociais não tem os lugares estabelecidos fixamente pela moral
burguesa e patriarcal e isso surpreende Ana, que se vê envolta em paradoxos: “Ao mesmo tempo
que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e
tulipas” (p.25). É o sensorial que pode, enfim, ser desfrutado, tão diferente da vida ordeira que
controla os prazeres e organiza os dias pelas obrigações. É uma lógica inversa a daquele
aprendizado de que sem a felicidade se vive, propagado para a personagem. “Como a repulsa que
precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante” (p.25).
Ana também nos antecipa o que Clarice Lispector vai mostrar com A paixão segundo
G.H. O medo que G.H. tem da barata é transmudado em fascinação, demonstrando ser possível
aproximar-se do que se teme, do que se acredita ser o oposto. A referência às flores e aos animais
também nos fez lembrar de Água Viva. “Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se
conta. Pareço ter certo horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios
instintos embora livres e indomáveis” (LISPECTOR, 1998i, p.44). Se Ana também consegue ver
liberdade no contato com a natureza será porque ela enxerga sua vida como agrilhoada?
O que sabemos é que essa protagonista sente o contato com uma realidade quase
imemorial através da vivência no jardim, o que nos remete ao tempo mítico do Éden. O jardim do
134
Éden foi a última criação da natureza, antes da humanidade e dos demais animais. O homem foi
criado para cuidar desse jardim, sendo, pois, sua parte integrante. Assim sendo, a personagem
Ana, ao ingressar no jardim, nada mais faz do que retornar à origem mítica. A expulsão do jardim
paradisíaco ocorreu depois que a mulher comeu do fruto da árvore do conhecimento e o ofereceu
ao homem, tentada a alcançar a inteligência. Conhecer aquela árvore significava partilhar os
mesmos saberes do Deus, como incentiva a serpente. Vemos que Ana tenta igualar-se a Deus,
fazendo os seus próprios dias, conforme regras que não permitem a surpresa do destino. Sua
expulsão seria o oposto, ou seja, voltar ao paraíso, aceitar o desconhecimento das regras e
entender que está integrada à mesma ordem da natureza que foge ao seu controle. Ao menos, ela
se depara com outra realidade:
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando
Ana pensou que havia crianças e homens com fome, a náusea subiu-lhe à
garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era
outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um
mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas (p.25,
grifos nossos).
Concordando com Benedito Nunes, vemos que os bichos e as flores, o natural em si, nos
comunicam “a presença da existência primitiva, universal, que o cotidiano, o hábito, as relações
sociais mantêm represada” (1976, p.125). No jardim, Ana se vê desvinculada de seu presente;
segundo Benedito Nunes (1995), a falta de sentido asfixia a personagem, quando se retira o véu
protetor do cotidiano e a natureza (pólo colocado como oposto à cultura) se mostra mais forte e
decisiva em oposição à praticidade da vida diária (Cf. pg.116-118). Massimo Canevacci (1981) já
apontara, em sua revisão interdisciplinar acerca da família, que essas duas esferas, natureza e
cultura, se relacionam e são dependentes entre si. “Por natureza, entendemos a realidade objetiva,
o mundo material que é ao mesmo tempo interior e exterior ao ser humano – à subjetividade –,
numa relação de constante e insolúvel tensão” (CANEVACCI, 1981, p. 30). Essa definição do
135
autor toma por base as idéias do jovem Karl Marx. “Não é possível – a não ser recaindo no
idealismo – considerar a natureza em si, sem relacioná-la com o estágio alcançado em cada
oportunidade concreta pela sua apropriação social, assim como a sociedade é uma categoria
natural” (1981, p.30). Por natural, se entenda o impulso de união nas comunidades e nos
casamentos. Porém, o próprio Canevacci ressalta que as relações sociais humanas transformaram,
através da cultura, a espontaneidade desse impulso de união entre o homem e a mulher,
subjugando-a a outros interesses33.
O cotidiano regularizado ao qual a personagem se submete só poderia ruir quando ela
encontrasse algo estranho a essa realidade, como o cego, tradicionalmente identificado como um
excluído em nossa sociedade. É simbólico que o revelador da vida para Ana seja um cego, tal
qual o profeta Tirésias34, da Grécia antiga, que desvelava em Tebas o destino de humanos e
heróis. A dona-de-casa parece, no início, obrigada somente a sentir piedade pelo cego anônimo,
um sentimento tão bem aceito pela moral burguesa e judaico-cristã que prega a pena, a
comiseração, e mantém o distanciamento daqueles colocados na exclusão. Mas, ao ver, através do
jardim, que tudo é integrado, ela não sente mais essa distância e a piedade se perde, como um
sentimento inútil. Ana parece ver na cegueira física do homem parado na rua uma simbolização
da sua situação, na medida em que o cotidiano lhe faz fechar os olhos para a vida lá fora.
33
“Criar a vida é a única atividade humana que, para ser satisfeita, requer a presença de um partner. A essência dessa
satisfação deveria ser colocada na perspectiva de exaltação máxima da espontaneidade, do entregar-se totalmente a
um outro ser. Ao contrário, a procriação tornou-se fonte do mais imerecido dos privilégios, quase como se
significasse o supremo sacrifício, desde que o homem descobriu a relação de causa e efeito entre ato sexual e
geração. Poder estabelecer uma descendência certa e legítima foi a viravolta histórica para a transmissão hereditária
dos bens e, portanto, para a ‘invenção’ da família monogâmica patrilinear” (CANEVACCI, 1981, p.34, grifo do
autor).
34
O vidente Tirésias era filho de Everes e da ninfa Cariclo. Quando jovem, a deusa Atena o cegou. Sua mãe Cariclo
implorou a deusa para que lhe restituísse a visão, mas Atena alegou que isso estava além dos poderes dela. Em
compensação, Atena aguçou tanto a audição de Tirésias que ele se tornou capaz de compreender as vozes dos
pássaros, que lhe relatavam os fatos futuros e segredos ocultos, e passou a ser o vidente da cidade de Tebas. Cf.
SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da Antiguidade Clássica: os mitos de Grécia e de Roma. São Paulo: Paz
e Terra, 1996. p. 296. Vol. 1. Metamorfoses e mitos menores.
136
O prazer sensorial que Ana desfruta no Jardim Botânico nos remete ao imaginário que foi
construído acerca da tentação da mulher no Éden. Embora o texto bíblico indique que o fruto
tentador era o conhecimento, a moral judaico-cristã identificou o prazer sexual como essa
tentação a qual a mulher e o homem original não conseguiram resistir. Mas, como a mulher foi
quem indicou o fruto ao homem é a única, verdadeiramente, responsabilizada pela expulsão do
Paraíso, que resultará no início das punições, como a dor no parto, para as mulheres, e o trabalho
árduo de domínio da natureza, para os homens, antes desnecessário no contato paradisíaco com a
terra, que dava seus frutos livremente.
Helena Parente Cunha nos destaca que já aí se institui a ótica do “patriarcalismo dualista”,
pois “a mulher se define pela sexualidade e o homem, pelo trabalho” (Cf 1992, p.86). Mais ainda,
a sexualidade é associada como negativa, na medida em que essa leitura patriarcal coloca o sexo
como a causa da cisão entre o casal original e o Deus, justificando, assim, a repressão do prazer,
principalmente para as mulheres, e motivando a coação masculina sobre o corpo feminino, que é
identificado, então, com a natureza: “A leitura judaico-católica do Gênesis, ao instituir o modelo
patriarcal no Ocidente, reforçou a ligação da mulher com a natureza e, portanto, com o sexo e o
prazer, porém da maneira mais desprezível. Praticar o sexo significa transgredir a Lei do Pai e
sofrer a punição” (CUNHA, 1992, p.86)35.
A hora de Ana voltar ao cotidiano aparece mediante o medo: “O Jardim era tão bonito que
ela teve medo do Inferno” (p.25). O Inferno é outra construção do imaginário judaico-cristão que
reforça o controle sobre os seres humanos, ameaçando-os de punição. Mas, mesmo com esse
35
“Assim, proíbe-se o sexo e despreza-se a mulher que faz despencar o flagelo no mundo dos homens. Se antes a
fertilidade tornava a mulher sagrada e venerada, no universo patriarcalista, passou a indicar fraqueza, em oposição ao
poder do homem que trabalha e domina a natureza. O pênis se torna símbolo do poder e do prazer, chegando à
condição de fálico, isto é, capacitado para oferecer o preenchimento da falta (ilusão pretensiosa da pretensa
onipotência masculina)” (CUNHA, 1992, p.86, continuação da citação).
137
alerta sobre o Inferno apavorando a mente, a personagem ainda se deixa render pelos encantos do
lugar que lhe fascina e enoja, concomitantemente. “Mas, quando se lembrou das crianças, diante
das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda” (p.25-26). A mulher tenta assim, refazer a sua
vida, mesmo desfragmentada como o ovo, quebrado, que vemos ser um símbolo do processo pelo
qual passa Ana, assumindo nova forma.
O fruto
Com a alma batendo no peito, ela chega até seu apartamento. “A piedade pelo cego era
tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu” (p.26). No olhar
que lança pela casa, tudo parece brilhar, causando estranheza na proprietária. “E por um instante
a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver” (p.26). A
declaração demonstra um outro estágio de compreensão da personagem acerca de sua própria
vida e mostra que Ana não é mais a mesma. Tal qual o ovo que, ao se quebrar, expõe outras
formas de vida que adormeciam em seu interior.
O encontro com o filho revela ao leitor todo o temor e os pensamentos que tomaram conta
da personagem enquanto estava livre, na fruição do Jardim. “Apertou-o com força, com espanto.
Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado
– amava com nojo” (p.26). Esse encontro com o filho parece uma inversão de papéis, por vezes.
É a mãe que busca conforto por estar insegura, porém, ao mesmo tempo, sente-se na obrigação de
alertá-lo para a vida lá fora, mostrando-se, então, experiente. Só que de um modo diferente, sem
oferecer consolo, afinal, após a experiência no Jardim, Ana percebe que não carrega qualquer
resposta sobre a vida, como parecia, no início do conto, quando se sentia capaz de cuidar dos
membros da família. A voz narrativa revela que Ana cogitou abandonar a família e atender o
138
“chamado” do cego para ir a busca de “lugares ricos e pobres que precisavam dela” (p.26). Nesse
momento, Ana chega a dizer “a vida é horrível” e “tenho medo”, em claro desacordo com o que
prega a ideologia patriarcal para as mães, vistas como um apoio. Assustada com o forte abraço da
mãe, chorando, a criança se desvencilha de Ana, enquanto essa diz “não deixe mamãe te
esquecer” (p.26). A frase pode soar ambígua, pois ela mesma afirmara pouco antes que o filho era
a pessoa “a quem queria acima de tudo” (p.26).
Ana parece mesmo enxergar a vida como marcada por sentimentos diferentes e se sente
dividida entre “o cego ou o belo Jardim Botânico” (p.26), pois “já não sabia se estava do lado do
cego ou das espessas plantas” (p.27). O cego lhe despertaria sentimentos de contenção e controle,
condizentes com sua situação de mulher padrão da sociedade patriarcal, enquanto ela vê que a
vida a pulsar nas suas veias pode ser tão livre como a dos seres que estão na natureza, sem
depender de regras sociais. Essa descoberta, porém, deixa a personagem atônita; ela cai numa
cadeira, prendendo ainda a rede com os restos de ovo, e se questiona porque sente vergonha:
“Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava.
Estava diante da ostra. E não havia como olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais
piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver” (p.27).
A voz narrativa já mencionara que Ana era fascinada pelas ostras, amando-as com nojo,
“com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava” (p.26). A
imagem da ostra é muito relevante, pois nos lembra as pérolas geradas nesses moluscos, uma
transformação interior que não ocorre em todos esses seres, tornando-os especiais, destacados,
entre os demais. Parece ser o que acontece com Ana, que se descobre maior do que pensava, após
a experiência no Jardim: “Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo (...) A vida
do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar” (p.27). Esse chamado
é para desfrutar da vida sensorial que existe no Jardim, assim sendo, não é gratuito pensar nas
139
propriedades afrodisíacas atribuídas à ostra, que está presente desde a representação da deusa do
amor, Afrodite, e que simbolizaria, no conto, a indicação de um desejo latente por uma vida mais
associada ao prazer.
A personagem ainda se revolve em busca daqueles sentimentos domesticados como a
piedade e a misericórdia, mas descobre que esses ganharam novas acepções. Afinal é uma
“misericórdia violenta” e uma “piedade de leão” (p.27). A mulher ainda tenta se agarrar ao amor
que devota ao cego, mas percebe que esse sentimento não está vinculado à pena que a ideologia
dominante recomenda, pois “não era com este sentimento que se iria a uma igreja” (p.27).
A descoberta de si mesma assusta e a personagem tenta escapar desse medo, indo à
cozinha, “ajudar a empregada a preparar o jantar” (p.27). De novo, a dona-de-casa procura tarefas
rotineiras para fugir das sensações que lhe dominam. “Mas a vida arrepiava-a, como um frio”
(p.27), pois nas mais simples tarefas descobria ainda a força da natureza. Poeira, aranha, formiga,
besouros e insetos são olhados por Ana de uma maneira diferente agora. “Carregando a jarra para
mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo
trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé uma formiga. O
mínimo corpo tremia” (p.28). É outra rotina que a personagem percebe, desregulada por suas
novas descobertas fora do lar.
Na volta para casa, há uma identificação ou relação mais íntima com os bichos e plantas
não mais vistos como obstáculos a serem eliminados para dar lugar à regularidade da vida, à
limpeza, pureza, já que a percepção da natureza vai demonstrar a artificialidade dessa construção
ideal, asséptica, posto que até a decomposição faz parte dessa vida, que se regenera. Depois da
experiência integradora do Jardim, esses bichos são vistos como parte de Ana também, que não
se identifica mais somente com as leis sociais, agora se insere na ordem selvagem do mundo. “Ao
redor havia uma vida lenta, insistente” (p.28), é o que a personagem sente, mesmo envolta pelas
140
atividades do dia-a-dia, cortando bifes e fazendo creme. Mas, a sua nova compreensão acerca da
vida lhe trouxera outra percepção dos atos rotineiros. “Uma noite em que a piedade era tão crua
como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia
nos seus olhos” (p.28). Aqui, não é possível negar a sensação erótica que se insinua na
personagem, enquanto ela prepara a refeição.
Esse jantar é que Ana, o marido e as crianças vão partilhar com os irmãos que vêm
acompanhados das mulheres e dos filhos. A voz narrativa só nos relata as preocupações caseiras
de Ana, parecendo que ela deseja voltar a “normalidade”. A descrição da noite assemelha-se a um
paraíso, devido à ausência de conflitos. “Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos
a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam
admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele nunca mais fosse seu” (p.28). Mesmo sendo uma descrição semelhante ao lar doce
lar, forjado como lugar feminino idealizado, a felicidade de Ana é sentida como verdadeira, já
que ela deseja eternizar o momento em suas memórias.
Porém, quando todos vão embora, a dona-de-casa volta-se para a preocupação de entender
a experiência por que passara. “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos
levaria até envelhecer de novo?” (p.29), indaga-se a personagem. Nesses textos, a busca é por
outra forma de compreender o mundo já que os valores conhecidos não têm mais serventia diante
da nova realidade que é o encontro com a outridade, no excluído. Volto a Magalhães, tratando do
conto “A bela e a fera”: “o texto é construído no sentido de desfazer uma certa segurança do
narrador, posto a estabelecer nexos causais que expliquem o mal-estar da personagem ante a
diferença do mendigo e que também parecem forjar uma zona de transparência para a obra”
(1995, p.413). Tal observação também é pertinente ao conto “Amor”, já que aqui a protagonista
espanta-se com um excluído, assim como a personagem da narrativa “A bela e a fera”, e através
141
desse encontro, vivencia uma revelação sobre si mesma. Nas duas narrativas, é como se os
excluídos fossem um portal rumo à outra compreensão da vida, pois acontece, após essas visões,
um processo epifânico:
uma busca de entendimento com o Outro como a empreitada de uma vertigem
necessária, que oscila entre o recuo de volta ao familiar, que permite a
comunicação e escapa à loucura –, e o avançar impetuosamente, humildemente,
assumindo o risco de tentar sair de si mesmo para estranhar o que há de
infamiliar e diferente no Outro. E, no movimento desse olhar, entender seus
limites e seu alcance (MAGALHÃES, 1995, p.415).
Parece que Ana consegue uma fusão entre as realidades aparentemente díspares: o cego
com que se acha, inicialmente, na responsabilidade de sentir piedade e o Jardim Botânico, que
mesmo sendo uma natureza domesticada ao olhar da cidade, se mostra exuberante, com leis
próprias, sempre renascendo, escapando ao controle do mundo burguês, social, que ordena tudo,
definindo um papel a cada um, seja ao excluído, seja à dona-de-casa. E Ana parece descobrir
novos valores para si mesma, embora no início do conto já tenhamos visto ela se mostrar como
atuante dentro da esfera doméstica, sentindo-se responsável por cada passo dos entes ao redor.
Contudo, agora ela parece encontrar uma outra força em seu interior que até a assusta, mas que
aos poucos ela tenta compreender. “Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas
com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias
boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico” (p.29). Aqui já
vemos uma tentativa da mulher em integrar tudo como parte da natureza, até mesmo o cego, para
quem ela não conseguia achar lugar.
Se o cego, considerado alguém excluído de seu cotidiano, abre-lhe na rua a porta para
uma outra dimensão da vida, em casa um pequeno barulho doméstico parece começar a despertar
Ana para o seu dia-a-dia. Era o marido que deixara o café derramar, fazendo a esposa, “vibrando
toda” (p.29), dar um grito, pensando em um incêndio a se espalhar pela casa, a partir do fogão.
142
Ele “se assustou com o medo da mulher” (p.29), estranhou o rosto dela e a espiou com maior
atenção. “Depois atraiu-a a si, em rápido afago” (p.29). Ao abraçar o marido, Ana parece em
desamparo, tal qual no contato com o filho, anteriormente. “Ela continuou sem força nos seus
braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom
humorístico, triste” (p.29). Tal como o ovo/vida que, inicialmente, está preso na teia do tricô e
que se quebra, se destrói, ao longo da narrativa, mas é ao final recuperado e levado de volta para
casa, assim é a vida moldada de Ana, que vai se reconstruindo. O texto é um desatar de nós,
construção e desconstrução.
O dia de Ana se aproxima do fim e a “ajuda” do marido vem colocar uma tentativa de
ponto final nas suas transformações. “É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era
seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás,
afastando-a do perigo de viver” (p.29). O marido de Ana parece uma figura masculina paternal,
sua tentativa de afastar o medo e as tensões da esposa revelaria uma face não opressora, mas até
companheira. No entanto, se a transformação vem do conflito, esse papel do marido pode ser
considerado o de um sufocamento das contradições e das tentativas da personagem em alterar sua
condição. Mas, o ato de segurar a mão da esposa e o título “Amor” podem configurá-lo também
como um amante. Afinal, essa situação de segurar a mão nos lembra muito a cena entre Ulisses e
Lóri na lareira, que foi isolada como um conto ou crônica pela autora, chamado de “Vida natural”
e que reproduz muito do que é colocado como sendo função de mulher e de homem, ele a atiçar
as chamas, ela mostrando-lhe o que fazer. “Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o
fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre
do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja” (LISPECTOR, 1999c, p.94).
O marido tenta afastar Ana do perigo de viver, mas é ela que busca por si reintegrar-se a
sua vida. “Acabara-se a vertigem da bondade. E, se atravessara o amor e seu inferno, penteava-se
143
agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar,
como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia” (p.29). Essa cena final pode soar
como apaziguamento dos conflitos interiores de Ana, mas, percebemos que na personagem fica
internalizado um estranhamento do cotidiano, que agiria como um estado de alerta sobre sua
condição ou até mesmo uma compreensão acerca de si mesma. Não nos parece que a personagem
cede a uma volta ao seu papel social da mesma forma que o vivenciara antes da experiência no
Jardim. A força que a empurra para o jardim sem limites também a direciona para a segurança do
lar e é como se ela conseguisse unir ambas, alcançando aí um certo equilíbrio entre desejo e ação.
Ana conhece a expansão dos seus limites, vê que é capaz de se desestruturar, mas retorna
ao cotidiano, porém, carregando uma força interna, uma pulsão. Ela fica mais alerta e vê com
mais intensidade os filhos e o marido, mas desde o início a vida parece-lhe menos artificializada e
idealizada do que muitas outras personagens donas-de-casa do mundo clariciano. A protagonista
parece se ver dentro de um projeto, uma engrenagem, se destaca como parte atuante do universo
doméstico. É a mulher que conhece a própria força e consegue se ligar aos elementos da natureza
e do inconsciente, sabendo fazer o caminho de volta.
Nádia Battella Gotlib (2003) comenta em “A literatura feita por mulheres no Brasil” o
processo de desconstrução a que Clarice Lispector submete a linguagem. Pontuamos que ela
também desconstrói os paradigmas patriarcais, ainda que o faça com sutileza, como no conto
“Amor”, subvertendo a ordem constituída, atuando, portanto, no aspecto semântico do “texto”
social que nos rodeia. Tal interferência ocorre paralelamente as desconstruções formais que
executa no texto literário, o que é mais comumente considerado pela crítica. Segundo Gotlib,
Clarice “desmancha a realidade feita, assim, de capas, de invólucros, de máscaras” (2003, p.53) e
insinua que existe uma outra forma de organização social que pode ser construída. Em “Amor”, é
como se uma nova lógica se imiscuísse nas teias desse mundo doméstico. É a força da
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personagem que é destacada, ao invés do que ocorre com as outras duas protagonistas. Ao
mostrar Ana se reconhecendo como parcela atuante da organização familiar, Clarice desconstrói
as afirmativas sobre o papel da mulher como “sexo frágil”. Diferentemente dos outros dois contos
analisados, que demonstram o processo de falência da organização patriarcal, ao indicar o
fracasso que toma conta das personagens femininas, submetidas a uma carga de tensão máxima
na inadequação que sentem dentro do tecido social. Ao analisar a trajetória das escritoras
brasileiras, Gotlib pontua como contribuição de Clarice a construção de uma passagem entre “o
mundo da privacidade recalcada e até mórbida da mulher, no seu espaço familiar de que se vê na
maioria das vezes prisioneira, e a dimensão coletiva em que a mulher descortina a consciência de
seu não-espaço, marginal e massacrado” (2003, p.59).
Para Ana, a revelação epifânica não se mostra impossível de ser assimilada no cotidiano
como ocorre com outras personagens claricianas, cujos laços de seus papéis sociais sufocam. Seu
caminho de volta não é um dar de ombros, que revela a falta de opção; ela corre em busca de uma
porta aberta, não aceitando encontrá-la fechada. Ao mesmo tempo, Ana conseguiu se libertar das
amarras do papel social que lhe é reservado, ao menos por instantes. No jardim, ela está como em
um esboço, sem um quadro lhe delimitando a função de esposa, dona-de-casa e mãe. É mais um
bicho, fundido no universo orgânico, está borrada, sem limites. Lá, ela encontra uma outra ordem
fora daquela institucionalizada que segue, um lugar onde a vida arde, sem precisar do certo ou do
errado. Mas, o conto nos deixa sem alternativa porque a personagem não se sente capaz de
romper com a ordem social da qual faz parte e, ao mesmo tempo, não se sente contida no espaço
que sempre lhe foi destinado. O conto cumpre a função de só indicar o percurso ou o processo de
Ana, nos deixando sem respostas.
Essa característica da voz narrativa clariciana, segundo Magalhães, estaria a serviço do
que é mais marcante na obra da escritora: a busca da palavra, a escrita que não quer ser pronta e
145
acabada, mas, que se reconhece viva enquanto se elabora. Concordamos com a afirmação do
autor de que, por vezes, a narração dos textos de Clarice se coloca no mesmo patamar de busca (e
falha, fracasso de encontrar) de suas personagens e fazendo equivaler a escrita à vivência. Para
Magalhães, um dos principais motores da escritura clariciana é a procura do entendimento e da
vida (Cf 1995, p.412). Magalhães destaca que essa busca é como o próprio destino humano, e nós
defendemos ainda que é um equivalente ao cotidiano doméstico, em seu trabalho de Sísifo, que é
tirar a poeira que amanhã se depositará de novo ou alimentar e já abrir o apetite para o dia
seguinte.
Nesse sentido, a exposição literária do tema consegue fazer o que Antonio Candido
destaca como sendo a ponte equilibrada entre arte e sociedade: trabalhar um fator externo captado
nas tensões da época em um componente interno da obra, como já mencionadmos. Em seu estudo
“Um certo mal-estar indefinido: A mulher nos contos de Clarice Lispector”, Maria Lúcia RochaCoutinho (1994) expressa um pensamento muito semelhante ao nosso e destaca que Clarice
consegue antecipar na literatura brasileira preocupações do movimento feminista. “Até que se
inicie o processo de tomada de consciência, as protagonistas vivem neste estado de alienação e
resignação em que se encontravam nos anos 50 e 60, e até hoje se encontram, muitas mulheres
brasileiras de classe média” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.90). No artigo “Os difíceis laços de
família”, Nádia Battella Gotlib (1994) destaca que essa preocupação com a temática da
identidade feminina já aparecia nos trabalhos iniciais da autora:
Desde os seus primeiros contos, escritos em 1940, quando Clarice Lispector
tinha seus vinte anos incompletos, nota-se uma preocupação fundamental
desenhada na trama dessas narrativas: a personagem-mulher, inserida no meio
familiar, passa por conflitos cujas razões não sabe bem explicar, experimentando
situações que instigam a problematização de aspectos diretamente ligados a
identidade, nos seus diferentes e complexos papéis sociais (GOTLIB, 1994,
p.94).
146
A nosso ver, isso só confirma a tese de que a literatura clariciana tem, sim, um cunho
social, bastando para isso que se enxergue as lutas políticas da identidade como aspectos dessa
abordagem. A teórica chilena Nelly Richard (2002) defende a compreensão da “dissidência da
identidade” como sendo uma atuação que colabora para desestabilizar os regulamentos da cultura
patriarcal e é isso que vemos Clarice Lispector realizar com sua escritura. Para Benedito Nunes
(1995), a vida subjetiva ficcionalizada pela autora pode ser percebida como uma “possibilidade
de transgressão sem sucesso do sistema das relações práticas, da totalidade da organização social,
que se fecha em torno da personagem, perpetuando e agravando o seu estado de carência”. Por
outro lado, “o autodilaceramento da escritura de Clarice Lispector, manifestando essa alienação,
também exterioriza a possibilidade de transgressão que a vida subjetiva comporta” (p.152).
Tal pensamento parece congruente com o que Nelly Richard coloca acerca da escrita que
altera a discursividade hegemônica e opera na “desterritorialização dos regimes de poder e
captura da identidade, normatizada e centralizada pela cultura oficial” (2002, p.133). Afinal, a
experiência de Ana aponta que a lógica patriarcal, que sufocou o prazer da sensorialidade e
confinou as mulheres em um papel redutor na esfera do doméstico, pode ser minada através do
contato com outras formas de apreensão do mundo, como é o caso de uma experiência mais
estreita com a natureza. A própria natureza foi colocada por essa lógica dominante como inferior
e passível de ser dominada. Mas, a experiência de Ana nos mostra que as duas esferas, a natureza
e a cultura podem e devem caminhar juntas, se isso significa a formação de um ser humano mais
forte. Nelly Richard destaca, com base nos textos de Julia Kristeva, que a linguagem também é
formada por duas margens, a masculina e a feminina. A feminina identificada com o
psicossomático e a masculina com o lógico-conceitual. A autora frisa que “não são margens que
se excluem rigidamente uma à outra, mas fronteiras que se cruzam interdialeticamente”
(RICHARD, 2002, p.133).
147
Vemos que Clarice, ao construir narrativas centradas no inconsciente e na percepção nãoverbal, exerce essa margem psicossomática, não abandonando, contudo, uma margem lógica e
conceitual, posto que suas ficções representam conflitos reais da sociedade, como é o caso do
papel feminino em um dado momento histórico. Porém, ela o faz revertendo essa linguagem tida
como masculina para inscrever preocupações do universo das mulheres.
148
CONCLUSÃO
Acreditamos que Clarice Lispector, nos três contos analisados, conseguiu abordar a rede
complexa que envolve a inadequação dos sujeitos a seus papéis na sociedade, tratando de
problemas que aparecem sob um pano de fundo psicológico, mas que mantêm relações com a
macroestrutura ideológica, dependente das configurações econômicas e políticas do Brasil em um
determinado momento histórico. O ideal de mulher a que essas personagens se sentiam atreladas
estava totalmente inserido nas necessidades da sociedade patriarcal, que reserva aos sujeitos
femininos dedicados exclusivamente ao universo doméstico o lugar da passividade e
invisibilidade. Ao abordar a crise emocional das três protagonistas, Clarice Lispector dá vazão a
um conflito que fazia parte das preocupações de um segmento da sociedade, o das mulheres
criadas dentro de uma ideologia que lhes destinava o posto único de “dona-de-casa-mãe-esposa”
e que, com as transformações daquele período histórico, se sentiam mais do que nunca
desconfortáveis em seguir esse modelo.
Vemos que a autora construiu narrativas que expressaram esse conflito sem fazer qualquer
tipo de panfletagem simplista. Usando as armas da literatura, ela conseguiu minar uma
representação hegemônica das mulheres e inserir preocupações dos sujeitos femininos. Nessa
conclusão, fazendo uma comparação entre os três contos, nos deteremos nas diversas estratégias
utilizadas pela voz narrativa para representar literariamente esses conflitos reais.
É interessante notar que as três personagens, Elvira, Laura e Ana, são transplantadas de
uma realidade à outra, estão em deslocamento, e essa representação do sair de seu lugar é
determinante para que elas revejam suas próprias ações e tentem re-configurar o seu papel social.
149
Em “A fuga”, Elvira sai de sua casa, de sua janela, onde diariamente se posta para ler um livro, e
ganha as ruas. Ela troca, assim, um olhar emoldurado (modelado e contido) pela surpresa de
tentar construir um itinerário a céu aberto. Seu plano era fugir em um navio, marcando uma
separação definitiva da realidade que tinha em suas mãos. Porém, desistindo desse sonho, ela só
navega em sua imaginação, quando de olhos fechados, visualiza um navio se afastando, ao final
do conto, significando a oportunidade de mudança perdida. Já Laura, em “A imitação da rosa”,
praticamente, não caminha, estando presa em sua sala, dando voltas apenas no labirinto de sua
mente. Seus passos são contidos, a voz narrativa nos informando que ela sai da penteadeira para o
sofá, levantando-se para arrumar as flores à mesa, que acabam levando-a a outros rumos e
questionamentos. Mas, a personagem parece mesmo não encontrar saída no emaranhado mental
resultante de ideologias patriarcais introjetadas. O conflito é tão grande que a única fuga possível
seria embarcar no “trem” da loucura. A voz narrativa constrói essa imagem de que a personagem
parece estar sendo transportada para longe de seu marido, de sua casa, da lógica-racional, onde
seu ser é limitado pelos ditames patriarcais. No início do conto “Amor”, Ana já está em
deslocamento, dentro de um bonde em movimento, ou seja, a voz narrativa a mostra inserida nas
engrenagens do cotidiano, onde desenvolve as atividades rotineiras para a família, tentando
escapar do mal-estar e da solidão que tomam conta dela no lar. Ao avistar o cego, Ana fecha seus
próprios olhos para a realidade rotineira e adentra no mundo sensorial do Jardim Botânico,
alcançando outra visão de mundo. Correndo de volta para casa, ela tenta conciliar o aspecto dual
da natureza, da qual faz parte, e da cultura em que está inserida. Enfim, as três mulheres estão em
deslocamento, movendo-se por entre os aspectos conflitantes de seu íntimo – o que quer mudança
e o que se sente preso às armadilhas sociais.
Destacamos, ao abordar o estudo de Michel de Certeau, a importância que o deslocamento
assume para quem está em busca de si próprio (Cf 1996, p.183). Aqui, nos parece determinante
150
que as personagens sejam representadas no lar, local configurado para as mulheres pela sociedade
patriarcal, mas que tentem ocupar o espaço público que foi tradicionalmente reservado aos
homens. Nesses três contos, é interessante perceber que a autora chega a nomear logradouros e
ruas, que podem ser “realmente” percorridos pelo leitor. Desse modo, vemos que Clarice
Lispector situa essas donas-de-casa em um lugar geográfico e social marcado. Essas personagens
estão também enredadas em elucubrações mentais, psicológicas; no entanto, as narrativas
configuram um universo social facilmente reconhecível, confirmando, assim, a nossa tese de que
há um entrelaçamento ou diálogo entre a angústia existencial e a inadequação delas dentro da
sociedade em que circulam. Obviamente, o drama feminino mostrado nesses contos poderia ser
vivido em quaisquer outros bairros ou cidades, já que a voz narrativa se detém nas preocupações
subjetivas; porém, não podemos deixar de vincular as angústias existenciais das personagens com
a realidade social que elas vivenciam no Brasil patriarcal, da primeira metade do século XX.
O silêncio também é outro aspecto a ser ressaltado nesses contos, tendo também sido
destacado em vários estudos sobre a obra de Lispector. Vemos que as três personagens não
travam diálogos verdadeiros. Elvira caminha na rua, percebe o olhar dos transeuntes e até sente
vontade de se manifestar acerca de sua situação, mas se cala, nada diz. Ao chegar em casa,
apenas responde ao marido sua indagação sobre o motivo da ausência, inventando uma mentira,
ou seja, não dialoga verdadeiramente, esconde-se sob o lençol, oculta o que lhe angustia. Laura
só conversa consigo mesma na própria imaginação, chama a si mesma como a uma terceira
pessoa, e imagina diálogos que teria com a amiga Carlota e o marido Armando. A voz narrativa,
porém, revela que ela muitas vezes fala sabendo que não é ouvida pelo marido, nem pela amiga
ou a empregada. Essa última é a única com quem troca palavras, mas só para pedir que leve as
rosas e sufoque as vozes íntimas que a dividem. O marido, ao chegar, só é informado com uma
simples palavra “voltou”, capaz de representar o mal-estar emocional que volta a invadi-la, pois,
151
o olhar trocado entre os dois já revela toda a gravidade da situação. Ana também não dialoga com
ninguém durante a caminhada, pois só se envolve com o mundo sensorial sobre o qual ela não
consegue se expressar e onde as falas não fazem sentido. Na volta ao lar, as frases trocadas com o
filho soam como enigmas para a criança. No diálogo com o marido, também acaba prevalecendo
o mal-entendido, o susto dela e a tranqüilidade dele, que a afasta para o leito, silenciando não só
Ana, mas também a narrativa. O silêncio está também vinculado à inadequação eu-mundo, da
qual nos fala Mikhail Bakhtin, e que consideramos o grande tema da obra de Lispector. Nessa
ilha interior, cercada de silêncio, em que estão as três personagens, não deixa de haver um
confronto com o outro que se esconde dentro de si mesmo. As batalhas de consciência não
deixam de ser travadas no silêncio.
Nos três contos, percebe-se também uma irrupção dos elementos naturais: a chuva e o
trovão na fuga de Elvira; as rosas de Laura e o jardim em que Ana adentra. Esses elementos
representariam uma desestabilização das falsas construções do social, mostrando que, até sob as
bases da racionalidade hegemônica, se imiscuem outras formas controladas ou sufocadas. Já
refletimos sobre as dicotomias cultura-natureza e a associação que a ideologia patriarcal faz desse
par com o binômio masculino-feminino, respectivamente. Conforme o texto de Helena Parente
Cunha, já citado no capítulo precedente, a ideologia dominante dividiu e hierarquizou esses dois
pares. Assim, acreditamos que as narrativas claricianas, ao travarem esse diálogo entre o aspecto
lógico-racional (identificado com os valores do patriarcado), o qual as personagens se sentem
pressionadas a seguir, e uma outra forma de compreensão da vida, menos logocêntrica, colocava
essas hierarquizações em confronto, podendo provocar nos leitores questionamentos acerca
dessas dicotomias impostas.
Não deixamos também de notar diferenças entre as três personagens. Entre as três
histórias, o final de Ana é o mais ambíguo. Para Laura e Elvira, as frustrações e o peso da
152
impossibilidade interrompem o caminhar. Já Ana deixa o leitor com a idéia de que seus passos
ainda podem levá-la mais adiante; certamente não será até o mundo fora das regras sociais,
representado pelo Jardim Botânico, mas, provavelmente, para além de um espaço contido. Ao
contrário da Ana que se resignava a pensar que “sem felicidade também se vive”, essa nova Ana
que emerge da experiência sensorial com a natureza, parece enxergar a vida com mais apetite.
Diferentemente das outras duas protagonistas, Ana tenta compreender o momento epifânico pelo
qual passou, lutando por inserir o aprendizado do mundo natural em sua rotina familiar. Na
análise de “Amor”, destacamos que, desde o início do conto, a voz narrativa mostrava Ana como
atuante dentro da esfera doméstica, o que é possível perceber através da presença marcante do
pronome “nós”, ao invés do que ocorria com Laura, que colocava o nome do esposo Armando
como de maior importância, e com Elvira, que parecia assombrada pelo fantasma do marido,
mesmo em sua ausência.
A disposição da ordem das análises não foi, então, aleatória. Não queremos indicar
qualquer linha evolutiva na obra clariciana, pois a idéia linear de progresso nos parece uma
construção falsificadora. Contudo, não deixamos de notar que o conto “A fuga”, da década de 40,
mostra uma personagem feminina que se resigna ao fracasso em sua tentativa de luta contra a
insatisfação que uma relação nos moldes do patriarcado provocava. As outras duas narrativas,
escritas no momento em que as transformações no papel da mulher na sociedade começam a se
fazer com mais intensidade, já mostram a dificuldade maior de acomodação à situação de
passividade. A resistência de Laura se dá pela negação de partilhar da lógica racional. Ao
adentrar no mundo do alheamento, da “loucura”, ela rompe com a lógica que a colocou em uma
posição de inferioridade. Já Ana, ao se perceber com mais autoconfiança, se mostra capaz de
tentar descobrir uma outra forma de compreender a vida. A sua experiência com a sensorialidade
da natureza indica que é possível acreditar em uma outra forma de vida.
153
Essa outra forma de compreensão do mundo irrompe através da epifania, bastante
estudada pelos críticos da obra de Lispector, como Olga de Sá, que a considera como um
“procedimento” na escrita da autora. Percebemos que só a epifania possibilita a essas
protagonistas saírem da automatização do olhar sobre o cotidiano para empreenderem um íntimo
questionamento acerca de sua situação, a partir do qual vão tentando desestabilizar os papéis
sociais que limitam suas experiências. A epifania ainda abre caminho ao processo de
estranhamento dos valores internalizados, assumindo a forma de uma resistência à passividade
que desmascara as desigualdades nas relações de gênero. Para Elvira, a revelação epifânica
ocorre ao longo do próprio caminhar pelas ruas, mas a volta ao lar interrompe esse processo. Em
Laura, a epifania da presença das rosas abre caminho para a entrada em uma outra forma de
compreensão, vista pelos outros como fora da racionalidade. Já em Ana, o processo epifânico
desencadeado pelo cego colabora para que ela alcance uma nova visão do mundo em que vive,
mais intensa.
Ao longo das análises desses contos, discutimos acerca dos “discursos-mestre” nos quais
as personagens se vêem inseridas. É possível perceber nos valores internalizados pelas três
protagonistas os discursos da ideologia patriarcal dominante. Ao colocar esses discursos na fala
interior das personagens, cremos que a voz narrativa pretendia, através do excesso, mostrar que
os sujeitos femininos foram submetidos, como parte de uma civilização androcêntrica, a uma
série de ensinamentos e de práticas regulatórias, das quais nos falam Michel Foucault e Judith
Butler, práticas essas que tentaram lhes moldar um perfil de resignação. Elvira, Laura e Ana
expõem logo de início que a sua principal função no mundo é estar a serviço de outros, ficando a
realização pessoal em último plano. Porém, a insatisfação que esses discursos geram ao longo dos
contos, provocando os conflitos interiores, mostram o quanto essa “aceitação” de um modelo de
abnegação é artificializada e, por isso, passível de ser transformada. Essa transformação passaria,
154
primeiro, por uma conscientização; é o que nos parece ser apontado pelas narrativas, já que o
foco narrativo predominante é o da mente das personagens, sendo o monólogo interior marcante
nos três contos.
Esse enfoque nos processos psicológicos e subjetivos não deixa de ter relação com o
panorama externo da sociedade, já que as preocupações das protagonistas têm raízes no
desempenho de seus papéis sociais, que serviam ao modelo ideológico do patriarcado. Como
mostramos, com base em estudos como o de Anna Yeatman, o patriarcado serve à divisão do
trabalho, conforme os interesses econômicos e políticos da parcela dominante da sociedade
androcêntrica. É de se destacar que as personagens, após a discussão interna e a descoberta acerca
de outros valores, provocadas pela epifania, tentam retornar às situações anteriores. Através
disso, vemos que a voz narrativa pretendia inserir na coletividade e na realidade social brasileira
as discussões que as protagonistas travaram durante os conflitos internos. As alternativas e
tentativas de transformação de seus papéis sociais não ficam, portanto, só na esfera do sonho e do
desejo irrealizado, mas perturbam a antes acomodada vida das personagens. Dessa forma,
acreditamos que essas narrativas claricianas cumprem a função de através do texto e do fazer
literário representar o contexto mais amplo da sociedade, para usar palavras de Antonio Candido.
Segundo Lúcia Helena, essas narrativas claricianas acerca do doméstico captam o
“sentimento do mundo”, mesmo ao se deterem no que poderia ser apontado como sendo
meramente individual por uma parte da crítica que não leva em conta o aprendizado do
movimento feminista de que o pessoal é também político. Abro aspas para Lúcia Helena: “Creio
que Clarice fixa nesta obra uma camada específica da sensibilidade pequeno-burguesa figurada
no embate com as representações de poder, inconscientemente internalizadas e tornadas
institucionais” (1997, p. 35). Acreditamos que textos como os de Lispector interferem na
mudança da estrutura da sociedade, na medida em que expõem criticamente o imaginário
155
construído para os sujeitos. Afinal, para Teresa de Lauretis, “a representação social de gênero
afeta sua construção subjetiva” abrindo “uma possibilidade de agenciamento e auto-determinação
ao nível subjetivo e até individual das práticas micropolíticas cotidianas” (1994, p.216). Ainda
conforme Lauretis, a própria construção social pode ser afetada através dessa representação
subjetiva do gênero ou da sua auto-representação (Cf 1994, p.216).
Acreditamos que as narrativas de Lispector fazem essa representação subversiva.
Considerando o que afirma Nelly Richard, Clarice atua mesmo na “margem sexuada da
representação”, pois faz questão de localizar as personagens no espaço privado, que foi
tradicionalmente identificado como sendo de atuação das mulheres. Também é forte a presença
nas narrativas das instituições apontadas por Michel Foucault como modeladoras do papel social
dos indivíduos e, de modo especial, das mulheres (a Igreja, o casamento, a escola, os pais, o lar,
os filhos, a casa).
Como vemos, é toda uma moral coletiva, externa, e de interesse do pensamento
dominante que vai se incutir no pensamento das mulheres representadas por Lispector. Teresa de
Lauretis destaca em “A tecnologia do gênero” que o sujeito é assim engendrado não só a partir de
uma diferença sexual, que autora ataca como limitada, mas “por meio de códigos lingüísticos e
representações culturais” (1994, p.208). Um texto literário como o de Lispector, que expõe o
processo conflituoso da formação de uma identidade feminina, viria a colaborar para o
questionamento da aceitação pacífica desses limites impostos pelo patriarcado, pois, conforme
Teresa de Lauretis, esse tipo de texto mostra as representações falsificadoras do gênero que
“como o real, é não apenas o efeito da representação, mas também o seu excesso, aquilo que
permanece fora do discurso como um trauma em potencial que, se/quando não contido, pode
romper ou desestabilizar qualquer representação” (1994, p.209).
156
Essa representação presente nos textos de Lispector fala de uma angústia individual, que
pode tocar o sujeito leitor seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, porém, ela dedicou
parte significativa de sua produção para expressar as preocupações de um segmento social, as
mulheres, abordando tensões que dizem respeito, especialmente, à transição e à mudança dos
papéis na sociedade brasileira. A autora denunciava, direta ou até indiretamente, a violência do
sistema patriarcal, sem erguer bandeiras políticas, só ficcionalizando reações de revolta nas
personagens. De modo mais sutil, revelava toda a carga que esse imaginário patriarcal exercia
não só nas mulheres, mas em toda a estrutura familiar e doméstica. Por isso, embora a própria
Lispector negasse qualquer relação com o feminismo, como está registrado em várias entrevistas,
certamente podemos eleger esse viés para nos aproximarmos da sua produção literária. Pois,
conforme nos aponta Terry Eagleton, “a ideologia é a maneira pela qual aquilo que dizemos e no
que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade
em que vivemos” (2001, p.20).
Ao nosso ver, a obra de Lispector contribuiu, de modo crítico, para a formação de um
panorama substancial das mulheres brasileiras dedicadas ao universo doméstico. E a forma pela
qual Lispector conta a vida dessas mulheres aponta o quanto esse sistema é capaz de mutilar
trajetórias, a exemplo do que ocorre com as personagens Elvira e Laura, a primeira auto-coagida
a permanecer em uma relação que lhe pesa como quilos de chumbo, e a outra, imersa no desvario
por ser incapaz de exercer a própria individualidade. As narrativas de Lispector apontam também
direcionamentos na busca por mudanças e por uma conquista de espaços mais igualitários dentro
da sociedade, o que ocorre com Ana, que se enxerga mais fortalecida após abrir a mente a outra
compreensão do mundo.
Esperamos ter contribuído, ao longo de nosso trabalho, para um enriquecimento da visão
acerca da obra clariciana. Afinal, ainda não encontramos suficientes abordagens das narrativas de
157
Lispector que considerem esse diálogo entre o aspecto social e o subjetivo. A nossa dissertação
espera contribuir para a formação desse olhar mais completo sobre a produção de Lispector, pois,
como a própria autora chegou a afirmar, esse aspecto do social está presente em suas obras: “Não
importa o que se escreva, a consciência social está ali – incluída até mesmo inconscientemente no
indispensável ‘livre curso ao que der e vier’. Mas não à custa de ‘sejam quais forem os
resultados’ – se os resultados ferirem o meu próprio sentido de moral social” (Cf CADERNOS...:
2004, p. 60).
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