Amanda Modolão Nóbrega Ana Carolina Martins Borges Ana Márcia Pereira de Almeida Zacarias Clarice... Escreverei aqui em direção ao ar e sem responder a nada pois sou livre. Eu – eu que existo. Existe uma volúpia em ser gente. Não sou mais silêncio. (LISPECTOR, Um sopro de vida, p.69). A História Social da Mulher e Família Imersa numa situação específica, decorrente do processo de colonização, a mulher como mantenedora, guardiã e gestora da maioria dos lares acabava por responsabilizar-se pela interiorização dos valores tridentinos [...] A mulher seria, portanto, provedora e recebedora de um amor que não inspirasse senão a ordem e o equilíbrio familiar (PRIORE, 1990, p.124-125). Anita e o silêncio que grita [...] vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala,silenciosa. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo. (LISPECTOR 1998, p. 37). A visão daquela mulher Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? (LISPECTOR 1998, p. 41). Epifania: A visão familiar Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. (LISPECTOR 1998, p. 40 e 41) Ana “Amélia”? Ana vive para o lar, o marido e os filhos. Contudo, diferentemente da personagem fundadora do mito que “Às vezes passava fome ao meu lado e achava bonito não ter o que comer”, Ana vive um inquietante estado de resignação. Sua condição enquanto mulher não apresenta possibilidade de mudança ou transcendência visível, razão esta que condiciona o leitor a compreendê-la como conformada, ainda que esta demonstre aflição. Anita É a matriarca, de onde todos descendem. De mãe zelosa e exemplo de esposa em uma sociedade estruturalmente patriarcal, D. Anita é a referência familiar a que todos lembram por obrigação, é o último laço que interliga os demais membros de uma família dessorada pelas diferenças. Mais que isso, é o retrato do velho no Brasil da segunda metade do século XX. Ana e Anita Segundo Machado (2012), através do sufixo diminutivo –ita compreende-se que dentro do universo familiar de ambas as personagens, Anita é a última instância a qual poderia chegar a personagem Ana, reduzida ao seu extremo: é a dona de casa que se dedicou a vida inteira à família, buscando sua realização na concretude dos anseios dos filhos e do marido. Um lampejo de consciência tardia aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava (LISPECTOR 1998, p.42). A personagem D. Anita no decorrer do conto demonstra a intensificação da sua consciência crítica, ou seja, aos 89 anos. Isso ocorre em função do fato de que a aniversariante não consegue ver continuidade na família que se empenhara em erguer. Profundidade Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta. Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar. (LISPECTOR 1998, p. 43 e 44). Aproximar e Ansiar Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? Eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.(LISPECTOR 1998, p. 45). Clarice e a Pequena Grande Personagem Segundo Leal () sempre há, realmente, algo de Clarice escondido por trás de seus personagens: ela sempre está exatamente “lá”, por trás deles, entre eles, próxima deles, enfim, escondida ou não, exteriorizando-se no interior de suas alegorias, mas sempre presente. Entretanto, em “Felicidade Clandestina” tal presença é ainda mais marcante. Semelhanças... A narradora, em primeira pessoa, conta um episódio de sua infância, que se passa no Recife. Segundo BORGES (apud ECO 2004) trata-se, na verdade, de uma figura ambígua, pois não só é a personagem que fala na primeira pessoa num livro escrito por outrem, mas ainda aparece como o homem que escreveu fisicamente aquilo que estamos lendo (...) ou, se preferirem, o autor-modelo fala através dele. O Desejo [...] As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses.(LISPECTOR 2009, p. 6). Epifania: A Obtenção Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. (Lispector 2009, p. 7). E o que é clandestino? Levando em consideração o enredo do conto, qual seria o sentido de uma felicidade clandestina? Um paradoxo A felicidade é exteriorizada de maneira espontânea e, em contrapartida, a clandestinidade busca esconder-se, pois foge às normas da sociedade, da junção desses dois vocábulos, o que podemos obter é o paradoxo da clandestinidade dessa felicidade. A Felicidade... segundo Aristóteles, consiste numa atividade da alma e tem abrigo no próprio indivíduo. Realiza-se por meio de suas ações e de acordo com suas virtudes. A felicidade é construída por meio de um exercício diário para a atualização das potências da alma; não pode ser conseguida de uma só vez, nem em um só dia, mas consiste em uma ação que se prolonga pela vida inteira. Mas para a personagem... A felicidade passa a ser clandestina, pois chega inesperadamente e embora aparentemente a menina não saiba ao certo o que fazer com ela, tem a certeza de que é efêmera e passageira, como as ondas mencionadas no conto, que vão e voltam em instantes e se desmancham em seguida. A felicidade plena, portanto, não existe nesse contexto. Ela é obtida a custo de muito sofrimento e quando alcançada é passageira. Assim como o livro poderia ficar com a narradora por tempo indefinido, a materialidade dessa felicidade é questionável, pois o fato de o objeto de desejo não pertencer à narradora, esse pode ser devolvido ao seu legítimo dono a qualquer momento. Não é por acaso que o conto termina com a frase: “Não era uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. A imagem do amante personificando o objetolivro promove a clandestinidade e nos remete a analogias que materializam o prazer da leitura, com encontros furtivos, misteriosos, com momentos de buscas e de encontros. Promove também o prolongamento desse prazer, que é sempre adiado, para “o dia seguinte”, para que não se chegue ao fim do encontro, ao final do livro. No começo do conto, ela “não vivia”, agora, ela “vivia no ar”. Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, Série: Os Pensadores, 1979. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das letras, 2004. LISPECTOR. C. Felicidade Clandestina. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ___________. Feliz Aniversário. In: Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Referências PRIORE, M. D. História das mulheres no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 1997.