Eros e Sexualidade: a razão diagnóstica em questão na crítica de Foucault à psicanálise
Rafael Alves Lima
O monstruoso é o maravilhoso às avessas, mas é o maravilhoso apesar de tudo.
La Connaissance de la Vie, Georges Canguilhem, p. 221
Ao longo da década de 70, o filósofo francês Michel Foucault dá um destino
interessante ao apreço que cultivava, desde a História da Loucura (FOUCAULT, 1961),
por uma espécie de “literatura” das vidas infames (FOUCAULT, 1977). Compilou
diários e reuniu histórias de vida, entre as quais se destacam o diário da hermafrodita
Herculine Barbin (FOUCAULT, 1978), que comete suicídio após ser legalmente
obrigada a trocar de sexo, e o crime de Pierre Riviére (FOUCAULT, 1973), que mata a
golpes de foice a mãe grávida, a irmã adolescente e o irmão de sete anos de idade.
Seqüelas de uma configuração datada da relação saber-poder, tais casos narram as
“cenas de cerimônia de soberiania, [...] dos procedimentos judiciais, das práticas
médicas” (FOUCAULT, 1973-1974, p. 41), cuja importância da relação entre as duas
últimas aqui será tematizada. Reconheceu-se, por exemplo, na figura de Riviére o antigo
quadro clínico criado por Esquirol de monomania ou “patologia da vontade”
(BERRIOS, 2008); já a história de Herculine Barbin é representativa de um engodo
maior: é característico do tempo em que “a medicina e a justiça do séc. XIX
perguntavam obstinadamente qual era a verdadeira identidade sexual” (FOUCAULT,
1978, p. 5).
É neste horizonte de problemas que, quatro anos antes de publicar o diário de Herculine
Barbin, o filósofo lançava o primeiro tomo da sua História da Sexualidade, denominado
A Vontade de Saber (FOUCAULT, 1974). Livro este que geraria uma confrontação larga
com a psicanálise, com críticas particularmente diferentes das de textos anteriores.
Pode-se dizer resumidamente que as críticas de Foucault à psicanálise nesse texto têm
duas frentes de ação. Por um lado, apresentam-se as estratégias para a mobilização da
sexualidade enquanto acontecimento discursivo, um tipo de permutação que poderíamos
chamar de eixo diagnóstico-etiológico. Por outro, a psicanálise é apresentada na esteira
do dispositivo confessional da pastoral cristã, na qual a confissão do sexo funcionaria
como critério de verdade, cuja crítica incide sobre o eixo clínico-terapêutico, ou seja,
sobre as condições para a direção da cura e o estabelecimento das relações de poder
próprias à situação analítica.
Para entender como os dois eixos se intercalam neste livro, é preciso recuar partindo do
primeiro eixo desde Doença Mental e Psicologia (FOUCAULT, 1954), em que o
filósofo busca entender a articulação entre o doente, o primitivo e a criança em favor da
abstração necessária para a explicação da patologia mental. Esta articulação é sustentada
a partir da noção de libido, segundo ele, um “mito”, por meio da qual seria possível
criar identidades entre as três figuras por meio de noções como regressão, defesa e
pontos de fixação. Já na História da Loucura, de 1961, o desígnio se dá por conta da
possibilidade de identificar similaridades entre os comportamentos infantis e o
comportamento do louco; Foucault afirma que tal identidade já era posta no âmbito
jurídico, mas que ela passa a ocupar no alienismo o espaço asilar especialmente por
conta de Samuel Tuke (FOUCAULT, 1961, p. 434).
Quando então a atenção de Foucault se volta para a “produção da sexualidade”
(FOUCAULT, 1974, p. 116), A Vontade de Saber funciona como uma espécie de versão
escrita e condensada daquilo que ele vinha trabalhando nos cursos do Collége de
France. Para os nossos fins, seu correlato mais próximo talvez seja Os Anormais
(FOUCAULT, 1974-1975), mas não se deve perder de vista que o tema mais amplo da
biopolítica atravessa toda uma produção feita por ele na década de 70. Logo, o que se
inaugura nesta empreitada que tem A Vontade de Saber como centro convergente é a
tentativa de estabelecer o modo pelo qual a sexualidade adentra no universo psiquiátrico
a partir de um dispositivo jurídico pela chave da imputabilidade. Isso porque a
sexualidade será decisiva para não mais apenas reconfigurar as formas de compreensão
do delírio na desrazão, mas para controlar as extravagâncias e o indivíduo considerado
“perigoso”. Os crimes sexuais e a violação do corpo passam a exigir explicações
oriundas do campo jurídico, já que a culpabilização é o critério quando se pretende
expropriar da verdade do sujeito algum tipo de contradição, ou, para usar um termo
coloquial, algo que indique remorso.
Foucault demonstra que tal organização no eixo diagnóstico-etiológico comporta desse
modo a atribuição de uma nosografia deduzida das “quatro grandes formas do sexo”
(FOUCAULT, 1974, p.168). A partir de um inventário que irá se formando aos poucos
no domínio da scientia sexualis, somam-se pequenos desvios do comportamento sexual
– aqueles que estão à margem da finalidade reprodutiva –, que terão suas possibilidades
de entendimento no advento desta nova faceta da associação entre “contra-a-natureza” e
“contra-a-lei” (FOUCAULT, 1974, p. 45). Aqui, a leitura para a organização da razão
diagnóstica se concentra nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD,
1905) – texto que por sinal o filósofo cita e conhece desde Doença Mental e Psicologia
(FOUCAULT, 1954). Do ponto de vista social, o onanismo compreende uma “natureza
pré-lei” do comportamento sexual infantil e adolescente, preocupação latente do âmbito
educacional, no qual a criança incorrigível torna-se o protótipo do adulto masturbador.
Já o coito interrompido no dito “casal malthusiano” é resultado da prática vigente para o
controle da natalidade, reivindicado pela questão biopolítica do controle demográfico.
Ou seja, não é por acaso que essas duas figuras da “governamentalidade” exemplificam
o atravessamento da biopolítica na designação da doença mental, uma vez que é Freud
quem inaugura a descrição as neuroses atuais segundo o princípio escassez-excesso
(MILNITZKY, F. & DUNKER, C. I .L., 2005) em detrimento da teoria da
degenerescência de Morel. Como bem resume Winograd (2007),
a neurastenia propriamente dita teria como etiologia específica o onanismo
desmesurado ou as poluções espontâneas. A neurose de angústia, por sua vez,
seria o efeito específico de diversas desordens da vida sexual, tais como a
abstinência forçada, a excitação genital frustrada, o coito imperfeito ou
interrompido, os esforços sexuais que ultrapassam a capacidade psíquica do
indivíduo etc..
Nessa primeira teoria etiológica, concentrada nos textos da década de 1890, vê-se como
a circulação do sexo no discurso acarreta em uma configuração das formas de
sofrimento capaz de ligar as manifestações da sexualidade infantil ao fracasso da
realização satisfatória da sexualidade genital adulta. É preciso enfatizar que as neuroses
atuais configuram o modo presente de garantia da satisfação, apoiado no fortalecimento
da compreensão do sofrimento pela historicização das formas de satisfação pulsional na
constituição subjetiva.
Já as outras duas grandes formas do sexo, a histeria e o fetichismo, dependem de uma
genealogia mais larga e complexa. Por um lado, a histeria aparece como uma afecção
própria das mulheres na medicina hipocrática (TRILLAT, 1991) e atravessa séculos até
urgir como resistência à psiquiatrização do saber médico (FOUCAULT, 1973-1974) de
tal modo que se misturaria com a própria criação freudiana do dispositivo analítico. Por
outro, o fetichismo nasce no âmbito das formas religiosas de adoração (DE BROSSES,
1760) e comparece na esteira da degenerescência (BINET, 1888) e da perversão moral
(KRAFTT-EBING, 1886), até ser inscrita pela psicanálise na chave das preliminares do
ato sexual, adequado ao quadro intermediário da perversão, funcionando segundo
Foucault como uma espécie de báscula entre o socialmente aceitável e o monstruoso.
De qualquer modo, trata-se de poder ao menos anunciar que o trânsito entre categorias
diagnósticas e os modos de análise da cultura precede qualquer tipo de naturalização
dos quadros que requisitem qualquer critério de mútua externalidade. Afinal, não coube
à psicanálise encerrar o universo da sexualidade em sua clausura historicamente
determinada, mas antes teve seu mérito por elevá-la à categoria de questão fundamental.
E é deste lugar que ela não deve escapar, pois é constante o trabalho de estabelecer a
coextensividade entre a transformatividade da razão diagnóstica e a transformatividade
da relação entre saber e poder, de tal modo afinada com a experiência analítica a
depender do tempo histórico em que ela se realiza.
Referências bibliográficas:
BINET, A. (1888) Le fétichisme dans l’Amour. Paris: Payot et Rivages, 2001.
FOUCAULT, M. (1954) Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1984.
-------- (1961) História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997.
-------- (1973). Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (3.
ed.). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Graal, 2003.
-------- (1973-1974) O Poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
-------- (1974) História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal,
2001.
-------- (1974-1975) Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
-------- (1977) A Vida dos Homens Infames. Em: -------- Ditos & Escritos IV. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003.
_____ (1978). Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1982.
FREUD, S. (1905) Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KRAFTT­EBING, R. von. Psychopathia Sexualis. Paris: Georges Carré Editeur, 1895.
MILNITZKY, F. & DUNKER, C. I. L. Sexualidade e seus Destinos na
Contemporaneidade. Em: Estados Gerais da Psicanálise: IV Encontro LatinoAmericano, 2005.
DE BROSSES, C. (1760) Du culte des dieux fétiches, ou, Parallèle de l'ancienne
religion de l'Egypte avec la religion actuelle de Nigritie. Paris: Fayard, 1989.
TRILLAT, E. História da Histeria. São Paulo: Escuta, 1991.
WINOGRAD, M. Disposição e Acaso em Freud: uma introdução às noções de equação
etiológica, séries complementares e intensidade pulsional no momento. Em: Revista
Natureza Humana, v. 09, n. 02, pp. 299-318, dez. 2007.
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