PROCESSO-CONSULTA CFM nº 29/12 – PARECER CFM nº 36/12 INTERESSADO: CRM-CE ASSUNTO: Fortificação obrigatória de alimentos com ácido fólico e ferro RELATORA: Consª Marta Rinaldi Muller EMENTA: O CFM recomenda à Anvisa a revisão da Portaria no 344/02, que dispõe sobre a obrigatoriedade de fortificação de farinha de trigo e de milho para uso em alimentos, visto que a mesma desconsidera significativa parcela da população brasileira, portadora de sobrecarga de ferro em sua condição clínica e que não possui alternativas alimentares co m o uso da farinha de trigo e de milho, aumentando as chances de complicações clínicas pelo consumo de ferro. Considera importante a participação conhecimentos de médicos, técnicos e para científicos que mediante subsidiem as decisões políticas de forma a beneficiar a população brasileira, respeitando as diferenças. DA CONSULTA Em 22/2/12, o cons. Ivan de Araújo Moura, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará, encaminha cópia do Parecer Cremec nº 1/12 e solicita manifestação do CFM sobre o tema abordado. O referido documento resultou de solicitação de parecer técnico àquele conselho regional sobre o trabalho de autoria do médico José Murilo de Carvalho Martins intitulado Considerações sobre o enriquecimento dos alimentos com ferro e ácido fólico. Com base na Resolução Anvisa nº 344/02, que obriga a adição de ferro e ácido fólico em farinhas de trigo e milho para uso da população brasileira, o autor faz considerações sobre a deficiência de ferro e de ácido fólico à saúde da população e as indicações de reposição dos 1 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br elementos citados, bem como incita a reflexão dos riscos desta obrigação para parte desta população que por condições clínicas adversas apresenta sobrecarga de ferro, como em portadores de hemocromatose, anemias falciformes, talassemias e pacientes dependentes de transfusão de sangue, entre outros. Questiona ainda a falta de estudos que comprovem a eficácia da medida adotada pela Anvisa, como também a possibilidade de mascarar doenças importantes, uma vez que anemia é sinal de doença com causa a ser investigada, e não doença de ‘per si’. Considera, finalmente, que ao lançar programas sociais de tamanha abrangência, com interferências diretas à saúde da população, o governo brasileiro deveria considerar a parceria de médicos brasileiros na elaboração e acompanhamento dos mesmos, objetivando resultados positivos concretos. O autor teve seu trabalho publicado na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, vol. 33 no 2, de 2011. A Câmara Técnica de Hematologia do Cremec assume a autoria do parecer e após algumas considerações manifesta-se com a seguinte conclusão: a fortificação de alimentos (farinha de trigo e de milho) com ferro e ácido fólico é decisão da competência do Ministério da Saúde, que deve ser embasada e monitorada o mais rigorosamente possível por estudos clínicos e epidemiológicos apropriados. Vale aqui ressaltar a necessidade de disponibilizar a produção e distribuição de produtos não fortificados essenciais à parcela da população portadora de síndromes associadas ao acúmulo de ferro e opcionais para o restante da população. Parecer aprovado em 20/1/2012 pelo CRM-CE. DO PARECER Solicitado para apreciar e emitir parecer a essa conselheira, por tratarse de assunto fundamentalmente técnico, foi solicitada a participação da Câmara Técnica de Hematologia e Hemoterapia do CFM para a análise da matéria. Com vistas a maior embasamento técnico-científico houve a participação do Comitê de Glóbulos Vermelhos da Associação Brasileira de 2 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br Hematologia e Hemoterapia (ABHH), aqui representado pelo dr. Rodolfo Cançado, que apresentou manifestação em anexo, plenamente aprovada pela CTHH e por essa conselheira, que o adota como parte integrante deste parecer. São evidenciadas preocupações relevantes com relação à incidência da deficiência e à sobrecarga de ferro na população brasileira e suas consequências, a falta de estudos científicos que demonstrem a eficácia da medida adotada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), bem como a desconsideração para com aqueles que apresentam condições clínicas de risco para sobrecarga de ferro. Assim, transcrevemos na íntegra: " Deficiência de ferro: um grave problema de saúde pública Apesar do conhecimento da biologia do ferro ter evoluído de forma avultante na última década e não obstante as facilidades de acesso à informação de maneira simples e rápida pelos meios de comunicação, em particular a internet, o que possibilitou a democratização do conhecimento e oportunidade de aperfeiçoamento, a deficiência de ferro continua sendo, há décadas, a alteração hematológica mais comum, acometendo cerca de 30% da população mundial. A deficiência de ferro é a carência nutricional de maior magnitude no mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento, e considerada uma entidade clínica em expansão em todos os segmentos sociais, atingindo principalmente crianças menores de dois anos e gestantes. Embora ainda não haja um levantamento nacional, estudos apontam que aproximadamente metade dos pré-escolares brasileiros sejam anêmicos (cerca de 4,8 milhões de crianças), com a prevalência chegando a 67,6% nas idades entre 6 e 24 meses. No caso de gestantes, estima-se uma média nacional de prevalência de anemia em torno de 30%. A anemia por deficiência de ferro resulta de longo período de balanço negativo entre a quantidade de ferro biologicamente disponível e a 3 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br necessidade orgânica desse oligoelemento. Considerada um sério problema de saúde pública há mais de três décadas, a deficiência de ferro pode prejudicar o desenvolvimento mental e psicomotor, ocasionando menor rendimento intelectual e escolar nos lactentes, e maiores taxas de reprovação e abandono escolar na criança e no adolescente; pode causar aumento da morbimortalidade materna e infantil, além da queda no desempenho do indivíduo no trabalho e redução da resistência às infecções. Em 2002, a análise do ranking das principais causas de anos de vida perdidos por morte prematura e/ou por incapacidade (disability adjusted life years, DALY) mostrou que a deficiência de ferro ocupou o nono lugar entre as 20 causas principais. Na África, 81% do total de DALY são originários da mortalidade associada à anemia na gestação. Na América Latina, esse número não é tão mais baixo, correspondendo a 61%. Por outro lado, na América do Norte e Cuba, esse número é de 10% do total de DALY. Considerando que esses países apresentam baixas taxas de mortalidade, o restante da carga da doença é atribuído às sequelas diretas como prejuízos cognitivos e na força de trabalho. Além do problema de saúde, também estamos diante de um grave problema econômico. De acordo com o relatório do Banco Mundial, cerca de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países em desenvolvimento são desperdiçados com os gastos em saúde decorrentes da anemia ferropriva. Transpondo esses cálculos para o ano de 2008, pode-se dizer que o Brasil, com um PIB estimado em R$ 2,3 trilhões, gastou, naquele ano, R$ 116 bilhões para tratar problemas de saúde decorrentes da deficiência de ferro. O Programa Nacional de Suplementação de Ferro, juntamente com a fortificação obrigatória das farinhas de trigo e milho com ferro e ácido fólico e a orientação nutricional, constituem o conjunto de estratégias voltadas para o controle e redução da anemia por deficiência de ferro em nosso país. 4 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br Em 1982, foi implantada no Brasil a distribuição de ferro suplementar para a totalidade da clientela atendida pelo Programa de Atenção à Gestante das Unidades Básicas de Saúde. Em compromisso assumido junto às Nações Unidas, em 1992, o Brasil comprometeu-se a reduzir, em um terço, a anemia para os próximos 10 anos, com base nos dados encontrados em 1990. Embora incipiente e pouco ousado, o compromisso brasileiro teve o mérito de intensificar os estudos de intervenção para controlar a deficiência de ferro nos grupos de risco. Em 2005, o Ministério da Saúde considerou, ou melhor, continuou considerando, a deficiência de ferro como um grave problema de saúde pública, que acomete em torno de 50% das crianças menores de 5 anos e 30% das gestantes. Neste mesmo ano, o governo instituiu o Programa Nacional de Suplementação de Ferro (Portaria no 730, de 13 de maio de 2005). Este programa prevê a suplementação medicamentosa de ferro para crianças de 6 a 18 meses de idade, gestantes a partir da 20a semana e mulheres até o 3o mês pós-parto. Os suplementos de ferro são distribuídos, gratuitamente, às unidades de saúde que conformam a rede do SUS em todos os municípios brasileiros, de acordo com o número de crianças e mulheres que atendam ao perfil de sujeitos da ação do programa. As limitações e dúvidas quanto à prática da suplementação universal como método de prevenção da deficiência de ferro trouxeram à tona a questão do uso de suplemento alimentar enriquecido com ferro no lugar da suplementação medicamentosa adotada em outros países latino-americanos. Em 2004, o Ministério da Saúde tornou obrigatória a fortificação das farinhas de milho e trigo com ferro e ácido fólico, por serem alimentos de fácil acesso à população e não terem alterações de suas características organolépticas no processo de fortificação, além de ser economicamente viável ao país. Assim, a cada 100 g de farinha obtêm-se 4 mg de ferro. Nessa proporção, seriam necessários cinco pães franceses, ou a 5 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br mesma quantidade de outro alimento equivalente, para fornecer um terço da quantidade diária de 12 a 13 mg, as quais são recomendadas na alimentação saudável para mulheres adultas. Entretanto, para gestantes, essa quantidade equivaleria a um sétimo, aproximadamente, constituindo-se numa medida fraca para colaborar com a ingestão adequada de ferro. Em 2009, Jordão et al. publicaram uma revisão sistemática sobre a anemia ferropriva no Brasil. Os autores revisaram 53 estudos clínicos publicados no período de onze anos sobre a prevalência de anemia entre crianças menores de cinco anos de idade. Os dados medianos encontrados para a prevalência de anemia foram de 53%. A real eficácia e efetividade destes programas continuam em aberto, os resultados locais ou regionais não são conclusivos. Além disso, foram levantadas questões importantes, tais como: a dificuldade de se obter, junto ao Ministério da Saúde, as evidências científicas que subsidiaram a elaboração do próprio programa; qual a dose ideal do composto de ferro; dificuldades na produção e abastecimento para atender o programa; baixa adesão em função dos eventos adversos gastrointestinais com o sal ferroso; a sensibilização pouco efetiva dos profissionais envolvidos; falta de estudos cooperativos, randomizados, transversais e/ou multicêntricos direcionados para o problema que pudessem, após seus resultados, propor ações mais seguras, efetivas e factíveis em nível nacional. Outra questão que deve ser considerada é o número significativo de brasileiros com maior predisposição à condição de sobrecarga de ferro, primária (hemocromatose hereditária) ou secundária (pessoas portadoras de anemias hereditárias – doença falciforme e talassemia; pessoas que recebem transfusão de hemácias por doenças oncológicas ou hematológicas). Segundo dados do Ministério da Saúde, estima-se o nascimento anual de uma criança com doença falciforme a cada mil crianças nascidas vivas, aproximadamente 3.500 novas crianças com a doença por ano e a existência de 25 a 30 mil pessoas com doença falciforme; pelo menos 600 pessoas 6 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br portadoras de talassemia maior (segundo a Abrasta), sem contar aquelas com as formas mais leves da doença; estudos nacionais constataram que aproximadamente 10% da população brasileira apresenta alguma mutação do gene da hemocromatose, o que os torna mais vulneráveis ao acúmulo progressivo de ferro ao longo da vida. Além disso, soma-se milhares de pessoas com doenças onco-hematológicas (por exemplo, linfoma, mieloma múltiplo, leucemias agudas, síndrome mielodisplásica) com certo grau de sobrecarga de ferro devido à múltiplas transfusões de hemácias recebidas durante o tratamento específico da doença neoplásica. Vale a pena lembrar que, fisiologicamente, o organismo humano não é capaz de aumentar a excreção de ferro, mesmo em condições de sobrecarga deste metal. Portanto, o aumento progressivo do aporte de ferro, seja por via gastrointestinal seja por via parenteral, leva impreterivelmente à condição patológica de sobrecarga de ferro. Assim, a fortificação obrigatória dos alimentos com ferro expõe, para não dizer obriga, desnecessariamente, uma parcela significativa da população brasileira ao risco de agravamento de sua condição de saúde pelo efeito tóxico do ferro em excesso no organismo, aumentando a chance de complicações clínicas, muitas vezes graves, associadas à condição de sobrecarga deste metal”. DA CONCLUSÃO Considerando que apesar da grande demonstração de sintonia do governo brasileiro com as recomendações internacionais e da vontade política de minimizar a anemia dentre os problemas de saúde pública da população, são poucos e contraditórios os resultados de estudos de avaliação da efetividade do programa de fortificação de alimentos, ou seja, de que realmente houve um impacto positivo da fortificação de alimentos na prevenção da deficiência de ferro no Brasil; Considerando a frequência de pessoas brasileiras com maior predisposição à condição de sobrecarga de ferro, primária (hemocromatose 7 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br hereditária) ou secundária (pessoas portadoras de anemias hereditárias – doença falciforme e talassemia; pessoas com doença onco-hematológica); Considerando que a fortificação obrigatória dos alimentos com ferro expõe, para não dizer obriga, desnecessariamente, uma parcela significativa da população brasileira ao risco de agravamento de sua condição de saúde pelo efeito tóxico do ferro em excesso no organismo, aumentando a chance de complicações clínicas, muitas vezes graves, associadas à condição de sobrecarga de ferro; Considerando a possibilidade e a existência de programas de alimentos sem adição de açúcar pelos diabéticos, de sal não iodado pelos portadores de câncer de tireoide, ou alimentos desprovidos de glúten pelos portadores de doença celíaca, “entendemos ser crucial que haja a disponibilidade e o acesso fácil a alimentos não fortificados com ferro para a população de uma maneira geral, e, em especial, para aqueles cuja doença por si só possa ocasionar a condição de sobrecarga de ferro" (Rodolfo D. Cançado). Pelo exposto acima e considerando a relevância do assunto para a saúde de grande parcela da população brasileira, recomendamos dar ciência do presente parecer à Anvisa e que o CFM atue junto ao Ministério da Saúde para que a RDC Anvisa no 344/02, que dispõe sobre a obrigatoriedade de fortificação de farinhas para uso em alimentos, seja revisada com a participação de profissionais médicos para que, por meio de seus conhecimentos técnico-científicos, subsidiem as decisões políticas de forma a beneficiar a população brasileira, respeitando as variáveis anteriormente apresentadas. Este é o parecer, SMJ. Brasília-DF, 26 de outubro de 2012 MARTA RINALDI MULLER Conselheira relatora 8 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br INFORMAÇÕES TÉCNICAS ADICIONAIS AO PARECER Rodolfo D. Cançado Professor adjunto da disciplina de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo; membro do Grupo de Assessoramento Técnico em Doenças Falciformes e outras Hemoglobinopatias, do Ministério de Estado da Saúde do Brasil; membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. Fortificação de alimentos com ferro A nutrição exerce papel extremamente importante e definitivo na promoção da saúde de uma população, o que lhe atribui caráter essencial no planejamento de ações e programas em saúde pública. Uma alimentação nutricionalmente adequada, durante a infância e adolescência, propicia o crescimento e desenvolvimento de acordo com o potencial genético, bem como menor risco de doenças na fase adulta e senil e melhor qualidade de vida. Entretanto, várias situações podem impedir que este objetivo seja alcançado, como os erros e restrições alimentares, o inadequado aproveitamento dos nutrientes, a hiperatividade, o aumento das demandas nutricionais, as situações patológicas instaladas, os processos infecciosos, o metabolismo individual e a depleção de reservas. Devemos considerar que a alimentação é fundamental para a prevenção das deficiências nutricionais, mas, quando estas se fazem presentes, exercem um efeito direto tanto para o indivíduo como para o país. Os conhecimentos disponíveis sobre a participação dos micronutrientes em várias funções primordiais e o impacto que exercem sobre o metabolismo intermediário têm despertado o interesse da comunidade científica pela investigação do estado nutricional de micronutrientes em outros segmentos populacionais, objetivando subsidiar estratégias de intervenção nutricional. 9 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br As evidências acumuladas sugerem importante papel das deficiências de micronutrientes como fator predisponente, agravante na fisiopatologia de diversas doenças crônicas não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares, a hipertensão, o Diabetes mellitus, a obesidade, alguns tipos de câncer, a osteoporose, entre outras enfermidades. Esses achados estão contribuindo para a valorização da prática clínica da avaliação do estado nutricional, além de apontar para a necessidade de maior ênfase no protocolo de nutrição, objetivando o aumento do consumo de micronutrientes pela população. Com relação à deficiência de ferro, no Brasil, causa mais comum da anemia, várias pesquisas têm demonstrado sua alta prevalência na população. Sabe-se que além dos fatores determinantes dessa grave situação a manifestação sistêmica mais preocupante da anemia ferropriva é, contudo, o comprometimento no desenvolvimento cognitivo, comportamental e na coordenação motora, não só pelo menor índice de suspeita, como também pela dificuldade diagnóstica, severidade e apresentação tardia. No mais extenso estudo longitudinal (19 anos) publicado até o momento, na Costa Rica, os autores indicam que lactentes anêmicos avaliados depois de prolongado e efetivo tratamento, comparados com controles não anêmicos, continuam a apresentar menores escores em testes motores, pior desempenho cognitivo e de aprendizado e maior frequência de distúrbios comportamentais até a adolescência, independentemente de outros fatores associados à anemia. Foi estimado para dez países em desenvolvimento (Bangladesh, Índia, Paquistão, Mali, Tanzânia, Egito, Omã, Bolívia, Honduras e Nicarágua) que as perdas anuais decorrentes da diminuição da produtividade física devido à deficiência de ferro sejam de 3,64 USD por pessoa ou 0,81% do PIB, e que a mediana das perdas físicas e cognitivas seja de 16,78 USD por pessoa ou 4,05% do PIB. Calcula-se que a perda de produtividade associada à anemia 10 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br seja de 5% em trabalhos leves, de 17% em trabalhos pesados e de 4% quando se envolvem todos os tipos de trabalhos. Prevenção atual no combate à anemia ferropriva A anemia por deficiência de ferro é uma epidemia global que requer ação urgente. Por isso, várias abordagens para o seu combate têm sido estudadas e aplicadas. Existem várias estratégias que podem ser utilizadas para contribuir na diminuição, prevenção e tratamento da anemia, mas a abordagem atual consiste em três eixos: (1) diversificação alimentar, com ênfase nos alimentos de melhor biodisponibilidade; (2) suplementação medicamentosa e (3) fortificação de alimentos – sendo que cada um oferece vantagens distintas, principalmente quando se pretende alcançar populações específicas. Desse modo, tais medidas não devem ser concedidas isoladamente, mas sim como componentes essenciais de um programa, cujo objetivo é aumentar o aporte de ferro. Diversificação alimentar A diversificação alimentar refere-se não só ao acesso ao alimento, mas também a outros fatores, como a condição econômica para adquiri-lo e a biodisponibilidade e aproveitamento do ferro ingerido, diretamente ligados ao hábito alimentar. Dependendo da forma como este mineral é encontrado no alimento, pode haver diferenças significativas entre eles, pela relação com os fatores estimuladores e inibidores de sua utilização presentes numa mesma refeição. Com base nos estudos de absorção de ferro foram desenvolvidos alguns algoritmos para predizer a biodisponibilidade na alimentação. Monsen et al. apresentam um algoritmo em que, a partir da concentração de ácido ascórbico e do total de carne de uma refeição, e, evidentemente, do total de ferro heme e não heme, pode-se inferir a porcentagem de ferro biodisponível considerando três níveis de reserva: baixa, média e alta biodisponibilidade. 11 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br Suplementação medicamentosa A implementação do programa de suplementação medicamentosa, para grupos etários específicos, embora eficaz, apresenta algumas desvantagens. A necessidade de uso prolongado, dificuldade de acesso ao medicamento, distribuição inadequada pela rede de saúde, sabor metálico e pouco agradável, possibilidade de efeitos colaterais, como escurecimento dos dentes, fezes e várias alterações gastrointestinais, como diarreias, vômitos, náuseas, flatulência e obstipação, levam ao abandono do tratamento, restringindo a efetividade dessa forma de prevenção. Considera-se que a suplementação medicamentosa possua também, como limitações, o fato de não envolver todos os grupos de risco para anemia e de depender do conhecimento e motivação dos profissionais de saúde, além do insuficiente suporte e a falta de monitoramento. De acordo com Olivares (2004), a suplementação profilática de ferro é um método útil e que deve ser indicado quando a população de risco não tiver acesso a alimentos fortificados ou quando há requerimentos nutricionais muito elevados – neste caso, é recomendável a utilização por curto período de tempo. O autor sugere, ainda, a necessidade de motivação e educação adequadas como medida necessária para aumentar a efetividade dessa estratégia. Princípios básicos da fortificação de alimentos A fortificação é largamente considerada como sendo a mais prática abordagem e a que apresenta melhor relação custo-efetividade a médio e longo prazos. Alterações no padrão do consumo alimentar e o aumento da ingestão de alimentos industrializados, junto com as perdas nutricionais durante seu processamento e armazenamento, têm levado à prática de adição de vitaminas e minerais aos alimentos processados, de modo a reduzir as deficiências da população, além de eficaz estratégia para contribuir na 12 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br prevenção e diminuição da anemia ferropriva em diversos países desenvolvidos. Vários países da América do Sul e Central também instituíram a fortificação de alimentos como recurso de combate às deficiências nutricionais. Costa Rica, Chile, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá e Porto Rico, entre outros, possuem políticas de enriquecimento. A efetivação das medidas foi obtida somente a partir de decisões políticas que culminaram no caráter compulsório da fortificação. Segundo a Food and Drug Administration (FDA), alimentos enriquecidos, fortificados e com vitaminas agregadas são termos semelhantes que podem ser utilizados como alternativa para a adição de uma ou mais vitaminas, minerais ou proteínas ao alimento. Para a adição ou fortificação de nutrientes essenciais aos alimentos, o Food and Agriculture Organization/World Health Organization Standardization Food Program estabeleceu alguns princípios gerais: • Os nutrientes essenciais devem estar presentes em um nível que não irá resultar em ingestão excessiva ou insignificante do nutriente adicionado, considerando a quantidade obtida de outras fontes na dieta; • A adição de um nutriente essencial para uma alimentação não deve resultar em efeito adverso sobre o metabolismo de qualquer outro nutriente; • Os nutrientes essenciais devem ser suficientemente estáveis nos alimentos, nas condições usuais de embalagem, armazenamento, distribuição e utilização; • Os nutrientes essenciais devem ser biologicamente disponíveis no alimento; • Os nutrientes essenciais não devem transmitir características indesejáveis ao alimento e não devem indevidamente encurtar a vida de prateleira; 13 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br • Tecnologia e instalações de processamento devem estar disponíveis para permitir a adição de nutrientes essenciais de forma satisfatória; • A adição de nutrientes essenciais aos alimentos não deve ser usada para ludibriar o consumidor quanto ao valor nutricional dos alimentos; • O custo adicional deve ser razoável para o consumidor a que se destina; • Métodos de medição e controle dos níveis de nutrientes essenciais adicionados nos alimentos devem estar disponíveis; • Deve ser prevista em normas alimentares, regulamentos ou orientações para a adição de nutrientes essenciais aos alimentos, disposições específicas identificando os nutrientes essenciais a serem considerados, ou que sejam necessários, e os níveis em que devem estar presentes nos alimentos para alcançar sua finalidade. Fortificação de alimentos no Brasil No Brasil, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância Sanitária, baixou a Portaria nº 31, de 13 de janeiro de 1998, com o objetivo de fixação da identidade e características mínimas de qualidade dos alimentos adicionados de nutrientes essenciais, dentre as ações voltadas para a prevenção e controle da anemia ferropriva. O processo de fortificação/enriquecimento, ou simplesmente de adição, é aquele no qual se acresce ao alimento, de acordo com parâmetros legais, um ou mais nutrientes, contidos ou não naturalmente no mesmo, com o objetivo de reforçar seu valor nutritivo, inclusive aquele eventualmente perdido no processamento industrial, e prevenir ou corrigir alguma deficiência em um ou mais nutrientes na alimentação da população em geral ou de seus grupos de risco. Após este processo, o alimento é dito fortificado/enriquecido, ou simplesmente adicionado de nutrientes, conforme o teor de nutrientes acrescido. Logo, deve ficar claro que alimento fortificado/enriquecido é diferente de alimento adicionado. O alimento pronto para consumo em 100 ml 14 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br ou 100 g deve fornecer em relação à IDR (Ingestão Diária Recomendada) de referência: • Mínimo de 15%, para alimentos líquidos, e de 30%, para alimentos sólidos é considerado fortificado/enriquecido, podendo ser declarado no rótulo o dizer: "alto teor" ou "rico" (conforme o Regulamento Técnico de Informação Nutricional Complementar). Em maio de 1999, o governo brasileiro, sociedades civis e científicas, organismos internacionais, indústrias de alimentação e o setor produtivo firmaram o Compromisso Social para a redução da anemia por carência de ferro no Brasil, propondo a adição de ferro nas farinhas de trigo e milho, por serem dois produtos de amplo consumo popular, de baixo custo e consumido por crianças a partir do desmame. No entanto, só no ano 2000 o Ministério da Saúde solidificou essa proposta com a publicação da Resolução nº 15, de 21 de fevereiro. Apenas em 18/12/2002 foi aprovado o Regulamento Técnico que tornou obrigatória a fortificação das farinhas de trigo e milho com ferro e ácido fólico, por meio da Resolução RDC nº 344 da Anvisa, do Ministério da Saúde. Desde junho de 2004 esta medida compulsória estabelece que cada 100 g do produto deve fornecer, no mínimo, 4,2 mg de ferro, que representa 30% da IDR de adulto, e 150mcg de ácido fólico, o que corresponde a 37% da IDR de adulto. E ainda em 11/8/2009 institui a Comissão Interinstitucional para Implementação, Acompanhamento e Monitoramento das Ações de Fortificação de Farinhas de Trigo, de Milho e de seus Subprodutos, por meio da Portaria nº 1.793 (20). Tipos de fortificação Atualmente, a OMS reconhece quatro categorias de fortificação: 1) Fortificação universal ou em massa: geralmente ocorre de forma obrigatória e consiste na adição de micronutrientes a alimentos de consumo pela maioria 15 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br da população. É indicada em países onde vários grupos populacionais apresentam risco elevado para deficiência de ferro; 2) Fortificação em mercado aberto: iniciativas das indústrias de alimentos, com o objetivo de agregar maior valor nutricional a seus produtos; 3) Fortificação focalizada ou direcionada: visa o consumo dos alimentos enriquecidos para os grupos populacionais de elevado risco de deficiência, que pode ser obrigatória ou voluntária, de acordo com a significância em termos de saúde pública; 4) Fortificação domiciliar comunitária: tem sido considerada e explorada em países em desenvolvimento. Podem ter sua composição programada e são de fácil aceitação pelo público-alvo, porém ainda apresentam custo elevado, diferente das outras formas, e requerem que a população seja orientada. Neste tipo de fortificação geralmente são adicionados suplementos às refeições. O impacto da fortificação de alimentos na prevenção da deficiência de ferro A grande demonstração de sintonia do governo brasileiro com as recomendações internacionais e da vontade política de minimizar a anemia dentre os problemas de saúde pública da população brasileira foi o Programa de Fortificação de Farinhas de Trigo e de Milho, para todos os fins, com ferro e ácido fólico, cuja efetiva implantação ocorreu em junho de 2004. Ainda visando cumprir o compromisso firmado e conscientes do baixo consumo de alimentos sólidos por lactentes, em maio de 2005 foi editado pelo Ministério de Saúde o Programa Nacional de Suplemento de Ferro (PNSFe), a ser distribuído por meio das UBS a crianças de 6 a 18 meses de idade. Entretanto, são poucos e contraditórios os resultados de estudos de avaliação da efetividade desses dois programas de intervenção. Um estudo de abrangência nacional, coordenado por Fujimori e Szarfarc, com o objetivo de avaliar o impacto da fortificação das farinhas fortificadas na ocorrência da anemia em gestantes, permitiu ver que na maior 16 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br parte dos locais estudados a prevalência de anemia, após pelo menos um ano de implantação da intervenção, era elevada e similar àquela encontrada antes da fortificação. A média de 22,4% de prevalência de anemia em 2002 não diferia estatisticamente da encontrada após julho de 2005: 20,4%. Sobrecarga de ferro e hemocromatose hereditária Introdução O ferro é elemento essencial na maioria dos processos fisiológicos do organismo humano, desempenhando função central no metabolismo energético celular. A quantidade total de ferro no adulto é de aproximadamente 3,5g a 4g e a maior parte deste metal (1,5g a 3,0g) encontra-se ligada ao heme da hemoglobina e tem como principal função a oxigenação dos tecidos, ou armazenado sob a forma de ferritina ou de hemossiderina nas células do sistema mononuclear fagocitário, principalmente do fígado, medula óssea e baço. Fisiologicamente, o organismo humano não é capaz de aumentar a excreção de ferro, mesmo em condições de sobrecarga deste metal. Portanto, o aumento progressivo do aporte de ferro, seja por via gastrointestinal seja por via parenteral, leva impreterivelmente à condição patológica de sobrecarga de ferro. O Quadro 1 relaciona as principais síndromes clínicas que podem resultar em acúmulo de ferro. Quadro 1. Principais síndromes clínicas relacionadas à sobrecarga de ferro 1. Primária 2. Secundária a. HH - gene HFE (tipo 1) 2.1 Transfusional b. HH - Juvenil (tipo 2) c. • hemojuvelina (tipo 2A) • hepcidina (tipo 2B) HH - gene do receptor • Anemia hemolítica crônica (talassemia, doença falciforme) 2 da • Síndrome mielodisplásica • Anemia aplástica 17 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br • transferrina (tipo 3) Anemia de Fanconi d. HH - gene da ferroportina (tipo 4) • Anemia de Blackfan Diamond e. Outros tipos: • 2.2 Não transfusional • HH - gene da cadeia pesada da • Doença hepática crônica ferritina o hepatite viral (vírus B, C) • Aceruloplasminemia o hepatite • Mutação DMT1 (HH neonatal) etanol • Atransferrinemia o síndrome metabólica • Ataxia de Friedreich o esteatohepatite induzida por não alcoólica • Porfiria cutânea tarda • Shunt porto-cava • Sobrecarga africana de ferro • Iatrogênica (uso excessivo de ferro oral ou parenteral) HH designa doença autossômica recessiva associada, na maioria das vezes, à mutação do gene HFE caracterizada pelo aumento inapropriado da absorção intestinal de ferro com consequente acúmulo progressivo desse íon em diferentes órgãos e tecidos do organismo, especialmente fígado, coração, pâncreas, pele e articulações, podendo ocasionar lesão celular e tecidual, fibrose e insuficiência funcional. Epidemiologia Estudos populacionais indicam que a HH teve origem no norte da Europa, em populações de origem nórdica ou celta. A mutação C282Y do gene HFE apresenta frequência mais elevada em indivíduos caucasianos do noroeste da Europa, da América do Norte, da Austrália e da Nova Zelândia; frequência intermediária na Europa oriental e meridional, na África do Norte e no Oriente Médio; sendo raramente encontrada em populações asiáticas, africanas ou afrodescendentes das Américas Central e do Sul. 18 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br Estudos envolvendo populações dos Estados Unidos da América, da Austrália e do continente europeu demonstraram que a frequência de homozigotos e heterozigotos para a mutação C282Y varia entre 0,2% e 0,7% e entre 7% e 14%, respectivamente. A mutação H63D do gene HFE é duas a três vezes mais frequente que a C282Y e a prevalência de heterozigotos e homozigotos para esta mutação varia entre 15% e 40% e entre 2,5% e 3,6%, respectivamente. A frequência do genótipo C282Y/H63D é de aproximadamente 2%. A frequência alélica das mutações C282Y e H63D do gene HFE em cinco estudos brasileiros estão demonstradas na Tabela 1. Tabela 1. Frequência alélica das mutações C282Y e H63D do gene HFE no Brasil Frequência alélica (%) Estudo, ano, Cor local da pele Mutação Mutação Mutação C282Y H63D S65C Agostinho et al., 1999 B 1,4 16,3 Campinas (*) P 1,1 7,5 (N=227) M 1,1 1,1 B+P+M 2,2 14,3 Pereira et al., 2001 B 3,7 20,3 São Paulo P 0,5 6,4 (N=395) M 0,7 13,0 B 1,4 8,6 0,6 P 0,0 2,4 0,3 NR 2,1 13,6 0,6 NR Calado et al., 2000 Ribeirão Preto NR (N=320) Bueno et al., 2003 São Paulo (N=148) NR Santos et al., 2009 São Paulo (N=542) 19 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br (*) Único trabalho que estudou um grupo indígena e não encontrou nenhum indivíduo com mutação C282Y ou H63D do gene HFE. N= número de participantes em cada estudo; B= branco; P= preto; M= mulato; NR= não realizado. Quando analisamos os pacientes com diagnóstico de HH, observamos que 60% a 100% são homozigotos para a mutação C282Y do gene HFE. Entretanto, o número reduzido de indivíduos com diagnóstico HH frente à elevada frequência das mutações do gene HFE chamou a atenção dos pesquisadores com relação a hipótese de penetrância incompleta do gene mutante. Estima-se que menos de 50% dos indivíduos homozigotos para a mutação C282Y desenvolverão evidência laboratorial e/ou clínica de sobrecarga de ferro. Em paralelo, a expressão clínica ou fenotípica dos indivíduos com mutação do gene HFE pode sofrer a influência de fatores genéticos, clínicos e ambientais e interferir no metabolismo do ferro, ocasionando agravamento do acúmulo de ferro e do curso clínico da doença. Os principais fatores desfavoráveis capazes de contribuir para a progressão mais rápida da doença são: sexo masculino, consumo excessivo de bebida alcoólica, infecção pelo vírus B ou C da hepatite, anemia hemolítica crônica (talassemia, anemia falciforme, esferocitose hereditária), consumo excessivo de medicamentos com ferro, vitamina C ou administração parenteral de ferro, porfiria cutânea tarda, mutação concomitante de outro gene envolvido no metabolismo do ferro. Cançado et al., estudando as principais mutações do gene HFE em pacientes com sobrecarga de ferro (maioria dos pacientes com FS > 1000 ng/ml e com sintomas e sinais secundários ao excesso de ferro), observaram frequência alélica de 76% (38/50), sendo que 30% eram homozigotos para a mutação C282Y. Além disso, demonstraram que o índice de ST e FS eram significativamente maiores nos doentes homozigotos para a mutação C282Y, 20 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br confirmando a correlação entre genótipo C282Y/C282Y e maior risco de sobrecarga de ferro; e que a anemia hemolítica crônica, hepatite C e consumo excessivo de bebida alcoólica estão implicados em aumento dos estoques de ferro do organismo e constituem fatores de risco adicionais para a condição de sobrecarga de ferro em doentes com mutação do gene HFE. Fisiopatologia Os doentes com HH apresentam ritmo aumentado de absorção intestinal de ferro, podendo atingir 10 mg/dia ou mais. Atualmente, a hepcidina é considerada a principal proteína responsável pela regulação de ferro do organismo. Sintetizada no fígado, sua produção é estimulada pelo aumento dos depósitos de ferro, lipopolissacarídeos e pela interleucina-6, proteína essa inibida em situações como anemia, hipóxia tecidual, eritropoese ineficaz (devido à síntese da proteína GDF-15), alcoolismo. A hepcidina, ligando-se à ferroportina (principal proteína exportadora de ferro, localizada na membrana baso-lateral dos enterócitos, macrófagos e eritrócitos), promove sua internalização e degradação, inibindo a absorção intestinal de ferro e diminuindo a liberação de ferro presente nos macrófagos para o plasma. Nos pacientes com HH (tipos 1, 2 e 3) observa-se redução da síntese de hepcidina, ocasionando aumento da absorção intestinal de ferro e da liberação de ferro dos macrófagos, resultando em acúmulo progressivo e patológico de ferro no organismo. A toxicidade do ferro está relacionada ao ferro livre, ou seja, não ligado à transferrina. A partir do momento em que a quantidade plasmática de ferro ultrapassa a capacidade de saturação da transferrina, a concentração de ferro livre não ligado à transferrina (NTBI, non-transferrin-bound iron), mais especificamente a fração redoxi-ativa denominada LPI (labile plasma iron), aumenta e, uma vez que sua capacidade de penetrar nas células dá-se mais fácil e rapidamente do que o ferro ligado à transferrina, ocasiona lesão celular. 21 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br O ferro livre atua como catalisador de reações oxidativas e consequente síntese de radicais superóxidos e radicais hidroxilas livres. A conversão do superóxido em H2O2 pela enzima superóxido dismutase causa peroxidação de lípides da membrana de diversas organelas citoplasmáticas, como mitocôndrias e microssomos, com consequente dano celular, fibrose reativa, esclerose e insuficiência funcional. Nos doentes com HH, observa-se aumento da expressão do gene do colágeno com consequente aumento de sua produção no interior dos lipócitos hepáticos que, progressivamente, são substituídos por fibrose. A coexistência de fatores como consumo excessivo de bebida alcoólica e hepatopatia crônica pelo vírus C da hepatite agravam e aceleram ainda mais esse processo. Manifestações clínicas O quadro clínico da HH é bastante variável, insidioso e dependente do acúmulo de ferro, que ocorre lenta e progressivamente por várias décadas. A maioria dos doentes torna-se sintomático entre a 3a e 5a décadas de vida, sendo que nas mulheres as manifestações clínicas são observadas 5 a 10 anos mais tarde que no homem, devido às perdas sanguíneas fisiológicas que ocorrem durante os períodos menstrual e gestacional, e à lactação. Os sintomas mais referidos são: fadiga (70%-80%), artralgia/artrite (40%-50%), dor abdominal (20%-60%), diminuição da libido ou impotência sexual (20%-50%), perda de peso (10% a 50%). Os sinais clínicos mais frequentes ao diagnóstico são: hepatomegalia (50%-90%), hiperpigmentação da pele (30%-80%), hipogonadismo (20%-50%), artropatia, esplenomegalia, Diabetes mellitus, cirrose hepática, miocardiopatia e/ou arritmia. O risco de carcinoma hepático é cerca de 20 vezes maior nos pacientes com HH e mais frequente em pacientes com cirrose hepática. 22 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br Diagnóstico O diagnóstico HH compreende a avaliação e confirmação laboratorial da sobrecarga de ferro e a pesquisa das mutações do gene HFE (C282Y, H63D e S65C). Duas dosagens consecutivas da saturação da transferrina (ST) com valores acima de 45% para ambos os gêneros e da ferritina sérica acima de 200 ng/ml nas mulheres e 300 ng/ml nos homens, e a presença em homozigose da mutação C282Y (e, em alguns casos, C282Y/H63D) confirmam o diagnóstico de HH. Mais recentemente, a ressonância nuclear magnética (RNM) tornou-se um importante exame aliado ao arsenal diagnóstico da sobrecarga de ferro como método não invasivo que permite a quantificação indireta do conteúdo de ferro em diferentes órgãos. Apesar de ser um método invasivo, a biópsia hepática tem como vantagens avaliar a intensidade e extensão do processo inflamatório hepático e a presença de cirrose. Desta forma, este procedimento está indicado nos pacientes com sorologia reagente para vírus B ou C da hepatite, nos indivíduos homozigotos para a mutação C282Y com mais de 40 anos e/ou alanina aminotransferase elevada e/ou FS > 1000 ng/ml. A ausência destes três fatores indica risco mínimo de fibrose hepática; na presença de dois ou mais fatores, esse risco é significantemente maior e esta complicação tem impacto no prognóstico do paciente. Situação menos frequente é a constatação de sobrecarga de ferro em indivíduos sem mutação do gene HFE. Nestes casos, se o paciente tiver menos de 30 anos de idade, é mais provável a existência de mutação no gene da hemojuvelina ou hepcidina. Portanto, estes genes devem ser estudados. Se o paciente tiver mais de 30 anos, é mais provável que haja mutação no gene da ferroportina ou do receptor2 da transferrina. 23 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br É importante ressaltar que, independentemente de se confirmar o diagnóstico genotípico, a presença de sobrecarga de ferro indica a necessidade de iniciar o tratamento para remoção do excesso de ferro. Tratamento O tratamento de escolha do paciente com HH compreende a remoção do excesso de ferro do organismo por flebotomia ou sangria terapêutica. Tratase de procedimento seguro, econômico e eficaz. Com relação à orientação dietética dos pacientes com HH, recomendase evitar o uso de compostos à base de ferro e com vitamina C, bem como abster-se do uso de bebidas alcoólicas e de manusear ou ingerir frutos do mar ou peixes marinhos crus, devido ao risco de infecção, às vezes fatal, causada pelo Vibrio vulnificus e pela Salmonella enteritidis. Prognóstico e mortalidade Os doentes com HH apresentam sobrevida menor que a observada em indivíduos da população geral para o mesmo sexo e faixa etária. Entretanto, quando o diagnóstico precede o início do Diabetes mellitus e o tratamento é instituído antes do desenvolvimento de cirrose hepática, a sobrevida destes doentes passa a ser semelhante à da população geral. As principais causas de morte nos doentes com HH não tratados são: insuficiência cardíaca e/ou arritmia, insuficiência hepatocelular e carcinoma hepático. Doença falciforme no Brasil Há mais de trinta anos, os segmentos sociais organizados de homens e mulheres negras no Brasil vêm reivindicando o diagnóstico precoce e um programa de atenção integral às pessoas com doença falciforme (DF). O primeiro passo rumo à construção de tal programa foi dado com a institucionalização da triagem neonatal no Sistema Único de Saúde do Brasil, por meio de portaria do Ministério da Saúde, publicada em 15 de janeiro de 24 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br 1992, com testes para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito (Fase 1). Em 2001, por meio da Portaria no 822/01, do Ministério da Saúde, foi criado o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), incluindo a triagem para as hemoglobinopatias (Fase 2). A inclusão da eletroforese de hemoglobina nos testes de triagem neonatal representou importante passo no reconhecimento da relevância das hemoglobinopatias como problema de saúde pública no Brasil e também o início da mudança da história natural da doença em nosso país. Ao incluir a detecção das hemoglobinopatias no PNTN, essa portaria corrigiu antigas distorções e trouxe vários benefícios, sobretudo a restauração de um dos princípios fundamentais da ética médica, que é o da igualdade, garantindo acesso igual aos testes de triagem a todos os recém-nascidos brasileiros, independentemente da origem geográfica, etnia e classe socioeconômica. Configurando uma fase de consolidação dessa iniciativa, em 16 de agosto de 2005 foi publicada a Portaria no 1.391, que institui, no âmbito do SUS, as diretrizes para a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias. No momento, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Geral da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados, vem trabalhando na regulamentação e na implantação das medidas estabelecidas pela Portaria no 1.391, bem como na organização da rede de assistência às pessoas com outras hemoglobinopatias, em todos os estados da União. A anemia falciforme é a doença hereditária monogênica mais comum do Brasil, ocorrendo, predominantemente, entre afrodescendentes. A distribuição do gene S no Brasil é bastante heterogênea, dependendo da composição negroide ou caucasoide da população. Assim, a prevalência de heterozigotos para a Hb S é maior nas regiões Norte e Nordeste (6% a 10%) e menor (2% a 3%) nas regiões Sul e Sudeste. Prevalência estimada do gene S segundo dados do Ministério da Saúde 25 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br do Brasil: Traço falciforme (Hb AS) População geral: 4% (2% a 8%) Entre afrodescendentes: 6% a 10% Nascimento anual: 200.000 Expectativa de indivíduos Hb AS: 7.200.000 Anemia falciforme (Hb SS) Casos estimados: 25.000 a 30.000 Estima-se o nascimento de uma criança com anemia falciforme para cada mil recém-nascidos vivos Número de casos novo por ano: 3.500 26 SGAS 915 Lote 72 | CEP: 70390-150 | Brasília-DF | FONE: (61) 3445 5900 | FAX: (61) 3346 0231| http://www.portalmedico.org.br Referências bibliográficas – Fortificação de alimentos com ferro 1. WHO/Unicef/ONU. Iron deficiency anaemia: assessment prevention and control. A guide for programme managers. World Health Organization, Geneva; 2001. 114p. 2. Monsen ER, Hallberg L, Layrisse M, Hegsted M, Cook JD, Mertz W, Finch CA. 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Aprova o Regulamento Técnico para a fortificação das farinhas de trigo e milho com ferro e ácido fólico [texto na internet]. 2002. Diário Oficial da Republica federativa do Brasil, Brasília (DF); 2002 [acesso 8 jul. 2008]. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/legis/resol/2002/344_02rdc.htm 9. Brasil. Ministério Interinstitucional da para Saúde. Gabinete Implementação, do Ministro. Comissão Acompanhamento e Monitoramento das Ações de Fortificação de Farinhas de Trigo, de Milho e de seus Subprodutos, Portaria nº 1.793 [acesso 16 nov. 2009]. Disponível: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt1793_11_08_2009 .html 10. WHO/FAO Guidelines on food fortification with micronutrients. World Health Organization, Food and Agriculture Organization of the United Nations. Geneva: WHO Library; 2006. 11. Hurrell RF. Preventing iron deficiency through food fortification. Nutr Rev. 1997;55:210-22. 12. Cançado RD, Chiattone CS. 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