EM NOME DO PAI: REFLEXÕES SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO TARDIA DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO PARA O PAI ADOTIVO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci* & Carla Noura Teixeira** *Doutora em Filosofia do Direito pela PUC/ SP. Mestra em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Especialista em Estudos de Problemas Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Graduada em Direito pela UPM. Graduada em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Professora do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da UPM. Professora do Curso de Graduação em Direito da Universidade São Judas Tadeu (USJT). **Doutora em Direito do Estado pela PUC/ SP. Mestra em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPa. Advogada. Professora dos cursos de graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista – UNIP. Nada é impossível de mudar Desconfiai do mais trivial, na aparência do singelo. E examinai,sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: Nunca digam:Isso é natural! Pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural. Nunca digam:Isso é natural! A fim de que nada passe por ser IMUTÁVEL! Bertolt Brecht-– A Exceção e a Regra Sumário 1. Notas propedêuticas : Por que os homens foram “esquecidos” e excluídos? Um fato de ordem natural ou um fato construído? 2. Salário-adoção para o pai adotivo: necessidade imperativa de justiça social. 3. A Igualdade na Constituição Federal de 1988: o princípio, o meio e o fim. 4. Em prol de um novo construto social: o conceito de pessoa. Resumo O presente trabalho tem por objetivo discutir a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro. A inclusão do novo benefício contribui para a igualdade de homens e mulheres, singulares nas suas individualidades e plurais na responsabilidade da assunção de papéis diversos na construção de uma sociedade efetivamente mais igualitária e assume contornos definitivos para cidadãos do presente século. // Revista da Faculdade de Direito // número 2 // segundo semestre de 2014 107 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ “Nada é impossível de mudar Desconfiai do mais trivial, na aparência do singelo. E examinai,sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: Nunca digam:Isso é natural! Pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural. Nunca digam:Isso é natural! A fim de que nada passe por ser IMUTÁVEL!” Bertolt Brecht-– A Exceção e a Regra // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira cludente, define o sexo, define o gênero, define o destino de cada um, define a existência, define as possibilidades, define as desigualdades na práxis social. 1. Notas propedêuticas : Por que os homens foram “esquecidos” e excluídos? Um fato de ordem natural ou um fato construído? “N ão se nasce mulher, torna-se mulher”, a frase de autoria de Simone de Beauvoir1 para identificar as construções históricas e culturais acerca dos papéis de gênero, considerando homens e mulheres como diametralmente opostos, nos conduzem - em prol de uma nova era- a completar seu raciocínio “não se nasce homem, torna-se homem”. Destaca-se que os conceitos de homem e mulher são arquitetonicamente construídos e prevalecem culturalmente entre os povos, gerando inúmeras conseqüências das mais variadas ordens. A partir desses alicerces e definições outros estigmas vão sendo alinhavados, tais como “homem não chora”, “ homem deve prover o sustento”, a “mulher deve ser sensível” “a mulher deve ser mãe”. Tais ideais povoam o imaginário social e se estabelecem como paradigmas reais na história da humanidade. Os sexos são excludentes e com papéis definidos geram o não compartilhamento de funções e se ratificam por uma existência modelada em funções típicas, femininas e masculinas, que sob um rótulo taxativo e ex- Não existem razões naturais, biológicas ou científicas que expliquem a submissão de um sexo a outro, a fragilidade de um sexo em relação ao outro são construtos sociais que ao longo do tempo se estabelecem e passam - a partir de convenções criadas - a definir arquétipos e papéis no seio social. Assim, surge a desigualdade, a submissão que tanto prejudica as mulheres, as grandes personagens despersonificadas de poder, educação e cidadania; mas, também, constrói homens sem afetividade, voltados apenas para a “vida pública” em detrimento da “vida privada” e dos laços familiares. Parte-se do pressuposto que sempre foi assim e assim será. Alguns compreendem como natural esta diferença entre “sexo forte” e “sexo frágil”, quando na verdade não é. Ressalta-se que quando questionadas, delegadas ou afrontadas tais delimitações conceituais do que é próprio do homem ou da mulher, incitariam o debate da própria noção do ser em sociedade. Sendo assim, como refazer estereótipos e arquétipos que nos aparecem e se confundem com o próprio trilhar histórico da humanidade? Atualmente, no século XXI muitas destas certezas - até então imperativas- começam a ser questionadas. O vanguardismo se inicia em transformações ainda tênues na sociedade, mas que aos poucos vão invadindo a literatura, os filmes, os livros didáticos, os programas televisivos e até mesmo aqueles ideais tão distantes vão aos poucos se tornando mais corriqueiros e familiares. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 108 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira Estamos a falar da situação dos homens, em especial dos pais, no século XXI, e que no conduzir da história foram protagonistas de papéis definidos como os responsáveis pelo “espaço do trabalho”, mas que os afastam da noção da paternidade afetiva, compartilhada e presente, que começa a ser desenhar nos tempos modernos. Nesse sentido Aguinaldo José da Silva Gomes e Vera da Rocha Resende (2004, p.2) declaram que: Diante de um novo cenário a mulher dona de casa, que O presente ensaio analisa a questão dos pais e procura apresentar a não sintonia entre a legislação civil e a legislação previdenciária brasileira no tocante ao homem solteiro, pai adotivo, ao qual se possibilita legalmente ser adotante a partir dos 18 anos de idade, mas que até meados de 2013 não se garantia a percepção do benefício previdenciário relativo à adoção, diferentemente das mulheres, mães adotivas às quais o benefício social era devido desde 2002. 2. Salário-adoção para o pai adotivo: necessidade imperativa de justiça social apenas cuidava da família e exercia o papel de protetora, também se desvanece para dar lugar à companheira que, mesmo envolvida emocionalmente com os filhos, pode desincumbir-se do peso da excessiva presença materna. Os movimentos, que se observam em tempos de mutação e transição da paternidade, acenam para um futuro em que ao pai serão devolvidas. Há um novo movimento social no qual o homem busca reinventar seu papel; no qual a paternidade convive com o processo de transformações em marcha. Os pais questionam o silêncio e o distanciamento impostos por determinações culturais, por meio de várias gerações. Deverá haver uma revolução paternal, que já se iniciou há apenas duas décadas, mas serão necessárias várias gerações para concretizar-se efetivamente. Essa revolução “clama por mudança radical nas mentalidades e profunda transformação nas condições da vida privada e profissional que, observamos, estão sendo tecidas nos núcleos familiares contemporâneos, a partir dos conflitos reestruturantes que nelas se manifestam”. (GOMES & RESENDE, 2004, p.2) Padre Antônio Vieira destacava “O filho por natureza ama-se porque é filho, o filho por adoção é filho porque se ama”. Partindo-se desta máxima do autor dos Sermões, a Lei Federal n.10.421/2002 completa onze anos de existência, ou seja, um pouco mais do que uma década. A importância dessa norma foi a inclusão do benefício previdenciário destinado à mãe adotiva, acrescentando à Lei n. 8.213/91 o art. 71-A. A edição da norma legislativa - apesar de tardia - representou a consolidação da salvaguarda à maternidade, evoluindo-se do conceito puramente biológico e natural, previsto no art. 71 da Lei 8.213/91, para vir a prestigiar e proteger a maternidade adotiva ou legal, advinda da premissa de que é de absoluta importância o estabelecimento de laços afetivos entre mães e filhos, em especial, dos laços a serem construídos a partir de um processo de adoção. Anteriormente à edição da Lei 10.421/2002, ecos de necessária proteção social à mãe adotiva se faziam presentes em Convenções Coletivas mais vanguardistas, bem como em Estatutos de Funcionários Públicos pelo Brasil afora, citan- // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 109 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira do-se, em especial a Lei n. 8.112/90 que rege os funcionários públicos federais, diplomas que eram utilizados como paradigmas para o ingresso de ações judiciais por parte de mães adotivas no Brasil. A partir da vigência da nova lei muitos problemas foram resolvidos em relação ao benefício social, entretanto o art. 71 A da Lei 8.213/91 ganhou contornos nitidamente femininos, delimitando a concessão do benefício apenas às mães adotivas, com a exclusão dos segurados, pais adotivos, em total afronta ao princípio da igualdade, ressaltando-se a desigualdade entre os sexos na questão. No ordenamento jurídico brasileiro o conceito para ser adotante é o de pessoa maior de 18 anos. Sendo assim fica latente que o conceito escolhido foi o de pessoa, não havendo diferenças e privilégios no Diploma Civil Brasileiro, podendo, assim, um homem solteiro adotar uma criança. Contudo, a mesma determinação não se seguiu no ordenamento previdenciário que em seu art. 71-A da 8213/91 excluiu os homens do direito à percepção do benefício em caso de adoção de criança, ferindo-se em absoluto a máxima da igualdade, dogma postular do Sistema Constitucional Brasileiro. Importante destacar que a razão da instituição do benefício do salário-maternidade à mãe adotiva foi o de criar laços de convivência da mãe com a criança adotada, este é o princípio maior2. Assim, em sendo possível pela própria legislação a adoção de criança por pessoa maior de 18 anos, o homem solteiro maior de 18 anos que adota faz jus ao benefício. Contudo, ao adentrar aos postos do INSS para buscar seu direito a norma será aplicada em sua mais simples literalidade com a exclusão dos pais do benefício previdenciário. Inconformados e já fazendo coro contra o problema legislativo muitos são os homens brasileiros que têm buscado a via judicial para garantia de seus direitos. Os benefícios em grande parte dos Estados vêm sendo alcançados. Sobre a questão indispensável trazer à colação o primeiro processo ajuizado no Brasil e que serviu de paradigma para a construção jurisprudencial sobre o tema, contudo resta esclarecer que este processo teve como autor um funcionário público federal, ou seja, do Regime Próprio de Previdência Social, sistema no qual também ocorre a lacuna e afronta legislativa com a exclusão dos pais adotivos da percepção do benefício previdenciário.3 Tratava-se de um servidor público federal do Tribunal Regional do Trabalho(TRT) da 15ª região de Campinas- Estado de São Paulo, que na condição de homem solteiro adotou uma criança e solicitou administrativamente ao Tribunal a concessão do benefício. A licença foi negada tendo-se por argumento o art. 210 da lei 8.112/90, que trata do regime jurídico dos servidores públicos civis da União e dita que ´´à servidora que adotar ou obtiver a guarda judicial de criança de até um ano serão concedidos 90 dias de licença remunerada´´. Diante da negativa de natureza administrativa, o processo foi ajuizado contra o TRT de Campinas, e obteve julgamento favorável - 15 votos a 4- concedendo-se 3 meses de licença ao funcionário público Gilberto Antonio Semensato de obter a licença para cuidar da filha, adotada por ele aos quatro meses, traduzindo-se o presente caso desde o ano de 2008 como primeiro precedente brasileiro sobre o tema. // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 110 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira Em tempos contemporâneos, mais precisamente no ano de 2012, apresenta-se, também, a decisão inédita da 1ª Câmara de Julgamentos do Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS), na qual pela primeira vez, um homem que tem uma união homoafetiva e adotou uma criança terá direito ao salário-maternidade, concedido pelo CRPS. A decisão, unânime entre os conselheiros, foi baseada nas análises da Constituição Brasileira e do Estatuto da Criança e Adolescência (ECA), que garantem o direito da criança aos cuidados da família, enfocando que se a adoção é permitida a um homem o benefício também deverá ser, demonstrando a necessidade da Previdência Social avançar na legislação e se comprometer com os avanços e anseios sociais.4 No âmbito do Legislativo importante citar a proposta de projeto de lei de autoria dos senadores Aécio Neves (PSDB-MG) e Lindbergh Faria, membros da Frente Parlamentar pela Adoção, e que foi aprovado em primeiro turno pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado em julho de 2012. Ressaltando-se que apenas se houver apresentação de emendas, o projeto passará por uma votação em turno suplementar. Caso contrário, ele será encaminhado diretamente à Câmara dos Deputados.De acordo com o projeto o pai adotivo solteiro de uma criança ou adolescente poderia ter direito à licença de 120 dias no trabalho e a salário correspondente à licença-maternidade pelo mesmo período. Seguindo essa trajetória histórica e trâmites legislativos, no dia 25 de outubro de 2013, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei n. 12.873/2013 que altera o art. 71-A da Lei 8213/91 e concede ao pai adotivo o direito ao benefício adoção, cabendo transcrever: Art. 71-A. Ao segurado ou segurada da Previdência Social que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança é devido salário-maternidade pelo período de 120 (cento e vinte) dias. (Redação dada pela Lei nº 12.873, de 2013) § 1o O salário-maternidade de que trata este artigo será pago diretamente pela Previdência Social. (Redação dada pela Lei nº 12.873, de 2013) § 2o Ressalvado o pagamento do salário-maternidade à mãe biológica e o disposto no art. 71-B, não poderá ser concedido o benefício a mais de um segurado, decorrente do mesmo processo de adoção ou guarda, ainda que os cônjuges ou companheiros estejam submetidos a Regime Próprio de Previdência Social. (Incluído pela Lei nº 12.873, de 2013) A lei teve por principal lobby as diversas ações judiciais que tramitavam pelo Brasil afora, e que em sua grande maioria vinham obtendo ganho de causa. Ao se editar a Lei n. 12.873/2013 garantiu-se, apesar de tardiamente, um papel fundamental no tocante à igualdade de gênero. Também, há de ser dito que foram corrigidas distorções da Lei 10.421/2002 quanto à concessão do benefício limitado à crianças até 8 anos, em total afronta ao Estatuto da Criança e Adolescente que define criança como até 12 anos incompletos, bem como do escalonamento da idade da criança ( quanto menor fosse, maior seria o benefício). A partir de agora crianças de até 12 anos de idade passam a fazer jus ao benefício de 120 dias.5 // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 111 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira Contudo, há de ser salientado que a nova lei cria uma nova desigualdade e que agora será entre pais adotivos e pais biológicos, pois nova lei estende o benefício ao pai adotante mas mantém o pai biológico sem esse direito, assim, se a mãe biológica não for segurada mas o pai biológico for segurado, nenhum deles terá direito ao salário-maternidade. À título de Direito Comparado destaca-se que os Códigos do Trabalho da França, Espanha e Itália garantem aos pais adotivos, independente se homem ou mulher, o direito ao benefício. O Código do Trabalho de Portugal, em seu artigo 38, disciplina a questão delimitando que em caso de adoção de menor de 15 anos, o adotante, homem ou mulher, tem direito a 100 dias consecutivos de licença para acompanhamento do menor. Conclui-se, por momento, que a concessão tardia do benefício do salário paternidade ao pai adotivo no Direito Previdenciário Brasileiro afrontou durante mais de uma década um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, qual seja, o princípio da isonomia que analisaremos no tópico a seguir. 3. A Igualdade na Constituição Federal de 1988: o princípio, o meio e o fim “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade (...)” estabelece o caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988. No atual Texto Constitucional o princípio da igualdade ga- nhou nova concepção bastando para confirmar tal assertiva uma análise da sua inserção topológica. Neste sentido, Carmem Lúcia Antunes, Ministra do Supremo Tribunal Federal, destaca que nas Constituições anteriores o princípio da igualdade apresentava-se entre os incisos ou parágrafos do artigo relativo aos direitos fundamentais reconhecidos e assegurados. O Texto Magno de 1988 instaura no art. 5º, caput, os direitos e garantias fundamentais com a referência expressa ao princípio da igualdade jurídica, sinalizando, segundo a autora, um tratamento diferenciado ao princípio como forma de estruturá-lo como alicerce na nova ordem constitucional brasileira. Conclui-se, assim, um novo status ao princípio da isonomia objetivado pelo Constituinte de 1988, devendo ser concebido como base para o sistema e norteador da melhor hermenêutica e aplicação do Direito. Convém destacar que, no Preâmbulo da Carta de 1988 a igualdade, também foi declarada como valor: “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, foram citados como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional”. Importantíssimo salientar que o princípio da igualdade assegurado na Carta Cidadã de 1988 comporta análise em suas duas dimensões, quais sejam, a igualdade material e a igualdade formal. Compreende-se por igualdade formal aquela estabelecida como ideal, perante a lei. Prescreve o art. 5º da CF/88 // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 112 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira “igualdade de todos perante a lei”. A igualdade formal garante o tratamento de todos os cidadãos de maneira isonômica, não sendo admitidos privilégios e perseguições tendo por instrumento a lei. É conceito destinado, entre outros, ao legislador, incumbido de garantir um tratamento igualitário de todos perante o ordenamento legal. há justificativa racional, isto é fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia Celso Ribeiro Bastos (2002, p.318) considera que o princípio da igualdade formal é encontrado na maior parte das Constituições Ocidentais, e tem sua origem a partir da Revolução Francesa, pautada como lema nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Destaca o autor que referida igualdade consiste no direito de todo cidadão não ser desigualado pela lei a não ser de acordo com critérios agasalhados pelo ordenamento constitucional. J. J. Gomes Canotilho (1991, p.401) assevera que haverá observância da igualdade “quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária”. E segue o ilustre autor, esclarecendo que “existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (I) fundamento sério; (II) não tiver um sentido legítimo; (III) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável”. Seguindo a mesma linha de pensamento Celso Antônio Bandeira de Mello (1995, p. 32) apresenta critérios para aferição da discriminação, expondo: (...) investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se com eles. Em suma: importa que exista mais que uma correlação lógica abstrata entre o fator diferencial e a diferenciação conseqüente. Exige-se, ainda, haja uma correlação lógica concreta, ou seja, aferida em função dos interesses obrigados no direito positivo constitucional. E isto se traduz na consonância ou dissonância dela com as finalidades reconhecidas como valiosas na Constituição. Em outro aspecto, a Constituição de 1988 garante a aplicação do princípio da igualdade material ou igualdade real que se constitui como a igualdade na realidade fática, nas relações sociais e no seio da sociedade. Com base na igualdade material o Texto Magno estabelece proteção e salvaguarda especial, por meio de políticas públicas a situações que merecem ser igualadas. Impende reiterar que o princípio da igualdade jurídica já não mais se encontra cingido a uma igualdade formal ou isonômica, mas aos poucos vai se afirmando como uma igualdade material, por meio da implementação consciente e necessária de hábeis políticas públicas voltadas à minoração das desigualdades e a instauração de uma isonomia real. A declaração da igualdade perante a lei é imprescindível no campo do reconhecimento de direito, mas o efetivo // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 113 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira exercício dos direitos sociais, que garantem patamares mínimos de acesso a bens considerados essenciais, garante a igualdade material. (FRISCHEISEN, 2007, p.62) É, também, no Texto Constitucional que encontramos a missão da Previdência Social, que se constitui como um dos elementos da Seguridade Social, nos termos do art. 194: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. dos nas leis que regem o sistema e os incisos do art. 201 da Carta Magna de 1988 traduzem as contingências e que são objeto de amparo social. Cumpre transcrevê-lo: Art. 201 ( ...) I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II – proteção à maternidade, especialmente à gestante; III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego voluntário; IV- salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; e Nestes termos, a seguridade social, constitucionalmente engendrada por princípios previstos no art. 194 da CF/88, tem por objetivos principais a consolidação de um Estado de Bem-Estar Social, cumprindo seu papel institucional de busca pela justiça e paz social, com a redução das desigualdades, promoção da dignidade da pessoa humana e proteção do homem diante vicissitudes e necessidades sociais. Consoante as disposições do art. 201 da CF/88 percebemos as características básicas da previdência social: caráter contributivo, filiação obrigatória, proteção a riscos determinados pela legislação e equilíbrio financeiro e atuarial. É, portanto, a previdência social a institucionalização estatal de um seguro, destinado à pessoa, filiada ao sistema, e vitimada pela necessidade social. Pode ainda ser entendida como meio dotado de eficácia do qual se utiliza o Estado no intuito de proceder à distribuição da riqueza nacional, objetivando o bem-estar da coletividade. O sistema da previdência social protege riscos determinados especificados na lei. Tais riscos encontram-se delimita- V- pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes. Verifica-se, portanto, que a Constituição Federal de 1988 relaciona os eventos merecedores de proteção social e neste intuito devem ser entendidos como aqueles capazes de colocar em situação de necessidade os que vierem a ser atingidos por tais ocorrências. Impõe dizer que no campo da seguridade social, o ato de selecionar é atribuído ao legislador que entre as necessidades e contingências sociais deverá escolher aquelas mais propícias e indispensáveis para serem implementadas. Traduz-se como um comando de imperativa aplicação e que deverá estar pautado na instauração de políticas públicas que atendam aos objetivos conclamados no Texto Constitucional. Hão de ser escolhas legítimas, fundamentadas e voltadas à produção de bem-estar e justiça social Partindo, do binômio necessidade-possibilidade caberá ao legislador identificar as contingências e verificar as possibi- // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 114 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira lidades financeiras para a criação e implementação de novos benefícios, respeitado sempre a máxima da isonomia. Consideramos, também, que a seletividade impõe ao legislador um molde a ser cumprido levando-se em conta o contexto social, cultural, político e econômico como esteio e fonte motivadora para a seleção das contingências sociais. Deve o legislador no momento da escolha atentar para o momento histórico priorizam as contingências sociais que reflitam em absoluto as necessidades a serem prestigiadas.. Assim, no campo da seguridade social o binômio seletividade-distributividade vislumbra-se como a escolha das necessidades sociais mais imperativas e a distribuição de tais benefícios/serviços aos indivíduos mais necessitados, de forma a abranger o maior número de destinatários, visando a produção efetiva da promoção de justiça e bem-estar social. No caso em questão não existe qualquer motivo autorizante de tratamento discriminatório dado ao homem, há sim uma norma de natureza inconstitucional, discriminatória e que fere um sobreprincípio da CF/88: o princípio da dignidade da pessoa humana. Pela leitura detida aos ensinamentos acima transcritos podemos concluir que para a instituição de um tratamento diferenciado deverá haver um fundamento dotado de razoabilidade, assegurando uma relação lógica entre os meios e os fins da norma desigualadora. Ademais, para a existência da norma desigualadora é pressuposto indispensável a sua conformação aos valores Constitucionais, sempre dentro de uma interpretação sistemática e teleológica. Informa Fábio Konder Comparato (1998, p. 17) que se a igualdade de tratamento jurídico é reconhecida como um princípio constitucional inerente ao regime democrático, quer isto significar que a força desse princípio se impõe a todos os ramos do Estado; não só ao aplicador da lei, na esfera administrativa ou judiciária, mas também ao próprio legislador. Em outras palavras, quando a Constituição proclama todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput) ela está proibindo implicitamente, quer a interpretação inigualitária das normas legais, quer a edição de leis que consagrem, de alguma forma, a desigualdade vedada. Ao lado, pois de uma desigualdade perante a lei, pode haver uma desigualdade da própria lei, o que é muito mais grave. No tema em tela fica latente a escolha legislativa de incluir tardiamente o homem adotivo na percepção do benefício previdenciário, já que no seio social é noção cediça que grande parte das adoções ocorre por casais, sendo exceção – ainda- as adoções por homens solteiros. Foi uma escolha de natureza legislativa, mas que afrontou por mais de 11 anos o princípio da igualdade, mas mais do que isso afronta os novos tempos e o novo comportamento de homens que pretendem adotar e constituir uma família. 4. Em prol de um novo construto social: o conceito de pessoa 115 Finalmente e a título de conclusão consideramos que, enquanto os benefícios e proteções sociais continuarem tendo a mulher como foco principal, fomentaremos as diferenças e as desigualdades permanecerão e, por via de conseqüência, excluiremos homens e mulheres sempre, da vida em // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014 Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu http://www.usjt.br/revistadireito/ // Em nome do pai: reflexões sobre a implementação tardia do benefício previdenciário para o pai adotivo no ordenamento jurídico brasileiro // Ana Claudia Pompeu Torezan Andreucci & Carla Noura Teixeira geral, quer seja no âmbito público ou no privado. Homens e mulheres devem ser incluídos. BALLESTEROS, Jesús (Org) Derechos Humanos. Madrid: Gráficas Molina, 1992. O conceito que consideramos o necessário a ser adotado é o de pessoa. A pessoa deve ser compreendida como finalidade primeira e última da sociedade e do Direito. O compartilhamento e a combinação de papéis que evoluam para um ideal mais humanista, afastando estereótipos, modais e, principalmente, propugnando pela igualdade de gênero. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. Esta reconciliação – feminino e masculino - supõe a ideia de uma dualidade de elementos que tiveram que se separar, e até que se opor, e para isso trabalharam com a ideia dialética dos opostos, mas que por meio da reconciliação encontrarão uma síntese não mais no conceito homem e mulher, mas sim no conceito mais humanista de pessoa, a nortear as relações sociais, culturais e jurídicas. A nortear o futuro, a nortear uma nova era. BOFF, Leonardo. Feminino e masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. REFERÊNCIAS ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan. Salário-Maternidade da Mãe Adotiva. São Paulo: LTr, 2006. __________________. Igualdade de gênero e ações afirmativas. Desafios e perspectivas para as mulheres brasileiras pós Constituição Federal de 1988. São Paulo: LTr, 2012. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins & ANDREUCCI, Ana Cláudia Pompeu Torezan (org.). Mulher, Sociedade e Direitos Humanos: Homenagem à Profa. Dra. Esther de Figueiredo Ferraz. São Paulo: Rideel, 2010. CANOTILHO ,J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina. 1995. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1983. COMPARATO, Fábio Konder. Precisões sobre os conceitos de lei e de igualdade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 750, abril 1998. FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. 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Acesso em 3 de fevereiro de 2014. 4. http://www.uol.com.br/. Acesso em 3 de fevereiro de 2014. 5. Conforme defendemos na obra ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan. Salário-Maternidade da Mãe Adotiva. São Paulo: LTr, 2006 117 // DIREITO E TRANSFORMAÇÃO // número 2 // segundo semestre de 2014