Ilustração: Rogério Borges 40| A assimilação psicológica do mal Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra Ano 2 | número 2 | 2013 CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |41 A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 A assimilação psicológica do mal Ana Luisa Testa* e Sonia Regina Lyra** Resumo A psique humana é composta pelos mais diversos conteúdos, tanto conscientes quanto inconscientes. Normalmente, por questões adaptativas, a consciência seleciona para si aqueles conteúdos que considera valiosos, ficando imersos no inconsciente aqueles que são considerados “maus”, apenas por serem contrários à atitude adotada pelo ego. Essa forma de funcionamento, apesar de ter seu valor adaptativo, traz consequências negativas para o individuo, já que esses conteúdos desprezados podem forçar sua expressão através de sintomas, patologias, projeções e assim por diante, deixando o ego à mercê da influência dessas forças inconscientes. A saída é unificar novamente a psique, assimilando essas forças inconscientes através da compreensão simbólica dos conteúdos reprimidos, sendo o primeiro passo a compreensão de que aquilo que é considerado “mau” possui caráter relativo. Esse trabalho é o que possibilita a realização da personalidade originária, que pode trazer um significado único à existência humana.Palavras-chave: sonhos, psicoterapia, processo de individuação. Palavras-chave: integração psíquica, assimilação, símbolo, mal, energia psíquica. Abstract * Ana Luisa Testa Psicóloga clínica, graduada pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Psicoterapia Corporal e em Psicologia Analítica (ICHTHYS – Instituto de Psicologia e Religião) ([email protected]) ** Sonia Regina Lyra Doutora em Ciências da Religião; Analista Junguiana. Orientadora de TCC ([email protected]) The human psyche is composed of the most diverse components, either conscious or unconscious. Normally, for adaptive reasons, the consciousness apprehends contents it judges valuable, leaving immersed in the unconscious whatever it considers “evil”, just because it is contrary to the attitude of the ego. This model, despite its adaptive value, brings negative consequences to the individual, once the components ignored by the consciousness may be exteriorized through symptoms, pathologies, projections and so forth, leaving the ego at the will of such unconscious forces. The solution would be to mend the psyche back to one again, assimilating those unconscious forces through the symbolic comprehension of the repressed psychic energy, being the comprehension that what is considered good or evil possesses relative character the first step. This work is what makes possible to realize the originating personality, the one that can bring a unique meaning to the human existence. Keywords: psychic integration, assimilation, symbol, evil, psychic energy. Introdução A psique possui uma linguagem que fala a partir do inconsciente através do uso de símbolos. Essa linguagem é rica em significados e expressa os modos de ser da energia psíquica. Para que a consciência possa comunicar-se e transformar-se com seu mundo interior, esses símbolos devem ser compreendidos e assimilados por ela. Jung (2008a) diz que o símbolo converte Ano 2 | número 2 | 2013 a energia psíquica em imagem e a representa de forma equivalente. A transformação da energia por meio da assimilação consciente do símbolo é um processo que existe desde o início da humanidade, e ainda continua no homem moderno. Mas de que serve, ou quais seriam as consequências da transformação da energia psíquica inconsciente? É essa pergunta justamente que o presente texto pretende discutir, e mais especificamente sobre a transformação e a assimilação CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR 42| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra | 41 - 49 do mal. O que pode ser adiantado é que esse processo serve para libertar o homem da compulsividade e do apetite dos instintos, dissolver as projeções desse conteúdo, assim como deixar à disposição da consciência essa força psíquica, libertando a alma da esfera da inconsciência ( JUNG, 2011). ego ( JUNG, 2008b). Vale a pena ressaltar que, sem transformação, não haveria modo de a vida perpetuar-se. Então, em última instância, a transformação da psique equivaleria à renovação da própria vida, com novas formas, imagens e sabores ( JUNG, 2008). tude de unilateralidade, que deverá ser compen- 1 Estrutura, conteúdo e dinâmica da psique Para que seja possível compreender a questão da assimilação do mal para a psicologia analítica é importante que o leitor retome primeiramente alguns conceitos básicos, tais como dinâmica, estrutura e conteúdos da psique humana, e mais adiante, no texto, o conceito de símbolo como o veículo transformador da energia psíquica. Começando com esses conceitos, Jung (2008b) afirma que a psicologia, enquanto ciência, trata primeiramente dos conteúdos, da estrutura e da dinâmica da psique, sendo a consciência a esfera à qual o cientista ou o psicólogo pode ter acesso direto, e obter dados para sua observação. Através dela podem ser expressos conteúdos provenientes do inconsciente. A consciência é como uma superfície que cobre a vasta área do inconsciente – área essa pouco conhecida, com determinada estrutura e conteúdos, observáveis apenas indiretamente, através de seus produtos, tais como sonhos, imaginação ativa, fantasias, sintomas, e assim por diante. 1.1 A consciência É consciente aquilo que se relaciona com o complexo do ego. O que é conhecido é aquilo que diz respeito ao eu. Logo, a consciência pode ser entendida como os fatos psíquicos que se encontram associados ao complexo do Ano 2 | número 2 | 2013 O ego – centro da consciência – emer- ge do inconsciente durante o desenvolvimento psicológico normal, e é forçado a se estabelecer como algo definido, distinto e direcionado. Ele diz “sou isso, e não aquilo”. Essa característica, apesar de crucial para a adaptação, cria uma ati- sada pelo inconsciente até que o ego amadureça e possa assimilar os pares de opostos (EDINGER, 2008). Por possuir uma atitude unilateral e se ter em alto valor, o ego não poderá se expandir en- quanto não assimilar aquilo que considera mal, ruim e pouco valioso. Assimilar essas tendências sombrias à personalidade traz consequências notáveis para o ego ( JUNG, 2011). 1.2 O inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo Apesar de os conteúdos inconscientes não serem diretamente observáveis, é possível clas- sificar seus conteúdos em duas ordens: uma de natureza pessoal e outra de natureza coletiva. Os de natureza pessoal são aqueles que podem ser relacionados com a vivência do indivíduo. Material reprimido, percepções subliminares, memó- rias e os complexos constelados ( JUNG, 2008b). Esses complexos constelados no incons- ciente pessoal possuem uma espécie de identidade própria. São personalidades com relativa independência dentro da psique. Essas personificações independentes são capazes de atuar e de influenciar a vida consciente do individuo, mesmo contra sua vontade. Mas, se o inconsciente fosse composto apenas por conteúdos adquiridos durante a vida do indivíduo, estes facilmente poderiam ser es- gotados durante uma análise. Porém o inconsciente nunca é desativado, continua a produzir seus sonhos e fantasias, muitos dos quais ultra- passam a esfera das vivências pessoais ( JUNG 1987). CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |43 A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 Esses conteúdos que ultrapassam a vivên- Mas, apesar de ser a princípio ilusória, a cia pessoal são próprios do inconsciente coletivo. unidade da psique pode ser considerada uma duais; são como que “padrões” arcaicos próprios sejam assimilados pela consciência. Esse tra- Não podem ser atribuídos a experiências individa humanidade em geral, e possuem um caráter mítico ( JUNG, 2008b). Esses padrões – denominados arquétipos – funcionariam como uma predisposição para produzir conteúdos iguais ou semelhantes en- tre os indivíduos da espécie humana ( JUNG, 2008c). Até agora, foi possível perceber que a es- meta, desde que os conteúdos do inconsciente balho é o que possibilita a realização da personalidade originária, e que pode trazer um sig- nificado único à existência humana. Essa meta pode ser chamada de processo de individuação ( JUNG, 2001). 2 O símbolo como veículo transformador da energia psíquica Para que o homem resgate sua unida- trutura da psique humana é composta por três de – ou personalidade originária - ele precisa consciente coletivo. Cada uma dessas camadas consciente. Essa personalidade originária foi camadas distintas: consciente, inconsciente e inconta com seus conteúdos próprios, sendo que na consciência encontram-se aqueles que se re- lacionam ao complexo do ego e, portanto, estão à disposição do eu; no inconsciente pessoal outros complexos – com personalidades autônomas, nem sempre em concordância com a personali- dade do ego; e no inconsciente coletivo encontram-se os arquétipos – formas padronizadas de ser – comuns a toda espécie humana. Apesar dessa complexa e segmentada es- trutura psíquica, a consciência com frequência assimilar na consciência a energia psíquica in- denominada self e, para Jung (2008), empirica- mente, o self é uma imagem da meta a se cumprir. Mas a finalidade do homem de se realizar enquanto uma unidade não depende apenas de sua vontade. É antes uma força que move os conteúdos inconscientes em direção à consci- ência. A natureza inconsciente anseia pela luz, a qual, no entanto, se contrapõe. A energia psí- quica quer se transformar para atualizar-se na vida consciente. E o processo de transformação da natu- ilude-se, ao acreditar que possui completa inde- reza inconsciente é realizado através da função Gostamos de pensar que somos unificados; mas de unificar os pares de opostos existentes entre o mente não somos senhores dentro de nossa pró- Esses pares de opostos surgem da seguin- pendência em relação ao inconsciente. isso não acontece nem nunca aconteceu. Real- pria casa. É agradável pensar no poder de nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalha- dos por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com transcendente, produtora de símbolos capazes consciente e o inconsciente ( JUNG, 1980). te maneira: o inconsciente com frequência toma uma atitude de complementação e compensação em relação à consciência, já que ela tende a ado- tar formas unilaterais de funcionamento – por questões de adaptação. Esta natureza unilateral tendência de movimento próprio, de viverem é compreensível, pois as exigências da vida por Continuo afirmando que o nosso inconscien- servir à adaptação, essa forma de funcionamento um indefinido, porque desconhecido, número de tos psíquicos que parecem ser incompatíveis com ( JUNG, 2008b, p. 87). mentos estimulam uma contraposição na esfera sua vida independentemente de nossa intenção. direção e estabilidade são acentuadas. Apesar de te pessoal e o inconsciente coletivo constituem traz inconvenientes, pois inibe todos os elemen- complexos ou de personalidades fragmentárias a atitude adotada pela consciência. Esses ele- Ano 2 | número 2 | 2013 CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR 44| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 do inconsciente, energeticamente proporcional Se, porém, a estrutura do complexo do ego é trabalha, na tentativa de unir no símbolo as duas teúdos inconscientes, sem que se afrouxe desas- ao seu oposto. É aí que a função transcendente bastante forte para resistir ao assalto dos con- atitudes antes opostas ( JUNG, 2011). trosamente sua contextura, a assimilação pode ocorrer. Mas, neste caso, há uma alteração não Mas, uma vez que o texto discute a impor- só dos conteúdos inconscientes, mas também do tância da assimilação do mal, é possível pensar ego. Embora ele se mostre capaz de preservar que este permanece na penumbra do incons- sua estrutura, o ego é como que arrancado de sua posição central e dominante, passando, assim, ao ciente, porque a consciência identifica-se ape- nas com os aspectos relativos ao bem. Quanto papel de um observador passivo a quem faltam mente do bem, mais fortalecido fica o mal para qualquer circunstância, o que acontece não tan- os meios necessários para impor sua vontade em mais alguém acreditar ser o portador exclusiva- to porque a vontade se acha enfraquecida em si contrapor-se e compensar a atitude unilateral da mesma, quanto, sobretudo, porque certas consi- consciência. derações a paralisam. Quer dizer, o ego não pode Os símbolos aparecem em todas as pro- deixar de descobrir que o afluxo dos conteúdos duções do inconsciente, como por exemplo, os inconscientes vitaliza e enriquece a personali- dos princípios da interpretação dessas produções modo o ego em extensão e em intensidade. Esta dade e cria uma figura que ultrapassa de algum sonhos, as fantasias e a imaginação ativa. Um experiência paralisa uma vontade por demais dentro da psicologia analítica é justamente não egocêntrica e convence o ego de que, apesar de interpretá-los de maneira literal, e sim procurar todas as dificuldades, é sempre melhor recuar o sentido oculto que o símbolo traz ( JUNG, para um segundo lugar, do que se empenhar em 2008b). combate sem esperança, o qual termina inva- O símbolo não é uma alegoria nem um semeion riavelmente em derrota. Deste modo a vontade maior parte transcendental ao consciente. É ne- namente ao fator mais forte, isto é, à nova figura são agentes, com os quais um entendimento 2011, p. 174). (sinal), mas a imagem de um conteúdo em sua enquanto energia disponível se submete paulati- cessário descobrir que tais conteúdos são reais, da totalidade que eu chamei de self [...] ( JUNG, não só é possível, mas necessário [...] ( JUNG, Dito isso, pode-se perceber que é condi- 2008c, p. 67). Parte desses produtos pode acessar a cons- ciência, enquanto outra parte pode permanecer ção necessária para o resgate da personalidade originária que o ego seja receptivo à vida simbólica, assim como deve ser forte o suficiente na penumbra ou completamente inconsciente, e para não se dissolver no processo. Essa atitude Através da compreensão do sentido do símbolo consciente, através da compreensão do símbolo inconsciente com o centro da psique consciente 1989). por isso só pode ser desvendada indiretamente. torna possível o diálogo entre o inconsciente e o é possível ligar as camadas mais profundas do que transforma a energia psíquica (EDINGER, ( JUNG, 2008b). Sem a compreensão não há assimilação. A função transcendente produz o símbolo, mas sem a colaboração do ego as camadas da psique 3 A importância da assimilação da libido inconsciente através dos símbolos No tópico anterior foi descrito o conceito não se ligariam, e a personalidade originária – de símbolo e algumas condições para que a ener- bem o papel do ego nesse processo de unificação através da compreensão do sentido que o símbo- self – não emergiria. O parágrafo abaixo explica da psique: Ano 2 | número 2 | 2013 gia psíquica – ou libido – possa ser assimilada lo traz nas diversas produções do inconsciente. CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |45 A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 No tópico presente o que se discute é a importância de se assimilar a libido inconsciente. Para isso, é preciso entender primeiramente o que é e para que serve a própria libido. Jung identifica o termo libido como sendo o mesmo que energia psíquica. Para ele, a libido indica um desejo, apetite ou impulso desprovi- do de valores morais. Pode ser vista como um instinto vital contínuo – uma vontade de existir. É percebida como o impulso do sono, da fome, da sede, do sexo, dos estados emocionais e dos afetos. O appetitus e a compulsio fazem parte de todos esses instintos. A quantidade de energia envolvida em cada um deles é variável. Do ponto de vista energético, a psique é extremamente dinâmica, e um instinto pode ser despotencializado a favor de outro ( JUNG, 2008c). No entanto, a libido nem sempre está à disposição na consciência, pois mantém sua autonomia em relação à vontade do eu. Tampouco sempre atua a favor do ego, por seu caráter com- pulsivo e apetitivo. Pode eventualmente dominá-lo, mas também é a única capaz de insuflá-lo com vida. Cícero, citado por Jung, diz: “Vontade é aquilo que se deseja com a razão. Aquilo, porém, que é contrário à razão e veementemente excitado chama-se libido ou desejo desenfrea- do, que se encontra em todos os tolos” ( JUNG, 2008c, p. 116). Mas, como dito anteriormente, é a libido que pode insuflar o ego com vida. Se a energia psíquica ficar represada no inconsciente, a vida do homem não flui mais. As coisas perdem o sentido, a vida perde o brilho, a paixão se esvai. Essa repressão é experimentada pelo ego como diminuição da alegria e da vontade de viver. O eu fica sem energia para utilizar em suas atividades diárias, e em casos extremos é tomado por um estado de completa depressão. Sendo assim, a assimilação dessas energias é de extrema impor- tância, pois não a projetará, não ficará a mercê dessas forças inconscientes e tampouco perderá sua vitalidade ao represá-las ( JUNG, 2008c). Essa vitalidade pode ser sentida imediata- mente quando alguns conteúdos acessam a cons- ciência, ou seja, quando o ego entra em contato e é receptivo à vida simbólica. Esses conteúdos podem causar fortes emoções, curas, conversões religiosas, ou simplesmente resgatar um pedaço da vida que ficou represado por muito tempo. Esse contato provoca um alargamento na consciência, desde que o indivíduo consiga assimi- lar seu conteúdo. Nesse trabalho de assimilação a interpretação psicológica dos símbolos é de grande valor, já que são estes últimos que fazem a ponte entre o profundo abismo que pode exis- tir entre os opostos, como por exemplo, o que Quando então a libido é inconsciente e domina o ego, têm-se os estados de possessão ou até mesmo de verdadeiras epidemias psíqui- cas. Em graus menores, pode-se ter essa libido influenciando o complexo do eu, através de obsessões e comportamentos compulsivos. Enquanto essa energia não for assimilada, o eu fica a mercê das forças do inconsciente. Além disso, os conteúdos não reconhecidos acabam por ser projetados sempre no outro. É dessa forma que muitas guerras, inclusive as “santas” começaram. Se o eu se identifica exclusivamente com o bem, seu oposto – o mal – estará inconsciente e provavelmente projetado no outro, seja esse outro uma pessoa, uma entidade um lugar ou Ano 2 | número 2 | 2013 até mesmo uma nação inteira. esse artigo traz: o bem e o mal ( JUNG, 2008b). 4 A importância da assimilação do mal Primeiramente, é relevante deixar claro que o mal do qual o presente artigo trata não se refere às entidades metafísicas, já que isso faria parte do campo de estudo da teologia e não da psicologia. O mal no texto deve ser, antes, com- preendido como a experiência psíquica que pode certamente ser vivenciada por muitas pessoas, como um conteúdo autônomo e que é frequentemente projetado no outro ( Jung, 2007). O tópico anterior trouxe alguns pontos sobre a importância de se assimilar a libido in- CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR 46| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 consciente: superação dos instintos; extinção das mados de fobias, obsessões e todo tipo de sinto- Para que isso ocorra, vale frisar a condição in- inconsciente coletivo se tornaram doenças em projeções psíquicas e a retomada da vitalidade. dispensável de se compreender os símbolos, já que são eles o elo entre os opostos. Dessa forma a unidade psíquica é retomada, pois consciente e inconsciente já não precisariam se contrapor. Sendo assim, para que essa unidade seja reconstituída, é fundamental que o bem e o mal possam ser reconhecidos e integrados ao ego, já que constituem um dos principais par de opostos. Também vale a pena ressaltar que negar a existência ou a influência do mal não fará com que sua ação cesse, além do que sua projeção pode criar situações perigosas. Se a consciência ma neurótico. Além de deuses, os conteúdos do psiques dissociadas ( JUNG, 2007). Negar e desconhecer a existência do mal e de toda a vida simbólica só acentua a dissociação psíquica, que é exatamente o oposto da meta da unificação. As tendências à dissociação caracterizam a psi- que humana e são inerentes a ela; sem isso, os sistemas psíquicos parciais não teriam cindido, não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessa- cralização de nossa época tão profana é devida ao nosso desconhecimento da psique inconsciente, e ao culto exclusivo da consciência. [...] reconhece apenas o bem, o mal certamente será Isso representa um grande perigo psíquico, pois que deve ser temido ou combatido no outro. O quer outros conteúdos reprimidos: induzem experimentado como algo autônomo e externo os sistemas parciais se comportam como quais- homem dito civilizado considera-se bem acima forçosamente a atitudes falsas, uma vez que os dessas coisas metafísicas e misteriosas. No entanto, passa grande parte da vida influenciado magicamente por outros seres humanos ou for- elementos reprimidos reaparecem na consciência sob uma forma inadequada ( JUNG, 2007, p. 49). Os elementos reprimidos são incapazes ças perturbadoras, justamente por não diferen- de se desenvolverem enquanto não forem tra- de seus conteúdos inconscientes ( JUNG, 2007). reprimido é capaz de impor às criaturas as mais ciar-se dos objetos, em consequência da projeção As imagens atribuídas a essas forças in- conscientes são equivalentes àquelas atribuí- das às mais diversas divindades. Quando o ego experiencia tais conteúdos sente-os como se fossem forças poderosíssimas, de caráter numi- noso e subjugante. Tais experiências têm uma influência maligna ou benigna no homem – são como se fossem seus anjos e demônios – e ele não pode evitá-las, pois sua vontade de nada vale ( JUNG, 2006). A única coisa que o homem pode fazer é aprender a reconhecer em si essas forças psíqui- cas antes que elas se transformem em patologias ou sintomas desagradáveis, que lhe mostrem que ele não é o único senhor em sua própria casa. Jung diz que o homem ocidental está tão alheio aos conteúdos do inconsciente coletivo que os trata como se estes fossem deuses ou demônios. E afirma que hoje esses deuses são também chaAno 2 | número 2 | 2013 balhados e assimilados pela consciência. O mal diversas barbáries. E resgatá-lo das profunde- zas do inconsciente para que ele se desenvolva equivale a resgatar as projeções psíquicas que o homem faz no mundo concreto e devolvê-las ao seu domínio de direito. Quando o homem se re- laciona com seu mundo interior – que já não está mais projetado no meio externo – sua persona- lidade está caminhando em direção à unificação. Ignorar o mal ou vê-lo apenas projetado não diminui sua ação. O homem não pode mais fechar os olhos para o perigo do mal que está à espreita dentro dele mesmo. Esse perigo é concreto, e a psicologia deve insistir em afirmar sua realidade. Como poderia haver o “elevado” se não existisse o “abissal”? Um é tão real quanto o outro! ( JUNG, 2000). Mas o reconhecimento em si daquilo que é considerado mal não se constitui num trabalho prazeroso. Sem a adequada compreensão CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |47 A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 da relatividade moral do mal, o ego pode temer é, perigosas, sob um determinado ponto de vista. que deturparia a verdade divina para roubar o za humana, que são muito perigosas e, por isso tais blasfemas – sua única intenção é unificar e eixo do tiro. Não tem sentido dissimular este mal ser enganado por uma certa “astúcia diabólica”, Existem também coisas desta espécie na nature- Seu lugar. Mas o inconsciente não se ocupa de mesmo, parecem más àquele que está situado no restituir o universo sagrado tão esquecido pelo homem moderno ( JUNG, 2009). Aceitar o demônio não significa passar para o lado dele, caso contrário a gente se torna demônio. Significa entender-se. Com isso assumes teu outro ponto de vista. Com isso o demônio perde algum terreno e tu também. E isto poderia ser sob cores atraentes, pois isto só serviria para nos embalar numa segurança ilusória. A natureza humana é capaz de uma maldade sem limites e as ações más são tão reais quanto as boas, tão vasto é o campo da experiência humana; o que significa que a alma emite o julgamento decisivo. Só a inconsciência desconhece o bem e o mal. No âmbito da psicologia ignora-se sinceramente o que prepondera no mundo: se o bem ou o mal. muito bom ( JUNG, 2010, p. 261). Apesar de o parágrafo anterior tratar o mal como algo moralmente relativo, é importante ressaltar que isso também implica uma relati- vidade do bem. O indivíduo, quando consegue desvencilhar-se da moral coletiva de sua época, enxerga que tanto um quanto outro não possui em si mesmo um caráter absoluto e podem por- tanto serem relativizados. No entanto, isso não quer dizer que ambas as categorias – o bem e o mal – não possuam validade ou simplesmente não existam. A diferença é que a categoriza- ção será feita antes pela ética do que pela moral. Aquele que desejar encontrar respostas para a questão do mal através da ética necessita em primeiro lugar de um conhecimento profundo acer- ca de sua totalidade. Deve saber, sem se poupar, da soma de todos os atos de que é capaz – dos mais elevados até os mais baixos – sem mentir e sem se vangloriar a respeito deles ( JUNG, 2006). A psicologia ignora o que é bom e o que é mau em si mesmo. Ela só conhece estas coisas como juízos de relação: bom é o que parece conveniente, aceitável ou valioso sob um certo ponto de vista; mau é o inverso disto. Se o que chamamos bom é “realmente” bom, então, consequentemen- Espera-se apenas que seja o bem, isto é, aquilo que nos parece conveniente. Pessoa alguma ja- mais teria condições de definir o que é o bem de modo geral. Nenhum conhecimento claro da relatividade e da caducidade do juízo moral é ca- paz de nos livrar desta limitação, e aqueles que se consideram situados para além do bem e do mal, via de regra, são os importunos mais incômodos da humanidade, que se contorcem no tormento e no medo da própria febre ( JUNG, 2000, p. 49). Apenas um conhecimento profundo a res- peito de si traz à tona a conscientização acerca dos opostos. Isso cria uma cisão e uma tensão entre eles, que é justamente a condição para que surja o símbolo capaz de equilibrá-los numa unidade. Essa solução que os equilibra – o sím- bolo – é resultado da cooperação entre o consciente e o inconsciente ( JUNG, 2006). Para Jung, o par de opostos – bem e mal – se encontram tão próximos na personalidade originária quanto dois gêmeos monovitelinos. E sem a vivência de ambos, não há experiência da totalidade do self. A assimilação do mal é, por- tanto condição para o processo de unificação da personalidade ( JUNG, 2009). te, existe algo de mau, um mal que é “real” para Se tiveres a rara oportunidade de falar com o de- um julgamento mais ou menos subjetivo, isto é, com ele. Ele é, em última análise, o teu demônio. nós. Vemos, portanto, que a psicologia lida com com um contraste psíquico imprescindível para a definição de determinadas relações de valor: bom é o que não é ruim, e ruim o que não é bom. Existem coisas que são extremamente más, isto Ano 2 | número 2 | 2013 mônio, não te esqueças de dialogar seriamente O demônio é, como adversário de teu outro pon- to de vista, aquele que te tenta e coloca pedras em teu caminho, lá onde você menos delas precisa ( JUNG, 2010, p. 261). CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR 48| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 Abaixo segue como exemplo uma sequên- cia resumida com dois sonhos e uma imaginação ativa que ilustra a questão da assimilação do mal, em ordem cronológica. Nessa série, reproduzida pela própria sonhadora, é importante que o leitor atente às mudanças de atitude que acontecem tanto no “mal” quanto no ego à medida que a assimilação acontece. Isso demonstra como ela promove uma transformação mútua, não só no consciente, mas também no inconsciente. Imaginação ativa – Comendo o demônio “— Coma-me. Disse o demônio de olhos bem escuros, coberto em tinta preta. E, mesmo sabendo que aquilo era ‘apenas uma imaginação’ não foi fácil. Era repugnante a ideia de comê-lo. Então cortei e fatiei suas pernas e seus braços, e coloquei tudo em uma panela grande. Seria a carne da refeição. Com a faca, abri seu abdômen e despejei tudo em outra panela. Como era re- pugnante demais, além de cozinhar precisaria processar as vísceras, e fazer daquilo um homogêneo purê. Já a cabeça, tive que cozinhar bastante, até que dissolvesse e virasse um molho. Ali tinha quantidade suficiente para muitas pessoas se servirem. Quis convidar outros para reparti- rem aquele prato comigo, pois seria comida demais para eu comer sozinha.” “Estou na água com a mesma serpente do olho vermelho do sonho anterior. Ela está ali para ser comida. Desta vez não sinto que será uma tarefa difícil. Alguém me diz que aquela serpente é pão natural, então começo a fatiá-la para comer e também distribuí-la. Suas fatias me lembram hóstias e são no sonho pão doce.” As imagens do inconsciente que repre- sentam o mal normalmente aparecem como imagens religiosas – demônio, diabo, serpente, e assim por diante. Nos símbolos do sonho “A serpente eucarística”, atributos do mal e do bem, do demônio e do Cristo, parecem se juntar nesse alimento que é pão natural, hóstia e carne da serpente maligna ao mesmo tempo, e que o ego come sem resistências aquilo que se oferece para ser comido – o próprio self. A dinâmica psíquica entre o bem e o mal aparece projetada nos mais diversos sistemas religiosos existentes. Como exemplo, é possível traçar um paralelo com duas figuras bem conhe- cidas na época atual: o Cristo e o Anticristo. Jung afirma que não há dúvida de que no universo re- ligioso Cristo representa a personalidade unifi- cada – o self – por possuir atributos semelhantes. Porém, como o self psicológico é um conceito que exprime a soma dos conteúdos conscientes e inconscientes, ele só pode ser descrito sob a Suportando o mal “Estou em minha casa e duas mulheres batem em minha porta. Uma delas carrega uma grande serpente, e diz que devo suportá-la em meus ombros sem rejeitá-la. No sonho eu sei que aquilo está relacionado ao meu processo de evolução psíquica, então deixo que a mulher ati- re a serpente em mim. Por duas vezes me defen- do dela, mas, terceira me contenho e deixo que a serpente caminhe em meus ombros. E então a tarefa foi cumprida. As duas mulheres e a serpente estavam indo embora e quando a serpente me olhou diretamente nos olhos pude perceber que em sua cabeça havia apenas um único e grandioso olho vermelho, e ela era o demônio.” Ano 2 | número 2 | 2013 Sonho – A serpente eucarística forma de uma antinomia, ou seja, seus atributos devem ser complementados por seus respectivos contrários. Se Cristo for considerado como absolutamente bom, então pressupõe-se que do lado contrário exista um Anticristo absolutamente mau que corresponde à metade obscura e tenebrosa do self. Luz e sombra parecem estar dividas por igual na natureza humana, formando uma unidade paradoxal. Árvore nenhuma cresce em direção ao céu se suas raízes também não se estenderem até o inferno ( JUNG, 2000). Considerações finais Por tudo o que foi exposto, é possível con- cluir que a cisão da unidade originária da psique CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR |49 A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 faz-se necessária para que o ego possa desenvolver-se e adaptar-se as demandas do mundo externo. Apesar de seu caráter adaptativo, essa diferenciação acaba por cindir o homem, e aqueles conteúdos incompatíveis à atitude adotada pelo ego não deixam de existir só porque são inconscientes. Pelo contrário, eles podem influenciálo ou até mesmo impor-se de forma tenebrosa ou no mínimo inadequada à vontade do eu, seja através das projeções, das compulsões, das possessões, das patologias, das influências “mágicas”, da imperatividade dos instintos e assim por diante. Reprimir ou desconhecer tamanha força inconsciente é também sufocar grande parte da vitalidade da psique. Mas, à medida que consciente e inconsciente se integram, ocorrem transformações em ambas as instâncias, embora seja impossível determinar qual delas é a causa da outra. O símbolo é um agente transformador da energia psíquica – e, portanto da própria psique. Ser receptivo à vida simbólica é por em prática a responsabilidade que o ego tem para com o self de ser seu sujeito conhecedor, assim como seu objeto conhecido. Conhecer apenas o bem é mutilar a totalidade. O homem somente poderá conhecer e ser conhecido pela personalidade originária na mesma proporção que for capaz de assimilar também sua metade sombria. Como afirma sabiamente Jung: “Não nos tornamos iluminados por imaginarmos figuras de luz, mas por nos tornarmos conscientes da escuridão” ( JUNG, 1967, par. 335). Ano 2 | número 2 | 2013 Referências DINGER, E. F. Anatomia da psique. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 2010. EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. 1ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1989. EDINGER, E. F. O mistério da coniunctio. São Paulo: Paulus, 2008. JUNG, C.G. Alchemical Studies. London: Routledge & Kegan Paul, 1967. (Collectet Works, 13). JUNG, C. G. AION: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. 13ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da flor de ouro. Petrópolis: Vozes, 2007. JUNG, C. G. A energia psíquica. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008a. JUNG, C. G. A vida simbólica. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008b. JUNG, C. G. Símbolos da transformação. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008c. JUNG, C. G. O livro vermelho. Petrópolis: Editora Vozes, 2010. JUNG, C. G. A natureza da psique. 8ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR