D. DINIS, O PAI DA PÁTRIA DE PORTUGAL E O FORTALECIMENTO DO PODER MONÁRQUICO: O PAPEL DOS JURISTAS Antonio Luiz Lachi * A partir da chegada de D. Dinis ao trono, em 1279, acentuou-se continuamente o crescimento do poder régio, “agora ideológica e institucionalmente apoiado pelas concepções do Direito romano e pelo desenvolvimento da burocracia estatal” (MATTOSO, 1985, p.294), o que permitiu a este soberano passar a exercer, pelo menos teoricamente, o controle sobre tudo o que ocorria em Portugal, pois com muita habilidade, ele soube canalizar para a sua pessoa todas as forças do reino até então dispersas, estanques e que usufruíam particularmente de vantagens e privilégios, sempre em prejuízo do conjunto, ou seja, do reino português. Para essas mudanças, sentidas por todos e obra de estadista, contou com o primoroso auxílio dos legistas. Estes legistas ou letrados, também chamados de cultores dos princípios do direito romano, originados na voga que teve o estudo do direito romano a partir do século XII (MERÊA, 1929, p.454), no afã de estabelecerem o fortalecimento do poder real - principalmente no campo jurisdicional onde mais efetivamente se traduziu a concentração do poder (PERES, 1951, p. 222-223) - doutrinavam que o monarca não reconhecia ninguém superior à sua pessoa, afirmando categoricamente que ... nêle residia a fonte de todo o direito positivo (quod principi placuit legis habet vigorem) e que todos os que dentro do reino exerciam atributos soberanos o faziam por concessão do rei e estavam sujeitos à sua suprema jurisdição (MERÊA, 1929, p.463)1. Professor titular de História. Professor de Metodologia científica e Coordenador do Núcleo de Pesquisa Jurídica do Curso de Direito da UNIGRAN/1998. Doutor em História social pela USP. * Mais genericamente, constata-se que “ (o) renascimento do direito romano, no século XII, valorizou alguns princípios que permitiam a alguns teóricos exigir, para o príncipe, um poder sem limites” (GUENÉE, 1981, p. 27). 1 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 17 Entende-se facilmente esse empenho dos legistas, pois ampliar a extensão do poder real era o mesmo que, indiretamente, aumentar os seus próprios poderes, já que sua razão de ser social consistia em servir a realeza (FRANÇA, 1946, p.151). Fenômeno observável em maior ou menor grau em toda a cristandade, também em Portugal, esta doutrina atinente ao direito dos reis, ia se impondo, paulatinamente, principalmente desde o final do século XIII, quando o monarca passou a intitular-se rei de Portugal pela graça de Deus no protocolo das cartas, do mesmo modo que governava e legislava invocando a sua infalibilidade ao proclamar a sua ‘certa ciência’ e o seu ‘poder absoluto” (MORENO, 1990, p.78). Além da sua influência quanto ao aspecto doutrinário, de suma importância para as transformações que ocorriam em Portugal, esses letrados ou legistas começavam a despontar, por si sós, no reino, como uma nova classe, uma nova aristocracia, ao lado da nobreza propriamente dita, a partir do momento que passam a exercer altas funções administrativas, a par do rei que lhes confia “... de preferência as funções de maior responsabilidade, e que na generalidade dos casos são quem orienta a política do monarca” (MERÊA, 1929, p.481), atuando como conselheiros e até mesmo como chefes militares (MATTOSO, 1987, p.310). Assim com efeito, ao tempo de D. Dinis, os legistas já eram levados em grande consideração, uma vez que este soberano os tinha como de extrema importância ao bom desempenho das atividades governativas, prestigiando-os (FRANÇA, 1946, p.136) com funções preponderantes, o que levou a uma surpreendente proliferação de funcionários reais (GAMA BARROS, 1945-1954, p.222-223). Já observável no final do século XIII e ganhando uma força ainda mais acentuada no início do século XIV, em todos os níveis da administração, há o crescimento de uma tendência a substituir todos aqueles funcionários, até então emergentes das Ordens privilegiadas, muitas vezes bem mais em atenção às suas prerrogativas sociais do que à sua capacidade administrativa intrínseca, por outros funcionários, “cujos títulos de preferência eram o saber próprio e a confiança do rei” (PERES,1951, p.139; KRUS, 1982, p.353-354). Desde então, e de acordo com tais ditames, em Portugal inicia-se o processo de criação de 18 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. um corpo de funcionários régios denominados nobreza de Corte, dedicado ao soberano (BERNARDINO, 1984, p.24) e que oferece condições, - desde o momento do estabelecimento dessa máquina burocrática para que este possa invadir as prerrogativas dos senhores, interferindo nas suas terras, onde “sobrepunham-lhes uma doutrina, uma autoridade e um centralismo que violavam todos os seus direitos e tradições” (OLIVEIRA MARQUES, 1987, p.279). Fruto dessa nova situação pôde D. Dinis, em 1317, reafirmar com vigor o direito régio de julgar em última instância os direitos de jurisdições exercidos por nobres e eclesiásticos, sem exceção, mostrando dessa forma a sua autoridade suprema (PERES, 1951, p.233)2, visando diretamente uma das mais características regalias das ordens privilegiadas, já que até então a tendência fora sempre no sentido de não interferir nas terras privilegiadas e para se deixar à nobreza plena liberdade de jurisdição (OLIVEIRA MARQUES, 1987, p.228). Vemos então D. Dinis praticamente abandonando o auxílio de vassalos, muitas vezes insubmissos, e criando em seus lugares uma rede de servidores que começa a regularizar a administração central, com a consequente promoção de uma maior fiscalização das autoridades regionais, proporcionando desta forma condições à Coroa para que pudesse exercer cada vez mais firmemente o poder, tornando-se desde então o foco das energias nacionais (PERES, 1951, p.140). Com a criação dessa rede de servidores competentes e fiscalização mais acentuada às autoridades, a monarquia centralizada passa a ter mais força, desde o momento que tem o controle do organismo administrativo, com uma maior concentração de atividades administrativas e judiciais em Lisboa e Santarém (GARCIA, 1986, p.77; KRUS, 1982, p.354). A esse corpo de funcionários régios se deve a montagem de instituições que contribuem para uma melhor administração dos bens régios e ao aumento da arrecadação, além de que a “feitura de leis gerais que procuram um espaço social de 2 Já MACEDO, 1985, p.10, destaca que “(em) carta Régia de 1317 o rei reserva expressamente para a coroa a ‘justiça maior`, ...” (Apud SOUSA, 1982, p.295) mostra que “... D. Dinis reservava para si ‘as apelaçoens e a justiça mayor e outras cousas muitas que ficam aos Reys en sinal e en conhecimento de mayor Senhorio” Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 19 aplicabilidade coincidente com o definido pelas fronteiras, conduz à progressiva unificação político-social do reino” (KRUS, 1982, p.353). Na verdade, voltamos a insistir, todas estas transformações que estão se processando em Portugal, - observáveis também um pouco por toda parte da Europa - de forma acentuada para o momento, são sentidas, principalmente a partir do advento de D. Dinis, já que este encetou uma luta “entre a jurisprudência feudal, dominante até então, e o direito romano que começa a introduzir-se” (PERES, 1983, p.106; OLIVEIRA MARQUES, 1987, p.286), da qual saiu-se vitorioso, pois vemos que, ao findar o seu reinado, “o Estado português era regido por um número grande e complexo de leis” (OLIVEIRA MARQUES, 1987, p.281). Passou assim a monarquia a ter uma intervenção mais acentuada na vigilância da administração da justiça, além de estar melhor organizada para a cobrança dos impostos e das multas a que tinha direito. Foi com a colocação de tais preceitos básicos em funcionamento que ... se pode dizer que existe Estado (ou seja): quando os que o representam não agem em nome próprio, mas por nomeação e sob a vigilância de uma administração pública. Quando o poder supremo não está apenas onde está o rei, mas constantemente presente e pronto a actuar em todas as partes do reino (MATTOSO, 1986, p.132). Para tanto, contribuiu a vontade férrea do monarca, que se impôs às ordens privilegiadas - clero e nobreza -, num cenário no qual o poder real não era, de fato, tão acentuado, apesar de já ocupar o primeiro lugar da administração (SERRÃO, 1979, p.151). Na Península Ibérica, isso ocorreu devido às lutas travadas contra os sarracenos que, de uma certa forma, colocavam o monarca até certo ponto sob a dependência da nobreza (PERES, 1983, p.105), além de não poder dar a devida atenção à política e à administração (MERÊA, 1929, p.478). No caso português, encerrada a luta contra os sarracenos, iniciou-se a sistemática organização interna do reino como um corpo político, no qual a “lei geral começa a sobrepor-se ao costume e o poder régio às autonomias da jurisdição senhoriais” (LANGHANS, 1985, p.447). 20 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. Dessa forma, no reino português, o período que antecedeu a conquista do Algarve teve como característica a dificuldade da monarquia em conseguir evitar a ascensão senhorial. Esta nobreza que “sobretudo nas províncias ao norte do Mondego, procurava limitar a autoridade da coroa” (SERRÃO, 1979, p.153), e que, após a configuração territorial começara a perder a sua importância como classe militar, mantém-se apenas como um elemento de dignidade do Estado (SARAIVA, 1987, p.98), motivo por que a monarquia ainda lhe paga as remunerações, denominadas contias, mesmo após o término da guerra. Tivemos então, após a configuração territorial, o início de um processo social e econômico no sentido do fortalecimento dos grupos de origem popular, com o monarca sendo um dos seus dinamizadores, pois isto servia ao seu interesse em combater o poderio do clero e da nobreza, que haviam conquistado preponderância e destaques político e econômico quando da Reconquista. Estes grupos de origem popular “apoiavam-se no rei para se libertarem da dominação senhorial e a coroa legislava a favor daqueles que não podiam constituir um obstáculo ao seu poder efetivo” (BERNARDINO, 1984, p.50). Devemos ter em mente ainda que, de 1284 a 1316 e mesmo em 1321, apesar de esporadicamente, D. Dinis acentuou a aplicação das Inquirições e das Confirmações, que tinham por finalidade pôr cobro aos abusos cometidos principalmente pelos fidalgos, que não permitiam, entre outras coisas, que os agentes do fisco entrassem em suas terras (OLIVEIRA MARTINS, 1942, p.132), a fim de cobrar os réditos reais (RIBEIRO, 1929, p.293). Visavam ainda essas averiguações dotar a administração central com um cadastro de todas as propriedades do reino, fazendo com que, dessa forma, o rei pudesse estabelecer com firmeza a sua autoridade, interferindo no sentido de organizar uma justiça centralizada e de dispor de um sistema financeiro planificado. Por esses procedimentos administrativos já se percebe os muitos abusos cometidos pelas classes privilegiadas e eles revelaram-se nessa oportunidade, um instrumento bastante eficaz na defesa dos direitos da coroa contra as usurpações constantes das ordens privilegiadas (SARAIVA, 1987, p.84). Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 21 As Inquirições postas em andamento ao tempo de D. Dinis, chegaram mesmo a revestir-se de agressividade, principalmente as que visavam a nobreza senhorial, logicamente. Todavia, antes dessas Inquirições, já tinha D. Dinis, através de uma carta de 26 de dezembro de 1283, anulado todas as doações feitas desde o início do seu reinado até esta data (AMARAL, 1945, p.49-50; LEÃO, 1975, p.194), medida que poderia até ser vista como assaz revolucionária. Incansável em seu intento de implementar a todo custo os mecanismos de controle governamental, com vistas à solidificação do Estado português, bem como com o objetivo de verificar a existência de terras usurpadas (Apud MATTOSO, 1985, p.295-296), estabeleceu D. Dinis, a par das Inquirições, as Confirmações, onde os nobres eram obrigados a levar à aprovação do Rei, as doações recebidas do monarca antecedente. Para tal eram examinados documentos comprobatórios do ato a confirmar (SARAIVA, 1987, p.84). A partir de então, o documento escrito e a Lei, passam a ser o critério adotado na apuração da verdade de fatos decorridos no passado, o que fez com que o rei saísse privilegiado, dada a superioridade, em número (KRUS, 1982, p.355), da documentação de que dispunha. Esta forma de agir, ou seja, baseada na escrita nos documentos, decorre das normas do Direito e difundiu-se por todo o reino, graças a mecanismos da administração pública que, por sua vez, forneciam a base do Estado (KRUS, 1982, p.355), que com isso se modernizava internamente, para poder fazer frente aos problemas que adviriam na conjuntura política da Península. Verificamos então que todas estas medidas, como não poderia deixar de ser, abalavam o prestígio dos poderosos, ao passo que o Estado se organizava solidamente, com o poder passando a ser desempenhado cada vez mais de forma centralizada pelo monarca, que assim vai se impondo. Observamos também que eram os abusos dos privilegiados que iam provocando uma forte e sistemática reação por parte da realeza, o que quer dizer, por parte do Estado que, ao mesmo tempo em que aumentava os meios de fiscalização, ia também estabelecendo normas jurídicas cada vez mais gerais, cujo resultado era abalar progressivamente aqueles mesmos privilégios. Em vista disso, ao 22 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. tomar todas estas medidas de administração interna, levando o Estado a se organizar solidamente, podemos afirmar que o seu chefe, hábil tanto na guerra quanto no jogo das negociações diplomáticas, revelouse um grande estadista, cônscio das mudanças que então se processavam. Além do mais, podemos encarar as Inquirições como fazendo parte de um movimento mais amplo, no sentido de fortalecimento do poder real e da centralização administrativa (OLIVEIRA MARQUES, 1985, p.328). Em conclusão, observamos que D. Dinis mostrou-se um soberano resoluto, que apesar de todas as dificuldades encontradas soube muito bem organizar o Estado português, solidificando-o, o que justifica sobejamente que ele tenha sido cognominado de O Pai da Pátria. Nessa política de centralização sistemática, colocada em prática por D. Dinis, usou ele de bastante rigor na administração das terras da Coroa, inibindo a extensão de novos poderes senhoriais. A essa diretriz junta-se a criação de inúmeros cargos administrativos que têm por finalidade zelar por tudo o que se passa no reino. Sob este aspecto, poder-se-ia dizer que procurou tornar-se senhor da situação. Um monarca absolutista avant la lettre, o único senhor. Era ele quem realmente tinha muitos e bons vassalos que lhe davam força e era ele quem tinha terras para recompensar seus súditos, além de exércitos para os castigar quando necessário. Relembramos que, crescentemente, de 1284 a 1316 e, mesmo em 1321, ainda que mais esporadicamente, D. Dinis acentuou a aplicação das Inquirições. Embora muitas vezes contestadas e interpeladas em Cortes, conseguia o soberano, sem dar respostas às ações judiciais que os nobres lhe impõem, prosseguir em seu intento, sempre apoiado pelos juristas, que asseguravam respaldo às suas ações, o que correspondia à obtenção de sentenças sempre favoráveis à Coroa. Sinal das mudanças que então ocorriam. Como se observa, acumulavam-se fatores de desequilíbrio, os quais, como não poderia deixar de ser, geraram um clima de descontentamento entre aqueles que estavam acostumados a viver às custas do, até então, despreendimento régio. Compreensivelmente, foi essa nobreza a que mais se sentiu prejudicada e, dessa forma, viu nos desentendimentos entre o Príncipe-herdeiro D. Afonso e o bastardo Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 23 régio D. Afonso Sanches, o tão aguardado momento para reagir à política emanada de D. Dinis. Reforçando essa sensação, ressaltemos que esta nobreza via nas revoltas que por esta época estavam ocorrendo em Castela (MATTOSO, 1986, p.137), exemplo e estímulo para um sucedâneo em terras portuguesas. Assistimos então, ao final do reinado de D. Dinis, a eclosão de um sério conflito entre o soberano e seu filho, o Príncipe-herdeiro D. Afonso, levando este a se opor à centralização monárquica, e a liderar uma parte da nobreza portuguesa (OLIVEIRA MARQUES, 1985, p.210-211), na tentativa desta de recuperar o seu prestígio, imiscuíndose para tanto nas querelas, nos conflitos político-dinásticos, àvida como estava de novas guerras, com o fito de conquistar terras, títulos e honras (BERNARDINO, 1984, p.28). Esta oposição do Príncipeherdeiro ao monarca tem os seus primeiros contornos em 1317, recrudesce em 1319 para estourar em guerra em 1320, dando azo a um estado de beligerância intestina que se alastrou pelo reino até 1324, e que com pequenos intervalos de paz, acabou excedendo em muito as questões de família, já que a nobreza feudal, que se opunha à centralização monárquica, por se sentir prejudicada, via nas dissenções e pretensões do Príncipe-herdeiro, uma chance de se contrapor ao soberano (GARCIA, 1966, p.80), para, quem sabe, talvez reverter esse quadro que lhe era desfavorável. É bastante significativa essa insistência com que os nobres, aliados ao Príncipe-herdeiro, se queixam do regimento da justiça no reino. O que eles desejavam obviamente, era uma autoridade mais flexível, disposta a dialogar, e ceder no sentido de atender aos seus interesses, já que, com D. Dinis, os juristas desprezavam os costumes ancestrais dos nobres e só aplicavam princípios racionais, fundados numa equidade que não levava em consideração prestígio, nem tradição. Além do mais, os juristas ... se multiplicavam sem cessar, pois já não bastavam os sobrejuízes da corte, que agora apareciam reforçados pelos ouvidores, e que transmitiam as suas idéias a meirinhos e outros oficiais régios que andavam pela província (MATTOSO, 1985, p.300). 24 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. Todavia, por mais que pesassem esses fatores que acirravam sobremaneira os ânimos de todos, é evidente que D. Afonso nutria grande impaciência em assumir as tarefas de governo, devido ao longo reinado de D. Dinis e, nesse desiderato, após a recusa do pai em abdicar, foi aconselhado por Lourenço Vogado (LEÃO, 1975, p.210) a entabular negociações com a rainha-regente de Castela, Dª Maria de Molina. Vimos então essa guerra civil de 1319 a 1324 provocada por aqueles que se sentiam prejudicados com a implantação de um regime monárquico forte, colocando-se acima de todos os poderes e que tem, como premissa maior, liquidar com as pretensões senhoriais. Daí a luta ter sido prolongada, com uso de armas e contando até com a presença do filho e herdeiro do trono contra seu pai e rei e o que, no fundo, estava em jogo era a aceitação ou não da centralização política posta em prática com firmeza e determinação por D. Dinis, já que esta, a partir da burocratização da justiça e das finanças, começou a prejudicar principalmente os nobres. Em função disso, e num primeiro momento, os Concelhos têm em mente que os únicos prejudicados eram os nobres, mas passado esse momento, já durante o reinado de D. Afonso IV, viram que também eles foram afetados, pois vemos “os seus protestos contra a intromissão dos funcionários régios na administração municipal e o desrespeito das liberdades concelhias não tiveram conta” (MATTOSO, 1985, p. 307). D. Dinis deixou a imagem de um soberano conhecido entre os coevos e bastante estimado por outros soberanos, por várias virtudes, dentre as quais, a verdade, a justiça e a liberalidade, o que constituiu a base para o seu prestígio junto à posteridade que não tardou a conferir-lhe a alcunha de “Pai da Pátria” (LEÃO, 1975, p. 226 - 227). Somando-se ao conceito de estadista, podemos vê-lo também como alguém que devotava um grande desvelo ao que à sua Pátria pertencia, além de levá-la a adquirir uma posição de destaque entre as demais, culminando com o mais importante feito que foi a ela ter proporcionado as condições para que tivesse a sua delimitação territorial finalmente definida. Dando suporte a esses seus feitos, constatamos a sua habilidade na promoção de mudanças institucionais, cuja consecução Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. 25 confiou a juristas, cultores do Direito romano e que doutrinavam ser divina a origem do poder real, cuja colaboração soube estimular, resultando daí a teoria de que não existia ninguém superior à pessoa do rei, dando impulso à constituição de uma rede de agentes reais, habilmente recrutados, entre os mesmos legistas ou letrados sobressaindo como o seu critério de escolha principalmente a competência, o que era uma inovação pois o que vigorava até esse momento era o do prestígio familiar. Assim formada, esta rede não tardou em proporcionar eficiência ao aparelho administrativo português, somando-se a isso o fato de ser chefiada por um monarca do feitio de D. Dinis - culto, capaz, empreendedor e dotado de extraordinários dons para reinar - não demoraram a vir daí as condições adequadas que o soberano precisava para ter em suas mãos o controle de toda a orgânica administrativa. Dessa forma, uma burocracia centralizada foi cada vez mais se consolidando e, graças à legislação e aos impostos aplicados a todo o reino, foram estabelecidas as bases do Estado unitário, nas mãos de um único senhor: D. Dinis, o Pai da Pátria. Ao Estado passou a caber o monopólio da guerra e da diplomacia, sendo as alianças firmadas ao nível do soberano. Esse Estado ampliado tinha seus custos, e para sustentá-lo, recorreu-se ao incentivo de atividades econômicas - que tiveram um notável desabrochar -, em especial a do comércio exterior, o que possibilitou a Portugal a integração no mundo europeu, amealhando alianças sólidas e incrementando sua prosperidade interna. Mudando de esfera, vimos também que foi D. Dinis quem tomou medidas estabelecendo que todos os processos e atos judiciais deveriam ser redigidos em língua portuguesa, que somadas às providências anteriormente enunciadas - e às quais se poderiam acrescentar outras - delineiam uma linha de governo notável pela coerência e continuidade, que forjou o Portugal moderno pela língua, pela cultura, pela economia, ligando e fundindo o Norte e o Sul, zonas de ocupação antiga e áreas de colonização recente, com as suas originalidades e particularismos, harmonizando falares e modos de vida, espalhando o povoamento, cabendo a cidades importantes, como Lisboa, Coimbra, Santarém, Leiria, a mesclagem do povo português, aglutinação projetada na consolidação definitiva do Estado português. Nunca, até esse reinado, esteve Portugal tão perto da 26 Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 2 | n. 4 | jul./dez. 2000. Cristandade Ocidental e jamais se revelara tão sensível a essa parte da Europa, tão presente nesse cenário através das letras, do direito, da política, do ensino. Se ao término do nosso trabalho, tivermos que optar por uma conclusão-síntese, fica claro em nosso espírito que a força e o prestígio alcançados pelo reino português deveram-se, mais do que a qualquer outro governante, a D. Dinis, que pelas medidas tomadas e seus consequentes benefícios, se configura como o grande arquiteto da edificação do Estado luso na Península Ibérica, o que parece não ter sido compreendido até os dias de hoje. Sublinhando nossa frustação de, por ora, não poder mais do que enumerar, sem aprofundá-los, a maioria desses tópicos, esperamos contribuir ulteriormente para um aprofundamento de pelo menos alguns desses aspectos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEÃO, Duarte Nunes de. “Chronica Del Rei Dom Dinis”. Crónicas dos reis de Portugal. Reformadas pelo licenciado. Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida. 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