ANA CRISTINA COLL DELGADO
“TOMA-SE CONTA DE CRIANÇAS”
OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO E O COTIDIANO
DE UMA CRECHE DOMICILIAR
Tese
de
Doutorado
apresentada
ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Educação.
Orientadora: Profª. Drª. LÉA PINHEIRO PAIXÃO
Niterói - RJ
2003
2
ANA CRISTINA COLL DELGADO
“TOMA-SE CONTA DE CRIANÇAS”: OS SIGNIFICADOS DO
TRABALHO E O COTIDIANO DE UMA CRECHE DOMICILIAR
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Educação.
Aprovada em outubro de 2003
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________________________
Profª Drª Léa Pinheiro Paixão - Orientadora
Universidade Federal Fluminense
____________________________________________________________________________
Prof. Dr. Manuel Jacinto Sarmento
Universidade do Minho - Portugal
Prof. Dr. Geraldo Romanelli
Universidade de São Paulo - Campus Ribeirão Preto
____________________________________________________________________________
Profª Drª Vera Maria Ramos de Vasconcellos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Profª Drª Adonia Antunes Prado
Universidade Federal Fluminense
3
“A Haydée, moradora de São Gonçalo, e às mulheres do bairro Saudade que
possibilitaram a realização do estudo”.
4
AGRADECIMENTOS
À CAPES pela possibilidade de estudar durante quatro anos e compartilhar
experiências no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e no
Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho - Braga.
À Léa Pinheiro Paixão por inúmeras razões, entre as quais a orientação
comprometida e a aprendizagem da paciência e tolerância.
Ao Manuel Jacinto Sarmento pela acolhida fraterna, co-orientação e confiança
no meu trabalho.
A todas as pessoas com as quais convivi e aprendi no período de afastamento;
seria inoportuno citar algumas e excluir outras, na medida em que elas e eles
são co-autoras/es das mudanças, encontros e desencontros que vivi durante esse
tempo.
Às outras pessoas que ficaram e com as quais voltei a conviver, familiares e
amigos/as, principalmente ao Rodrigo e à minha mãe.
5
“A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
Que eu já tô ficando craque em ressureição.
Bobeou eu tô morrendo
Na minha extrema pulsão
Na minha extrema - unção
Na minha extrema menção
de acordar viva todo dia
Há dores que sinceramente eu não resolvo
sinceramente sucumbo
Há nós que não dissolvo
e me torno moribundo do doer daquele corte
do haver sangrento e forte
que vem no mesmo malote das coisas queridas
Vem dentro dos amores
dentro das perdas de coisas antes possuídas
dentro das alegrias havidas
Há porradas que não têm saída
há um monte de ‘não era isso que eu queria’
Outro dia, acabei de morrer
depois de uma crise sobre o tema existencialismo
3º mundo, ideologia e inflação...” (Elisa Lucinda)
6
SUMÁRIO
RESUMO.....................................................................................................................................9
RÉSUMÉ...................................................................................................................................10
1. INTRODUÇÃO AO TEMA DE INVESTIGAÇÃO..........................................11
1.1 O MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO E OS PRIMEIROS CONTATOS COM AS
CRECHES DOMICILIARES....................................................................................................14
1.2 AS QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO..............................................................................22
1.3 A METODOLOGIA............................................................................................................23
1.3.1 As observações..................................................................................................................26
1.3.2 As entrevistas....................................................................................................................28
1.3.3 Análise dos dados.............................................................................................................29
1.4 CRECHES DOMICILIARES E EIXOS TEÓRICOS ARTICULADORES DO
ESTUDO....................................................................................................................................30
1.5 O BAIRRO SAUDADE CONTADO PELOS MORADORES...........................................37
CAPÍTULO 2. “CRECHE, NÃO! AQUI SE TOMA CONTA DE
CRIANÇAS!” - TRAJETÓRIA E SENTIDOS DO TRABALHO PARA
DENISE...............................................................................................................44
2.1 DENISE, UMA TRAJETÓRIA DE MULHER, MÃE E TOMADORA DE CONTA DE
CRIANÇAS...............................................................................................................................45
2.2
AS
RELAÇÕES
DE
TRABALHO
E
AS
NEGOCIAÇÕES
NA
CRECHE
DOMICILIAR............................................................................................................................51
2.2.1 Informalidade e instabilidade de renda: quais acordos e negociações?............................53
2.2.2 Clandestinidade e ilegalidade do trabalho........................................................................57
2.2.3. Trabalho no domicílio, flexibilidade de horários e redução do tempo de lazer...............62
2.3 O EMPREGO DE MÃO-DE-OBRA JUVENIL NA CRECHE DOMICILIAR.................65
7
2.4 OS SENTIDOS DE SER MULHER, MÃE E TRABALHADORA EM UMA FAMÍLIA
MONOPARENTAL..................................................................................................................72
2.4.1 Ser mãe e trabalhar para ter uma renda: a feminização da pobreza..................................75
2.4.2 Viver em uma família monoparental e desejar uma família nuclear: vitimização e
valorização dos sentidos de ser mulher......................................................................................78
2.4.3 Experiências dos corpos de mulheres...............................................................................84
2.5 AS AMBIGÜIDADES DA FUNÇÃO E OS SABERES PARA TOMAR CONTA DE
CRIANÇAS...............................................................................................................................89
2.5.1 Mãe substituta, tia, tomadora de conta, professora ou psicóloga?....................................90
2.5.2 A culpabilização das mães e de si própria........................................................................99
2.5.3 Os saberes para tomar conta de crianças.........................................................................103
2.6 SÍNTESE............................................................................................................................108
CAPÍTULO 3. “ELA FAZ MAIS DO QUE TOMAR CONTA, ELA
PRATICAMENTE CRIA AS CRIANÇAS” - TRAJETÓRIAS E SENTIDOS
DO TRABALHO PARA CINCO MÃES.......................................................111
3.1 TRAJETÓRIAS DE CINCO MULHERES, MÃES E TRABALHADORAS..................113
3.2 TRAÇOS QUE APROXIMAM E TRAÇOS QUE DISTINGUEM AS TRAJETÓRIAS
DAS MÃES.............................................................................................................................124
3.2.1 Percursos familiares anteriores e formação de novas famílias.......................................125
3.2.2 Trajetórias escolares e profissionais das cinco mães e seus cônjuges............................128
3.2.3 Trabalho, casamento e lazer na perspectiva das mães....................................................133
3.3 RELAÇÕES COM DENISE E COM A CRECHE DOMICILIAR..................................147
3.3.1 A escolha da creche de Denise........................................................................................147
3.3.2 Os acordos entre as mães e Denise.................................................................................153
3.3.3 As expectativas das mães quanto à função de Denise....................................................157
3.3.4 Avaliação do trabalho de Denise....................................................................................162
3.4 CRECHE DOMICILIAR E DELEGAÇÃO DA FUNÇÃO MATERNA.........................169
3.4.1 Quando as crianças chamam Denise de mãe..................................................................171
3.5 SÍNTESE: DELEGAÇÃO E PERSPECTIVA FAMILIARISTA DE EDUCAÇÃO.......178
8
CAPÍTULO 4. O COTIDIANO NA CRECHE DE DENISE.......................189
4.1 ENTRANDO NA CASA: CRECHE E RESIDÊNCIA.....................................................191
4.2 O ACOLHIMENTO DAS CRIANÇAS............................................................................194
4.3 O DIA NA CRECHE.........................................................................................................200
4.3.1 Rotinas............................................................................................................................201
4.3.2 Acontecimentos e outras atividades................................................................................203
4.3.3 A presença constante da televisão...................................................................................210
4.3.4 Atividades espontâneas e expressões das culturas infantis.............................................213
4.4 DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO...............................................................................223
4.4.1 Afetividade e participação nos cuidados das crianças menores......................................224
4.4.2 Para exercer a autoridade é necessário punir e castigar..................................................226
4.4.3 Coisas de menino e coisas de menina.............................................................................231
4.5 O TRABALHO DE DENISE NA CRECHE–SÍNTESE...................................................236
5. PARA CONCLUIR: TECENDO OS SENTIDOS DO TRABALHO DE
TOMAR CONTA DE CRIANÇAS................................................................241
6. OBRAS CITADAS.......................................................................................260
7.ANEXOS...........................................................................................................................274
7.1 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM TOMADORAS DE CONTA.................................274
7.2 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DENISE.................................................................275
7.3 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM AJUDANTES........................................................277
7.4 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM MÃES....................................................................279
7.5 DIÁRIO DE CAMPO........................................................................................................281
9
RESUMO
Esta tese trata de estudo de caso etnográfico realizado em uma creche domiciliar de um
bairro popular de São Gonçalo, Rio de Janeiro. O foco da investigação é a análise dos
significados que assume a atividade de tomar conta de crianças para uma trabalhadora e cinco
mães, bem como a organização desse trabalho no cotidiano. Os principais instrumentos de
pesquisa utilizados foram entrevistas semi-estruturadas e observações. No tratamento dos
dados obtidos pela pesquisa de campo fizemos uma análise de conteúdo. Recortamos três
dimensões que entendemos como macro-categorias (trajetórias e sentidos do trabalho para a
tomadora de conta, trajetórias e sentidos do trabalho para as mães e o cotidiano na creche
domiciliar), que por sua vez geraram categorias médias, todas elas analisadas no
desenvolvimento e na conclusão do estudo. Para dar conta da grandeza de questões que
circundam as trajetórias de vida, os sentidos do trabalho, as expectativas, as ambigüidades e as
práticas cotidianas, não limitamos nossas análises apenas às relações de trabalho. Procuramos
articular as reflexões sobre trabalho informal, clandestino e domiciliar com gênero, famílias
dos meios populares, infância e cultura. Compreendemos estes eixos teóricos como categorias
móveis e relacionais, o que propiciou um distanciamento da análise das trajetórias, dos
significados e do cotidiano com ênfase nas limitações, na pobreza e na exclusão. Os modos de
socialização na creche refletem o universo familiar das crianças e da tomadora de conta. Esta
educação que denominamos familiarista estrutura-se em torno de objetivos que emergem das
necessidades de sobrevivência dos adultos e crianças. Para que isto aconteça efetivamente, as
mães delegam a criação dos/as filhos/as à tomadora de conta, o que produz sentimentos
controversos de ambos os lados. Do lado da tomadora de conta ocorre a terceirização da
função materna, ou seja, ela se propõe terceirizar o que faz com suas filhas para com outras
crianças do bairro, como forma de sobrevivência. A atividade aqui analisada é uma atividade
social e comunitária e, embora não legalizada, é legitimada por grupos da população. Não
sendo uma proposta de educação infantil formal, a creche domiciliar estrutura-se
principalmente para atender às demandas de trabalho e às necessidades dos familiares das
crianças e da tomadora de conta, que preferiu trabalhar em casa e cuidar das filhas. Entretanto,
a tomadora de conta possui saberes e reflete sobre o seu cotidiano. Estes são aspectos cruciais
para compreendermos os significados do trabalho de tomar conta de crianças. (Inclui
Bibliografia)
10
RÉSUMÉ
Dans cette dissertation on étudie un cas ethnographique dans une crèche domiciliaire
d’un quartier populaire de la ville de São Gonçalo (Rio de Janeiro). L’enquête se fonde sur
l’analyse des sens qu’assume l’activité d’une travailleuse et de cinq mères quand elles
s’occupent d’enfants, aussi bien que sur l’organisation de ce travail au jour le jour. Les
principaux instruments de recherche utilisés ont été des interviews à demi structurées et des
observations. A partir du traitement des données obtenues par la recherche, nous avons fait
une analyse de contenu. Nous en avons dégagé trois dimensions classées comme des macrocatégories (trajets et sens du travail pour celle qui s’occupe des enfants, trajets et sens du
travail pour les mères et le quotidien dans la crèche domiciliaire) qui, à leur tour, ont engendré
des catégories moyennes, analysées toutes dans le développement et la conclusion de l’étude.
Pour rendre compte de la grandeur des questions qui entourent les trajets de vie, les sens du
travail, les expectatives, les ambigüités et les pratiques quotidiennes, nous n’avons pas limité
nos analyses uniquement aux relations de travail. Nous avons essayé d’articuler les réflexions
sur le travail informel, clandestin et domiciliaire avec le genre, les familles des milieux
populaires, l’enfance et la culture. Nous avons considéré ces axes théoriques comme des
catégories mobiles et relationneles, ce qui nous a permis un recul pour l’analyse des trajets,
des sens et du quotidien, l’accent étant mis sur les limitations, la pauvreté et l’exclusion. Les
aspects de la socialisation à la crèche reflètent l’univers familier des enfants et de celle qui
s’en occupe. Cette éducation que nous appelons “familiariste” s’appuie sur des buts qui
découlent des besoins de survie des adultes et des enfants. Pour que cela arrive effectivement,
les mères délèguent l’éducation de leurs enfants à celle (s) qui s’en occupe (nt), ce qui crée des
sentiments controversés de part et d’autre. En ce qui concerne celle qui s’occupe des enfants,
ce qui arrive, c’est que le rôle maternel est joué pars des tiers, c’est-à-dire, elle veut étendre à
d’autres enfants du quartier ce qu’elle fait de ses propres enfants, comme un moyen de survie.
L’activité dont il est question ici est une activité sociale et communautaire et, quoiqu’elle ne
soit pas protégée par la loi, est acceptée par des groupes de la population. La crèche
domiciliaire n’est pas une proposition d’éducation des enfants formelle mais elle a pour but de
répondre aux demandes de travail et aux besoins des parents d’enfants et de celle qui s’en
occupe. Elle a préféré travailler chez elle et s’occuper de ses filles. Cependant cette femme a le
savoir-faire et réfléchit à sa vie quotidienne. Voilà des aspects importants pour comprendre le
sens de l’activité qui consiste à s’occuper des enfants. (Bibliographie Incluse)
11
1. INTRODUÇÃO AO TEMA DE INVESTIGAÇÃO
Este estudo é sobre uma creche domiciliar de um bairro popular do município de São
Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. Focalizamos as análises nos significados do trabalho de
tomar conta de crianças para uma tomadora de conta e um grupo de mães, e nos
desdobramentos desse trabalho no cotidiano.
A introdução, embora extensa, constitui-se em uma exposição dos itinerários que
percorremos até a definição da problemática e da metodologia. Entendemos que a construção
de um texto é uma das possibilidades de interpretação, dentre tantas outras possíveis,
dependendo de quem escreve, do contexto no qual acontece a escrita, bem como das leituras e
debates que ocorrem nesse processo.
A escritura de uma tese envolve construção e destruição de certezas, escolhas e
rupturas, pois esquadrinhamos inúmeros atalhos até a definição de um caminho possível, mas
nunca o único viável. Trata-se de uma construção tensa, frente às fragilidades do que outrora
acreditávamos como certezas, que nos obriga a um exercício de recuo ou de avanço, quando
nos encontramos imersos em uma realidade que nos coloca desafios habituais.
Compreendemos uma problemática de pesquisa como uma construção com um
percurso no tempo e no espaço, o que nos impõe um confronto permanente entre o campo
teórico e o empírico, entre as escolhas que são feitas até a redução do tema de investigação.
Dito de outra forma, uma problemática é como uma pedra que vamos lapidando diariamente; o
teor desse trabalho, artesanal no sentido de que é trabalho de construção e tessitura, relacionase com nossas experiências sociais e culturais em confronto com as experiências dos outros,
estranhos e próximos, íntimos e distantes como num claro-escuro de verdade-engano,
expressão que tomamos de empréstimo de Kosik (1989).
O duplo exercício de familiarização e distanciamento é, no mínimo, instigante e este
jogo tenso de estabelecer relações entre o que é estranho e ao mesmo tempo tão próximo e
íntimo, como imagens que se cruzam quando observamos um caleidoscópio, é o que
consideramos um desafio na produção de uma tese. Este desafio Lima (1985, p.13) expressa
12
com muita propriedade ao comentar a respeito do movimento percorrido pela antropologia:
“Ela partiu de uma investigação sobre povos e instituições sociais exóticas, descobrindo nesse
movimento que tais instituições não eram tão exóticas nem ‘indígenas’, mas que em certos
aspectos se assemelhavam à própria sociedade do investigador”.
Nosso esforço implica uma reflexão sobre as escolhas teórico-metodológicas e as
experiências sociais, culturais e emocionais que carregamos conosco e que fazem parte desse
processo. Não vamos para o campo empírico como tábulas rasas, ou sem as marcas de uma
existência que se constrói permanentemente, inclusive em confronto com os outros eus dos
sujeitos de pesquisa. Estabelecemos trocas permanentes com esses sujeitos e este movimento,
que não é linear, nos faz construir e destruir argumentos e hipóteses ao longo do percurso,
tudo isto como resultado do esforço de interpretação.
Como explica Costa (1989, p.143), desde o momento do planejamento da metodologia
da pesquisa, dos instrumentos e procedimentos de investigação, precisamos estabelecer
relação com uma teoria do objeto em estudo, com uma teoria do investigador como sujeito
social e com uma teoria das relações entre ambos no decorrer da pesquisa.
Já Sarmento (2003, p. 137-173) chama a atenção para a impossibilidade de um
isolamento do cientista diante das coisas que acontecem no mundo, pois a lógica da produção
científica é a produção discursiva construída por um discurso científico pré-estabelecido. Os
efeitos dos paradigmas já são percebidos na formulação das perguntas que geram uma
investigação, na seleção das estratégias, técnicas, métodos e no tratamento e apresentação dos
resultados de um estudo. Assim, toda investigação científica estabelece um diálogo com um
determinado campo científico.
De acordo com Sarmento, os paradigmas têm um fundamento epistemológico e
apoiam-se em um posicionamento acerca das relações entre sujeito e objeto de conhecimento.
Ele ainda comenta sobre os paradigmas positivista, interpretativo e crítico. Identificamo-nos
com o paradigma crítico, pela possibilidade de articulação da interpretação empírica dos dados
sociais com os contextos políticos e ideológicos em que se geram as condições da ação social.
O texto que apresentamos como resultado de nossa investigação é constituído de partes
que compõe uma descrição que pretendemos tornar densa, no sentido compreendido por
Geertz (1989). A tessitura de uma descrição densa na concepção deste e outros autores
(Sarmento, 2003; Woods, 1987) é um desafio, pois o esforço de interpretação exige uma
13
representação dos significados e vozes de outros sujeitos de forma crítica e analítica. No
desenvolvimento desse percurso necessitamos desenvolver habilidades como as que Ginzburg
identifica no paradigma indiciário: “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de
diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento
entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição”
(1989, p. 179).
Durante um período extenso - que iniciou no final de 1999 - fomos construindo
interações com pessoas fundamentais para a efetivação do estudo e, nesse sentido, o texto final
não é uma construção individual, porque sua estrutura contém as marcas e os textos de outras
pessoas, seja dos sujeitos envolvidos na recolha das informações, seja dos sujeitos com os
quais dialogamos na produção do texto, ou ainda no diálogo estabelecido com o referencial
teórico consultado.
A redação final contém as marcas, as experiências e vozes destes diferentes sujeitos e,
por esta razão, optamos pela escritura na terceira pessoa do plural1, uma vez que o eu da
pesquisadora encontra-se atravessado e em permanente relação dialógica com outros eus; este
“nós” expressa de forma mais viva todos os atalhos que percorremos e que apresentamos em
forma de texto.
Para iniciar apresentamos o município de São Gonçalo e os primeiros contatos com as
creches domiciliares.
1.1 O MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO E OS PRIMEIROS CONTATOS COM
AS CRECHES DOMICILIARES
Nosso tempo de permanência em campo iniciou com um olhar mais amplo, até que um
aspecto da realidade foi-se impondo e nos obrigando a um esforço de definição da
problemática. Da situação da educação da primeira infância de São Gonçalo passamos para
um estudo piloto de cinco creches domiciliares, até definirmos que a investigação
1
Como o trabalho de campo foi feito pela minha pessoa e o/a investigador/a nos estudos de caso etnográficos é o
principal instrumento de recolha das informações, em algumas partes do texto em que fizermos referência ao
trabalho de campo priorizaremos a escrita na primeira pessoa do singular.
14
compreenderia um estudo de caso, em uma creche domiciliar do bairro que denominamos
Saudade2.
A pesquisa iniciou em dezembro de 1999 e até junho de 2000 realizamos um
mapeamento3 da situação da educação infantil em São Gonçalo com ênfase nas creches que,
segundo a legislação nacional vigente, destinam-se à faixa etária de zero a três anos de idade.
Durante o levantamento encontramos 15 creches comunitárias e quatro não
conveniadas4, e uma creche pública de responsabilidade do poder público municipal, que
recebiam crianças dos dois anos e meio aos seis anos incompletos. Este dado, de certa forma,
produziu mudanças em nosso percurso, porque não estava claro onde e com quem ficavam as
crianças menores de três anos, em São Gonçalo.
“São Gonçalo é um corredor, você passa, mas não fica aqui” (Isadora, 03/07/01).
Em nossos primeiros contatos com o município de São Gonçalo experimentamos
sensações de estranhamento e familiaridade, uma vez que as primeiras imagens obtidas se
assemelhavam a um quadro cuja paisagem expressava, ao mesmo tempo, nitidez e
nebulosidade de forma contínua. Foi nesse jogo entre o estranhamento e as sensações de
familiaridade que percebemos a cidade sempre com novas impressões a cada visita. Se as
primeiras imagens das ruas se apresentavam acinzentadas ou desbotadas, alguns meses depois,
já conseguíamos distinguir suas cores, principalmente porque nosso olhar se voltou para o
outro de forma menos rígida.
Quando escrevemos que as primeiras impressões sobre a cidade estão marcadas por um
predomínio das nuances acinzentadas, esta afirmação tem um sentido relacionado à arquitetura
dos prédios, que aparentam uma permanente construção ou inacabamento das reformas. Ao
2
O nome do bairro é fictício, assim como os nomes de pessoas, ruas ou outros bairros que referenciamos no
texto.
3
Iniciamos a investigação quando participamos da linha de pesquisa “Políticas nacionais de educação e suas
repercussões nas políticas e práticas educativas locais” do campo de confluência Educação Brasileira - do Curso
de Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF. O mapeamento foi possibilitado
mediante entrevistas semi-estruturadas com dirigentes de órgãos públicos e privados responsáveis pela infância,
tais como: Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SEMEC; Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social - SMDES; Fundação para a Infância e Adolescência de São Gonçalo - FIASG; Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente - CMDCA; Articulação de Creches Comunitárias de São Gonçalo ARTICRECHE e Sindicato das Escolas Particulares de São Gonçalo – SINEPE; pelo exame de documentos,
consulta a dados censitários e anotações em diários de campo que permitiram, de forma exploratória, uma
compreensão do funcionamento de algumas creches visitadas durante esta primeira etapa.
15
circular pela cidade, tanto na parte onde se localizam o comércio e os prédios públicos, quanto
nos bairros mais pobres, encontramos poucas áreas verdes, praças, árvores ou flores.
A metáfora utilizada para definir o município de São Gonçalo, um corredor, tem um
sentido sociológico intenso. Isto é dito de formas variadas por pessoas que mantêm vínculos
com o município, o que denota certo sentimento de inferioridade social dos moradores,
provavelmente fruto de um passado histórico que não temos pretensão de explorar e também
de um presente marcado pelo empobrecimento da população. Esta expressão só foi adquirindo
significado com o passar do tempo, à medida que ampliávamos as leituras sobre o município e
os contatos com os moradores. O município também é constituído de trabalhadores de Niterói
ou do Rio de Janeiro que, na sua maioria, não residem no local.
Em estudo etnográfico realizado em outro bairro de São Gonçalo, sobre a construção
da identidade dos trabalhadores nos meios populares, Guedes (1997) percebe que a cidade
aparenta um longo processo de construção pelos moradores. Ela identifica São Gonçalo como
um espaço de trabalhadores ocupado principalmente pelos desenraizados, denominação
atribuída aos habitantes de outras cidades pelos moradores mais antigos que nasceram e
residem no local. São basicamente os que transformaram o local em uma cidade-dormitório,
provenientes de Niterói ou do Rio de Janeiro, que ocupam a “segunda São Gonçalo”,
classificada como nova ou periférica, cobrindo as áreas de ocupação urbana mais recentes, em
loteamentos carentes de serviços urbanos e com índices de poluição e violência marcantes
(Guedes, 1997, p.60). O estudo identifica a presença de um estigma ou preconceito dos
moradores de Niterói ou do Rio de Janeiro, que classificam os gonçalenses como “caipiras ou
roceiros, pessoas que não detém as regras do comportamento público nas cidades, fazendo
escândalos ou algazarras” (Guedes, 1997, p.59).
Dados censitários sobre São Gonçalo permitem classificá-lo como um município pobre
pois, apesar de ocupar o terceiro lugar em número de habitantes no estado do Rio de Janeiro,
com 889.828 habitantes (Censo 2000, IBGE) distribuídos pelos seus 90 bairros, foi
classificado em 37º lugar em termos de índice de qualidade de vida (IQV - UFF, 1997) entre
os 81 municípios do Rio de Janeiro.
4
As creches comunitárias recebem convênios obtidos da Organização Mundial para a Educação Pré - Escolar OMEP, e verbas da Prefeitura de São Gonçalo. As creches comunitárias devem apresentar um padrão de infraestrutura avaliado por profissionais da FIASG que se encarregam da distribuição dos convênios.
16
São Gonçalo5 está localizado a 10 quilômetros de Niterói e 30 quilômetros do Rio de
Janeiro. De acordo com documento da Prefeitura Municipal (2000), predominam iniciativas
econômicas nos setores farmacêutico, pesqueiro, químico, metalúrgico, de construção civil e
de confecção de roupas. Quando circulamos pelos bairros encontramos vendedores
ambulantes, camelôs e creches domiciliares, que caracterizam um crescimento do setor
informal de trabalho num contexto social marcado pelo desemprego. Em um bairro vizinho ao
bairro Saudade está localizado um grande aterro sanitário, com famílias, crianças e
adolescentes vivendo do trabalho de catação do lixo6.
A população infantil gonçalense enfrenta condições sócio-econômicas precárias, pois a
vulnerabilidade à pobreza e à violência é maior entre as crianças pequenas. São Gonçalo
apresenta casos de violência contra crianças e adolescentes, tráfico de drogas e problemas
ambientais como poluição das águas, vazamento e lançamento de óleo, deficiência de
cobertura arbórea, favelização e sub-habitação.
Na medida em que ampliávamos o conhecimento sobre São Gonçalo identificávamos a
ausência de uma política de creches públicas para as crianças menores de três anos, no ano
20007.
A Lei Orgânica do Município de São Gonçalo, promulgada em abril de 1990, prevê no
capítulo II que o município deve manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do
estado, programas pré-escolares e de ensino fundamental. Porém, não há qualquer referência
às creches. Na parte sobre o dever do município com a educação, só o ensino fundamental é
considerado obrigatório e gratuito no artigo 166, e a atuação prioritária do município abrange
5
Nos quatro últimos anos, São Gonçalo foi governado pela Frente Popular formada por um conjunto de onze
partidos das mais variadas matrizes ideológicas (PDT, PT, PTB, PSL, PST, PPS, PRN, PSB, PSD, PV e PR),
com o PDT à frente do governo. Nas eleições de 2001 o partido que venceu as eleições foi o PMDB.
6
Sobre o lixão de São Gonçalo consultar PAIXÃO, Léa Pinheiro “Catadoras de Dignidade: Assimetrias e
tensões em pesquisa no lixão” In: ZAGO, Nadir & outros. Itinerários de Pesquisa. Perspectivas qualitativas em
Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
7
Em maio de 2000 a Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SEMEC - contava com 1.337 crianças
matriculadas na faixa dos quatro anos e 1.581 crianças matriculadas na faixa dos cinco anos. Naquele ano a
SEMEC havia suspendido o atendimento a crianças de três anos que freqüentavam classes pré-escolares. O
município contava com apenas uma creche com aproximadamente 75 crianças dos dois anos e meio aos seis anos.
Quanto à rede estadual, o relatório de pesquisa de Neves & Lugão Rios (FAPERJ, 2000) destacava uma redução
da matrícula de educação infantil de 5.583 crianças em 1997, para 686 matrículas no ano 2000, quando o
município assumiu a rede pré-escolar. No que se refere às creches comunitárias encontramos 15 creches
conveniadas e quatro não conveniadas, que cobravam mensalidades em torno de sete a dez reais dos familiares e
atendiam 1.132 crianças dos dois anos e meio aos seis anos.
17
o ensino fundamental e o pré-escolar. No item IV é mencionado como dever do município o
atendimento em creches e pré-escolas até os sete anos de idade. Entretanto, só as pré-escolas
são incluídas nos parágrafos 1º e 4º do artigo 166, no tocante às previsões de instalações
adequadas e com adaptações nas escolas municipais.
No Projeto de Lei sobre as Diretrizes Orçamentárias para 1999, a parte referente à
educação e ao objetivo de ampliar a oferta de vagas e melhoria do ensino está direcionada
apenas para o ensino fundamental.
Os resultados do mapeamento confirmam a prioridade do município com relação ao
ensino fundamental. São setores da sociedade civil, ONGs - Organizações NãoGovernamentais e organizações internacionais que assumem o ônus dos custos com a
educação infantil, principalmente das creches, como saída para cobrir os déficits das políticas
públicas.
Predomina a rede privada no atendimento às crianças menores de três anos das
camadas populares, uma vez que há iniciativas para suprir a ausência de políticas públicas,
através do atendimento privado não legalizado (creches domiciliares e filantrópicas), ou
privado legalizado (creches comunitárias).
Em São Gonçalo é quase inexistente uma política pública que pelo menos sirva de
apoio, supervisão ou orientação às iniciativas privadas destinadas às camadas populares. Mas é
importante ressaltar que existem diferenciações entre São Gonçalo e outros municípios
brasileiros que têm procurado investir em políticas de creches e de qualificação das
profissionais, como os de São Paulo, Florianópolis, Belo Horizonte, entre outros.
Os primeiros contatos com as creches domiciliares aconteceram durante nossas
incursões pela cidade. Impossível passar pelas suas ruas sem observar as placas com anúncios
de toma-se conta de crianças, espalhadas pelos 90 bairros do município.
Pelas informações obtidas com a dirigente de Creches Comunitárias de São Gonçalo Isadora - soubemos que as creches domiciliares começaram a ocupar espaço no município
num contexto em que as creches comunitárias eram insuficientes para atender as demandas
18
das camadas populares. Alguns grupos de moradores começaram a procurar esses espaços
para suprir as necessidades de emprego e de cuidado/educação8 das crianças.
Foi possível identificar nossa opção de estudo em 1999 quando, em uma visita ao
Sindicato das Escolas Particulares de São Gonçalo - SINEPE obtivemos uma listagem com
571 escolas infantis não legalizadas9, entre elas as creches domiciliares. O contato com o
SINEPE forneceu as primeiras pistas ou evidências de que ali tínhamos um desafio; entretanto,
não conseguimos obter dados mais completos sobre a listagem, porque naquele ano ela incluía
somente a contagem e o registro das instituições. Foi dito que as mensalidades das escolas não
legalizadas variam de 30 a 50 reais e que a fiscalização dos equipamentos deve ser realizada
pelo Conselho Municipal de Educação.
Quando definimos as creches domiciliares como problemática de pesquisa começamos
a pensar em possibilidades mais efetivas de aproximação com esses espaços. Encaminhamos
em setembro de 2000 um questionário via correio para os endereços que continham a
denominação creche - totalizando 51 equipamentos da lista do SINEPE. Esse questionário
tinha como objetivo coletar informações gerais sobre o perfil das trabalhadoras, dos espaços,
das crianças e das famílias. Não obtivemos respostas a nenhum dos questionários enviados e
seis retornaram por motivo de troca de endereço10.
Possivelmente a tentativa de aproximação pelos questionários não tenha obtido êxito
porque as mulheres trabalham na clandestinidade e temem a possibilidade de fechamento das
creches domiciliares, o que representa uma ameaça a sua sobrevivência e das famílias, que
necessitam desses serviços para trabalhar.
Nossa última opção foi procurar a Presidente da ARTICRECHE11 e fazer uma análise
das probabilidades de escolha de um ou dois bairros do município para a coleta das
informações. Escolhemos o bairro Saudade, que já conhecíamos de outras visitas. Além disso,
8
Utilizamos a nomenclatura cuidado/educação dessa forma, com base nas reflexões de Kramer (2003) a respeito
das dissociações que as palavras cuidar e educar podem contemplar, quando na realidade quem educa sempre
cuida.
9
Na lista do Sinepe, as escolas não legalizadas recebem as denominações de creches, pré-escolas, jardins de
infância, alfabetização e séries iniciais.
10
Uma carta acompanhava o questionário e propunha contatos por telefone, caso fosse difícil para as
profissionais o encaminhamento das respostas pelo correio. Apenas duas profissionais fizeram ligações, uma
informando o fechamento da sua creche em 1999 e outra justificando que cuidava de uma criança da vizinhança e
que não era proprietária de creche.
19
Isadora residia no local há mais de 30 anos e se propôs intermediar nosso acesso às creches
domiciliares, nenhuma delas registrada no levantamento do SINEPE.
Nessa fase inicial elaboramos entrevistas semi-dirigidas com questões referentes aos
problemas que identificávamos, seja pela consulta à literatura, seja pelas primeiras
explorações no município12. Entramos em cinco creches domiciliares, totalizando 10 horas de
entrevista com cinco tomadoras de conta que chamaremos de Norma, Regina, Suzana,
Fernanda e Denise13.
Norma e Regina trabalham em outras casas pertencentes às famílias de origem. Um
traço que caracteriza o bairro Saudade é que as mulheres casadas costumam alugar ou utilizar
casas de parentes para tomar conta de crianças, devido às pressões dos cônjuges que não
aceitam a fusão entre mundo doméstico e mundo do trabalho. Suzana é a única tomadora de
conta casada que trabalha na residência. Porém, estava trabalhando há apenas um mês e com
horários mais flexíveis, das 10: 30 às 19h. Fernanda e Denise são mulheres sozinhas e
responsáveis pelo sustento da família. Ambas têm filhas e residem na casa em que tomam
conta de crianças.
Quanto ao tipo de prédio e organização do espaço, as creches de Regina, Suzana e
Fernanda localizam-se em casas velhas, com pouca iluminação e ventilação. Apenas a creche
de Denise situa-se em uma casa nova e ampla, bem arejada e com boa iluminação. Todas as
casas possuem pátios relativamente espaçosos, com grama ou área coberta.
As casas de Suzana, Fernanda, Norma e Regina possuem dois quartos, cozinha e copa,
banheiro, varanda e pátio. A casa de Denise tem três quartos, uma cozinha, dois banheiros,
sala, pátio e varanda coberta.
No que diz respeito ao tempo de trabalho, apenas a creche de Suzana estava
funcionando há um mês. As demais funcionavam há um tempo que variava entre três e seis
11
A presidente da ARTICRECHE de São Gonçalo, Isadora, também dirigia no ano 2000, a única creche
comunitária do bairro Saudade.
12
Optamos por não usar o gravador, pois pretendíamos retornar mais adiante e temíamos intimidar as
trabalhadoras. Nosso procedimento foi conversar com as pessoas, mediante um roteiro semi-estruturado que
preenchíamos durante a conversa; após as entrevistas completávamos o roteiro com maiores detalhes.
13
Os dados comentados sobre as cinco creches domiciliares são referentes ao ano de 2000 e, pelo menos na
creche de Denise (local selecionado para o estudo de caso), observamos algumas modificações comentadas nos
capítulos posteriores, tais como diminuição do número de crianças e alterações dos horários de trabalho.
20
anos, com exceção da de Denise, que trabalhava há três anos na residência atual, mas tomava
conta de crianças desde 1987, em casas alugadas.
No ano 2000 as creches recebiam crianças com menos de um ano até 11 ou 12 anos. As
crianças maiores permaneciam meio período nas creches; além da alimentação e higiene
recebiam orientação escolar e eram acompanhadas pelas profissionais, ou ajudantes, até a
escola de ensino fundamental.
Os horários de trabalho geralmente ultrapassam oito horas diárias. Norma, Denise e
Fernanda iniciam o trabalho entre 5:30 e 6:00 da manhã sem horário de encerramento. A
creche de Norma funciona como um semi-internato, pois três crianças dormem durante a
semana na sua casa. Exceto a creche da Regina, que mantém um horário mais formalizado (de
segunda a sexta-feira, das 7hs até 21hs), as demais funcionam em feriados e fins de semana.
As tomadoras de conta não gozam férias e só descansam no carnaval e nas festas de final de
ano.
As rotinas de trabalho incluem alimentação, higiene, algum tipo de recreação ou
brincadeiras livres, sono e TV. A importância da disciplina e dos castigos foi enfatizada por
Regina e Norma. Há poucos brinquedos e jogos nas creches, e foi dito que as crianças trazem
seus brinquedos de casa, ou as tomadoras de conta aproveitam os brinquedos dos/as filhos/as.
Também não há uma organização do espaço das casas em função das crianças. Não
encontramos armários e prateleiras com objetos ao alcance das crianças, com exceção da
creche de Fernanda, que possui armários baixos e uma mesa com cadeiras pequenas na sala.
As refeições principais (café, almoço e janta) são servidas em todas as creches e
mantidas com as taxas pagas pelos familiares. Algumas famílias contribuem com o lanche,
fornecendo leite, biscoitos, iogurte ou frutas. Todas as tomadoras de conta levam as crianças
ao pronto-socorro, médico, ou posto de vacinação, quando isto não é possível para os pais.
As taxas de matrícula são cobradas por Regina e Fernanda (dez e quinze reais,
respectivamente) e as mensalidades nas cinco creches variam em torno de cinqüenta reais.
Norma, Fernanda, Suzana e Denise estabelecem preços de acordo com a situação financeira
das famílias, e há casos de famílias mais pobres que pagam trinta reais. Com exceção de
Suzana, as outras disseram que preenchem fichas das crianças e familiares, mas não
permitiram que eu as consultasse, sempre fornecendo respostas evasivas: não estão aqui nesta
casa... eu ainda estou organizando.
21
A maior parte das mães exerce profissões domésticas como empregadas ou diaristas e
se responsabilizam pelos/as filhos/as de forma integral, mesmo quando casadas.
Denise e Fernanda são mulheres que assumem a criação das filhas, sem ajuda de
cônjuge ou outros familiares. Fernanda, de 39 anos, definiu-se como mãe solteira de uma
menina de quatro anos e viúva, porque o pai da sua filha faleceu. Suzana, de 41 anos, tem três
filhos do primeiro casamento e mais quatro filhos do segundo. Regina, de 42 anos, e Norma,
de 45, são mulheres casadas há mais de 15 anos com dois e um filho, respectivamente. A idade
das mulheres varia em torno dos 40 anos; apenas Denise tem 30 anos. Norma, Regina e
Fernanda são negras e Denise e Suzana são brancas e descendentes de índios.
As cinco mulheres trabalham com as filhas, filhos ou sobrinhos/as. Os filhos, sobrinhos
ou vizinhos desempenham funções ligadas ao mundo externo, como fazer compras para a
creche, ou levar e buscar as crianças na escola. Eles não participam das atividades ligadas ao
cuidado das crianças, ao contrário das ajudantes, que trabalham diretamente com as crianças.
Nenhuma das tomadoras de conta possui formação para o trabalho com crianças pequenas,
mas sua escolaridade varia: Fernanda cursou até o segundo ano do ensino médio, Norma
completou o ensino fundamental, Denise estava concluindo o ensino fundamental no ano de
2000 e Suzana e Regina não haviam completado o ensino fundamental.
Quanto às crianças atendidas nas creches domiciliares, o número varia de oito a 19, e
todas as tomadoras de conta têm filhos/as ou sobrinhos/as que convivem com as outras
crianças. O número total de crianças freqüentando as cinco creches no período de novembro a
dezembro de 2000 era de 62 e, destas, apenas 12 foram apontadas nas entrevistas como
brancas. A distribuição da faixa etária e do sexo era de 13 meninas e seis meninos de zero a
dois anos; quatro meninas e cinco meninos entre dois e três anos; cinco meninas e dois
meninos entre três e quatro anos, três meninos de quatro a cinco anos; cinco meninos e uma
menina de cinco a seis anos e seis meninas e 12 meninos na faixa etária a partir dos seis anos.
Na última etapa da pesquisa, optamos por uma permanência mais longa dentro de uma
creche que preenchesse os seguintes requisitos: faixa etária das crianças de zero a seis anos;
presença do trabalho infanto-juvenil; conciliação entre o espaço de trabalho e a residência da
tomadora de conta; disponibilidade de receber visitas para observações, pelo menos durante
três meses consecutivos. Norma e Fernanda disseram que seria inviável aceitar nossa
22
permanência no local por muito tempo14. As outras tomadoras de conta concordaram, mas
somente Denise preenchia os requisitos que selecionamos para o estudo, cujas questões de
investigação e metodologia apresentaremos a seguir.
1.2 AS QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO
O foco da investigação é a análise dos significados que assume a atividade de tomar
conta de crianças para Denise e as mães das crianças, bem como a organização desse
trabalho no cotidiano.
A expressão utilizada pelos moradores do local quando se referem às creches
domiciliares é tomar conta de crianças. Encontramos esta expressão nas placas de alguns
equipamentos e, principalmente, nos discursos das mulheres que oferecem os serviços: vou
receber mais dois bebês para tomar conta...; comecei a tomar conta dele na minha casa...;
isto aqui é uma casa em que eu tomo conta de crianças.
Ao escolher esta terminologia na formulação do problema queremos dissecar o termo
tomo conta de crianças, sua abrangência e seus significados. Como Denise percebe o seu
trabalho? O que faz com que algumas mulheres entreguem os filhos/as para Denise, quando a
realidade do bairro demonstra que há outras creches domiciliares com preços compatíveis e
que, aparentemente, as rotinas das tomadoras de conta são similares entre si? Como este
trabalho se organiza no cotidiano? A questão central tem seus desdobramentos formulados a
partir de nossos primeiros contatos com o campo empírico e do aprofundamento do referencial
teórico:
- Quais as relações entre os significados da atividade e as trajetórias de vida de Denise
e das mães das crianças?
- Por que Denise realiza essa atividade e como ela negocia e transita entre a sua vida
familiar e o trabalho?
14
Norma e Fernanda foram mais resistentes em nos acolher e Isadora precisou fazer várias negociações até
conseguir que elas nos recebessem. Como Norma não permitiu nossa entrada no interior da casa, sua entrevista
foi feita no pátio.
23
- Quais as expectativas e impressões de Denise e das mães das crianças? O que
esperam as mães das crianças quando delegam responsabilidades para Denise e, por outro
lado, o que Denise pensa sobre estas responsabilidades e como reage frente às expectativas?
- Como reagem as mães das crianças quando estas chamam Denise de mãe?
- Como aparecem o mundo feminino e o mundo masculino nas falas e situações
cotidianas da tomadora de conta e das mães das crianças? O que pensam as mulheres sobre a
educação das crianças, a divisão sexual do trabalho, o casamento e o lazer?
- Como se organiza o trabalho no dia a dia da creche domiciliar e quais modos de
socialização são valorizados?
Considerando o objetivo principal e o levantamento destas questões foi possível
elaborar os objetivos específicos da investigação:
1)Descrever o universo físico da creche e os sujeitos adultos/crianças que o integram;
2) Analisar o tipo de trabalho que acontece no espaço da creche;
3) Analisar os sentidos do trabalho para Denise e as mães das crianças;
4) Relacionar a organização e os sentidos deste trabalho para os adultos com imagens
de infância, de feminino, masculino e educação;
5) Identificar pontos de acordo e pontos de tensão nas relações entre Denise e as mães
das crianças.
1.3 A METODOLOGIA
Embora saibamos que a nomenclatura não é o mais importante na definição de uma
investigação, a construção do trabalho de campo, essencialmente na sua última etapa,
proporcionou uma identificação com o estudo de caso etnográfico, também denominado de
pesquisa de terreno sociológica por Costa (1989, p.129)15. Os termos designados pelo autor numa referência ao estilo de pesquisa que supõe a presença prolongada do investigador no
contexto social em estudo e o contato direto com as pessoas e as situações - não são
15
Quanto às origens da pesquisa de terreno em sociologia, Costa (1987, p. 130) escreve que o seu maior impulso
foi dado nos EUA pela Escola de Chicago e que a dupla influência desta escola e do trabalho de campo tal como
vinha a ser praticado em antropologia estão na base, em termos metodológicos, de pesquisas de terreno em meios
urbanos e rurais.
24
exatamente sinônimos uns dos outros. Todavia eles são assim referidos para designar este
estilo de pesquisa, porque se diferenciam de outras estratégias metodológicas, como aquelas
baseadas somente na análise de dados estatísticos, ou as que têm como principais
procedimentos a realização de inquéritos por questionários ou entrevistas através de contatos
pessoais, de caráter pontual (Costa, 1987, p.130).
Por estas razões concordamos com o autor quando estabelece semelhanças entre a
pesquisa de terreno sociológica e o estudo de caso etnográfico, na medida em que há
aproximações, principalmente no que diz respeito às técnicas de coleta e registro das
informações, à presença do/a pesquisador/a no contexto estudado, entre outras características
que são aqui enunciadas.
O estudo de caso tem sido identificado como a observação detalhada de um contexto,
de um indivíduo, de uma única fonte de documentos ou de um acontecimento específico
(Merrian16 apud: Bogdan & Biklen, 1994).
Como observa Sarmento, o estudo de caso foi apropriado diferenciadamente,
revelando-se pregnante às diversas inspirações teóricas e metodológicas. As referências,
porém, são quase sempre direcionadas para a inspiração etnográfica, seja porque marcadas
pelos aspectos simbólicos e culturais da ação social, ou ainda porque tratam da “apropriação
dos aspectos existenciais que se revelam fundamentais na interpretação do modo de
funcionamento das organizações e outros contextos singulares de ação” (2003, p. 137-179).
De acordo com Bogdan & Biklen (1994), nos anos de 1980 a investigação qualitativa
recebeu influências da teoria e prática feministas. As feministas desempenharam um papel
importante enquanto impulsionadoras de investigações sobre as emoções e os sentimentos; nas
ciências sociais foram atraídas pelos métodos qualitativos porque estes possibilitavam que as
interpretações das mulheres assumissem um papel central. Os autores ainda destacam que as
feministas se voltaram para as relações entre investigadores e atores sociais e para as
implicações políticas das investigações. Na apreensão dos sentimentos e emoções, contudo, a
palavra escrita assume importância tanto no registro dos dados como na apresentação dos
resultados.
16
MERRIAM, S. B. The case study research in education. San Francisco: Jossey-Bas, 1988.
25
Tal como observa Geertz “fazer etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos”
(1989, p. 20). Para Bogdan & Biklen (1994, p. 59), a descrição densa implica em uma
apreensão dos significados que os membros de uma cultura têm como adquiridos; no registro
dos dados e resultados da investigação, estes novos significados são apresentados às pessoas
exteriores à cultura.
Esta descrição minuciosa é possível porque o principal instrumento de recolha de
informações é o/a pesquisador/a. Nesse sentido, o termo significado é central nesse estudo,
pois estamos interessados no modo como diferentes pessoas dão um sentido para fatos das
suas vidas, como elas próprias interpretam as suas experiências ou estruturam o mundo social
no qual vivem (Bogdan & Biklen, 1994, p. 50).
Como temos afirmado, o principal instrumento de pesquisa é o próprio investigador
que observa locais, objetos e símbolos, pessoas, atividades, comportamentos, interações e
situações. A presença diária do investigador no contexto introduz no local novas relações
sociais, não só no que diz respeito às relações entre observador e observados: o próprio tecido
social em análise e os processos sociais desencadeados pela pesquisa devem ser tomados em
conta na produção e análise dos dados (Costa, 1989, p.132).
Tecidas estas considerações pensamos que é improvável que não tenhamos construído
uma identidade no local de estudo, pois nas trocas estabelecidas entre observadora e
observados também sedimentam-se os papéis da investigadora, “certas características sociais
do investigador, particularmente a sua pertença de classe e a sua atividade profissional,
condicionam o processo de recolha da informação e devem ser tomados em conta na análise”
(Costa, 1989, p. 145). A forma como nos apresentamos para as pessoas não corresponde
necessariamente à imagem que elas constroem e nossa identidade vai se redefinindo na
seqüência do trabalho de campo.
Uma prova desta afirmativa é a interpretação que os sujeitos envolvidos na pesquisa
fizeram do meu papel enquanto pesquisadora no local. Mesmo que eu tenha me apresentado
como aluna do curso de doutorado em educação e particularmente interessada na educação da
infância, outras interpretações foram construídas durante meu período de convivência no local.
Fui, desta forma, interpretada como uma assistente social e alguns moradores temiam que eu
fosse encarregada de fechar a creche domiciliar. Após algum tempo fui interpretada como
26
alguém com jeito de psicóloga, e finalmente como uma pedagoga que podia responder
questões sobre educação, uma vez que eu havia obtido um diploma na Universidade.
Passamos a seguir a expor os métodos e técnicas utilizados, entendendo o método
como “uma estratégia integrada de pesquisa que organiza criticamente as práticas de
investigação, incidindo sobre a seleção e articulação das técnicas de recolha e análise da
informação” (Costa, 1989, p. 129). A escolha das técnicas de coleta de dados relaciona-se
tanto à nossa opção metodológica - vinculada aos estudos qualitativos - como ao nosso quadro
teórico, o que nos permite falar de um método de pesquisa compreendido como um conjunto
de estratégias para responder as questões formuladas pela investigação.
Os principais instrumentos de pesquisa que utilizamos foram entrevistas semiestruturadas e observações.
1.3.1 As observações
Num período de quatro meses (de setembro a dezembro de 2000) observamos creches
domiciliares de forma assistemática, ou seja, com visitas curtas e esporádicas e anotações
exploratórias que permitiram levantar hipóteses a respeito destes espaços, assim como
redirecionamos nossas questões de pesquisa e opções metodológicas. Totalizamos, nesse
período inicial, oito horas de observações em creches domiciliares.
Quando definimos a creche de Denise para o estudo de caso somamos 60 horas de
observações entre os meses de junho, julho e agosto de 2001, assim como definimos nesse
período alguns procedimentos básicos. Inicialmente procuramos alternar as visitas durante os
dias da semana, com permanência total segundo os horários de funcionamento da creche:
manhã, tarde e aproximadamente até 22h, de maneira que as rotinas e atividades fossem objeto
de nota.
Como tínhamos realizado algumas observações curtas, desta vez sentimos necessidade
de permanecer os três turnos na creche durante pelo menos duas semanas, para compreender
melhor sua dinâmica de funcionamento. Assim, decidi passar uma noite na creche com o
intuito de observar os preparativos de Denise para receber as crianças, bem como a chegada de
cada uma delas e as recomendações dos familiares. Escolhi pernoitar na casa de Denise de
27
domingo para segunda-feira, o que não se constituiu em uma experiência tranqüila, devido ao
medo que experimentei com relação ao bairro Saudade, considerado um local perigoso pelos
moradores de São Gonçalo.
Gradativamente fomos diminuindo a intensidade das observações que nos primeiros
momentos atingiram um tempo muito extenso, uma vez que alguns padrões se repetiam,
embora com variações. André (1995, p.28) escreve que na observação “o pesquisador tem
sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”.
Durante o tempo em que permanecemos em campo, esta questão se tornou evidente,
não somente pelo que observávamos e pelo grau de importância que isto assumia para nós,
como também pelas evidências de que eu também era observada o tempo inteiro desde que
descia do ônibus e caminhava em direção à casa da tomadora de conta onde ela, as ajudantes e
as crianças passavam boa parte do tempo a me observar e fazer comentários, ou perguntar
sobre os rumos da investigação.
Como sempre procurei expor com clareza o objetivo da pesquisa, na medida em que o
tempo passava percebia que Denise procurava contribuir comigo, pois freqüentemente fazia
observações sobre a coleta de informações: vem cá, que eu tenho um monte de dados; este
texto que você tem na pasta é da sua pesquisa? Você já conseguiu digitar tudo que você
anotou ontem?
Pensamos que as atitudes de confiança com relação ao nosso trabalho são também uma
conquista pelo cuidado e seriedade que demonstramos logo de início, pois procuramos garantir
a proteção dos informantes, bem como o anonimato e a discrição quanto aos fatos e
acontecimentos que observamos. Todos os acordos e pedidos foram respeitados, como, por
exemplo, a solicitação de um documento escrito da Universidade com o intuito de confirmar
minha presença no local, devido ao controle exercido pelos traficantes com relação à entrada e
saída de pessoas estranhas no bairro.
As crianças interagiam todo o tempo comigo e constantemente faziam perguntas sobre
as anotações. O diário de campo para elas tornou-se fonte de explorações. Elas solicitavam
minha presença em algumas brincadeiras e canções, ou nas perguntas que faziam sobre minhas
anotações e visitas diárias. Em algumas situações Denise solicitava minha ajuda no cuidado
dos bebês, assim como preparei pipocas e bolo para as crianças em algumas tardes.
28
O registro das observações foi acompanhado de anotações reflexivas em diários de
campo que priorizaram os seguintes aspectos: descrição do espaço físico, dos sujeitos, do
cotidiano da creche, das reações e alterações em nosso comportamento e no comportamento
das crianças, jovens e adultos, das entradas e saídas na creche e das situações inusitadas que
vez por outra aconteciam no local. Igualmente utilizamos a técnica da observação como um
recurso para a elaboração dos roteiros de entrevistas com Denise, Bia, Nara e as mães das
crianças.
1.3.2 As Entrevistas
Caracterizamos as entrevistas como semi-estruturadas. Os roteiros foram elaborados
após as observações, quando nos deparamos com situações ou acontecimentos significativos,
como depoimentos informais, ou com as reflexões decorrentes das anotações de campo e
contatos com a literatura consultada. Destacamos que as entrevistas possibilitaram uma
reflexão dos atores sociais entrevistados sobre suas existências, comportamentos ou situações.
Registramos as entrevistas pelo gravador e por meio de anotações redigidas no início
ou no final das entrevistas. Inicialmente ficamos receosas de que as pessoas não aceitassem o
fato de que suas informações fossem gravadas. Mas as/os informantes sentiam-se importantes
ao falar e, antes de algumas entrevistas, passamos um tempo brincando, gravando e ouvindo as
vozes. Isso aconteceu, sobretudo, com os informantes mais jovens e com a tomadora de conta
de crianças.
Completando 17 horas de registro das informações, realizamos 11 entrevistas em três
etapas. Primeiro entrevistamos pessoas do bairro com a intenção de compreender melhor a
situação do local e dos seus moradores, totalizando três entrevistas com três horas de duração.
Foi elaborado um roteiro de questões específicas sobre o bairro e entrevistamos Isadora, a
dirigente de creches comunitárias que lá reside aproximadamente 30 anos; entrevistamos ainda
Denise, a tomadora de conta de crianças e Fernando, um jovem de 16 anos amigo de Nara
(filha mais velha de Denise).
29
Num segundo momento, elaboramos um roteiro com questões sobre a trajetória de vida
e trabalho da tomadora de conta que totalizou quatro horas de entrevista, bem como um roteiro
de entrevista para as duas ajudantes, Bia e Nara, totalizando duas horas.
Por último entrevistamos cinco mães de crianças (Elisa, Juçara, Marta, Laura e Íris),
somando seis horas de entrevistas. No que diz respeito a esta seleção, as condições de trabalho
dos familiares das crianças e as longas horas decorridas entre a sua chegada e saída do
trabalho limitaram nosso acesso a estes. Em função disso, a tomadora de conta marcava
horários alternativos, de acordo com a situação de vida de cada uma das mães17. As entrevistas
foram realizadas aos sábados, domingos, em horários noturnos, ou em intervalos de almoço.
1.3.3 Análise dos dados
A análise de dados, para Bogdan & Biklen (1994), é o momento em que organizamos
de forma sistemática as transcrições das entrevistas e as notas de campo. Este processo
envolve a organização, a divisão das informações em unidades ou eixos temáticos, a síntese
das informações e a decisão do que iremos apresentar e analisar na redação final. Optamos
pela análise das informações após o período de trabalho de campo, o que não excluiu uma préanálise dos dados enquanto redigíamos as notas de campo.
No tratamento dos dados obtidos pela pesquisa de campo fizemos uma análise de
conteúdo com fundamentos em Bardin (1977) e Vala (1989). A análise de conteúdo é uma
técnica de pesquisa que permite fazer inferências dos dados para o seu contexto e exige uma
explicitação dos procedimentos utilizados (Vala, 1989).
Para Bardin (1977) é a inferência que permite a passagem da descrição à interpretação,
enquanto atribuição de sentidos às características do material que levantamos e organizamos.
Conforme explica Vala (1989), nesse percurso desmontamos um discurso e produzimos um
outro.
A análise dos dados incluiu a codificação das informações coletadas durante o trabalho
de campo em conexão com o referencial teórico. As categorias de codificação são decorrentes
17
Não conseguimos entrevistar os pais das crianças. Um deles se dispôs a conceder entrevista, mas como estava
alcoolizado e sob efeito de drogas não conseguimos levá-la adiante.
30
da leitura exaustiva das informações, processo que permitiu o destaque de frases,
acontecimentos e formas de pensamento que apresentavam certa regularidade.
Procuramos organizar os dados em unidades e eixos temáticos. Esta análise temática
dos dados é denominada por Bardin de “núcleos de sentido”, que são os elementos que
“compõem a comunicação e cuja presença ou freqüência de aparição podem significar alguma
coisa para o objetivo analítico escolhido” (1977, p.105). Fomos recortando as três dimensões
que entendemos como macro-categorias (trajetórias e sentidos do trabalho para a tomadora de
conta, trajetórias e sentidos do trabalho para as mães e cotidiano na creche domiciliar), que por
sua vez geraram categorias médias, todas elas analisadas no desenvolvimento e conclusão da
tese.
Como optamos por uma simbiose discursiva entre as referências teóricas, os dados
empíricos e nossas análises na construção do texto, informaremos brevemente sobre a
literatura referente às creches domiciliares e sobre os eixos articuladores do estudo.
1.4 CRECHES DOMICILIARES E EIXOS TEÓRICOS ARTICULADORES DO
ESTUDO
Nosso procedimento não foi fazer um levantamento bibliográfico sobre creches
domiciliares. Assim selecionamos alguns textos com a intenção de compreender a origem, os
programas implantados, o trabalho e o cotidiano desses espaços no Brasil e em outros países.
No desenvolvimento do texto utilizamos as expressões creche domiciliar, creche de
fundo de quintal, lar vicinal, lares de cuidado diário, casa da tomadora de conta, creche e
residência de Denise, todas elas com o mesmo sentido que é a de um espaço no qual “uma
mulher toma conta em sua própria casa, mediante pagamento, dos/as filhos/as de outras
famílias” (Rosemberg, 1986, p.73). Adotamos o mesmo procedimento com relação às
trabalhadoras de creches domiciliares, designadas na literatura como mães crecheiras, mães
substitutas, mães guardadeiras, amas, assistentes maternais, provedoras de cuidado diário,
ou como tomadoras de conta de crianças, pelos moradores de São Gonçalo.
De forma geral, os estudos brasileiros mencionam experiências que foram
aproveitadas, legalizadas ou apoiadas por órgãos governamentais, entidades assistenciais e
31
organismos estrangeiros desde 1970. Os programas nacionais de creches domiciliares
iniciaram em cidades satélites de Brasília. Mais adiante, passaram a ser adotados, com
algumas alterações, em outros municípios brasileiros, com orientação do Ministério da
Previdência e Assistência Social - MPAS - até os anos de 198018.
Estes programas propunham-se oferecer assistência às famílias das camadas populares,
com ênfase nos aspectos de nutrição, saúde e desenvolvimento das crianças sem acesso a
creches coletivas.
As justificativas quase sempre se referem às limitadas disponibilidades físicas e
financeiras do Estado para ampliar as creches convencionais, ou à liberação de mão-de-obrafeminina para o trabalho, associada à proteção das crianças em situação de pobreza
(Boianovsky, 1981).
As comunidades envolvidas nos programas implantados nos diferentes estados
brasileiros19 são de baixo poder aquisitivo, com renda mínima de até dois ou três salários
mínimos; as mães crecheiras, quando não são analfabetas, não completaram o ensino de
primeiro grau. Entretanto, nas experiências de Brasília, as trabalhadoras selecionadas
deveriam ter ensino primário completo e idade mínima de 65 anos. Franco (1988) destaca a
pobreza das creches lares do Mucuripe por ela investigadas, algumas no nível da miséria, bem
como os casos de desnutrição das crianças.
18
A literatura sobre creches domiciliares que consultamos vai dos anos de 1970 aos anos de 1990 e compreende
experiências realizadas em cidades satélites de Brasília e em outros Estados brasileiros que passaram a adotar
estes modelos.
19
Algumas dessas experiências são a de João Pessoa, com apoio da Legião Brasileira de Assistência - LBA
(Viana, 1985); a de Campo Grande nos anos de 1980, em que as mães vinham desenvolvendo experiências com
vizinhas que tomavam conta dos/ as filhos/as menores; estas foram aproveitadas pela Organização Mundial de
Educação Pré - Escolar - OMEP e LBA, atingindo 300 crianças em 50 creches (Simão & Morettini, 1996); a de
Fortaleza, com o Programa de Creches Lares do Mucuripe implantado pela Fundação Estadual do Bem - Estar do
Menor - FEBEM (Franco, 1988); a experiência de Goiânia (Matos, Balestra & Simão, 1980); as experiências do
Rio Grande do Sul mantidas pela FEBEM e pelo SESI (Bonamigo, 1984, Horn & Dornelles, 1997) e as
experiências das cidades satélites em Brasília em 1979, com apoio da OMEP, que atingiram em média 472
creches domiciliares. As crianças atendidas nas cidades satélites de Brasília tinham matrícula garantida em préescolas, após os quatro anos de idade; este projeto fornecia material lúdico-pedagógico e avaliativo do
desenvolvimento psico-motor (Boianovsky, 1981). A produção mais recente sobre creches domiciliares é o
relatório geral do PRODEMAN - Coordenadoria de Pesquisa de Demandas Sociais19, que trata do serviço de mãe
crecheira em áreas populares da cidade do Rio de Janeiro (1998). Esse trabalho é o resultado parcial de um
levantamento sobre as condições de funcionamento das UCECs - Unidades de Cuidados e Educação de Crianças,
denominadas Mães Crecheiras, no sentido de orientar a ação governamental para a adequação dessas iniciativas
aos padrões de qualidade definidos pela SMDS - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Entretanto, o
relatório contém só as tabelas referentes às entrevistas realizadas em uma das 34 comunidades selecionadas para
a pesquisa e não apresenta uma análise dos dados obtidos.
32
Quanto às relações de trabalho, em todas as experiências observa-se o predomínio da
informalidade, uma vez que as trabalhadoras não possuem vínculo empregatício, assim como
o pagamento é dividido entre os programas financiadores e as famílias das crianças, com
pequenas variações regionais.
As mães crecheiras oferecem os serviços nos seus lares e contam com a ajuda de outros
membros familiares. Em geral, recebem visitas domiciliares de jovens selecionadas na
comunidade e treinadas por técnicos de nível superior. Outros profissionais também visitam
esporadicamente as creches domiciliares, tais como assistente social, pedagoga, médico e
nutricionista. Alguns estudos argumentam que as experiências são valiosas para as crianças
menores de três anos, pelo cuidado mais individual que é proporcionado (Boianovsky, 1981),
ou que o acompanhamento das visitadoras obtém boa receptividade, pelas similaridades entre
a linguagem e os costumes culturais das famílias (Boianovsky, 1981; Simão & Morettini,
1996; Viana, 1985).
Em todos os programas há um limite de crianças por creche, geralmente em torno de
seis (Boianovsky, 1981; Matos, Balestra & Simão, 1980) ou dez (Bonamigo, 1984), incluindo
os/as filhos/as das trabalhadoras. As crianças permanecem nas creches em média de 12 horas
diárias e fazem as refeições. Os alimentos são fornecidos pelos familiares, mas em casos de
extrema pobreza, os órgãos financiadores dos programas se encarregam da alimentação. A
proximidade entre as casas dos familiares e as creches domiciliares, a flexibilidade de horários
e os laços afetivos caracterizam todas as experiências consultadas.
Destacamos, nesse conjunto de experiências, a do Centro de Cultura Luiz Freire
(1994), pelas aproximações com o caso de São Gonçalo. Trata-se de pesquisa sobre a criação
de uma rede paralela de educação infantil e de ensino fundamental, em 12 municípios da
Região Metropolitana do Recife, por iniciativa de grupos das camadas populares20.
O objetivo do levantamento foi desvendar as realizações dos excluídos das políticas
públicas na educação, situação desconsiderada pelos que formulam, propõem e geram
políticas educacionais. As escolas residenciais funcionam em casas alugadas ou cômodos da
20
O levantamento incluiu 864 escolas classificadas como particulares, residenciais, comunitárias e filantrópicas.
A predominância da oferta de matrícula se concentrou nas pré-escolas (76%). Num total de 67.913 alunos/as
matriculados/as na faixa etária de dois a sete anos, 45.112 estavam nas escolas particulares e residenciais, as mais
procuradas pelas famílias pobres; 14.873 nas escolas comunitárias e 7.928 nas escolas filantrópicas.
33
residência da proprietária, ou em áreas do próprio quintal. Localizadas em bairros de periferia
de áreas urbanas, apresentam problemas como falta de ventilação e aeração, iluminação
insuficiente e falta de espaço de circulação entre as carteiras. São de pequeno porte e
caracterizam-se pela informalidade e pelo relacionamento quase doméstico, funcionando
praticamente como uma extensão da casa da professora, que divide as atividades docentes com
os afazeres do lar. Freqüentemente trabalham na mesma escola duas ou três pessoas da mesma
família. As famílias que procuram as escolas são em grande maioria pobres e com renda
mensal próxima do salário mínimo.
O documento propõe que sejam definidos critérios de legalização e reconhecimento
destas escolas, uma nova conceituação de escola pública baseada nos interesses coletivos da
população que extrapole a visão do sistema oficial, a necessidade de investimento na
capacitação em serviço e uma articulação das experiências entre as escolas da rede oficial e
estas escolas, no sentido de fortalecê-las no que elas têm de melhor.
A respeito dos lares vicinais em Porto Alegre, Horn & Dornelles (1997) observam que
a qualidade do atendimento à criança pequena deve existir em qualquer espaço e que num país
tão grande e com características distintas é inviável padronizar este atendimento, assim como a
institucionalização de todas as crianças de zero a seis anos a curto ou médio prazo.
Destacamos, ainda, o artigo “Creches domiciliares: argumentos ou falácias”, de
Rosemberg (1986), que analisa os principais argumentos utilizados por organismos
internacionais e por experiências subvencionadas pelo Estado para justificar programas que
pretendem conciliar baixo custo, baixa tecnologia, responsabilizando, ainda que indiretamente,
famílias e profissionais, que acabam assumindo o ônus dos custos com creches domiciliares.
Por outro lado, os estudos comprovam que no Brasil existe uma rede paralela de
educação infantil que não podemos ignorar. Esta rede paralela para as camadas populares
confirma a pressão da população por serviços de creches e, ao mesmo tempo, a omissão de
uma política pública para a pequena infância. Os órgãos governamentais responsáveis pela
elaboração de políticas públicas, os intelectuais do campo e as instituições responsáveis pelos
levantamentos estatísticos de educação infantil terão de considerar esta realidade, na definição
34
de ações, recursos e orientações. Este é o ponto mais importante a ser enfatizado, porque o que
já existe e funciona, ainda que precariamente, não pode mais ser ignorado.
Possivelmente, programas como aqueles desenvolvidos em Brasília não tenham tido
continuidade pelos avanços obtidos com a Constituição de 1988 e com a Nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9.394/96, no que diz respeito ao entendimento
das creches como instituições vinculadas à educação básica devendo, assim, ser
regulamentadas, autorizadas e credenciadas segundo critérios pedagógicos, de infra-estrutura
dos espaços e de formação das profissionais.
Todavia, tudo indica que estas saídas emergenciais estão retornando com a entrada do
século XXI. Em junho de 2000 a Secretaria de Estado da Assistência Social - SEAS - aprovou
uma proposta de portaria instituindo novas modalidades de atendimento que observem a
Política Nacional de Assistência Social, priorizando ações para os destinatários cujo
rendimento familiar mensal per capita seja de até meio salário mínimo (crianças de zero a seis
anos portadoras de deficiência e crianças em situação de extremo risco). O Artigo 6º autoriza a
criação de novas modalidades, como atendimento domiciliar. No Anexo II está previsto o
atendimento de crianças em casas de família, com adequada supervisão técnica.
Mais recentemente, o Plano Plurianual de Educação do MEC, justificando a baixa
cobertura do atendimento de zero a três anos, bem como as dificuldades para atender esta
demanda e a situação de pobreza das crianças pequenas, apresentou a proposta de Bolsa
Infância, para que a mãe fique em casa com as crianças menores de quatro anos. É assim que
as soluções de emergência e os sistemas paralelos de atendimento, com ênfase na
responsabilidade das famílias pobres, estão reaparecendo como medidas paliativas para o
cuidado/educação das crianças pequenas, agora com a intervenção do Banco Mundial nos
países do terceiro mundo (Penn, 2002; Rosemberg, 2002).
É interessante examinar programas mais amplos de creches domiciliares em outros
países da América Latina, como Colômbia, Chile e Venezuela. A literatura sobre as
experiências desses países confirma a isenção do Estado e o apoio de ações para que as
famílias e as comunidades assumam o cuidado/educação das crianças menores de sete anos
pertencentes a setores pobres. A orientação dos programas segue os mesmos preceitos das
experiências brasileiras do final do século XX, que colocam ênfase na saúde, nutrição e
desenvolvimento das crianças.
35
Bonamigo (1984) escreve que as primeiras experiências domiciliares na Colômbia
datam de 1800 com as Escolas Banco, nas quais as crianças de quatro a dez anos levavam um
banco para as casas nas quais eram ensinadas por mães voluntárias de baixa escolaridade.
No Chile e na Colômbia é relevante a ênfase na responsabilidade e controle dos
programas pelas pessoas da comunidade, como jovens de 15 a 20 anos treinados como líderes
comunitários, ou pais das crianças responsáveis pela execução dos programas. Na Colômbia
(ICBF, 1991), uma experiência de Lares Comunitários utilizou o sistema de Associação de
Pais para administrar as iniciativas em cada comunidade, incluindo a seleção de mães
crecheiras e a distribuição de recursos recebidos do governo nacional, das entidades públicas e
privadas e das cotas de participação dos familiares.
Ocorre uma redução do papel do Estado, justamente nas experiências destinadas às
camadas mais pobres da população, em países como Brasil, Colômbia, Venezuela e Chile. No
Brasil, o caso de São Gonçalo e de outros municípios confirma que existe uma rede paralela
de educação infantil que ainda permanece incógnita.
No que se refere à produção de estudos em outros países optamos por tecer alguns
comentários sobre as experiências dos Estados Unidos, Portugal21 e França. Esta escolha se
justifica porque no desenvolvimento dos capítulos utilizamos referências de sociólogos/as ou
educadores/as que discutem questões pertinentes à nossa problemática e que pertencem a esses
países. Assim, as informações sobre os três países visam tão somente estabelecer algumas
semelhanças e diferenças com o Brasil, o que aprofundaremos ao longo dos capítulos.
De forma geral, nos três países as creches domiciliares são subvencionadas pelo Estado
e são menos caras do que as creches convencionais. A preferência pelas creches domiciliares
concentra-se na faixa inferior a três anos de idade; elas são conhecidas pelas estatísticas, assim
como existe supervisão e tentativas de profissionalizar as trabalhadoras. Destacamos ainda
outros aspectos, como a localização das creches no domicílio das trabalhadoras, as
aprendizagens informais e a preferência das famílias pelo ambiente mais caseiro que permite
acolher os irmãos das crianças.
21
Em Portugal, país no qual realizei doutorado sanduíche no período de novembro de 2001 a abril de 2002,
mantive contato com um projeto de formação de amas ilegais. Esse projeto estava vinculado à Associação PróDesenvolvimento para as Comunidades Locais, em parceria com a Universidade do Minho - Instituto de Estudos
da Criança. No período visitei duas creches domiciliares da área rural do município de Guimarães e entrevistei a
36
Na França há uma variedade de modalidades de creches com apoio do Estado e a
creche domiciliar não se constitui na única opção dos familiares.
Nos Estados Unidos esta era a modalidade de creche mais difundida nos anos de 1980
(Ferrier, 1988; Nelson, 1990). Nesse país e em Portugal há trabalhadoras ilegais e, no caso dos
Estados Unidos, algumas creches não cumprem as exigências e disposições legais para sua
inscrição e funcionamento. Segundo Margareth Nelson (1990), na legislação norte-americana
é dito que a provedora fornece serviços a crianças por menos de 24horas e freqüentemente
completa o atendimento de crianças mais velhas que passam outros períodos na pré-escola, ou
em programas escolares elementares.
Considerando nossa problemática de pesquisa, a literatura brasileira sobre creches
domiciliares é insuficiente para dar conta das questões que nos propusemos investigar. Fomos
buscar respaldo, sobretudo, em estudos da sociologia voltados para famílias dos meios
populares, para lógicas de socialização, gênero, infância, trabalho informal e domiciliar.
Entretanto, outros campos de estudo foram referenciados, como a antropologia, no que diz
respeito às relações de gênero e trabalho em famílias dos meios populares; e a história,
educação e a filosofia, com ênfase nas relações de gênero e em perspectivas feministas de
conhecimento.
Os eixos articuladores do estudo igualmente possibilitaram um distanciamento da
análise das trajetórias, dos significados e do cotidiano com ênfase nas limitações, na pobreza,
na miséria e na exclusão. Percebemos que adultos, jovens e crianças se relacionam
mediatizados por atos de submissão e resistência, e que nas trajetórias das mulheres também
há possibilidades de respostas e reações frente aos desafios impostos por suas duras condições
de existência.
As relações de trabalho e as negociações na creche domiciliar foram examinadas com
base na informalidade, instabilidade, clandestinidade e ilegalidade dos serviços, o que produz
reflexos nas existências e nos significados expressos pelas mulheres. Outros estudos sobre
trabalho doméstico e domiciliar possibilitaram compreender os desdobramentos da atividade,
como o emprego de mão-de-obra infanto-juvenil no local.
profissional responsável pelo projeto de formação de amas na região, assim como consultei fichas e questionários
respondidos pelas amas.
37
Para dar conta das questões do cotidiano partimos das contribuições de sociólogos/as
da infância, para os quais as crianças são atores sociais com uma autonomia relativa, o que
tem implicações no conceito de socialização. Como salienta Pinto (1997, p.45) a sociologia
interpretativa dos atores sociais rompe com uma compreensão da socialização como uma
espécie de “programação cultural”, na qual as crianças absorvem passivamente as realidades
com as quais entram em contato.
No desenvolvimento dos capítulos dialogamos com o campo da educação infantil, no
que diz respeito às creches domiciliares e em questões vinculadas à infância, ao cotidiano e às
políticas das creches e pré-escolas.
Como optamos por apresentar uma introdução e uma síntese na estruturação de cada
um dos capítulos, finalizamos esta introdução ao tema de investigação com uma
caracterização do bairro Saudade, o que consideramos crucial para a compreensão das
dimensões analisadas.
1.5 O BAIRRO SAUDADE CONTADO PELOS MORADORES
“Hoje em dia eu posso dizer: morar no lugar onde eu vivo, você tem que ter cuidado...
você simplesmente tem que ser surdo, cego e mudo. É como eles falam na gíria deles,
‘não me atrasa que eu não vou te atrasar’” (Denise, 13/07/2001).
A denominação Saudade não poderia ser outra, pois nas entrevistas com Isadora, na
faixa dos 50 anos, com Denise, de 30 anos e Fernando, de 17 anos, havia um sentimento forte
de saudosismo de um tempo no qual as pessoas não estavam apartadas da livre circulação nas
ruas. Um tempo em que nas ruas do bairro era possível brincar, dormir em redes nas noites de
verão, ouvir o canto dos pássaros e outros sons mais agradáveis do que os barulhos de fogos
ou tiros.
Violência, medo e insegurança são expressões usuais nas falas das pessoas, que vez por
outra se referiam em tom baixo aos conflitos entre os meninos e os policiais. Os meninos são
os rapazes do local que fazem parte do tráfico de drogas. São em sua maioria jovens que,
atraídos pelo dinheiro fácil, ingressaram em um mundo no qual a vida é breve e vulnerável.
Vida breve traduzida nas pichações dos muros, ou nos comentários dos moradores: é muito
38
difícil a pessoa ficar viva um ano, dois anos...quando faz aniversário nessa vida eles soltam
fogos, eles dão tiros pro alto...é a felicidade deles (Fernando, 13/07/01).
As ruas do bairro Saudade não têm calçamento, com exceção da avenida principal. O
local tem vários aglomerados e conjuntos habitacionais. Como no final do bairro, no sentido
da área com maior vegetação, há uma entrada para o Jardim Catarina, Isadora observou aqui
se entra, mas não tem saída, o povo cuida nessa área verde sem habitações, quem entra e
quem sai... - numa referência ao tráfico de drogas.
Isadora chegou no Saudade em 1969, quando ele apresentava características rurais.
Sem luz elétrica, ônibus circulando nas ruas e com poucos estabelecimentos comerciais, o
bairro era considerado tranqüilo para se viver e sua população era basicamente constituída por
descendentes de índios e negros pobres. Na rua de Isadora havia um armazém que vendia
querosene, vela, cachaça, mortadela. Algumas pessoas viviam da pesca, pois a prainha do
Saudade, que hoje é um rio morto, tinha uma água límpida. As carroças eram utilizadas como
meio de transporte e havia poços de água limpa, entre eles o da rua do poço, onde se localiza a
creche de Denise.
Sem transporte coletivo, as pessoas se deslocavam para utilizar ônibus em um bairro
mais próximo, quando necessitavam ir à cidade. Também não havia luz elétrica e esgoto e a
criminalidade, embora existente, ainda era distante do cotidiano das pessoas.
A luz elétrica só entrou no Saudade no início dos anos de 1970, quando predominava a
tranqüilidade e o silêncio entre os moradores. Isadora constantemente se referia aos silêncios e
barulhos, para contrapor passado e presente: eu tenho um problema com determinados
barulhos, né. Então o que me encantava aqui era assim: você ouvia os pássaros cantar, as
crianças brincando...mas não tinha esse barulho ensurdecedor que tem hoje... (Isadora,
3/07/01).
Há uns trinta anos atrás era possível encontrar no bairro índios, parteiras, rezadeiras e
curandeiros, além de alguns centros de umbanda. Estas raízes religiosas foram gradativamente
substituídas pela chegada das igrejas de várias congregações religiosas, que provavelmente
contribuíram para silenciar a cultura dos negros e índios.
Atualmente muitos moradores freqüentam diversos tipos de igrejas como Universal,
Batista, Evangélica, Metodista, entre outras. É comum caminharmos pelo bairro entre prédios
de igrejas de diversas congregações. Houve uma redução no local dos terreiros de umbanda ou
39
candomblé e são poucos os centros de religião afro-brasileira. Denise e outras mulheres que
freqüentavam terreiros de umbanda hoje preferem a Igreja Universal:
“Começaram a surgir várias igrejas aqui. A minha Tia Dalva havia saído
do centro e tinha entrado na igreja. Veio a conversar com a minha mãe
sobre essa igreja. Minha mãe simplesmente tomou uma atitude e saiu. E
foi para a Igreja e ninguém entendeu nada. Minha mãe dava tudo pelos
guias dela, pela mãe de Santo dela. Até que chegou um dia em que ela me
convidou. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida” (Denise,
13/07/01).
Segundo Isadora informou, nos anos de 1970 houve a derrubada de boa parte das matas
e da vegetação do Saudade, com a construção de um conjunto habitacional. Esta construção
provocou conflitos entre os moradores antigos e as pessoas provenientes das favelas de
Niterói, que foram obrigadas a se retirar dos locais de origem para ocupar o município de São
Gonçalo. A população local foi surpreendida por esta invasão, sem saber ao certo como reagir:
“Então de uma hora prá outra, quando inaugurou o conjunto foi terrível.
A gente vendo aqueles carros do Estado, da Prefeitura, sabe, com lata,
planta, criança, galinha, polícia...Pegaram as pessoas e jogaram aqui
dentro com tudo que elas tinham. Um grupo ia atrás derrubando os
barracos, e os caminhões pegando as poucas coisas que sobravam e
trazendo prá cá...aí vieram várias favelas prá cá, pessoas de favelas
diferentes... Isto foi feito assim (bate palmas)...Rápido! aqui não tinha
favela, derrubaram lá em Niterói. Foram obrigadas a vir pro
Saudade...acho que era uma pretensão deles, acabar com as favelas de
dentro de Niterói.” (Isadora, 3/07/01).
Esta ocupação causou vários problemas no bairro, como insuficiência de escolas
públicas para atender à população, um comércio improvisado, ônibus lotados para Niterói ou
para os outros bairros de São Gonçalo. Como solução para os conflitos foi criado um posto
policial, que não durou muito tempo, pois os policiais foram logo conquistados pelas
prostitutas do bairro:
40
“as prostitutas começaram a andar com aqueles policiais, a dar cachaça
prá eles e eles também passaram a ser nossos. Você não tem o que comer,
não tem para onde ir e ainda vai levar pancada? O que é isso? Vamos
conquistar esses homens. Aí a mulherada tratou de fazer isso. Deve ser
em 1977, 1978 (...)” (Isadora, 3/07/01).
Com o passar dos anos, a divisão entre os moradores do Bairro Saudade e os que
vieram das favelas de Niterói foi-se diluindo, agora com os conflitos entre traficantes e
policiais. Hoje há um fluxo grande de entrada e saída de moradores do Saudade, entre aqueles
que moram em casas alugadas. Porém, os moradores com casa própria, de forma geral,
permanecem no local uma vida inteira.
As creches domiciliares já existiam nesse período, porque as mulheres que moravam
no Saudade e trabalhavam no Rio de Janeiro ou Niterói não tinham com quem deixar os filhos,
pela ausência de creches públicas no local, ou porque não podiam contar com o apoio de
parentes que pudessem tomar conta das crianças:
“tinha muita criança amarrada no pé da mesa, mas também tinha muita
criança trancada dentro de casa até a hora em que a mãe chegasse. Ou
você amarra no pé da mesa, ou você deixa com alguém. Então se eu
descubro que a Dona Joana é tranqüila e trata bem, eu deixo o meu filho e
ainda falo prás outras mulheres que eu conheço. Aí a Dona Joana diz: eu
agüento ficar com cinco, mais de cinco eu não agüento. Com certeza vai
aparecer uma outra que fica com mais cinco. Porque com três, quatro
anos dá prá amarrar no pé da mesa, mas com seis meses não dá. Quando
você chegar tá morto (risos)” (Isadora, 3/07/01).
Hoje o bairro tem somente uma escola pública de primeira a quarta série e uma escola
pública com ensino fundamental e médio. Não há creches ou pré-escolas públicas e a creche
comunitária trabalha somente com crianças de dois anos e meio a seis anos. Isadora comentou
que existe uma rede de escolas infantis e de ensino fundamental pela periferia de São Gonçalo,
com preços populares e conhecida como Sete de Setembro.
No que diz respeito às condições de proteção do ambiente e saúde da população,
destaca-se a precariedade do controle do lixo e do saneamento básico. As invasões de
41
mosquitos nos finais de tarde são constantes e as crianças costumam chegar na creche
domiciliar com picadas de insetos pelo corpo e rosto.
A cultura local pode ser percebida nos grupos de pagode ou funk, de capoeira, nos
grupos que soltam balões de papel ou cafifa22 e que organizam as festas juninas. Alguns
grupos de samba ou pagode acabam conquistando a mídia e dificilmente seus integrantes
retornam ao bairro.
O jogo de futebol é uma das formas de lazer mais utilizadas, tanto entre os homens
quanto entre as mulheres. Bia e Nara, ajudantes na creche domiciliar, participam de um time
de futebol feminino e jogam nos finais de semana.
É pouco provável falar sobre o bairro com os moradores e não ouvir as conexões entre
o tráfico e o cotidiano das pessoas. Igualmente, a linguagem com a qual as pessoas se referem
aos perigos do local é quase sempre carregada de metáforas: Tem uma última rua e pra lá tem
um manguezal enorme, que o pessoal chama área do curral (...) e tem o grande lago que o
pessoal fala, que é onde mora o jacaré...e quando mata alguém bota lá, porque o jacaré
come” (Isadora, 03/07/01).
O clima do local pode ser percebido quando andamos pelo bairro e observamos as
pichações nos muros que se referem ao Comando Vermelho - organização que comanda várias
áreas do tráfico no Rio de Janeiro. Não parece haver uma idade específica para ingressar no
tráfico e se uma criança de doze anos for esperta, ela pode entrar no ramo, situação que
possivelmente explica porque há crianças entre sete e doze anos freqüentando creches
domiciliares, em meio período.
Minha entrada no bairro para a recolha de informações esteve condicionada à mediação
de moradores; Isadora revelou que fui apresentada a alguns traficantes e que esta foi sua
primeira atitude quando lá cheguei. Como durante a entrevista ouvimos barulhos de fogos, ela
explicou que a polícia estava chegando do outro lado, e que aquela era uma operação de
rotina.
22
Cafifa é um termo utilizado pelos moradores do local para designar o brinquedo conhecido como ‘papagaio’,
que consiste em uma armação de varetas de bambu, ou de madeira leve, coberta de papel fino, e que, por meio de
uma linha, se empina, mantendo-se no ar (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1986).
42
O bairro tem formato de uma bacia, com uma parte alta e uma parte baixa. Isadora
relatou que ao mesmo tempo em que há pessoas circulando, os olheiros observam quem entra
e quem sai:
“Olheiro tem uma grande função, quer dizer, ele não pode cochilar. Pode
até morrer dependendo do que acontecer. Ele é pago por isso e tem um
bom salário, uns 500,00 reais por duas semanas... Aqui por exemplo, tem
os comandantes...se a coisa estiver feia eles passam nas creches e falam: tia, bota as crianças pra brincar dentro da sala! Eles batem no portão da
escola” (Isadora, 03/07/01).
Assim, expressões corriqueiras como ficar de olho, ficar esperto significam os códigos
dominados pelos adultos e crianças que, mesmo no lazer das rodas de pagode são obrigados a
ficar atentos, ou saber a hora de sair: a polícia mandou baixar o som. Maior falta de respeito,
com arma em punho. Eu avisei: quem quiser que fique, eu e as meninas vamos embora (Diário
de Campo, 26/06/01).
Os bailes funk também expressam as disputas entre moradores de várias favelas e num
passado recente se constituíam em um corredor de violência, representado por uma corda.
Como disse Fernando, é assim que a pregada comia, numa referência às brigas entre grupos
de moradores de locais diferentes. Esses bailes, durante os anos 90, foram alvo da imprensa,
devido à violência que os caracterizava:
“Se saísse morte, o segurança só olhando. Homem com homem e mulher
com mulher também. O nome era corredor do baile, entendeu? Aí
ficavam as pessoas, cada grupo de um lado. Tipo Saudade, a gente ficava
no lado A junto com a Fazenda dos Mineiros, Palmeiras, Caçador. No
lado B ficava o pessoal lá de fora. Tinha o Porto da Pedra, Cruz
Vermelha, Oswaldo Cruz. Vinha pessoal de longe. Vinha do Rio também,
do Morro dos Macacos, lá de Vila Isabel. Esperava eles chegar...eles
vinham de ônibus e a gente já estava do nosso lado aguardando eles.
Quando eles chegavam aí começava aquela ginga, tocava a música, ia pra
cima do outro, chutava, mas não podia um invadir o lado do outro. Briga
mesmo. Soco, chute...na hora de sair que era ruim pra eles. Porque eles
eram minoria. E na hora de sair os seguranças tinham que ficar escoltando
eles. Porque se deixasse a gente quebrava o ônibus, quebrava tudo”
(Fernando, 13/07/01).
43
É habitual no bairro Saudade a invasão domiciliar da polícia nas casas consideradas
suspeitas. A ocorrência dessas invasões parece algo naturalizado entre os moradores, pelo que
é difícil lutar. Uma outra situação de rotina são “as batidas” dos policiais nas ruas do Saudade,
o que provoca constrangimentos ou até mesmo violência da polícia com os moradores:
“Eles batem primeiro, pra depois perguntar, eles me perguntaram
batendo...Depois que eles me bateram bastante, que eles me deixaram ir
embora (...)” (Fernando, 13/07/01).
“A polícia entra aqui de arma em punho. Isso já aconteceu comigo. De ir
buscar as crianças na escola e dizerem - ‘vai pra casa’. Todo mundo é
suspeito pra eles. Eu acho um desrespeito não ter uma policial feminina
pra revistar uma mulher, um desrespeito ao ser humano, nem pode abrir a
boca. De repente leva um tabefe no meio da lata” (Denise, 13/07/01).
De outro lado, os moradores devem obedecer às regras estabelecidas pelos traficantes
que, embora ofereçam algum tipo de proteção, exigem em troca silêncio e conivência com o
tráfico:
“Eles não são contra a gente. Isto jamais. São contra se a gente fizer
alguma coisa (...) aqui não tem estuprador. Se tiver eles morrem. Outra
coisa: se vem uma pessoa de fora e quiser assaltar eles protegem. Festa do
dia das crianças eles distribuem brinquedos, fazem bom alimento, jogam
dinheiro pro alto. A única coisa em que eles erram é de vez em quando
em festas que eles fazem ali embaixo. Eles ficam junto do pessoal,
entendeu? Porque a qualquer momento a polícia pode chegar e dar tiros”
(Fernando, 13/07/01).
Estas regras são compreendidas pelos moradores, que costumam consultar os
traficantes, antes de chamar a polícia nos casos de crimes ou assalto.
Na ótica de Isadora, quando a população chama os meninos para resolver os problemas
do bairro, isto implica em aceitação das regras dos traficantes. Apesar de não concordar com a
situação, ela reconhece os limites a que todos os moradores se submetem, na medida em que é
feito um pacto de convivência no silêncio: eu não atravesso o teu caminho, e você também
44
não atravessa no meu...eu faço as minhas coisas ali, e você faz o que você quiser...não dá prá
partir pro enfrentamento, porque morre.
Quando questionada se esta convivência no silêncio significa cumplicidade entre os
moradores e os traficantes, Isadora preferiu a dúvida explicando que é, ao mesmo tempo que
pode não ser cumplicidade, pois você precisa saber como é que dança essa dança.
CAPÍTULO 2. “CRECHE, NÃO! AQUI SE TOMA CONTA DE
CRIANÇAS!” - TRAJETÓRIA E SENTIDOS DO TRABALHO PARA
DENISE
Primavera nos dentes
“Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
e no centro da própria engrenagem
inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
entre os dentes segura a primavera” (João Ricardo - João Apolinário)
Neste capítulo focalizaremos o trabalho de tomar conta de crianças realizado por
Denise na creche domiciliar. Num primeiro momento apresentamos a trajetória da vida
pessoal e profissional da tomadora de conta. A partir de seus percursos buscamos entender as
relações de trabalho e as negociações que se estabelecem no local. Caracterizamos esse
trabalho como informal e instável, clandestino e ilegal, assim como o tratamos como
domiciliar, o que é diferente de trabalho doméstico. Os acordos e concessões feitos com os
familiares das crianças incidem sobre a vida privada de Denise, o que reduz suas
possibilidades de lazer e tempo para si.
Como ela se divide entre as atividades domésticas rotineiras e os cuidados com as
crianças, ocorre o auxílio da filha e de uma vizinha, ambas adolescentes. A presença do
trabalho infanto - juvenil na creche é um dado que procuramos explorar, pois isso gera a
presença de relações de subordinação de idade - uma vez que a remuneração das jovens não
foi esclarecida - assim como a reprodução das diferenças de trabalho por gênero.
A trajetória de Denise nos ajuda a compreender como vida pessoal e trabalho estão
interligados. Os sentidos de ser mulher, mãe e trabalhadora influenciam as percepções sobre o
trabalho na creche, o que está repleto de ambigüidades. Denise optou por conciliar a
maternidade e os cuidados da casa com uma atividade que lhe proporcionasse uma renda. Ela
vive em uma família monoparental e faz parte de um fenômeno social que atualmente a
46
literatura tem denominado de feminização da pobreza. Mas ela não é apenas isto: há
significados, saberes e sentimentos acerca do seu trabalho e da sua vida que são contraditórios,
tais como o modelo de família conjugal1 que ela tem como referência, as percepções de ser
mulher e mãe como vítima, as experiências dos corpos de mulheres compreendidas como
sofrimento, limitação e dor e, ao mesmo tempo, a valorização da figura feminina.
As ambigüidades da atividade emergem quando ela constrói um raciocínio a respeito
do que faz que oscila entre ser mãe substituta, tomadora de conta, tia, professora ou psicóloga.
Os sentidos sobre a sua atividade estão envoltos em expectativas, sonhos, frustrações e tensões
que vive enquanto mulher, mãe e trabalhadora sem direitos sociais. Nesse emaranhado de
experiências percebemos um movimento de culpabilização das mães das crianças cuidadas por
ela e de culpa dela própria enquanto mãe, o que também é ocasionado pelas disputas e pela
insatisfação de quem realiza um trabalho informal, instável e clandestino. Como tomar conta
de crianças pressupõe um processo de aprendizagem, por último analisamos quais os saberes
que na perspectiva de Denise são necessários para que uma mulher tome conta de crianças.
A análise dos dados em confronto com a literatura consultada possibilitou, de certa
forma, a ruptura com uma perspectiva de análise centrada apenas na falta, na negatividade e na
pobreza da atividade. No desenvolvimento do capítulo, os sentidos e significados de tomar
conta de crianças também apontam para aspectos positivos, tais como o uso de diferentes
racionalidades e emoções adquiridas com a experiência de vida e de trabalho.
2.1 DENISE, UMA TRAJETÓRIA DE MULHER, MÃE E TOMADORA DE
CONTA DE CRIANÇAS
“A maioria vem para cá depois que cai o umbigo! Eu até falo: espera mais um
pouco, pelo menos completar um mês! Mas a mãe diz: Eu preciso trabalhar!”
(Denise, 5/12/00).
Denise é uma mulher de trinta anos, estatura mediana, corpo forte e traços marcantes
no rosto às vezes cansado, mas que sugere um jeito arrojado de enfrentar a vida. Foi esse rosto
franco que não esconde os sentimentos que permitiu que eu sempre soubesse quando ela
1
Entendemos este modelo de família conjugal ou nuclear, como uma organização familiar constituída de casal
com filhos/as.
47
estava disposta e quando seria necessário ter mais cautela durante nosso tempo de
convivência. É provavelmente esse rosto espontâneo que conquista as crianças e leva a que
algumas mães façam observações como esta: ela é uma mulher muito positiva, o que ela tem
que falar, ela fala na cara.
Em nosso primeiro encontro ela pareceu desconfiada e só aceitou me receber porque eu
estava acompanhada de outra tomadora de conta de crianças e de Isadora, diretora da creche
comunitária do bairro Saudade. Na medida em que ampliávamos nossa convivência, eu passei
a conhecer seus humores sempre nítidos no olhar, que ora brilhava, ora parecia apagar; no
sorriso aberto, ou nas poucas palavras e no rosto fechado; ou, ainda, nos gestos retraídos ou
receptivos. E nesse movimento de olhar o outro e ser olhada foi possível constatar que ela me
observava o tempo todo, ela também me estudava, o que me permite pensar que Denise é uma
mulher inteligente, perspicaz e observadora.
Sua família materna descende de índios e pelas fotos da mãe, que parece ter sido uma
figura importante na sua criação, se reconhecem os traços indígenas. O pai é branco e
descendente de alemães, mas as marcas da origem paterna estão presentes na figura do irmão,
pois Denise se parece mais com a mãe.
A memória da infância e juventude de Denise parece marcada pelas brigas freqüentes
entre seus progenitores; não raro ela fez descrições do pai como tendo um caráter violento;
recordou que uma vez agrediu sua mãe grávida da irmã menor e que continuamente batia no
seu irmão. O alcoolismo e o uso de drogas pelo irmão, bem como sua participação em
pequenos assaltos, também foram lembrados por ela:
“O que eu posso dizer sobre os meus pais é que eles viviam sempre em
conflitos. Porque eu tenho uma irmã que é caçula, que quando a minha
mãe estava grávida dela, por conflitos, desavenças, brigas conjugais o
meu pai a empurrou. E ela bateu com a barriga em uma ponta, uma tora
de pau e isto acabou afetando o crânio do bebê dentro da barriga. Tinha
uns quatro para cinco meses. Causou na criança um traumatismo craniano
pequeno, mas causou. Os meus pais brigavam muito. O meu pai sempre
foi uma pessoa muito rígida. Tanto é que o meu irmão Carlos veio a
entrar no mundo das drogas, da criminalidade, por causa disso. Ele via
mais esses conflitos. Apanhava muito. Eu e a minha irmã, não (...) meu
pai talvez por trauma. Saber que ele que causou aquele tipo de problema
(...) acabou que ele sempre deixava nós duas (...)” (Denise, 22/08/01).
48
A mãe de Denise trabalhou em serviços domésticos para ajudar no sustento da família;
seus rendimentos permitiram comprar um terreno e construir a casa na qual hoje Denise reside
com as duas filhas e toma conta de crianças. Nesse terreno também habitam, em uma casa
menor e mais velha, Carlos - irmão de Denise, sua esposa e o filho que freqüenta a creche
domiciliar. Parece haver uma disputa entre os dois irmãos e Carlos demonstrou contrariedade
pelo fato de morar no quintal da casa; durante nosso tempo de convivência, ele estava
construindo uma casa maior com dois pisos, mas as obras ficavam suspensas quando ele
estava desempregado. Atrás da casa de Denise moram um sobrinho e a esposa, ambos na faixa
dos 16/17 anos, que no ano de 2001 aguardavam o nascimento do primeiro filho.
Seguindo o mesmo percurso da mãe e para ajudar na divisão das despesas, Denise
ingressou no mundo do trabalho aos 12 anos de idade como empregada doméstica, em um
bairro nobre de Niterói. Ela trabalhava durante o dia e estudava durante a noite, permanecendo
nesse emprego até os 15 anos. Como ela necessitava trabalhar, mentiu sua idade. Foi assim
que ela iniciou a lavar, passar, cozinhar e cuidar de crianças no final da primeira infância:
“(...) o meu pai estava desempregado, o meu irmão mais velho estava
desempregado, só a minha mãe trabalhando (...) eu queria ajudar de
alguma forma, não só dentro de casa tomando conta da minha irmã e do
meu irmão (...) porque minha mãe trabalhava de segunda a segunda, três
vezes na semana em casa de família e três vezes na semana de faxina.
Então aquilo me machucava por dentro, ao ver a minha mãe trabalhar da
forma que ela trabalhava. Então eu meti a cara para trabalhar. Com isso,
nesse trabalho eu menti, omiti a minha idade e aí continuei. Só que eu
entrei prá trabalhar lá, dizendo que eu tinha 14 anos, porque a mulher
com certeza não ia aceitar uma criança de 12 anos trabalhando na casa
dela. Mas como eu sempre fui fortinha e tinha corpo, ninguém dizia que
eu tinha 12 anos de idade. Ela me deu 15 anos de idade” (Denise,
22/08/01).
Além de trabalhar em Niterói como babá e empregada doméstica, Denise ajudou a
tomar conta de um sobrinho, dos 12 aos 15 anos de idade. Segundo seu próprio relato foi essa
primeira experiência que lhe proporcionou o gosto por tomar conta de crianças, pois ela pode
acompanhar o crescimento do menino, dos zero aos três anos de idade.
49
Aos 14 anos Denise conheceu Antônio, seu ex-marido e pai das suas duas filhas: Nara,
de 13 anos, cursando a sexta série do ensino fundamental e Estela, de seis anos, freqüentando
a classe de alfabetização. Antônio tinha 33 anos quando o conheci; negro e bonito, tinha
estudado até a terceira série do ensino fundamental; quando fomos apresentados estava bem
vestido, com uma calça jeans e uma camisa azul que pareciam novas, carregava um celular no
bolso e aparentava menos de trinta anos de idade. Naquele período, estava novamente casado e
tinha um filho ainda bebê.
Antônio e Denise casaram quando ela tinha 15 anos, acontecimento que ocasionou a
interrupção dos estudos de Denise, cursando então a sexta série do ensino fundamental. O
casamento durou 12 anos, com altos e baixos decorrentes da situação econômica precária de
Antônio, que trabalhou quase sempre como autônomo.
Após o casamento, Denise saiu do emprego e durante três meses ficou cuidando da
casa. Em seguida engravidou e voltou a trabalhar como doméstica em uma outra residência,
permanecendo por mais cinco anos nesse trabalho. Nara, a primeira filha de Denise, nasceu
quando ela estava com 16 anos. Nesse período, eles moravam em um outro bairro de São
Gonçalo. Denise, o marido e a filha passaram a residir no bairro Saudade quando sua mãe
ficou doente e ela abandonou o trabalho para cuidá-la, até seu falecimento um ano e meio
após. O pai de Denise constituiu nova família após a morte da esposa. Atualmente reside em
outro bairro de São Gonçalo, com a filha mais nova do primeiro casamento, que é portadora de
necessidades especiais.
Como Antônio estava desempregado, Denise passou a tomar conta de crianças na
própria casa durante seis anos. Mesmo trabalhando com mais três ajudantes, os conflitos com
o cônjuge se acentuavam, pois ele não tolerava a fusão entre mundo doméstico e mundo do
trabalho. Apenas uma vez Antônio conseguiu trabalho estável, por um período de quatro anos.
Durante esse tempo trabalhou em uma empresa de construção civil, como encarregado de
obras. Com uma situação econômica mais estável, Denise fechou a creche por um ano e meio,
pois além de estar grávida de Estela pretendia descansar um pouco.
Mas para ela foi difícil permanecer parada e, por isto, logo retornou ao trabalho e
alugou uma casa com uma colega para tomar conta de crianças. A mudança de residência
desta vez objetivava amenizar os conflitos entre o casal:
50
“Foi aí que eu desde os 12 anos tomando conta de crianças, levando
criança no colégio, com responsabilidade de tudo, de crianças pequenas,
recém nascidas (...) Já que eu tenho jeito prá isso então eu vou fazer
alguma coisa dentro dessa casa, onde eu possa tomar conta da minha filha
e poder ganhar o dinheiro tomando conta dos filhos de outras pessoas que
necessitam trabalhar. Eu coloquei uma placa e começou a vir crianças,
aqui mesmo. Aqui eu passei seis anos na minha casa. Só que aí é aquela
coisa, quando você está sozinha dentro da sua casa, como hoje eu estou,
eu posso ter aquela possibilidade de pegar uma criança e de repente ficar
até mais tarde, da criança dormir aqui. Só que nessa época eu ainda estava
casada, aí quer dizer, já estava havendo um conflito entre o casal. Ah,
criança até tarde, porque não sei o quê, porque você não tem mais tempo
prá mim (...) E com esses conflitos que começou a arrumar entre o meu
ex - marido e eu, eu parei. Só que nessa época foi que ele ficou quatro
anos trabalhando de carteira assinada. Aí, quer dizer, nessa época ele tava
muito bem empregado, ele tava numa empresa de construção civil, como
encarregado de obras. Então falei assim: não pera aí, agora eu vou
descansar um pouco. Eu fiquei um ano e meio parada. Só que é aquela
coisa, a pessoa que já está acostumada a trabalhar não consegue ficar
parada. Lógico, realmente só se eu estiver muito cansada. Aí tudo bem,
do contrário não. Aí eu comecei a procurar lugares, eu não vou mais fazer
dentro da minha casa, porque talvez possa trazer problemas para o meu
casamento. Então o que eu fiz? Eu juntei com uma amiga chamada
Nilcéia e começamos a procurar casas aqui para alugar” (Denise,
22/08/01).
Como Nilcéia enfrentou problemas familiares decorrentes da prisão do filho e da nora,
elas fecharam a creche um ano mais tarde. Em 1999, Denise voltou a tomar conta de crianças
na própria casa. Nesse período o casal estava se separando e ela trabalhava de acompanhante
de uma mulher doente durante a noite:
“Já nessa fase eu estava separada, quer dizer, já foi bem mais difícil para
mim. Eu trabalhava na creche durante o dia, de sete da manhã a sete da
noite. E consegui arrumar um trabalho de acompanhante de 10 da noite,
até quatro e meia, cinco horas da manhã. Eu só era mesmo acompanhante.
Cinco horas da manhã a enfermeira chegava e eu vinha embora” (Denise ,
22/08/02).
51
Com o trabalho noturno a renda de Denise aumentou, mas ela não conseguiu conciliar
as duas atividades. Assim, ela optou pelo trabalho na creche domiciliar auxiliada por três
jovens: Nara, sua filha e seus vizinhos e sobrinhos de consideração2, Bia e Marcos.
No tempo de nossa convivência, Denise disse não contar com auxílio para o sustento
das duas filhas, pois Antônio estava desempregado e vivia com a família da nova esposa, de
19 anos.
Em dezembro de 2000, quando fizemos nosso contato inicial, as primeiras crianças
entravam 5:50 da manhã e as duas últimas saíam em torno de 1:30 da manhã. Algumas
crianças costumam dormir na casa de Denise, dependendo da situação de trabalho das mães
que precisam fazer hora-extra ou quando, por outras razões, elas não têm hora certa para
chegar em casa. Denise falou que atualmente não trabalha nos feriados e nos finais de semana,
embora no ano 2001 ela tenha trabalhado em alguns sábados. É pelo conhecimento da situação
de cada mãe e das suas necessidades que ela faz algumas concessões como, por exemplo,
permitir entradas e saídas na creche para que as mães possam ver as crianças ou, ainda,
combinar sobre cuidados das crianças doentes, entre outras solicitações. Esta flexibilidade,
provavelmente, foi adquirida na experiência com mulheres que enfrentam longas jornadas de
trabalho que impedem, vez por outra, um tempo mais amplo de convivência com os/as
filhos/as.
Essas concessões são permitidas porque o trabalho de Denise é instável e está sujeito a
um fluxo de entrada e saída de crianças que é irregular, pois há uma relação intrínseca com a
situação empregatícia das mães que só procuram a creche domiciliar quando estão
trabalhando. Denise necessita manter as crianças na creche para seu sustento e, também por
isto, a flexibilidade é uma característica da sua atividade.
No movimento de receber crianças novas ou perder crianças em função do vai e vem
da situação empregatícia das mães Denise pode, inclusive, fazer acertos sobre a possibilidade
de receber bebês que ainda estão por nascer. Ela narrou que toma conta de algumas crianças
desde o primeiro mês de vida e que as mães sentem confiança para entregar os bebês logo
2
Os laços de sangue nem sempre são indicadores de pertencimento à rede familiar em alguns grupos dos meios
populares. No caso deste estudo, os “sobrinhos de consideração”, que não estão ligados por laços de sangue com
a tomadora de conta, participam da rotina familiar. Este é um aspecto já investigado pela antropóloga Claudia
Fonseca (1995) e que poderíamos caracterizar como redes de parentesco que extrapolam os laços de
consangüinidade.
52
após o umbigo cair: cinco bebês que nascem a partir de maio já estão garantidos. Ainda
acrescentou que muitas vezes pede que as mães esperem até o bebê completar um mês, mas
elas insistem em deixar os recém-nascidos, porque necessitam trabalhar. Assim, Denise tomou
conta de Larissa dos 20 dias até um ano e meio; de Amanda dos 17 dias aos dois anos e meio;
e de Igor, o que chegou com menos idade, dos dez dias aos dois anos. Estas três crianças
apresentam traços similares, como a responsabilidade da família centralizada nas mães e, no
caso de Larissa, ausência dos pais, porque a mãe passou um período como presidiária e a
menina morava com os avós. Tanto Amanda quanto Igor saíram da creche porque as mães
engravidaram novamente e pararam de trabalhar.
2.2 AS RELAÇÕES DE TRABALHO E AS NEGOCIAÇÕES NA CRECHE
DOMICILIAR
Vai e vem
“Ser estrangeiro
camaleão
ilegal
no vai e vem da própria terra
vento que ora sopra aqui, ora sopra lá...
Ser estrangeiro, provisório
na casa, bairro, favela...
Sem fronteiras
ser camaleão
saber a hora de entrar
correr na hora de sair
ser ilegal, informal
na casa, bairro, favela...
casa no vai e vem
vida no vai e vem
vento que ora sopra aqui, ora sopra lá...” (Ana Cristina)
A trajetória de Denise nos ajuda a compreender quem é esta mulher que se tornou
tomadora de conta de crianças e os fatores que podem explicar os motivos que a levaram a
abrir uma creche domiciliar. Este é um caso, entre outros do bairro Saudade, que indica que a
53
origem social, as condições econômicas, a baixa escolaridade e o fato de ser mulher e mãe
responsável pelo sustento da família são dados que interferem na escolha da atividade. Por
outro lado, as experiências de cuidar crianças pequenas desde o final da primeira infância e as
ocupações domésticas também contribuíram para que Denise se tornasse uma tomadora de
conta.
Denise é uma mulher que enfrentou limitações para ocupar posições no mercado
formal de trabalho, decorrentes de sua baixa escolaridade e da ausência de formação
profissional. Isto reduziu suas possibilidades de trabalho aos serviços domésticos quando mais
jovem e ao mercado informal e à clandestinidade da creche domiciliar quando casou e se
tornou mãe. Ela sempre demonstrou estar ciente de sua situação e, vez por outra, enunciava
frases que sugerem medo de perder sua única fonte de renda e sobrevivência.
Quando ela se referiu ao trabalho das outras tomadoras de conta, informou que a
maioria entra no serviço porque é difícil encontrar um emprego com pouca escolaridade ou
com idade avançada. Tal situação se agrava quando as mulheres estão separadas, têm filhos/as
pequenos/as e não podem contar com apoio de avós ou outros familiares para trabalhar fora de
casa.
Tanto no que diz respeito à posição profissional da tomadora de conta de crianças,
como dos familiares, se pode conjecturar que estes grupos vivem no mercado informal de
trabalho, ou no trânsito entre o formal e o informal, no vai e vem de estar empregado/a ou
desempregado/a, com um salário fixo, ou vivendo de bicos, expressão recorrente entre
algumas das mulheres entrevistadas. Denise e os familiares das crianças buscam sobreviver
num contexto de reestruturação do mercado capitalista, onde há uma crescente diminuição e
precarização dos empregos. Essas pessoas formam um grupo de uma imensa população que
vive de trabalho às margens da proteção formal.
Denise está sujeita a dificuldades decorrentes da ausência de direitos trabalhistas, pois
não tem registro em carteira e não contribui para a previdência, assim como não tem uma faixa
salarial estável. Portanto, caracterizamos seu trabalho como informal, clandestino e domiciliar.
Devido às peculiaridades dessa atividade, tais características se interpenetram e, em alguns
momentos, nós as comentaremos conjuntamente.
54
2.2.1 Informalidade e instabilidade de renda: quais acordos e negociações?
Do ponto de vista do direito do trabalho3, essa é uma atividade sem registro e sem
vínculo com o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social - e, por isto, informal. Embora o
direito do trabalho classifique e defina o que é trabalho informal, na legislação não há
qualquer tipo de garantias ou direitos para os trabalhadores informais. Denise não está
amparada por nenhuma proteção legal, o que nos permite enquadrá-la em uma atividade que
está fora da lei, pois não possuí vínculos com os deveres da legislação e não é protegida por
direitos.
Algumas pessoas, como as que fabricam e vendem comidas, doces ou roupas em casa,
são autônomas, isto é, trabalham de forma independente e sem relação de emprego formal,
mas contribuem com o INSS na categoria de contribuintes individuais. Este não é o caso de
Denise, que não se enquadra no que a legislação do trabalho reconhece como trabalho
autônomo.
De forma geral, os termos trabalho informal, trabalho ilegal ou clandestino são
encontrados na literatura, para definir um tipo de trabalho que se caracteriza pela ausência de
proteções sociais. Interessa-nos apresentar alguns comentários de Chinelli & Durão (1999);
Potengy & Paiva, (1999) e Mozère, (1997) que estudam as novas relações de trabalho e as
redes de informalidade, porque Denise vive em um contexto marcado por estas novas relações
que produzem modificações nas vidas das pessoas, afetando a organização do tempo e dos
espaços familiares.
Como escrevem Chinelli & Durão (1999) estamos diante de uma nova ética social e
isto produz antagonismos, divergências e opiniões diversas no âmbito da informalidade.
Surgem novas formas de emprego, de trabalho autônomo e novas formas de figuras
profissionais que se encontram entre o trabalho dependente e as mais diversas alternativas de
inserção informal. Estas autoras ainda ressaltam, como temos observado em outros textos
3
Encontramos referências para fazer tais afirmações em MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 13 ed.
São Paulo: Atlas, 2001 e CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho. Legislação
complementar jurisprudência atualizada e ampliada. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
55
sobre o tema do trabalho informal, que as pessoas se tornam camaleões, numa aventura
permanente que mistura os acontecimentos profissionais e os da vida cotidiana.
De acordo com Potengy & Paiva (1999) essas transformações, que repercutem nos
modos e estilos de vida, obviamente têm reflexos no marketing e nas técnicas virtuais, hoje
também presentes no espaço privado. As placas discretas que anunciam os serviços de tomar
conta de crianças, a propaganda “de boca” que consiste em transmitir informações, que se
deslocam entre a vizinhança, sobre a eficiência do trabalho ou sobre os serviços das
concorrentes e negociações de preços mais ou menos equiparados, contribuem para a
formação de um tipo de mercado informal, privado, criado e ajustado pelas mulheres que
oferecem esses serviços no bairro e pelas mulheres que os procuram.
Mozère4 (1997), focaliza o trabalho informal a partir de estudos de diversos autores:
Amselle (1980); Castells, Benton & Portes (1989, 1994); Donzelot (1994); Laé (1993); Lautier
(1994); Morice (1996); Pichon (1995); Sassen (1989, 1991, 1996); Tarrius (1996), entre
outros. Apesar de escrever sobre o trabalho informal no contexto francês, ela estabelece
relações com outros países desenvolvidos e do Terceiro Mundo, incluindo o Brasil.
Estar na informalidade é se “fazer camaleão, se esconder, conhecer os lugares e as
redes, saber o momento certo de se unir ao território, mas também saber se desligar quando for
preciso” (Tarrius5 apud Mozère, 1997).
Conforme escreve Mozère (1997), na França a origem da noção de informalidade está
vinculada com a crise do petróleo da década de 70 e com a crise do Estado Providência, a
partir de 1968. Estes acontecimentos contribuíram para desencadear o desenvolvimento das
atividades informais, através da mobilização de solidariedades locais ou familiares e recursos
a formas de trabalho que não contam com benefícios de proteção social. No Terceiro Mundo,
o setor informal cresceu - o que não significa que não tenha existido em períodos anteriores principalmente a partir da expansão urbana resultante do êxodo rural e das conseqüências da
monocultura, por meio de atividades que permitem às populações urbanas periféricas
sobreviver.
4
MOZÈRE, Liane. Informalitès sans protection. Une lecture de travaux relatifs à l’économie informelle. Centre
d’études, de recherches et de formations institutionnelles du Sud-est, 1997. Mimeografado.
5
TARRIUS, A. Fin de siècle incertaine à Perpignan. Drogues, pauvreté, communautés d’étrangers, jeunes sans
emplois et renouveau des civilités dans une ville moyenne française. Université Toulouse: 1996.
56
Diversos autores citados no texto de Mozère, não compreendem a economia formal e a
informal como espaços distintos ou fechados; argumentam, por exemplo, “que a maior parte
das empresas opera ao mesmo tempo na economia formal e na informal” ou que “a ordem
pode criar a desordem e a economia formal pode engendrar a informalidade” (Castells e
Portes6 apud Mozère, 1997).
Mesmo que este trânsito entre a economia formal e informal não atinja diretamente a
tomadora de conta, as pessoas com as quais ela convive ou faz acordos se encontram nesta
situação. Este é o caso de seu ex-cônjuge, que oscila no vai e vem dos serviços formais e
informais, situação que também caracteriza os familiares do sexo masculino das crianças. Ao
fazer referência sobre a situação empregatícia do ex-cônjuge, Denise relatou que: Eu posso te
dizer quais foram os trabalhos de carteira assinada que o meu ex-marido teve. Quem
sustentou praticamente a casa, em tudo fui sempre eu.
Nossa opção é pelo tratamento dessa atividade como trabalho informal, porque
destituído dos direitos do trabalho. Embora a informalidade desse trabalho, que não é
reconhecido e legalizado pelos órgãos públicos, engendre a clandestinidade, a tomadora de
conta estabelece, de certa forma, um contrato com os familiares das crianças e tem seu serviço
reconhecido e legitimado pelos grupos que dele usufruem.
Denise faz acordos com os familiares das crianças e, mesmo que estes se fundamentem
na palavra, tanto quem oferece como quem procura os serviços está ciente dos seus direitos e
deveres.
Já no primeiro contato com as mães ela esclarece sobre horários, preços, atividades e
responsabilidades que assume e mostra as dependências da casa. O café da manhã, o almoço e
o jantar são fornecidos por ela, mas as mães devem contribuir semanalmente com biscoitos,
frutas, iogurtes ou outros alimentos que as crianças estão acostumadas a comer fora das três
refeições. Os biscoitos, frutas e iogurtes são divididos entre todas as crianças, conforme
Denise declarou: Então na segunda eu dou o do Daniel. Na terça eu ponho o da Jane e dou
para todos. Na quarta eu dou o do outro que trouxe. Quando vai chegando o final de semana,
que já tem um pouco de cada, eu boto tudo na vasilha, misturo e dou para eles.
6
CASTELLS M, PORTES A. Benton. The informal economy. Studies in advanced and less developped
countries. London: The John Hopkins University Press, 1989.
57
As mães das crianças menores de um ano devem levar fraldas descartáveis e uma roupa
para as trocas do final do dia, além do leite ou farinha para o preparo das mamadeiras. Denise
cobra uma taxa de 60,00 reais para cada criança de zero a seis anos que permanece na creche,
de segunda-feira a sexta-feira, ou nos finais de semana e feriados quando necessário7.
O único documento exigido das mães no estabelecimento do acordo é o xerox da
certidão de nascimento. Este procedimento se justifica porque Denise costuma acompanhar as
crianças ao Pronto Socorro ou Posto de Saúde: Eu vou ter todos os dados da criança. Não vou
precisar estar levando caderno ou nada escrito.
Esse contrato com os familiares, de certa forma, legitima os serviços de tomar conta de
crianças. Mas tal relação não exclui a instabilidade e incerteza, no que diz respeito à tomadora
de conta manter sua família e pagar suas despesas, pois há uma dependência da situação de
emprego/desemprego dos familiares das crianças.
Em dezembro de 2000, Denise mantinha na creche 17 crianças de dois a nove anos de
idade; no final de agosto de 2001, contava com apenas cinco crianças. Dois tipos de
explicações foram utilizados para justificar a perda das crianças. O primeiro diz respeito às
mães das crianças, visto que algumas entraram em licença maternidade por motivo de
gravidez, outras interromperam o trabalho quando os cônjuges conseguiram emprego no
mercado formal e outras perderam seus empregos. O segundo relaciona-se às dificuldades
enfrentadas por Denise no trabalho com as crianças maiores de seis anos. Do início do ano
2001 até o final de agosto, Denise havia perdido em torno de sete crianças e ela
constantemente expressava seus obstáculos para manter as despesas da casa. Reclamava,
também, dos atrasos no recebimento das taxas cobradas dos familiares, embora não tenha
relatado nenhum caso de suspensão dos pagamentos.
No final de agosto, quando Denise havia perdido algumas crianças, Nara relatou as
dificuldades que elas enfrentavam, decorrentes da redução das mensalidades:
“Não ficou muito ruim, mas também não está boa. Mas dá para segurar,
sim. Minha mãe com tudo, mas dá para segurar, sim. Às vezes eu peço
um dinheirinho e ela: Ah, Nara, não dá... A mãe está trabalhando e ainda
7
No capítulo posterior, veremos como as taxas variam segundo a situação de cada família. No ano 2000, Denise
informou que cobrava 50,00 reais de cada criança e ela aumentou os valores em 2001 para 60,00 reais.
58
tem que pagar as contas. Então tá bom, eu espero. Se ela tiver um
dinheirinho direitinho, aí eu nem peço. Ela mesma me dá. Nara, o que
você pediu naquele dia, hoje eu posso te dar. Eu digo: não, não precisa. E
ela: não, Nara, agora eu quero te dar, pode pegar” (Nara, 23/08/01).
Quando trabalhava com 17 alunos a renda mensal bruta de Denise, sem descontar o
pagamento dos ajudantes era em torno de 850,00 reais. A renda de Denise até o final do
primeiro semestre de 2001 era em torno de 420,00 reais e em agosto, com a perda de três
crianças, passou a receber aproximadamente 240,00 reais. Além da diminuição da renda, ela
também convivia com atrasos de pagamentos dos familiares.
Porém, mesmo que Denise negocie e faça acordos com os familiares das crianças,
quando não ocorre um entendimento entre as partes ela pode romper o contrato. No relato a
seguir percebemos sua opção pela suspensão dos acordos com os familiares:
“Já essas crianças, a dificuldade que eu entreguei essas crianças aos pais
foi essa: de que as minhas filhas nunca me responderam: Ah, vai tomar
naquele lugar, você não me manda, você não é minha mãe, eu não quero
fazer, eu não sou obrigado a tomar banho, eu não sou obrigado a escovar
os dentes. E eu falei: realmente você não é obrigado, mas a partir do
momento que você está aqui, você tem que escovar como todo mundo
está escovando (...) foi por isto que eu parei com estas crianças maiores.
Crianças dos sete anos em diante, eu não pego. Muito difícil lidar com
esta faixa de idade. Então fica difícil de você lidar com aquilo, se em casa
já não sabem lidar” (Denise, 22/08/2001).
Quando ela se viu diante de limitações para trabalhar com as crianças maiores, não
hesitou em suspender o atendimento aos maiores de seis anos. Denise associou a resistência
das crianças com o desinteresse dos familiares, que não souberam colaborar e garantir a
obediência dos/as filhos/as dentro da creche, aspecto que exploraremos posteriormente.
2.2.2 Clandestinidade e ilegalidade do trabalho
Do ponto de vista da legislação do trabalho, não poderíamos classificar o trabalho de
Denise como clandestino e ilegal, visto que não encontramos referências no direito do trabalho
59
ao trabalho clandestino, uma vez que é considerado ilícito e abrange atividades como
contrabando ou tráfico de drogas, que pertencem ao campo do Direito Penal. O mesmo ocorre
com o trabalho ilegal, que inclui o trabalho escravo, sem salário mínimo, por exemplo. Como
Denise não faz nada ilícito, ou contra a lei o que não quer dizer fora da lei8 conforme
esclarecemos no item anterior torna-se necessário justificar nossa opção.
Quando caracterizamos o trabalho de Denise como clandestino e ilegal, nós o fazemos
tomando como referência de análise a Nova LDB 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Para Oliveira a Nova LDB:
“aponta uma melhor definição de níveis de responsabilidade em relação à
regulamentação da educação infantil dentro dos sistemas de ensino
federal, estaduais e municipais, e também no que se refere à autorização e
credenciamento, supervisão e avaliação institucional” (2002, p.81).
No município de São Gonçalo, creches domiciliares como a de Denise não contam com
qualquer tipo de regulamentação, autorização e credenciamento para funcionamento, ou
supervisão dos órgãos competentes.
Para a autora (Oliveira, 2002), incluir a creche9 no sistema de ensino significa elaborar
uma proposta pedagógica e atender critérios pedagógicos de desenvolvimento de
competências pelas crianças, além de outros requisitos que uma instituição para crianças deve
apresentar, como ambiente limpo, saudável, organizado e com cuidados físicos observados.
Um outro aspecto destacado na Nova LDB diz respeito à valorização dos profissionais de
educação. A creche deve ser dirigida por um adulto habilitado na área da educação, podendo
este contar com profissionais de outras formações. O trabalho junto às crianças na creche deve
ser exercido por professor com formação mínima de curso normal em nível superior.
Como este não é um trabalho legalizado, Denise vive uma situação de clandestinidade
frente à sociedade como um todo. Ainda que o serviço seja reconhecido no bairro e procurado
8
No item anterior classificamos este tipo de trabalho como fora da lei, uma vez que não é amparado pelo direito
do trabalho e a trabalhadora não tem deveres a cumprir perante a lei.
9
Segundo a Nova LDB a educação infantil se divide em creches (crianças de zero a três anos) e pré – escolas
(crianças de quatro a seis anos), pelo critério exclusivo da faixa etária. As creches são compreendidas como
espaços que envolvem o cuidado e educação das crianças pequenas. Logo, elas não se limitam a guardar,
60
pelos moradores, tanto a tomadora de conta como os familiares das crianças parecem
compreender que é um trabalho situado na clandestinidade, o que provoca situações
inusitadas, quando outras pessoas visitam o local. Uma destas situações foi objeto de nota de
diário de campo, quando decidi passar um final de semana na creche, com a intenção de
observar a entrada das crianças e familiares no primeiro dia útil da semana:
“Após 17h30 chegaram duas pessoas que ficaram me observando. Um pai
que ficou do lado de fora esperando Denise e que trouxe alguns peixes
para a creche e uma vizinha que sentou na sala enquanto Denise tomava
banho. Ela começou contando sobre a sua vida (trabalha em casa de
família e tem três filhos) e devagar foi perguntando sobre minha entrada
na creche. Às 18:30hs entram Fernando, um adolescente, e Daniel,
sobrinho de Denise que hoje está de aniversário. Num dado momento
Estela diz: “mãe, o pai ligou dizendo que amanhã ele vem aqui”. Denise
retorna dizendo que foi chamada pela avó de Fernando e por outros
vizinhos que gostam dela, pois ela reside no local desde que nasceu.
Segundo informou, eles se preocuparam com a minha chegada porque
tempos atrás o ex-marido esteve aqui ameaçando de lhe tirar as duas
filhas. Os vizinhos pensaram que sou assistente social encarregada de
levar as meninas.” (Diário de Campo, 17/06/2001)
Estas anotações de campo, embora sugiram que os pais e vizinhos estivessem
preocupados com as filhas de Denise, também demonstram o receio de que pessoas de fora do
bairro possam cancelar o funcionamento da creche domiciliar. Isto foi evidenciado nos
depoimentos da tomadora de conta, que abordou questões como a legalização da creche e fez
distinções entre creche e local de tomar conta de crianças, devido à clandestinidade.
Provavelmente por entender que creche é um espaço educativo com regulamentos e
normas e que, por isto, não é qualquer pessoa que pode abrir uma creche, Denise relatou sua
intenção de concluir os estudos, pois compreende que a legalização de seu trabalho depende
de uma qualificação com nível universitário. Ela também forneceu indícios de que reconhece a
situação de clandestinidade da sua atividade, pois tem receio de usar a designação creche, que
sugere uma instituição credenciada: Era mais coisa de fundo de quintal como chegaram a
dizer, coisa de fundo de quintal(...).
proteger, assistir ou tomar conta de crianças. Embora o artigo 4º trate do atendimento gratuito em creches e pré -
61
Nesse sentido, ela explicou que se colocar a palavra creche na placa, os familiares que
procuram os serviços sabem que a palavra sugere credenciamento, ao passo que o anúncio
toma-se conta de crianças indica que há uma pessoa que se habilita a tomar conta de crianças,
mas que não tem formação e credenciamento para tal atividade:
“Por isto que eu te falei que aqui não é de hábito falar creche, nem creche
domiciliar. É mais toma-se conta de crianças. Creche é mais lá para fora,
que você já vê creche, tudo direitinho, aqui não. Aqui você pode ver em
qualquer lugar sempre tem: toma-se conta de crianças. Essa que é a
diferença, quando vê creche é porque realmente a mãe vai entrar e vai ver
que tem lá a plaquinha, tudo direitinho, que está tudo legalizado. Já essa
coisa de toma-se conta de crianças, é uma pessoa que se habilita a tomar
conta daquela criança” (Denise, 22/08/01).
Isadora também observou que a maioria das mulheres que tomam conta de crianças no
bairro não aceita a denominação “creche”. O credenciamento do trabalho está associado, para
Denise, a uma formação específica, um curso universitário que habilite a lidar com crianças e
que promova o reconhecimento, valorização e legalização da sua atividade:
“Por exemplo, eu voltei a estudar porque? Ficou um sonho lá atrás. De
exercer a pedagogia. De lidar com crianças. Eu voltei a estudar, porque eu
quero saber mais sobre a criança e o que eu já tenho de experiência, juntar
com isso e colocar mais a frente. Eu não quero ser somente uma tomadora
de conta de crianças. Eu quero ter a minha própria creche credenciada. Eu
não posso realizar com uma sexta série simplesmente. Eu tenho que ter o
ensino fundamental, o ensino médio, eu tenho que ter uma faculdade. Eu
voltei a estudar por um sonho que ficou lá atrás. E que eu já falei, não
importa o tempo que vai durar, dez, doze, treze anos. Mas esse sonho vai
ser realizado” (Denise, 22/08/01).
A análise de Denise, embora possa estar carregada de certo receio com relação a minha
presença no seu espaço de trabalho, por outro lado sugere que ela reconhece a posição que
ocupa no mercado de trabalho, posição limitada pela clandestinidade.
escolas às crianças de zero a seis anos de idade, a lei não prevê a obrigatoriedade do atendimento.
62
Denise afirmou em diversas ocasiões que voltou a estudar porque pretende legalizar
seu espaço de trabalho, ou ocupar uma profissão de melhor prestígio social. Após 15 anos de
interrupção dos estudos, ela estava concluindo a sexta série do ensino fundamental no período
noturno. Assim, as atividades escolares e os comentários sobre a vida escolar faziam parte do
cotidiano da creche domiciliar:
"Hoje quando cheguei na casa de Denise ela estava no quarto e enquanto
as crianças dormiam, ela estudava com Nara e Bia. Ela parece cansada
das provas e pede que eu vá até a cozinha e observe as anotações das
provas da semana que vem na geladeira. Eu observo que ela está
realmente com a semana ocupada de provas e trabalho, assim como
constato que a sua letra é bonita e que ela escreve bem quando leio, por
exemplo, suas redações. Ela e a filha estudam no quarto, enquanto os
meninos dormem, pois Estela e Jane estudam em uma classe pré-escolar
no período da tarde” (Diário de Campo, 20/06/01).
As conversas sobre notas, provas e avaliações escolares eram freqüentemente o assunto
principal enquanto as crianças dormiam no período da tarde, bem como as aprovações e
elogios dos/as professores/as eram motivo de orgulho para Denise, sua filha e Bia.
Pelo menos nos discursos, Denise parece compreender que seu trabalho é uma forma
de sobrevivência e de permanência em casa com as filhas, caracterizando uma ocupação
passageira. Seu desejo é abrir uma escola, assim como ela espera que suas filhas não tenham
um destino semelhante ao seu:
"Eu não quero que elas fiquem tomando conta de crianças toda a vida, ou
que fiquem no fogão da patroa, não. Eu não quero saber se elas serão uma
micro-empresária, uma pedagoga, advogada, mas alguma coisa elas vão
ser. ‘E contando sobre as conversas com as filhas acrescentou’: Eu não
vou deixar que vocês fiquem da maneira como a sua mãe está. De ter
parado quinze anos de estudar e agora com 30 anos na cara, voltar a
estudar para pelo menos buscar um pouco do futuro que eu deixei lá atrás.
Eu vou lutar. Eu posso levantar as mãos para o céu e dar graças a Deus.
Eu trabalho e me esforço para pelo menos tentar dar o melhor para elas,
para que elas não venham a passar o que eu passei" (Denise, 22/08/01).
63
O aspecto do prestígio social também nos ajuda a compreender porque para ela é mais
importante ser tomadora de conta do que trabalhar como empregada doméstica ou babá. É
provavelmente por isto que ela se define como mais do que tomadora de conta, ainda que
contraditoriamente revele gostar do papel de mãe substituta, como veremos mais adiante.
2.2.3 Trabalho no domicílio, flexibilidade de horários e redução do tempo de lazer
No caso de Denise é necessário estabelecer uma diferenciação entre trabalho doméstico
e trabalho domiciliar. O trabalho doméstico, ainda pouco investigado no Brasil, ocupa,
segundo o estudo de Santos (2001, p. 132), uma posição importante na economia brasileira,
pois uma parcela significativa da população brasileira está concentrada nos serviços
domésticos. Denise executa um trabalho domiciliar, embora tenha passado por empregos
como o de babá ou empregada doméstica a partir dos 12 anos de idade.
O trabalho doméstico enquadra-se nas atividades formais que abrangem uma ampla
categoria como empregada doméstica, babá, caseiro ou motorista. Esta categoria de
empregados/as trabalha para uma família e mantém uma relação de emprego, de subordinação
e de hierarquia. Atualmente Denise trabalha dentro da própria casa, mas sendo este um
trabalho totalmente desvinculado das instituições da lei, não podemos classificá-lo como
doméstico.
Potengy & Paiva (1999, p. 116-117) distinguem dois enfoques referentes aos estudos
sobre o trabalho a domicílio no Brasil. O primeiro analisa os trabalhadores/as a partir de uma
referência marxista e o segundo enfoque constrói seu objeto a partir da autonomia do
trabalhador, de um trabalho realizado por conta própria e não mediado por um contrato
empresarial, como é o caso de Denise, ainda que ela não seja uma trabalhadora autônoma. Os
estudos sobre o trabalhador por conta própria, autônomo e sem vínculo empregatício são
escassos e as pesquisadoras destacam, por exemplo, a definição de uma outra autora
(Cacciamali10 apud Potengy e Paiva, 1999, p. 117) sobre estes/as profissionais a partir de
alguns critérios como: “a propriedade dos instrumentos de trabalho, o conhecimento e o
controle do processo de trabalho, o emprego da mão-de-obra familiar, o uso do capital advindo
10
CACCIAMALI, M.C. Setor informal e formas de participação na produção. São Paulo: Editora IPE, 1983.
64
da venda dos serviços ou mercadorias para consumo individual, familiar ou para a manutenção
da atividade econômica”.
Embora esta discussão seja muito ampla é importante ter em conta que este trabalho
que se situa no domicílio da tomadora de conta apresenta alguns critérios levantados pelas
autoras, entre eles o emprego da mão-de-obra familiar. As creches domiciliares assemelhamse a micro-empresas familiares, que empregam parentes ligados pela consangüinidade, ou
vizinhos pertencentes às redes de parentesco, nem sempre vinculados aos laços de sangue.
Para Denise seu trabalho lhe proporciona algumas vantagens, e ela reconhece que não
conseguiria uma ocupação melhor considerando seu grau de escolaridade. Em algumas
situações ela disse que vê vantagens em ser seu próprio patrão e, mesmo em meio a uma
extensa jornada de trabalho, o seu cotidiano, de certa forma, apresenta uma autonomia relativa
de trabalho.
O trabalho realizado dentro de casa e em contato com as filhas é o que proporciona que
Denise se sinta mais livre. Por outro lado, esta autonomia é relativa, porque ela organiza seu
trabalho em função das expectativas dos familiares das crianças. Se não considerasse as
necessidades dos familiares, provavelmente não estaria trabalhando como tomadora de conta
de crianças, e tampouco conseguiria sobreviver.
O trabalho domiciliar acontece junto às atividades e rotinas da casa, mas também é
trabalho social e econômico, porque pressupõe acordos, pagamentos e rotinas que envolvem
entrada, permanência e saída de crianças que não fazem parte do universo familiar da
tomadora de conta.
Dentro dos acordos estabelecidos ocorre uma flexibilidade de horários e concessões
que evidenciam a necessidade de Denise de manter um número suficiente de crianças para
sobreviver e preservar sua fonte de renda. Tais concessões, porém, limitam sua vida privada e,
mesmo que ela tenha preferido trabalhar na própria casa e ser seu próprio patrão, não dispõe
de um tempo para si dentro da própria moradia.
O que consideramos problemático é que Denise não dispõe de tempo para o lazer ou
para o exercício de outras atividades sociais e culturais. Quando encontra tempo para o lazer,
isto geralmente acontece na companhia das filhas. Ela se definiu como uma mulher religiosa
que pertence à Igreja Universal. Vários objetos como quadros, bíblias, fitas cassetes e discos
que encontramos na sua casa são de conteúdo religioso. Comumente rezava com as crianças
65
antes das refeições mas, quando questionada sobre a freqüência à igreja, explicou que não
dispõe de tempo, nem mesmo para as atividades religiosas.
Segundo Denise relatou, a programação das mulheres do local pode envolver, vez por
outra, uma visita a um bar para beber com as amigas, mas o comportamento mais típico é o de
freqüentar a igreja com os/as filhos/as, assistir jogos de futebol ou campeonatos de cafifa,
visitar familiares ou freqüentar pagodes nos finais de semana:
“Diversão aqui para homem, acho que é mais o futebol...tem futebol à
noite, tem futebol sexta, sábado e domingo direto. Para as meninas e
mulheres praticamente não tem nada. Domingo eu fui no festival de cafifa
no Mafra. Eu fiquei com a Estela brincando no parquinho de escorrego,
balanço, um negócio lá que roda e as meninas ficaram vendo os amigos
dela no pagode. Esse foi o meu divertimento. No sábado tem o futebol
das meninas, eu vou. Acabo me divertindo, acabo jogando futebol
também. Acabo fazendo uma atividade física que eu quase não tenho
tempo de fazer durante a semana. Não tem muito divertimento aqui nesse
lugar, não” (Denise, 22/08/01).
O trabalho das mulheres vinculado ao cuidado dos outros é um tipo de trabalho que por
ser repetitivo, também supõe que as mulheres que o executam coloquem as necessidades dos
outros acima das suas próprias necessidades tornando o “tempo para si” cada vez mais curto.
Tempo de trabalho e tempo de viver (Chinelli e Durão, 1999) estão amalgamados entre
si e isto produz sentidos, significados culturais e corporais diversos, subjetividades e modos de
percepção de ser e estar no mundo pelas figuras femininas. Os homens do bairro Saudade
circulam mais pelas ruas e não se limitam aos vínculos com a casa e família. Provavelmente
seja esperado de mulheres como Denise que elas cumpram os papéis de mãe, esposa e mulher.
Para Denise, as dificuldades econômicas impedem que viva outras experiências além
do trabalho e das responsabilidades da casa e criação das filhas: Aqui se vive com muita
dificuldade(...). Quem mora de aluguel é pagar aluguel e viver. Comer e se vestir, pouco.
Para quem não paga aluguel é praticamente comer, beber, vestir e se calçar.
Nesse sentido, não podemos ignorar o lado mais perverso desta atividade, “como a
precarização das relações de trabalho e seus rebatimentos na perda de status e na subjetividade
66
dos trabalhadores; a redução dos salários e dos benefícios sociais (...)” (Chinelli e Durão,
1999).
2.3 O EMPREGO DE MÃO-DE-OBRA JUVENIL NA CRECHE DOMICILIAR
Retrato
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas,
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face”? (Cecília Meireles)
Como na creche de Denise ocorre a presença do trabalho infanto-juvenil, neste item
analisaremos como se estrutura esse trabalho principalmente do ponto de vista das ajudantes,
Bia e Nara11. Estas meninas realizam um trabalho que é domiciliar: No caso específico do
11
Nara, a filha mais velha de Denise, em 2001 estava com 13 anos e estudava pela manhã em uma escola pública,
cursando a sexta série do ensino fundamental. Nara é uma menina alegre que recebe alguns amigos em casa. Ela
está sempre acompanhada de Bia e ambas jogam futebol feminino. Além do futebol também gosta de dançar e
cantar. Muito carinhosa com todas as crianças, ela também revelou seu sentimento de ciúmes com relação à
dedicação da sua mãe para com os filhos de outras mulheres. Freqüentemente manifestava seu descontentamento
com o comportamento do pai, que visitava as filhas com menor assiduidade após o segundo casamento. Bia, a
vizinha de Denise, era considerada como uma “sobrinha” e freqüentava a casa todos os dias, inclusive nos finais
de semana. Ela ajudava na creche desde o ano de 2000 e foi apresentada a Nara por amigos. No ano de 2001,
estudava na oitava série do ensino fundamental no período noturno. Com 15 anos, comentou que já tinha vida
sexual e que uma ou duas vezes pensou que estava grávida. Bia tinha um comportamento mais arredio e
desconfiado com relação a minha presença na creche. Bia é albina e tem sérios problemas de visão, embora não
use óculos. Algumas vezes conversamos sobre o seu problema e ela disse que estava esperando que seu pai a
levasse ao médico. Ela disse não gostar do Saudade e das pessoas, porque é um fim de mundo. Provavelmente
pela influência musical, relatou que seu sonho é morar na Bahia. Ela assiste TV, ouve música, mas critica
algumas como a do “Tigrão”. Cuida e zela pelas crianças, mas não se envolve inteiramente nas atividades. Na
época lia poesias e um dia estava com um livro de Ferreira Gullar emprestado por sua irmã mais velha.
67
trabalho domiciliar infanto-juvenil escrevem Sarmento, Bandeira & Dores (2000)12 que este é
produzido em resposta a um estímulo de contratação, a qual pode ser explícita ou implícita e
exterior à dinâmica familiar.
De acordo com os autores esse é um trabalho efetuado em casa, mas não é trabalho de
casa ou trabalho doméstico. O trabalho doméstico é instituído no interior das relações
familiares. O trabalho domiciliar é realizado por crianças e jovens em contexto doméstico por
conta de outra pessoa, geralmente um adulto. Os autores escrevem que o trabalho domiciliar
infanto-juvenil é clandestino, porque nele se mobilizam seres humanos com menos de 16 anos.
Como este tipo de trabalho ocorre quase sempre no contexto da casa, aparece dissimulado
como trabalho doméstico, ou como realização de atos de convivência e relação entre pessoas
vinculadas entre si por laços de sangue.
Quando iniciamos os contatos com a creche de Denise em dezembro de 2000, ela
contava com a ajuda de Nara, de Bia, e de Marcos, um outro vizinho jovem que levava e
buscava as crianças maiores de seis anos na escola13. Este ajudante não participava das
atividades que ocorriam no interior da creche, em situação diferente das meninas. Naquele
período Denise tomava conta de 17 crianças e Nara com 12 anos e Bia com 14 trabalhavam
pela manhã e estudavam à tarde. Em sua primeira entrevista ela descreveu a filha como seu
braço direito, pois a menina recebia as crianças no primeiro horário da manhã, além de ajudar
em outras atividades. Denise ainda informou que não pretendia trabalhar com outras colegas,
porque sua filha e Bia faziam o serviço de forma satisfatória e não brigavam com as crianças.
A respeito do pagamento das meninas e do menino, ela disse que a filha não recebia
salário, mas tem tudo que quer, eu que compro. Sobre a situação de Bia explicou que ela não
ganha nada, mas também ela come muito (risos). Quanto ao menino que levava e buscava as
crianças na escola, informou que ele recebia 10,00 reais mensais por cada criança.
No ano de 2001, Denise suspendeu o atendimento para crianças maiores de seis anos e
somente Nara e Bia trabalhavam na creche. Durante a pesquisa de campo não ficou claro se as
meninas recebiam uma remuneração mensal pelo trabalho realizado na creche.
12
Os autores portugueses denominam este tipo de trabalho de domiciliário infantil, mas considerando a realidade
da creche domiciliar e as variações da língua nós optamos pela denominação de trabalho domiciliar infantojuvenil.
13
Em nosso primeiro encontro, Denise ainda trabalhava com crianças acima dos seis anos de idade que
freqüentavam a escola fundamental em meio período e permaneciam na creche nos períodos subseqüentes.
68
Denise relatou experiências anteriores com creches domiciliares, nas quais trabalhava
com outras jovens; havia uma diferenciação entre a forma de pagamento estabelecida com
estas ajudantes e o tipo de contrato com Bia e Nara, que parecia não incluir um pagamento
mensal:
“Já teve outra menina aqui, a tia Claudia, mas não deu para ela ficar
comigo maior tempo porque a mãe dela veio também a ficar doente e é só
ela de menina. Ela é a única menina da família. Então cabe a ela ver o
lado da mãe. Também trabalhei com duas ajudantes que não ficaram nem
dois meses. O maior tempo que uma passou aqui foi de seis meses. Ela
saiu porque engravidou. Ela trabalhou em outra creche com 13 anos. Com
14 para 15 anos, ela estava aqui comigo e engravidou (...)” (Denise,
22/08/01).
Nos anos anteriores ela pagava suas ajudantes, provavelmente porque o número de
crianças era maior e também porque ela não tinha relação de parentesco com estas jovens: Era
por mês. A que trabalhou aqui seis meses recebia 100,00 e as outras duas recebiam 80,00.
Era por boca mesmo (sem carteira de trabalho).
Em 2001 ela mencionou algumas vezes que pagava uma quantia para Bia, mas o valor
exato não foi esclarecido. Bia também não soube explicar durante sua entrevista qual o valor
do pagamento pelos serviços prestados na creche14:
“Entrevistadora: Aqui na Denise tu recebes algum pagamento?
Bia: Quando eu ajudo, sim...o salário que é de 80,00.
Entrevistadora: Tu recebes 80,00?
Bia: Sim, 80,00 por mês.” (Bia, 21/08/01)
Aparentemente, o depoimento de Bia indica que ela recebe um pagamento mensal; em
2000, porém, Denise informou que ela recebia alimentação em troca do trabalho realizado.
14
Nossa opção de apresentação dos depoimentos das entrevistas não inclui os diálogos entre entrevistadora e
entrevistados. Mas nos casos de Bia e Nara optamos por esta apresentação, porque seus relatos apresentam
controvérsias decorrentes da situação instável do pagamento das ajudantes.
69
Bia, porém, declarou, em sua entrevista de 2001, contraditoriamente, que estava trabalhando
há apenas três meses:
“Entrevistadora: Quando tu começastes a ajudar aqui na creche?
Bia: Há três meses atrás. Que agora eu não estou mais, porque não tem
muita criança. Agora quando vem muita criança, aí ela precisa dos meus
trabalhos.
Entrevistadora: Então tu ajudas há três meses?
Bia: Três meses atrás. Mais ou menos três ou dois meses atrás.
Entrevistadora: Agora tu não tens ajudado?
Bia: Não, eu venho porque ela é minha amiga. Eu não posso ficar sem vir
aqui um dia (risos).
Entrevistadora: Quando tu ajudavas na creche, o que tu gostavas de fazer
e o que tu não gostavas de fazer?
Bia: Eu gostava de dar comida para as crianças. Botar elas pra tomar
banho, botar a roupa nelas...e o que eu não gostava de fazer? Trocar
fraldas” (Bia, 21/08/01).
O depoimento de Bia é contraditório porque ao mesmo tempo que ela afirma ser amiga
de Denise, suas descrições das atividades confirmam o trabalho efetivo com as crianças. No
período em que permanecemos na creche, não encontramos evidências de que ela aparecesse
por lá somente para visitar Denise, uma vez que ela sempre prestava algum tipo de ajuda.
Em um momento posterior perguntamos pelo trabalho que ela realizava no ano 2000,
ocasião de nosso primeiro contato. Bia confirmou que trabalhava na creche. Ainda que ela
continuasse argumentando que trabalhava há dois ou três meses, esta resposta foi contraditória
porque nos encontramos pela primeira vez em dezembro de 2000 e a entrevista foi realizada
em agosto de 2001:
“Entrevistadora: Agora lembrando um pouco do teu trabalho
anterior...quanto tempo tu trabalhaste aqui, quando o número de crianças
era maior?
Bia: Mais ou menos uns dois ou três meses” (Bia, 21/08/01).
Nara, a filha de Denise, apresentou um relato diferente no que se refere ao pagamento,
além de não ter omitido que trabalha de ajudante da mãe desde os dez anos de idade. Como
70
Nara parece aceitar melhor o fato de trabalhar na creche, uma vez que é filha da tomadora de
conta e participa das atividades domésticas desde cedo, o problema do pagamento para ela
parece ser algo bem resolvido:
“Entrevistadora: Com que idade tu começaste a ajudar aqui na creche?
Nara: Com dez anos. Lá embaixo. Eu fazia a mesma coisa.
Entrevistadora: E lá tu recebias alguma quantia?
Nara: Também a mesma coisa. De 10,00 a 20,00 reais” (Nara,
23/08/2001).
Estas situações revelam a presença do trabalho infanto-juvenil na creche domiciliar,
um trabalho nem sempre remunerado, o que também significa a presença de relações de
subordinação de idade, nas quais um adulto explora o trabalho dos mais jovens. Sarmento,
Bandeira & Dores (2000), salientam a importância da desocultação deste fenômeno, que
representa um tipo de trabalho clandestino, ilegal e presente nas atividades cotidianas das
crianças. Ele geralmente não é considerado um trabalho de natureza econômica, porque
acontece no espaço da casa e não possui fins lucrativos.
Não considerar as atividades infanto-juvenis como trabalho é semelhante ao que
acontece com as atividades domésticas, normalmente desempenhadas pelas mulheres
(Sarmento, Bandeira & Dores p.41). Ainda destacam os autores que nas micro-empresas
familiares encontramos o desenvolvimento de uma economia subterrânea, caracterizada pela
exploração de uma mão-de-obra adquirida sem qualquer tipo de contrato de trabalho e mal
remunerada, ou sustentada pelo recurso a trabalhadores externos, como crianças e
adolescentes.
Conforme escreve Lautier15 (apud Mozère, 1997), o informal é regulamentado pelos
“códigos privados”, que vão produzir tensões, porque as solidariedades essencialmente
familiares são caras; nem sempre o apelo à família significa liberdade, podendo ocorrer formas
de violência sem lei e exploração crescente. Esta lógica da solidariedade entre as famílias das
camadas populares, principalmente quando há um envolvimento no trabalho informal, não
pode ser compreendida como “sinônimo de harmonia e de consenso entre os diversos atores
15
LAUTIER, B. L’économie informelle dans lê Tiers-monde. Paris: La Découverte, 1994.
71
individuais” (Bilac, 1995). Apesar destes autores fazerem referência ao trabalho informal
realizado em casa por diversos membros da família, o trabalho na creche domiciliar, que inclui
ajuda de outros jovens, também apresenta contradições decorrentes das ambigüidades
resultantes de uma atividade domiciliar que não apresenta remuneração.
A tomadora de conta administra esse trabalho e, mesmo que o contrato não seja
formalizado, existe um acordo e as ajudantes mantêm uma relação de dependência com um
adulto que fiscaliza o trabalho. Se Denise não têm horários e garantias no serviço que oferece,
a situação se agrava porque suas ajudantes são menores de idade. Além do mais, estes espaços
reproduzem as diferenças de trabalho por sexo, pois “as desigualdades de gênero persistem,
com o trabalho domiciliário a incidir mais sobre as raparigas, sobre as quais incide,
fortemente, o trabalho doméstico” (Sarmento, Bandeira & Dores, 2000).
Obviamente existe uma estruturação dos serviços e distribuição dos papéis de gênero
que é bem marcante no caso das meninas. Delas se espera que façam serviços domésticos e de
apoio, como cuidar e organizar brincadeiras com as crianças, como fazem Nara e Bia,
ajudantes na creche domiciliar. Como já evidenciamos, o vizinho que ajudava Denise no ano
2000 fazia somente os serviços vinculados à rua, como levar e buscar as crianças maiores na
escola. Provavelmente este distanciamento masculino das atividades que acontecem no
interior da creche tem relação, por parte dos familiares das crianças, com o receio de abusos
sexuais ou outras formas de violência. Mas fundamentalmente o que ocorre é uma reprodução
dos papéis de gênero, com uma delimitação das atividades domésticas para as meninas e das
atividades vinculadas ao mundo da rua para os meninos.
Para Bia, no trabalho doméstico os papéis são claramente definidos entre os meninos e
as meninas. Desta forma, relatou que ajuda a mãe em casa, cozinha e faz outros serviços exceto lavar roupas - além de auxiliar Denise na creche. O irmão, alguns anos mais velho,
apenas estuda e não divide com ela as tarefas da casa. Igualmente Nara referiu que aos cinco
anos começou a arrumar a casa, assim como o trabalho de auxiliar a mãe a tomar conta de
crianças parece ser algo aceito e naturalizado por ela:
“Minha mãe escolheu cuidar de crianças, então isso é o que ela gosta, né?
Ela gosta muito de crianças, então ela escolheu isso. Eu também gosto.
Mas...é o jeito...eu moro aqui e eu tenho que aturar as crianças também. A
72
mesma coisa que a minha mãe dá, eu dou para as crianças. (Pergunta:
Então tu ajudas porque tu estás morando aqui, ou porque tu gostas?) As
duas coisas, porque eu moro aqui também e porque eu gosto das crianças”
(Nara, 23/08/01).
Também encontramos uma divisão de tarefas no cotidiano da creche, expressa tanto
pela tomadora de conta como pelas meninas. A preparação dos alimentos e os serviços de
cozinha, assim como os cuidados com a higiene das crianças menores são atividades
desempenhadas por Denise:
“Só que aquela coisa, eu ficava mais com a parte da cozinha e com as
crianças menores, porque eu já tinha a experiência de ser mãe (...) A
cozinha fica comigo. A parte da casa fica com minha filha. Ela nunca
arruma a casa durante o dia. Depois que eu vou para o colégio, depois que
as crianças vão embora que ela arruma. Eu passo uma vassoura e tiro o
grosso. Agora limpar pelos cantos essas coisas, só quando as crianças vão
embora. Aí ela limpa” (Denise, 22/08/01).
A divisão das tarefas entre a tomadora de conta e as ajudantes também foi evidenciada
nos relatos das meninas. Bia participava das rotinas de cuidado e higiene (acompanhada por
Denise), ou de recreação com as crianças. Nara participava de atividades como organização
das refeições das crianças, banho, brincadeiras e recreação (geralmente acompanhada por Bia),
mas relatou que não apreciava a troca de fraldas. No transcorrer das observações foi possível
constatar que os serviços de trocar fraldas dos bebês eram realizados por Denise, com o
auxílio de Bia.
Nara parecia menos envolvida do que Bia com o cuidado das crianças no ano de 2001,
uma vez que estudava na parte da manhã. Durante a tarde as crianças dormiam e ela, sua mãe
e Bia faziam as tarefas da escola, uma vez que as três estavam cursando o ensino fundamental.
Porém, no final da tarde, quando Denise ia para o colégio, Nara aguardava com as crianças a
chegada das mães e arrumava a casa.
Podemos afirmar que Bia trabalhava mais do que Nara, porque durante a manhã ela
participava de brincadeiras, cuidava das crianças no pátio ou na sala e ajudava Denise nas
trocas, alimentação e banho. Após o almoço, Bia permanecia um tempo na creche e mais tarde
73
ia para casa ajudar a mãe nos serviços domésticos. Quando finalizava estas atividades,
retornava para a creche e concluía as tarefas da escola, permanecendo até o final da tarde, pois
estudava à noite. Bia realizava trabalho domiciliar na creche de Denise e trabalho doméstico
na sua casa.
Como Denise, Bia e Nara estavam cursando o ensino fundamental, freqüentemente
conversavam sobre o futuro profissional, expectativas de escolaridade e carreira. Nara
pretende seguir uma carreira profissional, embora condicionada pela atividade de tomar conta
de crianças, enquanto vive com a mãe:
"Ai, eu queria ser veterinária. Eu adoro mexer com bichos, até eu acabar
meus estudos eu queria ser veterinária. Mas por enquanto que eu estou
estudando, eu gosto muito de cuidar de crianças, até os dezenove por aí
eu vou cuidar de crianças. Aí depois eu quero fazer um curso de
veterinária. E seguir em frente, até conseguir o que eu quero" (Nara,
23/08/01).
Da mesma forma, Bia também manifestou seu desejo de no futuro cursar uma
Universidade: Eu pretendo estudar bastante para fazer uma faculdade, para ser psicóloga.
Porque eu primeiro quero me entender, prá depois entender as pessoas.
As expectativas das ajudantes quanto ao futuro profissional e escolar possivelmente se
relacionam com a valorização do estudo e da formação profissional, o que comumente era
exposto por Denise.
2.4 OS SENTIDOS DE SER MULHER, MÃE E TRABALHADORA EM UMA
FAMÍLIA MONOPARENTAL
Mulher ao espelho
“Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
Pois, seja qual for, estou morta.
Já fui loura, já fui morena,
Já fui Margarida e Beatriz.
74
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?” (Cecília Meireles)
Como mulher responsável pela criação e sustento das filhas, Denise tem procurado
formas de sobrevivência num contexto marcado por dificuldades sociais e econômicas. Por
esta razão pensamos que é necessário um olhar sobre ela enquanto mãe, mulher e trabalhadora
que nos permita analisar os sentidos que atribui à sua existência em uma família
monoparental. Tais sentidos são marcados por ambigüidades e contradições.
Denise toma conta dos/as filhos/as de outras mulheres na própria casa; podemos
caracterizar este serviço em São Gonçalo como uma atividade representativa da atual
conjuntura social, econômica e política, marcada pelo crescimento do setor informal e da
violência gerada pelo tráfico de drogas. Como vimos no capítulo inicial, as disputas geradas
entre os meninos ligados ao tráfico e os policiais causam impacto no modo de vida da
população do bairro, que cria estratégias de proteção das crianças pequenas, ou das crianças
maiores, que atualmente também freqüentam creches domiciliares em meio período.
No Brasil, os programas de creches domiciliares surgiram nos anos de 1970. Mas como
estamos estudando um caso no município de São Gonçalo que apresenta particularidades,
necessitamos contextualizar nossa problemática no tempo e no espaço. A creche de Denise é
um local que se estrutura a partir de horários e rotinas de alguns grupos das camadas populares
e, de forma geral, as mulheres que procuram seus serviços desempenham profissões
domésticas, não dispondo de tempo suficiente para permanecer com os/as filhos/as em casa.
Existe uma relação entre a trajetória de vida de Denise e a sua ocupação como
tomadora de conta de crianças, mas também há relação entre a sua ocupação e a reestruturação
do mercado de trabalho capitalista, que causou mudanças na organização das famílias afetando
as condições materiais de existência de grupos das camadas populares. Desta forma, com o
desemprego ou a escassez de empregos no mercado formal para os homens, as mulheres
trabalham como domésticas ou como autônomas fazendo faxinas para garantir a sobrevivência
das famílias. Sem o apoio de parentes ou vizinhos que outrora ajudavam a cuidar das crianças
pequenas, e sem creches públicas ou comunitárias com atendimento de zero a três anos,
75
conforme estabelecido na Nova LDB, a saída é procurar serviços como a creche domiciliar de
Denise, que se organiza em função das necessidades das mães das crianças e dela própria.
De um lado Denise é uma mulher afastada do mercado formal de trabalho e
responsável pelo sustento dos/as filhos/as. De outro lado, depende de mulheres que enfrentam
problemas semelhantes para garantir a sua sobrevivência. Ambas as partes convivem em um
local marcado pela ausência de serviços públicos educativos para as crianças pequenas e
restrições de ajuda por parte de avós ou outros parentes, quando as mulheres necessitam
trabalhar.
A escolha do trabalho de Denise está vinculada a três motivos que se relacionam com
suas condições de vida e com as saídas que ela própria encontrou para conciliar a maternidade
com o trabalho. O primeiro deles diz respeito à baixa escolaridade e às poucas chances de
conseguir um trabalho mais qualificado. Com o casamento, Denise interrompeu os estudos e
nem mesmo concluiu o ensino fundamental. Desta forma seria inviável para ela obter uma
ocupação melhor do que a de empregada doméstica.
O segundo se refere à opção de ficar perto das filhas e conciliar o trabalho com as
atividades da casa. A atividade de tomar conta de outras crianças lhe proporciona permanecer
em casa e obter um rendimento igual, ou maior, do que o obtido quando se trabalha fora de
casa, especialmente em ocupações domésticas. Como não há garantias de segurança no local
onde reside, Denise preferiu ficar perto das filhas fazendo algo que lhe proporcionasse uma
renda, pois o marido não tinha emprego estável.
O último motivo e o mais significativo nas análises de Denise é o da possibilidade de
autonomia na atividade que realiza, ainda que se trate de uma autonomia relativa, conforme já
esclarecemos. A decisão de ganhar dinheiro na própria casa permitiu a Denise ser o seu
próprio patrão, num trabalho que acontece junto às atividades domésticas cotidianas:
“(...) eu passei 15 anos fora do colégio e voltei a estudar. É aquela coisa,
por eu não ter com quem deixar a minha filha e não ter confiança de
deixar, porque no lugar onde eu vivo é muito difícil. Aqui é um lugar em
que você não tem confiança, mesmo em nada. Nem andar na rua. Já que
eu tenho esse interesse por criança, porque não conciliar tomar conta de
crianças na minha casa e tomar conta da minha filha? Outro ponto
também: eu não tinha como trabalhar. Então eu tinha que fazer alguma
coisa em que eu pudesse ter o meu sustento e tomar conta da minha filha.
76
Então eu falei: eu vou sair daqui prá ser dona de casa novamente? Eu
posso ser dona de casa dentro da minha casa, tomando conta da minha
filha e dos filhos de outras pessoas e ganhando o meu dinheiro também da
mesma forma. Quer dizer, eu vou ser o meu próprio patrão. Quer dizer, eu
posso escolher a minha hora de entrada, a minha hora de saída, eu posso,
ou não, fazer hora extra, se eu não quiser também eu não faço...É aquela
coisa de querer estar perto da criança e também cuidar de outras crianças.
Tenho certeza de que esse foi o meu maior ponto. De não ter aquele
ensino para procurar outra coisa, um bom emprego e por não ter tido esta
oportunidade, por ter largado os estudos e por querer estar perto da minha
filha, não deixar ela com outra pessoa, que eu escolhi esta parte de creche
domiciliar. De tomar conta de crianças” (Denise, 22/08/01).
Tomar conta de crianças na própria casa foi a solução que ela encontrou para garantir
sua sobrevivência econômica. Quando residia na casa dos pais, com a filha mais velha ainda
pequena e o marido desempregado, Denise percebeu que não poderia depender
economicamente do marido ou do pai, pois este último logo constituiria nova família após a
morte da sua mãe. Após ter se separado de Antônio, Denise tornou-se provedora de uma
família monoparental e responsável por uma creche domiciliar que deveria lhe garantir fonte
de renda e sobrevivência. A seguir vamos explorar parte das ambigüidades que cercam a vida
pessoal e profissional da tomadora de conta.
2.4.1 Ser mãe e trabalhar para ter uma renda: a feminização da pobreza
No Brasil, as mulheres das camadas populares que criam os filhos pequenos sozinhas
estão mais próximas da linha da pobreza. Denise é uma mulher que enfrenta tais dificuldades,
considerando sua situação familiar e seu contexto local sem creches públicas para as crianças
pequenas. Ela faz parte do universo de um fenômeno denominado por Lavinas (1996);
Torremocha & López (1999); entre outras autoras, “feminização da pobreza”. Para Lavinas
(1996), a feminização da pobreza é hoje um fenômeno contemporâneo que surge como uma
categoria sexuada e com características próprias, reunindo duas fragilidades: ser do sexo
feminino e das camadas populares.
77
Este não é, contudo, um fenômeno que atinge somente os países do terceiro mundo16.
As pesquisadoras espanholas Torremocha & López (1999) definem feminização da pobreza17
como o maior risco que as mulheres apresentam, frente aos homens, de serem pobres. Elas
geralmente ocupam posições mais frágeis no mercado de trabalho, devido às diferenças
salariais decorrentes da concentração em profissões com nível de qualificação e remuneração
mais baixos.
Para ambas (1999, p.46), a maior vulnerabilidade das mulheres à pobreza se agrava
quando elas são as únicas provedoras de uma família e necessitam cuidar das pessoas
dependentes, principalmente dos/as filhos/as pequenos/as. Em geral são as mulheres mais
jovens, procedentes de uma ruptura matrimonial e que chefiam famílias maiores as que
padecem de situações de pobreza mais graves.
Desta forma, elas defendem a tese de que a pobreza não é somente reflexo da
insuficiência de recursos econômicos, mas igualmente de situações sociais, familiares e
pessoais muito precárias, que tornam as mulheres mais vulneráveis aos processos de exclusão
social. Entendemos que é necessário cuidado no uso do termo exclusão social18 mesmo que as
análises sobre a feminização da pobreza nos ajudem a compreender o caso de Denise, e ainda
constatando que ela provavelmente enfrenta maior insuficiência de recursos sociais,
educacionais, econômicos e familiares do que as mulheres analisadas pelas pesquisadoras
espanholas, nem por isso a vemos tão somente como excluída.
Em pesquisa sobre catadores do lixão de São Gonçalo, Paixão (2002) expõe os dilemas
enfrentados pelos/as pesquisadores/as que convivem com grupos da população que
experimentam sentimentos de sofrimento de ordem simbólica, definidos de forma apressada
como à margem da sociedade do trabalho. O termo exclusão tem sido precipitadamente usado
para definir homens e mulheres que precisam lutar por uma identidade no mundo do trabalho.
Por esta razão, o uso da definição de excluídos merece ponderação. Nessa perspectiva, a
16
No Brasil, a feminização da pobreza hoje assume contornos graves, pois entre os 45 milhões de famílias
brasileiras, 19,6% possuem renda inferior a meio salário mínimo e, destas, 16,7% são chefiadas por mulheres sem
cônjuge e com filhos (IBGE, 2000).
17
Para as pesquisadoras, a feminização da pobreza tem suas raízes nas modificações da estrutura familiar
européia a partir dos anos 60, tais como: baixas taxas de fecundidade, diminuição do número de matrimônios,
aumento do número de divórcios e de nascimentos fora do casamento (Torremocha e López, 1999).
18
Embora o termo excluídos, ou exclusão social apareça diversas vezes em nosso texto, isto não significa que
consideremos os sujeitos da pesquisa desta forma.
78
autora (2002) faz uma opção pelo termo inclusão precária, termo utilizado por Martins19 (apud
Paixão, 2002), para o qual não existe exclusão, mas contradição e vítimas de processos sociais,
políticos e econômicos excludentes.
Alguns/as estudiosos/as sobre famílias das camadas populares como: Fonseca (1995);
Sarti (1995, 1996); Romanelli (1997) e Salen (1981) reconhecem que nos arranjos familiares
monoparentais as taxas de pobreza em geral são maiores. Sarti comenta que na literatura sobre
famílias existe uma relação entre pobreza e responsabilidade da figura feminina pela
manutenção das famílias:
“(...) as famílias chefiadas por mulheres estão numa situação
estruturalmente mais precária, mais dependentes de variações
conjunturais, quando comparadas com a situação das famílias pobres,
equivalentes no ciclo familiar, que têm chefe masculino presente, dadas
as diferenças nas formas de inserção da mulher no mercado de trabalho”
(1996, p.45).
Todavia, este não é um fenômeno recente, muito menos uma invenção da
modernidade. Famílias chefiadas por mulheres sempre existiram, apesar do número ter
crescido nos últimos anos20. Como observa Fonseca (1995, p.70) é necessário evitar o “mito
da família unida” de tempos antigos, porque no início do século XIX havia no Brasil famílias
chefiadas por mulheres, bem como famílias conjugais.
De forma geral, a literatura consultada sobre feminização da pobreza discute a situação
de mulheres sozinhas e responsáveis pela criação e sustento dos/as filhos/as, um fenômeno que
não é recente mas que tem aumentado, sobretudo nos países pobres. Essa literatura nos ajuda a
compreender o caso de Denise, a sua atividade econômica, as relações sociais que ela
estabelece, bem como suas percepções sobre ser mãe, mulher e trabalhadora. Na medida em
que ampliamos esta análise, no entanto, um outro olhar sobre a problemática despontou: o de
que Denise, embora mulher, pobre e membro de uma família monoparental, apresenta outros
significados sobre a sua existência.
19
MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.
No final dos anos 80, segundo Ribeiro e Sabóia (1993), aproximadamente quatro milhões de crianças e
adolescentes brasileiros viviam em famílias chefiadas por mulheres sem cônjuge, com uma renda familiar per
capita de, no máximo, meio salário mínimo.
20
79
Tais significados, embora fortemente marcados pelas condições materiais de existência
e pela classe social, têm igualmente um recorte de gênero, principalmente no que diz respeito
à posição de Denise enquanto mulher e mãe em uma família monoparental. Nesse sentido, as
restrições sociais, econômicas e culturais que lhe são impostas produzem subjetividades e
modos de significar sua existência muito peculiares.
O fato de ser a única provedora e responsável pela educação das filhas não parece ser
algo resolvido por Denise. Ela se ressente por não fazer parte de um arranjo familiar no qual o
homem é o pai e o provedor. Ser mulher e mãe é algo que para ela assume significados de
sofrimento e de fragilização. Por outro lado ela se valoriza, principalmente porque pode tomar
decisões sem o apoio dos homens. Procuraremos analisar as tensões expressas por Denise, que
vive em uma família monoparental, mas deseja e organiza a sua vida e o trabalho na creche
tendo como pressuposto o modelo de família conjugal. Ela apresenta ambigüidades nos
discursos e tanto vitimiza quanto valoriza os sentidos de ser mulher, assim como relaciona os
corpos femininos com dor e sofrimento e, ao mesmo tempo, sente prazer em trocar carinho
com as crianças.
2.4.2 Viver em uma família monoparental e desejar uma família conjugal:
vitimização e valorização dos sentidos de ser mulher
A experiência do casamento foi relatada por Denise como frustrante - com 15
anos...prá mim eu posso dizer que caí na besteira de me casar - e, não raro, ela demonstrou
seu descontentamento com a situação da separação, uma vez que os encargos financeiros e a
educação das filhas foram assumidos por ela de forma integral.
O percurso de Denise após a separação sugere um tipo de vida que se voltou para o
trabalho, estudo e criação das filhas. Em quase todos os seus depoimentos percebemos um
discurso negativo a respeito dos homens, assim como nos comentários sobre as frustrações
dela e das filhas com relação ao comportamento do ex-marido que, ao assumir uma outra
família, passou a dedicar pouco tempo para as filhas do primeiro casamento.
A partir da sua experiência de vida e também pelo conhecimento das experiências das
outras mulheres com as quais convive, Denise considera que é mais fácil ser homem, mesmo
80
na atualidade, quando é possível, por exemplo, que os filhos fiquem com os pais após as
separações, o que ela vê como uma vantagem do ponto de vista legal21, mas como uma opção
improvável na prática, uma vez que, para ela, os homens preferem a liberdade:
“Porque, por exemplo, não sei se você já viu que saiu um novo estatuto.
Agora já tem que na separação fica com as crianças quem tiver melhor
condição. Se de repente o pai tem mais possibilidades de ficar com o
filho, ele simplesmente não vai querer. Vai tirar a liberdade dele de sair,
de repente estar aqui, estar ali ao mesmo tempo (...)” (Denise, 22/08/01).
Na ótica de Denise, as separações implicam em rupturas e aumento das dificuldades
para as mulheres, pois além de assumir a criação dos filhos sozinhas - porque geralmente os
homens constituem novas famílias - elas sustentam a casa e, em alguns casos, também pagam
as dívidas dos ex-maridos:
“Quando ele trabalha e dá alguma coisa, tudo bem. Mas quando não? Aí a
mulher praticamente tem que ser mãe e pai ao mesmo tempo. Eu estou
falando sobre aquilo que eu estou vivendo. Basicamente o homem não
esquenta. Ele não esquenta para o que está passando, pelo que de repente
o que a criança está passando dentro de casa, se ela tem o que comer, se
ela tem o que calçar, o que vestir. Ele simplesmente não se preocupa. Aí
vai fazendo, deixou uma família para trás, está fazendo outra, se de
repente não der certo aí vai fazendo outra (...) já para a mulher isso fica
bem fechado. Ainda fica com aquela coisa de sem-vergonhice, isso e
aquilo outro ...ainda existe isso. Bem mais viável ser homem hoje em dia
(risos)” (Denise, 22/08/01).
Ela compreende que para os homens é mais fácil constituir uma nova família a partir
de sua experiência de vida, pois seu pai e o ex-marido casaram novamente e tiveram filhos. Ao
assumir as responsabilidades da casa e o sustento das filhas, Denise optou pela esterilização
antes dos 30 anos. Esta atitude aponta para um aspecto importante: ela não quer ter mais filhos
com outro homem, ou não pretende reconstituir sua vida afetiva? Freqüentemente reafirmava
21
Denise parece se referir ao Artigo 1.584 do Código Civil que explica que decretada a separação judicial ou o
divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar
81
o discurso de que os homens podem desfrutar de maior liberdade, quando não são
responsáveis pela casa, filhos/as e sustento das famílias.
Embora sustente um discurso negativo sobre a experiência do casamento, quando
comenta sobre o lugar da figura masculina na família seu desejo parece o de estar num
casamento no qual a estrutura familiar seja a nuclear. O lugar ocupado pela figura masculina
no casamento, para ela, vincula-se à imagem do homem dentro de casa, que não só garante o
sustento da família, mas também oferece segurança expressa pelo respeito, contato e carinho
com os filhos. A função do carinho e do cuidado com os filhos, na sua perspectiva, é quase
sempre delegada à figura materna, embora ela almeje um posicionamento mais igualitário.
A importância que a figura masculina assume para Denise, mesmo quando ela expressa
ressentimento, é um aspecto analisado por estudos antropológicos realizados em favelas
brasileiras. Alguns autores ressaltam que não existe uma relação de equivalência entre
mulheres que assumem a chefia das famílias e a superação das assimetrias de gênero. Sarti
(1995, 1996), Romanelli (1997) e Salen (1981), em estudos sobre famílias das camadas
populares, têm evidenciado que as mulheres chefes de família, que não dependem de homens
ou de filhos para seu sustento, em determinados casos buscam em outros homens o papel de
“provedor” ou “chefe” para se sentirem valorizadas. Isto ocorre porque a família nos meios
populares representa um valor fundamental, uma referência básica na construção do universo
simbólico de homens e mulheres.
Conforme analisa Sarti (1996, p. 136), entre os pobres dos meios urbanos a família
estrutura-se de forma hierárquica, com precedência do homem sobre a mulher, dos pais sobre
os filhos e dos mais velhos sobre os mais novos. Isto pode explicar a organização doméstica
baseada na tradicional divisão sexual, na qual o homem é o provedor e a mulher a dona-decasa. Dentro deste modelo hierárquico, a autora percebe como os papéis de gênero e de idade
são definidos em termos recíprocos e complementares. Entretanto, a identificação do homem
com a figura da autoridade não significa que a mulher seja privada de autoridade. Para Sarti, a
diferença de autoridade por gênero corresponde à divisão entre a casa e a família, na qual o
homem é o chefe de família e a mulher a chefe da casa. É assim que a autoridade da mulher
melhores condições para exercê-la. Fonte: LEITE, Heloisa Maria Daltro. O Novo Código Civil. Livro IV do
Direito da Família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002.
82
estrutura-se no papel de gênero de mãe e dona-de-casa, ocorrendo uma forte valorização
simbólica da figura da mãe.
O que dizer, então, do caso de Denise e de outras mulheres que exercem não somente a
autoridade da casa, mas também a da família? Na visão de Sarti (1996, p.136) a discussão da
noção de mulher “chefe de família” é um fenômeno cada vez maior entre os pobres urbanos, o
que revela o importante papel econômico das mulheres nas unidades de baixa renda. A análise
da autora não se restringe, todavia, ao papel econômico, ou das relações de trabalho, ou seja,
ela compreende a existência de um universo simbólico na estruturação dos papéis de gênero e
idade. Assim, mesmo quando a mulher assume o papel de provedora dos recursos econômicos,
a identificação do homem com a figura da autoridade não se altera em todas as suas
dimensões.
Denise não casou outra vez e não encontrou um chefe ou provedor substituto de origem
familiar. Como seu pai foi viver em outro local com a nova família e o irmão apresenta
problemas com drogas e álcool, nenhum dos dois pode preencher tal lacuna.
Provavelmente porque deseja para si uma estrutura de família nuclear, quando se refere
às mulheres, de forma geral, ela faz uma análise baseada na vitimização. A partir da sua
experiência de vida e das experiências de outras mulheres com as quais convive, ressente-se
de que os encargos e responsabilidades com a criação dos/as filhos/as são delegados às figuras
maternas. Desta forma, considera que é mais fácil ser homem, porque eles são mais livres e
sentem menos culpa e, por isto continuam ausentes da participação na criação dos/as filhos/as,
o que verificamos quando ela relatou sua conversa com a filha mais velha, a respeito da figura
paterna:
“A mãe é mais aquela coisa dentro do lar (...) mas porque o pai paterno
não pode ser um pouco mais viável? Em brincar, em colocar a criança no
colo e brincar um pouquinho. Esta parte joga tudo do lado da mãe (...) eu
sei a falta que faz a figura do pai delas. A Nara diz que não, sabe? Mas dá
para perceber naquilo que ela deixa no ar (...)” (Denise, 22/08/01).
Em outras situações, falou de sua extensa jornada de trabalho, do estudo e
responsabilidade com as filhas, enaltecendo sua figura de mãe, mulher e trabalhadora. É
significativo o posicionamento da socióloga catalã Izquierdo (1999) sobre o sentimento de
83
onipotência experimentado por mulheres que exercem dupla jornada de trabalho22. A autora
argumenta que é pouco rigoroso dizer que as mulheres trabalham o dobro dos homens e que é
possível interpretar-se o estar mentalmente em todas as partes não só como uma marca da
desigualdade social das mulheres, mas também como um sentimento de onipotência.
Percebemos que ocorre uma contradição quando Denise se refere às mulheres como
vítimas e, ao mesmo tempo, avalia de forma positiva sua capacidade de enfrentar as
dificuldades causadas pela ausência de um chefe e provedor na sua família. Há uma tensão na
sua forma de pensar em um modelo familiar que não corresponde à sua realidade, vendo-se
enquanto vítima e, ao mesmo tempo, valorizar ou enaltecer suas experiências.
Freqüentemente ela se referia a si própria como uma mulher forte que soube direcionar
sua vida, mesmo diante das dificuldades, como no episódio que ela própria relatou sobre o
enfrentamento com um vizinho. Chamamos a atenção sobre os preconceitos de gênero, raça e
classe expressos neste depoimento extraído de um diário de campo:
"Denise relata uma discussão com ela e um vizinho, sobre um problema
no esgotamento da rua na qual ela reside. Eu não consigo entender muito
bem o motivo da discussão, mas ela conta que falou para o vizinho que
ela não tem homem em casa, mas sabe se virar. Explica que um outro
vizinho ofereceu ajuda e chamou um menino para fazer a vala e que Nara
acompanhou a briga pela janela da sala; Aparentando orgulho, diz que
ficou até o final da discussão e não saiu do lugar enquanto a vala não
estava pronta. Informa, ainda, que o vizinho com o qual brigou dizia que
se furassem o cano dele iam ter que colocar outro no lugar. Ela ficou de
pé enfrentando o vizinho e lhe disse que ao invés de conferir o cano, ele
deveria conferir a sujeira que vem da casa dele. E eu anoto esta frase
muito sugestiva: ‘tá pensando que eu sou o quê? Nega de morro? Sou
muito branca e tem negro que tem muita educação. Você não está se
valorizando...’depois acrescentou que os dois acabaram se entendendo"
(Diário de Campo, 13/07/ 2001).
22
A socióloga (1999, p.42) faz uma crítica aos posicionamentos que atribuem as relações de reprodução às
mulheres e as relações de produção aos homens. Ela argumenta que o fato de atribuir a função reprodutora às
donas de casa contém uma negação que é a de supor que os homens não participam da produção da vida humana,
ou que as atividades que os homens realizam não comportam reprodução física ou social, pois eles são
indispensáveis na geração de nossas vidas e a permanência das formas de vida também dependem das atividades
que eles desenvolvem. Defende, portanto, que o que diferencia as mulheres dos homens são as condições de
trabalho e a posição que ocupam nas relações de produção.
84
É possível afirmar que os discursos de Denise não são lineares ou sempre coerentes; ao
contrário, apresentam fissuras e contradições. E apesar dos estreitos limites de possibilidades
impostos por sua condição social e por sua condição de mulher, Denise foi capaz de encontrar
soluções para garantir a sobrevivência dela e das filhas. Ela mesma afirmou que não consegue
ficar parada e voltou a trabalhar um ano e meio após uma interrupção, quando o marido
conseguiu um emprego estável. Após a separação, ela retomou os estudos, pois quer ocupar
uma profissão qualificada e reconhecida.
Nos estudos já citados sobre mulheres dos meios populares, são também objeto de
análise as contradições entre as representações das mulheres por elas próprias como seres
frágeis e vitimizadas, e formas de viver que demonstram sua força. Um exemplo é o estudo de
Salem (1981) sobre como 17 mulheres da favela da Rocinha no Rio de Janeiro pensam e
constróem a identidade feminina. Fundamentalmente a autora aponta a ambivalência
apresentada pela imagem de mulheres que não se afirmam enquanto sujeitos de sua existência,
que não existem para si, mas para e através dos outros apresentando ao mesmo tempo outra
face, revelando a capacidade de lidar com “coisas de homem”, o que destoa da auto-imagem
construída e apoiada na fragilidade, passividade e impotência (Salem, 1981, p. 93). Nesse
sentido, ela pergunta por que a mulher tende a privilegiar nas suas representações a faceta
supostamente impotente e fragilizada.
Não são, porém, apenas os estudos antropológicos que nos ajudam a compreender tais
ambigüidades e contradições. Pesquisadoras sobre relações de gênero na história e na
educação como Scott (1995); Louro (1995); Cunha (1998) e Brugger (1995) denunciam a
tendência de vitimizar as mulheres, ou tratá-las como submissas ao domínio masculino, sem
explorar os outros espaços que propiciam sua atuação social.
Para Scott (1995, p. 88) os homens e as mulheres reais não cumprem literalmente os
termos das prescrições de sua sociedade ou de nossas categorias analíticas. E Louro (1995)
escreve que nos dois pólos da relação entre homens e mulheres há sujeitos livres e capazes de
agir e reagir.
O caso de Denise, apesar de singular, é representativo; todos os estudos citados sobre
mulheres das camadas populares com um recorte de gênero demonstram que é necessário
85
superar análises que polarizam submissão e contestação, como se as formas de atuação das
mulheres ocorressem somente em extremos.
Como demonstra a trajetória de Denise, na sua relação com o marido fez concessões
para manter o casamento, mas também soube criar estratégias para manter sua atividade de
tomadora de conta, alugando uma casa em parceria com uma colega, por exemplo. Ela tem
procurado encontrar suas alternativas de sobrevivência, mesmo imersa em um universo
cercado de limitações impostas pela sua condição social.
Sua vida sem dúvidas reflete o fenômeno da feminização da pobreza, mas as
dificuldades que ela enfrenta também convivem com estratégias e soluções para superar as
limitações do cotidiano. Este é um processo que nos permite afirmar que exclusão/inclusão,
submissão/resistência são elementos que se interpenetram e que as vidas dessas mulheres não
são apenas marcadas por adversidades e pobreza; ao contrário percebemos que na vida diária
de Denise também há espaço para o riso e para enfrentar os desafios cotidianos. Por estas
razões, não faz sentido uma análise da tomadora de conta apenas como força de trabalho
domiciliar, excluída ou vitimizada. Como escreve Sarti (1996) a análise dos homens e
mulheres dos meios populares como pessoas desmobilizadas, excluídas e isentas de direitos
acaba negando a vida social e simbólica dos pobres naquilo que ela carrega de positividade,
que permite sua atuação no mundo social e a possibilidade de atuação no plano político.
Mesmo que Denise mantenha um discurso que torna sua posição de mulher, mãe e
trabalhadora bastante fragilizada com relação aos homens, durante as observações e nos seus
depoimentos foi possível constatar que ela busca rupturas e outros modos de vida num mundo
que, na sua ótica, privilegia os homens. Ela estrutura o seu cotidiano de trabalho e estudo
pensando no futuro, mesmo que limitada pelas incertezas geradas por um trabalho informal e
clandestino, num local marcado pela violência do tráfico de drogas e pela ausência do Estado
no delineamento de políticas públicas para a pequena infância.
Segundo Saffioti (1992), o ser humano não é somente força de trabalho; ele exerce
outros papéis sociais, o que nos convida a analisar o trabalho como uma atividade envolta em
sentimentos e afetos, mas também mediatizada pelo exercício da reflexão e por escolhas e
opções. As questões vinculadas ao corpo eram constantemente comentadas no cotidiano da
creche domiciliar, pois ser mulher, mãe e trabalhadora é sem dúvida algo sentido e vivido com
o corpo. Não poderíamos deixar de analisar como manifestações vinculadas ao sofrimento, à
86
dor, à fecundidade e à menstruação eram constantemente relacionadas com um sentimento de
vitimização com relação às mulheres.
2.4.3 Experiências dos corpos de mulheres
Na vida diária da creche domiciliar, comumente Denise conversava com suas
ajudantes, vizinhas ou mães das crianças sobre contracepção, esterilização, parto e
menstruação. Tais discursos são decorrentes das vivências corporais destas mulheres. Denise
trabalha e experimenta sentimentos com o corpo. O envolvimento com as crianças pressupõe
contatos corporais, o que é extremamente valorizado pelas mães das crianças, como
discutiremos no capítulo posterior.
Para Denise e suas ajudantes, as mulheres vivenciam com seus corpos sofrimento,
limitação e dor. Não encontramos entre elas significados sobre os corpos femininos vinculados
ao prazer ou à alegria. Possivelmente as sensações negativas de ser mulher em um corpo
feminino possam explicar porque Denise optou por um método contraceptivo como a
esterilização antes dos 30 anos de idade.
Um fato que nos chamou a atenção desde os primeiros contatos com as tomadoras de
conta do bairro foi a naturalização da esterilização como um recurso adotado entre mulheres
que antes dos 30 anos decidem que não querem engravidar. Esta é uma prática do local, que
acontece geralmente em períodos de eleições, pois há candidatos que são médicos e oferecem
a cirurgia por um preço simbólico. Eles estabelecem um tipo de acordo com as mulheres que
garante a propaganda política no local, em troca de serviços como atendimento em posto
médico, exames de rotina e ajuda através de cestas básicas para as que tomam conta de
crianças. Sobre a prática da esterilização se manifestou Isadora: Na época da eleição isso
acontece demais. Os caras fazem de graça. Fazem por 20,00. Oferecem. Difícil é você
orientar a mulher a aceitar outro método menos violento que esse.
Denise foi esterilizada por um vereador que é médico e que lhe fornece mensalmente
alguns quilos de arroz e feijão, assim como encaminha exames para as mães e crianças no
Posto de Saúde. Ela e suas ajudantes freqüentemente utilizavam no trabalho camisetas de
87
propaganda desse político. Sobre a prática da esterilização no local, ela fez o seguinte
comentário:
“A maioria das mulheres só têm dois ou três filhos e tá todo mundo
operado. Não dá, não... Tá muito difícil... A maioria faz a operação dos
22 aos 28 anos. Eu foi com 24. Praticamente só eu que trabalhava. Tudo
fui eu quem pagou, só paguei o anestesista. A maioria acerta no Posto de
Saúde ou em Clínica. Denise relata que conheceu o Doutor B através de
campanha política. Ele perguntou se eu tinha certeza de fazer a ligadura
agora. Eu disse que queria fazer porque pelo menos são só duas filhas.
Algumas tem a sorte que eu tive, operação gratuita, só pagar o anestesista.
A maioria daqui é operada: a mãe de Daniel, a mãe do Mateus e a mãe do
Júlio. Só as mães de Marcos, Mauro e de Jane que não são esterilizadas”
(Diário de Campo, 16/07/01).
Episódios observados na creche, ou certos discursos, expressavam concepções
diferenciadas dos corpos femininos e masculinos, assim como uma concepção do corpo e da
sexualidade feminina como símbolo de sofrimento ou negatividade. Quando se referiam aos
homens, inclusive as mulheres mais jovens, os corpos masculinos eram descritos como
expressão de virilidade e liberdade, ao contrário dos corpos femininos, quase sempre
representados por limitações como as dores da menstruação, do parto ou pelos riscos de
engravidar.
O período menstrual era freqüentemente descrito como uma etapa difícil que
impossibilita o trabalho ou a dedicação às crianças, em comparação com os outros dias do
mês.
Assim, a menstruação e o parto são definidos como períodos que tornam as mulheres
mais suscetíveis às dores do que os homens, aspecto recorrente tanto nas conversas que
coletamos nas observações quanto nos depoimentos obtidos pelas entrevistas:
“Prá mim, é difícil ser mulher, porque mulher sente dor desde quando
nasce. A mulher sente dor quando a regra dela vem, mulher sente dor prá
ter filho, mulher sente dor quando tem cólicas, e homem não sente nada.
Homem nunca sente nada e a mulher tem mais dificuldade” (Bia,
21/08/01).
88
“Ah, porque eu não gosto de ser menina, não. Porque menina sente muita
dor” (Nara, 23/08/01).
A menstruação era sempre relacionada com dor, indisposição e mau humor; quando
Denise ou uma das ajudantes estavam sem disposição para o trabalho, percebemos que elas
estabeleciam uma relação com o período menstrual. Destacamos, igualmente, que esta relação
era explicitada por meio de códigos ou expressões como a amiga, ela está doente, amolada,
entre outros:
“Hoje Denise fala que está cansada porque a amiga (se referindo à
menstruação) chegou hoje” (Diário de Campo, 18/06/01).
“Jane parece magoada e passa o tempo todo atrás do sofá e chorando.
Ouço Denise comentar que ela brigou com a mãe e Denise fala em tom de
brincadeira: ‘é a amiguinha dela que está chegando’ (numa referência à
menstruação. Percebo que o mau humor é algo que Denise sempre
relaciona com o período menstrual). Mais tarde Denise comenta com sua
filha (Nara) sobre a menstruação, fala que é preciso comprar modess e
que tomara que não venha a menstruação no sábado, dia que ela tem jogo
de futebol” (Diário de Campo, 21/06/01).
“Eu pergunto para Denise onde está Bia porque hoje ela não veio à
creche. E ela responde ‘ela está amolada e talvez não venha’. Ela ainda
acrescenta que as meninas sempre ficam assim, porque são muito novas.
Mais tarde Bia chega mas ajuda muito pouco e passa o tempo todo
parada. A menina comenta sobre a menstruação, que não sai de casa,
porque parece que as pessoas sabem e falam: ‘ih, esta garota está
sangrando’ ” (Diário de Campo, 26/06/01).
Todos esses relatos contêm em si significados que atribuem sentimentos negativos às
experiências corporais das mulheres. Provavelmente estas experiências não são percebidas
como positividade porque alguns desses significados são socialmente construídos e interferem
nas subjetividades das mulheres. De acordo com Dimen, para toda mulher a sexualidade está
enredada com a reprodutividade, com a procriação, o relacionamento e a sociabilidade. Apesar
de extensa a citação ela nos oportuniza compreender os significados expressos por Denise e
suas ajudantes:
89
“Em nossa cultura, elas (as mulheres) são responsáveis pelos bebês, não
tanto porque os colocam no mundo, mas porque constituem o gênero
socialmente responsável pela ligação e pelos relacionamentos. Essa
responsabilidade as coloca num conflito fundamental. Enraíza a
identidade de gênero das mulheres na ligação, mesmo quando sua
identidade adulta é definida pela individualização (...) Essas decisões, que
todo mundo enfrenta, tornam-se muito ambivalentes para as mulheres
devido ao interesse permanente do Estado por elas. Este usa a experiência
das mulheres para controlar a reprodução social, que, por sua vez, se
torna a via por excelência para o âmbito doméstico e a intimidade e,
finalmente, a própria subjetividade (...)” (1997, p. 53).
Para Bordo (1997) o corpo é um agente de cultura e, também, um lugar prático de
controle social. Mesmo que não tenhamos a pretensão de ampliar uma discussão sobre as
experiências corporais vividas pelas mulheres, o que nos remeteria a uma análise sobre
sexualidades e gênero, assuntos como parto, esterilização e menstruação eram constantemente
tratados no dia a dia da creche. Assim, optamos por uma abordagem destas experiências,
conscientes de que há uma pluralidade de sentidos contida na expressão “sexualidades”.
De acordo com Bourdieu (1999), é pelo habitus que o mundo social constrói o corpo
como uma realidade sexuada e como depositário de categorias de percepção e de apreciação
sexuantes, que se aplicam ao corpo na sua realidade biológica. O sociólogo nos ajuda a
compreender as origens da dominação num trabalho milenar de socialização do biológico e de
biologização do social, o que transforma a construção social dos gêneros masculino e feminino
em uma construção social naturalizada, que também poderá justificar a divisão sexual do
trabalho.
Esta é sem dúvida uma perspectiva interessante para que entendamos muitos dos
posicionamentos negativos enunciados por nossas informantes a respeito dos seus corpos.
Entretanto há outras perspectivas que nos ajudam a compreender que os padrões de
masculinidade e de feminilidade hegemônicos são também contestados ou transformados
historicamente, como defende Connell (1995, p. 192) ao escrever sobre as políticas de
masculinidade.
As questões ligadas ao corpo são problematizadas em estudos sobre relações sociais de
gênero porque também são percebidas como construções culturais que produzem identidades
90
subjetivas entre homens e mulheres. Nesse sentido, as reflexões em torno da maternidade, dos
cuidados e do trabalho doméstico ganham pouco a pouco expressão no campo acadêmico.
Como escreve Ferreira (2001) teorizar sobre as prestações de cuidados - tarefa que ainda é
convencionalmente atribuída às mulheres - constitui-se hoje em objeto de atenção dos estudos
sobre gênero. Assim, pensamos que as reflexões sobre os cuidados estão profundamente
enraizadas com os corpos femininos e masculinos, o que cotidianamente era discutido na
creche domiciliar.
No ensaio de Saffioti, o gênero é compreendido como um certo estilo de se viver o
corpo em um mundo com estilos corporais já estabelecidos e o caminho se faz das relações de
gênero para o sexo:
“Eis porque se insiste na direção do vetor: das relações de gênero para o
sexo anatomicamente conformado (...). Os fatos biológicos nus da
sexualidade não falam por si próprios; eles devem ser expressos
socialmente. Sente-se o sexo como individual, ou, pelo menos, privado,
mas estes sentimentos sempre incorporam papéis, definições, símbolos e
significados dos mundos nos quais eles são construídos” (1992, p.187).
Entretanto, isto não significa que a maternagem seja algo inato ou comportamental; na
visão da autora (1992), a atividade de maternar e obter gratificação é percebida como algo
organizado internamente e psicologicamente reforçado, ou algo estruturado durante um
processo de desenvolvimento e no interior da estrutura psíquica feminina. Esta construção
interna só é possível, contudo, porque há inserção em um processo social no qual intervêm as
relações sociais de gênero.
A socióloga e feminista Agacinski (1999), percebe a maternidade como possibilidade
de gestação, em um corpo, do feminino e do masculino. Assim, esta é uma capacidade
inerente às mulheres e que também pode ser compreendida como positividade. Provavelmente
sejam as contradições e tensões que cercam o trabalho e a vida de Denise aquilo que reforça as
expressões negativas sobre os corpos das mulheres.
2.5 AS AMBIGUIDADES DA FUNÇÃO E OS SABERES PARA TOMAR
CONTA DE CRIANÇAS
91
“(...) Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofia
cozinhando costurando
e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...” (Elisa Lucinda)
Para Denise, a atividade de tomar conta de crianças está repleta de ambigüidades,
principalmente porque ela oscila entre ser mãe substituta, tia ou tomadora de conta o que
parece refletir o conhecimento de que realiza uma atividade sem qualificação, e entre ser
professora ou psicóloga o que assinala um desejo de reconhecimento do seu trabalho que
também envolve saberes e reflexões sobre sua prática. Inicialmente exploraremos como
Denise se vê na função de tomadora de conta de crianças. Como ela oscila nas definições
sobre sua função, produzem-se sentimentos contraditórios, como a culpabilização de si própria
enquanto mãe e mulher bem como das mães das crianças.
O trabalho aqui focalizado é um trabalho feminino realizado no domicílio da tomadora
de conta, porém articulado com o mundo da rua. Interessa-nos compreender quais os sentidos
dessa atividade para Denise e que saberes ela tem adquirido ao longo da sua vida como mãe,
mulher e trabalhadora que levaram-na a construir raciocínios sobre a sua função permeados de
contradições, tensões, sonhos e expectativas de futuro.
Na sua atividade cotidiana entram em jogo conhecimentos adquiridos de experiências
anteriores ou de trocas de experiências com outras mulheres; isto evidencia que mesmo em um
ambiente limitado do ponto de vista do espaço físico e de qualificação específica para a
educação infantil, Denise está construindo uma prática que não podemos classificar como
pobre meramente porque gerada em um local pobre com restrições em termos de recursos
materiais e humanos para o trabalho com crianças pequenas.
Os significados que Denise expressa acerca de sua atividade estão repletos de
ambigüidades entre sentimentos de disputa com as mães e de satisfação pelo reconhecimento
que obtém das crianças. Conforme escreve Osborne (1999, p. 22), valores como
individualidade e competitividade são também reproduzidos em ambientes de trabalho
feminino. A vinculação, o afeto e a sensibilidade emocional não são incompatíveis com a
92
racionalidade e a objetividade e todos estes fatores são indispensáveis na execução de
qualquer tipo de trabalho, seja ele tido como masculino ou feminino.
Esta autora (1999, p. 23-24) ainda comenta que raramente é discutido o fato de que são
outras mulheres que habitualmente cuidam os filhos das mulheres, às custas de baixos salários
e condições limitadas de trabalho. As condições precárias de existência e de trabalho
certamente interferem na construção de sentidos ambíguos sobre como Denise se vê naquilo
que faz, quais saberes compreende como importantes e como culpa as mães e a si própria
quando percebe os limites da sua atividade.
Observa Tronto (1997, p. 188) que uma abordagem feminista dos cuidados considera
que cuidar implica responsabilidade e compromisso. Ela ainda enfatiza o valor do cuidado,
visto como uma atividade que não é apenas banal, mas que também envolve julgamentos. E
mesmo que cuidar tenha sido tradicionalmente percebido como uma atividade feminina e
maternal, isto não significa, para a autora, que quem cuida o faça de forma intuitiva.
Denise certamente não toma conta das crianças e das suas filhas utilizando apenas a
intuição, ou simplesmente jogando emoções nesses cuidados. Veremos como há uma
combinação de racionalidades e emoções nos seus significados sobre o trabalho que realiza, o
que também observamos ao analisar os significados para ela, de ser mãe, mulher e
trabalhadora.
2.5.1 Mãe substituta, tia, tomadora de conta, professora ou psicóloga?
Já questionamos como Denise percebe a sua atividade na creche domiciliar, ou como,
afinal, ela se vê na sua ocupação. Em alguns depoimentos, definiu-se como alguém que
acumula as funções de mãe, enfermeira, professora e psicóloga no trabalho com as crianças.
Em outros depoimentos, referiu-se a si própria como a tia Denise, ou como alguém que sabe
mais sobre as crianças do que as próprias mães. Visto que Denise oscila entre estas definições
e expressa ambigüidades quando procura definir o que é ou o que faz, supomos que ela não
acumulou muitas certezas acerca da sua função justamente porque faz um trabalho clandestino
e ilegal.
93
Como vimos em itens anteriores, ela realiza uma atividade informal, domiciliar,
clandestina, instável do ponto de vista do rendimento e ilegal porque não é regulamentada.
Tais características configuram um perfil de trabalho sem garantias e direitos e, por isto, sem
regularização das atividades, dos horários, salários e preços. Denise oscila no vai e vem de
receber e perder crianças, tal como os familiares que oscilam no vai e vem do
emprego/desemprego. Ela depende da situação de trabalho das mães para garantir suas
condições de existência. Produzem-se aqui uma série de ambigüidades que envolvem tanto a
sobrevivência econômica de Denise quanto seus sentidos sobre o que é e o que faz. Quando
ela fala sobre sua vida privada e profissional, revela uma duplicidade de oscilações que se
refletem nas suas condições materiais de existência, e na produção das subjetividades.
Em outras palavras, Denise oscila nas relações de trabalho e nas negociações que
estabelece com os familiares, assim como oscila quando se refere aos sentidos de ser mulher,
mãe e trabalhadora em uma família monoparental. Não poderia ser de outra forma quando
expressa os sentidos sobre sua atividade.
Como Denise vivenciou experiências anteriores que preparavam crianças para a
escolarização, é provável que as denominações tia, professora ou psicóloga tenham se
originado dessas vivências. De outro lado, não podemos negligenciar o fato de que ela e suas
filhas freqüentam a escola formal, o que provavelmente produz análises que incluem outras
denominações, além de mãe substituta ou tomadora de conta. É interessante constatar que
quando ela se refere ao espaço creche, do ponto de vista de uma organização institucional,
existe uma preocupação de demarcar linhas bem fechadas quando, por exemplo, fala que seu
espaço de trabalho não é uma creche, mas um local em que se toma conta de crianças, porque
creche sugere credenciamento. Quando se trata, porém, de falar de si própria, daquilo que é e
do que faz, ou de como se vê no que é e no que faz, as análises são mais ambíguas, ocorrendo
uma oscilação de sentidos e interpretações. É que as condições materiais de existência, por si
só, não dão conta de explicar tais significados. Ocorre uma produção de subjetividades e
sentidos sobre a vida, nem sempre coerentes entre si.
Na sua trajetória de trabalho, Denise possui experiência com pré-escola e classes de
alfabetização. Tal atividade era exercida na sua casa em parceria com mais três colegas, duas
delas com formação de magistério. Segundo ela própria informou, trabalhavam com pré-
94
escola e alfabetização. Quando relatou essa situação, foi possível perceber que considerava o
trabalho realizado como uma preparação para a escolarização das crianças:
“(...) era mais coisa de fundo de quintal, como chegaram já a dizer, coisa
de fundo de quintal. Eu já ouvi dizer que muitas das vezes a criança não
sai preparada para uma primeira série, para um colégio. Mas foram
poucos, posso te garantir que foram poucos. Com o trabalho da creche, da
escola, eles saíram muito bem preparados para onde eles estão hoje (...)”
(Denise, 22/08/2001).
Provavelmente essas experiências anteriores tenham contribuído para que Denise
compreenda seu trabalho como algo mais do que tomar conta de crianças. Mas um aspecto
importante é que ela diferencia o trabalho com as crianças pequenas, de até quatro anos de
idade, daquele realizado com as crianças maiores de quatro anos. Com as crianças menores, o
trabalho envolve cuidados que não necessitam de um planejamento mais sistemático; com as
crianças maiores, o trabalho se estrutura com o objetivo de preparação para a escolarização.
Tal diferenciação pode explicar a prática observada na creche domiciliar, que consiste em
enviar as crianças maiores de quatro anos (como Estela e Jane) para escolas infantis
particulares do local, que trabalham com pré-escolar e preparação para a alfabetização.
Chamamos atenção sobre a importância que Denise atribui a conhecer as crianças com
as quais trabalha, pelo menos nos discursos sobre a sua prática. Para ela é importante que o
adulto se coloque no lugar da criança para entender o funcionamento do seu mundo. Isto
necessita de conhecimentos e, embora saiba que não possui formação específica para trabalhar
com crianças, Denise reconhece que utiliza conhecimentos acumulados através de
experiências anteriores que lhe permitem observar e entender cada criança, o que supera, na
sua perspectiva, a função de tomadora de conta. Neste caso, ela faz um movimento inverso ao
da análise que fez sobre a clandestinidade da creche. Agora ela se define como alguém que é
mais do que tomadora de conta e, em algumas situações, ela se sente como psicóloga ou
professora que domina conhecimentos de psicologia infantil:
“Tem outra coisa também, que eu nem sei como te falar. É você, tipo
você deixar de ser a tia que toma conta, para entrar no mundo da criança e
95
conhecer a criança. Uma colega minha esteve aqui um dia e falou assim:
Denise, o que eu vejo da maneira que você lida com essas crianças, você
conhece mais essas crianças do que as próprias mães. É tipo uma
psicóloga, entendeu? Você tem que entrar naquele mundo, no que ela
gosta de fazer, no que ela gosta de brincar, as reações que ela tem com
algumas coisas. Se elas têm medo de alguma coisa, isso aí se você me
perguntar, eu sei o medo de cada um deles. Eu sei a insegurança de cada
um deles. O que eles gostam, o que eles não gostam, o que eles gostam de
comer, o que eles não gostam de comer. Tudo isso de cada um deles, eu
sei. Dos que estão aqui e dos que já saíram. É aquela coisa: gostar, a parte
do carinho e aquela coisa de ser um pouco mãe, psicóloga e tia. Tem que
entrar um pouco no ramo da psicologia para tentar entender a criança”
(Denise, 22/08/01).
Encontramos pelo menos dois significados de tia para Denise. Quando analisamos o
depoimento acima, ela está se referindo à tia numa relação similar a de mãe substituta, ou
babá, que não exige conhecimentos sobre as crianças. Em outras situações utiliza o termo tia
para estabelecer uma diferenciação com mãe e corrige as crianças no sentido de que elas lhe
chamem de tia e não de mãe. Neste segundo caso, a denominação tia assume um sentido mais
profissional, que procura romper com a relação de mãe substituta das crianças.
Outros sentidos da função que realiza, no entanto, também foram evidenciados por
Denise. Ao mesmo tempo em que se vê como alguém que faz mais do que uma tomadora de
conta, em outras ocasiões ela se assume como tomadora de conta e estabelece uma
diferenciação com a função de babá, porque reconhece que trabalha com um grupo de crianças
que apresenta diversidades. Isto pressupõe um trabalho de socialização no coletivo, o que não
é feito pelas babás:
“Eu já fui babá, eu tomei conta de uma criança de dois meses até um ano.
Você vai colocar aquela criança como a mãe pede, no ritmo que a mãe
pede. Então você só vai lidar com aquela criança. Agora tomar conta de
crianças já envolve o loirinho, o moreno, o pretinho, o amarelo, o
verdinho, o azul, entendeu? Então é saber dar atenção para cada uma (...)
um quer cantar atirei o pau no gato, o outro quer cantar a barata na careca
do vovô (...) a babá faz com um só. A que toma conta tem que saber
dividir. Não, vamos cantar esta primeiro, aquela depois (...) ela tem que
saber dividir o seu tempo com várias crianças” (Denise, 03/07/2001).
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Conforme destacamos, é interessante o modo como Denise percebe as crianças, bem
como a sua sensibilidade para as diferenças. De onde vem tal compreensão e sensibilidade
para com as diferenças, se ela não possui formação para trabalhar com crianças pequenas?
Pensamos que ela construiu esta análise das crianças com suas experiências e capacidade de
observação, o que não pode ser obtido apenas com a intuição. Vejamos outra diferenciação
expressa por Denise, agora entre uma tomadora de conta e as mães das crianças. Novamente o
conhecimento das diferenças e das necessidades das crianças são o parâmetro que Denise
utiliza na análise. Ela atribui importância ao tempo que disponibiliza para observar as reações
das crianças e as suas diversidades, o que, na sua perspectiva, uma mãe que trabalha fora não
consegue fazer:
“A pessoa que toma conta já tem aquele tempo de sentar, de desenhar...às
vezes a criança desenha uma linha e diz que é um ventilador de teto,
dizem que é uma janela, é uma barata...e você tem que achar aquilo lindo!
A mãe não tem aquele tempo de parar, ver e falar: ai, que lindo, que
bonito que você fez! Que cor é esta? Vamos distinguir o que é goiaba, do
que é maçã e do que é banana? Ou que cor é a goiaba, que cor é a
banana? A mãe realmente não tem esse tempo... E para aquele filho que
fica na creche ela praticamente tem o mínimo, o mínimo do tempo (...)”
(Denise, 03/07/2001).
Ainda que Denise estabeleça distinções entre uma tomadora de conta e as mães das
crianças, parece reconhecer que a experiência da maternidade favorece o seu trabalho,
especialmente com as crianças menores. Este posicionamento gera ambigüidades que
exploraremos mais detalhadamente, porque ao mesmo tempo que Denise usa denominações
para sua função e estabelece diferenças que parecem romper com a perspectiva da mãe
substituta, ela relaciona a experiência da maternidade com a função de tomadora de conta.
Compreendemos que tais ambigüidades são decorrentes da natureza do trabalho que Denise
realiza e das expectativas dos familiares, aspecto que analisaremos no terceiro capítulo.
Tais ambigüidades se reforçam, sobretudo, quando confunde sua função com o papel
de mãe, ou de mãe substituta das crianças. Desta forma, ela oscila entre o não querer ser
chamada de mãe das crianças e o justificar a função de mãe substituta, enfatizando as
vantagens ou o reconhecimento do seu trabalho pelas crianças:
97
“Esse lado da atitude das crianças de começar a me chamar de mãe é mais
porque ninguém aqui me chama de tia, quer dizer, só tem eu e as minhas
filhas dentro de casa. Elas me chamam de mãe. Quem começou com isso
foi a Jane. Um dia sem querer ela me chamou de mãe e eu olhei assim e
falei: ‘o quê?’ E ela: ‘ah, mãe não pode não, tia?’ E eu: ‘não, meu amor,
pode. Você se sente a vontade em me chamar de mãe, pode chamar’. E
com isso foi, aí juntou o Mateus, juntou o Daniel, juntou o Júlio, aí juntou
o Mauro e continuou. É gostoso. Porque eles estão vendo que eu não sou
só a Tia Denise, aquela pessoa que toma conta. Porque a pessoa que toma
conta é tipo: ah, tomar conta é só olhar para não fazer nada de errado (...)
é ver se tomou banho direitinho, se comeu direitinho, se a criança lavou a
orelha, se fez isso, se fez aquilo. O lado deles, eles já estavam me vendo
por outro lado de uma forma. ‘Ai, mãe, tá doendo aqui!’ E quando você
falar, ai mãe tá doendo aqui com a sua mãe, a mãe já fica assim: ‘não,
vem cá meu neném, vamos ver o que está acontecendo, vamos ver isso,
vamos ver aquilo’. Talvez você tenha percebido naquele dia em que a
Jane estava com febre do jeito que ela ficou. Eu fico assim, é como se
fosse um filho, de 20 em 20 minutos estar tirando a temperatura, de
repente a mãe não trouxe o remédio, eu tiro o remédio das minhas filhas e
dou... É gostoso ouvir, entendeu?” (Denise, 22/08/2001).
Com este depoimento analisamos em primeiro lugar a sensação de prazer que Denise
experimenta quando as crianças lhe chamam de mãe. A observação é gostoso aparece duas
vezes. Denise experimenta um sentimento de satisfação, seja porque reconhece que passa mais
tempo com as crianças do que as mães de origem, ou porque ela, como qualquer outra
profissional, necessita de respaldo, reconhecimento e legitimidade, principalmente se
tomarmos em consideração o fato de que sua atividade é ilegal e clandestina.
Em segundo lugar, observamos como a função de tia é agora relacionada com a de
tomadora de conta, o que por sua vez, é diferente da de uma mãe. Denise define o que é tomar
conta, que adquire um sentido de um cuidado com as crianças, porém não tão comprometido
como o cuidado de uma mãe. Neste caso, a função da mãe nos sugere ser de alguém que cuida,
mas que também ama e faz o que for preciso para ver suas crianças alimentadas, limpas,
protegidas e curadas.
Entretanto, é necessário cautela quando supomos que para ela sua função é a de cuidar
com amor, quando sabemos que há uma linha muito tênue entre gostar e não gostar do que faz,
entre amar todas as crianças sem fazer distinções e ser tocada por sentimentos negativos com
98
relação a algumas crianças. Como nosso principal foco de análise são os discursos de Denise,
veremos no quarto capítulo, sobre o cotidiano da creche domiciliar, que não existe harmonia
ou consenso entre o que a tomadora de conta diz e o que faz.
Quando Denise se considera como mais mãe das crianças do que as mães de origem,
isto pressupõe a construção de um raciocínio sobre o que é ser mãe. Como já vimos, ela
passou a se dedicar à criação das filhas e ao trabalho de tomar conta após a separação. O lazer
de Denise está condicionado à presença das filhas. Não teríamos aqui mais uma articulação
entre sua trajetória de vida e os sentidos que ela atribui à função que realiza? Quando ela
define o que é ser mãe e demonstra satisfação com o reconhecimento das crianças,
provavelmente está refletindo em sua análise a relação que mantém com as duas filhas. Logo,
o cuidar de uma mãe, que é diferente do cuidar de uma tia ou tomadora de conta, para Denise,
relaciona-se com a sua experiência de maternidade. É a sua experiência com as filhas que
possivelmente serve como modelo, quando ela faz as distinções entre uma tomadora de conta
e uma mãe, no sentido de valorizar o seu trabalho.
Quando Denise no entanto se refere a outras tomadoras de conta do Bairro Saudade - o
que supõe um distanciamento do que ela própria vive - novamente nos surpreende, porque
mostra-se capaz de perceber as ambigüidades da função e as dificuldades de conciliar a
maternidade com o trabalho e, ao mesmo tempo, ser mãe das outras crianças:
“Das que eu conheço é difícil ser mulher, mãe e ainda ter que ser ‘mãe’
de outras crianças. As próprias mães daquelas crianças, praticamente não
tem tempo. Aquele tempo, aquela disponibilidade de sentar, de ver as
cores da árvore, do céu...” (Denise, 03/07/2001).
Na perspectiva de Bia, as crianças chamam Denise de mãe porque se acostumaram
com ela desde cedo. Porém, ela distingue que para as crianças Denise é vista como mãe e para
os adolescentes como tia:
“Ah, eu acho que elas são criadas desde bem pequenininhas, então já
acostumaram. Eu acho que é um carinho muito grande que ela tem pela
minha tia (...) então elas chamam ela de mãe” (Bia, 21/08/2001).
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E sobre a denominação tia, comumente atribuída a Denise pelos jovens,
ela explicou que:
“Ah, porque eu já acostumei. Todo mundo chama. Todo mundo que vem
aqui chama ela de tia. Porque eu conheci ela assim, entendeu? As pessoas
da vizinhança já chamavam ela de tia. Aí eu me apeguei a isso e ficou tia.
Eu não consigo chamar ela de Denise e falo Tia Denise” (Bia,
21/08/2001).
Com os jovens a expressão tia adquire uma conotação de relação de parentesco, o que
também observamos quando Denise se refere a Bia e Marcos, como sobrinhos de
consideração. Mas por outro lado, a tia também pode representar a professora para os
moradores do bairro. Como Denise mantém uma creche domiciliar, ela pode ser assim
denominada, porque atualmente a professora da educação infantil ou do ensino fundamental é
confundida com a tia, numa perspectiva de relação de parentesco e de desqualificação da
profissão.
Com relação aos sentimentos das mães, Denise esclareceu que somente a mãe de Jane
sente ciúmes. Ao mesmo tempo ela própria justificou a situação, argumentando que passa
maior tempo com as crianças, que se responsabiliza pelas doenças e vacinas, ou que responde
pela mãe de Jane nas solicitações da escola que a menina freqüenta. Isto contém um outro
significado, que é o da disputa de Denise com as mães das crianças:
“Do lado das mães, eu percebi que só uma mãe teve ciúmes... Que foi a
mãe da Jane. Talvez por ser filha única. Mas depois ela mesma disse:
‘Ah, você fica com ela mesmo, ela que é sua mãe mesmo... Porque ela
que vê colégio... Quer dizer, elas estão mais com a Tia Denise, do que
com a própria mãe...” (Denise, 22/08/2001).
Quando as crianças chamam Denise de mãe, isto provoca reações de ciúme entre suas
filhas. Mas esta relação parece bem resolvida para Nara, que demonstra compreender que o
amor de Denise é bem dividido entre as filhas e as outras crianças. Assim, ela fez uma análise
muito delicada da situação, esclarecendo que as crianças demonstram carinho e
reconhecimento pelo trabalho de sua mãe:
100
“Eu gosto. Tem um carinho, significa que a pessoa é importante para as
crianças...por isso que chama ela de mãe. Eu sinto ciúmes. Tenho muito
ciúme das crianças com a minha mãe. E tudo que falam com a minha
mãe, eu: hum, só vai ficar dando beijinhos nele? E ela fala: Ah, meu
neném grande está com ciúmes. E começa a ficar me dando beijinhos
também. E ela diz: eu sei disso, dá prá ver nos seus olhos que você tem
ciúmes deles. Ela compreende que eu sinto ciúmes dela com as crianças”
(Nara, 23/08/01).
E sobre as reações da irmã ela ainda relatou que:
“Sempre que as crianças vão dar beijinhos nela, a Estela vai logo atrás. Aí
vai lá e começa a agarrar a minha mãe também. Mas a minha mãe divide
a amizade dela com as crianças e com a gente também. É bem dividido”
(Nara, 23/08/01).
Um outro aspecto valorizado por Denise e que faz parte das ambigüidades da função e
dos cuidados de mãe é a relação de amizade que ela mantém com os familiares das crianças.
Ela sugeriu que a relação com os familiares é algo que vai além de um simples acordo, pois:
Fica tipo uma amizade. Para mim já é família. Faz parte da minha família. Esta afirmativa é
decorrente de uma situação observada na creche, quando recebeu um bilhete entregue pelo tio
de Marcos e Mauro que solicitava um empréstimo em dinheiro, para comprar remédios para
Mauro. Episódios como este aconteciam com freqüência na creche, além de outros, como o
caso de Mateus, que iria se submeter a uma cirurgia. Neste caso ela providenciou os exames
pré-operatórios no Posto de Saúde. Quando mencionava esses acontecimentos, ressaltava sua
responsabilidade perante as crianças. Vejamos como ela se posicionou a respeito do pedido de
empréstimo e sobre os exames de Mateus:
“Eu simplesmente, na hora, eu fui lá dentro e peguei o dinheiro. Eu dei o
dinheiro e não falei mais nada. Leva e eu quero retorno, não retorno do
dinheiro. Eu quero saber como é que ele está. E eu cobrei isso dela. Quer
dizer, ela me telefonou mais tarde para dizer como é que ele estava, o que
foi diagnosticado, o que era. Mas que era para eu não me preocupar, que
ele estava bem, tudo normal. Quer dizer, que ele só tinha que fazer um
tratamento. É aí que eu falo prá você que não é somente uma relação
patrão e empregado. Ela está há três semanas atrás: ‘Ai Denise, eu tenho
que fazer os exames do Mateus, eu tenho que acordar cedo, pegar
101
número, você leva o Mateus para mim?’ Eu falei: ‘Levo Íris, pega o
número (Denise se referia à ficha de atendimento do Posto de Saúde) que
eu levo o Mateus para você’. Ela não pegou o número. Semana passada
eu não falei nada com ela, o que eu fiz? Eu fui levar as crianças pro
colégio, levei e deixei eles lá. Saí e passei no Posto de Saúde. Tem uma
pediatra lá que me conhece, a Cátia. Então eu falei assim: ‘Cátia, eu
trouxe a certidão, o xerox, você me faz um favor? Me passa todos os
exames para essa criança, que ele vai fazer uma operação e tem que
fazer os exames pré-operatórios. Você passa prá mim?’ E ela passou
todos os exames. Quando a mãe dele chegou a noite, eu já havia ido para
o colégio. No outro dia, ela: ‘Poxa, Denise, você só faz surpresa! Você
nunca vem com problema, você sempre vem com a solução’” (Denise,
22/08/2001).
Em situações como estas, Denise acaba assumindo os encargos das famílias, seja
porque precisa do trabalho, ou porque se sente mais responsável do que as próprias mães das
crianças.
De forma geral, Denise se sente mais mãe do que as mães das crianças porque dispõe
de mais tempo para fazer o que as mães não podem fazer com os/as filhos/as. Isto produz
ambigüidades na forma como percebe a sua função. Assim, ser tia pode significar o mesmo
que tomadora de conta, ou pode indicar uma relação mais profissional. Esta atividade, que
acontece no espaço da casa, gera, além dos acordos com os familiares, algumas tensões e
disputas, principalmente da tomadora de conta com relação às mães das crianças. Nesse
emaranhado de funções aparecem sentimentos controversos, como a culpabilização das mães
das crianças ou dela própria, conforme veremos a seguir.
2.5.2 A culpabilização das mães e de si própria
Denise fez a opção de trabalhar na própria casa e tomar conta das filhas. Para ela ser
mãe e ter que trabalhar fora parece ter sido algo vivido com muita culpa. O medo com relação
à violência do local no qual vive com as filhas reforçou sua opção de ser mãe em tempo
integral. Sem contar com o apoio da mãe, que morreu quando Nara era pequena, as chances de
deixar as filhas com pessoas de confiança diminuíram. Após a separação, Denise ficou só e
responsável pela criação e sustento das filhas, embora se ressinta pelo fato de não viver em
102
uma família nuclear. Pensamos que é justamente esta idealização de família conjugal, onde há
um provedor e uma mãe que se encarrega da educação dos/as filhos/as, que também
impulsionou Denise a optar pelo trabalho no domicílio.
Pelas próprias características e ambigüidades da função que realiza, alguns sentimentos
como a culpabilização das mães23 e dela própria são muito fortes. Tais sentimentos se
relacionam com a internalização das obrigações das mulheres, numa concepção de família
nuclear.
Com relação ao pouco tempo de convívio entre mães e filhos/as que freqüentam sua
creche, Denise culpabilizou as mães principalmente quanto aos horários de entrada e saída das
crianças. Seus comentários geralmente faziam referência à falta de cumprimento de horários
pelas mães. E mesmo que ela tenha demonstrado em algumas situações sensibilidade para com
as dificuldades das mães responsáveis pelo sustento e criação dos/as filhos/as, alguns indícios
de uma compreensão de que estar longe dos/as filhos/as é prejudicial, sobretudo quando muito
pequenos, apareceram em seus depoimentos: Eu até falo: espera mais um pouco, pelo menos
completar um mês! Mas a mãe diz: Eu preciso trabalhar!
Como o trabalho de Denise se realiza no domicílio, seus relatos, algumas vezes
expressavam desconfiança com relação ao trabalho feminino realizado fora do contexto
doméstico e, não raro, muito distante do bairro, o que também ocasiona uma redução do tempo
de convívio das mães com os/as filhos/as.
A crítica com relação às atitudes das mães também sugere disputas, quando Denise
afirma, por exemplo, que conhece melhor a situação das crianças do que os próprios
familiares: citou casos em que detectou doenças nas crianças que as mães não foram capazes
de perceber, ou disse que assume as responsabilidades da mãe de Jane na escola que a menina
freqüenta à tarde, assim como é responsável por acompanhar as crianças ao posto de saúde
para vacinação.
23
Encontramos tais sentimentos em duas outras tomadoras de conta do local. Fernanda expressou sua lamentação
diante do tempo que não aproveitou junto à filha; a culpa e o desejo de ficar mais próxima da menina aparecem
em depoimentos como estes: “não tenho mãe, vó...mãe solteira, tenho elazinha...” ou ainda “estou nesse
trabalho por acaso”. Suzana também expressou sentimentos de culpabilização com relação ao pouco tempo que
as mães dedicam aos filhos, quando por exemplo, relatou suas idas à igreja acompanhada pelas crianças das quais
toma conta: “às vezes eu pego no domingo...ficam muito presos, não saem com as mães e aí eu levo na igreja”.
103
O tempo para se dedicar à criação dos/as filhos/as era comumente citado como um
divisor entre Denise e as mães:
“Praticamente eu que, a assinatura no colégio dela não tem da mãe... tem
a minha, sabe? Quem leva para tomar vacina em campanha, sou eu. Quer
dizer, eles estão mais com a tia Denise do que com a própria mãe. É como
eu te falei. Muitas das vezes, quando as mães chegam em casa, não têm o
tempo que a tia Denise tem. Que eu corro, eu corro para ter aquele tempo
prá eles. Às vezes é só de manhã que eu tenho esse tempo. Mas eu quero
ter esse tempo com eles” (Denise, 22/08/01).
“Quer dizer, não deixa que a criança entre naquele diálogo. Já comigo,
não: ‘-Espera aí, é uma de cada vez. Começa você, depois você’. É aquela
coisa de ouvir a criança, a criança gosta muito de falar o que ela está
sentindo: ‘-não, eu fiz isso, eu fiz aquilo, a tia fez isso, fez aquilo, a tia
não me deu brinquedo’ (...) isso eles querem colocar” (Denise, 22/08/01).
Denise só assume estas responsabilidades porque ocorre uma delegação da função
materna pelas mães das crianças; sem a permissão dessas mães, a tomadora de conta
provavelmente não tomaria decisões que competem aos familiares.
Como a relação com os familiares das crianças é também uma relação comercial, a
culpabilização somente ocorria e alguns conflitos eram somente comentados quando as mães
estavam ausentes, ou na presença de outras mães. Logo, as reclamações de Denise ocorriam na
ausência dos familiares envolvidos nos conflitos.
A culpabilização das mães se relaciona com as ambigüidades da função de Denise,
principalmente quando ela sente que é mais mãe das crianças do que as mães de origem. Nos
casos de doenças graves, porém, ou de crianças com problemas de adaptação, a função de mãe
substituta é vivida com sentimentos contraditórios. Como Denise se sente impotente para
resolver casos mais graves que dependem da decisão dos familiares, a culpabilização se
fortalece. Desta forma, nas situações mais tensas, Denise, culpa a negligência das mães, como
no caso de Jane, que passou um dia na creche com febre muito alta, ou de Marcos, que estava
com escabiose e continuava freqüentando a creche. Nestes dois casos, ela conversou com as
mães e solicitou que procurassem um médico. Outro caso citado foi o de um bebê que
apresentou dificuldades de adaptação à creche. Como o bebê chegava em torno de cinco horas
104
da manhã e chorava muito, Denise se sentia impotente para suprir a falta da mãe e da
amamentação: aquele choro de criança quando quer a mãe.
Em outras situações, ela demonstrou não aprovar algumas práticas educativas dos
familiares. Entretanto, este sentimento de ser mãe substituta tem limites, pois reconhece que
não é a mãe verdadeira das crianças. Assim, quando as crianças relatavam casos de conflitos
com os familiares, Denise demonstrava insatisfação ou procurava descobrir pela criança o que
tinha gerado os conflitos, mas não podia fazer nada além de conversar:
“Hoje em dia o que a gente vai mais ver é a violência contra a criança. Ou
dentro do lar, ou fora do lar. Mas basicamente o que a gente vê é dentro
do lar. O que pelo menos para mim, nunca ninguém falou. E eu tenho
certeza que eu nunca fiz. Mas quantas das vezes eu já vi as próprias
crianças que estão aqui chegar e dizer que a mãe fez algo em casa com
eles, que até me desagradou, mas eu nunca cheguei para a mãe e falei (...)
Eu tento contornar: ‘mas porque o papai fez isso? Porque a mamãe fez
isso? O que você fez de errado para o seu pai fazer isso com você?’”
(Denise, 22/08/2000).
Denise também se culpa com relação à educação das suas filhas. Ela se ressente pelo
pouco tempo que sobra para se dedicar às filhas, embora faça arranjos para escapar das
limitações impostas pela ocupação cotidiana com as outras crianças. Nesse sentido, cria
mecanismos de trabalho para superar os limites do tempo e se envolve com as atividades
escolares de Estela enquanto prepara o almoço e cuida das outras crianças, assim como na
parte da tarde e aos sábados procura participar das atividades escolares e extra-escolares de
Nara.
Vimos até aqui como Denise se vê na função que realiza e como ela experimenta
sentimentos de culpabilização das mães e de si própria que também são decorrentes das
ambigüidades da sua atividade. A função de tomadora de conta pressupõe um processo de
aprendizagem, e Denise demonstra que passou por uma série de experiências e dificuldades
em sua trajetória de vida, até optar por esse trabalho. Interessa-nos entender, do ponto de vista
dessa mulher, quais saberes são necessários para que alguém se torne uma tomadora de conta
de crianças.
105
2.5.3 Os saberes para tomar conta de crianças
Os saberes para tomar conta de crianças assumem na ótica de Denise, duas ordens de
explicações. Na primeira, ela se refere aos saberes do ponto de vista do processo de construção
da atividade, o que envolve as experiências anteriores à creche domiciliar e o que ela passa a
vivenciar desde os primeiros contatos com a função de tomadora de conta, assim como a troca
de experiências com outros serviços e profissionais, como nutricionistas e pediatras. Como ela
experimenta diversas estratégias para melhorar seu trabalho, o conhecimento de cada criança
se amplia pelas conversas com as mães, no sentido de incorporar os saberes das famílias.
Para Denise, os anos de experiência como tomadora de conta lhe proporcionaram
adquirir alguns conhecimentos sobre as crianças e sobre sua atividade. É significativo que,
para ela, estes conhecimentos são adquiridos nas trocas estabelecidas com outras tomadoras de
conta do local, ou com profissionais especializados e com formação, como nutricionistas e
médicos. Estas trocas só acontecem porque ela faz um movimento no sentido de se deslocar do
interior do seu espaço de trabalho:
“O conhecimento que eu tenho agora, eu não tinha antes. Sabe, ter
conhecimento em posto de saúde, ter conhecimento em várias creches que
eu tenho aqui dentro, creches domiciliares também. Eu não tinha tanto
contato com pessoas lá de fora, como hoje eu tenho (...)” (Denise,
22/08/2001).
Em situações mais difíceis e que necessitam de conhecimentos mais especializados, ela
procura ajuda de profissionais habilitados:
“Na creche onde Mateus estava, ele só tomava mamadeira. Ele não comia
nada. Só havia barriga naquela criança. Ele é bem moreno, só que o rosto
dele estava amarelo. Eu cheguei a comentar: Nilcéia, esta criança está
anêmica. E se a mamadeira não tivesse bem doce, ele não tomava. Eu
procurei uma colega minha que trabalha como nutricionista. Ela falou:
Olha, Denise, a melhor coisa que tem prá criança que não come verduras
é cozinhar três cenouras, duas beterrabas, dois inhames, uma folha de
couve e dois a três galhos de espinafre e misturar no feijão. Começamos a
106
fazer não só para ele, mas para todas as crianças. Mas como nós iríamos
dar prá essa criança, se ele não comia a comida? Nós passamos a bater
tudo no liquidificador. Como ele sentia que era comida de sal, ele
colocava para fora. E eu falei: Nilcéia, pega uma colher de açúcar, coloca
dentro do liquidificador e bate. Ele começou a tomar. Fomos diminuindo
a colher de açúcar até não colocar nada. Nós acabamos com aquilo e ele
começou a comer não só no pratinho, mas comendo de tudo. A
mamadeira era normal. A comida, ele começou a comer direitinho, tudo
direitinho” (Denise, 22/08/2001).
Uma outra estratégia que ela desenvolveu ao longo do trabalho foi conversar com as
mães sobre cada criança, no sentido de incorporar os hábitos e saberes que são desenvolvidos
nas famílias. Estas estratégias permitem manter um número de crianças na creche para garantir
a sua sobrevivência, assim como ela procura atender às expectativas dos familiares. Um
exemplo são os primeiros contatos que ela mantém com as mães, antes da entrada das crianças
na creche. Com a intenção de evitar problemas de adaptação, Denise procura conhecer as
crianças, antes do primeiro dia na creche domiciliar:
“Eu tento pegá-los naquilo que eles gostam. Entendeu? Eu deixo eles a
vontade. Eu primeiro pergunto para a mãe: o que ele gosta de fazer? Ele
gosta de brincar de bola, ele gosta de brincar de carrinho? Ele gosta de
ver televisão, ele dorme à tarde? O que ele gosta de comer? O que ele
pode e o que ele não pode comer?” (Denise, 03/07/2001).
Entretanto, esta não é apenas uma estratégia que permite conquistar a confiança das
crianças; ela também contribuí para pensar a organização do trabalho. Desta forma, Denise
relatou as saídas que encontra para resolver os problemas que aparecem na creche decorrentes
das histórias diferenciadas de cada criança:
“Muitas das vezes eu guardo comigo. Mas quando é coisa séria, quando é
uma criança que tem alergia, tipo a algum tipo de comida. Eu tive uma
criança aqui, que ela não podia comer feijão. Então aí eu botava um mapa
na minha geladeira. Tipo: eu sei que o Mateus não pode tomar chocolate
muito forte. Então, eu já sei. O chocolate dele eu faço mais fraquinho. O
Mauro tem alergia a picadas de mosquitos. Então eu já sei que quando
chega mais ou menos a noite, eu tenho que colocar uma calça comprida e
107
um casaquinho nele. O Júlio, ele é mais restrito na hora que acorda. Ele
não come assim que acorda. É o primeiro a dormir e o último a acordar.
Então quando ele acorda, eu já tenho que deixar ele de lado (...)”(Denise,
03/07/2001).
Quando perguntamos para Denise, se é preciso uma formação específica para exercer
sua atividade, ela respondeu que não é necessário, mas ao mesmo tempo relatou seu desejo de
cursar Pedagogia, para lidar com crianças e saber mais sobre elas: Eu voltei a estudar, porque
eu quero saber mais sobre a criança e o que eu já tenho de experiência, juntar com isso e
colocar mais a frente. Da mesma forma questionamos na entrevista se aceitaria discutir seu
trabalho com pessoas que tenham formação específica para o trabalho com crianças menores
de seis anos, ao que ela respondeu:
“Com certeza. Foi o que eu acabei de te falar lá atrás, eu quero juntar a
minha experiência com o meu futuro promissor que é estudar, estudar
para isso. E quem sabe um dia, até, ou com você, ou com outras pessoas
que já tem base nisso. Você já tem base no estudo e trabalhando com isso.
Porque a gente não pode sentar ou até mesmo trabalhar nesse sentido? É o
que eu quero” (Denise, 22/08/2001).
Nara considera o conhecimento sobre as crianças um ofício difícil, ao mesmo tempo
que reconhece o valor da aprendizagem pela experiência. Desta forma, declarou que ela e Bia
ainda são inexperientes e que Denise conhece mais a função, porque possuí mais tempo de
trabalho com crianças.
Para ela, o valor da experiência e a aprendizagem que se adquire com os anos de
trabalho são aspectos suficientes, não sendo necessário uma formação específica para exercer
esse trabalho: Não. Só precisa ter responsabilidade. Porque se você escolheu isso, então você
tem que ter responsabilidade, tem que saber o que você quer fazer mesmo.
Na perspectiva de Bia, para tomar conta de crianças é necessário ter responsabilidade
com o trabalho e conhecer as crianças, o que elas fazem, o que elas comem, além dos horários
de cada uma delas.
Na segunda ordem de explicações, Denise trata os saberes do ponto de vista da
qualidade, o que se ampliou na medida em que as experiências com a atividade foram se
acumulando. Assim, ela cita a importância de gostar da atividade e de criar um ambiente no
108
qual a criança goste de ficar. Denise valoriza o conhecimento adquirido com a prática e com a
capacidade de observação, bem como os cuidados e a proteção das crianças, porém não faz
qualquer referência a desenvolver aprendizagens mais sistematizadas na creche domiciliar.
Do ponto de vista de Denise, uma boa tomadora de conta deve gostar de crianças e
gostar da sua atividade:
“(...) quando você faz o que você gosta, a criança vai ver que você
realmente gosta de fazer, entendeu? Mas eu acho que o mais gratificante é
de saber que a criança se sente a vontade com você, se sente bem em estar
com você, não é aquela criança que de repente chega no portão e diz: ai,
eu não quero ficar... Isso graças a Deus na minha casa nunca teve (...)”
(Denise, 22/08/2001).
Denise também procura entender as crianças, os seus gostos e as coisas das quais não
gostam. Aliado ao conhecimento das crianças, valoriza o carinho porque, segundo ela própria
falou, sem o carinho as crianças não serão receptivas. Em algumas notas de campo, podemos
perceber como ela observa e conhece as reações das crianças pequenas e como a afetividade
faz parte das interações:
“Denise oferece mamadeira para Marcos e Jane observa. Ele não aceita
muito bem o leite. Ela coloca Marcos sobre um cobertor estendido no
chão e lhe entrega um ursinho e uma pequena garrafa de plástico. Como
ele morde a garrafa diversas vezes ela comenta: Isto tem uma pontinha de
dente, heim! Tá roçando na garrafinha” (Diário de Campo,21/06/2001).
“O irmão de Marcos o beija e Denise brinca com as crianças: Pega esse
nenezinho, pega a bochecha dele e depois dá um beijinho” (Diário de
Campo, 21/06/2001).
“Observo Denise conversando com o bebê, enquanto comenta comigo
sobre as provas e a escola: ‘Não quero saber de escola, não, quero um
pouco de atenção que você não deu hoje, só arruma isto, só arruma
aquilo (...)’ Ela fala como se fosse o bebê e parece que está fazendo um
movimento de se colocar no lugar do bebê, dos sentimentos que ela julga
que ele experimenta. Estas falas são sempre melodiosas, alegres e
carregadas de afeto” (Diário de Campo, 02/07/2001).
109
“Denise brinca com as crianças: ‘Ô Mateus lagartixa! Quem é Mateus
lagartixa, quem é Mauro / Mariola?’” (Diário de campo, 06/07/2001).
Os conhecimentos adquiridos com a experiência proporcionaram que ela ampliasse a
capacidade de observação. A prática da observação lhe possibilita, inclusive, encontrar
doenças ou deficiências nas crianças, antes mesmo dos familiares.
“Eu via que o Mateus tinha o saco escrotal, mas que não tinha o ovinho.
Quando você seca você tá sentindo. Ele tinha um ano e meio por aí. Então
eu vi que não tinha, ao passar aquela pomadinha Hipoglós. Quer dizer, eu
notei que havia alguma diferença. Aí teve um dia que eu tive a
curiosidade. Eu coloquei dois meninos e comecei a reparar. Então eu pedi
que a mãe levasse ele ao médico, para fazer um exame porque ele vivia
com febre e com garganta inflamada...”
“quem acabou descobrindo que uma menina tinha problemas de audição
fui eu. Ela estava quase ficando surda, quer dizer, ela tinha audição, mas
muito pouca...eu comecei a perceber quando chamava, quando falava
alguma coisa com ela, ela demorava muito a responder. A mãe dela dizia
que não tinha. E eu dizia tudo bem, então você simplesmente coloca ela
na sala, liga a TV baixa, prá você ver o que ela vai fazer. Foi esse o teste
que eu fiz. Eu liguei a TV e ela: Tia, aumenta a TV. Mas eu estava na sala
e estava escutando nitidamente. Ela não. Quer dizer, eu tive que aumentar
o dobro do que estava prá que ela pudesse ouvir com a mesma clareza que
eu estava ouvindo antes. Esse mesmo teste eu fiz junto com a mãe. Quer
dizer, eu deixei todas as crianças irem embora e pedi que ela ficasse até
mais tarde. Ela ficou espantada com o que viu. Ela foi procurar médico e
a menina estava com uma grave infecção nos tímpanos. Essa infecção
poderia causar a surdez total na criança” (Denise, 22/08/2001).
Outros acontecimentos relacionados com a alimentação e saúde das crianças
evidenciam que ela não apenas observa, mas também reflete e procura uma solução para
resolver os problemas que enfrenta no cotidiano. Denise considera importante o trabalho com
a preparação dos alimentos, uma vez que faz desta atividade uma experimentação que lhe
permite conhecer e transformar alguns hábitos alimentares das crianças. No entanto, todos os
conhecimentos que ela foi acumulando com a prática da observação e com a busca de soluções
para melhorar seu trabalho relacionam-se somente com a higiene, saúde, alimentação e
proteção das crianças.
110
2.6 SÍNTESE
A partir da trajetória de Denise, percebemos que tomar conta de crianças foi algo que
se estruturou em meio à sua instabilidade de vida. Não podemos afirmar que esta foi uma
opção, pois ocupar profissões domésticas e cuidar de crianças foi, para ela, uma necessidade
de sobrevivência. Assim, sua trajetória de vida é feita de tensões, de ambigüidades, de vida na
precariedade e de instabilidade.
A sua é uma atividade que gera tensões, uma vez que tempo de viver se confunde com
tempo de trabalho. Não podemos olhar nossa problemática obscurecendo alguns aspectos que
são cruciais. Ao analisar os significados daquela atividade para Denise focalizamos questões
como: ela é provedora, enquadra-se no que a literatura denomina de feminização da pobreza e
faz parte de um conjunto de mulheres das camadas populares que são responsáveis pelo
sustento e criação dos/as filhos/as, com poucas opções de cuidado/educação mantidas pelo
Estado, quando as crianças são pequenas. Contextualizamos o caso de Denise no município de
São Gonçalo, em um bairro popular, e procuramos, pela sua trajetória, apontar os conflitos que
viveu com o ex- marido quando iniciou a trabalhar com creches domiciliares.
As relações mais próximas das mães das crianças, que em geral fazem parte das redes
de vizinhança da tomadora de conta, bem como a ilegalidade dos serviços do ponto de vista de
um estatuto social e jurídico, são fatores que geram ambivalências nos significados daquele
trabalho. Por outro lado, existem acordos estabelecidos com os familiares das crianças que
legitimam os serviços para alguns grupos da população local. E esses serviços possuem uma
finalidade lucrativa e se fundamentam em regras, direitos e deveres negociados entre as partes
envolvidas.
A divisão das tarefas domésticas e o cuidado dos/as irmãos menores é uma prática
usual entre a tomadora de conta e suas ajudantes desde a primeira infância. Embora o cuidado
dos irmãos e as tarefas domésticas sejam atividades realizadas pelas crianças dos meios
populares, isto ocorre principalmente entre as meninas. Ocorre no espaço da creche domiciliar
o trabalho infanto - juvenil e com ele a reprodução da divisão sexual do trabalho, visto que no
111
período em que Denise mantinha um menino e duas meninas como ajudantes, acontecia uma
diferenciação das atividades por gênero.
O trabalho de tomar conta de crianças se constrói através de práticas que são pensadas
e realizadas com abstração, mas em meio a muitas tensões. As ambigüidades e tensões estão
expressas na função de tomar conta de crianças, nos significados de ser mãe, na culpabilização
das mães das crianças e no exercício de conciliar a necessidade de ganhar dinheiro e cuidar
dos próprios filhos. Denise reconhece que é preciso formação de nível superior para abrir e
credenciar uma creche, por isto ela foi estudar para garantir a manutenção da sua fonte de
renda.
Seus discursos apresentam fissuras e ambigüidades, principalmente quando ela se
refere às mulheres assumindo uma postura de vitimização. Como também procura valorizar
suas experiências, encontramos outros significados sobre ser mulher, mãe e tomadora de
conta, tais como: o sentido e a real possibilidade de mudança da opressão feminina, o lado
vulnerável do poder patriarcal e os traços masculinos que podemos encontrar nas ações e
discursos das mulheres, mesmo quando elas se definem somente como seres que cumprem o
seu papel de mulher, esposa e mãe.
A valorização da experiência social das mulheres representa para Potengy & Paiva
(1999) uma forma de enfrentamento da nova realidade do mundo globalizado e das
transformações produtivas, que geram insegurança e incerteza.
Nesse sentido, questionamos: por que há traços de invisibilidade sobre as atividades
femininas caracterizadas pela clandestinidade, ou por constituírem ocupações menos
importantes - ou não consideradas como profissão - considerando o contingente significativo
de mulheres que ocupam estas posições no Brasil?
Este é o caso de uma tomadora de conta, que procura dentro dos limites que enfrenta
realizar um trabalho que respeita as crianças e as suas diferenças. Na medida em que Denise
foi apontando os saberes necessários para tomar conta de crianças, foi possível perceber que
ela procura estruturar sua atividade pensando nas crianças enquanto sujeitos sociais e com
necessidades e características diferentes.
Denise adquiriu no decorrer da sua trajetória de vida um conjunto de saberes para
tomar conta de crianças que não têm, do nosso ponto de vista, apenas uma conotação intuitiva,
emotiva ou maternal. Compreendemos que estes saberes também foram construídos com
112
racionalidades e afetividades na experiência com crianças e mães, experiências não somente
familiares ou domésticas, mas igualmente sociais, culturais e educativas. Por outro lado, nos
discursos de Denise não encontramos qualquer referência sobre a organização do seu trabalho
de forma mais sistematizada, com objetivos de promover o desenvolvimento integral da
criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social. Ela não mencionou nenhuma
intenção de planejamento e sistematização das atividades cotidianas que partissem das
crianças. Mesmo considerando as diferenças das crianças, observando e procurando soluções,
podemos afirmar que hoje sua função limita-se a guardar, proteger, assistir e tomar conta de
crianças. Denise, contudo, apresenta um potencial de trabalho e de sensibilidade com as
crianças que seguramente nos possibilita refletir sobre os cursos de formação para
profissionais de creches e pré-escolas.
113
CAPÍTULO 3. “ELA FAZ MAIS DO QUE TOMAR CONTA, ELA
PRATICAMENTE CRIA AS CRIANÇAS” - TRAJETÓRIAS E SENTIDOS
DO TRABALHO PARA CINCO MÃES
Mulher barriguda
“Mulher barriguda que vai ter menino
qual o destino
que ele vai ter?
que será ele
quando crescer?
Haverá guerra ainda?
tomara que não,
mulher barriguda,
tomara que não...”(João Ricardo - Solano Trindade)
No capítulo anterior, a partir da trajetória de Denise, vimos que sentidos ela atribui ao
seu trabalho e à sua vida como mulher, mãe e tomadora de conta. Neste capítulo propomo-nos
analisar quem são as mães que procuram esses serviços e que significados elas atribuem ao
trabalho de tomar conta de crianças.
Nosso universo de mães entrevistadas compreende um número reduzido, pois o vai e
vem das condições de existência produz situações de vida muito precárias, com o
deslocamento cotidiano para outras cidades ou bairros a fim de trabalhar. Como as mães saem
muito cedo e chegam muito tarde do trabalho e ainda precisam organizar a casa e atender suas
famílias, não foi possível fazer entrevistas nas casas, conforme pretendíamos nos contatos
iniciais. Geralmente na entrada ou na saída das crianças eu solicitava uma entrevista das mães,
114
mas por força das circunstâncias e das dificuldades de locomoção no bairro foi Denise quem
fez a mediação com as mães e propiciou que elas fossem entrevistadas dentro da creche
domiciliar.
Inicialmente pretendíamos entrevistar as mães das 17 crianças que freqüentavam a
creche domiciliar em dezembro de 2000. Como minha entrada no local foi proporcionada após
um longo período de negociações, com a mediação de Isadora e, inclusive, com a permissão
de algumas pessoas ligadas ao tráfico e que mantêm uma relação de poder com os moradores,
eu não tinha muitas alternativas a não ser contar com o apoio de Denise.
Desta forma, não é possível omitir as dificuldades de circulação ao local, bem como as
negociações que foram realizadas e as limitações da pesquisadora. O processo para nós
assume um viés delicado e, por isto, ele não pode ser omitido. Houve dificuldade com o objeto
de estudo, na medida em que pessoas ligadas ao tráfico sabiam de nossa pesquisa e só
autorizaram nossa entrada no bairro mediante documentação da Universidade, que foi
entregue para a tomadora de conta. Em várias situações recebi recados que chegavam através
de Denise. Os códigos eram discretos e em nenhum momento fui abordada por pessoas do
local. Entretanto, Denise algumas vezes dizia que minha entrada e saída estava limpa, que os
meninos avisaram que eu estava protegida e podia circular à vontade.
Assim, eu sabia que havia uma concessão para fazer observações e entrevistas na
creche domiciliar, mas por outro lado também sentia medo de que algo pudesse acontecer
enquanto eu estava no local. Eu não dominava os códigos e as maneiras de viver, num local
marcado pelo medo e pela constante possibilidade de violência. Logo, a sensação de
estranhamento foi vivida intensamente e se estendeu por todo o período em que convivi com
as pessoas ligadas à creche domiciliar.
Com poucas possibilidades de mobilização no local foi Denise quem fez a mediação,
no sentido de conseguir que as mães concordassem com as entrevistas. Para isso, ela
conversava com as mães e marcava as entrevistas dentro da creche domiciliar. Com algumas
mães marcamos entrevistas mais de uma vez, pois as jornadas de trabalho algumas vezes
impediam que elas comparecessem nos horários combinados. Tentamos entrevistar os pais, o
que infelizmente não foi possível. Através das entrevistas das mães, porém, conseguimos
informações sobre eles.
115
Em alguns momentos tivemos a impressão de que Denise estava selecionando as mães
que garantissem a avaliação esperada por ela. Mas no grupo das cinco mães não obtivemos
respostas homogêneas, assim como as entrevistas foram realizadas sem a presença de outras
pessoas. Logo, não podemos deduzir que Denise tenha manipulado as entrevistadas. De
qualquer forma, pensamos que tais comentários são importantes e necessitamos considerar os
limites desta seleção das mães na análise dos resultados obtidos.
Quando iniciamos as observações, oito crianças freqüentavam a creche: Daniel,
Julinho, Jane, Estela, Mateus, Jonathan, Marcos e Mauro. Jonathan, Marcos e Mauro saíram
da creche domiciliar em julho de 2001. Conseguimos entrevistar as mães de Daniel, de Jane,
de Mateus, de Marcos e Mauro e a mãe de Patrícia, uma menina que havia saído da creche no
ano 2000.
Este capítulo começa com as trajetórias das cinco mães, para que possamos
compreender a escolha do local e a importância que assume a creche domiciliar para cada uma
delas. Entendemos que as trajetórias das mães também se relacionam com os sentidos que elas
atribuem a esse trabalho.
Partindo destas trajetórias, buscamos analisar os traços que aproximam e os traços que
distinguem as mães, considerando seus percursos familiares, as trajetórias de escolaridade e de
profissão suas e de seus cônjuges, bem como suas percepções sobre trabalho, casamento e
lazer.
Como as cinco mães estabelecem relações com Denise e a creche domiciliar,
analisamos suas escolhas, os acordos estabelecidos com a tomadora de conta, suas
expectativas e avaliações a respeito da atividade de tomar conta de crianças.
Desde o capítulo anterior, temos discutido que existe compatibilidade entre o modo de
Denise cuidar e educar suas filhas, com os familiares das outras crianças. No último item
trataremos dos sentidos que as mães atribuem ao trabalho, o que para nós se traduz em uma
perspectiva de educação familiarista, que ocorre por meio da delegação da função materna à
tomadora de conta.
3.1 TRAJETÓRIAS DE CINCO MULHERES, MÃES E TRABALHADORAS
116
“Eu fui uma criança que na verdade eu não fui, eu não tive infância”
Elisa, é a mãe de Jane, de quatro anos. Ela trabalha como diarista, é negra, alta,
sorridente e está sempre disposta a trocar idéias, o que constatamos durante nossas
observações, quando ela seguidamente conversava com Denise. Elisa tem 34 anos e
atualmente mora com Neuci, de 47 anos. Os dois pretendem legalizar a união de oito anos.
Elisa, Neuci e Jane residem em uma casa alugada quase em frente à creche domiciliar e estão
construindo uma outra casa, um pouco mais afastada da Rua do Poço24. Eles pagam R$180,00
de aluguel e a casa tem um quarto, sala, cozinha e banheiro. A sala se transforma no quarto de
casal a noite. Embora tenham coleta de lixo três vezes por semana e luz elétrica, não existe
água encanada no local e os moradores utilizam água do poço.
Elisa é natural de Minas Gerais e nasceu em uma família numerosa, com um total de
oito irmãos. Seu pai trabalhava como lavrador em uma fazenda e, como ganhava pouco, os
filhos e as filhas trabalhavam na roça desde os sete anos de idade. Elisa relatou que não teve
infância, porque chegava da escola e ao invés de tomar um banho, almoçar e estudar ia para a
roça com a família. O trajeto da fazenda à escola levava em torno de duas horas e todos iam
num caminhão que carregava leite:
“(...) a gente ia de manhã num caminhão de leite. Aí tinha que andar um
pedação prá pegar o único caminhão que passava. Então ia aquela turma
de meninos, tudo em cima daquelas latas de leite, sabe? Correndo o maior
perigo, né...e hoje a gente vê tantos acidentes com crianças de escola por
causa disso. Aí voltava a pé. Saía naquele sol quente de verão e chegava
em casa e tinha que ir para a roça. Era tudo muito difícil (...)” (Elisa,
21/08/2001).
Com 11 anos de idade, Elisa estudava à noite no ensino fundamental. Na faixa dos 20
anos ela veio morar no Rio de Janeiro, como empregada doméstica de uma família de Minas
Gerais. Concluiu o ensino médio à noite e quando foi viver com Neuci passou a trabalhar
como faxineira:
24
Como vimos no capítulo introdutório, a rua da creche de Denise é denominada pelos moradores “Rua do
Poço” justamente porque as pessoas costumam utilizar água de um poço artesanal, uma vez que ainda não
chegou água encanada ao local.
117
“Eu trabalhava de doméstica a semana toda. E dormia no trabalho antes
de estar com o pai de Jane. Eu dormia no trabalho, porque eu vim de
Minas Gerais com um pessoal de lá. Aí trabalhava e ficava com eles.
Depois que eu conheci o Neuci, o pai da minha filha, é que eu vim para
cá. Há uns oito anos atrás. E eu continuei trabalhando de doméstica nesse
mesmo lugar. Aí depois a gente se casou e eu passei a usar a faxina”
(Elisa, 21/08/2001).
O percurso escolar de Elisa é diferente das outras mães, porque ela é a única que
concluiu o ensino médio com curso de formação de professores. Ela prestou vestibular duas
vezes para Pedagogia, mas só conseguiu aprovação na primeira fase e não ingressou na
Universidade: eu trabalhava como doméstica e tendo que estudar era complicado. Assim, ela
preferiu trabalhar como diarista, porque considera difícil lidar com crianças, afirmando que se
sente perdida com os gritos e solicitações constantes. Hoje ela disse que consegue sobreviver
com as faxinas e fazer umas economias para garantir o futuro de Jane.
Neuci está trabalhando há quatro meses como encanador em um estaleiro. Nos meses
anteriores, estava desempregado. Ele cursou até a oitava série do ensino fundamental e tem
duas filhas adultas do primeiro casamento. Elisa não tem trabalhado todos os finais de semana,
porque com o emprego de Neuci a renda familiar aumentou. Ela informou que recebe 550,00
reais e Neuci 800,00 reais, mas esta não é uma situação freqüente, uma vez que ele passa mais
tempo desempregado.
Atualmente Elisa trabalha em vários bairros de Niterói (Santa Rosa, Icaraí, Ingá) e do
Rio de Janeiro (Vila Isabel e no centro). Recentemente eles reataram o relacionamento, pois
viveram separados alguns meses, devido ao alcoolismo de Neuci. Durante o período de
separação, Elisa assumiu a responsabilidade integral da casa e da educação de Jane. Ela contou
que precisou sair de casa, para que o cônjuge abandonasse o vício:
“Ele me perdeu, aí entrou em desespero que ele viu que era bebida.
Porque antes ele não acreditava que eu tivesse essa decisão, sabe? Eu fiz
tudo quieta e quando ele ficou sabendo eu já estava tirando as minhas
coisas. Então foi um choque grande. Aí ele decidiu, foi até fim de ano.
Isso foi no final de novembro, aí já vinha Natal essas coisas assim e
marca muito. É perto do aniversário dele. Dia primeiro de janeiro ele
decidiu não beber mais e não bebeu (...)” (Elisa, 21/08/2001).
118
No período da separação, Neuci estava desempregado e tentou se aproximar
novamente de Elisa, mas ela permaneceu sozinha com a filha por mais alguns meses, sem
receber qualquer ajuda financeira dele. Alguns meses depois, eles voltaram a morar juntos na
casa que ela alugou. Elisa contou orgulhosa que atualmente ele trabalha bem e mudou o
comportamento, principalmente quando passou a freqüentar a Igreja Universal.
A rotina de trabalho de Elisa começa ao amanhecer, quando ela organiza a casa e
prepara as coisas de Jane para a creche domiciliar e para a classe pré-escolar que a menina
freqüenta à tarde. Geralmente entrega a filha na creche domiciliar após às 9h e costuma buscála após 20h. Quando Elisa trabalha nos sábados ou feriados, deixa a filha na creche domiciliar,
no período da manhã e no período da tarde.
Quando chega em casa, Elisa procura oferecer atenção para Jane, além de organizar o
ambiente e preparar tudo o que for necessário para o dia seguinte. Ela só faz o serviço de casa
depois que Jane está dormindo, pois reconhece que a menina necessita de atenção. No período
diurno, quando Neuci está de folga25 sai com Jane, mas à noite todas as responsabilidades são
assumidas por Elisa.
“Eu sempre fui acostumada a ficar na casa dos outros, porque na época não tinha
creche e a gente ficava um dia na casa de um, outro dia na casa de outro”
Juçara é mãe de Marcos com três anos e Mauro com dez meses. Ela trabalha como
empregada doméstica, é branca e descendente de índios, alegre e extrovertida. Juçara tem 23
anos e é casada com João de 26. Ela mora no mesmo terreno da mãe, deixado por seu pai
quando se separaram. A casa que ela e o marido estão construindo localiza-se atrás da casa de
sua mãe e tem dois cômodos: um conjugado de sala, quarto e cozinha e o banheiro. Eles
residem na Estrada das Mangueiras, uma rua afastada da creche domiciliar de Denise. Não há
coleta de lixo na rua de Juçara e seus familiares preferem queimar ou jogar o lixo em um
terreno baldio. O esgotamento sanitário é recente e os moradores têm água encanada e luz
elétrica.
25
Como Neuci trabalha em um estaleiro como encanador, Elisa relatou que ele às vezes tem folgas no período
diurno.
119
Os pais de Juçara se separaram quando ela estava com oito anos de idade. Seu pai
trabalha como motorista de caminhão e sua mãe, que era dona de casa, passou a trabalhar
como empregada doméstica logo após a separação:
“Meus pais se separaram porque brigavam muito. Meu pai arrumou outra
mulher que engravidou. Ele mora com ela há 14 anos. Quando nós
éramos crianças, nós éramos mais revoltados. Às vezes eu via meu pai
uma vez por ano, outras vezes não. Minha mãe sempre trabalhou em uma
casa só. Ela está lá desde que é nova. Meu irmão tem 17 anos e trabalha
desde cedo. Ele mora com minha mãe até hoje” (Juçara, 24/08/01).
Como a mãe de Juçara começou a trabalhar após a separação, ela e o irmão ficavam em
casas de vizinhos, enquanto não havia creches no local. Com dez anos, Juçara iniciou a tomar
conta do irmão. Com 11 anos trabalhava nos finais de semana como repositora em um
mercado perto da sua casa, pois estudava durante a semana. Ela interrompeu o trabalho porque
se sentia cansada para estudar. Com 13 anos voltou a trabalhar no mesmo mercado, desta vez
pesando legumes. Ela ficou trabalhando nesse local até os 17 anos de idade, quando concluiu o
ensino fundamental e foi trabalhar como vendedora de computadores. Algum tempo depois,
com o fechamento da loja de computadores, passou a trabalhar como auxiliar de caixa em um
supermercado. Como o supermercado quebrou, foi trabalhar como empregada doméstica em
uma praia de Niterói. Quando sua patroa mudou para São Paulo, ela não pode acompanhá-la,
pois estava grávida do primeiro filho. Juçara iniciou o namoro com João quando tinha 16 anos.
Parou de estudar com 19 anos e não concluiu o ensino médio, porque ficou grávida e casou:
“Eu casei cedo porque engravidei com 19 anos. Aí eu casei com oito
meses de gravidez do Marcos. Eu casei no civil, só não casei na igreja. Aí
a gente morava de aluguel e eu sempre tive um relacionamento muito
bom com a família dele. Tem seis anos que nós estamos juntos. Três de
casados e três de namoro. Eu e a família dele temos uma cumplicidade
fora de série” (Juçara, 24/08/01).
Dois anos após o nascimento do primeiro filho, Juçara voltou a trabalhar como
doméstica. Seu marido trabalha como motorista de caminhão e cursou até a sexta série do
120
ensino fundamental. Ela informou que quando trabalhava como doméstica, obtinha uma renda
de 270,00 reais. No período da entrevista, havia perdido o emprego. Como Marcos estava com
escabiose, precisou faltar algumas vezes ao trabalho e foi demitida. João recebe 500,00 reais e
ela pretende retornar ao trabalho, porque é difícil concluir as obras da casa e sustentar a
família somente com a renda do cônjuge.
Juçara definiu João como um homem ciumento e de temperamento forte. Disse que a
relação dos dois é conflituosa e, embora as tentativas de separação ocorram com freqüência,
permanecem juntos porque ele é um bom pai para os meninos. Segundo ela, João sente ciúmes
do seu temperamento extrovertido, assim como não aprova que ela trabalhe fora de casa: pra
ele mulher tinha que ser assim: dentro de casa. Pra fora, só se for pra levar uma criança ao
médico. Esta situação provoca conflitos, porque ela quer trabalhar fora e João quer que fique
em casa cuidando dos filhos:
“(...) eu quero mais porque quando eu era criança eu tive pouco. Não
tinha roupa nova, não podia sair de casa, ir a aniversário, não podia comer
isso porque não tinha dinheiro e eu quero mais pros meus filhos. Então eu
achava que se eu trabalhasse eu poderia passar pra essa parte e ele ficar
com a parte da alimentação, terminar as obras da casa. E ele não, ele acha
que a mulher tem que ficar. Ele acha que eu quero trabalhar pra poder
passear, ficar na rua. Então é nessas partes que a gente briga muito. Ele
nem queria que eu voltasse a trabalhar de novo e eu falei que vou voltar e
ele falou que sai de casa. E eu falei: então você saia, mas eu vou trabalhar
(...)” (Juçara, 24/08/01).
Juçara levava os filhos para a creche domiciliar as 7 horas e, quando chegava cedo,
buscava os dois às 18:30. Mas comumente eles ficavam na creche até 20horas, porque, ainda
que saísse do trabalho às 17horas, tinha que esperar o ônibus. Como Juçara trabalhava perto de
Niterói, fazia parte do trajeto a pé para economizar passagens, assim como algumas vezes saía
do trabalho e encontrava algumas amigas para beber e conversar. Estes encontros aconteciam
nas sextas feiras e ela chegava na creche em torno de 22horas. Nos sábados e feriados em que
trabalhava, os meninos ficavam com Denise. Quando Juçara saía para trabalhar não se
preocupava com os filhos, mas com as reações do cônjuge, pois ele bebe e tornava-se
agressivo quando ela chegava atrasada em casa.
121
“A gente era oito irmãs e dois irmãos. A minha mãe ainda pegou uma menina para
criar e a gente se dava super bem. Somos unidos até hoje.”
Marta é mãe de Daniel com três anos. Trabalha no SESC como faxineira, tem 39 anos,
é branca e casada com Carlos de 32 anos. Apesar de casada com o irmão de Denise e residindo
nos fundos da creche domiciliar, ela resistiu para conceder uma entrevista. Após duas
tentativas nas quais alegou estar muito cansada, ou doente, concordou em ser entrevistada. Em
comparação com as outras mães das crianças que são falantes e dispostas, Marta aparenta
fragilidade e tristeza, seja no tom baixo da voz ou no jeito de olhar.
Marta, Carlos e Daniel moram nos fundos da creche domiciliar, em uma casa com sala,
quarto e banheiro. Carlos está construindo uma outra casa maior e com dois pisos no mesmo
terreno. Mas as obras estão suspensas, porque no momento está desempregado. Eles não têm
água encanada e usam água do poço. O esgotamento da rua apresenta problemas que, segundo
ela informou, são solucionados por Carlos, pelo menos na área onde eles residem.
Marta vem de uma família numerosa e com ela são no total oito irmãs e dois irmãos. O
pai trabalhava como pedreiro e porteiro e faleceu há cinco anos. A mãe era passadeira e hoje
não trabalha mais. Ela tem boas recordações da família, que definiu como bastante unida. A
mãe de Marta ainda criou uma menina sem laços de consangüinidade com a família. Marta
iniciou a trabalhar com 14 anos, como bordadeira em uma fábrica de tecidos. Trabalhou nesse
local até os 24 anos. Ela relatou que começou a trabalhar para ajudar a família e para comprar
as coisas das quais gostava. Com o trabalho suspendeu os estudos na sétima série do ensino
fundamental.
Quando estava com 24 anos, ela e o pai da sua primeira filha foram morar juntos.
Marta parou de trabalhar nesse período. Eles viveram durante quatro anos, mas separaram
quando Maria completou três anos e Marta passou a criar sua filha sozinha, fato que provocou
seu retorno ao trabalho em um mercado. Após este último emprego ela começou a trabalhar no
122
SESC - Serviço Social do Comércio, onde está há cinco anos. Quando Maria completou 12
anos, Marta casou com Carlos. Atualmente a jovem está com 16 anos e reside com a irmã de
Marta, pois não tem um bom relacionamento com o padrasto. Maria parou de estudar e toma
conta dos dois filhos da tia. Segundo Marta informou, sua filha parou de estudar na oitava
série do ensino fundamental porque não conseguiu vaga na escola.
Carlos estudou até a sexta série do ensino fundamental e parou de estudar com quinze
anos. Nesse período, passou a trabalhar como ajudante de obras de seu pai. É empreiteiro e
recebe de acordo com os serviços realizados; no período da entrevista, estava desempregado.
Marta sustenta sozinha a família, com uma renda mensal de 200,00 reais. Durante a entrevista,
ela refletiu sobre sua vida, enfatizando que não houve mudança para melhor após a união com
o atual cônjuge, pois no passado ela recebia um salário maior, além de morar na casa dos pais.
Ainda contou que quando Carlos está trabalhando, o dinheiro obtido com os serviços é
consumido com bebidas e drogas. O casamento de Marta e Carlos é marcado por desavenças e
cenas de violência e, quando alterado, ele agride a esposa ou o filho, por meio de palavras ou
com violência física. Ela disse que gostaria de se separar de Carlos, mas não toma esta atitude
porque ele vai procurá-la e perturbá-la:
“Eu preciso trabalhar, porque às vezes tem dias que o meu marido fica em
casa a semana toda, então eu tenho que bancar tudo isto (...). Meu
casamento é muito atribulado. A gente discute muito, ele bebe e me
agride na frente do garoto (...); na hora que ele xinga, o menino também
xinga (...). Esses dias mesmo ele me agrediu, mas é bêbado, depois que
passa o efeito da bebida ele diz que não fez (...). Outro dia ele bêbado deu
um soco no estômago do garoto. Já falei que vou me separar dele por
causa disso, eu só não separo dele, porque eu sei que ele vai me procurar
e perturbar. Onde eu estiver ele vai perturbar. Então eu não separo”
(Marta, 28/08/01).
Marta acorda 4 horas da manhã e sai às cinco para o trabalho. Ela deixa o filho com
Carlos que o entrega às sete na creche domiciliar. Marta contou que quase não entra na creche,
porque chega muito cansada do trabalho. Daniel vai para casa perto das 19horas, quando a
mãe está chegando do trabalho. Mas ele costuma circular pela creche, mesmo quando seus
pais estão em casa. Marta disse que ao chegar em casa ainda faz os serviços domésticos e,
123
quando vê, está na hora de dormir novamente. Ela trabalha todos os finais de semana, às vezes
nos sábados, outras nos domingos. Daniel fica na creche de Denise nos finais de semana,
porque Carlos sai com os amigos para beber e não fica com o filho.
“Acho que agora é melhor. Quando eu era solteira, o meu pai bebia muito, era uma
convivência muito ruim.”
Íris é mãe de Mateus, com dois anos, e Edilson, com sete. Ela trabalha como
empregada doméstica, é negra, alta, magra e tem 29 anos. Está casada há 12 anos com José, de
33 anos. Seu filho mais velho é portador de necessidades especiais; fica na parte da manhã
com a avó materna e, durante a tarde, freqüenta o colégio, além de receber atendimento
semanal na APAE - Associação de Pais e Amigos de Excepcionais, na cidade do Rio de
Janeiro.
Íris é uma mulher alegre e, segundo Elisa comentou na creche, sua vida é dureza, mas
ela não se deixa abater. Íris mantém um bom relacionamento com Denise e as duas costumam
sair juntas, ou para a Igreja Universal, ou para visitar os parentes de Íris e José nos finais de
semana.
Íris reside com o marido e os filhos perto da creche domiciliar, em uma casa própria,
com quatro cômodos: sala, quarto, cozinha e banheiro. Eles têm água encanada, luz elétrica e
o lixo é coletado duas vezes por semana. No mesmo quintal de Íris moram um cunhado e a
esposa. Segundo ela informou, ele bebe muito e briga com a esposa cotidianamente.
Íris tem mais dois irmãos mais velhos do que ela. Quando criança, sua vida foi difícil,
porque seu pai era alcoólatra e constantemente brigava com a esposa e os filhos.
Íris veio morar com um dos irmãos no bairro Saudade, quando tinha 17 anos. Nesse
período, começou a trabalhar como caixa em supermercados e padarias. Foi aí que conheceu
José. Eles não passaram nem um ano namorando e casaram rapidamente. Quando casou, Íris
parou de estudar, na sétima série do ensino fundamental. O primeiro filho do casal nasceu
cinco anos após o casamento. Ela declarou que está satisfeita com o seu casamento, pois José
não bebe e não fuma, o que para ela proporciona uma relação estável entre os dois: Não
124
levamos nem um ano namorando e casamos. Já tenho 12 anos de casada e considero bom.
Não tenho do que reclamar. Ele comigo e com as crianças é muito bom.
Após o nascimento de Edilson, Íris começou a trabalhar como empregada doméstica.
Há um ano trabalha em um bairro de Niterói, com um salário de 220,00 reais. Ainda não teve
sua carteira assinada e não se preocupa com isto, porque não tem certeza de que vai continuar
nesse emprego.
José estudou até a quinta série do ensino fundamental. Faz biscates como eletricista e
passa um tempo sem emprego. Segundo Íris informou, ele às vezes pode receber até 450,00
reais mensais, mas não tem uma renda certa.
Íris acorda as 5 horas da manhã e sai para trabalhar as seis, em um bairro de Niterói. A
respeito da creche, ela se posicionou: Então prá mim é ótimo deixar ele aqui pertinho, né? É
José quem entrega Mateus na creche domiciliar em torno de 7 horas da manhã. Íris vai buscar
o filho após as 20 horas. Ela só atrasou uma vez e pegou Mateus às 22:30. Quando chega em
casa, Íris trabalha, organiza a casa e deixa tudo em ordem para o dia seguinte. Relatou que o
marido só ajuda no final de semana, porque ele sempre chega mais tarde. Assim, durante a
semana, a responsabilidade com a casa é dela: Eu que chego primeiro, eu adianto tudo.
Nos sábados ou feriados em que Íris trabalha, deixa Mateus na creche de Denise. Ele
chega 8 horas e sai às 15. Mas nem sempre isto acontece, porque quando o cônjuge de Íris não
trabalha aos sábados, ele costuma ficar com os filhos. Ressaltando a importância da creche
domiciliar, Íris explicou que no lugar em que vive não é possível deixar uma criança sozinha
em casa, uma vez que não há segurança. E referindo-se aos traficantes, ela baixou o tom de
voz e falou: Porque aqui vive muito esses caras que fuma, cheira, estes marginal mesmo.
“Eu tinha oito anos quando os meus pais se separaram, minha mãe ficou
responsável, mas casou com outro. Pelas dificuldades eu fui morar com minha avó três
anos depois.”
Laura é mãe de Patrícia, de três anos, e de Júnior, de três meses. Ela trabalha como
empregada doméstica, tem 22 anos, é mulata e vive com Renato que tem a mesma idade.
Laura parece mais séria do que as outras mães, o que também pode ser explicado porque
estava um pouco tensa durante a entrevista. Enquanto ela foi entrevistada, Denise e as
125
ajudantes ficaram brincando com Patrícia e cuidando o bebê de Laura. Atualmente ela está
sem trabalhar há seis meses e fica em casa cuidando dos filhos. Patrícia ficou na creche dos
oito meses até os dois anos e quatro meses, saindo quando Laura engravidou novamente e
parou de trabalhar.
Laura e a família moram no piso de cima da mãe de Renato. A casa tem dois cômodos:
um quarto, que também serve de cozinha, e um banheiro. Ao todo são cinco casas no mesmo
quintal e estão todas ocupadas por parentes da sogra de Laura. Estas pessoas só têm acesso à
água uma vez por semana. Nos outros dias, pedem água para uma vizinha. Laura falou que nos
outros bairros tem água encanada todos os dias, mas que na casa onde moram falta água, o que
se agrava no verão. Eles também enfrentam dificuldades com o esgoto, pois há fossas, e
quando chove misturam-se os esgotos de todos os moradores da rua. O lixeiro passa três vezes
por semana na rua de Laura.
Os pais de Laura se separaram quando ela tinha oito anos. Com ela são três irmãos. Seu
pai era bicheiro e hoje não trabalha mais, porque ele se encostou faz uns quatro anos. A mãe
de Laura trabalha como doméstica há seis anos e antes trabalhava como caixa em uma
lanchonete. Após a separação, ela casou novamente. Alguns anos depois, Laura foi morar com
a avó paterna, pois trabalhava como vendedora em uma fábrica de flores e o serviço ficava
muito longe da casa na qual ela vivia com a mãe, o padrasto e os irmãos. Além de trabalhar
como empregada doméstica, Laura passou por outros serviços, tais como: recepcionista,
garçonete, vendedora, babá e faxineira.
Laura estudou até a sétima série do ensino fundamental e parou de estudar aos 16 anos,
pelas dificuldades que encontrou para conciliar estudo e trabalho. Com 18 anos e seis meses
de namoro com Renato, ficou grávida de Patrícia. Foi morar com Renato e eles vivem juntos
há cinco anos. Laura parou de trabalhar porque teve problemas na gravidez e no parto.
Renato também parou de estudar na sétima série do ensino fundamental. Trabalha
como repositor de mercado e Laura falou que ele ganha somente 260,00 reais. Assim, ela disse
que precisa de trabalho para ajudar na casa, pois quando ela trabalhava a renda familiar era de
460,00 reais.
Informou que é responsável pelos cuidados de Patrícia e de Júnior e pela organização
da casa, mesmo quando trabalha fora: A gente que é mãe, a gente convive com a criança, a
126
gente dá banho, cuida, escuta choro, quando tá doente a gente leva pro médico. O pai não, ele
trabalha e leva pra passear (Laura, 27/08/2001).
Para Laura, os homens encontram maiores facilidades para conseguir um emprego,
pois há muitos preconceitos com relação aos serviços dos homens e mulheres: “tem certo tipo
de serviço que tem preconceito com a mulher, pra segurança, pra trabalhar em mercado;
mulher consegue emprego de doméstica, porque em outros empregos tem que ter mais
escolaridade”.
Quando Patrícia freqüentava a creche domiciliar, entrava às 7horas e saía em horários
variados, porque Laura às vezes saía mais tarde do serviço, ou enfrentava engarrafamentos no
trânsito, ou ainda resolvia alguns problemas na rua, antes de chegar na creche: às vezes eu
pegava cedo que era sete e pouco, às vezes pegava oito e meia, nove horas da noite. E cheguei
ao ponto de pegar a Patrícia 23hs.
3.2 TRAÇOS QUE APROXIMAM E TRAÇOS QUE DISTINGUEM AS
TRAJETÓRIAS DAS MÃES
“Não temos bens, não temos terra
e não vemos nenhum parente.
Os amigos já estão na morte
e o resto é incerto e diferente.
Entre vozes contraditórias,
chama-se Deus onipotente:
Deus respondia, no passado,
mas não responde, no presente.
Por que esperança ou que cegueira
damos um passo para a frente?” (Cecília Meireles)
As trajetórias de vida das cinco mães estão marcadas pela origem social e pelas
relações de gênero. Todas elas têm procurado encontrar estratégias de sobrevivência frente às
dificuldades que enfrentam desde a infância. São mulheres, mães e trabalhadoras pertencentes
a um grupo social que tem um cotidiano de muito trabalho e de dificuldades para obter
empregos com direitos sociais. A inserção em um bairro popular marcado pela violência do
tráfico de drogas produz sentimentos como medo, insatisfação e desejo de mudança. Algumas
127
alternativas são estruturadas para garantir a vida nesse local, como o aproveitamento dos lotes
para a construção de várias casas que abrigam grupos de pessoas vinculadas pelos laços de
parentesco, ou os serviços de tomar conta de crianças.
Por outro lado, nesse universo pequeno de mães, também encontramos singularidades
nas suas trajetórias e não podemos afirmar ser ele um grupo homogêneo.
Dentre as cinco mães entrevistadas apenas uma é branca, três são negras e uma é
descendente de índios. Quatro delas sempre moraram em São Gonçalo, mas Íris, Marta e
Laura passaram a viver no bairro Saudade após o casamento. Somente Elisa vem do Estado de
Minas Gerais e do meio rural.
Juçara, Íris, Marta e Laura residem em terrenos ocupados por outros parentes
consangüíneos, exatamente como a tomadora de conta. Esta é uma característica de grupos das
camadas populares, consistindo no aproveitamento de lotes para a construção de casas de duas
ou mais famílias que pertencem a uma mesma rede de parentesco. Com exceção de Juçara,
que está construindo uma casa no mesmo terreno onde residem sua mãe e o irmão, as outras
três mães habitam lotes que pertencem às famílias de origem dos cônjuges. Fonseca (1997, p.
536) aponta a natureza aberta da unidade doméstica das famílias de baixa renda, muitas vezes
aparente no próprio aspecto da residência, com múltiplas casas no mesmo quintal.
As condições de moradia de Elisa, Juçara, Marta e Laura são precárias. Elas enfrentam
problemas decorrentes da ausência de água encanada, de esgotamento sanitário, ou de coleta
de lixo, o que certamente interfere na vida e saúde destas famílias.
As cinco mães vivem em famílias nucleares (casal com filhos/as) e estão casadas há
mais de cinco anos. Entretanto, Elisa e Laura não legalizaram a união com seus cônjuges.
Com exceção de Laura, as demais mães enfrentaram ou enfrentam problemas com o
alcoolismo dos cônjuges (Elisa, Juçara e Marta), ou do pai (Íris). O caso de Marta é mais
complicado porque, além de alcoólatra, seu cônjuge é dependente de drogas e costuma ser
violento com ela e o filho. A religião parece ser um recurso que permite a algumas famílias
retirar os homens do vício, como no caso do pai de Íris, que freqüentava a igreja e parou de
beber, ou do cônjuge de Elisa, que parou de beber quando ela saiu de casa e também porque
ele passou a freqüentar a Igreja Universal.
128
3.2.1 Percursos familiares anteriores e formação de novas famílias
Elisa e Marta vêm de famílias numerosas com oito e dez filhos respectivamente, mas
Juçara, Íris e Laura vêm de famílias com dois e três filhos. Considerando que Elisa e Marta
são as mais velhas do grupo, com 34 e 39 anos, enquanto as outras três mães têm 23, 29 e 22
anos, assim como nenhuma delas tem hoje mais de dois filhos, podemos supor que este grupo
representa uma parte do que Romanelli (2002) denomina de “a nova face da pobreza”,
representada pela diminuição do número de filhos26 nas famílias das camadas populares.
Berquó (1998, p.415) salienta que apesar do caráter nuclear da família continuar
predominando no Brasil, o tamanho da família diminuiu, assim como cresceu o número de
uniões conjugais sem vínculos legais.
Juçara e Laura têm histórias familiares nas quais as famílias se reorganizaram na
primeira infância e a responsabilidade pela educação e sustento dos/as filhos/as passou para as
mães. A mãe de Laura, quando casou novamente, passou a contar com a ajuda do novo
companheiro no sustento da família. De forma geral, os progenitores do conjunto das
entrevistadas exerciam profissões que não exigiam escolaridade, como serviços gerais ou
biscates entre os homens (lavrador, pintor, pedreiro, motorista, porteiro) ou ainda serviços
ilegais, como bicheiro. Entre as mulheres predominam os serviços domésticos, como
passadeira, faxineira ou empregada doméstica, ou serviços ligados ao comércio, como caixa
de supermercado27. Mas os progenitores de Elisa, que são do meio rural, trabalhavam na
lavoura.
26
Romanelli (2002, p. 245-246) ressalta que existe uma nova face da pobreza que produz mudanças nas
organizações familiares. Fundamenta tal afirmação a partir de uma pesquisa realizada em agosto de 2001 pela
Prefeitura Municipal de São Paulo, que registra mudanças na composição das famílias pobres: “De acordo com
esse levantamento, a nova face da pobreza não está mais associada a famílias de migrantes com baixa
escolaridade e com grande número de filhos. Os resultados desta pesquisa mostram que a nova pobreza é
constituída por famílias com maior grau de escolaridade, com poucos filhos, por jovens nascidos na cidade de
São Paulo e por negros”. Interessa-nos sobretudo um dado, que é o da diminuição do número de filhos nas
famílias das camadas populares.
27
Ressaltamos que nosso grupo de informantes representa uma parte de um conjunto muito heterogêneo que
denominamos camadas pobres ou camadas populares. Como observa Romanelli (2002, p.246), “a nova pobreza é
social e culturalmente diversificada, englobando trabalhadores com escolaridade correspondente ao ensino
fundamental e médio e exercendo ocupações não-manuais. O exercício dessas ocupações é habitualmente
utilizado como critério de pertencimento às camadas médias. No entanto, os indicadores de pobreza diluem a
fronteira estabelecida entre trabalhadores manuais e não-manuais, ou seja, entre integrantes das camadas médias e
das camadas populares”.
129
Juçara relatou que a separação de seus pais ocasionou a redução do convívio com o pai,
pois ele constituiu uma nova família. Como temos constatado desde o capítulo anterior, em
alguns grupos das camadas populares quando os homens formam novas famílias eles
geralmente diminuem o contato com os/as filhos/as das primeiras uniões:
“E a relação da gente assim com o meu pai (...) quando nós éramos
crianças a gente era um pouco mais revoltado. Quer dizer, às vezes eu via
o meu pai uma vez por ano, outras vezes eu não via. Quer dizer, eu
sempre fui apaixonada pelo meu pai. Mas eu não gostava muito de ir na
casa dele porque eu não me relacionava muito bem com a mulher dele
(...)” (Juçara,24/08/01).
Quanto à formação das novas famílias, as trajetórias de vida das mães também não são
homogêneas. Já vimos que Íris, Juçara e Laura casaram entre 17 e 18 anos, mas Íris só ficou
grávida cinco anos após o casamento. Marta casou duas vezes e tem uma filha da primeira
união e um filho do casamento com Carlos. Ela foi morar com o pai de sua filha com 24 anos
e, quatro anos após a separação ficou sozinha como mãe e provedora até sua filha completar
12 anos. Estava então com 35 anos e casou com Carlos, que é mais novo do que ela. Elisa foi
viver com Neuci, já divorciado e com dois filhos do primeiro casamento e, algum tempo
depois, engravidou. Tanto Marta como Elisa e Íris são as provedoras das famílias, uma vez
que seus cônjuges não têm emprego fixo. Já Laura e Juçara vivem uma situação diferente,
porque seus cônjuges têm trabalho com carteira assinada, ainda que recebam salários baixos.
As duas saíram do trabalho, ou para cuidar o filho doente, como no caso de Juçara, ou para
cuidar do bebê como Laura, que disse ter enfrentado problemas na gravidez e no parto.
No capítulo anterior vimos que a feminização da pobreza está associada ao aumento na
proporção de famílias identificadas com situação de pobreza e comandadas por mulheres
sozinhas. Nesse capítulo, nosso grupo de mulheres apresenta traços diferentes.
Embora tenhamos encontrado casos, nas famílias de Juçara e Laura, de mães que se
tornaram responsáveis pelo sustento e guarda dos/as filhos/as após as separações, no grupo das
mães das crianças todas têm cônjuges, apesar de Marta ter ficado alguns anos sozinha e
responsável pela filha, até o segundo casamento, com Carlos. Mas há um dado significativo
130
nesse grupo, pois Íris, Marta e Elisa são responsáveis pela manutenção das famílias quando os
cônjuges estão desempregados, o que ocorre com freqüência nesse grupo de homens.
Para Oliveira (2000, p. 57-58), o crescimento da chefia feminina é apenas um indicador
das mudanças nos modos de conceber e de viver as relações familiares28. Outras mudanças
apontadas pela autora são a proporção de famílias conjugais originadas em segundas núpcias
de um ou de ambos os cônjuges, ou a proporção de famílias recompostas com a presença de
filhos/as de uniões anteriores.
A autora destaca que têm crescido as uniões informais, que se rompem mais facilmente
do que os casamentos legais. Berquó (1998, p.419) também salienta que vem ganhando
importância em nosso país o número de casamentos não legalizados, a coabitação sem
vínculos legais ou a união consensual. Em nosso grupo de mães, quatro delas apresentam
características dessas mudanças familiares: Elisa, que não legalizou sua união com Neuci,
divorciado e com duas filhas do primeiro casamento; Marta, que casou com Carlos após ter
vivido quatro anos com o pai de sua primeira filha; Laura, que não legalizou sua união de
cinco anos com Renato e que vem de uma família na qual tanto o pai quanto a mãe passaram
por recomposições familiares; e Juçara que vem de uma família na qual o pai casou
novamente.
3.2.2 Trajetórias escolares e profissionais das cinco mães e seus cônjuges
Exceto Elisa, que concluiu o ensino médio com formação em educação básica29, e
prestou vestibular duas vezes para Pedagogia, e Juçara, que cursou até o segundo ano do
ensino médio, as outras três mães estudaram somente até a sétima série do ensino
fundamental. Juçara e Laura pararam de estudar quando engravidaram e Íris e Marta
suspenderam os estudos logo que começaram a trabalhar. Somente Elisa desistiu de estudar
porque não conseguiu aprovação no vestibular. Como vemos, este grupo apresenta um nível
28
Acrescentaríamos ainda que a chefia feminina, em termos de manutenção econômica da família, pode também
ocorrer com a presença dos cônjuges, como nos casos de Marta, Íris e Elisa.
29
Elisa informou que cursou o ensino médio com habilitação para educação básica e poderia trabalhar como
professora, mas não obtivemos maiores detalhes sobre o caráter deste curso.
131
razoável de escolarização frente à maioria da população brasileira, que não consegue concluir
as primeiras séries do ensino fundamental, ou chegar ao ensino médio.
Nesse grupo, os homens têm menor escolaridade do que suas esposas e nenhum deles
chegou a cursar o ensino médio. O cônjuge de Elisa estudou até a oitava série do ensino
fundamental, o de Laura até a sétima série, os cônjuges de Juçara e Marta estudaram até a
sexta série e o de Íris até a quinta. Sem qualificação para o trabalho, três deles trabalham com
biscates ou serviços gerais. Os cônjuges de Juçara e Laura trabalham com carteira assinada,
em profissões que não exigem qualificação ou estudo.
O trabalho precoce faz parte das trajetórias das cinco mães. Elisa começou a trabalhar
na lavoura com 11 anos, Juçara como repositora de mercadorias com 11 anos, Marta em uma
fábrica de tecidos com 14 anos, Laura como vendedora em uma fábrica de flores com 16 anos
e Íris como caixa de supermercado com 17 anos. Três mães fizeram avaliações negativas sobre
suas experiências de trabalho no final da infância ou na adolescência: Elisa relatou que não
teve infância, na medida em que tinha que trabalhar na lavoura, após chegar da escola. Juçara
que trabalhava nos finais de semana desde os 11 anos e que suspendeu o trabalho por um
tempo, porque se sentia cansada. Laura contou que por não conseguir conciliar o trabalho e
estudo parou de estudar aos 16 anos.
O ingresso no trabalho representa para todas elas a obtenção de uma renda que permita
ou consumir artefatos que as famílias não podem oferecer, ou contribua com a renda mensal
familiar: A gente era oito irmãs e dois irmãos. A minha mãe ainda pegou uma menina pra
criar. Eu comecei com 14 anos pra ajudar e pra me manter porque eu gostava de ter as
minhas coisas então eu fui trabalhar cedo na fábrica (Marta, 28/08/01).
De forma semelhante ao que ocorre na trajetória da tomadora de conta, estas mulheres
iniciaram muito cedo a auxiliar nos serviços domésticos, e o cuidado dos/as irmãos menores
faz parte da sua rotina de vida desde a infância. Um exemplo é Juçara que precisou cuidar do
irmão mais novo com dez anos de idade.
A única dentre as cinco mães cujo primeiro emprego foi o de empregada doméstica é
Elisa. Ela veio de Minas Gerais acompanhando uma família, trabalhando durante o dia e
estudando à noite. Quando concluiu o ensino médio, Elisa tentou ingressar na Universidade
sem êxito. Ao conhecer Neuci parou de trabalhar como doméstica e foram morar juntos. Elisa
passou a trabalhar como faxineira e, segundo informou, continuou a fazer faxinas para a
132
família na qual trabalhava, assim como foi indicada a outras famílias por intermédio da expatroa.
Um dado significativo diz respeito ao fato de Íris, Laura e Juçara ter exercido
profissões vinculadas ao comércio, como caixas de supermercados, repositoras em
estabelecimentos comerciais, recepcionistas ou garçonetes, antes do casamento ou do período
da primeira gestação. Como as três passaram a trabalhar com serviços domésticos um pouco
antes do casamento, ou quando se tornaram mães, pensamos que há aí uma relação com a
discriminação que as mulheres sofrem no trabalho, uma vez que nos serviços vinculados ao
comércio ocorre uma preferência pela contratação de mulheres mais novas e solteiras.
Juçara começou a trabalhar como repositora de mercadorias, depois trabalhou como
vendedora de computadores, auxiliar de caixa e, antes do casamento, começou a trabalhar
como empregada doméstica, função que ocupa até hoje. De acordo com Juçara, as duas
últimas firmas nas quais trabalhou quebraram, o que reflete a crise econômica que tem
atingido lojas e empresas de pequeno porte, gerando contratações por pouco tempo, nas quais
o empregado permanece alguns meses como estagiário e logo é substituído por outro.
Íris iniciou a trabalhar como caixa em supermercado e padaria e atualmente trabalha
como empregada doméstica. Ela está há um ano em uma casa de família e ainda não teve a
carteira de trabalho assinada.
Marta começou a trabalhar em uma fábrica de tecidos, depois trabalhou em um
mercado e fazem cinco anos que trabalha como auxiliar de serviços gerais no SESC - Serviço
Social do Comércio.
Laura também passou por outras ocupações antes de trabalhar como empregada
doméstica. Ela começou trabalhando como vendedora em uma fábrica de flores e depois como
recepcionista, garçonete, babá e faxineira.
Como há um fluxo de emprego/desemprego bem significativo principalmente nas vidas
de Juçara, Laura e Íris, os condicionantes de classe e gênero podem explicar os seus percursos.
Algumas delas trabalhavam em firmas que fecharam e as possibilidades de encontrar outras
profissões com garantias como carteira de trabalho foram se reduzindo. Quando engravidaram
ou casaram estas chances se tornaram cada vez menores, e como Laura explicou na sua
133
trajetória de vida, para as mulheres com pouca escolaridade é mais difícil encontrar outro
serviço e elas acabam trabalhando como empregadas domésticas, babás ou faxineiras.
Como quatro mães têm experiências com trabalhos domésticos, vale a pena situar estas
atividades no âmbito da sociedade brasileira, tal como propõe Santos (2000, p. 131-134). A
economista explica que o emprego doméstico no Brasil faz parte da história da nossa
sociedade fundada nas discriminações de classe, gênero e raça. Como o trabalho de empregada
doméstica prescinde de aprendizagens escolares ou de uma aprendizagem formal, ela
questiona se a atividade de empregada doméstica é uma categoria profissional30.
Das quatro mães que trabalham com serviços domésticos, nenhuma delas estava com a
carteira assinada no período das entrevistas. Elisa disse contribuir com o INSS, Juçara e Laura
estavam desempregadas e sem carteira assinada e Íris ainda estava fazendo uma experiência
no trabalho.
Como assinala Santos (2000), mais da metade das empregadas domésticas no Brasil31
não possui carteira de trabalho. Estas trabalhadoras que não têm carteira de trabalho
desenvolvem uma atividade informal. Ela também chama a atenção para o fato de que, em
comparação com outros empregos, as empregadas domésticas não têm uma maior flutuação
em suas atividades profissionais do que outras profissões. Nós também observamos que depois
que as mães começaram a trabalhar como domésticas ou faxineiras, não passaram por outros
serviços.
Os cônjuges de Marta, Íris e Elisa se encontram no vai e vem do mercado formal e
informal, predominando entre eles os serviços gerais e os biscates, além dos longos períodos
de desemprego. O cônjuge de Elisa tinha começado a trabalhar há quatro meses como
encanador em um estaleiro e, segundo ela relatou, passou um longo período desempregado. O
cônjuge de Íris também faz biscates como eletricista e seguidamente está sem serviço. E o
30
Existem no Brasil cerca de três milhões de empregadas domésticas; a autora explica que, segundo a lei
5859/1972, a atividade é oficializada e compreende todo/a empregado/a que presta serviço de natureza contínua e
de finalidade não lucrativa a pessoa ou família no âmbito residencial. Mas a proximidade e a continuidade dos
serviços cria certa intimidade com as famílias e ela argumenta que isto dificulta o reconhecimento desta
atividade, como categoria de emprego ou profissão. Este relacionamento entre empregada e patrões produz
contradições, pois ao mesmo tempo que a atividade traz uma característica de servidão, por outro lado, algumas
são como membros das famílias. Este argumento, segundo a autora, bloqueou os direitos trabalhistas da
profissão.
31
Segundo dados da economista 60% das empregadas domésticas não possuí carteira de trabalho, 30% tem
carteira de trabalho e 10% são autônomas.
134
cônjuge de Marta, que trabalha com construção civil, no período da entrevista estava sem
trabalho. Assim, nenhum deles tem uma renda certa. Somente os cônjuges de Juçara e Laura
estavam empregados e com carteira assinada, e as duas não comentaram sobre casos de
desemprego entre eles. O cônjuge de Juçara trabalha como motorista de caminhão e recebe em
torno de 500,00 reais e o de Laura trabalha como repositor de mercado e recebe 260,00 reais.
Nos casos de Marta, Elisa e Íris, são as mulheres que mantêm a casa e, por isto, seus
filhos permanecem na creche. Ocorre uma centralização das responsabilidades pelo sustento
das famílias entre estas três figuras femininas, que são mantenedoras das famílias durante
longos intervalos de tempo. Os casos de Juçara e Laura são diferentes, porque seus maridos é
que são os provedores. Contudo, ambas contribuem com as despesas da casa. Laura afirmou
que precisa ajudar o cônjuge que recebe um salário baixo e Juçara, além de apreciar a
oportunidade de sair do âmbito doméstico, trabalha para ajudar o marido na construção da
casa.
Quando Juçara fala sobre sua necessidade de trabalhar para comprar algumas coisas
para os filhos, ou para ajudar nas obras da casa, é diferente, por exemplo, de Marta, que diz
estar cansada de ter que sustentar a casa. Tanto Juçara quanto Laura interromperam o trabalho
para cuidar dos filhos. Juçara foi demitida, porque falhou ao serviço algumas vezes para cuidar
de Marcos; Laura parou de trabalhar nas duas vezes em que ficou grávida.
Nosso objeto de estudo não é o trabalho doméstico, mas sim o trabalho de tomar conta
de crianças, que caracterizamos como domiciliar. Mas quando nos propomos discutir os
sentidos deste trabalho para as mães, não podemos ignorar que elas trabalham com serviços
domésticos. Logo, o serviço de tomar conta, nesse caso, se direciona às crianças de mães que
exercem profissões domésticas. Potengy & Paiva (1999, p. 109) explicam que o conceito de
trabalho assalariado torna-se inadequado para refletir sobre o trabalho feminino em âmbito
doméstico, geralmente caracterizado pela dupla ou tripla jornada de trabalho. Elas ressaltam
que a dicotomização entre as atividades consideradas como de produção, geralmente centradas
no desenvolvimento do trabalho assalariado, e as atividades ligadas à reprodução social dos
indivíduos, comumente realizadas por mulheres e nos espaços domésticos, acabou excluindo
os estudos sobre trabalho doméstico da esfera econômica.
Não é nossa intenção ampliar estas discussões, mas como estamos tratando de mães
que fazem serviços domésticos tanto fora como dentro das suas casas, é interessante destacar
135
que há várias estudiosas brasileiras32 que investigam o trabalho feminino em âmbito
doméstico. Potengy & Paiva (1999) situam o início dos estudos sobre a mulher, com um
enfoque no trabalho feminino, no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970. Foi a
emergência do movimento feminista que forneceu as condições para a legitimação da
condição feminina como objeto de análise. Igualmente uma corrente de estudos sobre gênero
se preocupava em ampliar as investigações sobre trabalho, incluindo o trabalho doméstico.
De acordo com as autoras (Potengy & Paiva, 1999, p. 108) a crise econômica dos anos
80 impulsionou um número cada vez maior de mulheres a aceitar empregos não
regulamentados, devido as rendas decrescentes das famílias, especialmente na América Latina
e na África. As mulheres latinas estão fortemente representadas no setor informal e doméstico.
Para estas autoras, as atividades realizadas pelas mulheres no âmbito doméstico fazem parte de
um sistema de produção que se aproveita do trabalho feminino por ser mais barato e definido
como tarefa da dona de casa.
Ambas ainda enfatizam que qualquer análise sobre o trabalho feminino deve estar
atenta à articulação entre produção e reprodução, assim como às relações sociais entre os
gêneros. Com relação ao que elas escrevem investigamos um grupo de mães cujo trabalho tem
estreita relação com o trabalho dos cônjuges. Uma parte delas enfrenta a situação de trabalho
instável dos cônjuges, desempenhando o papel de mantenedoras das famílias. Mas ainda
executam boa parte das tarefas domésticas e responsabilizam-se pela criação dos filhos os
quais, por força das circunstâncias e das limitações que enfrentam na vida diária, delegam a
Denise.
No que diz respeito à feminização da força de trabalho, aspecto que exploramos no
capítulo anterior, é interessante o posicionamento de Ferreira (2002, p. 116-155) de que a
feminização da força de trabalho na verdade tem por detrás um fenômeno de generalização da
relação salarial típica da mão-de-obra feminina a todos os trabalhadores. Assim, nesse
processo, um número cada vez maior de homens vê-se na condição laboral das mulheres, isto
32
Além das autoras referenciadas no texto destacamos outras contribuições como: BRUSCHINI, Cristina.
Mulher e trabalho: uma avaliação da década da mulher. São Paulo: Nobel, 1985; BRUSCHINI, Cristina. Mulher,
casa e família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo: FCC, 1990; BRUSCHINI, Cristina.
Maternidade e trabalho feminino: sinalizando tendências. Reflexões sobre gênero e fecundidade no Brasil. FHI
[S.L], 1995; SAFFIOTI, Heleieth I.B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Quatro
Artes, 1969; SAFFIOTI, Heleieth. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1989, entre outros
estudos brasileiros.
136
é: atomizados, não-organizados e sem segurança econômica, como nos casos dos cônjuges de
Elisa, Marta e Íris.
3.2.3 Trabalho, casamento e lazer na perspectiva das mães
Vimos nas trajetórias das mães como os horários de trabalho e as rotinas cotidianas de
acordar, levar e buscar os/as filhos/as na creche, de chegar em casa e ter ainda que trabalhar,
ou adiantar as coisas para o dia seguinte, são acontecimentos presentes nas suas vidas.
Uma questão nos instiga. Estas mulheres não são provedoras de uma família
monoparental, como é o caso de Denise, mas acumulam tarefas como a de sustentar a família,
responsabilizam-se quase que inteiramente pelos/as filhos/as na ausência de Denise, e ainda
executam os serviços domésticos da casa. Ocorre uma centralização do trabalho doméstico
entre as mães e a divisão das tarefas com os cônjuges é quase imperceptível. Provavelmente
tenhamos aqui uma das explicações para entendermos porque mulheres como Elisa, Marta e
Íris necessitam da creche domiciliar, pois os cônjuges, mesmo quando desempregados, não se
responsabilizam pelos/as filhos/as e pelos serviços domésticos. Essa é uma estrutura familiar
que centraliza todas as decisões na figura da mãe, sobrecarregando estas mulheres. Não
podemos afirmar, portanto, que encontramos um modelo de família patriarcal onde o homem é
ao mesmo tempo o chefe e provedor. Nos casos destas três mulheres, o que ocorre é que elas
são as provedoras e as responsáveis pelos/as filhos/as, embora os homens tomem decisões e
assumam a posição de chefia.
Lobo (1992, p.259) faz uma crítica interessante sobre a produção brasileira que tem
relacionado a divisão sexual do trabalho com o patriarcado. Ela discorda da insistência de
colocar tal problemática no âmbito do patriarcado e cita Rowbotham33 (apud Lobo, 1992, p.
259-260), para a qual a palavra patriarcado apresenta muitos problemas, pois trabalha com
uma forma universal e histórica de opressão, com uma estrutura fixa, enquanto as relações
entre homens e mulheres são mutáveis e fazem parte de heranças culturais e institucionais,
assim como implicam tanto em reciprocidades quanto em antagonismos.
33
ROWBOTHAM, Sheila. Lo malo del “patriarcado”. In: SAMUEL, R. Historia popular y teoría socialista.
Barcelona: Crítica, 1984.
137
Nesse sentido, interessamo-nos em compreender como estas cinco mães percebem o
trabalho e a divisão das tarefas domésticas, o casamento e o lazer. Pensamos que algo pode
justificar porque elas suportam esse excesso de responsabilidades.
Para entender estas mães e seus posicionamentos precisamos considerar que elas são
mulheres pobres, que trabalham fora de casa e que se responsabilizam quase que inteiramente
pelos serviços domésticos. Isto nos remete a duas questões fundamentais. Primeiro há um
recorte de classe que nos ajuda a compreender este grupo.
Elas fazem parte das camadas populares e alguns estudos brasileiros vinculados à
antropologia e referenciados no capítulo anterior discutem porque mulheres como Íris, Elisa e
Marta necessitam da figura masculina do chefe ou provedor, mesmo quando são elas que
assumem tais funções, ainda que temporariamente. Na sociologia há estudos que questionam
porque as mulheres experimentam sentimentos de onipotência com o acúmulo de tarefas
(Izquierdo, 1999), o que não pode ser explicado somente pelo viés econômico e pela classe
social. O recorte de gênero nos permite buscar uma visão menos reducionista dos motivos que
levam estas mulheres ao acúmulo de tarefas, o que se relaciona com suas percepções sobre
divisão sexual do trabalho, casamento e tempo para o lazer.
Lobo (1992, p. 260-263) procura situar a importância do uso do gênero como categoria
analítica nos estudos sobre trabalho feminino e divisão sexual do trabalho. Ela
fundamentalmente defende a articulação da divisão sexual do trabalho com a categoria gênero
no âmbito da sociologia do trabalho, porque é possível uma compreensão das metamorfoses
do trabalho, das subjetividades e identidades que são construídas no trabalho, entre outras
questões. Um outro aspecto que ela discute é que a relação de trabalho, enquanto relação
social, traz embutida uma relação de poder entre os sexos.
Embora residindo com os cônjuges, as cinco mães os caracterizaram como figuras
distantes do trabalho doméstico, da dinâmica familiar e da criação dos/as filhos/as, ainda que
Elisa, Íris, Juçara e Laura tenham relatado que ocorre algum tipo de ajuda momentânea dos
homens, principalmente nos finais de semana. A divisão dos papéis sexuais no trabalho foi
alvo de críticas das informantes, mas ao mesmo tempo foi reconhecida como algo naturalizado
e difícil de romper.
Elisa explicou que quando uma mulher sai de casa para trabalhar é porque o que o
marido ganha não é suficiente para sustentar a família. Mas ao chegar em casa, o homem quer
138
que a mulher cuide desta e dos filhos, como se não bastasse o que ela faz na rua. Elisa
considera que é mais fácil ser homem, pois eles enfrentam menos restrições do que as
mulheres e relaciona este fato com as normas culturais que, de certa forma, reforçam esses
papéis:
“Que o homem chega e bota a perna pro alto, vai ver TV, ou então vai pro
bar tomar cerveja com os amigos, ou vai jogar bola...e a mulher trabalha
fora e chega em casa, então já é obrigação dela...ela já sabe que não pode
nem mandar o marido fazer, ela sabe que tem que chegar, arregaçar as
mangas, fazer comida, né, lava uma roupa essas coisas assim. Então isso
já ficou prá mulher, então é uma questão de cultura, né? Um preconceito
de achar que mulher tem que fazer e às vezes no trabalho ela dá muito
mais duro do que o homem” (Elisa, 21/08/01).
O cônjuge de Íris chega mais tarde em casa e ela assume a responsabilidade de adiantar
os serviços domésticos e cuidar dos filhos. Mesmo que José ajude nos finais de semana, ela
reconhece que as responsabilidades de organizar a casa são assumidas por ela durante a
semana.
O caso de Marta é o mais difícil entre as mães, porque Carlos não consegue ficar com o
filho, nem mesmo nos finais de semana. Além disso, sua filha mais velha saiu de casa devido
aos problemas com o padrasto. Marta acumula a função de mantenedora da família, assume
todos os encargos domésticos e sofre violência física e verbal cotidianamente, devido ao
alcoolismo e dependência de drogas do cônjuge. O cansaço parece fazer parte da sua vida
diária e não foi possível perceber qualquer sinal de motivação na vida de Marta, ao contrário
das outras mães que, mesmo enfrentando problemas com o excesso de responsabilidades, têm
uma relação estável com os cônjuges, ou disseram que eles são bons pais, apesar das
discussões freqüentes, como no caso de Juçara.
Juçara se destaca no grupo, porque o cônjuge não aceita que ela trabalhe fora de casa e
prefere que ela cuide dos filhos. Nesse sentido, ela não fez comentários sobre o acúmulo de
tarefas domésticas, mas centralizou seu discurso na necessidade de trabalhar fora, para
oferecer uma vida melhor para os filhos. Esta é uma situação vivida com muita tensão e brigas
entre o casal, porque João sente ciúmes de Juçara e pensa que ela quer trabalhar para se
divertir.
139
Para Laura, que no momento cuida do bebê de três meses, há diferenças na divisão do
trabalho, principalmente com relação aos cuidados e educação dos filhos. Assim ela contou
que Renato apenas passeia com os filhos nos finais de semana e que ela é responsável pelos
cuidados cotidianos de Patrícia e Júnior. No discurso de Laura aparece uma distinção bem
clara sobre a função do homem e da mulher: a gente que é mãe, a gente convive com a
criança...o pai não, ele trabalha e leva para passear.
Como podemos constatar há diferenças entre as responsabilidades de Elisa, Marta e Íris
e as responsabilidades de Laura e Juçara. Laura reconhece que é o homem quem deve
trabalhar fora, embora tenha dito que precisa trabalhar outra vez, porque a renda de Renato é
insuficiente para sustentar a família. Mas provavelmente Laura ficaria em casa cuidando dos
filhos, se a renda de Renato fosse maior. Também podemos supor o mesmo a respeito de
Marta, que é mantenedora por necessidade, de Elisa que explicou que uma mulher trabalha
quando a renda do cônjuge é insuficiente para manter a família, ou de Íris que ainda não
regularizou a carteira de trabalho e que reconhece a situação profissional instável de José.
Somente Juçara afirmou que gosta de trabalhar, mas seus motivos são certamente mais amplos
do que aumentar a renda familiar.
O trabalho significa para Juçara uma possibilidade de estabelecer contatos com o
mundo da rua, de sair do lar e da convivência com o marido e os filhos, para ver pessoas
diferentes e experimentar coisas novas, ainda que ela mantenha um discurso de que deseja
trabalhar para aumentar a renda da família. Desta forma, Juçara encontra resistência da mãe e
do marido:
“Pra ele mulher tem que ser assim: dentro de casa. Pra fora, só se for
levar uma criança no médico. Minha mãe diz que eu deveria ficar só
dentro de casa, aceitar aquilo e só aquilo. Eu não, eu quero mais porque
quando eu era criança eu tive pouco, né. Não tinha roupa nova, não podia
sair de casa, não podia ir a aniversário, não podia comer isso porque não
tinha dinheiro, quer dizer eu quero mais pros meus filhos. Ele acha que
não, que eu quero trabalhar prá poder ir passear, ficar na rua...então é
nessas partes que a gente briga muito. Ele nem queria que eu voltasse a
trabalhar de novo, mas ontem eu falei prá ele. Eu falei assim: ‘-olha, eu
vou voltar a trabalhar’ ele falou: ‘-ah, então se você voltar a trabalhar eu
saio de casa’. E eu falei prá ele: ‘-então você saia, mas eu vou trabalhar’.
Pior não pode ficar, né, porque você vai ter que dar as coisas das crianças,
140
pelo menos eu vou trabalhar sossegada, porque eu trabalho preocupada só
numa coisa: não com as crianças, é de eu chegar em casa um pouco mais
tarde e ele vir brigar comigo, vir reclamar que (...) ele bebe um pouco, aí
às vezes se altera e quer partir prá agressão (...)” (Juçara, 24/08/2001).
A mãe e o marido de Juçara têm um modelo de família nuclear, no qual o homem deve
ser o provedor e a mulher deve cuidar dos filhos e da casa. Pela trajetória da infância de
Juçara, nós vimos que antes da separação, sua mãe não trabalhava fora de casa: Quando os
meus pais moravam juntos, minha mãe não fazia nada e só tomava conta da casa.
Mas este modelo de família que, de certa forma, estrutura as vidas das mães e seus
cônjuges não significa que as mulheres são incapazes de exercer poder. Como vimos, Juçara
relatou sua decisão de trabalhar, mesmo enfrentando os argumentos contrários do marido e da
mãe a respeito da sua decisão. Elisa, com muito esforço, conseguiu impedir a continuidade do
alcoolismo do cônjuge, usando, inclusive a estratégia de separação:
"(...) tanto é que eu me separei do meu marido por causa disso. Porque ele
estava com problemas sérios de bebida. Então ele bebia, ele não tinha
controle. Ele chegava em casa xingando. Então eu preferi separar, sair até
mais por causa da Jane. Prá mim era muito mais confortável morar na
minha casa do que pagar aluguel. Mas eu via que aquilo estava
prejudicando a educação dela (...)" (Elisa, 21/08/01).
Possivelmente, o contato que estas mães mantêm diariamente com mulheres das
camadas médias também é elemento formador de concepções de gênero e trabalho não tão
rígidas nos discursos, ainda que na prática elas continuem com sobrecarga de trabalho.
Elisa apresenta um nível de percepção avançado sobre a discriminação no trabalho,
quando analisa que mesmo que os homens e as mulheres desempenhem uma mesma função,
são as mulheres que acumulam mais tarefas e recebem salários inferiores:
“E um dia eu estava numa lanchonete, aí tinha um rapaz atendendo, e a
moça lavando a louça. Quer dizer, o rapaz às vezes não tinha mais
fregueses, aí cruzava os braços. E ela o tempo todo trabalhava. Eu
comentei com o Neuci: ‘ - poxa vida, no final do mês o salário dela não
chega aos pés do que ele ganha. Sempre menos. Ela trabalha muito mais
141
e ganha muito menos’. Quer dizer, isso já é do preconceito mesmo, né...a
mulher trabalha muito mais até pra ajudar a família. Porque se você sai de
casa pra trabalhar é porque o que o marido ganha não é suficiente, até pra
comprar tudo o que precisa, né? Então o que o marido ganha não tem
condições da mulher ficar em casa. Ela tem que sair pra trabalhar
também. E o homem chega a noite e ainda acha que é obrigação dela, né?
Além do da rua, o da casa e o dos filhos também (...) Enquanto Jane não
dorme, eu não consigo fazer outras coisas, cuidar de mim, sabe? E as
outras coisas tudo pra mim. Então vida de mulher é muito mais difícil. Aí
eu acho que nem é classe social, é geral mesmo. Pode ter muito dinheiro,
nem trabalhar fora, mas a responsabilidade que você tem que ter com a
casa, até com os empregados, é muito mais, o homem chega ali com o
dinheiro, mas o resto ele não quer saber. Então em questão de sexo, em
geral a mulher tem muito mais responsabilidade do que o homem. Em
todas as classes sociais sempre foi assim” (Elisa, 21/08/01).
Como podemos observar, Elisa apresenta um nível de percepção avançado no discurso,
mas na prática ela própria reconheceu que trabalha mais do que Neuci. O mesmo acontece
com Íris e Laura, que têm noção da divisão sexual do trabalho, mas que não rompem com
estes papéis na vida diária.
Os sociólogos portugueses Torres & Silva (1998, p.36-37), pesquisaram a guarda das
crianças e a divisão do trabalho entre homens e mulheres na região da Grande Lisboa,
concluíram que são as mulheres que continuam a assegurar o essencial das tarefas domésticas
e o cuidado com as crianças, mesmo quando elas trabalham fora de casa. O preparo das
refeições, o cuidado dos/as filhos/as e da casa são tarefas que exigem mais tempo e maior
disponibilidade diária. A partilha das tarefas domésticas e dos cuidados com as crianças está
longe de ser igualitária, ocorrendo naquele país uma tendência geral de sobretrabalho
feminino.
Como no grupo de mães que entrevistamos, os autores (1998) encontraram um
enfraquecimento dos papéis sexuais tradicionais em comparação com as gerações anteriores,
pois os homens tendem a participar um pouco mais da vida doméstica. O marido de Íris é
quem leva o filho na creche domiciliar, assim como ajuda nas tarefas da casa nos finais de
semana. Juçara relatou que seu marido é um bom pai e passeia com os filhos nos finais de
semana. Elisa disse que quando Neuci está em casa ele oferece atenção a Jane e também está
construindo a casa nova, assim como Laura contou que Renato sai com as crianças para
142
passear nos finais de semana. Mas, como destacam os sociólogos portugueses, tudo se passa
mais ao nível do discurso e das boas intenções, do que em mudanças significativas na prática.
No Brasil, Berquó (1998, p. 415) também observa que estaria havendo uma tendência à
passagem de uma família hierárquica para uma família mais igualitária, tendência mais visível
nas camadas médias urbanas e, com o tempo, passando a permear também as camadas
populares.
Para as cinco mães, o trabalho fora de casa torna-se uma necessidade devido às
situações de desemprego dos cônjuges, a instabilidade de renda e aos salários baixos, que não
são suficientes para cobrir as despesas das famílias. Como vimos, ocorre um acúmulo de
tarefas para as mulheres que trabalham, porque é necessário oferecer atenção e cuidado aos
filhos durante a noite, assim como organizar a casa. Por isto, ao mesmo tempo que elas
reconhecem a dupla jornada de trabalho, também se culpabilizam porque não conseguem
dedicar o tempo que sobra para a criação dos filhos. Ressaltamos que embora a culpabilização
apareça nos discursos, surge difusa numa crítica às atitudes das outras mulheres:
“(...) porque tem mulher que não consegue separar as coisas do trabalho.
Então já tem que ficar o dia todo trabalhando. Então à noite às vezes está
cansada, então dá um tempinho...pelo menos uns cinco minutos, né. As
mulheres de hoje, poucas delas estão com aquela responsabilidade de mãe
que deveria ter. Sempre a desculpa do trabalho. Eu não acredito que o
trabalho influencie e atrapalhe a educação da criança. Se a pia está cheia
de louça, se a minha casa está bagunçada, entre arrumar a casa e dar
atenção a minha filha, eu prefiro dar atenção primeiro, sabe?” (Elisa,
21/08/01).
Ainda comentam Torres & Silva (1998, p. 34-35) que mães e pais estão cansados e
culpabilizados pela menor atenção que consideram dar aos filhos/as, mas entre as mulheres tal
sentimento tem mais força. A concordância com a idéia de que os/as filhos/as merecem mais
atenção do que a que eventualmente recebem é mais destacada pelas mulheres do que pelos
homens. Ambos ainda observam que é nas profissões operárias ou entre os trabalhadores não
qualificados que a idéia de cansaço no trabalho é maior, e que são tanto as mulheres que
ocupam profissões que envolvem grande dedicação e correspondem a altos rendimentos
quanto as mulheres que ocupam profissões não qualificadas, mais duras e com baixos
143
rendimentos, que reafirmam a falta de atenção dada aos filhos/as. Os dados analisados pelos
autores demostram as dificuldades de conciliação entre vida familiar e vida profissional, sob o
ângulo do cuidado/educação das crianças. A escassez dos equipamentos, a falta de apoio
familiar, as baixas remunerações e o sobretrabalho para fazer face às despesas familiares são
fatores apontados no artigo como importantes para explicar declarações tão evidentes de
cansaço.
Marta, por exemplo, além de se culpar pelo pouco tempo que dedica ao filho, também
se culpa pela violência do marido que atinge Daniel e que afastou sua filha mais velha de casa.
Mais do que as outras mães, ela se queixou do cansaço do trabalho e da vida difícil com
Carlos:
“(...) eu quase não entro na casa de Denise, porque eu chego muito
cansada do meu trabalho. Eu deito, descanso, durmo, aí acordo e vou
fazer as coisas. E quando eu vejo já está na hora de dormir de novo. Eu
trabalho direto sábado e domingo, quando eu trabalho sábado, eu folgo no
domingo. Eu deixo ele aqui esse tempo todo. Eu preciso trabalhar. Porque
às vezes tem dias que o meu marido fica em casa a semana toda, meses
sem trabalhar; então eu tenho que bancar tudo isto...eu acho que essa
situação é difícil (...)” (Marta, 28/08/2001).
Os relatos sobre os primeiros dias dos/as filhos/as na creche fornecem elementos
interessantes sobre a culpabilização das mães. É interessante que tal sentimento bate mais forte
justamente entre as que sofrem por ter que trabalhar e deixar as crianças com Denise.
Juçara, Laura e Íris são as mães que menos demonstraram sentimentos de culpa e
sofrimento quando relataram os primeiros dias em que deixaram os/as filhos/as na creche.
Juçara contou que o filho mais velho chorou nos primeiros dias e que ela ficava alguns
minutos com ele até o choro passar. Sobre o bebê ela não fez comentários, até porque a
presença do irmão mais velho na creche certamente deixou Mauro mais tranqüilo. Íris não
mencionou qualquer dificuldade para deixar Mateus na creche, até porque ela e Denise
mantêm uma relação de amizade e convivência que envolve adultos e crianças de ambas as
famílias. Como a filha de Laura já freqüentava uma outra creche domiciliar, ela contou que
Patrícia chorou um pouco, mas em seguida se acostumou a ficar com Denise de segunda a
sábado.
144
Elisa é a mãe que mais se culpa pelo pouco tempo disponível para a filha. Agora que o
cônjuge conseguiu emprego, ela disse que está mais disponível para dar atenção a Jane, pois
antes se cobrava muito.
Quanto à adaptação de Jane, Elisa explicou que foi mais difícil para ela do que para a
filha. A menina ainda mamava no peito, quando entrou para a creche. Jane estava com pouco
mais de um ano e Elisa sofreu porque precisava trabalhar. Imaginava que a filha ao ficar com
outra pessoa iria chorar muito. Por isso se surpreendeu, porque não imaginava que ela fosse
reagir tão bem:
“Ela tinha o costume de dormir só no meu colo e a Denise e a Nilcéia
passaram uns dois dias com ela no colo e depois ela foi acostumando. No
primeiro dia ela me chamava, mas não chorou o dia inteiro, só algumas
horas. Prá mim foi horrível, eu saía do trabalho e vinha correndo. Acabou
que quem chorava era eu e saía contando a hora de voltar” (Elisa,
21/08/2001).
A situação de Marta não é diferente da de Elisa. Como seu filho chorou nos primeiros
dias, ela sentiu tristeza e chorava, porque já tinha passado por isso. Para Marta e Elisa ter que
trabalhar e deixar os/as filhos/as é algo difícil de suportar:
“Eu ficava triste e cheguei a chorar porque já tinha passado por isso. Por
causa da minha filha, quando eu trabalhava eu deixava ela e chorava. Aí
eu lembrava da minha filha e chorava pensando nele. Eu sou totalmente
contra sair e deixar o meu filho. Mas eu preciso trabalhar”(Marta,
28/08/2001).
Como não há uma divisão igualitária das tarefas domésticas e dos cuidados dos/as
filhos/as entre estas mães e os cônjuges, pensamos que a culpabilização tende a se expandir,
na medida em que elas se sentem impotentes para resolver tantas demandas. A figura da
tomadora de conta surge como a substituta das mães, mas esta é uma análise que
desenvolveremos posteriormente.
Torres & Silva (1998) observam que não partilhar as tarefas domésticas e os cuidados
com os/as filhos/as pode ocasionar uma relação “perversa” entre o casal, o que já foi estudado
145
desde os anos 60, em países como Bélgica, França e Estados Unidos. A conclusão destas
pesquisas aponta que a satisfação no casamento é tanto maior, quanto mais repartidas forem as
tarefas domésticas e os cuidados com as crianças (Michel34 apud Torres e Silva, 1998).
Para Juçara e Marta a experiência do casamento está atravessada de frustrações e as
duas falaram da possibilidade de separação, mas estas mães têm experiências diferentes.
Juçara relacionou as dificuldades do casamento com o comportamento desconfiado e algumas
vezes agressivo de João, mas por outro lado falou que não se separa porque ele é um bom pai.
Como Juçara reside no terreno da mãe, para ela parece mais fácil lidar com a possibilidade de
separação. Marta convive com a violência cotidiana de Carlos, devido ao alcoolismo e à
dependência de drogas. Assim, contou que não se separa dele porque tem medo que ele vá
perturbá-la.
Entre as cinco mães, Íris é a que vive uma relação mais tranqüila com o cônjuge.
Mesmo reconhecendo que trabalha mais do que José durante a semana, para ela a vida de
casada é melhor do que a experiência vivida na infância e na juventude.
Hoje Elisa e Neuci vivem bem, pois Neuci parou de beber e tem uma relação tranqüila
com a filha, além de estar construindo a casa própria do casal. Laura foi a única que não fez
comentários sobre o casamento. Ela apresenta posicionamentos bem rígidos quanto ao
casamento e educação das crianças. Para ela a mulher é quem assume os encargos da casa e
dos filhos e o papel do cônjuge é trabalhar para sustentar a família.
Certamente esta sobrecarga de trabalho, assim como os sentimentos de culpa com
relação ao pouco tempo dedicado aos filhos/as, repercutem na vida diária dessas pessoas. Sem
tempo para as crianças e para si, questionamos se as mães conseguem dedicar algum tempo de
suas vidas ao lazer. Em primeiro lugar, o lazer se restringe ao local no qual residem, porque
sair para outros bairros ou cidades demanda maiores recursos econômicos ou tempo, o que é
praticamente inviável.
Nenhuma das cinco mães representou o bairro Saudade como um local que pode ser
agradável; ao contrário, seus sentimentos a respeito do bairro são negativos. Principalmente
pela violência gerada pelo tráfico de drogas e pela infra-estrutura precária, os desejos de Marta
e Íris refletem a necessidade de mudança do Saudade:
34
MICHEL, Andrée. Sociologia da família e do casamento. Porto: Res Editora, 1983.
146
“Não gosto daqui desse lugar, não me agrada. Mas infelizmente o meu
marido parece que está enterrado aqui, não quer sair daqui. Eu pedi a ele
para sair, mas ele não quer sair daqui. Então tem que ficar onde ele quer”
(Marta, 28/08/2001).
“Nesse lugar que a gente vive é muito ruim, você não pode deixar uma
criança sair sozinha. Porque aqui eles não têm segurança nenhuma” (Íris,
28/08/2001).
A rua ou os espaços públicos do bairro Saudade apresentam uma divisão bem nítida
entre a circulação dos homens, das mulheres e das crianças. Assim, quando caminhamos pelo
bairro encontramos os homens em grupos jogando cartas, bebendo ou conversando. Mas as
mulheres geralmente circulam acompanhadas das crianças ou conversam na frente das casas, o
que provavelmente se relaciona com o medo da violência que pode ocorrer a qualquer
momento.
A Presidente da Articulação de Creches Comunitárias fez uma outra análise, mesmo
reconhecendo que hoje a violência é o principal problema do bairro. Ela explicou que os
homens encontram maiores dificuldades para conseguir trabalho e, assim, circulam mais do
que as mulheres, que ou estão trabalhando fora de casa ou estão envolvidas com as tarefas
domésticas:
"Eu acho que na periferia tem isso: os homens têm mais dificuldade de
arranjar trabalho, as mulheres têm mais facilidade até porque mulher lava
roupa, limpa a casa e os homens nem sempre arranjam trabalho. Então
tem mais homens mesmo. São homens desempregados. Porque na rua
sempre pinta alguma coisa. Pede, sei lá, pra desentupir um banheiro. É
alguém que chama prá carregar um aterro, sempre pinta uma
possibilidade. O horário de se procurar trabalho é na madrugada, ir nas
obras, por exemplo, quem trabalha em construção, quem vai trabalhar
com peixe vai de madrugada pro mercadão, quem trabalha no lixão tem
que trabalhar até 9h, 10h da manhã. Então depois de 10h, 11h é comum
você encontrar os homens pela rua. E tem aqueles que sabem que não vão
arranjar emprego, não vão arranjar nada. Vão fazer biscate o tempo todo"
(Isadora, 03/07/01).
147
Mas este estar na rua, que é diferenciado entre os homens e as mulheres, também se
relaciona com o medo e a necessidade de proteger as mulheres e as crianças da violência do
local. É comum que a polícia entre no bairro proibindo a população de circular livremente,
principalmente quando há “batidas” para encontrar traficantes ou usuários de drogas.
Nesse sentido, para este grupo de mães se reduzem as possibilidades de lazer no bairro
Saudade, o que não significa que seus moradores não se divertem. No local há bailes funk,
rodas de pagode, campeonatos de futebol e cafifa e encontros em bares, nos quais os homens e
as mulheres mais ousadas saem para beber e conversar. Nosso grupo de mulheres deseja
fundamentalmente um tipo de lazer mais familiar, ou locais onde elas possam levar suas
crianças com tranqüilidade.
Elisa falou que costuma sair com a filha para visitar parentes ou ir à igreja, assim como
reconheceu que há uma divisão entre as formas de diversão femininas e masculinas e que
algumas mulheres vão para o botequim como os homens, mas as mais comportadinhas ficam
em casa assistindo TV, enquanto os cônjuges se divertem com os amigos. Ela igualmente
manifestou seu ressentimento com relação às poucas opções de lazer, argumentando que
mesmo nos subúrbios, a organização e o lazer podem fazer parte do cotidiano dos habitantes.
Tal como Elisa, Juçara relatou que não há possibilidades de diversão no bairro e que a
programação com os filhos envolve visitas aos parentes. Ela apontou outros problemas no
local, tais como violência, ausência de assistência médica e demora na obtenção de consultas
médicas, bem como ausência de creches públicas. A situação de Laura não é diferente da das
outras mães, pois ela e o cônjuge costumam visitar parentes, assistir campeonatos de cafifa ou
jogos de futebol nos finais de semana.
Considerando as trajetórias de trabalho das mães que, inclusive, cumprem horários nos
finais de semana e nos feriados, constatamos que elas têm pouco tempo para si e para a
diversão. A única delas que parece não conviver muito bem com esta condição de ser mulher é
Juçara, que foi buscar no trabalho uma possibilidade de relaxar com as amigas após o
expediente das sextas-feiras, o que também gerou conflitos com o cônjuge.
Como escrevem Chinelli e Durão (1999, p.100), as novas relações de trabalho
modulam horários e regimes de trabalho, ampliam turnos em dias da semana tradicionalmente
148
dedicados ao descanso, trazem o trabalho para o âmbito doméstico, difundindo diferentes
formas de atividades, nas quais as mulheres tendem a engajar-se cada vez mais.
Tal problemática interfere nas vidas dos familiares das crianças, principalmente entre
as mulheres, que têm sobrecarga de trabalho quando trabalham fora de casa. Mas há razões
não apenas econômicas que podem explicar porque elas acumulam tantas funções, ou vivem
relações tensas com os companheiros e mesmo assim continuam casadas.
Pensamos que estas mães, tal como Denise, têm um modelo de estrutura de família
nuclear que pode explicar porque elas reconhecem a desigualdade na divisão do trabalho entre
homens e mulheres mas não rompem com tal situação. Por que algumas apresentam discursos
tão avançados e, mesmo assim, continuam a reproduzir esta divisão? Ou por que três delas
sustentam a família quando os homens estão desempregados e fazem praticamente todo o
serviço doméstico? Certamente as explicações não são apenas de ordem econômica.
Possivelmente esta é uma estratégia feminina para manter a união com os cônjuges,
uma vez que nos meios populares, quando os homens constituem novas famílias, geralmente
reduzem ou perdem o contato com os/as filhos/as. Uma outra explicação é que para os homens
é mais fácil a recomposição familiar do que para as mulheres. Sobretudo entre as mulheres
mais velhas esta recomposição familiar parece mais difícil, o que não ocorre com os homens
mais velhos. E são justamente as mulheres mais velhas em nosso grupo as mantenedoras e
responsáveis pelos cuidados da casa.
Como escreve Berquó (1998, p. 417-436), o fato dos homens se casarem com mulheres
mais jovens é uma constante praticamente universal e isto se relaciona com as relações de
poder entre os sexos35. Assim, a possibilidade de mobilidade dos homens em várias uniões
instáveis é maior, e eles podem dividir-se entre diversas mulheres ao longo dos anos. A autora
destaca que à medida que homens e mulheres avançam em idade, as chances no mercado
matrimonial diminuem para as mulheres e aumentam para os homens.
Juçara e Laura, as mais novas, vivem situações diferentes das outras três mulheres.
Como vimos, Juçara não se deixou abater quando João ameaçou sair de casa caso ela
35
Esta autora ainda escreve que “São raros em nosso meio os estudos sobre ‘as moedas de troca’ oferecidas pelas
mulheres e aceitas pelos homens no mercado matrimonial, além da juventude. A persistência do fato mencionado,
no caso do Brasil, que conta com um superávit de mulheres em todas as faixas etárias a partir dos 15 anos, tem
conseqüências diretas no celibato feminino e no avolumado segmento de separadas e viúvas com poucas chances
de recasamento” (Berquó, 1998, p.417).
149
trabalhasse fora. O caso de Elisa é diferente, porque ela separou-se de Neuci quando ele não
tinha condições de pelo menos representar a figura do chefe e provedor devido ao alcoolismo,
além de ser 13 anos mais nova do que ele.
Uma outra explicação para que as mulheres segurem o casamento diz respeito à figura
do homem como proteção dentro de casa, num local marcado pela violência, em que as
pessoas não confiam no apoio da polícia.
Quando estas mulheres trabalham fora de casa, elas não conseguem ser mãe, mulher e
trabalhadora durante as 24 horas do dia. Como o tempo que elas passam longe dos/as filhos/as
é extenso, vão procurar a tomadora de conta que funciona como uma mãe substituta das
crianças.
3.3 RELAÇÕES COM DENISE E COM A CRECHE DOMICILIAR
“Quem é essa mulher
Que canta sempre este estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar...” (Miltinho/ Chico Buarque)
Quando as cinco mães trabalham, deixam as crianças aos cuidados de uma mulher que
tome conta delas em tempo integral. Como no local onde vivem não existe apenas uma
tomadora de conta, elas fazem uma escolha entre as creches domiciliares existentes. As mães
procuram justificar suas escolhas estabelecendo comparações com outras creches que não são
domiciliares, ou comparando Denise com outras tomadoras de conta. Elas apontam as
vantagens que oferece a creche domiciliar, principalmente quanto à flexibilidade dos horários
e à atenção proporcionada às crianças.
Nos primeiros contatos com Denise, as mães estabelecem acordos que são negociados
antes mesmo da entrada das crianças na creche domiciliar. A escolha e os acordos são feitos
porque elas têm expectativas quanto ao trabalho e à função da tomadora de conta. As mães
avaliam este trabalho e emitem opiniões sobre a vida de Denise, o que demonstra que as
escolhas são feitas levando em consideração a pessoa da tomadora de conta enquanto mãe,
mulher e trabalhadora. Procuraremos explorar cada um destes aspectos que constituem as
relações entre as mães e a creche domiciliar.
150
3.3.1 A escolha da creche de Denise
No bairro Saudade há uma creche comunitária36 que atende crianças de dois anos e
meio a seis anos de idade em período integral, mantida por convênios ou doações de pessoal
da comunidade. As mães que podem pagam uma taxa mensal de 15,00 reais. Também há
escolas infantis particulares, que cobram em torno de 40,00 reais por criança. Como não
entramos nas escolas infantis legalizadas temos poucas informações a oferecer, a não ser o que
soubemos sobre Jane e Estela, que freqüentam uma escola infantil em meio período para
crianças acima de três anos de idade.
Tanto a creche comunitária como as escolas infantis particulares funcionam com
crianças agrupadas por turmas, realizando atividades planejadas e orientadas pelos adultos.
Num bairro vizinho ao Saudade encontramos algumas creches filantrópicas mantidas
por políticos influentes no local, que recebem crianças carentes de zero a seis anos em período
integral e crianças maiores de seis anos em meio período.
Como as mães estabelecem comparações com outras creches não domiciliares, é
importante esclarecer sobre as opções viáveis no local, principalmente para as crianças
menores de três anos. Ocorre que dentro do bairro Saudade não há outra opção para esta faixa
etária além das creches domiciliares. Este é um dado importante para entendermos as
justificativas e comparações das mães. Logo, quando elas mencionam às creches gratuitas ou
com mensalidades baixas, as informações referem-se às creches filantrópicas ou comunitárias,
uma vez que existia em 2001 apenas uma creche pública para crianças maiores de dois anos,
em um bairro distante do Saudade.
Algumas mães disseram que no local há poucas creches diferentes das domiciliares, e
manifestaram desconfiança com relação às creches gratuitas ou creches com mensalidades
mais baixas, principalmente no tocante aos cuidados e atenção que elas desejam para os/as
filhos/as:
36
Esclarecemos que o uso do termo obedece ao que a população local reconhece como creche, que é diferente do
que está estabelecido na Nova LDB, cuja divisão é feita por faixa etária. Neste caso, as creches trabalham com
crianças em período integral, mas nem sempre com a faixa etária abaixo de zero a três anos.
151
“Eu acho que por aqui têm poucas creches, poucas opções para as pessoas
que querem trabalhar. Acho que as que têm que são gratuitas, ou que
pagam bem menos, a gente não tem confiança de deixar as crianças. Eu
moro perto de outra creche que é gratuita. Eu vejo as crianças quando
vêm de lá sujas. Parece que as meninas lá não davam banho, porque estão
com muitas crianças, né. Aí acho que não dava para cuidar de todas, e por
isso eu preferi botar ele aqui” (Íris, 28/08/2001).
“Não que as outras sejam ruins, creches comunitárias também da
prefeitura, do governo sejam ruins, pelo contrário, eu só ouço falar bem
dessas creches. Eu só não acredito que tenha um acompanhamento tão
bom quanto... Não é que eu tenha nada contra. De repente eu posso até
precisar, mas graças a Deus eu nunca precisei. Eu acho que com pouca
criança é muito mais fácil de acompanhar do que com muitas. E mesmo
porque tem muita gente que não está preparada, na hora ali não é bem
assim, a pessoa tem duas caras entendeu? Mas quando está diretamente
com a criança, a coisa de repente muda e é bem diferente, mesmo” (Elisa,
21/08/2001).
“Por aqui tem uma creche pública, mas que só cuida de criança a partir de
dois anos. Só tem uma e é muito difícil de arrumar vaga” (Laura,
27/08/2001).
Juçara estabeleceu diferenças entre a creche domiciliar e as creches legalizadas. Mas
no depoimento dela aparecem duas comparações: primeiro com uma escola infantil particular
e depois com a creche comunitária. Embora reconhecendo que a creche de Denise não é um
espaço legalizado, ela prefere as creches domiciliares, que oferecem um trabalho mais
adequado para mães que, como ela, não podem faltar ao serviço:
“Eu acho que é porque...por exemplo, estas creches legalizadas igual tem
ali a Estrelinha. Da Sônia. Só que ali, se a criança estiver doente a mãe
não pode levar porque a criança tem que tomar remédios e elas não dão.
Quer dizer, a gente que trabalha como empregada doméstica, que
começou a trabalhar agora... Criança é imprevisível. Hoje tá boa, amanhã
de repente está doente. Quer dizer, a gente vai ter que parar de trabalhar
prá poder ficar com a criança? E aí a gente acaba perdendo o emprego. Já
assim com Denise, Regina, não. Elas dão o remédio certinho, quer dizer a
gente não precisa ficar preocupada de ter que parar de trabalhar. Já lá na
creche, não. Eu tenho, por exemplo, uma cunhada que tem três filhos lá.
Quando a menina dela ficou doente ela teve que parar de trabalhar, quer
dizer, ela foi mandada embora do serviço, porque ela faltou uma semana
152
direto. Se a criança não sabe fazer cocô no vaso, não pode ficar lá, porque
elas não limpam. Então, por exemplo, prá gente que precisa mesmo, ou
que não tem uma outra pessoa prá ficar no lugar da gente, a gente tem que
botar assim mesmo. E a gente ainda tem que dar graças a Deus de
encontrar uma pessoa igual a Denise. Que tome conta, que faça tudo pelas
crianças, né...É porque assim, creche legalizada é difícil de conseguir, por
exemplo tem que estar trabalhando. Paga uma taxa mínima, mas aquele
monte de crianças prá poucas pessoas. Quer dizer, a gente fica meio
preocupada de deixar, né. Por exemplo, eu deixava as crianças aqui, mas
sem preocupação. Porque eu sei que Denise tem poucas crianças, ela
consegue ficar mais tempo com as crianças, ter um contato maior. Lá são
tantas crianças que fica meio difícil” (Juçara, 24/08/2001).
O que faz a diferença entre as creches domiciliares e as outras creches, na perspectiva
das mães, são os cuidados e a dedicação para com as crianças. Elas compreendem que o
número pequeno de crianças propicia que as tomadoras de conta ofereçam mais atenção,
proteção, que cuidem da higiene, alimentação e saúde dos/as filhos/as. Um outro aspecto que
faz a diferença é a organização da creche domiciliar em função das demandas e necessidades
das mães, que não podem se ausentar dos serviços nem mesmo quando os/as filhos/as estão
doentes.
A creche domiciliar é um local apropriado para os/as filhos/as de mães que trabalham
em tempo integral, nos finais de semana e feriados. As mães reconhecem que há vantagens de
ambos os lados, pois elas precisam trabalhar e deixar os/as filhos/as e a tomadora de conta, por
outro lado, necessita de dinheiro para sustentar sua família.
Para Elisa, o número maior de crianças por profissional dificulta um trabalho
individual que considere aspectos tais como os tempos diferentes, o respeito aos hábitos
alimentares das crianças, ou a administração dos remédios em caso de doenças.
Laura fez comparações entre a creche de Denise e uma outra creche domiciliar, na qual
deixava sua filha:
“Essa aqui da Denise já é a segunda em que a Patrícia entrou. Só que na
outra ela não se habituou. Ela se habituou mais aqui do que na outra em
que ela estava. Não se habituou, não sei porque. Uma amiga minha diz
que é porque batiam nela, aí ela não se habituou porque na época em que
ela entrou ela tinha seis meses, então ela ficou só dois meses. E aqui não.
153
No primeiro dia que ela ficou ela não chorou. Aí ela ficou dos oito meses
até os dois anos e quatro meses nessa creche” (Laura, 27/08/2001).
Juçara informou que na sua rua há uma creche domiciliar que oferece um preço mais
barato, que é o de 40,00 reais por criança; mesmo assim ela prefere deixar seus filhos com
Denise: Ela pode até cobrar 200,00 reais, mas eu só deixo se for com ela. Porque eu já estou
acostumada com a Denise, eu sei que as crianças são apaixonadas por ela, ela toma conta
muito bem.
As mães fazem suas escolhas pesquisando a vida pessoal da tomadora de conta. Elas
procuram obter informações com outras mães ou com os moradores do bairro, a respeito da
pessoa que se habilita a tomar conta de crianças. Após essas informações, elas procuram
conversar com a tomadora de conta e conhecer a casa na qual ela vive:
“Acho que em primeiro lugar fazer um levantamento do caráter da
pessoa. Saber da vida da pessoa, do comportamento dela. Então eu acho
que o principal é isso. A gente fazer um levantamento para ver se é um
lugar adequado para se colocar um filho para ficar todo o dia...a gente tem
que sair para trabalhar e não se sabe o que se passa (...)” (Elisa,
21/08/2001).
“Ela, eu já conhecia, eu via o tratamento dela com as crianças, quando ela
tinha a creche lá embaixo. Primeiro eu fui lá ver como é que era, como é
que ela tratava das crianças quando a creche dela era lá embaixo na outra
rua. Aí dei uma passada lá, olhei, um dia conversei com ela e vi como é
que ela tratava as crianças. Aí gostei, aí botei ele para fazer uma
experiência, aí ele foi ficando foi se adaptando e agora está aí, já tem um
tempão” (Íris, 28/08/2001).
As informações sobre a creche circulam no local e as mães fazem a escolha quando
têm certeza de que este é um espaço adequado para suas crianças. A primeira visita à creche
domiciliar pode ser acompanhada pelo cônjuge, como no caso de Juçara:
“Bom, quando eu decidi voltar a trabalhar quando o Marcos ia fazer dois
anos, eu tinha uma vizinha que deixava o filho com Denise. Mas nessa
época era Denise e Nilcéia aqui embaixo. Aí ela falou assim, ah é uma
boa pessoa, elas tomam conta muito bem. E o meu marido nessa parte é
154
muito chato com as crianças. Ele nunca deixou eu largar as crianças. Com
ninguém, nem com a minha mãe ele deixava. Mas quando as coisas
apertaram mesmo, pagando aluguel aí eu decidi voltar a trabalhar. Aí nós
fomos lá na Denise conversamos e ela explicou tudo prá gente direitinho.
Aí ele ficou lá. Aí depois a Denise e a Nilcéia se separaram. Aí a gente
tinha que escolher, ou a Nilcéia ou a Denise. Mas o Marcos era muito
agarrado com a Denise e então eu decidi ficar só com ela. Foi assim que
eu conheci ela. Por intermédio de outra mãe que deixava as crianças aqui”
(Juçara, 24/08/2001).
No estudo de Nelson (1990) sobre mulheres que trabalham com creches domiciliares
nos Estados Unidos, os familiares das crianças também procuram conhecer a vida pessoal da
profissional que oferece os serviços. A escolha da creche domiciliar está vinculada à
proximidade de moradia dos pais, mas estes utilizam redes informais de comunicação e fazem
consultas a pessoas de seus contatos sociais e familiares. Os pais entrevistados nessa pesquisa
confiam no que ouvem dos outros, e mesmo que as mulheres obtenham uma licença do Estado
- o que não exclui a existência das trabalhadoras ilegais - alguns pais não se preocupam com o
registro, mas com o que ouvem sobre a pessoa da trabalhadora. Entre nossas cinco mães, o
fato da creche domiciliar não ser um espaço legalizado não interfere nas suas escolhas, porque
o que elas valorizam é a pessoa da tomadora de conta e seus atributos para a função.
Para Juçara, a creche domiciliar é como uma segunda família e ela justificou seu
posicionamento explicando que as mães também são amigas de Denise. Para ela, o fato das
crianças dormirem na creche quando isto se torna uma necessidade e a flexibilidade dos
horários fazem a diferença entre a creche domiciliar e as outras creches. Assim, ela discorda
de que este espaço possa ser chamado de creche:
“Porque se tiver que dormir, a criança dorme. Não é uma creche. Numa
creche você fica de sete a sete. Passou das sete da noite não pode mais.
Sábado e domingo nem pensar. E aqui não. Se passar das sete da noite,
Denise não liga. Se precisar dormir, dorme. Se precisar passar a semana
inteira passa. Quer dizer, para mim isso não é uma creche. Creche é
quando você tem aquele horário de sete às sete e se a criança estiver
doente, não pode ficar. Tem creche que se a criança usar fraldas não pode
ficar e aqui não. Se tiver que dar remédios, Denise dá no horário certo. Eu
não chamo isso de creche. É como fosse o segundo lar das crianças. Eu
falo que ele fica com a segunda mãe dele (risos). Às vezes vem alguém
155
perguntar: ‘- com quem você deixa as crianças? Ah, eu deixo com a
minha amiga ali. É a segunda mãe deles e toma conta de crianças,
também’” (Juçara, 24/08/2001).
Marta pertence à família de Denise e falou que não tinha com quem deixar o filho e por
isto preferiu sua cunhada, que mora no mesmo quintal. Como ela acorda às quatro horas da
manhã e vai para o trabalho às cinco horas, prefere deixar Daniel com alguém de confiança:
porque é minha cunhada...e eu não confiaria em deixar o meu filho com outra pessoa.
3.3.2 Os acordos entre as mães e Denise
Como mostramos no capítulo anterior, existem acordos e negociações entre as famílias
das crianças e a tomadora de conta. Estes acordos envolvem o pagamento das mensalidades, a
contribuição com alimentos, fraldas descartáveis, roupas limpas, produtos de higiene e a
combinação dos horários de entrada e saída das crianças. Em geral, as mães entregam os
alimentos e outros produtos semanalmente. Estes acordos não seguem uma regra única para
todas elas. Dependendo da situação de trabalho e das demandas de cada mãe, Denise
estabelece diferenciações nos acordos. Por exemplo, as mães que têm dois ou mais filhos/as na
creche pagam 50,00 reais por cada criança e não 60,00 reais, conforme o preço estipulado em
2001.
Não há contrato, recibo de pagamento ou qualquer papel que possa comprovar esta
relação de serviço; entretanto, há regras e negociações estabelecidas e cumpridas durante o
período em que as crianças freqüentam a creche domiciliar.
Para Bloch & Buisson (1998), a circulação de tempo e de dinheiro entre pais e
profissionais necessita de um contrato que, na visão das pesquisadoras, confirma uma
negociação interpessoal não mediatizada por uma instituição, mas nem por isto isenta de
regulamentações. Isto gera o estabelecimento de um contrato que estipula um salário mensal
para a assistente maternal, além dos direitos e deveres de cada um, que são delimitados.
Quanto aos dias e horários de funcionamento da creche há algumas distinções, feitas de
acordo com as necessidades de cada mãe. São estas concessões que permitem que as mães
156
trabalhem sem preocupação podendo, inclusive, passear com as amigas após o expediente,
como Juçara fazia:
“Eu posso trabalhar sem preocupação. Tanto que às vezes eu chegava em
torno de 22hs nas sextas feiras. Eu parava no shopping para encontrar
com as amigas, tomar uma cerveja, mas sem preocupação. As meninas
falavam assim: ‘-Juçara, cadê seus filhos?’ Eu falava assim, tá lá com a
mãe dele, deixa eles lá. Não tem aquela preocupação de ter que vir
embora, ter que sair correndo prá ir pegar o Marcos e o Mauro. Não,
nunca tive essa preocupação. Eu sempre vinha com calma, sem pressa,
porque eu sei que aqui eles estão bem guardados” (Juçara, 24/08/2001).
Todas as mães deixam as crianças na creche em alguns finais de semana, ou em
feriados nos quais elas trabalham; da mesma forma, não há período de férias na creche. No
período da nossa coleta de dados, nenhuma das crianças precisou dormir na casa de Denise.
Marta disse que o filho costuma ficar na creche todos os finais de semana, das oito até as 16
horas, porque ela trabalha ou nos sábados ou nos domingos.Na perspectiva de Marta, Daniel
deveria ficar com o pai nos finais de semana, mas ele sempre entrega o menino para Denise.
O filho de Íris freqüenta a creche nos sábados das oito às 15 horas. Quando o marido
não trabalha, ele fica com o pai. Em alguns feriados, ela também deixa o menino na creche.
A filha de Laura, que hoje não freqüenta a creche, costumava ficar nos sábados das
sete até as 16 horas, mas Laura falou que nesse período (ano 2000) Denise suspendeu o
funcionamento da creche nos finais de semana: Depois a Denise teve um problema, então ela
suspendeu os sábados. No sábado era das 7h até 16h. Mas elas buscavam os filhos/as 19h,
19h30. E ela não podia descansar, então suspendeu.
Os filhos de Juçara às vezes ficavam nos finais de semana das sete até as 16 horas,
quando ela e o marido estavam trabalhando.
Elisa referiu-se ao contrato com Denise explicando que não há regras definitivas e que
por isto é possível chegar um pouco mais tarde para buscar a filha. Ela contou que procura
ligar e avisar quando vai chegar mais tarde. A filha de Elisa não tem freqüentado a creche nos
finais de semana e nos feriados, porque ela diminuiu o ritmo de trabalho. Mesmo assim, Jane
costuma visitar Denise quando está em casa com os pais:
157
“Mas agora que eu não estou mais sábado, aí (...) De responsabilidade de
Denise, não. Ás vezes ela vem pra cá brincar, mas aí eu estou em casa.
Então a responsabilidade fica comigo. Feriado também não. Férias é
complicado, porque eu não tenho. Férias da escola, ela fica com Denise.
Tempo integral, né? Não tem aquela regra definitiva (se referindo aos dias
em que ela fica em casa e Jane mesmo assim, vai na casa de Denise). As
outras crianças é diferente porque moram longe, então eu moro aqui do
lado.‘- mãe, eu posso ficar aqui com a tia Denise, um pouquinho?’ Ela
gosta de vir, então eu deixo. Qualquer coisa a Denise sabe que eu estou
em casa. Então não é de responsabilidade dela (...)”(Elisa, 21/08/2001).
No que diz respeito às mensalidades e contribuições com alimentos, fraldas e outros
produtos, observamos que há variações segundo as necessidades das mães e a idade das
crianças.
Como temos observado, as negociações com as mães se estabelecem conforme as suas
necessidades. Um exemplo é o caso de Elisa. Como a sua filha freqüenta uma classe préescolar particular no período da tarde, Denise assume todos os encargos escolares da menina,
como o controle dos deveres, da merenda, e a presença nas reuniões e festas quando Elisa não
pode comparecer. Além destes encargos, Denise também negocia as taxas de pagamento com
a diretora da escola e obteve um desconto para Jane e Estela. A mensalidade está 41,00 reais.
Denise tem muito conhecimento, então conseguiu um desconto para Jane (Elisa, 21/08/2001).
Quando se referiu às mensalidades e aos alimentos, Elisa esclareceu que paga um preço
mais alto do que as outras mães, pois reconhece que Denise não é uma trabalhadora bem
remunerada:
“o meu caso é diferente, um pouquinho diferente das outras. Eu pago
80,00 reais a ela, porque na verdade ela cobra 60,00 reais. Mas eu acho
que suporto pagar um pouquinho mais, eu acho que ela merece muito
mais do que isso. Eu pago porque eu não tenho condições de ficar com
minha filha, apesar que Jane estuda à tarde, né? Tem mães que às vezes
trazem o lanche, às vezes é uma fruta, leite, essas coisas...eu prefiro dar o
dinheiro a ela por semana para comprar o pão. Acho que é até um
contrato, que é até relativo, que não tem aquela regra definitiva, sabe?”
(Elisa, 21/08/2001).
158
Elisa também paga o décimo terceiro para Denise, o que não está estipulado no
contrato com as mães:
“O décimo terceiro também. Não que ela me exija, sabe? Não, não são
todas que pagam. Eu pago porque (...) eu também, eu até não tenho
direito, mas os meus patrões me pagam, sabe? Porque diarista às vezes
nem tem direito a décimo terceiro, mas eles me pagam, então eu não vejo
porque não pagar para ela também. Porque eu reconheço um pouco do
que ela faz por minha filha” (Elisa, 21/08/2001).
Juçara pagava uma mensalidade de 100,00 reais pelos dois filhos e explicou que
Denise fazia um abatimento, porque eles são irmãos. Ela levava para a creche farinha, leite,
legumes, biscoitos, às vezes um iogurte e fraldas descartáveis. Os alimentos são divididos
entre as crianças, o que demonstra que há uma rede de solidariedade entre as mães:
“Que aqui não tem nada assim: ah, isso aqui é dele...Trouxe prá um e é
prá todo mundo. Então eu sempre trazia bastante, nunca teve nada disso
de separar as coisas. Eu acho que Denise não separa nada. Porque às
vezes uma mãe tem condições de comprar uma coisa e a outra não tem,
né...a gente nunca sabe porque hoje em dia está meio difícil, né. Então eu
acho que tudo é prás crianças, trouxe prá um é prá todas. Não tem
diferença”(Juçara, 24/08/2001).
Marta paga 60,00 reais por mês e contribui com leite e às vezes com uma lata de
farinha biscoito é raro. essas coisas, eu não compro não. Íris paga 60,00 reais e contribui com
leite, biscoitos, frutas e às vezes outros alimentos como gelatina ou iogurte, além de produtos
de higiene como sabonete e creme dental. A filha de Laura não freqüentava mais a creche
domiciliar no período da entrevista; sua mensalidade no ano 2000 havia sido de 50,00 reais e
Laura fornecia leite, biscoitos, frutas e fraldas descartáveis.
Como ocorre um acordo comercial entre Denise e as mães, as tensões são geradas
principalmente nos casos de atrasos de pagamentos, o que freqüentemente ocorria com o
irmão da tomadora de conta. Da mesma forma, quando as mães enviam os/as filhos/as muito
doentes para a creche, isto não é bem tolerado por Denise, ainda que ela não se recuse a
receber as crianças.
159
No estudo de Nelson (1990) a pesquisadora encontrou reclamações semelhantes com
relação aos pais que não levam roupas suficientes, aos atrasos para buscar os/as filhos/as, às
crianças que chegam muito doentes ou aos pais que não pagam as mensalidades em dia. Tal
como no caso de Denise, ela comenta sobre cuidadoras que apresentam problemas nas
negociações com parentes. Uma delas reclamou do irmão como alguém que se tornou um
infrator dentro da creche, tanto no que diz respeito ao cumprimento dos horários, quanto à
pontualidade dos pagamentos.
3.3.3 As expectativas das mães quanto à função de Denise
De forma geral, as mães esperam que seus filhos e filhas tenham na creche domiciliar
amor, carinho, proteção, segurança, espaço para brincar, cuidados com a higiene e a saúde,
limites e responsabilidades. Como o tempo que lhes sobra para o convívio com as crianças é
cada vez mais reduzido, as mães preferem encontrar alguém que preencha tais requisitos e
ofereça tudo aquilo que elas gostariam de oferecer, mas não podem. Nenhuma delas falou em
sistematização do trabalho com objetivos de socialização das crianças, ou em atividades
pedagógicas mais organizadas.
Tais constatações não indicam que as mães não queiram para suas crianças uma escola
infantil. Os casos de Elisa e Denise demonstram que as mães desejam que suas filhas
freqüentem uma pré-escola ou classe de alfabetização, após os três anos de idade. Para elas, o
trabalho pedagógico acontece em outros espaços, legalizados, e essa não é a função de Denise:
Jane está no jardim à tarde. Então faz deveres, está estudando as vogais, as consoantes(...)
(Elisa, 21/08/2001). Sabemos que todas as atividades de cuidado também são educativas, mas
na ótica dessas mães, as aprendizagens mais formais são vivenciadas em espaços legalizados.
Elisa sabe que existem diversas escolas infantis particulares no bairro destinadas às
populações mais pobres, e que é mais seguro matricular a filha em uma escola infantil
legalizada. Após três anos de idade, mesmo permanecendo meio período na creche domiciliar,
o restante do tempo é dedicado a uma experiência de preparação para a escolarização e
alfabetização.
160
As expectativas das mães com relação ao trabalho de Denise envolvem duas ordens de
respostas. A principal se relaciona com os saberes de ordem afetiva. Tudo o que se relaciona
com afeto, amor e carinho, Elisa, Juçara, Íris e Laura colocam como função principal da
tomadora de conta. A outra ordem de respostas corresponde à responsabilidade e à
substituição dos familiares.
Elisa, Íris, Juçara e Laura disseram que o afeto e o amor pelas crianças são importantes
na função da tomadora de conta. Assim, gostar do que faz, conhecer e saber se colocar no
lugar das crianças fazem parte da função de Denise. O amor e o carinho são sentimentos
valorizados, porque elas reconhecem que as crianças exigem paciência e nem todos os adultos
conseguem trabalhar com elas, sendo necessário gostar dessa atividade: Para começar a
Denise sempre gostou de crianças, né. Se tem criança, ela vira criança também (Elisa,
21/08/2001).
Os cuidados com a higiene, com a saúde e alimentação das crianças também estão
articulados com o toque e o afeto:
“Acho que saber dar banho (risos), dar carinho, no caso de uma
emergência e a criança cair, às vezes um primeiro socorro e a pessoa
saber o que fazer. Então quem está tomando conta tem que saber o que
fazer de imediato, até chegar o médico ou encontrar a mãe. Saber dar a
alimentação também. Porque tem alimentação que não é adequada para a
criança” (Elisa, 21/08/2001).
“Ah, eu gostei do jeito carinhoso dela tratar as crianças. Tudo tem muita
higiene, muito limpinho, asseado, melhor do que as outras creches” (Íris,
28/08/2001).
Juçara e Laura valorizam a paciência, como uma qualidade de quem sabe tomar conta
de crianças. Juçara se definiu como uma mãe desesperada, que não consegue manter a
tranqüilidade em momentos conflituosos vividos com os filhos. Para ela, Denise dedica tanto
amor e paciência às crianças, que elas não querem ir embora para casa quando chegam suas
mães: Que se ela não tiver amor e tiver só responsabilidade, as crianças não vão gostar tanto
dela, como gostam. Que você vê que todas as crianças estão agarradas com ela. Ninguém
quer ir embora para casa.
161
Somente Marta não priorizou o afeto, como as outras mães. Ela disse que a tomadora
de conta tem que saber educar uma criança, principalmente nos momentos de conflitos: Tem
que saber como deve agir com uma criança. Porque criança toda hora briga, né? Tem que
saber separar, educar, explicar as coisas às crianças e ensinar. Em primeiro lugar tem que
ensinar. Porque esse negócio de bater e devolver, eu não gosto disso.
Como vemos Marta quer que Denise saiba educar e ensinar as crianças, priorizando o
ensino de hábitos, valores, atitudes e comportamentos, principalmente nos casos de conflitos
ou brigas entre as crianças.
A outra expectativa das mães, com relação à função de Denise, diz respeito à
responsabilidade com o trabalho. Nesse caso ser responsável adquire um sentido que é o de
não falhar com as mães, porque elas precisam trabalhar e deixar as crianças com alguém que
esteja sempre presente:
“É isso aí, é tomar conta e ter responsabilidade. A mãe vai trabalhar e fica
tranqüila, porque sabe que ele vai ficar bem. Vai trabalhar e não precisa
estar se preocupando com quem vai deixar a criança, porque tem pessoas
que falam: vou tomar conta do seu filho. Aí no outro dia você vai
trabalhar e a mulher já não pode ficar com a criança. E ela não. Está
sempre pronta e nunca falou: ah, tal dia eu não vou poder ficar, isso nunca
aconteceu” (Íris, 28/08/2001).
Para Marta é necessário responsabilidade, do momento em que a tomadora de conta
pega a criança até o momento em que a entrega às mães. Laura explicou que uma pessoa que
toma conta de crianças tem que ser muito responsável, porque as crianças são levadas. A
responsabilidade para Laura adquire um significado de olhar mais as crianças, que podem se
machucar quando correm, por exemplo.
A responsabilidade também está relacionada com a necessidade de segurança e
proteção das crianças. Desta forma, o medo gerado pelos conflitos entre policiais e traficantes
era freqüentemente motivo de comentários dentro da creche domiciliar:
“Denise informa que está sempre atenta com as crianças. Que elas ficam
na rua tomando sol, mas que ela não tira os olhos das crianças. Que as
mães só largam as crianças com ela por este motivo, pelo fato dela ser
162
uma pessoa que se preocupa demais. Ainda fala: ‘o mal está aqui, somos
prisioneiros do próprio lar’” (Diário de Campo, 17/06/2001).
Juçara, também reconheceu que é melhor deixar as crianças dentro da casa, porque o
local em que moram é perigoso:
“(...) hoje em dia a gente não pode deixar a criança ficar muito tempo
brincando na rua, porque muita gente já foi (...) levaram as crianças. O
meu marido mesmo tem uma sobrinha que está desaparecida. A gente não
sabe se ela está viva ou morta. Você vê que as crianças só brincam aqui
no quintal se ela ficar, se ela não ficar é todo mundo dentro de casa. Quer
dizer, ela já está se precavendo porque se a pessoa tiver que pegar, a
pessoa entra no quintal, não tem adulto, sai e leva. Eu acho que segurança
a gente não tem. Porque a polícia quando bate aqui é prá bater em
alguém, pegar gente inocente...nunca faz nada que preste. A gente tem
mais medo deles, do que dos meninos que moram aqui e infelizmente
entraram prá essa vida” (Juçara, 24/08/2001).
Para Íris, no lugar onde vive não é possível criar um filho com liberdade, ou deixar
uma criança sozinha. Ela definiu o local como desprovido de segurança, porque há pessoas
envolvidas com o tráfico e que andam armadas na frente das crianças.
Este é um traço encontrado por antropólogos que pesquisam bairros populares, como
Romanelli (2002, p. 9-11), quando observa que hoje as famílias de pobres e trabalhadores
convivem com outros moradores ligados ao universo da transgressão.
As famílias das crianças procuram as creches domiciliares como forma de evitar o
convívio com a rua, cercada de conflitos gerados pelo tráfico de drogas. A segurança e a
proteção das crianças são aspectos norteadores do trabalho desenvolvido no espaço da creche
domiciliar. Esta é uma necessidade dos familiares que nos parece plenamente incorporada pela
tomadora de conta e suas ajudantes, no cotidiano vivido com as crianças.
Por último a tomadora de conta, que cuida e protege as crianças com carinho, que gosta
do que faz e que é responsável, também assume a condição de substituir a mãe ou outros
familiares, nos momentos em que a criança permanece na creche domiciliar: substituir uma
mãe, o responsável naquelas horas ali, a criança vai ficar aos cuidados daquela pessoa.
163
Fazer o que os responsáveis têm que fazer, o que o pai e a mãe tem que fazer (...) (Elisa,
21/08/2001).
Juçara ressaltou que a função de Denise ultrapassa o tomar conta, pois isto significa
dar uma olhada nas crianças, enquanto Denise assume o papel de segunda mãe e praticamente
cria as crianças.
Os sentimentos das mães com relação a Denise ser considerada a outra mãe das
crianças, nós exploraremos mais adiante. A idéia de que ela substitui as mães ou os outros
familiares, porém, faz parte das expectativas deste grupo de mulheres.
Juçara disse que não sai preocupada para o trabalho, porque seus filhos são bem
cuidados por Denise. Ela parece confiar mais em Denise do que nela própria enquanto mãe
lembrando, inclusive, que o filho mais velho não engordava em casa e na creche começou a
aumentar de peso, aprendeu a caminhar e resolveu o problema de sinusite: A minha casa era
muito fechada, ele não pegava sol e adoecia de novo. Denise levava ele para pegar sol e a
sinusite parou.
Como podemos observar, as mães valorizam as habilidades da ordem dos cuidados
com as crianças. Tais habilidades, para elas, são adquiridas com a experiência e o gosto pela
função. Quando questionadas sobre a necessidade de uma formação específica para tomar
conta de crianças, Juçara, Laura e Marta responderam que não é necessário, enquanto Elisa e
Íris disseram que é importante uma formação.
Juçara entende que para trabalhar com crianças pequenas não é necessário ensino
superior. Para ela, o estudo pode ajudar Denise a auxiliar as crianças maiores na realização das
tarefas escolares.
Para Laura não é necessário estudo para tomar conta de crianças, mas carinho, pois a
criança gosta de carinho, gosta de atenção, gosta que brinque e gosta que conversem com ela,
e concluiu que para isto não é preciso estudar.
Marta, ao mesmo tempo em que reconheceu a necessidade de saber muitas coisas sobre
a criança, sobre como agir, como educar, explicar as coisas e intervir nos momentos de
conflitos, também respondeu que não é necessário estudar para isto, alegando que como
Denise é mãe de duas meninas, ela naturalmente deve saber como fazer com as outras
crianças.
164
Elisa disse que é necessário uma formação, embora reconheça que no local em que
moram é difícil encontrar pessoas com curso superior. Ela explicou que os moradores do
Saudade, em geral, não conseguem concluir os estudos e quem consegue vai trabalhar em
bairros mais próximos do centro, ou afastados da periferia: É meio difícil a gente achar uma
pessoa que tenha curso superior para poder tomar conta de crianças por aqui (...).
Íris pensa que é importante uma formação, mas com uma orientação psicológica que
possibilite conversar mais e saber lidar com as crianças, sobretudo com as mais novas. Mas no
seu discurso percebemos que ela deseja uma formação que também preencha a função dos
familiares:
“Que hoje em dia as crianças precisam muito disso, de alguém que
converse com eles, quer dizer, na ausência da gente, quem fica com a
criança é ela. Ela teria que ter mais diálogo, conversar mais com as
crianças. Ter um curso, alguma coisa que tratasse melhor as crianças (...)”
(Íris, 28/08/2001).
3.3.4 Avaliação do trabalho de Denise
Embora as mães tenham quase sempre afirmado as qualidades do trabalho de Denise e
as vantagens que elas encontram na creche domiciliar, quando questionadas sobre o espaço da
creche todas responderam que é necessário organizar o espaço em função das crianças e
oferecer mais possibilidades para que elas brinquem, além da garantia de segurança. Elisa, por
exemplo, reconheceu que a casa e o pátio são amplos, mas não são organizados em função das
crianças: Tanto é que espaço até que tem, mas se fosse mais preparado seria até mais ideal,
né. Ali do lado que tem um monte de material de construção. Então se não tivesse essas coisas
teria mais espaço... (Elisa, 21/08/2001).
Marta e Íris disseram que é necessário ampliar o espaço da creche e criar uma área de
lazer para as crianças, como uma sala com brinquedos, por exemplo.
As mães avaliam o trabalho de Denise visitando a creche, observando os
acontecimentos, ou questionando os filhos e as filhas, sobre os eventos do cotidiano. As quatro
mães, com exceção de Marta, disseram conversar com as crianças, a fim de obter informações
165
a respeito do tratamento que recebem na creche. Para Elisa são poucas as pessoas que têm
paciência e disponibilidade para sentar e rolar no chão com as crianças, como Denise: Às vezes
eu fico do lado da minha casa, às vezes eu olho e ela está brincando de cabra-cega, ela está
brincando de bola com as crianças, às vezes eu chego aqui quietinha e ela está sempre
brincando.
Íris conversa com o filho a respeito de Denise e também justificou que confia na
tomadora de conta porque ambas mantêm uma relação de amizade:
“Tudo que se passa com ele, ele fala. Que tia Denise deu banho, escovou
dente. Tudo ele conta. Só vive com tia Denise na boca. Eu sou muito
chegada a ela, sempre fomos muito amigas mesmo. Eu sempre estou aqui,
mesmo que não seja dia de trabalhar eu venho aqui aos domingos, ela vai
na minha casa. Então somos muito ligadas eu e ela. Quando eu saio e vou
para algum lugar ela vai junto comigo. Sempre que eu vou na casa dos
meus parentes em Itaboraí, ela vai comigo” (Íris, 28/08/2001).
Laura relatou suas conversas com a filha a respeito dos acontecimentos da creche,
incluindo os castigos:
“E às vezes ela falava: ‘-mãe...’ ‘-o que é que foi Patrícia? A Tia Denise
colocou de castigo? Porque fez arte?’ Tem mais é que botar, porque
criança tem que consertar o erro da criança, né. Mas só isso também.
Porque a Patrícia é uma criança muito agitada, muito levada mesmo.
Então só disso que ela falava (...) eu não me importo, porque ela toma
conta e eu quase não ficava com a Patrícia, então não ligo para essas
coisas, não (...)” (Laura, 27/08/2001).
Laura também lembrou que as mães costumam entrar e conversar com Denise sobre
como foi o dia, se as crianças tiveram febre, se aprontaram alguma coisa, se comeram bem ou
se dormiram à tarde.
Juçara recordou que quando Marcos começou a freqüentar a creche, sempre chegava
em casa falando coisas boas sobre Denise. Ela e o cônjuge perguntavam ao menino se Denise
batia, ou brigava com as crianças, como uma estratégia para saber o que se passava na
ausência deles: No começo a gente perguntava, que a gente tinha receio (...) na primeira vez
166
que eu deixei o Marcos, aí a gente perguntava. Mas como ele não falava e estava sempre bem,
sempre brincando (...) Então a gente foi vendo que ela tomava conta muito bem.
Mas diferente das outras mães, Marta e Laura apontaram problemas com relação ao
trabalho de Denise. A primeira relatou um episódio de maus tratos com o filho que lhe
desagradou. Daniel chegou em casa com uma marca no rosto, mas ela e Carlos não
conversaram sobre o assunto com Denise, o que provavelmente não teria acontecido com as
outras mães. Possivelmente, esta atitude de Marta e Carlos de aceitação da violência física
tenha alguma relação com os atrasos de pagamentos. De outro lado, a violência faz parte do
cotidiano desta família, o que também pode nos ajudar a entender o silêncio quanto ao
episódio relatado por Marta:
“Eu gosto do trabalho delas. Até hoje não vi nada demais, não. Só uma
vez que eu vi uma coisa que eu não gostei, mas isto já passou. Quando eu
vim pegar o meu filho ele estava com cinco dedos aqui no rosto.
Entendeu? Cinco dedos da pessoa estavam aqui no rosto dele. Então
como ele é branquinho, eu percebi que tinha sido um tapa. A gente
conhece e ele estava chorando muito. Os dedos era de gente grande. Faz
uns seis meses. Eu ia até tirar ele da creche, mas aí falei com o meu
marido e ele disse: não, deixa lá, porque a gente precisa” (Marta,
28/08/2001).
Laura, por sua vez, fez observações sobre a importância da disciplina das crianças,
sugerindo que a tomadora de conta deveria ser mais rigorosa: Acho que ela poderia ter mais
dureza com as crianças, que elas fazem muita manha. Então as crianças são muito manhosas
com ela. A minha então, era muito manhosa aqui.
Elisa salientou a franqueza e a abertura de Denise, principalmente quando ela não
concorda com o comportamento das crianças, o que é logo resolvido com as mães. Informou
que Denise também coloca limites às crianças e ela não vê problemas, assim como aprova os
castigos. Os castigos como uma forma de socialização das crianças parecem fazer parte das
expectativas educativas das mães. Elas valorizam a formação de hábitos, valores e atitudes
baseados numa relação de hierarquia entre adultos e crianças.
167
Quando questionadas sobre a existência de conflitos entre as mães e a tomadora de
conta, Elisa e Marta relacionaram a perda das outras crianças com problemas entre Denise e
alguns moradores do local.
Principalmente Elisa informou sobre os conflitos vividos entre Denise e outras mães,
ou com a vizinhança, sugerindo que estes conflitos possivelmente ocasionaram a perda de
algumas crianças no ano de 2001. Elisa teceu críticas sobretudo com relação à vida pessoal da
tomadora de conta. Para ela é importante investigar a vida pessoal de Denise, mas quando se
referiu aos conflitos esclareceu que os problemas não incluem a relação da tomadora de conta
com as crianças e o cotidiano da creche:
“Eu tô falando do dia-a-dia, sabe? Não em relação à minha filha. Aí acaba
entrando na vida pessoal e isso não tem nada a ver, eu acho que até por
ela tomar conta em casa, né? A gente acaba até entrando um pouco na
vida pessoal da pessoa que não tem nada a ver (...). Mas são coisas que
não me dizem respeito, que eu às vezes não concordo, sabe? Porque não
tem nada a ver com crianças, com horário de creche. Uma coisa que eu
não concordo muito...esses adolescentes entrando aqui...ela confia, sabe?
Mas é nesse ponto que eu quero dizer...é que às vezes os meninos ficam
aí...É que a gente vê tanta maldade, que eu não sei até que ponto a pessoa
chega. Desde que não está no horário da minha filha estar aqui, então se a
minha filha está é porque eu permiti até que estivesse, mas se não é no
horário, então não me diz respeito. Mas aí já é um problema pessoal dela,
mesmo porque ela sai e a noite ela não tem mais responsabilidade com
criança de ninguém...só com as filhas dela, né...então, aí já não vem o
caso” (Elisa, 21/08/2001).
Provavelmente Elisa estivesse se referindo às entradas de Fernando e um outro vizinho,
que são amigos das ajudantes da creche domiciliar. Como a segurança e proteção das crianças
são valorizadas pelos seus familiares, qualquer motivo que gere desconfiança com relação ao
tráfico de drogas ou abuso sexual é comentado entre eles.
Certamente que os preconceitos de gênero, principalmente porque Denise vive somente
com as filhas, também contribuem com a avaliação de Elisa. Neste trecho de entrevista, ela
relaciona a perda das crianças com problemas entre a tomadora de conta e a vizinhança,
sugerindo que há preconceitos com relação ao homossexualismo de alguns amigos de Denise e
sua filha:
168
“É porque aqui tinha muita criança, sabe? E de repente acabou. Foi
tirando, tirando, tirando...a gente acredita que seja até por isso. Por esse
entra e sai. Que era pior, não que eu tenha nada contra homossexual, essas
coisas assim...tinha uns garotos que moravam ali, então eles ficavam
assim...invadiam muito, sabe? Então ficava muita mistura, de entra e sai,
aquele montão de crianças e são tudo adolescentes...então fica uma coisa
assim, meio...eu que sempre acompanhei assim, eu sei o caráter dela (...) a
Jane é esperta à beça, posso notar a diferença dependendo da pergunta
dela, então eu já ia sacar alguma coisa. Mas isso nunca aconteceu, então
prá mim nunca foi problema. Mas eu acredito que muita mãe tirou o filho
por esse motivo” (Elisa, 21/08/2001).
Marta também apresentou um discurso ambíguo sobre a relação de Denise com outras
pessoas da vizinhança, apesar de não comentar sobre o que realmente acontece: Tem muita
gente que não gosta dela. Eu moro aqui há sete anos, então eu não sou uma pessoa que
conhece todo mundo. Mas tem muita gente por aqui que não gosta dela. Agora porque, eu não
sei.
O problema referente à saída das crianças foi analisado de forma diferente por Íris:
Esse negócio de vizinho...só alguns que eu conheço. Que é a Elisa, mãe de Jane e uma outra
que mora no quintal da casa dela. Com Denise, que eu saiba, as amizades dela são boas.
Para Íris, a saída das crianças está relacionada com a crise econômica, com o
desemprego das mães, o nascimento de outros/as filhos/as e com a idade avançada das
crianças maiores, que permanecem em casa nos turnos em que estão afastadas da escola:
“agora que pegou mais idade, tirou, deixou com algum parente, que aí
não tem que pagar. A pessoa já ganha pouco, porque quando é pequeno a
gente tem que deixar, porque não vai poder deixar sozinho. Mas quando
pega uma certa idade já começa a deixar sozinho. Tem uma ali embaixo
que as filhas ficavam com Denise. Agora uma tá com nove anos e fica
com a outra em casa. E as outras que eu sei, a maioria ficou
desempregada. Aí tirou. Mas tem umas duas ou três mães que falou:
assim que voltar a trabalhar, os filhos voltam para cá. Quer dizer, elas
gostam, não tem do que reclamar” (Íris, 28/08/2001).
169
Nesse depoimento de Íris é possível perceber o quanto a creche domiciliar substitui as
redes de apoio familiares, pois quando as crianças são maiores elas podem ficar sozinhas.
Provavelmente as tensões apontadas pelas mães, especialmente no que diz respeito à
vida privada de Denise, se relacionam com uma percepção da tomadora de conta como alguém
que deve estar sempre pronto a servir os outros. Assim como entre as mães foi dito que ela é
uma amiga, uma substituta das famílias, alguém que faz mais do que tomar conta, também
foram emitidas opiniões sobre a vida pessoal de Denise: Apesar de Denise ser uma pessoa
profissional, em relação às mães ela é uma pessoa amiga, entendeu? (Laura, 27/08/2001).
Um outro dado relevante no que se refere à saída de crianças é a presença do irmão de
Denise, que mora nos fundos da creche. Carlos é reconhecido desde a adolescência como
alguém ligado ao mundo das drogas. Como a violência e o tráfico de drogas provocam medo
entre os familiares, as queixas freqüentes de Denise com relação ao comportamento do irmão
podem sugerir que ela perdeu crianças devido aos comentários dos vizinhos e familiares sobre
a conduta de Carlos. A entrada de jovens que são amigos de Nara pode aumentar as suspeitas
de envolvimento com drogas, assim como as suspeitas de violência e abuso sexual com as
crianças.
Elisa, Marta, Laura e Íris não aprovam a presença da música funk na creche. Como
Nara e Bia comumente ouviam e dançavam músicas desse estilo com as crianças, as mães se
posicionaram contra o funk, que para elas está associado à violência e ao apelo sexual:
“Eu tenho pavor de funk, então eu sou uma pessoa até abençoada, porque
Jane não é ligada. Às vezes ela dança um pouquinho, mas a roupa
dela...ela nunca pediu para colocar uma roupa indecente, essas coisas,
assim, sabe? Aí às vezes quando ela canta, eu não gosto, porque eu acho
as letras muito pesadas, não tem nada a ver com criança...então eu
procuro colocar as coisas bem claras para ela (...) canta outra coisa, aí
ensino, que ela tem a fita de cantigas de criança” (Elisa, 21/08/2001).
“Eu acho que esse negócio de pagode, acho que não influi em nada (...)o
que influi muito é o funk. Mas só isso mesmo, algum rap de funk que tem
palavrão ou violência” (Laura, 27/08/2001).
“Tem umas coisas que eu acho muito impróprias (...) esse negócio de
funk, eu não gosto, mas as outras coisas eu vejo com naturalidade. O
Mateus já nem gosta dos outros tipos de músicas. Ele quer mais ouvir
170
funk porque vê muito na TV, quando ele está em casa, ele prefere que
botem um funk prá ele” (Íris, 28/08/2001).
“Eu só não gosto do funk. Eu sou contra elas dançarem na frente deles.
Isso aí eu já não concordo. Essas músicas de funk são todas
pornográficas, né. Então ensina as coisas erradas prás crianças. O Daniel
luta, dá soco na gente, então acho que ele está aprendendo, né? Ensinar a
dançar funk, eu também não gosto” (Marta, 28/08/2001).
Como vimos na introdução, o funk é um estilo de música que no local adquiriu uma
imagem de violência. Como houve uma época em que os bailes funks resultavam em brigas ou
tiroteios, possivelmente as mães queiram evitar que seus filhos/as convivam com estas
manifestações.
Um aspecto que as cinco mães valorizam é o da mistura de idades na creche domiciliar.
Assim, elas disseram que as crianças menores aprendem a se relacionar com as crianças mais
velhas, bem como consideram importante que elas mantenham interações com crianças
diferentes, com outras idades e sexos:
“O Marcos antes não se relacionava muito bem com as crianças, ele batia
muito. Hoje ele sabe que não se bate em criança pequena e está mais
calmo” (Juçara, 24/08/2001).
“Eu acho legal, porque a criança quando é bebê se desenvolve com uma
criança mais velha do que ela. Tem criança que tem dificuldade para
falar, então quando vê uma criança maior, já tem a curiosidade de
aprender e fazer o que a outra criança está fazendo. Então desenvolve e
fica mais esperta” (Laura, 27/08/2001).
Mas Elisa, que vê com positividade as diferenças de idade, também observou que isto
só é possível num espaço com poucas crianças, e que num grupo maior seria difícil de
controlar os interesses diferentes.
Entretanto, esta aceitação das diferenças de idades apresenta outros vieses. No que diz
respeito à avaliação do trabalho de Denise na socialização das crianças, algumas delas
esbarram em preconceitos, que no fundo reproduzem os modelos de mãe, mulher, homem e
pai que elas próprias vivem nas suas casas. Para Laura é preciso pulso forte para se educar
171
uma criança. Vimos como ela se expressou a respeito das manhas das crianças. O pulso forte,
para Laura, está associado a educar para a obediência, o que se baseia em hierarquia e
autoridade entre as pessoas mais velhas e as crianças. Entretanto, ela não vê diferenças entre
meninos e meninas nas brincadeiras. O que não acontece com Marta, por exemplo.
Para Marta é preciso ensinar o que são coisas de meninos e o que são coisas de
meninas. Assim, ela não vê com positividade as brincadeiras que não estabelecem uma divisão
de papéis sexuais entre as meninas e os meninos: O meu filho quando vê uma boneca, ele quer
pegar a boneca. Mas é a convivência...Aí eu brigo com ele e digo: Daniel, você não pode
brincar de boneca, você tem que brincar de carrinho. Aí ele larga a boneca.
Elisa fez comparações com a educação da roça e da cidade grande. Na sua perspectiva,
as crianças da cidade grande são mais espertas e atualmente está tudo muito liberado. Na roça
há muitas regras e ela disse que apesar do seu pai ter exagerado e ter sido radical, ele soube
dar educação para os filhos.
Ela também vê diferenças entre os meninos e as meninas, o que se acentua quanto
maior for a idade. Ela justificou dizendo que as conversas são diferentes e enquanto os
meninos falam em cafifas, as meninas falam em bonecas. É interessante registrar que Elisa faz
uma análise de que estas diferenças são criadas pela família e pela sociedade: porque menina é
educada para lavar a louça e menino para namorar. Então a família já ensina errado. A mãe
reprime: você não faz isso que é coisa de mulher, vão botando maldade que a criança não tem
ainda.
172
3.4 CRECHE DOMICILIAR E DELEGAÇÃO DA FUNÇÃO MATERNA
“Quem vem contar-me uma história
Dos meus tempos de menina?
Quando eu era pequenina,
A minha ama contava
Aquela história em que entrava
Uma menina e um papão.
Eu, ao ouví-la, chorava.
A fábula é outra agora:
A menina já não chora
No meio da escuridão.
Quem tem medo é o papão” (Natália Correia)
As cinco mães entrevistadas vivem em famílias nucleares constituídas de um casal com
filhos/as. Neste modelo geralmente o homem é o provedor e o chefe da família e as
responsabilidades pelos/as filhos/as estão centradas quase que exclusivamente na figura
feminina. Ocorre que três destas mães são as provedoras das famílias durante a maior parte do
tempo. Nos casos de Juçara e Laura os cônjuges são os provedores, mas quando elas
trabalham responsabilizam-se pela casa e pelas crianças. De forma geral, quando os cônjuges
se envolvem com a casa ou filhos/as, passeiam nos finais de semana ou levam as crianças à
creche depois que as mulheres saem para o trabalho, ou são responsáveis pelas obras que
acontecem nos quintais divididos com outros familiares, ou em terrenos próprios, como no
caso de Elisa e Neuci.
Quando as mães trabalham, seja para sustentar a casa, para aumentar a renda familiar
ou para conseguir uma cota de felicidade pessoal, como é o caso de Juçara, obviamente não
conseguem cuidar dos/as filhos/as como gostariam, ou como a sociedade espera que elas
façam. Sentimos que há uma expectativa muito forte em torno da função materna nesse grupo.
Ser mãe é viver exclusivamente para os/as filhos/as e para o lar. As mulheres que trabalham
vivem um dilema: como cuidar da casa e dos/as filhos/as e ao mesmo tempo trabalhar para
obter uma renda?
Como elas não conseguem resolver este dilema, porque não há parentes ou vizinhos
que possam cuidar das crianças em tempo integral, adotam uma medida paliativa, que é pagar
uma outra mulher para tomar conta dos/as filhos/as. Este tomar conta adquire sentidos de
173
afeto, carinho, responsabilidade, controle da alimentação, da higiene, da saúde, do sono, e do
desenvolvimento de hábitos e valores de educação em que as crianças devem obedecer às
pessoas mais velhas, numa ordem de hierarquia bem definida. Não percebemos qualquer
intenção das mães, de que seus filhos/as tenham uma experiência educativa mais
sistematizada. Porém, também esperam que as crianças possam brincar na creche e
demonstram satisfação quando Denise assume uma postura lúdica e carinhosa com os meninos
e as meninas.
Quem cumpre as funções das mães, uma vez que os cônjuges não participam em pé de
igualdade na criação dos/as filhos/as, é uma outra mãe, sem cônjuge, cuja vida está voltada
para a criação e sustento das duas filhas e para a busca de sobrevivência. Esta mulher é
conhecida no local como a tomadora de conta de crianças, para a qual as cinco mães delegam
a função de cuidar e educar seus filhos/as. Trabalharemos neste item com as reações e
resoluções das mães frente a uma problemática: as crianças chamam a tomadora de conta de
mãe na creche e de tia quando estão em casa, ou pode acontecer o contrário, isto é, elas podem
chamar a mãe de origem de tia e Denise de mãe.
Vimos como outras modalidades de creches não resolvem a problemática das mães,
que trabalham em serviços domésticos e necessitam deixar os/as filhos/as mais do que oito
horas por dia, incluindo alguns finais de semana, ou feriados. Ocorre uma educação
familiarista na creche domiciliar, que se baseia na delegação das funções dos familiares das
crianças para a tomadora de conta.
3.4.1 Quando as crianças chamam Denise de mãe
No capítulo anterior analisamos como Denise reage quando as crianças lhe chamam de
mãe e vimos como há ambigüidades nos seus posicionamentos, pois ela se define como mãe
substituta, tomadora de conta, psicóloga, professora ou tia. Pensamos que há uma relação entre
esta diversidade de papéis e as expectativas e desejos das mães. Como elas esperam que a
tomadora de conta seja uma mulher capaz de resolver seus problemas e criar seus filhos/as,
obviamente ocorrem tensões, principalmente da parte de Denise. Neste item nos deteremos
nos sentimentos experimentados pelas mães e como elas tratam da questão com as crianças.
174
Os filhos de Juçara, Marta, Íris e as filhas de Elisa e Laura começaram a freqüentar a
creche domiciliar desde que eram bebês. Ocorre que estas crianças passam muito mais tempo
com Denise do que com as mães de origem. Logo, chamam a tomadora de conta de mãe.
Embora Denise algumas vezes corrija: mãe, não, tia, em inúmeras situações observadas as
crianças referiram a ela como a mãe.
Mesmo em um universo pequeno, as reações entre as mães não são idênticas. De forma
geral, elas reconhecem que Denise é mais mãe do que elas próprias, pelo pouco tempo que
lhes resta para conviver com os/as filhos/as. Assim, parecem entender as razões pelas quais as
crianças chamam Denise de mãe e não discutem este problema dentro da creche. Elisa e Íris
procuram resolver estas questões com os/as filhos/as, mas Marta, Juçara e Laura não discutem
o problema, porque possivelmente sabem que esta é uma situação temporária, uma vez que
elas são as mães de origem e mantêm laços de consangüinidade com as crianças37.
Nós supomos que as interpretações das mães também se relacionam com uma certa
clareza a respeito da temporalidade da situação, pois Denise as substitui no período em que as
crianças necessitam da presença de um adulto que as proteja. Certamente haverá um dia em
que a figura de Denise não será necessária. Entretanto, isto não significa que algumas mães
não sofram com a situação. Ao contrário, este é um tempo doloroso para algumas delas, como
veremos.
Pensamos que um dado pode mediatizar nossas análises: esta é uma relação comercial
que pode ser interrompida a qualquer instante. Não se trata da circulação de crianças entre
vários adultos num grupo de parentesco. Mesmo que estas crianças circulem na família da
tomadora de conta, as mães pagam os serviços, fazem acordos e têm expectativas que
certamente interferem no modo como Denise organiza seu trabalho.
Juçara disputa com o cônjuge a necessidade de trabalhar fora de casa. Ela disse na
entrevista que trabalha para aumentar a renda familiar, para oferecer aos filhos tudo aquilo que
não teve na infância. Por outro lado, Juçara contou que nas sextas-feiras ela costumava sair do
trabalho para conversar e beber com as amigas e que chegava por volta das 22 horas na creche.
37
No estudo de Fonseca (1997) sobre famílias dos meios populares do início do século XX, ela observa que a
circulação de crianças em outras famílias não acarretava problemas maiores, porque o maior aliado das famílias
era a própria noção de consangüinidade. Logo, a afeição no sentido de acompanhamento pessoal e íntimo dos
filhos não era prioritária. A responsabilidade das famílias era zelar pelo bem de seu filho, não necessariamente de
175
Tal situação provocava conflitos em casa. O marido foi descrito como um homem
desconfiado, que bebia e às vezes se tornava violento. Em suma, João não quer que Juçara
trabalhe porque sente ciúmes. Conforme comentamos anteriormente, algo mais move Juçara,
em comparação com as outras mães. Ela quer sua cota de satisfação pessoal, porque parece
que ela não se sente à vontade nos papéis de mãe e esposa em tempo integral. Juçara é cobrada
pela mãe e pelo marido e quando o filho mais velho ficou doente faltou algumas vezes ao
trabalho e ficou desempregada. O fato de Juçara trabalhar movida por um desejo de satisfação
pessoal, produz nela reações diferentes das outras mães, quando seu filho chama Denise de
mãe.
Juçara se definiu como uma mãe nervosa, que não tem paciência e perde o controle
com os filhos. A mãe de Juçara também reconhece que Denise toma conta dos filhos melhor
do que ela. Assim, Juçara não se culpa por deixar as crianças na creche, porque seu desejo
quando trabalha é estar fora de casa.
“Eu me sinto normal, porque ela trata eles bem...porque ela é uma ótima
pessoa, uma mãe exemplar. Você vê pela Nara, pela filha mais nova.
Tanto que no Dia das Mães a gente vem aqui. O Marcos até deu um
coração prá ela, acho que tá até na sala, foi o Marcos que deu. Nessa parte
eu não tenho ciúmes, não. O pai tem ciúmes dela com as crianças, mas eu
não” (Juçara, 24/08/2001).
Logo, o ciúme e o sofrimento ela atribui ao marido. Isto nos faz perguntar se José está
sofrendo somente porque seus filhos chamam Denise de mãe, ou também porque ele não quer
ver Juçara que é nova, bonita e sorridente na rua?
“É porque ele é muito ciumento com as crianças. Então o Marcos e o
Mauro são muito agarrados com Denise. Aí às vezes quando ele vinha
buscar as crianças aqui, elas ficavam agarradas no pescoço de Denise e
não queriam ir embora e ele falava: ah, as crianças gostam mais dela do
que de mim. Porque Denise toma conta muito bem deles e ele fica meio
receoso e com ciúmes das crianças gostarem mais dela do que dele. É pai,
né?” (Juçara, 24/08/2001).
conviver com ele, e a identidade familiar, centrada nos laços de sangue, era garantia suficiente para saber que, a
longo prazo, o vínculo não seria rompido.
176
Elisa apresenta reações diferentes de Juçara. Ela, dentre todas as mães, é a que sente
mais ciúme e que procura conversar com a filha, como estratégia de resolução dos conflitos
que experimenta. Elisa não se sente bem quando sua filha chama Denise de mãe. Como as
outras mães, ela não discute a situação na creche, porque no fundo compreende que este
chamamento denota um sinal de que Jane é bem tratada e que gosta de Denise. Por um lado,
isto resolve seu dilema de deixar a filha com alguém que a cuide e proteja com carinho. Por
outro lado, ela se culpa pelo pouco tempo dedicado à filha e sofre com isto.
Elisa está sempre presente na creche para conversar com Denise e dar uma espiada no
que acontece. Como costuma sair mais tarde para o serviço, entrega Jane na creche após às 9
horas. Geralmente ela fica alguns minutos na cozinha ou na sala conversando com Denise e
com as crianças. Seguidamente ela fazia recomendações: hoje não é para lavar o cabelo de
Jane, porque ela está gripada,” ou “é preciso dar Cataflan antes do almoço, entre outras. De
todas as mães, ela sempre pareceu a mais preocupada e aflita com a filha. Nas avaliações sobre
o trabalho de Denise, vimos como ela se preocupa com a entrada de jovens na creche e com os
boatos dos vizinhos sobre a vida pessoal da tomadora de conta. Também vimos como Elisa
não hesitou em romper temporariamente sua relação com Neuci, como estratégia para
combater o alcoolismo dele que, na sua ótica, estava prejudicando a educação de Jane. O
trabalho fora de casa representa, para Elisa, uma necessidade de sobrevivência quando a renda
familiar é insuficiente. Logo, deixar a filha na creche domiciliar e aos cuidados de Denise para
ela não é algo tão simples. Elisa paga mais do que as outras mães e contribui com o décimo
terceiro de Denise.
Elisa sente ciúme desta relação entre a filha e Denise, ao mesmo tempo que reconhece
que quando Jane chama Denise de mãe é porque ela está recebendo um bom tratamento. Por
isto, procura esclarecer e conversar com a filha, sobre qual a diferença entre a mãe de origem e
a tomadora de conta:
“Eu não demonstro meu ciúme, mas às vezes eu penso, poxa eu que sou
mãe e ela participa melhor das coisas engraçadas que ela faz do que eu...
Mas do mesmo lado eu fico feliz que ela tem aquele carinho de achar que
ela é a mãe, aí é sinal que realmente ela se sente uma filha. Dá carinho, dá
177
atenção que ela precisa, que às vezes na hora eu não posso dar, então ao
mesmo tempo que eu fico meio enciumada, eu fico feliz em saber que ela
fica bem. Teve um tempo quando ela era menor, que ela falava que tinha
duas mães. A mãe um e a mãe dois. A mãe um era a tia Denise que ficava
de dia e a mãe dois era eu. Ela entendia assim, ela tinha uns dois aninhos.
Aí depois eu fui deixando, ela foi crescendo também, aí passou a chamar
de tia. Eu sempre falava com ela, minha filha a Tia Denise é mãe um prá
você porque ela fica com você de dia. Então a mamãe chega de noite, por
isso eu sou mãe dois. Mas quem é sua mãe sou eu. Então fui deixando
assim sem problemas e...mesmo se ela continuasse, também não ia ligar
não. Acho que até ia acostumar com a idéia. É melhor chamar de mãe, do
que de madrasta. Aí que eu ia ficar triste. Realmente eu acho que
nenhuma madrasta é igual a mãe. Acho que não tem pessoa para ter
paciência igual uma mãe tem. Uma mãe verdadeira, porque o que tem de
mãe aí que é só biológica...Jane me faz de boneca na mão dela, sabe? Eu
procuro atender porque é pouco tempo que eu tenho, não que eu faça
todas as vontades, mas as coisas que eu acho que não vão prejudicar o
caráter dela, eu acabo fazendo. Então eu não acho que isso vai atrapalhar
o desenvolvimento dela” (Elisa, 21/08/2001).
Íris, que viveu uma infância difícil, devido ao alcoolismo do pai e brigas freqüentes em
casa, está satisfeita com seu casamento, que para ela representou uma nova vida. Íris ainda
parece apaixonada por José. Quando ela fala sobre o cônjuge seus olhos brilham e ela descreve
a vida a dois como algo tranqüilo. Ela é a mantenedora, mas durante a coleta de dados ele
estava trabalhando. Nos finais de semana José ajuda Íris nas tarefas da casa. O fato do filho
mais novo freqüentar a creche domiciliar e chamar Denise de mãe, para Íris, é algo vivido de
forma menos tensa do que por Elisa. Como Íris tem um outro filho portador de necessidades
especiais, ela e o cônjuge se ocupam intensivamente com o menino, que recebe atendimento
semanal no Rio de Janeiro e estuda em uma escola pública do bairro Saudade.
Provavelmente este envolvimento com o filho mais velho e a amizade que ela sente por
Denise podem explicar porque Íris encara com naturalidade que seu filho chame Denise de
mãe:
“Não, eu até gosto porque eu sei que tá tratando ele bem. Porque ele me
chama de mãe também. Mas não é sempre, tem vezes que ele me chama e
tem vezes que ele me chama mais de tia. Quando tá eu e Denise junto e
ele chama a tia, as pessoas não sabem se é eu, ou se é ela. E em casa ele
chama, ô tia e eu falo: não é tia, é mamãe. Mas aí ele esquece e chama de
178
tia de novo. É porque ela trata ele bem. Ela fica com ele desde neném. Ele
entrou aqui e não tinha um aninho, ele tinha uns dez meses. Então ele se
acostumou demais a ela. Ela levava ele em pediatra, tudo prá mim. Então
ele tem mais ela como mãe, do que eu própria. Porque quando eu trabalho
nos sábados, ele fica direto com ela, então ele fica mais tempo com ela do
que comigo” (Íris, 28/08/2001).
Mas isto não significa que Íris também não sinta ciúme, principalmente porque Mateus
sente falta de Denise e visita a creche nos feriados e finais de semana em que ela não trabalha.
Ao mesmo tempo em que reconhece que bate o sentimento de ciúme, ela procura entender as
razões de seu filho:
“Eu fico meio enciumada, mas é coisa que passa logo. Também ela não
tem culpa, né? Porque ele fica melhor com ela do que comigo. O dia que
ele fica comigo em casa, ele chama querendo vir prá cá. Domingo ele
fala: me leva na tia Denise, aí quando tá comigo, ele chama ela de tia
(...)” (Íris, 28/08/2001).
Laura atualmente está em casa cuidando do bebê e tirou Patrícia da creche quando
parou de trabalhar. Para Laura, trabalhar e cuidar da casa e dos filhos não é algo fácil de
conciliar, embora tenha dito que necessita trabalhar porque o salário do marido é muito baixo.
Mas se Renato recebesse um salário maior, Laura possivelmente ficaria em casa cuidando da
filha e do bebê. Das cinco mães, ela foi a única que reclamou da falta de uma disciplina mais
rígida com as crianças dentro da creche domiciliar. Provavelmente ela tenha enfrentado
problemas quando a filha saiu da creche e por isso falou que Denise deixa as crianças com
manha. Laura também reconhece que Patrícia estava muito agarrada com Denise e que por
isso a menina a chamava de mãe. Ela não manifestou sentimentos de culpa, mas o ciúme
parece evidente quando culpa Denise por deixar as crianças com manha:
“Então ela era muito agarrada com a tia Denise. Tanto é que devido a ela
ter ficado muito tempo com a tia Denise, a tia Denise não era a tia Denise,
era a mãe Denise. Mas ela é uma ótima pessoa, eu gosto dela, mas o
negócio dela é que ela dá muita manha e as crianças são muito manhosas
em relação a isto” (Laura, 27/08/2001).
179
Marta não está satisfeita com o casamento e com o trabalho. Ela é responsável pelo
sustento da família e está cansada de trabalhar, ganhar pouco e não ter qualquer ajuda do
cônjuge. Quando Carlos trabalha, gasta o salário com drogas e bebidas. Questionamos o que
mantém Marta atada a este casamento, se ela e o filho sofrem violência quando Carlos está
alcoolizado. As razões pelas quais ela continua na relação não são para manter um chefe ou
provedor. Marta disse que ainda está casada, porque sente medo das perseguições do cônjuge.
Mas também supomos que ela não quer ficar só e voltar para a casa dos pais, uma vez que está
com 39 anos e num segundo casamento.
A relação de Marta e Carlos com o filho é difícil, e Denise e suas ajudantes diziam que
o menino não apreciava ficar em casa, que ele chorava na presença dos pais e ficava mais
calmo na creche. No período das observações constatamos que mesmo com a chegada de
Marta do trabalho, Daniel continuava entrando e saindo na creche. Nos finais de semana a
mesma situação se repetia. Como Marta disse estar cansada de trabalhar, fazer o serviço da
casa, dormir e acordar de novo para trabalhar, ela não consegue dar atenção para Daniel,
mesmo nas horas em que está em casa. As atribulações e brigas do casal fazem com que o
menino se desloque para a casa de Denise. Marta disse não sentir ciúme quando o menino
chama Denise de mãe:
Entretanto, algo aqui nos parece problemático com relação a Daniel. Ele sofre com a
relação dos pais e com a violência cotidiana. Na creche domiciliar regularmente estava de
castigo, e Denise não era carinhosa com ele como era com as outras crianças.
Nesse grupo de mães a função materna, que consideramos uma construção social e
cultural internalizada desde que somos meninas, é dividida com Denise, que recebe um
pagamento pelo que faz. Esta é uma relação comercial que ocorre por meio de um contrato
informal, mas que prevê normas e obrigações de ambas as partes.
A transmissão/delegação da função materna, que precipitadamente poderíamos
classificar como prejudicial ao desenvolvimento das crianças, numa classificação carregada de
um preconceito de classe, característico das camadas médias, para as cinco mães é algo
encarado com naturalidade, ainda que experimentem sentimentos como ciúme e culpa. Tais
sentimentos têm uma explicação que não é apenas de ordem simbólica ou psicológica, mas
material. Há condições materiais de trabalho e de existência que não permitem a estas
180
mulheres passar um tempo maior com os/as filhos/as, para fazer coisas divertidas e brincar,
por exemplo.
As condições materiais de existência não permitem que elas fiquem com os/as
filhos/as, seja em tempo integral ou mesmo parcial. O desejo de quatro delas é de estar mais
perto de suas crianças, em uma família conjugal, na qual os homens possam trabalhar e ganhar
o suficiente para manter a família. Mas tal situação se inviabiliza e elas delegam à Denise a
função materna.
Para estas mães, quando as crianças chamam Denise de mãe dentro da creche e de tia
na presença dos pais, ou quando chamam Denise de mãe dois e a mãe de origem de mãe um,
isto adquire um sentido: elas estão sendo bem tratadas e gostam da tomadora de conta. Este é o
termômetro que permite medir a temperatura desta delegação da função materna. É por isto
que as mães não levam tal problemática para a creche domiciliar. Elas resolvem o problema do
ciúme e da culpa conversando com os/as filhos/as ou deixando o tempo passar, porque
certamente quando maiores eles e elas saberão distinguir quem é a mãe de origem. Não
compreendemos tal situação como um problema insolúvel, ou como algo que possa prejudicar
o desenvolvimento emocional das crianças.
Quando Fonseca (1997, p. 534 - 535), analisa os significados do que é ser mãe entre
mulheres pobres do início do século XX, escreve que é necessário tirar a experiência materna
do isolamento conjugal e situá-la dentro de redes sociais que perpassam a unidade doméstica.
A circulação de crianças entre uma casa e outra é para ela uma prática particular dos grupos
populares, cujas famílias são extensas e que necessitam acionar estratégias coletivas para a
sobrevivência das crianças. O cuidado das crianças nem sempre cabia à mãe biológica, mas às
avós, criadeiras e mães de criação. Nosso caso apresenta algumas singularidades, mas Denise
não deixa de ser uma mãe de criação, embora receba um pagamento mensal para exercer tal
função.
Entre as mães e as crianças tudo parece mais resolvido do que para Denise, que se
ressente por fazer mais do que as próprias mães. Provavelmente sinta que a delegação, por
maior duração que tenha, um dia terá um fim.
181
3.5
SÍNTESE:
DELEGAÇÃO
E
PERSPECTIVA
FAMILIARISTA
DE
EDUCAÇÃO
Os sentidos do trabalho para as mães se relacionam com suas trajetórias de vida, com o
modo como elas vivem as relações familiares com os cônjuges e os/as filhos/as. Como a
estrutura de família nuclear tem importância nesse grupo, elas desejam que a tomadora de
conta possa dar continuidade aos laços de parentesco e à educação do tipo familiar que elas
próprias não conseguem oferecer, por suas limitadas condições de existência.
A afetividade e os cuidados são valorizados, assim como uma educação para a
formação de hábitos, valores e atitudes baseados na obediência aos mais velhos. Entretanto,
esta entrega dos/as filhos/as para a tomadora de conta é algo vivido com culpa, ciúme ou com
uma certa sensação de alívio, como no caso de Juçara. Todos estes sentimentos estão
carregados de materialidade, das condições de vida e trabalho destas mulheres, bem como das
suas vivências afetivas e de estratégias para manter a estrutura familiar.
As mães convivem com a situação dos filhos/as chamarem Denise de mãe, apesar do
ciúme e da culpa. Elas têm explicações e lógicas bem estruturadas a respeito da problemática.
O fato da maioria delas circular no mesmo quintal dos outros parentes, assim como as suas
crianças circulam na casa de Denise, mesmo quando elas não estão trabalhando possivelmente
proporcione esse caráter aberto à situação. Lembramos do que escreve a antropóloga Fonseca
(1997, p.536) a respeito do caráter aberto das casas construídas no mesmo quintal e que
proporcionam que “as crianças se infiltrem pelas fronteiras dessas casas burlando os limites
entre uma família e outra”. Ao longo do capítulo fornecemos exemplos, como o de Daniel, que
mesmo após a chegada da mãe continua circulando na creche, ou de Jane e Mateus, que
freqüentemente visitam Denise, nos horários fora do expediente de trabalho.
Exploraremos duas dimensões que perpassam os sentidos do trabalho de tomar conta
de crianças para as mães. A primeira dimensão se refere às expectativas das mães de que na
creche domiciliar ocorra uma educação de tipo familiarista. Este é um conceito que
descobrimos no estudo de Torres & Silva (1998) que encontram, nos setores menos
escolarizados e com menores rendimentos, uma tendência mais familiarista (deixar as crianças
aos cuidados de uma ama, ou de parentes mais próximos) na escolha dos serviços de guarda
182
para as crianças, embora a partir dos três anos estes setores prefiram serviços que preparem
para a escolarização como forma de evitar o insucesso escolar.
Outras autoras, como Bloch & Buisson (1998), escrevem sobre esta relação entre as
perspectivas de educação das famílias e das tomadoras de conta de crianças (denominadas por
elas de assistentes maternais). Para estas autoras a escolha da creche domiciliar não é apenas
uma escolha material e temporal, mas simbólica, ou “uma reinterpretação da herança material
e simbólica das origens familiares”.
Encontramos similaridades com nossa investigação, porém as singularidades
decorrentes do contexto estudado merecem atenção. Para as cinco mães, Denise substitui uma
mãe, cria as crianças, e elas preferem um ambiente acolhedor que funcione como uma família,
diferente das creches e pré-escolas legalizadas. Também esperam que os valores e hábitos
familiares sejam estimulados dentro da creche domiciliar e que seus filhos sejam protegidos
dos perigos da rua.
Para elas é importante conhecer a vida pessoal da tomadora de conta, logo não é
qualquer mulher que pode fazer o que elas almejam. Ocorre um certo controle da vida de
Denise, dos acontecimentos da sua casa, assim como algumas mães fazem programações junto
com ela. Foi dito, por exemplo, que Denise e as mães formam uma família. Nós optamos pelo
conceito em foco tendo em vista estas questões. Ocorre no espaço estudado uma reprodução
do ambiente familiar das crianças. Não esqueçamos, porém, que tal reprodução só acontece
porque existe uma simultaneidade de objetivos e intenções de ambas as partes, pois Denise
não trabalha com crianças cujas famílias tenham valores muito distantes daqueles que ela
considera importantes.
A segunda dimensão diz respeito à relação das mães com a creche domiciliar, que
caracterizamos como uma relação de delegação. Este é um conceito desenvolvido por Singly
& Maunaye (1996, p. 99-100)38 em pesquisa na França sobre mães que delegam os cuidados
dos/as filhos/as pequenos/as e doentes a outras pessoas.
Considerando nosso contexto, compreendemos que as mães transmitem por delegação
a função materna que elas não podem exercer em tempo integral para a figura da tomadora de
38
SINGLY François de e MAUNAYE, Emmanuelle. Le rôle et sa délégation. In: KAUFMANN, Jean–Claude.
Faire ou Faire-Faire? Famille et services. Presses Universitaires de Rennes: 1996.
183
conta. Nesse sentido, conferem alguns direitos a Denise para agir na ausência delas. Tal
delegação envolve outras atribuições e responsabilidades, como levar ao pronto-socorro
quando necessário, cuidar das crianças quando estão doentes, acompanhar a vida escolar e
substituir a mãe em eventos da escola infantil, marcar exames médicos, preparar e controlar a
sua alimentação, acompanhar o desenvolvimento de cada uma delas, seus primeiros passos e
primeiras palavras, entre outras. No desenvolvimento deste último item exploraremos a
dimensão da educação familiarista e da delegação da função materna dialogando com autores
e com outras experiências de creches domiciliares, além de estabelecer relações com nossa
empiria.
Como temos argumentado, o sentido da creche domiciliar para as cinco mães não é o
de uma creche ou pré-escola legalizada. Elas não desejam para os/as filhos/as menores de três
anos experiências pedagógicas mais sistematizadas. As mães delegam os cuidados e educação
dos/as filhos/as, em tempo integral, para Denise. Elas querem que ocorra na creche uma
educação do tipo familiarista, que seja coerente com os hábitos, valores e atitudes do meio
sócio-cultural de origem das crianças.
Isto de certa forma explica porque elas desejam conhecer a vida pessoal da tomadora
de conta, o tipo de educação que ela proporciona as filhas, o modo como organiza a vida
doméstica e a casa, para depois fazerem suas escolhas. É necessário que haja uma
correspondência entre a forma de Denise criar e educar suas filhas, com o tipo de cuidados e
educação que as mães desejam para os seus.
Quando as mães dizem preferir que a tomadora de conta trabalhe com um número
pequeno de crianças, porque assim elas recebem mais atenção, provavelmente isto tem um
outro sentido, que é o de propiciar uma educação familiarista que dê continuidade aos laços de
parentesco entre as crianças e Denise. Não é por acaso que elas argumentam que quando as
crianças chamam Denise de mãe, isto representa satisfação pelo carinho e atenção que
recebem na creche. Elisa explicou tal sentimento de certa forma com preconceitos, quando
disse que é melhor chamar Denise de mãe, do que madrasta.
Marta se distingue das outras mães, porque é cunhada de Denise. Ela foi muito clara ao
dizer que prefere deixar o filho com um familiar e que não confiaria em outra pessoa.
Entretanto, os maiores conflitos ocorrem justamente com as pessoas ligadas por um laço de
184
parentesco. Os problemas com atrasos de pagamento envolvem o irmão de Denise, assim
como os castigos e punições são quase sempre aplicados em Daniel.
No caso de Marta, Carlos e Daniel, a perspectiva familiarista assume outros contornos,
porque Denise não quer trabalhar sem um pagamento. Enfatizamos, portanto, que acontece
uma educação familiarista que é concretizada pela delegação da função materna. Isto é
radicalmente diferente de deixar os/as filhos/as aos cuidados de um parente que não cobre uma
taxa pelos serviços prestados.
No ano de 2001 fizemos contato com o Projeto de Formação de Amas na cidade de
Guimarães, em Portugal39. Alguns achados do projeto, nos permitiram estabelecer vínculos
com nosso objeto de estudo. Um deles diz respeito à proximidade entre familiares e amas, no
que diz respeito à escolaridade, à situação econômica e às estratégias de educação dos/as
filhos/as. O ambiente familiar da casa da ama apresenta similaridades com o da família da
criança. O estilo de educação das amas40 e as estratégias de promoção do desenvolvimento
estão muito próximas daquelas dos familiares.
Como existe uma certa compatibilidade entre os pais e as amas foi dito, por exemplo,
que os pais que têm um nível de escolaridade mais alto procuram as amas que têm também um
nível de escolaridade mais alto. Portanto, há uma coerência muito grande entre o estilo de
educação dos pais e o estilo de educação da ama41.
39
Este projeto foi acompanhado durante o doutorado sanduíche em Portugal, no ano de 2001. Ele faz parte de
um Programa Nacional de Apoio a Crianças em situação de Risco ou de Desigualdade. Esclarecemos que o termo
amas tem o mesmo significado de tomadoras de conta. O objetivo do projeto era trabalhar com crianças e amas
que não estivessem legalizadas pela Seguridade Social. No final dos anos 90 foi feito um levantamento e
caracterização das amas e crianças em cinco freguesias rurais do Conselho de Guimarães. Em uma segunda etapa
foi realizado um projeto de formação com as 47 amas incluídas no levantamento. A título de esclarecimento,
Portugal é o país, no conjunto da União Européia, com maior número de mães trabalhadoras, sendo também o
país onde essas mães trabalham mais horas. As taxas de cobertura dos equipamentos públicos destinados ao
cuidado e educação das crianças são as mais baixas da União Européia. A rede nacional de educação da primeira
infância é ao mesmo tempo pública e privada, e a responsabilidade política está dividida em dois Ministérios: o
da Educação (crianças de três a seis anos) e o do Trabalho e Solidariedade (crianças a partir de três meses). A
educação pré-escolar é gratuita somente para as crianças de cinco anos (Fonte: Unesco, Educação e Cuidado na
Primeira Infância, 2002).
40
Existe uma diferença entre as amas ilegais, que fazem parte do projeto referido, e as amas da seguridade
social: estas podem ter no máximo quatro crianças e se tiverem um filho com idade até três anos, só podem
atender mais três crianças. Após os três anos, as crianças devem ir para o jardim de infância. No caso das amas
ilegais, estas recebem as crianças enquanto os pais quiserem; não há limite de idade: no Projeto Ludo Ser foi
possível encontrar crianças de 14 anos com as amas, em situação semelhante ao caso de São Gonçalo, ou seja, as
crianças e adolescentes freqüentam a escola em meio período e nos períodos subseqüentes ficam com as amas.
41
Alguns pais estiveram com amas quando eram crianças. Além disso, nessa região os pais não encontram muitas
opções de educação para os/as filhos/as. Soubemos, por exemplo, de uma ama que ficou acompanhando uma
185
Em nosso grupo de mães percebemos que há compatibilidades entre elas e a tomadora
de conta com relação à situação econômica, ao grau de escolaridade (com exceção de Elisa e
Juçara), às experiências profissionais com serviços domésticos, ao tipo de moradia que é
compartilhada em um mesmo terreno com outros familiares e ao estilo de educação das
famílias. No Projeto de Formação de Amas da cidade de Guimarães, foi constatado igualmente
que as crianças chamam as amas de mãe, ou de segunda mãe, exatamente como em nosso
estudo.
A delegação e a expectativa de uma educação familiarista ocasionam sentimentos de
preocupação entre algumas mães com relação à vida pessoal da tomadora de conta. Íris e Elisa
relataram que são amigas de Denise e que costumam convidá-la para programações de finais
de semana. Como vimos, Elisa paga mais do que as outras mães, porque disse reconhecer o
esforço de Denise.
Para Juçara, Denise é uma mulher que se acostumou a servir os outros, mas que não
tem quem se preocupe com ela. Ela falou sobre a necessidade de que outros profissionais
atuassem na creche uma vez por semana, como um médico encarregado da saúde das crianças
e de Denise: porque praticamente ela toma conta das crianças, mas esquece da parte dela. Da
saúde dela, das coisas dela dentro de casa e ela poderia ter uma ajuda de fora.
No Projeto de Formação de Amas, na cidade de Guimarães, foi constatado que assim
como as crianças necessitam de atenção, as próprias amas também precisam de apoio e a
maior parte delas não encontra ajuda, uma vez que são sempre elas que oferecem apoio aos
outros, seja aos próprios familiares, ou às mães e crianças com as quais trabalham diariamente.
Bloch & Buisson (1998) pesquisam sobre a guarda da pequena infância na França e
percebem estes serviços como um apoio no qual se mantêm laços de sociabilidade entre pais e
profissionais, tal como temos observado na relação entre as mães das crianças e Denise.
Estas autoras francesas encontram em seu estudo características semelhantes às
encontradas em São Gonçalo e em Guimarães, com relação a educação das crianças pequenas
nos meios populares. Elas observam que as crianças menores de três anos ficam com outras
mulheres que tomam conta delas, podendo ser pessoas da família ou profissionais como as
criança no período em que seus pais imigraram para trabalhar. Os pais da criança faziam visitas de três em três
meses quando vinham a Portugal.
186
assistentes maternais42. Relatam que as creches familiares são espaços nos quais não ocorre
somente a socialização das crianças, mas também dos adultos, porque acontecem trocas e
solidariedades que permitem às famílias sair do seu isolamento. As redes de sociabilidade em
torno das assistentes maternais não são uma regra geral, geralmente ocorrendo quando se
estabelecem relações de vizinhança entre famílias, profissionais e crianças. Nós também
observamos o mesmo, especialmente nos casos de Íris e Elisa que são vizinhas de Denise e
mantêm com ela uma relação de amizade.
Quando Bloch & Buisson (1998) escrevem que a escolha da creche domiciliar é “uma
reinterpretação da herança material e simbólica das origens familiares”, isto tem sentidos que
para nós também se relacionam com uma perspectiva familiarista de educação.
Elas argumentam que a opção pelas creches domiciliares permite reatar com a
assistente maternal uma sociabilidade característica do meio social de origem. E a dinâmica
relacional entre pais e profissionais que se sentem quites se apóia sobre dons, presentes, ajudas
mútuas e amizades que circulam entre eles. Ainda observam as autoras: “uma grande distância
social entrava a possibilidade de reconhecer no outro e no dom recebido uma parte de si
mesmo e instaura uma relação de dominação” (1998, p.66).
São estes laços de sociabilidade, que também encontramos entre as mães e Denise
(com exceção de Marta), que estruturam uma relação de confiança, o que igualmente
possibilita que as mães estabeleçam uma relação de delegação com a creche domiciliar. No
capítulo anterior, vimos como Denise vive, principalmente a delegação das crianças doentes,
com dificuldades e conflitos.
Analisaremos aqui um aspecto da delegação, que diz respeito à entrega das crianças
doentes na creche. As mães não encontram condições de faltar ao trabalho para acompanhar
os/as filhos/as doentes e, muitas vezes nem mesmo para marcar exames pré-operatórios, como
no caso de Mateus. Não esqueçamos que a escolha da creche domiciliar está vinculada a esta
acolhida de Denise, que não pode falhar com as mães, inclusive nos momentos mais delicados.
42
Esta parece ser uma denominação empregada para as mães crecheiras ou profissionais de creches domiciliares
na França, embora tenhamos encontrado expressões como amas em Singly e Maunaye (1996).
187
Singly & Maunaye (1996, p. 99-100)
43
analisam casos de mães que delegam os
cuidados das crianças doentes, e se esta delegação pode significar ausência ou presença da
dimensão da mãe cuidadosa ou zelosa. Para os autores, duas dimensões intervêm na decisão
das mulheres sobre cuidar ou não os/as filhos/as doentes: uma delas está ligada a identidade
maternal e à concepção que as mães têm do seu papel de mães cuidadosas; a segunda está
vinculada às condições de trabalho e à existência de um direito de férias para
acompanhamento dos/as filhos/as doentes.
Na primeira dimensão, vinculada ao papel de mãe cuidadosa estão as que pensam que é
importante que as mães se ocupem dos/as filhos/as doentes, pois as crianças sentem
necessidade da presença materna. A presença no trabalho, nesse grupo fica em segundo plano,
pois a disponibilidade e o investimento materno em torno da criança fazem parte da definição
de uma boa mãe. Este não é o caso das cinco mães entrevistadas, que delegam o
acompanhamento das crianças doentes para Denise, uma vez que elas não têm qualquer tipo
de proteção social que lhes permita faltar ao trabalho para cuidar das suas crianças.
A segunda dimensão relaciona-se com as condições de trabalho e com a existência de
um direito de trabalho que contemple a necessidade da mãe acompanhar os/as filhos/as
doentes. Assim, cuidar uma criança doente não é necessariamente papel da mãe e pode ser
confiado a outras pessoas. A dimensão da mãe cuidadosa não faz parte do papel maternal, pois
as mães conferem mais importância ao trabalho. Esta dimensão não representa inteiramente
nosso grupo de mães, porque pelo menos quatro delas não parecem colocar o trabalho em
primeiro lugar e a identidade maternal em segundo. O que ocorre é que como elas não podem
faltar ao trabalho, depositam toda a confiança e expectativas na pessoa da tomadora de conta,
mesmo quando os/as filhos/as estão muito doentes.
43
Pensamos que é importante esclarecer quais são os modos de guarda das crianças pequenas em Paris no
final dos anos 90, uma vez que os autores escrevem a partir da realidade francesa: creches coletivas para
crianças de dois anos a três meses com funcionamento em média de 11horas por dia de segunda a sexta;
creches familiares para uma ou mais crianças de dois meses a três anos; creches parentais que são minicreches coletivas geridas por uma associação de pais; jardins de infância municipais para crianças de dois a
quatro anos; os jardins de l’opac que são geridos pela cidade e recebem crianças de dois a seis anos; os
jardins maternais que acolhem crianças de dois a três anos ainda não beneficiadas por um tipo de guarda
coletiva; as altas creches públicas ou privadas que recebem crianças até seis anos com ritmos de trabalho
que podem variar de uma hora a muitas jornadas por semana (Fonte: MAIRIE DE PARIS. Les modes de
garde. Parents à Paris. Paris: 1998).
188
É possível relacionar os casos das cinco mães com a análise destes sociólogos
franceses, principalmente quando argumentam que a escolha entre acompanhar ou delegar a
guarda das crianças não se explica somente pela presença ou ausência da identidade maternal,
pois as condições materiais de existência também interferem na delegação. Vejamos o caso de
Juçara, que distinguimos das outras mães pela necessidade do trabalho para adquirir um pouco
de felicidade pessoal. Quando seus filhos estão muito doentes, ela se ressente por não
conseguir uma dispensa para acompanhá-los,e as dificuldades econômicas e de trabalho
interferem na resolução destas situações:
“As 7:00 Marcos e Mauro são entregues pela mãe. Juçara fica na porta e
conta em voz alta e agitada o caso de Mauro (bebê de sete meses) que
está doente. Relata que no final de semana não encontrou a pediatra e
outro médico cobrou 120,00 reais pela consulta. Como ela não tinha
dinheiro, explica para Denise que comprou Mucosolvan e Cataflan por
sua conta. Comenta que vai ligar para a pediatra e perguntar sobre o
remédio correto. Ela tentou conseguir dispensa com a patroa pelo
telefone, mas a patroa disse que é assim mesmo, que é uma virose e que o
filho mais velho também esteve assim. Denise interroga um pouco sobre
os remédios e ela explica que comprou genéricos, que não encontrou
Mucilon (farinha) e que trouxe frutas. Entrega as frutas a Denise e
pergunta se ela tem nebulizador. Denise diz que não e ela dá um beijo nos
filhos e deixa na creche o carrinho do nenê” (Diário de Campo,
18/06/2001).
Singly & Maunaye (1996) relacionam as decisões das mulheres de acompanhar ou
delegar os cuidados com a obtenção de licença para cuidar dos/as filhos/as doentes. Uma
destas decisões, que apresenta similaridades com nosso grupo de entrevistadas, diz respeito às
mães que não têm direito a férias e são obrigadas a delegar o cuidado dos/as filhos/as a outras
pessoas. Estas mulheres consideram indispensável a presença da mãe em conformidade com a
sua identidade maternal, por isto vivem mal esta decisão, porque se sentem contrariadas ao
negligenciar um papel para elas essencial, em detrimento de uma atividade profissional menos
valorizada.
Este é o caso de Elisa, que vive a decisão de deixar a filha doente na creche domiciliar
com culpa e preocupação. Ela seguidamente fazia recomendações a respeito da importância
189
dos cuidados com a saúde de Jane: se tiver chovendo muito, não manda para a escola, é
melhor não lavar o cabelo dela, ela teve febre a noite e está muito gripada.
Por último, os sociólogos (1996, p. 101-103) analisam os três principais substitutos das
mães, quando as crianças pequenas estão doentes, que são: a participação moderada dos pais, a
ajuda das amas e o apelo aos avós. Segundo os autores os pais pouco participam das
resoluções de problemas gerados pelas doenças infantis, pois o trabalho profissional masculino
é considerado pelos homens e suas mulheres como mais importante, não devendo sofrer
interrupções. Embora alguns homens substituam as mães com ritmos específicos de trabalho
que as impedem de acompanhar os/as filhos/as, ou quando a criança pequena é gravemente
doente, em geral eles não guardam os/as filhos/as doentes, porque se sentem amputados,
mesmo que provisoriamente, da profissão. Como vimos no caso dos pais do nosso estudo, nem
mesmo os cônjuges desempregados assumem o cuidado das crianças. Íris, Marta e Elisa não
comentaram sobre algum tipo de ajuda dos pais, no sentido de acompanhar os/as filhos/as
doentes.
No que diz respeito à ajuda das amas
44
, Singly & Maunaye (1996) observam que as
mães encontram qualidades nestas trabalhadoras que outros modos de guarda, como a creche,
não apresentam. Para estas mulheres a personalização da relação afetiva é uma dimensão
valorizada, porque as amas apresentam um funcionamento mais compatível com as mães. Elas
oferecem horários mais flexíveis e estão sempre disponíveis nos casos difíceis, como os de
doenças das crianças. Em nosso estudo a tomadora de conta explicou que a relação com as
mães é uma relação que vai além, ocorrendo, inclusive, empréstimos em dinheiro quando as
crianças estão doentes:
44
Sobre as amas ou assistentes maternais é importante esclarecer que em Paris elas estão agregadas pela
Prefeitura (Serviço de Proteção Maternal e Infantil) e são assalariadas. Elas recebem acompanhamento de
uma diretora-enfermeira-puericultora diplomada do Estado que faz visitas regulares. Esta se ocupa
pessoalmente da criança e é ajudada por uma equipe que trata de cuidados médicos, psicológicos e
educativos. Para favorecer a socialização e o bom desenvolvimento das crianças, as ações coletivas são
regularmente organizadas por uma educadora. A duração da guarda não pode exceder 10 horas por dia ou
50 horas por semana. Um contrato assinado entre os pais, a diretora e a assistente maternal define as
modalidades concretas de acolhida (horários, repasses) (Fonte: MAIRIE DE PARIS. Les modes de garde.
Parents à Paris. Paris: 1998).
190
“Um homem bate no portão e Estela corre para avisar a mãe. Os outros
vão atrás dela e ela grita: ‘Todos lá prá dentro!’ Denise recebe um bilhete
do irmão de Juçara. Ela comenta comigo sobre o conteúdo do bilhete e
diz: ‘Isso aí não é uma relação só. Vai além...’ Como ela permite que eu
leia o bilhete eu anoto o pedido de Juçara: ‘Denise: Por favor se você puder
me emprestar 20,00 reais eu agradeço, amanhã João vai receber e eu te dou.
Por favor, se você puder me emprestar eu agradeço pois o Marcos está com
quase 40 graus de febre. VIRE: Vou levar ele no médico e na volta eu passo aí
na sua casa para a gente conversar. Obrigado! Amanhã João recebe eu te dou o
dinheiro. Juçara Obs: Não fique muito preocupada, vai ficar tudo bem!’” (Diário de
campo, 19/06/2001).
Um outro ponto destacado pelos autores diz respeito à formação das amas que não são
especialistas o que, para as mães da classe trabalhadora, representa uma vantagem, pois para
elas é mais fácil a obtenção de uma relação equilibrada, assim como é mais raro que ocorram
sentimentos de inferioridade social destas para com aquelas. Aqui podemos traçar um paralelo
com os depoimentos das mães que responderam não ser preciso formação para tomar conta de
crianças, justificando que amor, dedicação e atenção são aspectos importantes, assim como
algumas valorizaram a relação de amizade e de solidariedade que mantêm com Denise. Ainda
explicam os sociólogos que ao olhar a maioria das mulheres que utilizam estes serviços exceto as que temem a concorrência da relação da criança com outra mulher - a vida de
trabalho e a vida familiar são mais fáceis de conciliar com o apoio daquelas amas que também
aceitam ocupar-se das crianças doentes, quando não há perigo de contágio e riscos para as
outras crianças.
Para finalizar o presente capítulo, lembramos que esta delegação é paga, mas
igualmente acontece uma circulação de crianças, de mães e outros vizinhos na casa de Denise.
Isto proporciona certa abertura para que ela seja chamada de mãe ou tia e para que, inclusive,
as mães se sintam no direito de emitir opiniões sobre a sua vida privada.
Nenhuma das mães expressou expectativa de que a creche domiciliar substitua o meio
natural em que se encontram crianças e adultos, pois a tomadora de conta incorpora as
crianças nas atividades da casa exatamente como acontece em uma família. Vimos como as
mães avaliam, informam-se no local e procuram investigar o que acontece na creche
domiciliar, o que também confirma que o estilo de educação da tomadora de conta é
semelhante ao estilo de educação dos pais.
191
Ocorre que esta perspectiva familiarista de educação interfere no tipo de trabalho que
se estrutura no cotidiano da creche, bem como nas concepções de socialização dos meninos e
das meninas, aspectos que desenvolveremos no capítulo seguinte.
192
CAPÍTULO 4. O COTIDIANO NA CRECHE DE DENISE
“Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração” (Fernando Pessoa)
Nos capítulos anteriores tratamos dos sentidos do trabalho de tomar conta de crianças
para Denise e para as mães que procuram os serviços no bairro Saudade. Neste capítulo,
propomo-nos examinar o cotidiano da creche de Denise, a utilização dos espaços, a
organização das atividades num local que combina creche e vida familiar, as dificuldades, os
acertos e, fundamentalmente, as peculiaridades desse trabalho. É um trabalho semelhante ao
das creches e pré-escolas coletivas? Ou existem particularidades que o distinguem de outros
espaços de cuidado/educação para as crianças pequenas?
Os itens que compõem o capítulo são decorrentes das análises dos diários de campo
escritos no período das observações. Entretanto, algumas informações obtidas nas entrevistas
complementaram os dados coletados nas observações. Assim, utilizaremos depoimentos de
entrevistas, e estabeleceremos relações com informações dos outros capítulos.
Quando iniciamos as observações, as crianças que freqüentavam a creche de Denise
eram: Daniel, seu sobrinho, com três anos; Mateus, com dois anos; Julinho, que completou
quatro anos em julho; os irmãos Marcos, com dois anos e Mauro, com dez meses; Jane, com
quatro anos; Jonathan, com seis meses; e Estela, a filha de Denise, com cinco anos45. No
desenvolvimento do capítulo, algumas situações vividas por estas crianças serão referenciadas.
45
Para evitar descrições estereotipadas das crianças preferimos deixar que elas apareçam nos relatos que fomos
construindo nos diários de campo. Exceto Daniel, as demais crianças são negras (Jonathan, Julinho e Jane) ou
mestiças (Marcos, Mauro, Estela, e Mateus). Denominamos de mestiçagem a mistura de raças, com pai da raça
193
Este trabalho apresenta uma peculiaridade que é a combinação de creche e residência.
Tudo que ali acontece envolve cenas da vida familiar de Denise. No primeiro item deste
capítulo descreveremos o espaço, a entrada e o interior da casa, os cômodos, os objetos e
outros detalhes que oferecem uma leitura do local no qual circulam a família de Denise e as
crianças provenientes de outras famílias.
No segundo item, analisamos o acolhimento das crianças. Embora não tenhamos
observado os primeiros momentos das crianças e seus familiares na creche, acompanhamos
comentários entre Denise, Bia e Nara sobre as dificuldades de inserção de alguns bebês.
Optamos pela inclusão dos dados obtidos nas entrevistas, para descrever como as crianças e os
adultos reagem nos primeiros tempos de convivência.
No terceiro item tratamos do dia a dia na creche domiciliar, iniciando com uma
descrição das rotinas. Mas como no cotidiano não encontramos somente atividades rotineiras,
trataremos dos acontecimentos e das outras atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara.
Como percebemos a presença constante da televisão na creche domiciliar optamos pelo
tratamento desta questão, hoje amplamente discutida por sociólogos da infância, sensibilizados
pela criação de um mercado voltado exclusivamente para os públicos infantis.
Além dos acontecimentos e atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara,
constatamos que as crianças também criam atividades espontâneas, todas elas baseadas no ato
de brincar, na imaginação e interpretação da realidade de uma forma própria dos grupos
infantis. Assim, as expressões das culturas infantis e o referencial teórico da sociologia da
infância são pontos debatidos no terceiro item.
Os sociólogos da infância percebem as crianças como atores sociais com uma
autonomia relativa, o que produz mudanças na noção de socialização. No quarto item
caracterizaremos três dimensões do processo de socialização vivido na creche domiciliar,
considerando que as crianças, assim como têm suas culturas, também passam pelo crivo
cultural dos adultos com a inculcação de normas, valores e comportamentos típicos das
camadas populares.
branca ou descendente de índios e mãe da raça negra ou vice versa. Como os pais de Julinho são separados, ele
permanecia uma semana na creche de Denise e outra semana na casa de seu pai, que havia constituído nova
família. A mãe de Julinho é cabeleireira e ele reside com ela e mais duas irmãs na faixa dos 17/18 anos. Jonathan
vivia com a avó materna e a mãe, que trabalhava na feira vendendo verduras. Ele saiu da creche no mês de julho,
194
Por último, sintetizamos o trabalho de Denise retomando questões discutidas no final
do terceiro capítulo, quando afirmamos que ocorre uma perspectiva familiarista de educação
na creche domiciliar. A análise do cotidiano permitiu ampliar esta idéia, lançada no capítulo
anterior, conforme veremos.
4.1 ENTRANDO NA CASA: CRECHE E RESIDÊNCIA
Quando descemos no ponto de ônibus mais próximo à creche é necessário caminhar
pela rua principal e dobrar uma esquina em direção à Rua do Poço, onde se localiza a casa de
Denise. Esta é uma rua sem calçamento, repleta de homens conversando em grupos, bebendo
ou jogando cartas, de meninos soltando cafifas, de mulheres, idosos e crianças em frente às
casas e de pessoas caminhando com diferentes destinos. Perto da creche há uma casa maior
com muro extenso, no qual se lê a frase: Vivos somos traídos, presos somos esquecidos e
mortos deixaremos saudades.
A casa de Denise localiza-se na esquina com o Brizolão46. Do lado de fora da casa, a
fachada do muro está com reboco e sem pintura. O portão que dá acesso à casa de Denise é de
ferro. Há duas inscrições, uma em cada lado do portão, com letras grandes e em tinta
vermelha. Em uma lê-se Vende-se Sacolé a R$ 0,20; na outra, Toma-se Conta de Crianças47.
Quando abrimos o portão, avistamos um pequeno alpendre na frente da residência e
creche de Denise. Na fachada vemos uma janela ampla e uma porta de madeira. Há um espaço
cimentado no chão, que cobre a parte da frente da casa. O lote é extenso e nos fundos há um
pátio de terra com algumas árvores, entre elas uma imensa goiabeira. Nesse pátio há duas
casas velhas de madeira e uma casa ainda em construção. Em uma das casas reside Carlosirmão de Denise- com a esposa e o filho e na outra residem um sobrinho e a esposa que na
época esperavam um bebê. A obra pertence a Carlos, que pretende construir uma casa mais
ampla para a família.
em decorrência do desemprego da mãe, assim como Marcos e Mauro saíram da creche no final de julho de 2001.
Outras crianças que não freqüentavam a creche em 2001 serão citadas nos depoimentos de Denise, Bia e Nara.
46
Brizolão é como os moradores do local chamam o CIEP - Centro Integrado de Educação Popular.
47
No verão Denise vende sacolé para os moradores do local. Ela havia suspendido as vendas, porque no período
da coleta de dados fazia frio.
195
A creche e residência tem sete cômodos: sala, cozinha, um quarto ocupado por Denise,
um outro quarto que pertence a Nara e Estela, um quarto para guardar brinquedos e dois
banheiros. O piso todo é em revestimento de cerâmica e as paredes da sala, do corredor e dos
quartos são de alvenaria rebocada. Somente a sala, o corredor, o quarto e o banheiro de Denise
têm as paredes e tetos pintados de cor gelo. Os demais cômodos, com exceção da cozinha
revestida de lajota de cerâmica nas paredes e no piso, não são pintados. Não há nenhum tipo
de mobiliário apropriado para as crianças. Os brinquedos disponíveis são velhos e em pouca
quantidade, assim como no pátio não há brinquedos direcionados às crianças, como balanços,
escorregadores, canos, tanques de terra, entre outros.
De forma geral há uma boa iluminação na sala, na cozinha, no quarto de Denise e no
quarto das meninas. Nos quartos e na sala há ventiladores de teto. A casa é relativamente nova
e ampla, mas alguns cômodos ainda não estão concluídos, porque Denise só consegue dar
continuidade às obras quando sobra dinheiro.
A entrada principal permite o acesso à sala, que é relativamente espaçosa e iluminada
por uma janela grande e três janelas menores. Na sala há dois sofás com o forro gasto e
coberto por capas de tecido estampado, uma pequena estante com TV, vídeo cassete, aparelho
de som, fitas de vídeo da Igreja Universal e alguns cds de estilos musicais variados, como
pagode, samba, funk, infantis e religiosos. Nas paredes da sala há alguns quadros religiosos e
retratos de artistas de televisão como Sandy e Júnior, por exemplo. Não há gravuras, fotos ou
produções das crianças nas paredes, exceto um coração que foi confeccionado por Marcos e
entregue a Denise no dia das mães. Nos quadros religiosos encontramos frases como Eu e
minha casa serviremos ao Senhor ou Seja sobre nós a graça do Senhor Nosso Deus.
Saindo da sala há um corredor estreito e sem iluminação, no qual as crianças brincam
de carrinho. Este corredor se comunica com os quartos, banheiro e cozinha.
O quarto dos brinquedos e o banheiro são dois cômodos pequenos com uma abertura
desprovida de esquadria (uma porta convencional), o que não permite o fechamento dos
cômodos e a privacidade. Ambos localizam-se em frente ao corredor. Ainda não estão prontos
e nem mesmo a instalação elétrica foi providenciada. Como não há janelas e nem mesmo
iluminação indireta nesses dois cômodos, é difícil descrever todos os objetos e detalhes. Os
brinquedos aparentam ser velhos e alguns não funcionam. Há um teclado pequeno sem pilhas,
196
alguns carrinhos, uma boneca sem uma perna, alguns bichos de pelúcia (dois ursos, um
elefante e um tigre), uma bola, um pequeno quadro negro, duas bicicletas e uma motocicleta
de plástico.
O quarto de Nara e Estela é amplo, porém as paredes e o teto ainda não foram pintados
e a janela está com os vidros quebrados. Segundo informou Denise, as meninas não dormem
no quarto, porque sentem medo dos tiroteios freqüentes que ocorrem durante a noite. Foi
possível verificar, na noite em que fiquei na casa de Denise, que Estela e Nara dormem no
quarto da mãe com o rádio ligado em volume alto. O quarto delas está sempre arrumado e,
para evitar a entrada de mosquitos, cobrem a janela com uma colcha. As duas camas de
solteiro são cobertas por colchas cor-de-rosa. Em frente às camas há um armário pequeno com
espelho e prateleiras. Nas paredes há vários pôsteres de conjuntos musicais estrangeiros.
Quase todos os artistas são brancos, loiros, de olhos azuis. Há também um quadro do Garfield
e dois quadros de paisagens, com papel laminado contrastando ao fundo.
Em frente ao quarto das meninas fica o quarto de Denise, uma suíte com um pequeno
banheiro desprovido de porta e com uma esquadria apresentando uma abertura, através da qual
é permitido o acesso ao quarto. No banheiro há um chuveiro sem água quente, um vaso
sanitário e uma pia. Todas as atividades de higiene e repouso são realizadas nesses dois
cômodos. O quarto tem uma cama tubulada de casal, um guarda - roupa de compensado com
três portas e maleiro, uma cômoda com espelho, um cabideiro de madeira no qual as crianças
penduram as mochilas com roupas, toalhas e outros utensílios, e um andador para os bebês.
Quando os bebês dormem, Denise costuma utilizar um colchão do quarto das meninas para
acomodá-los no chão. As crianças maiores dormem na cama de casal. Não há quadros nas
paredes do quarto e como também não há cortinas, Denise costuma cobrir a janela com um
cobertor, principalmente nos momentos de repouso das crianças.
A cozinha é espaçosa, tem duas janelas grandes e por isto está sempre iluminada e
arejada. A porta da cozinha permite o acesso ao pátio e há situações em que as mães ou a
sobrinha de Denise entram por essa porta e ficam conversando, enquanto ela prepara as
refeições. A cozinha está sempre limpa, com pratos, panelas e talheres lavados. Há uma
geladeira caramelo que aparenta ser nova, um armário grande com pia no qual Denise guarda
os utensílios, um fogão azul e velho e uma mesa pequena e retangular com quatro cadeiras. No
197
horário do almoço, os meninos sentam no chão sobre um cobertor e as meninas sentam à mesa
para fazer as refeições.
4.2 O ACOLHIMENTO DAS CRIANÇAS
“A louca agitação das vésperas de partida!
Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo
E a gente esquecendo o que devia trazer,
Trazendo coisas que deviam ficar...
Mas é que as coisas também querem partir,
As coisas também querem chegar
A qualquer parte! - desde que não seja
Este eterno mesmo lugar...” (Mário Quintana)
Vimos como Denise procura conhecer cada uma das crianças, por meio de informações
obtidas com os familiares, ou de observações que vai fazendo ao longo dos dias. O interesse
pelo conhecimento das crianças, antes mesmo da entrada na creche, justifica-se, porque os
primeiros tempos de convívio são desafiadores, tanto para Denise, quanto para as crianças e
familiares48.
Quando as crianças ingressam pela primeira vez na creche domiciliar o relacionamento
com as pessoas da família de origem deixa de ser exclusivo. Como elas permanecem um
período extenso no local, interessamo-nos em saber como acontece o acolhimento, ou a
inserção das crianças (Bondioli e Mantovani, 1998). Tradicionalmente temos denominado este
tempo inicial de convívio entre adultos e crianças, como período de adaptação.
Nos primeiros contatos com a creche de Denise, as crianças não enfrentam um
ambiente diferente daquele que elas habitualmente conhecem. O número de crianças não é
grande-mantidas as diferenciações com o ano anterior, em que Denise tinha 17 crianças na
creche - assim como o espaço da creche e residência se assemelha ao ambiente familiar.
Porém, as relações que se construirão a partir desta entrada representam um desafio para cada
criança.
Como, afinal, acontece esse momento de transição, que se constitui na inserção das
crianças ao novo ambiente da creche e residência de Denise? Vimos no capítulo anterior que
48
No item final do capítulo analisamos três dimensões do processo de socialização, embora saibamos que o
acolhimento das crianças é o início desse processo na creche de Denise.
198
as primeiras semanas não produzem reações somente das crianças, mas igualmente de algumas
mães, que sofrem com a separação dos/as filhos/as.
Na creche domiciliar não ocorre um período de inserção com o envolvimento dos
familiares. Denise procura criar estratégias de trabalho, pelas quais as crianças possam se
adaptar tão logo entrem no local. Conforme comentamos no segundo capítulo, ela conversa
com as mães sobre as preferências, hábitos, rotinas de alimentação e higiene das crianças. A
partir desta conversa, procura privilegiar os gostos de cada uma delas nos primeiros dias de
experiência com o novo local. Nos casos difíceis, ou dá-se a saída da criança, ou Denise cria
novas estratégias de acolhimento. Ela considera mais fácil a adaptação das crianças menores:
Se a criança for pequena, de zero a um ano, é mais fácil de acostumar, bem mais fácil e bem
mais prático. Já de um ano e meio, dois anos pra cima, já é mais difícil. Porque a criança já
está habituada a ver a mãe o dia inteiro.
Perguntamos a Denise sobre o que ela faz quando as crianças não conseguem se
adaptar nos primeiros dias, e se ela costuma convidar os familiares para participarem destes
primeiros tempos de convívio. Denise explicou que é inviável envolver as mães no período de
acolhimento, pois elas não têm direito a licença para o acompanhamento dos/as filhos/as.
Sobre os pais ou outros familiares, não ofereceu informação.
No entanto, relatou o caso de uma mãe com a qual conseguiu estabelecer um período
de adaptação. Embora esta não tenha sido uma estratégia previamente planejada, é interessante
como ela tomou uma decisão não convencional frente a uma situação difícil de inserção de
uma criança:
“Ela chegou e eu vi que a criança se agarrou no pescoço dela. Como ela
trabalhava na parte da tarde, ela deixava ele de manhã para fazer as coisas
da casa, para trabalhar de tarde e deixar tudo arrumado. Eu falei: não, na
primeira semana você vai ficar no mínimo duas horas com a gente. Para
ele ver que você está brincando com um monte de crianças e junto
comigo. Eu vou chamar a atenção dele pro meu lado e tentar te esquecer
um pouco. Para quando você sair, ele saber que eu vou ficar junto com ele
e que também tem outros amiguinhos para ele brincar. Não vai ter só
você. Ela concordou numa boa” (Denise, 22/08/2001).
199
Neste caso, Denise apresentou uma atitude diferente de outras situações vividas com os
familiares, porque percebeu que aquela mãe tinha tempo livre pela manhã e que poderia
acompanhar o filho na creche domiciliar.
Nara descreveu outro caso de inserção com participação de um familiar. Mas neste há
um traço diferencial, por tratar-se de Daniel, que reside no pátio de Denise. Como a irmã de
Daniel - filha do primeiro casamento de Marta - ainda morava nos fundos da creche, fazia um
acompanhamento do irmão, que chorava nos primeiros tempos de convivência: Aí ela vinha
aqui, acalmava um pouco, e saía de mansinho. Aí ele se distraía com as crianças e parava de
chorar (Nara, 23/08/2001).
Para Denise, no período de inserção as crianças também observam o local e fazem um
tipo de estudo da creche, das outras crianças e dos adultos. Percebemos que os saberes que ela
adquiriu com suas experiências possibilitam que reflita sobre as crianças e suas relações com o
local nos primeiros dias de convivência. Vejamos um longo trecho de entrevista, no qual ela
comenta sobre a inserção de Julinho:
“O Julinho foi um. A mãe dele trabalha de cabeleireira em salão. Ele
tinha um ano, mas era enorme. Eu fiz tipo uma casinha. Tinha o lado dos
meninos e o lado das meninas. Cheio de carrinhos e bola de um lado,
boneca e casinha para as meninas, panelinha. Quando ele chegou e viu os
carrinhos e a bola, ele olhou para mim e ficou mostrando. Ele só apontava
com o dedo. Aí coloquei ele no chão e ele desceu numa boa e parou de
chorar. Aí foi prá lá, olhou, olhou, como quem diz: ‘- eu posso mexer?’
Eu falei: ‘- Pode mexer, pode pegar, o que é que você quer?’ Ele pegou o
carrão de bombeiros e colocou uma bolinha dentro da cestinha e foi
subindo. Ali eu vi que o interesse dele é brincar lá do lado de fora. Quer
dizer, no outro dia ele chegou com a intenção e perguntando se o carrinho
estava lá fora. Ele passou uns dois ou três dias desse jeito, meio calado e
sem comer. Eu falei, olha mãe, você vai ter que ter paciência, mas eu
estou passando para você todo o dia que ele não comeu. Ele comeu sim,
um pedacinho de pão, ele comeu dois biscoitos, comida ele não comeu.
Mamadeira, ele não mamou. Mas é aquela coisa, quando ele acostumar
com a minha presença e com a presença dos amiguinhos (...) Então o que
ele está fazendo? Ele está estudando prá ver se é bom. Então ele vai
começar a fazer tudo o que as crianças estão fazendo. Vai com calma.
Você nem precisa dar nada agora. Deixa ele com esta experiência de três
semanas, conforme for você deixa, conforme for você pode colocar em
outro local. Eu pegava o pratinho dele, colocava o biscoito, isso no café
da manhã. Botava ali o copinho, não dava mamadeira, porque ele não
200
queria nem ver mamadeira na frente. Aí de vez em quando ele olhava
para o copo e para o biscoito. Quando não tinha ninguém por perto, ele
comia tudinho e deixava o copo vazio, o prato vazio. Aí eu chegava:
‘Julinho, você viu qual foi o bicho que comeu tudo isso aqui?’ ‘Tia, foi o
pombo!’ ‘Mas que pombo safado! Pode deixar que a tia vai pegar esse
pombo amanhã!’ Na hora do lanche foi a mesma coisa. Ele comeu
direitinho. No almoço ele já estava comendo junto com as crianças. É
aquela coisa: você tem que parar, estudar a criança, ver como é que a
criança é, o que ela gosta de fazer e deixar ela fazer o que ela gosta. A
experiência maior foi esta” (Denise, 22/08/2001).
Apesar desta fala de Denise demonstrar o seu investimento para conquistar a confiança
das crianças e transmitir segurança às mães, não podemos esquecer que Julinho tem uma
identidade própria e modos de reagir frente às situações novas, que não são idênticos aos seus
pares. Ele, por exemplo, não chorou durante os primeiros dias e foi gradativamente adquirindo
confiança no ambiente.
Nem todas as crianças, porém, reagem como Julinho e há casos de bebês que choram
por longos períodos desde a entrada na creche. Embora Denise tenha dito que prefere trabalhar
com as crianças menores de um ano, nem sempre consegue manter a tranqüilidade quando os
primeiros tempos de convivência com os bebês apresentam adversidades. Nos primeiros dias
de acolhimento dos bebês, Nara e Bia não interagem com eles. Como Nara relatou, ela e Bia
preferem um distanciamento dos bebês, uma vez que o choro deles provoca ansiedade:
“Nos primeiros dias eu não gosto de pegar as crianças. Porque elas
choram muito e eu fico nervosa. Minha mãe fala: ‘Nara, não pega nos
primeiros dias, porque as crianças estão chegando agora e não
conhecem a casa’. Aí no terceiro dia eu começo a pegar a criança, ensinar
onde é a casa, mostrar os cômodos para a criança, para ela se acomodar
melhor. A minha mãe fala: - ‘Nara, segura a criança direitinho, cuidado
que está nos primeiros dias’. Aí eu pego a criança, começo a ninar,
começo a cantar com a criança e ela começa a se acostumar”(Nara,
23/08/2001).
Como vemos, há casos de bebês que demonstram ansiedade nos primeiros tempos na
creche. Contudo, este não é um período difícil apenas para as crianças. Vimos no capítulo
anterior como Elisa e Marta sofreram ao deixar seus filhos pela primeira vez na creche de
201
Denise. As mães saem da creche sem saber ao certo o que irá acontecer e esta incerteza
provoca ansiedade. Além disso, Denise, Bia e Nara também passam por situações difíceis,
pois cabe a elas resolver as primeiras dificuldades de inserção dos bebês, sem a participação
das mães de origem. Tudo isto provoca transtornos na residência e creche de Denise.
“O único que não se acostumou direito foi o Lucas. Gente, essa criança
foi difícil! Ele já chegou chorando! Acho que tinha uns sete meses, eu
querendo ir pra escola e ele acordou e eu: Gente, que garoto é esse? Pelo
amor de Deus! E minha mãe falou:‘Nara, agora vou ter que aturar essa
criança!’ Aí, eu cheguei prá dar beijo na minha mãe e ele tinha parado.
Na hora que eu dei o beijo na minha mãe prá ir a escola ele:
‘uéééééééééééééééé’ e começou a chorar. Na hora que eu voltei a criança
chorando do mesmo jeito que eu saí prá escola. Eu, gente que criança é
essa? Chorando, chorando...eu pegava ele, mas ele se acostumou mesmo
foi com o Fernando. Aí a mãe pegava ele e começava a ninar, andava prá
lá e prá cá com ele e ele parava. Olhava as coisas e aí, conseguia parar. Aí
quando ele dormia dava até um alívio. Ele ficou conosco uns três meses,
porque a mãe dele foi despedida do emprego” (Nara, 23/08/2001).
Foi relatado o caso de outro bebê que chorava na creche, pois como a mãe trabalhava
em Niterói, seu horário de chegada era cinco horas da manhã. Segundo Denise informou,
Jonathan chorava cerca de duas horas desde o horário de entrada na creche, mas com o tempo
foi-se adaptando. Ela explicou, de forma bem humorada, como compreende este choro:
“O período que ele chorava mais era no horário de chegada, como quem
diz assim: ‘eu tô despertando, mas eu ainda estou aqui’. Aí quando ele
via onde estava e o que estava fazendo, ele se acalmava. Era na hora da
entrada e na hora da saída. Quando ele estava assim: ‘acho que a minha
mãe está quase chegando...’aí ele começava a chorar de novo” (Denise,
22/08/2001).
Pensamos que os posicionamentos de Denise, Bia e Nara a respeito do choro dos bebês
indicam o quanto elas próprias se sentem impotentes, quando enfrentam situações com as
quais não conseguem lidar de forma imediata. Para Denise, o choro dos bebês parece ter
relação com a dificuldade de inserção causada pela ausência da presença materna, ou ainda
pela ruptura com a amamentação. No capítulo referente à trajetória de vida e trabalho de
202
Denise, ela própria relatou que pede às mães que esperem o cordão umbilical cair. Esta frase
contém um sentido, que é o da expectativa de que as mães assumam seus bebês até que eles se
tornem mais independentes, pois Denise parece temer esta relação com os bebês, o que
demanda mais trabalho e atenção da sua parte.
Na creche domiciliar, o pranto dos bebês foi descrito como motivo de preocupação e
geralmente estava vinculado a sensações negativas, produzindo ansiedade e desconforto entre
Denise, Bia e Nara.
Álvarez (2001, p. 36-39) chama atenção sobre a discriminação geral da sociedade
ocidental com relação ao pranto dos bebês. No texto Porque Choram? encontramos uma
indagação interessante sobre a idéia errada, que os adultos foram acumulando, de que os bebês
se sentem melhor quando param de chorar. Assim, a tendência é de que as pessoas que lidam
com bebês tentem acalmá-los para que eles deixem de chorar e o choro é visto como uma
manifestação que deve ser controlada ou reprimida.
O choro é compreendido como uma expressão emocional necessária para o equilíbrio
vital dos bebês, e pode ter efeitos positivos na sua saúde físico-emocional futura (Álvarez,
2001). Nesse sentido, a autora desenvolve diversos argumentos que explicam a necessidade de
atenção e contato físico que sentem os bebês quando choram. Mais do que criar estratégias que
permitam interromper o pranto dos bebês, ela entende que é necessário prestar atenção ao bebê
e aceitar a expressão emocional do choro, porque isto permite descarregar a tensão acumulada
que é produzida pelo stress físico e emocional.
Esta autora ainda menciona uma limitação dos adultos que, de forma geral, não estão
conscientes de que os bebês podem estar descarregando uma experiência de outras semanas ou
meses, quando choram. Estas reações dos bebês, que são diferentes da lógica dos adultos, não
são compreendidas inteiramente por Denise, Bia e Nara, mesmo que Denise, ao falar com os
bebês, procure expressar suas vozes e sentimentos, como constatamos em alguns depoimentos
e nas observações da vida diária. Um outro aspecto importante é que a manutenção de um
número de crianças na creche domiciliar, para Denise, representa a possibilidade de
sobrevivência. Logo, o choro pode indicar aos familiares que os bebês não estão satisfeitos;
para ela isto representa uma perda e, conseqüentemente, mais dificuldade para assegurar uma
renda que permita manter sua família.
203
4.3 O DIA NA CRECHE
Quero saber
“Quero saber se você vem comigo
a não andar e não falar,
quero saber se ao fim alcançaremos
a incomunicação; por fim
ir com alguém a ver o ar puro,
a luz listrada do mar de cada dia
ou um objeto terrestre
e não ter nada que trocar...” (Pablo Neruda)
De acordo com Barbosa (2000, p.94), a rotina da educação infantil é uma categoria
pedagógica que os responsáveis pela educação institucional das crianças pequenas estruturam
para desenvolver o trabalho nas creches e pré-escolas. As rotinas geralmente sintetizam o
projeto pedagógico das instituições e apresentam a proposta educativa dos educadores.
De forma geral, esta autora percebe a rotinização pedagógica como uma forma de
controle social sobre as crianças, principalmente porque cada minuto planejado pelos adultos
reflete uma dominação adultocêntrica sobre os modos de vida infantis. O cotidiano é, para ela,
mais abrangente, pois ainda que nele caibam atividades repetitivas ou rotineiras, sempre é
possível que inovações e acontecimentos inesperados aconteçam, pois o cotidiano é o
cruzamento das múltiplas dialéticas entre o rotineiro e o acontecimento (Pais49 apud Barbosa,
2000, p. 95).
Adotaremos esta perspectiva de abrangência da cotidianeidade, que incluí tanto as
atividades rotineiras e repetitivas como os acontecimentos, as atividades improvisadas por
Denise, Bia e Nara e as atividades espontâneas criadas pelas crianças.
Antes é preciso estabelecer diferenças entre as rotinas das creches e pré-escolas
estudadas pela autora, e as da creche domiciliar de Denise. Assim, não podemos afirmar que o
trabalho de Denise se estrutura em torno de rotinas com um planejamento pedagógico. Por
49
PAIS, José Machado. Paradigmas Sociológicos na análise da vida quotidiana: Uma introdução. Análise Social,
V. XXII, 90, p.7-57, 1986.
204
outro lado, encontramos atividades rotineiras que seguem um padrão de repetição,
principalmente as que envolvem alimentação, higiene e repouso.
Estas rotinas não são categorias pedagógicas estruturadas para desenvolver um
trabalho com as crianças. Tanto as rotinas, como os acontecimentos e outras atividades,
transcorrem em uma atmosfera caseira e sem preocupação com um planejamento.
O cotidiano domiciliar é diferente do das creches e pré-escolas legalizadas, sejam elas
públicas ou privadas. Temos argumentado ao longo dos capítulos que Denise e as mães das
crianças não evidenciam a necessidade de uma proposta pedagógica na creche domiciliar. As
lógicas que estruturam as relações entre Denise, Bia, Nara e as crianças são diferentes das
lógicas pedagógicas de outros espaços de educação infantil.
Quando nos referimos a uma proposta pedagógica tratamos da intencionalidade de um
trabalho que é pensado em torno de objetivos, de uma metodologia e de procedimentos
voltados à educação das crianças pequenas50. Estas são questões singulares para
compreendermos os pontos analisados neste capítulo. Porém, ainda que Denise não evidencie
uma intencionalidade pedagógica, seria precipitado afirmar que as relações que se produzem
na creche domiciliar não são educativas, aspecto que discutiremos ao longo do capítulo.
4.3.1 Rotinas
“Denise acorda em torno de 6h da manhã para tomar banho e chamar Nara para a
escola. Ela toma café com Nara e arruma a sala para receber as crianças, caso tenha alguma
coisa fora do lugar. Logo que Estela acorda ela arruma o quarto e as camas e começa a receber
as crianças. Em torno de 7h da manhã, ou mais cedo, dependendo da situação, as mães ou pais
começam a entregar as crianças na porta da casa de Denise. Os que ainda encontram tempo
conseguem trocar informações com Denise, ou solicitar cuidados especiais, principalmente
50
Fundamentamo-nos no estudo de Rocha (2000, p.134-135), sobre a possibilidade de uma pedagogia da infância
com corpo, procedimentos e conceituações próprias: “Identifica-se, portanto, uma acumulação de conhecimentos
sobre a educação infantil que tem origem em diferentes campos científicos, que além de resultarem em um
produto de seu próprio campo, têm resultado em contribuições para a constituição de um campo particular no
âmbito da pedagogia, ao qual venho denominando de Pedagogia da Educação Infantil e que se inscreve, por sua
vez, no âmbito de uma Pedagogia da Infância”.
205
nos casos de doenças. Mauro (um dos bebês) quase sempre chega dormindo ou em estado
sonolento e Denise o coloca na cama. As crianças maiores também chegam sonolentas, mas
geralmente ficam sentadas nos sofás da sala assistindo televisão e aguardando que Denise
feche a porta e comece a servir o café da manhã. Quando o movimento de familiares e
crianças se tranqüiliza, Denise prepara as mamadeiras, o café com leite ou leite com Nescau e
começa a passar margarina no pão que foi comprado no dia anterior. As crianças sentam em
torno da mesa para tomar o café. Como Jane, Jonathan e Julinho quase sempre entram após
8:30h, Denise retoma as conversas com as mães, serve o café, ou oferece mamadeira para
Jonathan que freqüentemente entra chorando na creche domiciliar. No decorrer das rotinas,
Denise atende os bebês que são trocados, alimentados ou embalados antes do sono.
Geralmente Bia participa desse atendimento, assim como as crianças maiores acompanham
com interesse a higiene e alimentação dos bebês e algumas delas prestam algum tipo de
auxílio à Denise. Após o café da manhã, as crianças costumam assistir televisão, ou brincar de
carrinhos no corredor. Mas elas também inventam outras brincadeiras ou escutam música na
companhia de Bia que chega na creche em torno de 9h. Com a chegada de Bia, Denise
costuma sair para as compras e deixa os bebês e as outras crianças aos seus cuidados. Ao
retornar das compras, em torno de 9h30, Denise, acompanhada por Bia, leva as crianças para a
parte da frente da casa, que está sempre com o portão de ferro fechado. Ali as crianças
apanham sol, jogam bola, inventam brincadeiras ou cantigas de roda. Algumas vezes, Denise
ou Bia, improvisam atividades no pátio. Comumente as meninas carregam os bichos de
pelúcia e passeiam com eles pelo pátio como fazem as mães quando levam os bebês para
passear e tomar sol, enquanto os meninos se divertem com a motocicleta ou carregam pedras
em latas que encontram na casa em construção. Quando Denise vai para a cozinha em torno de
10h, as crianças se deslocam para a sala, ou ficam no pátio de terra ao lado da cozinha e
brincam de casinha, ou inventam outras brincadeiras. Enquanto Denise prepara o almoço, as
crianças entram e saem da cozinha e conversam com ela e Bia, que se envolvem com os bebês,
ou resolvem conflitos principalmente entre os meninos. Quando chove, as crianças brincam de
carrinho no corredor, cantam, dançam e escutam músicas, ou assistem televisão. Em torno de
10h30, Denise oferece um lanche que pode ser biscoito, suco, ou alguma fruta. Após o lanche,
as crianças não comem até a hora do almoço, mas freqüentemente Denise e Bia oferecem água
para elas, principalmente nos dias mais quentes. Até a hora do banho as crianças brincam no
206
pátio, na casa, ouvem música, dançam na sala ou assistem televisão. Um pouco antes do
banho, Denise ajuda Jane e Estela nas tarefas da escola infantil que ambas freqüentam no
turno da tarde. Em torno de 11h ou 11h30, Denise começa a preparar o banho com a ajuda de
Bia. Nara chega da escola perto do meio dia e começa a se envolver nas atividades da creche.
Após o meio dia, as crianças almoçam e depois assistem televisão, ou olham livros e revistas.
Denise acompanha as meninas à escola antes das 13h 30, enquanto Nara e Bia almoçam e
cuidam dos meninos e dos bebês. Quando Denise chega da escola, ela almoça e acomoda as
crianças para dormir no quarto, em torno de 14h. Durante o sono das crianças, ela, Bia e Nara
conversam, estudam e assistem televisão. Geralmente Bia vai fazer algum serviço doméstico
em casa, no meio da tarde. Em torno de 17h as crianças acordam, fazem lanche, tomam banho,
jantam e esperam os familiares. Denise e Bia vão para a escola perto das 19hs e Nara fica com
as crianças, que saem da creche em horários diversificados. Algumas saem por volta das 20h e
outras aguardam os familiares até 22 ou 23h”.
Estas rotinas se distribuem nos cômodos da creche e residência de Denise. A divisão
dos espaços parece ser tolerada pelas crianças, embora nem sempre elas obedeçam às regras
estabelecidas. No quarto de Denise acontecem as atividades de higiene e sono. A sala é o local
para assistir televisão, ouvir música e dançar, olhar livros e revistas ou de reunir adultos,
jovens e crianças. É na sala que Denise recebe e entrega as crianças, assim como conversa
com os familiares. No corredor, as crianças podem jogar bola ou brincar de carrinho, quando
não estão no pátio. A cozinha é o espaço das refeições, ou do acompanhamento das tarefas
escolares de Estela e Jane. No pátio acontecem as brincadeiras, as cantigas de roda, os jogos
de bola ou os jogos de faz de conta.
As rotinas de alimentação, de higiene e sono também são estruturadas segundo um
tempo que geralmente se repete, mesmo que ocasionalmente aconteçam mudanças na estrutura
de algumas delas, como por exemplo, no banho. Denise modifica a dinâmica do banho quando
os bebês estão dormindo no quarto e, ao invés de começar o banho com o grupo de meninos,
como faz habitualmente, ela deixa todas as crianças no pátio com Bia e vai chamando uma de
cada vez, para não acordar os bebês.
As outras atividades não apresentam uma repetição, podendo ocorrer modificações a
cada dia que são propostas.
207
4.3.2 Acontecimentos e outras atividades
Denominamos de acontecimentos ou eventos tudo o que sucede na creche domiciliar e
que produz alterações nas rotinas diárias (Barbosa, 2000). Estes acontecimentos ou eventos
podem modificar o que as crianças vinham fazendo, ou se configurar como atividades
diferenciadas sem, contudo, expressar uma intenção pedagógica. Alguns exemplos de
acontecimentos que observamos no local ou dos quais tivemos notícias serão descritos de
forma resumida.
Geralmente a entrada de outras pessoas na creche produz alterações nas rotinas diárias.
O café da manhã era eventualmente interrompido pelas conversas entre Denise e os familiares
das crianças, como no dia em que a avó de Jonathan bateu no portão e as crianças foram para a
rua observar o que ela conversava com Denise: tem mamadeira, aí? Como o bebê de nove
meses entrou chorando, Denise avisou a Estela que não o carregasse no colo. Após esta
interrupção, o café transcorreu normalmente na cozinha (Diário de Campo, 19/06/2001).
Num outro dia, antes do repouso dos meninos, um homem bateu no portão e Nara
chamou Denise. Os meninos ficaram observando da janela a conversa entre os dois. Denise
saiu pela porta da cozinha e enquanto conversava no portão de entrada, Fernando entrou na
creche para conversar com Nara. Os meninos aproveitaram a entrada de Fernando e foram
para o pátio brincar de carrinho (Diário de Campo, 04/07/2001).
Outros acontecimentos foram observados enquanto Denise preparava as refeições, ou
no momento do banho. Vejamos exemplos de acontecimentos provocados pelas crianças.
Denise está na cozinha preparando o almoço e um suco de maracujá. As crianças entram e
pedem que ela ligue o liquidificador. Isto mobiliza o grupo que começa a pular ao redor do
balcão da cozinha, devido às transformações provocadas pelo aparelho (Diário de Campo,
20/06/2001).
208
Na hora do banho, Denise vai até o quarto e as crianças estão escondidas, algumas
embaixo da cama e outras no banheiro. Denise procura cada uma delas e, na medida em que as
encontra solicita aos meninos que tirem a roupa (Diário de Campo, 20/06/2001).
Como a goiabeira do pátio está carregada de frutos, freqüentemente as crianças pedem
que Denise colha goiabas. Isto sempre mobiliza as crianças e Denise, que sobe em uma
escada, colhe as goiabas e joga para o grupo. Denise joga uma goiaba para cada criança e
costuma perguntar quantas goiabas têm no total, enquanto Jane e Julinho guardam as frutas em
uma bolsa (Diário de Campo, 06/07/2001).
Outros acontecimentos consistem em passeios dentro do bairro Saudade, como visitas
ao posto de saúde, ao mercado para fazer compras, ou ao Brizolão. Os passeios ao Brizolão
comumente acontecem nas tardes ensolaradas. Denise, Bia, Nara e as crianças fazem
piquenique com pipocas, bananas, goiabas e suco, jogam bola, correm e brincam naquele
espaço. Como há pedaços de giz no local, as crianças escrevem no chão de cimento e voltam
sujas e cansadas para a creche. No dia seguinte, as mães costumam comentar com satisfação
que as crianças chegaram cansadas na noite anterior.
As principais festas comemorativas do ano como Dia das Mães, Dia dos Pais, Páscoa,
Dia da Criança, ou Natal são geralmente motivo de mobilização na creche, o que também
envolve os familiares. Denise costuma pedir uma contribuição para as mães para confeccionar
lembranças, ou para comprar brinquedos e preparar alimentos. No Natal, ela recebe
brinquedos do mesmo vereador que fornece uma cesta de alimentos para a creche.
Todos estes acontecimentos não possuem uma intenção pedagógica e o objetivo
principal é o relaxamento e a diversão, tal como ocorre com os passeios dentro do bairro, ou
nas brincadeiras, jogos e cantigas de roda.
Thin (1998, p. 1-10)51 pesquisa as lógicas escolares de socialização versus as lógicas
populares de socialização em escolas primárias de bairros populares do subúrbio de Lyon, na
França. Ele pretende compreender a maneira como essas relações se estabelecem e como os
sujeitos sociais (professores, assistentes sociais e pais das camadas populares) e suas
diferentes lógicas se comportam nessas relações. Comentaremos neste capítulo algumas
51
Este texto, que comentaremos ao longo do capítulo, é uma tradução livre realizada por Ramon Correa de
Abreu, de alguns capítulos do livro Quartiers Populaires: l’école et les families (1998) de Daniel Thin. Trata-se
209
questões de análise do autor, sobretudo as que estão vinculadas às relações entre as famílias e
crianças das camadas populares, uma vez que não estamos trabalhando com a
institucionalização escolar da infância.
Interessamo-nos especialmente pelas práticas não escolares de socialização das
famílias populares, porque há aspectos relacionados a nosso estudo, como as saídas e passeios
não pedagógicos, os jogos e as brincadeiras com as crianças, a autoridade parental e as
sanções. Compreendemos que algumas formas de dominação adulta nas famílias das camadas
populares, com inculcação normativa e comportamental, também incidem sobre as relações
sociais vividas na creche domiciliar, aspectos que aprofundaremos no desenvolvimento do
capítulo.
Como destaca Thin (1998, p.13-15), as saídas circunscritas ao espaço familiar não
possuem vocação educativa e as saídas de lazer são fortemente limitadas pelas condições de
existência, pois elas são o momento de liberação do trabalho e, por isto, não compreendem um
trabalho pedagógico. O que importa realmente é o prazer recíproco que as pessoas trocam
entre si.
Tal como no estudo de Thin, observamos que nos momentos de passeios pelo bairro e
nas festas comemorativas, o objetivo principal de Denise é a diversão e o lazer e tudo acontece
naturalmente e de acordo com as circunstâncias diárias.
As atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara são ao mesmo tempo reguladas. Em
outras palavras, elas improvisam no momento, mas não deixam de controlar o movimento das
crianças. Estas atividades ocorrem tanto na parte interna, como na parte externa da creche e
residência, envolvendo brincadeiras, jogos de bola como caçador ou futebol, cantigas de roda
e concursos de dança. Elas também sugerem escutar música, observar gravuras de livros e
revistas, ou assistir programas de televisão.
Denise, Bia, Nara e as mães entrevistadas valorizam a necessidade do brinquedo e do
movimento que sentem as crianças. Elas reconhecem que a creche domiciliar oferece um
espaço limitado, no sentido de criar oportunidades para que as crianças brinquem com maior
liberdade. Denise se ressente da ausência de uma área livre com brinquedos como balanços,
de uma tese de doutorado, defendida pelo autor em 1994, na Universidade de Lyon II e publicada posteriormente
sob a forma de livro.
210
escorregadores, canos, ou tanques de areia para as crianças. Recordamos as frustrações das
mães que entrevistamos, no que se refere à ausência de praças, parques e outras áreas de lazer
destinadas ao público infantil no bairro Saudade.
Denise compreende que as crianças sentem necessidade de brincar, explicando que
gosta de inventar jogos, brincadeiras ou cantigas de roda no pátio, porque sabe que estas
atividades são prazerosas: na parte da manhã, para mim é um ponto obrigatório de brincar,
ou de dançar com eles, ou se eles quiserem pegar revistas e ler, eu leio alguma coisa para
eles (Denise, 22/08/2001).
Nos dias de chuva acentuam-se os conflitos entre Denise e as crianças porque, sem
acesso ao pátio, elas ficam limitadas ao corredor, sala, quarto e cozinha. Como nestes
cômodos há eletrodomésticos, fios e tomadas, as crianças não podem se movimentar
livremente, o que gera mais disputas pelos poucos brinquedos e pelo espaço reduzido. Nestes
dias, Denise costuma sentar na sala e propor atividades de entretenimento, que descreveremos
brevemente.
Em uma tarde chuvosa, antes do repouso das crianças, Denise apresentou ao grupo
uma coleção de livros sobre animais noturnos. Na medida em que ia mostrando os animais
para os meninos, ela fazia comentários: ‘aqui é a raposa, o guaxinim, os castores, o morcego,
o grilo, o sapo’. Ela então começou a cantar: ‘O sapo não lava o pé porque não quer, ele está
na lagoa...’. Algum tempo depois, ela abriu uma das portas da estante e ofereceu uma revista
(Caras) para cada menino. Ela estendeu um cobertor sobre o chão e os meninos sentaram para
olhar as revistas (Diário de Campo, 19/06/2001).
Uma manhã, ao mesmo tempo em que mostrava as certidões de nascimento das
crianças para eu olhar, Denise começou a cantar com as crianças: dois patinhos na lagoa (...),
A formiguinha corta folha e carrega (...) Deus não quer preguiçoso em sua obra, porque
senão o vento sopra (...). Alguns minutos depois, Mateus pediu para escutar o Bonde do
Tigrão e ela desligou a televisão e ligou o aparelho de som. As crianças começaram a cantar e
dançar: ‘são as cachorras, as preparadas, as popozudas (...)’ (Diário de Campo, 05/07/2001).
No pátio Bia costumava brincar de roda com as crianças É de tango, tango. É de
carrapicho, joga o Marcos na lata de lixo, a lata furou, o lixeiro carregou. Às vezes Denise
acompanhava Bia, como no dia em que as duas foram para o pátio antes do almoço, para
brincar de roda com as crianças: dois patinhos na lagoa, começaram a nadar, quando viram a
211
minhoca começaram a cantar: minhoca, minhoca, me dá uma beijoca, não dou, então eu vou
roubar. Minhoco, minhoco, você tá muito louco, beijou do lado errado, a boca é do outro
lado...Eu vi uma barata na careca do vovô (...) (Diário de Campo, 21/06/2001).
Como podemos observar, estas atividades não seguem um planejamento pedagógico e
Denise, Bia e Nara não se preocupam em ampliar o desenvolvimento e a criatividade das
crianças.
Conforme destaca Thin (1998, p.14), nas famílias populares os jogos não são
considerados como instrumentos de desenvolvimento cognitivo ou apoio para a imaginação52.
Recordamos quando as mães, Denise, Bia e Nara falaram sobre a importância de ampliar os
espaços da creche e residência e oferecer mais brinquedos às crianças. A intenção expressa nas
respostas não era de melhorar a qualidade de uma proposta pedagógica, mas sim oportunizar
mais momentos de lazer, diversão e prazer para as crianças.
Para os familiares das camadas populares investigados por Thin (1998), como para as
mães e Denise, brincar com as crianças é algo descrito como uma explosão de descontração e
prazer. Quando Denise e suas filhas falam sobre os jogos de futebol e os passeios dos finais de
semana, ou quando as mães reclamam que o bairro não oferece áreas de lazer para as crianças,
tudo isto tem um significado, que é o da obtenção de mais tempo de prazer e diversão com
os/as filhos/as, sem discursos sobre as vantagens pedagógicas que este lazer pode
proporcionar.
Na creche de Denise não encontramos atividades que culminam com produções como
desenho, colagem, texto ou modelagem, por exemplo. Também não vimos materiais
pedagógicos como jogos, livros infantis, massa de modelar, tintas, lápis, cola, tesouras, folhas
ou outros que pudessem agrupar as crianças em torno de uma atividade organizada pelos
adultos. Não existe um planejamento com objetivo de estimular a criação e o desenvolvimento
de outras habilidades e conhecimentos que não fazem parte das vivências do meio sóciocultural das crianças.
Todavia, a convivência com a cultura da escola faz parte deste cotidiano e, embora não
ocorra formalização pedagógica das práticas, não podemos esquecer que Denise, Bia e Nara
52
O autor se refere aos trabalhos de Basil Bernstein (1975), sobre os jogos entre pais e filhos nas famílias
operárias.
212
freqüentam a escola de ensino fundamental, assim como Jane e Estela freqüentam uma escola
infantil. Elas trazem elementos para a creche que constituem o que denominamos de presença
da cultura escolar implícita. Entretanto, isto é vivido de forma semelhante a um ambiente
familiar, no qual as crianças maiores freqüentam a escola.
Obviamente as crianças convivem com outras manifestações culturais quando assistem
televisão, escutam música, dançam ou manuseiam livros e revistas. Em algumas situações,
elas manifestaram interesse em desenhar ou escrever, principalmente quando eu levava
cadernos, lápis e canetas para as observações. Estela fazia algumas tarefas da escola com as
outras crianças e comentava sobre os desenhos, as colagens, ou as cópias da escola.
Comumente Julinho desenhava em meu diário e perguntava o que eu estava vendo: Julinho
vem mostrar seu desenho e pergunta o que é. Eu respondo que talvez seja uma maçã e ele diz
que não, é um sofá. E Julinho segue me questionando sobre os desenhos, eu falo é uma
minhoca e ele diz que é uma barata, e depois quando falo que é uma barata, ele diz que é um
caranguejo. Jane também costumava escrever letras, números ou desenhar no meu diário
(Diário de Campo, 06/07/2001).
Na creche de Denise só encontramos uma coleção de livros sobre animais noturnos,
alguns livros religiosos e exemplares da revista Caras. Como vimos, após o almoço as
crianças olhavam as gravuras de revistas ou livros. Em outros momentos, Bia e Nara
comentavam sobre letras de nomes encontradas em embalagens de alimentos, ou então
propunham jogos que envolviam palavras, canções, ou versos sem acontecer uma
problematização das observações e perguntas das crianças.
Para as crianças menores, como vimos em capítulo anterior, os familiares desejam
cuidados, afeto e possibilidades de movimento e brincadeiras, o que para nós não representa
ausência de uma perspectiva educativa. O que ocorre é que estamos diante de uma experiência
de educação de um grupo das camadas populares, cujas expectativas não são de estruturação
de uma proposta pedagógica.
Denise incorpora as crianças nas atividades da casa exatamente como acontece em uma
família, seja nas trocas de fraldas e na alimentação dos bebês, atividades nas quais as crianças
maiores também se envolvem, seja nas compras de mantimentos para a residência e creche, na
preparação das refeições ou nas solicitações freqüentes de ajuda. Provavelmente porque não
213
há uma intencionalidade pedagógica no trabalho, não tenhamos encontrado livros de histórias
infantis, jogos ou brinquedos educativos na creche domiciliar.
Nos momentos em que as crianças olhavam as gravuras de revistas e da coleção de
animais noturnos, ou quando estabeleciam relações entre as letras de embalagens de produtos
alimentícios com as iniciais dos nomes, ou participavam de jogos com palavras, canções ou
versos, percebemos que isto acontecia de forma prazerosa, embora não planejada.
Bia e Nara faziam uma roda no chão da cozinha com as crianças, enquanto o almoço
não era servido. Elas propunham que as crianças dissessem palavras relacionadas com coisas
das quais elas gostassem muito, como chocolate, amor, boneca. Nara costumava procurar nas
caixas de leite Parmalat, ou de outros produtos alimentícios, as letras iniciais dos nomes das
crianças: M de Mauro, de Marcos e Mateus, E de Estela. Mas nada mais acontecia além destes
comentários (Diário de Campo, 21/06/2001).
As experiências vividas na residência e creche de Denise, quase sempre estavam
vinculadas à vida e aos costumes da família de Denise e dos familiares das crianças. Contudo,
encontramos a presença de outras manifestações culturais nesse cotidiano, como algumas
práticas escolares trazidas por Denise, Bia, Nara, Estela e Jane, e outras manifestações da
cultura hegemônica presente nos programas de televisão, nos estilos musicais apreciados na
creche, assim como as expressões das culturas infantis.
Na creche domiciliar não encontramos rotinas planejadas em torno de objetivos e
procedimentos pedagógicos. Mas há rotinas que seguem um padrão de repetição e que se
sucedem segundo uma organização temporal e espacial. Mesmo sem uma rotinização
pedagógica, observamos que em algumas situações ocorre o controle social sobre as crianças.
Este controle, porém, nem sempre funcionava, o que nos permite afirmar que a creche
domiciliar não é somente um espaço de opressão. Da mesma forma, nas creches e pré - escolas
coletivas o planejamento pedagógico, por si só, não garante que as crianças possam expressar
livremente as suas culturas.
4.3.3 A presença constante da televisão
214
A televisão é presença constante nas rotinas da creche domiciliar, pois permanece
ligada desde a entrada até a saída das crianças. Metaforicamente poderíamos representar a
televisão como uma babá eletrônica na vida diária da creche, embora nem sempre tolerada
pelas crianças. A televisão é um recurso utilizado para o entretenimento das crianças quando
chegam na creche, nos dias de chuva, nos momentos de conflitos, antes ou depois das
atividades de higiene e alimentação. Os programas destinados ao público infantil e que passam
nos horários da manhã, ou no final da tarde, são geralmente selecionados por Denise, Bia e
Nara.
Como a televisão permanece ligada cotidianamente, alguns gostos e hábitos das
crianças podem ser explicados a partir da interferência da mídia como, por exemplo, a
preferência pelos programas infantis com concursos de dança e com brincadeiras que imitam
as academias de ginástica: No momento eles estão no vício da ginástica. Antes era o vício de
dançar funk, de dançar pagode, essa coisa do Bonde do Tigrão. Agora é a fase da ginástica.
Que é a Jane, a Estela que diz que está muito gordinha. Aí eu entro porque também estou
gordinha (Denise, 22/08/2001).
Algumas programações são acompanhadas diariamente, como um programa que as
crianças assistiam no final da tarde conhecido como Interligado. Este programa envolve uma
competição entre dois grupos que devem tocar dentro de caixas contendo animais
peçonhentos, insetos ou crustáceos. Como Denise relatou, as crianças ficam ansiosas no
horário do Interligado; ela procurou justificar este interesse estabelecendo diferenciações com
outros programas considerados prejudiciais às crianças, como os desenhos que contém
violência, por exemplo. Porém, não observamos na creche quaisquer tentativas de discussão
com as crianças sobre os conteúdos das programações da televisão:
“Eles já sabem que o animal, não é aquela coisa medonha que a criança
tem que ter medo. Já é uma coisa que ele vê que pode mexer, lógico que
com cuidado, com alguém por perto, que não é aquela coisa que te põe
apavorada. Influência má que eu vejo por parte da TV são certos
desenhos, que agora graças a Deus eu não tenho visto mais. Que lidam
com espada, que o Julinho andou trazendo uma espada e sem querer ele
acabava machucando os amiguinhos com aquilo. Era de plástico, mas
batia e doía. Isso aí eu acho uma má influência para a criança, porque está
lidando com a agressividade, com a briga. De manhã eles assistem
215
desenhos, que não colocam tanta coisa na cabecinha deles” (Denise,
22/08/2001).
Surpreendemo-nos com o impacto que exercem as propagandas de brinquedos ou
outros produtos direcionados ao público infantil, como o kinder ovo e os brinquedos da
Estrela. Quando estas propagandas eram anunciadas, mesmo que as crianças estivessem
distraídas com os carrinhos ou com outras brincadeiras (como a imitação de animais, por
exemplo), interrompiam suas atividades e ficavam em frente à televisão repetindo as canções e
textos dos anúncios com atenção.
Alguns estudiosos da infância como Kincheloe (1997); Pinto (2002) e Sarmento (1999,
2002) têm observado que nas sociedades contemporâneas o mercado está mais atento aos
modos de vida das crianças que hoje não estão ausentes das relações econômicas e são
consumidoras em potencial.
Conforme destaca Sarmento (2002), uma das características da contemporaneidade é o
efeito homogeneizador do processo de globalização53, com o investimento do marketing e da
publicidade destinados ao público infantil. Atualmente há uma divulgação de produtos para as
crianças, o que faz com que aparentemente haja uma só infância no espaço mundial, com
todas as crianças partilhando os mesmos gostos.
Ainda que as crianças da creche domiciliar não tivessem acesso aos artigos divulgados
nas propagandas da televisão, elas se mobilizavam com os anúncios e manifestavam com
freqüência seus desejos de consumo. Por outro lado, esta mesma globalização da qual fala
Manuel Jacinto Sarmento produz seus paradoxos decorrentes das desigualdades sociais.
Chamamos a atenção para o mercado paralelo e informal criado nos países do terceiro mundo
53
No artigo “La globalisation et l’enfance. Les impacts sur le métier d’enfant”, (Mimeografado), Sarmento
(2000) escreve que a globalização da infância é conseqüência de uma combinação de fatores, como os processos
políticos decorrentes da regulação de instâncias internacionais como a UNICEF, os processos econômicos que
criam um mercado global de produtos específicos para a infância, os processos culturais influenciados pelos
mitos infantis criados pelas séries de televisão e os processos sociais resultantes da institucionalização dos
cotidianos da infância e da difusão da escola de massa. Este artigo foi publicado no Brasil em: SARMENTO,
Manuel Jacinto. A Globalização e a Infância: impactos na condição social e na escolaridade. In GARCIA, Regina
Leite & FILHO, Aristeo, L. (org.) Em Defesa da Educação Infantil. Rio de Janeiro: Sindicato Nacional dos
Editores de Livros, 2001.
216
- como o Brasil - e que produz as imitações dos produtos originais, geralmente vendidos entre
os camelôs, ou nas lojas conhecidas como de 1,99.
As crianças não são consumidores passivos e ingênuos, o que, segundo Kincheloe
(1997) foi percebido pelos profissionais da publicidade que utilizam os comerciais de
televisão. O investimento no marketing e publicidade direcionados ao público infantil confere
maior poder às crianças, que dominam gostos e capitais culturais desconhecidos pelos adultos.
Pinto (2002, p.226-227) analisa o papel da mídia e da televisão no universo das
crianças e coloca ênfase na necessidade de as olharmos como agentes com capacidade
reflexiva e conscientes, em determinado grau, das condições e conseqüências da sua ação. A
preocupação central do autor não é tanto saber o que a televisão provoca na criança, mas saber
o que as crianças fazem com a televisão. Ele vê as crianças como agentes ativos, capazes de
apropriação e interpretação, de forma singular, das mensagens veiculadas pela televisão.
Esta afirmação de Pinto (2002) tem relação com fatos observados na creche de Denise.
Como vimos, as crianças param suas atividades no momento das propagandas. Da mesma
forma, nem sempre aceitam passivamente as programações sugeridas por Denise, Bia e Nara.
Foi possível averiguar que na vida diária da creche, elas com efeito escolhem as suas
programações.
Mesmo que Denise, Bia e Nara constantemente chamassem o grupo de crianças para
assistir os desenhos e programas infantis matutinos, nem sempre elas ficavam atentas.
Geralmente inventavam brincadeiras enquanto a televisão estava ligada, ou então solicitavam
que ligassem o aparelho de som. Principalmente os meninos engatinhavam no chão imitando
animais, brincavam com os carrinhos, ou conversavam entre si quando era proposto que
sentassem para assistir televisão.
Em uma manhã na qual Denise saiu com as meninas para as compras, Bia solicitou
várias vezes que os meninos sentassem para ver o desenho vai sentar prá ver desenho? Então
senta bonitinho, isto!. Enquanto ela falava, Mateus pegou um telefone de brinquedo: Alô,
quem tá falando? Oi, meu pai, já vai embora? e os outros meninos continuaram engatinhando
no chão ignorando os pedidos de Bia (Diário de Campo, 02/07/2001).
217
Por estas razões, percebemos que em meio a este cotidiano de rotinas que se repetem,
de acontecimentos e atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara, as crianças criam
atividades espontâneas, o que demonstra a presença das culturas infantis na creche domiciliar.
4.3.4 Atividades espontâneas e expressões das culturas infantis
As crianças não se organizam em turmas, deslocam-se pelos cômodos da casa e
dispõem de maiores intervalos de tempo livre. Provavelmente por isto, encontram
possibilidades de vivenciar atividades espontâneas que acontecem diariamente, quando
inventam brincadeiras com os brinquedos a sua disposição, quando dançam, cantam e escutam
músicas, quando criam brincadeiras como estátua, esconde-esconde, quando jogam bola ou
participam de jogos de faz-de-conta, como de casinha. Denominamos estas atividades de
espontâneas, porque são elas as crianças as protagonistas, não ocorrendo a participação de
Denise, Bia ou Nara, exceto nos casos de conflitos.
Nas observações do cotidiano percebemos o movimento das crianças e suas maneiras
de interagir de forma lúdica, quase sempre por intermédio de brincadeiras e jogos de faz-deconta.
As brincadeiras não envolvem necessariamente as imitações e o desempenho de papéis
como mãe, pai, filho ou tomadora de conta, como os jogos de faz-de-conta que refletem as
interpretações das crianças sobre situações vividas no cotidiano. De qualquer forma, tanto as
brincadeiras quanto os jogos de faz-de-conta refletem algo específico dos grupos infantis, que
é o ato de brincar. De acordo com Sarmento (2002), o brincar e o brinquedo são fatores
fundamentais na recriação do mundo e na produção das fantasias infantis.
Saramago (1994, p.164) observa que as brincadeiras surgem fortemente conotadas com
um saber totalmente prático e, de forma semelhante ao que se passa na cultura popular
tradicional, no que diz respeito à infância parece existir um conjunto articulado de práticas e
de tradições orais relativas às brincadeiras que só é possível transmitir pela via da
demonstração.
218
No Brasil Fernandes observou algumas décadas atrás, como as cantigas de roda, os
jogos, folguedos e brincadeiras são elementos constitutivos do folclore infantil:
“Boa parte dos elementos constitutivos da cultura infantil são restos de
romances velhos, hoje transformados em jogos cênicos, como ‘A noiva’,
‘Organdão’, ‘Juliana’, etc.; ou antigas danças coreográficas, como ‘A
canoa virou’, ‘O Picoton’, ‘Passei pela Barca’, ‘Ciranda a Roda’ etc. (...).
Todas essas composições restringiam-se aos círculos dos adultos e só
posteriormente passaram para os grupos infantis. Transferiram-se por
aceitação, como falamos, aos grupos infantis e através desse mecanismo
do ‘aprendi na rua’ conservam-se até hoje, séculos ou dezenas de anos
depois, conforme a composição. O notável, nisso tudo, é que a maioria
dessas composições já desapareceu entre os adultos, mesmo em Portugal,
permanecendo, entretanto, entre as crianças” (1961, p.171).
Nós optamos por uma diferenciação entre as brincadeiras e os jogos de faz-de-conta, a
partir de Corsaro (2002). Para ele acontece uma passagem do brincar ao faz-de-conta
sociodramático das crianças pré-escolares. O brincar sociodramático é o brincar no qual as
crianças produzem atividades de faz-de-conta que se relacionam com as suas experiências de
vida.
São geralmente as crianças maiores, como Julinho, Jane e Estela, que inventam e
coordenam algumas brincadeiras e jogos de faz-de-conta. Um exemplo de brincadeira
coordenada pelas crianças é a de estátua. Freqüentemente Julinho propunha ao grupo esta
brincadeira, cuja forma de organização era logo criada, assim que as outras crianças
concordavam com a proposta. Assim, Julinho ordenava: Para, vai, roda; se alguma criança se
mexia ele mandava parar e dizia: agora é Jane, se mexeu todos dois, sai!, Vai, roda, roda
todos dois, encosta na parede, roda, para (...) (Diário de Campo, 18/06/2001).
As brincadeiras que envolviam danças e canções freqüentemente aconteciam na sala.
As crianças pediam que Bia ou Denise ligassem o aparelho de som, ouviam discos de música
funk, de pagode ou das Chiquititas e inventavam concursos de dança, sempre coordenados
pelas crianças mais velhas.
Usualmente as crianças criavam jogos de faz-de-conta, nos quais fatos da vida real
estavam presentes, mas com uma forma bem característica dos grupos infantis. Elas
costumavam viver nesses jogos situações que provavelmente observavam nas suas casas, ou
219
na creche domiciliar. No pátio e na casa em construção do irmão de Denise acontecia a
brincadeira de casinha. Com brinquedos e tijolos as crianças criavam ambientes como quarto,
cozinha, despensa e sala.
Estela e Jane assumiam os papéis de mães e cuidadoras de Mateus, de Marcos e dos
bichos de pelúcia. Em uma das observações vimos que as meninas cuidavam Mateus dormir.
Num certo momento, Mateus despertou e perguntou: ‘Tá de dia?’ Ao que Jane respondeu: ‘já
acordou?’ ‘senta aí, senta aí...’. Estela indagou se Mateus desejava comer pipocas; como ele
respondeu afirmativamente, elas providenciaram um balde cheio de pedrinhas e Estela riscou
um palito simulando acender o fogo em um fogão feito de tijolos. Os movimentos das meninas
refletiam sua observação das ações dos adultos quando preparam os alimentos. Assim Estela
sacudiu o balde, tal como quem prepara pipocas. No papel de mãe e tomadora de conta, tocou
no rosto de Mateus e perguntou se depois de comer ele gostaria de dormir mais um pouco.
Jane parecia assumir o papel de ajudante de Estela. Num dado momento, Estela pediu a Jane
que olhasse se a menina (a boneca) tinha acordado. Como Jane respondeu que estava
escutando o choro do nenê, as duas passaram a embalar os bichos de pelúcia (Diário de
Campo, 20/06/2001).
Nesses jogos as crianças misturam elementos do real e do faz-de-conta, ou seja, não
reproduzem inteiramente os fatos da realidade. O simbólico, a imaginação, o lúdico e a criação
caracterizam as culturas infantis, quando as crianças incluem nos jogos as situações que
observam na vida com os adultos e seus pares.
Para melhor exemplificar retornaremos à brincadeira de casinha. Mateus choramingou
um pouco reclamando que sua cabeça estava doendo por causa do tijolo, uma vez que dormia
em uma cama feita de tijolos. Estela logo saiu do papel de pequena tomadora de conta dizendo
ao colega que a cabeça dela não dói, quando ela deita nos tijolos. Mas esta foi uma atitude
muito rápida, porque em seguida ela assumiu seu papel no jogo colocando Mateus no colo e o
embalando, como se ele fosse um bebê. Nesse instante Jane subiu em uma pilha de tijolos
perguntando onde estava o Neston. Estela informou que o Neston havia acabado e sugeriu que
Jane colocasse Nescau. Porém, mudou de idéia e falou: ‘Bota leite com banana’ (Diário de
Campo, 06/07/2001).
Na creche domiciliar, as crianças apresentam traços que são específicos da infância
como a capacidade de imaginação, de fantasia e criação. Kramer (2000, p.66) comenta que as
220
crianças produzem culturas e são nela produzidas, possuem um olhar crítico que vira pelo
avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Em 1947, Florestan Fernandes (1961,
p.170) já afirmava que existe uma cultura infantil construída de elementos culturais quase
exclusivos das crianças e caracterizados por sua natureza lúdica.
Foi possível observar que na creche de Denise as crianças oferecem respostas típicas
do universo infantil, quando os adultos interferem nos seus jogos de faz-de-conta ou nas
brincadeiras com uma lógica de raciocínio que exclui a imaginação, a fantasia e a criação.
Como elas, afinal são capazes de subverter esta lógica?
Novamente retornamos às observações realizadas no cotidiano da creche . No pátio,
Estela empurra um elefante de pelúcia no carrinho de bebê de Marcos. Jane traz um tigre de
pelúcia e Estela arruma os dois no carrinho com o cinto de segurança. Como as duas não
conseguem passar com o carrinho em uma extensão do pátio com pedras, Julinho entra no
jogo e ajuda a empurrar o carrinho. Estela comenta com as outras crianças que vai pegar um
cobertor para tapar os bebês. Quando ela sai para buscar o cobertor, observa algo no varal e
retorna. Como vê sua camisa pendurada no varal, a idéia de cobrir os bichos de pelúcia com o
cobertor é logo substituída. Desta forma, tapa os bichos com a camisa e continua no pátio.
Julinho e Daniel desempenham papéis de trabalhadores e carregam pedras e as depositam
dentro de latas. Estela propõe preparar pipocas para o grupo e corrige Mateus: É pi-po-ca! Não
é pi-co-ca! Mas este jogo não se limita ao pátio. Num dado momento, Estela entra na cozinha
com um saquinho contendo pedrinhas e oferece: querem pipocas? Eu aceito e Denise observa:
cuidado, que Daniel coloca na boca. Estela responde para Denise: não coloca, não...eu tô
fazendo pipocas de micro-ondas...(Diário de Campo, 06/07/2001).
Como vimos, Denise interrompeu o jogo das crianças com sua lógica de adulto
sugerindo que as pedrinhas não são pipocas. Comumente as crianças brincavam de comer
pipocas ou outros alimentos sem, contudo, engolir as pedrinhas. Como Estela resolveu a
questão colocada por Denise? De forma criativa respondeu que estava fazendo pipocas de
micro-ondas e que Daniel não iria se machucar colocando as pedrinhas na boca.
Iturra (2002, p.139) analisa as diferenças entre as lógicas infantis e as lógicas dos
adultos em uma perspectiva antropológica. Segundo ele, as formas de respostas das crianças
são criadas devido às tensões existentes entre a sua lógica e a onipotente sabedoria que o
adulto pretende ter sobre o saber infantil.
221
Embora na situação em que Estela substituiu a camisa pelo cobertor não tenha havido
uma intervenção de Denise, é provável que ela tenha retornado quando encontrou a camisa no
varal porque certamente encontraria resistência da mãe ao pegar o cobertor de Mauro.
Nos jogos e brincadeiras, as crianças maiores contribuem com as aprendizagens das
crianças menores. Vimos como Estela corrigiu Mateus quando ele pronunciou picoca, ao invés
de pipoca. Em outra situação, Julinho comentou que tem uma cafifa vermelha em casa.
Marcos, ouvindo o comentário do colega, falou vemelho, mas Julinho corrigiu pronunciando
vermelho (Diário de Campo, 04/07/2001).
No início do capítulo explicamos que nem sempre as crianças ocupam os espaços da
creche e residência obedecendo às regras estipuladas por Denise. Para as brincadeiras com os
carrinhos, o espaço permitido é o corredor. Mas como no corredor as possibilidades de
movimento se reduzem, os meninos costumam ultrapassar seus limites e brincam na sala ou
nos quartos. Isto nem sempre é aceito por Denise, o que provoca reações interessantes entre as
crianças.
Usualmente, quando os meninos se dirigiam ao corredor com os carrinhos, Denise logo
iniciava as recomendações: sem confusão... se for brincar de carro é no corredor(...) esse
carro aí está sem roda... Daniel, pega um pra você (...) no corredor. Como o corredor é
estreito, dificilmente os meninos conseguem rodar os carrinhos ao mesmo tempo e acabam se
arrastando em direção à sala que é mais espaçosa. Em uma dessas ocasiões, Denise avisou: É
no corredor! Quem tá brincando na sala? Marcos, é no corredor, não é na sala não!!! Daniel,
ouvindo as recomendações de Denise, dirigiu-se para a sala repetindo: é no corredor! No
entanto, Mateus e o próprio Daniel continuaram na sala e Marcos integrou-se ao grupo. Denise
escutou o movimento deles e falou do quarto: Marcos! E os três meninos continuaram a
repetir as ordens de Denise: é no corredor... titia falou que é pra brincar aonde? No corredor,
porque se for para a sala eu vou tirar os carrinhos... o carro vai para a garagem. Daniel
ainda observou: mãe, o caminhão vai subir aí...o caminhão vai subir.. (Diário de Campo,
19/06/2001).
Como vemos, a imposição de regras não parece algo plenamente incorporado pelos
meninos. Eles não parecem compreender esta divisão dos espaços que reflete uma lógica que
não é a deles. Assim as reações, embora sugiram acatamento das ordens pela repetição das
frases de Denise, também sinalizam para a resistência. Desta forma, quando predomina o
222
prazer e a descontração da brincadeira, o que realmente conta é sair dos limites do corredor,
em direção à sala ou aos quartos, que oferecem melhores condições de movimento.
As crianças criam situações nas quais imitam cenas do cotidiano nos jogos em que
brincam de casinha, na preparação de alimentos, nos cuidados com os bichos de pelúcia, ou no
trabalho de carregar pedras dentro de latas. Nesses jogos, fazem as suas interpretações sobre a
realidade, de forma bem criativa. O mundo dos adultos, com suas regras de comportamento e
valores sócio-culturais, é reproduzido nos jogos em que desempenham papéis de mãe,
tomadora de conta, de pai, de trabalhador da construção civil ou de filhos. Denise demonstrou
compreender as interpretações das crianças:
“O brinquedo que eles gostam agora é pegar bichinhos de pelúcia e me
imitar. Oh, você tá de castigo por causa disso e disso. Você bateu em não
sei quem, isso é feio. Vai sentar ali e ficar cinco minutos de castigo. É
isso que eles falam com o boneco, tentando me imitar. O que eles estão
falando pro boneco é o que eu falo com eles” (Denise, 22/08/2001).
Para Fernandes, as crianças referem-se mais a funções sociais do que a pessoas
reconhecíveis quando desempenham os papéis de papai, mamãe etc.. Ele explica que as
crianças abstraem estas funções de modo genérico, preservando o conteúdo social que as
relações entre os indivíduos implicam:
“Nos brinquedos desse gênero, como “papai e mamãe”, nós não podemos
reconhecer o pai da criança, ou Paulo, ou Maria; o senhor fulano de tal
desaparece porque, de fato, o que a criança tem em mente é executar um
folguedo que ela aprendeu em contato com seu companheiro e para ela,
no momento, o seu pai não existe...” (1961, p.172-173).
Na perspectiva do autor, predomina o genérico nas funções sociais desempenhadas
pelas crianças. No caso do grupo de crianças que observamos é interessante verificar que
quando brincavam de casinha não havia a figura paterna, mas apenas a figura materna e de
tomadora de conta, representada por Estela, e a de uma provável ajudante, representada por
Jane.
223
Igualmente constatamos diferenciações nos papéis representados pelas crianças o que,
de certa forma, demonstra a existência de uma hierarquia de idade entre elas. Assim, as
crianças menores (Mateus, Marcos e Daniel) são geralmente os filhos e as crianças maiores
(Julinho, Estela e Jane) coordenam as brincadeiras ou representam papéis de comando nos
jogos de faz-de-conta. Tal situação se intensifica no caso de Estela, que além de ser a criança
mais velha é a filha de Denise. Ela freqüentemente corrigia as outras crianças e inclusive Bia,
quando esta carregava os bebês. Em algumas situações, quando os meninos se dirigiam à sala
ou aos quartos para brincar de carrinho, solicitava que eles não arranhassem o piso.
Os papéis desempenhados por Estela, tanto na vida diária da creche como nos jogos de
faz de conta pareciam ser reforçados por Denise. Ela costumava solicitar ajuda de Estela,
como na distribuição dos biscoitos do lanche da manhã. Nem sempre, contudo, as crianças se
dispunham a tolerar esta hierarquia e recordamos que Julinho não deixava que Estela
escolhesse os seus biscoitos.
Conforme comentamos, Denise reconhece este papel de pequena tomadora de conta da
filha, nas brincadeiras e na vida diária da creche. Vale a pena citar um outro depoimento seu a
respeito de Estela:
“A Estela se acha tipo como se fosse eu tomando conta das crianças. Ela
se põe no meu lugar. Acaba todo mundo aceitando a brincadeira, acaba
todo mundo fazendo aquilo que ela quer, entendeu? Ela tenta me imitar.
Eu não quero que faça isso, é assim...não pode brigar, se brigar vou
botar de castigo e se ficar de gracinha eu vou chamar a minha mãe. Ela é
assim, ela quer fazer tudo que eu faço, ela quer se impor dentro da minha
imagem. Pior que ela acaba até fazendo direitinho”(Denise, 22/08/2001).
Tomando como ponto de partida as evidências obtidas nas observações, é possível
afirmar que as crianças interferem no cotidiano da creche com as atividades espontâneas, que
são expressões das culturas infantis. Tais constatações são decorrentes da análise dos fatos
vividos no local e das reflexões obtidas pelo referencial da sociologia da infância54.
54
Segundo Pinto (1997, p. 67-68), uma boa parte da produção recente que tem contribuído para a construção da
sociologia da infância é teórica e metodologicamente inspirada nas correntes da sociologia interpretativa, de
inspiração fenomenológica, como o interacionismo simbólico e a etnometodologia.
224
Os autores e as autoras que estudam a infância citados neste capítulo compreendem as
crianças como atores sociais55. Suas perspectivas se organizam em torno de uma sociologia
interpretativa dos atores sociais, o que os diferencia dos estruturalistas e funcionalistas, que
percebem a socialização como a inculcação de padrões sociais.
Em um artigo sobre a emergência de uma sociologia da infância no Brasil, Quinteiro
(2002, p.138-139) comenta que os estudos de Sirota (2001) e Montandon (2001) são um
marco na releitura crítica do conceito de socialização e de suas definições funcionalistas, na
produção de língua francesa e de língua inglesa. Ela ainda explica que a questão central
colocada pelas duas pesquisadoras é a crítica à visão de criança considerada como tábula rasa,
na qual os adultos imprimem a sua cultura.
Sobre a produção brasileira, Quinteiro (2002, p.140-161) observa que ao contrário da
produção européia, que tem preocupação com a revisão do conceito de socialização, em nosso
país há uma vasta produção sobre a sociologia escolar e ausência de estudos sobre a condição
social da criança no interior da escola pública. Afirma ela que não só na sociologia, mas no
campo das ciências humanas e sociais, em geral os estudos sobre a criança e a infância não
têm merecido, por parte dos pesquisadores, ao longo de todo o século XX e início do século
XXI, uma atenção mais regular e sistemática.
A autora refere ainda o trabalho de Fernandes, publicado em 1947 sob a denominação
As trocinhas do bom retiro56, como um destaque na sociologia brasileira, no sentido de
reconhecer a criança como um agente de socialização.
Os autores que pensam e produzem estudos sobre a infância nos permitem
compreender que as crianças da creche de Denise não são objetos de inculcação pura e simples
55
Vários trabalhos sobre a infância estudam as crianças como atores que interagem com as pessoas e com as
instituições, que criam para si um lugar no mundo que as rodeia, que reagem aos adultos, negociam e redefinem a
realidade social. Para Montandon (2001, p. 2), o conceito de socialização que se refere a um processo unilateral,
no qual as instituições e agentes sociais procuram fazer com que os indivíduos assimilem, se adaptem e se
integrem na sociedade, suscitou reações entre os sociólogos que estudam a infância. Assim, as diversas reflexões
sobre a socialização não são independentes de um outro problema teórico que é a relação entre ator-estruturas. A
sociologia interpretativa enfatiza mais a produção da vida social pelos indivíduos do que a produção dos
comportamentos pelas estruturas sociais.
56
O estudo de Fernandes é um registro inédito de elementos constitutivos das culturas infantis captados a partir
de observações sobre grupos de crianças em bairros operários de São Paulo que, após o período da escola,
juntavam-se nas ruas para brincar. Além desse estudo, Quinteiro (2002) destaca outras obras como a de Martins
(1993, p.15), que organizou uma coletânea de textos intitulada “O massacre dos inocentes”. O autor elegeu a
criança como testemunha da história por reconhecer que são elas, nos dias atuais, os principais portadores da
crítica social.
225
dos valores sociais transmitidos pelos adultos. Entendemos que no processo de socialização
elas são sujeitos ativos, embora nas interações com os adultos e jovens também sofram
imposições sociais.
Sarmento & Pinto (1997, p.20) destacam que considerar as crianças como atores
sociais tem implicações, como o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por
parte delas e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é,
em culturas. Ambos questionam se as culturas das crianças, afinal, têm um sistema de
construção de conhecimento e de apreensão do mundo que é específico das crianças e
diferente dos adultos, e se é possível falar em uma autonomia das culturas infantis57.
Temos afirmado que as culturas infantis interagem na creche domiciliar,
principalmente pela criação de atividades espontâneas pelas crianças. Todavia elas não
produzem culturas no vazio social, assim como não têm uma completa autonomia no processo
de socialização. Como destacam os sociólogos portugueses (Sarmento & Pinto, 1997), é
possível falar sobre uma autonomia relativa das culturas infantis. Isto significa que as
respostas e reações das crianças, os jogos de faz-de-conta, as brincadeiras e interpretações que
fazem da sua realidade, são um produto das interações com os adultos e outras crianças. Logo
é preciso considerar as condições sociais nas quais vivem, com quem interagem e como
produzem sentidos sobre o que fazem.
Em artigo mais recente, Sarmento (2002) escreve que a identidade das crianças é
também a identidade cultural, ou a sua capacidade de constituírem culturas não redutíveis
totalmente às culturas dos adultos. Mas novamente observa que seria desajustado compreender
as culturas da infância desligadas das interações com o mundo dos adultos.
É por isto que não é suficiente afirmar que as crianças são atores sociais, ou que a
infância é uma construção social, se não considerarmos suas posições específicas na estrutura
social58. Voltando o olhar para o nosso estudo, isto quer dizer que não basta contemplarmos as
57
Estes autores portugueses (1997, p. 21 e 22) explicam que se essas culturas assentam nos mundos de vida das
crianças e estes mundos se caracterizam pela heterogeneidade, é preciso ter em conta que há uma pluralidade de
sistemas de valores, de crenças e representações sociais das crianças. É por isto que ao invés de falar de uma
cultura da infância, eles defendem que existe uma pluralidade dos sistemas simbólicos, sendo preferível falar em
culturas das crianças, ou culturas infantis.
58
Sarmento & Pinto (1997, p.10) destacam que a infância concebida como uma categoria social autônoma é
analisada nas suas relações com a ação e a estrutura social. Eles explicam que as crianças sempre existiram, desde
o primeiro ser humano, mas a infância como uma construção social - a propósito da qual se construiu um
conjunto de representações sociais e dispositivos de socialização e controle - é uma idéia moderna.
226
atividades espontâneas das crianças sem considerar o local no qual elas vivem, os adultos com
os quais se relacionam e a presença de elementos valorizados no contexto sócio-cultural de
origem, como a televisão e os estilos musicais apreciados na creche domiciliar.
A perspectiva interpretativa da sociologia da infância analisa as crianças como atores
sociais e como portadoras de culturas. Essa concepção interfere na noção de socialização, que
não mais se trata de adaptação ou interiorização das regras, hábitos e valores do mundo adulto.
De acordo com Montandon (2001, p.42-43), Corsaro foi um dos precursores de uma
perspectiva interpretativa e construtivista no estudo da socialização das crianças, ao se
interessar pelo ponto de vista das crianças, pelas questões que elas se colocam e pelos
significados que atribuem ao mundo que as rodeia.
Para entendermos a teoria de Corsaro (2002, p.114-115) é fundamental remetermo-nos
ao seu conceito de reprodução interpretativa. Em um artigo sobre a reprodução interpretativa
no brincar ao faz-de-conta das crianças, denomina este processo de “reprodutivo”, porque as
crianças não se limitam individualmente a interiorizar a cultura adulta que lhes é externa, mas
tornam-se parte da cultura adulta e contribuem para a sua reprodução, através das negociações
com os adultos e da produção criativa de série de pares com outras crianças59. Ele chama a
atenção para um aspecto que também encontramos na creche domiciliar, qual seja, o de que
numerosos estudos norte-americanos acerca do faz-de-conta das crianças enfatizam que estas,
tanto nas camadas médias quanto nas camadas populares, recorrem a um estilo autoritário
quando assumem papéis de chefia como mães, pais ou patrões.
Encontramos este estilo autoritário, principalmente quando Estela assumia o papel de
mãe e tomadora de conta das crianças menores, ou quando mantinha uma relação de
hierarquia com Jane, ao brincarem de casinha. Não podemos, contudo, esquecer da valiosa
observação de Fernandes (1961) ao assinalar que as crianças se referem mais a funções sociais
do que a pessoas específicas nesses jogos. Provavelmente as crianças não estavam
representando Denise, Elisa ou outras pessoas conhecidas nos jogos de faz-de-conta, mas sim
os papéis de comando que absorveram das relações com os adultos.
59
Barra & Sarmento (2002), definem cultura de pares ou série de pares a partir da concepção de Corsaro, ou seja,
como um conjunto de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e
partilham na interacção com seus pares. Escrevem os autores que “antes de tudo o mais, as crianças aprendem
com outras crianças, nos espaços de partilha comum. Estabelece-se dessa forma a cultura de pares. Entende-se
227
4.4 DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO
“Por que esqueci quem fui quando criança?
Por que deslembra quem então era eu?
Por que não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?” (Fernando Pessoa)
No item anterior, a partir das contribuições de sociólogos da infância, afirmamos que
as crianças são atores sociais com uma autonomia relativa, o que tem implicações no conceito
de socialização.
No desenvolvimento deste capítulo, temos apontado a constante atividade das crianças,
suas apropriações de elementos do meio sócio-cultural de origem e as conseqüentes
interpretações da realidade, com uma lógica peculiar das suas culturas de pares. Por estas
razões, consideramos as crianças sujeitos ativos da socialização vivida na creche domiciliar.
Quando tratamos do acolhimento das crianças, vimos como os bebês reagem com o choro aos
estímulos ou às dificuldades que encontram nas relações com os adultos e com outras crianças.
Considerando que as crianças têm uma autonomia relativa, o que significa que elas são
limitadas pelo grupo social no qual convivem, trabalharemos com três dimensões da
socialização no desenvolvimento deste item. Na medida em que ampliamos nossas análises,
fomos constatando que estas dimensões refletem uma dominação dos adultos sobre os mundos
por pares (de uma criança) o grupo de crianças com as quais esta partilha o mesmo espaço em regime de
228
das crianças, principalmente no que diz respeito à inculcação de normas e atitudes de
comportamento valorizadas por Denise e pelas mães das crianças. Encontramos, em nosso
estudo, traços de socialização das camadas populares, problematizados por Thin (1998), que
são reproduzidos de forma interpretativa pelas crianças, principalmente quando brincam.
Para compreender as três dimensões da socialização que referiremos é necessário ter
em conta um aspecto: existe compatibilidade entre os valores, normas e hábitos de
comportamento valorizados por Denise e os valores, normas e hábitos de comportamento que
as famílias consideram corretas. Denise procura transmitir para as crianças os valores que
transmite para as filhas. Assim, a educação da residência e a educação da creche parecem se
complementar.
A primeira dimensão da socialização que comentaremos trata das relações afetivas
entre Denise e as crianças. O afeto e o toque corporal são aspectos valorizados no cotidiano da
creche e isto se estende às relações de cuidado entre as crianças maiores e as menores.
A segunda dimensão diz respeito à imposição de regras baseadas na autoridade dos
adultos e no uso de punições e castigos, bem como à presença de valores religiosos, como o
hábito de rezar e agradecer antes das refeições.
Por último, abordaremos os modos de socialização que estabelecem diferenças entre os
meninos e as meninas, constatando a existência de uma divisão de papéis sexuais na creche de
Denise que reflete as divisões de papéis sexuais na vida e no trabalho dos familiares das
crianças.
4.4.1 Afetividade e participação nos cuidados das crianças menores
Como as crianças não são divididas em turmas e não há um projeto pedagógico na
creche, as práticas de modo geral aproximam-se das de um ambiente familiar. Desta maneira,
as crianças maiores convivem com as menores, havendo uma circulação constante delas nos
espaços da casa e um envolvimento nos cuidados dos bebês, na troca de fraldas e na
alimentação, por exemplo.
habitualidade”.
229
As crianças costumam ajudar Denise em algumas tarefas cotidianas, carregando
compras ou auxiliando as menores nas atividades de higiene. Freqüentemente demonstram
interesse pelos cuidados dos bebês. Em uma das observações, Jane perguntou a Denise se
Mauro ia tomar banho, ao que ela respondeu: não sei, meu amor, talvez eu dê um banho nele
para refrescar. No horário do banho, Denise solicitou a Jane que pegasse um casaco de
Mateus no varal: vê aquele casaco dele lá na corda, o do super-homem. Ao mesmo tempo,
pediu que Julinho e Marcos não deixassem Mauro (o bebê) pegar as pipocas que eles estavam
comendo no quarto. Marcos concordou e garantiu que eles iriam cuidar para que Mauro não
comesse as pipocas (Diário de Campo, 18/06/2001).
Já vimos que para as mães das crianças é importante o contato afetivo que Denise
proporciona, e que valorizam o toque corporal. Além disso, as conversas sobre os corpos das
mulheres eram freqüentes na creche. Como analisa Thin (1998, p.15), a distância entre os
corpos é menor nas classes populares do que nas outras classes sociais, principalmente no que
concerne às crianças. Os corpos são importantes, porque através deles os sentimentos se
expressam mais facilmente do que pelas palavras.
Os momentos de afetividade e contato corporal com as crianças ocorriam
principalmente nas atividades de cuidados com os bebês. Esses momentos eram quase sempre
compartilhados pelas crianças maiores de forma prazerosa. Quando os bebês (Mauro e
Jonathan) acordavam as crianças acompanhavam Denise até o quarto e observavam as trocas
com interesse. Elas costumavam brincar ou cantar para os bebês enquanto Denise conversava
com eles de forma carinhosa: Ih, tá cagadinho! Meu pretinho, tá cocô? Heim, fedorento? A tia
encontrou o Jonathan na rua! Heim, gostoso? (Diário de Campo, 19/06/2001).
Nesses momentos, tanto os bebês quanto as outras crianças se beneficiam com as
trocas e aprendem coisas novas. Esta participação estimula a solidariedade entre as crianças e
o respeito às diferenças de idade, na socialização. Quando as crianças comem ou bebem
alguma coisa diferente, costumam dividir com as demais. Em uma tarde Daniel entrou no
quarto com uma lata de refrigerante e ofereceu um pouco para cada uma das crianças. Elas
também vibram quando os colegas aprendem coisas novas, como no dia em que Mateus
conseguiu calçar as sandálias sem a ajuda de Denise.
Reiteramos que não há intencionalidade pedagógica nestas atitudes; os fatos vão se
sucedendo porque é assim que Denise e as mães ensinam as crianças, ou seja, a solidariedade,
230
a ajuda mútua, a divisão dos alimentos fazem parte dos modos de existência destas pessoas.
Entretanto, isto não significa ausência de intenção como um ato de vontade, emergente da
interação social. Sarmento (1997) explica que a intenção pedagógica decorre da constituição
de um mundo de vida, que é pensado no quadro de uma racionalidade comunicativa e não de
uma racionalidade cognitiva-instrumental60.
4.4.2 Para exercer a autoridade é necessário punir e castigar
Quando as crianças não cumprem as regras estipuladas por Denise, ela geralmente faz
uso de castigos e punições, como privá-las da televisão e das brincadeiras. Nos castigos,
Denise quase sempre perde o controle e fala em tom mais alto que o habitual, ou os aplica sem
explicar a razão. Quando oferece alguma justificativa, o que predomina é uma ligeira
informação a respeito da censura ao comportamento da criança.
Entre as crianças, somente Daniel e Marcos ficavam de castigo; as censuras eram
geralmente feitas aos meninos, como no exemplo do brinquedo de carrinhos restrito aos
limites do corredor.
Daniel freqüentemente ficava de castigo sentado em uma cadeira na cozinha ao lado de
Denise, que fazia comentários: você vai brincar com o carrinho, pede para Estela que pegue o
carrinho com Bia... vai lá brincar e sem confusão no corredor, senão volta a sentar aqui de
novo. Comumente Daniel voltava ao grupo, mas se algum conflito acontecia Denise o
chamava novamente para o castigo: Fica aí. Já que você não quer brincar com ninguém fica
aí bem pertinho de mim. Alguns minutos depois, ele tentava convencer Denise a tirá-lo do
castigo e ela comentava: não vai fazer bagunça, não? Vem, pode vir. Aqui não adianta fazer
cara feia, que eu não tenho medo, não. Senta! Julinho, você também quer sentar perto de
mim? Então para de correr! (Diário de Campo, 20/06/2001).
Em outra situação, Mateus e Marcos se desentenderam por causa de um carrinho.
Marcos reagiu tirando o boneco das mãos de Mateus, que terminou chorando. Marcos logo
devolveu o boneco para Mateus: toma o bebê, toma. Ele resolveu contar a Denise que havia
60
O autor usa expressões de Habermas que são desenvolvidas no capítulo dois da sua tese: SARMENTO, Manuel
Jacinto. Lógicas da acção-Estudo organizacional da escola primária. Braga: Universidade do Minho, 1997.
231
brigado e entregou o carrinho e o boneco para Mateus, mas este continuou chorando. A reação
de Denise foi de ordenar que os dois sentassem na cozinha: Os dois aqui! Onde eu estou
vendo! Eu não quero confusão! (Diário de Campo, 20/06/2001).
Como podemos perceber, Marcos refletiu sobre suas atitudes com relação ao colega e
modificou sua conduta, provavelmente porque se solidarizou com Mateus quando ele ficou
sem os brinquedos. E mais, a solução que ele encontrou foi além da devolução dos brinquedos
ao outro, pois dirigiu-se a Denise para relatar o acontecimento.
Denise, porém, não conseguiu escutar o que ele disse e logo reagiu com outra punição.
Isto ocorria quando ela parecia nervosa ou atrapalhada com a preparação das refeições, com a
higiene ou o sono dos bebês, ou quando estava sem dinheiro devido aos atrasos de pagamentos
de alguns familiares.
O que predominava nos momentos de resolução dos conflitos eram as ameaças, as
punições e os castigos, quase sempre centrados na autoridade do adulto. Denise outorga a
punição, mas não discute as regras nem escuta os posicionamentos das crianças.
No transcorrer das observações era comum que ela fizesse comentários sobre as
crianças da creche. Nesses comentários, privilegiava as atitudes das crianças, enfatizando
aspectos positivos, como a tranqüilidade e a obediência, e aspectos negativos, como a agitação
e a teimosia.
Denise tem preferência pelo trabalho com as crianças menores, justificando que estas
compreendem e internalizam melhor as regras. Uma das suas dificuldades é lidar com os
valores e hábitos diferentes daqueles que ela oferece às filhas, o que se acentua no caso das
crianças maiores:
“Já essas crianças, a dificuldade que eu entreguei essas crianças aos pais
foi essa: de que as minhas filhas nunca me responderam: ‘ah vai tomar
naquele lugar, você não me manda, você não é minha mãe, eu não vou
fazer, eu não quero fazer, eu não sou obrigado a tomar banho, eu não
sou obrigado a escovar os dentes’. E foi por isto que eu parei com essas
crianças maiores. Crianças de sete anos em diante, eu não pego. Muito
difícil lidar com essa faixa de idade. Porque a criança começa a querer ter
a sua própria opinião e o seu caráter. Então ela quer impor aquilo que ela
já está mostrando que vai ser mais tarde. Então fica difícil de você lidar
com aquilo, se em casa já não sabem lidar” (Denise, 22/08/2001).
232
Nos casos de conflitos com as crianças maiores que resultaram na suspensão dos
acordos com os familiares, Denise utilizou argumentos que culpavam a educação de casa, ou
que estabeleciam diferenciações entre o modelo de educação familiar dela própria e os
modelos de educação das mães das crianças. É importante considerar que as justificativas de
Denise a respeito das divergências educativas estão exclusivamente voltadas para a formação
de hábitos, valores e atitudes baseados na obediência às regras que os adultos estipulam.
É necessário que exista simultaneidade entre os valores educacionais de Denise e dos
familiares para que se mantenham os acordos e negociações. Nos relatos sobre as dificuldades
das crianças no cumprimento das regras, Denise relacionou os conflitos ao modelo de família
das crianças, geralmente monoparental.
Denise ainda relacionava as dificuldades de trabalho com as crianças maiores à
situação conjugal dos familiares, condicionando os problemas enfrentados com as crianças, às
brigas entre os casais, à recomposição familiar de um dos cônjuges, ou à sobrecarga de
trabalho e educação dos filhos que enfrentam as mulheres sem cônjuge.
De modo geral ocorre a legitimação das regras e castigos pelos familiares daquelas
crianças que permanecem na creche. Temos argumentado que há uma simultaneidade entre os
valores, hábitos e atitudes que Denise põe em relevo na educação das filhas e os modos de
educação prestigiados pelos familiares das crianças. Ao lado do toque corporal e do afeto
também encontramos uma ênfase nos castigos e punições baseados na autoridade dos adultos.
E não esqueçamos que os castigos quase sempre incidem diretamente sobre os corpos das
crianças, que são privadas de movimento por algumas horas.
Encontramos diferenças, entretanto, entre as constatações anteriormente apresentadas e
o discurso de Denise, Bia e Nara quando afirmam que fazem tentativas de dialogar com as
crianças. Foi dito, por exemplo, que no caso do uso de punições e castigos elas procuram
explicar às crianças as razões destes atos, razões estas quase sempre vinculadas ao não
cumprimento dos acordos e regras:
“Eu estava falando ontem com uma amiga minha que o melhor castigo
pra uma criança é o castigo tipo: Ah, você fez isso? Você não vai ver
televisão, você não vai ver o programa que você gosta. Enquanto você
não melhorar nesse aspecto, você não vai ter o que quer. Antes eu
233
pensava que o melhor ensino era o bater, era isso, era aquilo. Hoje eu sei
o que a minha mãe falava, que o melhor castigo é tirar o que gosta e o
diálogo. Tendo esse diálogo desde criança, pode ter certeza de que a
criança vai crescer, pelo menos tentando seguir aquilo que você está
determinando para ela” (Denise, 22/08/2001).
Denise apresenta uma análise bem realista da situação. Ela própria pensava que bater
era a melhor solução, mas com o passar dos anos e com outras experiências de vida percebeu
as vantagens de dialogar com as crianças. No entanto na vida diária da creche há muitas
responsabilidades para cumprir e tarefas que acontecem em simultaneidade com outras, como
cozinhar, cuidar dos bebês e das crianças maiores. Nem sempre Denise consegue manter um
diálogo com as crianças.
A prática de punir as crianças sem oferecer explicações é analisada por Thin (1998,
p.21) no que diz respeito às sanções sem justificativas aplicadas pelas famílias das camadas
populares. Convém destacar que este autor está olhando as práticas socializadoras de
familiares que residem em bairros populares franceses. Respeitadas as diferenças geográficas,
sociais e culturais, observamos que Denise não justifica suas decisões, fazendo predominar a
sua autoridade, legitimada pelos familiares das crianças. Conforme escreve Thin (1998), a
autoridade se manifesta de maneira contextualizada e se aplica a uma situação precisa e
imediata. A sanção pode tomar a forma de punição consistente ao privar a criança de um
brinquedo, de um passeio ou da televisão. Tais punições estão presentes na creche domiciliar:
como vimos, os castigos mais freqüentes aplicados aos meninos são privá-los de brincar com
as outras crianças, de assistir televisão ou de sair para as compras com Denise.
Na perspectiva de Thin (1998, p.22), as sanções são pouco justificadas por
considerações educativas gerais. Para ele, não se trata de admitir que não existe uma base
moral às sanções infligidas às crianças; todavia é mais uma questão de moral prática que se
exprime nos atos repressivos em si, sem o acompanhamento discursivo que permita uma
tomada de distância reflexiva por parte das crianças ou dos pais. Está-se longe de uma relação
pedagógica em que a punição se aplica às “faltas de regras” e em que reina a “submissão de
todos a uma ordem impessoal”.
234
Na creche de Denise não encontramos um planejamento pedagógico e não poderia ser
diferente com as punições e castigos. O que predomina é um modo de socializar as crianças
semelhante ao universo familiar dela própria e dos familiares das crianças.
Tais constatações nos colocam um outro problema: por que Denise, Bia e Nara
apresentam discursos sobre as regras, os castigos e punições que estão mais próximos do
universo escolar, se não encontramos nas práticas cotidianas tentativas de estabelecer trocas de
pontos de vista com as crianças?
Desde a descrição da trajetória e vida de Denise temos observado que ela é uma mulher
inteligente e observadora. Denise sabe que representamos a Universidade e que esta
investigação retornará a um meio predominantemente ocupado por profissionais da educação.
Em uma análise precipitada poderíamos afirmar sem maiores explicações que existe
um distanciamento entre o que ela diz e o que ela faz. Ainda que na convivência com as
crianças nem sempre Denise consiga se distanciar e refletir acerca das suas práticas, pensamos
que uma provável resposta para nossa indagação é que ela tenha fornecido respostas esperadas
pelas pessoas ligadas à Universidade.
Nesse sentido, não nos parece adequado afirmar que encontramos contradições entre os
discursos e práticas de Denise. A explicação mais plausível é que ela tenha formulado
respostas enfatizando um padrão de socialização que, na sua ótica, é o padrão considerado
correto pelas pessoas que freqüentam o mundo acadêmico. Denise trabalhou no passado com
pessoas com formação pedagógica, além de freqüentar a escola de ensino fundamental e de
acompanhar a vida escolar das filhas. Estas experiências e as suas prováveis deduções
parecem ganhar peso nos discursos que apresenta sobre as punições e castigos.
A religião é outro aspecto valorizado na socialização da creche domiciliar:
freqüentemente Denise cobra o respeito ao hábito de rezar antes das refeições; na descrição da
creche e residência apontamos a existência de alguns objetos religiosos; Denise e algumas
mães (Elisa e Íris) freqüentam a igreja Universal:
“Eles têm que aprender que tudo que eles estão comendo, com certeza é o
senhor Jesus que dá para eles. Então, eles têm que agradecer aquilo que o
senhor Jesus está dando para eles comerem. Porque se não fosse o senhor
Jesus dar condições para o pai e a mãe levantar para ir trabalhar, com
certeza a tia Denise não teria condições de ter o dinheiro para comprar
235
para eles. Isso aí eu acho importante que a criança agradeça” (Denise,
22/08/2001).
Este discurso demonstra como Denise enfatiza hábitos religiosos na creche domiciliar,
embora não mais consiga freqüentar a Igreja Universal devido à extensa jornada de trabalho.
Principalmente na hora do almoço, cobrava das crianças o hábito de rezar. Em uma dessas
práticas, Denise serviu Estela e observou em voz alta: Não esqueceu nada, não, Estela? Estela
havia iniciado a comer, e explicou que estava comendo só um pouquinho. Denise continuou a
servir as outras crianças e solicitou a Julinho que iniciasse a oração. Como ele ficou calado,
ela própria foi rezando e as crianças repetiam: papai do céu, abençoa o nosso papazinho de
hoje, que nunca venha faltar, em nome do pai, de Jesus, amém. No final da oração ela, as
ajudantes e as crianças bateram palmas (Diário de Campo, 15/06/2001).
4.4.3 Coisas de menino e coisas de menina
No cotidiano da creche domiciliar observamos uma divisão nítida entre os meninos e
as meninas tanto no que diz respeito às punições e castigos, quanto nas atividades de higiene,
de ajuda, ou nas brincadeiras. Durante as observações, não vimos as meninas sofrerem
qualquer tipo de punição ou castigo. Entretanto, Denise fazia cobranças a Estela com o intuito
de que ela servisse de exemplo às outras crianças. Ela solicitava que Estela não estragasse os
brinquedos, que não brigasse com as outras crianças, que não carregasse os bebês no colo,
entre outras recomendações. Quanto às solicitações de ajuda, percebemos que as meninas
participavam mais no auxílio das tarefas domésticas do que os meninos. Nas atividades de
higiene, especialmente no banho, Denise separava os meninos e as meninas.
Os meninos, especialmente Daniel, foram descritos por Denise, Bia e Nara como mais
teimosos no sentido de seguir as regras estabelecidas na creche.
Elas disseram que os meninos têm mais dificuldade para compreender as regras, o que
demonstra os significados e estratégias diferentes nos modos de socialização dos meninos e
das meninas:
236
“Com os meninos. Que é o Daniel (risos). Não tem um dia que ele não
fique aqui dentro comigo. Porque é aquela coisa da criança ser mais
explosiva. Ele sabe que brincando ali fora ele não pode subir onde o pai
está construindo a casa deles. Que tem uma escada. Mas ele vai. Eles
sabem que não podem ficar aqui na frente quando eu não estiver aqui na
frente. E é sempre ele que vem aqui na frente. Ele fica aqui dentro comigo
um tempo, dez, quinze, vinte minutos e depois eu ponho ele lá para fora
de novo e ele vai brincar. Aí ele já não vai mais para lá. Aí ele vai e
brinca direitinho ali naquele ponto onde eu estou vendo. Ele sabe que o
limite é: se eu estou arrumando a sala, eles podem ficar aqui. Onde eu
estou vendo, na minha vista. Se eu for para a cozinha, eles ficam ou aqui,
ou ali daquele lado onde eu estou vendo” (Denise, 22/08/2001).
“A gente explica, você não pode fazer isso. Mas só que a gente explica
várias vezes pro Daniel e ele faz de novo. O Mateus fica de vez em
quando, mas o Daniel é pior” (Bia, 21/08/2001).
Percebemos que, nos momentos de conflito, as intervenções com os meninos se
baseavam em um reforço do tipo negativo, enquanto com as meninas havia um reforço
positivo, no sentido de ressaltar qualidades culturalmente definidas como femininas, entre elas
a passividade e a obediência.
Quando as crianças, inclusive as meninas, brigavam no pátio, Denise chamava por
Daniel ou pelos outros meninos: Cai no chão agora, faz pirraça comigo, coisa feia! Tá de
castigo, coisa feia! Fazendo pirraça e ainda querendo bater? Que negócio é este? Em outra
situação Denise ordenou que Estela, Julinho e Jane colocassem as garrafas de água dentro da
pia: Já colocaram? Agora vão para a sala e sem confusão. Ao mesmo tempo avisou que ia
passar o desenho dos Simpsons na TV e mandou Daniel ficar na cozinha e Mateus terminar de
almoçar. Como Daniel fez carinho em Denise, ela correspondeu, mas ao mesmo tempo
observou: Senta, não tenta me enganar, não (Diário de Campo, 09/07/2001).
Como estas situações predominavam na vida diária da creche, perguntamos a Denise,
Bia e Nara se elas encontram diferenças entre os meninos e as meninas. As três responderam
afirmativamente, sempre enfatizando as diferenças de comportamento e de atitudes.
Para Denise existem diferenças entre os meninos e as meninas sobretudo porque os
meninos querem impor suas vontades e gostos. Por outro lado, ela também reconheceu que as
meninas não aceitam tranqüilamente os desejos dos meninos. Constatamos que em algumas
atividades as meninas fazem prevalecer suas vontades, principalmente quando brincam de
237
casinha. Na brincadeira de casinha, o papel de filho é desempenhado pelos meninos menores e
as crianças reproduzem, de forma interpretativa, as subordinações de idade entre adultos e
crianças e os papéis das mães e mulheres que, nas camadas populares, são as responsáveis pela
organização da casa. Logo, não é estranho Denise afirmar que em algumas situações as
meninas fazem prevalecer suas vontades.
Nas brincadeiras, observamos que as meninas jogavam bola com os meninos e, em
algumas situações, brincavam com os carrinhos. Jane parecia mais flexível do que Estela, que
nem sempre aceitava brincar com coisas de meninos. Um diálogo estabelecido entre as
meninas ilustra esta afirmativa: Jane fala para Estela: Não vai brincar de carrinho, não?
Estela responde: Eu não, eu não sou homem (Diário de Campo, 20/06/2001).
Dificilmente os meninos brincavam com os bichos de pelúcia ou com a única boneca
existente na creche. Brincar com bonecas não era permitido aos meninos, como veremos a
seguir.
Utilizamos a categoria gênero na análise das trajetórias e significados do trabalho de
tomar conta de crianças para Denise e as mães das crianças. No cotidiano da creche domiciliar
elegemos novamente esta categoria, porque percebemos que as diferenças de papéis sexuais
também fazem parte da socialização das crianças.
O uso da categoria gênero pressupõe uma relação com as dimensões das diferenças
entre os sexos e as relações de poder resultantes destas diferenças. O referencial teórico de
gênero que adotamos no estudo trata das relações sociais de gênero e sua variabilidade, na
medida em que é possível tratar de contextos espaço - temporais diferentes e, suas relações
com classe, raça e subordinações de idade.
Delamont (1985, p.20), em estudo sobre os papéis sexuais e a escola, escreve que o
gênero deve ser utilizado para mencionar todos os aspectos não biológicos das diferenças entre
indivíduos do sexo masculino e indivíduos do sexo feminino, como: vestuário, interesses,
atitudes, comportamentos e aptidões que separam os estilos de vida dos homens e das
mulheres. Assim, entendemos que o gênero é criado socialmente, visto que todas as culturas já
descobertas em todo este mundo têm normas muito diferentes para a masculinidade e
feminilidade (1984, p.24).
No cotidiano da creche domiciliar as diferenças de papéis sexuais apareciam em
situações nas quais Denise, Bia e Nara intervinham, ou nas brincadeiras e jogos de faz-de-
238
conta das crianças. Para Denise, as diferenças entre os meninos e as meninas são estabelecidas
quando eles brincam em grupos:
“Tem que ser diferente. Não, você quer jogar bola, elas também vão jogar
bola com vocês. Mas se elas estiverem brincando ali na casinha, vocês
também podem brincar de casinha com elas, que isso não vai afetar você
em nada. E graças a Deus, esse problema eu já não tenho mais. Elas
brincam de bola, brincam de carrinho, eles só não brincam de boneca.
Porque aqui você praticamente vê que bonecas não têm. Elas não são
chegadas a bonecas. São mais chegadas aos bichinhos de pelúcia, que elas
dizem que é o neném. Os meninos brincam da mesma forma, só que os
meninos desempenham a parte do pai. Eles saem para trabalhar. E o
trabalho deles é fazer o quê? Eles pegam o negócio ali que tem do
carrinho, pega as pedras que estão espalhadas ali, joga tudo dentro do
carrinho e vai jogando em cima das pedras. O trabalho deles é esse, é tipo
o pai saindo para trabalhar. Jane e Estela ficam em casa tomando conta
dos nenéns” (Denise, 22/08/2001).
Bia e Nara enfatizaram que os meninos não podem brincar de bonecas porque isto pode
afetar a construção do sujeito masculino deles, ao contrário das meninas, que podem jogar
bola:
“Ah, acho que boneca é pra menina, entendeu? Nem o pai, nem a mãe
dele vai gostar disso. De ver o menino brincando com a boneca” (Bia,
21/08/2001).
“Menino sempre brincando de carrinho. Carrinho e bola. Agora menina
gosta muito de brincar de ursinho. Mas a gente só divide isso. Nas
brincadeiras de bola, de jogar um a bola pro outro, a gente bota tudo
junto. Agora de carrinho é menino, de ursinho e de bonequinha são as
meninas. A gente divide isso. Porque depois vai pegar mal. As crianças
vão crescer, aí depois na escola. Os meninos brincando de boneca na
escola. Vão pensar o quê? Vai ficar zoando do coitado, né? Por isso que a
gente começa logo de pequeno: oh, você vai brincar de carrinho, só de
carrinho e de bola. Vocês meninas de boneca, brincar de arquinho, de
pentear.Até hoje eles brincam da mesma coisa, os garotos de carrinho e as
meninas de boneca” (Nara, 21/08/2001).
239
Seguramente as intervenções de Denise, Bia e Nara são marcantes e, neste aspecto, os
discursos das três confirmam o que observamos na prática. Possivelmente esta coerência entre
discurso e prática aconteça porque a divisão dos papéis sexuais é algo naturalizado entre
Denise e as mães das crianças. Nos capítulos anteriores vimos que para elas cabe o cuidado da
casa e das crianças, mesmo quando os cônjuges estão desempregados. Além disso, com
exceção de Juçara, entre as demais mulheres o desejo predominante é de que os cônjuges
obtenham uma renda melhor através de um emprego estável para que elas ou diminuam as
atividades, ou parem de trabalhar. Assim estabelece-se a expectativa de que nas brincadeiras
as crianças reproduzam imagens dos papéis masculinos e femininos que são valorizados nos
grupos familiares.
Lembramos do que observa Bourdieu (1999, p.3) sobre a eternização da dominação
masculina que se produz num trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização
do social, o que transforma a construção social dos gêneros masculino e feminino em uma
construção social naturalizada.
Em vários aspectos do cotidiano da creche domiciliar constatamos este trabalho de
construção social naturalizada dos gêneros masculino e feminino, contudo encontramos outros
movimentos no sentido contrário a esta construção, tanto nas trajetórias das mulheres
retratadas nos capítulos anteriores, como entre as crianças que nem sempre correspondiam as
expectativas dos adultos.
Nem sempre as crianças reagem nas brincadeiras em conformidade com as
expectativas dos adultos. Principalmente Marcos brincava com os bichos de pelúcia, ou com
outros objetos considerados coisas de menina. Quando isto acontecia, Denise logo intervinha,
embora Marcos não fizesse o que ela solicitava. Observamos Denise falar para ele, que
carregava uma bolsa feminina de cor amarela nas mãos: Já falei para você que isto é bolsa de
menina! Daniel escutou o que Denise disse e chamou Marcos de menininha. Mas Marcos,
apesar de simular que iria entregar a bolsa para Estela, não concluiu a ação e continuou
carregando a bolsa amarela nas mãos (Diário de Campo, 04/07/2001).
Das meninas, Denise, Bia e Nara esperam passividade e conciliação. Já os meninos são
descritos como explosivos e menos conciliadores. Quando os meninos brigavam, às vezes
Denise solicitava a intervenção das meninas como conciliadoras. Em uma disputa por
carrinhos entre Mateus e Marcos, escutei Denise pedir a Jane: dá a mão você a ele. Você é
240
menina e mais amigável! Jane logo reagiu falando para Mateus: Vem com a mamãe, vem! Eu
vou levar o seu carrinho! (Diário de Campo, 21/06/2001).
Ao refletir sobre as diferenças na escolha dos brinquedos segundo o gênero, Delamont
(1985, p.33) destaca que o mundo dos brinquedos e dos jogos oferece às meninas uma gama
de funções mais estreitas que aos meninos, assim como as funções oferecidas às meninas são
essencialmente passivas e centradas no lar.
O conceito de relações sociais de gênero nos ajuda a compreender que as pessoas são
transformadas pelas relações de gênero em homens e mulheres, logo a trajetória se faz do
social para os indivíduos que nascem e os significados do que é masculino e feminino são uma
construção social, histórica e cultural. Mas não esqueçamos que esta construção com relação
aos significados do que é masculino e feminino ocorre igualmente no simbólico, na
linguagem, nos discursos e nos sentidos. Nós observamos que nesse cotidiano também ocorre
uma produção de significados dos corpos como um depositário de princípios de visão e de
divisão sexuantes tal como aponta Bourdieu (1999).
Na rotina do banho observamos que os meninos têm mais liberdade do que as meninas,
no que diz respeito à exposição dos corpos. Geralmente eles tomavam banho antes delas e se
despiam na frente delas. Jane e Estela se despiam no banheiro e saíam vestidas do banho. No
caso de Estela, a exposição do corpo era mais controlada por Denise, pois a menina tomava
banho com a roupa de baixo.
Por outro lado, alguns programas de televisão e estilos musicais estimulam os
estereótipos de gênero, principalmente aqueles que exploram a exposição dos corpos
femininos para sedução. Quando os meninos olhavam gravuras de revistas, expressavam as
representações masculinas sobre os corpos das mulheres: ih, tem mulher pelada! Em algumas
atividades com música, as crianças cantavam trechos de canções com estereótipos sobre as
mulheres e seus corpos: são as cachorras, as preparadas, as popozudas...(Diário de Campo,
26/06/2001).
4.5 O TRABALHO DE DENISE NA CRECHE-SÍNTESE
241
Dialogamos neste capítulo com duas perspectivas de socialização: A de Daniel Thin,
cujos conceitos são mais utilizados em uma perspectiva de institucionalização escolar da
infância e de dominação adulta nas camadas populares, e a da sociologia da infância, que
discute o conceito de socialização considerando os modos ativos de interpretação das crianças.
Vimos, também, como a perspectiva da sociologia da infância, ao adotar o conceito de
autonomia relativa das crianças, admite a perspectiva de inculcação normativa e
comportamental dos adultos.
Conforme destacamos anteriormente, os conceitos de Thin (1998) são utilizados
porque encontramos na creche domiciliar, traços das práticas não escolares de socialização das
famílias populares. Foi, porém, o referencial da sociologia da infância que possibilitou o
entendimento de outras questões surgidas nas observações do cotidiano, tais como as
brincadeiras, os jogos, as culturas infantis e a relação das crianças com a mídia. Assim, ainda
que de forma indireta, as vozes e a presença das crianças nesse cotidiano foram ganhando
expressão.
Na creche domiciliar não encontramos uma proposta pedagógica formalizada, o que
não significa ausência de educação no processo de socialização. As três dimensões de
socialização analisadas, assim como as atividades rotineiras, os acontecimentos, as atividades
improvisadas por Denise, Bia e Nara e as atividades espontâneas criadas pelas crianças
demonstram a existência de relações educativas, embora sem intencionalidade pedagógica.
Desde o capítulo anterior, analisamos situações que apontam para uma perspectiva
familiarista de educação na creche de Denise. Neste capítulo vimos como esta perspectiva se
estrutura nas práticas diárias. Poderíamos sintetizar dizendo que os modos de socialização na
creche de Denise refletem o universo familiar das crianças e dela própria.
Esta educação que identificamos como familiarista parece estruturar-se em torno de
objetivos que emergem das necessidades de sobrevivência dos adultos e crianças, das
limitadas garantias de bem estar das crianças, ou seja, da satisfação das necessidades básicas
como alimentação, sono, higiene, cuidados com a saúde, proteção e afeto. Não há
planejamento das ações, o que não exclui intenção educativa das práticas socializadoras
vividas na creche domiciliar.
Vimos que as propostas pedagógicas, tanto para os familiares quanto para Denise,
significam “escolarização”; as crianças maiores de quatro anos geralmente freqüentam escolas
242
infantis e classes de alfabetização que preparam para as aprendizagens da leitura e escrita.
Para Denise, Bia, Nara e para as mães das crianças, a escolarização significa um caminho para
se conseguir um trabalho e uma profissão, ou para oferecer um futuro diferente para os filhos.
As mães e Denise entendem que trabalho pedagógico é algo que acontece nas escolas
infantis legalizadas, cuja função é preparar para a alfabetização e para a escolaridade formal.
A creche domiciliar é o local para propiciar às crianças tudo aquilo que as mães não
conseguem oferecer devido às suas condições de existência. Elas esperam que as suas crianças
sejam cuidadas, protegidas, acariciadas, curadas, que se divirtam e brinquem, mas que também
recebam limites e adquiram hábitos de obediência aos adultos.
Afirmamos que o modo de socialização na creche é familiarista, porque Denise
incorpora os filhos e filhas de outras mulheres no seu cotidiano de mãe. As rotinas da creche
descritas neste capítulo, bem como os acontecimentos e as atividades espontâneas, podem ser
comparados aos fatos que se sucedem em uma família numerosa. Desta forma, a higiene, a
alimentação, as saídas para as compras, a participação das crianças em algumas tarefas, os
passeios e festas comemorativas, a preparação para a escola, o repouso, as brincadeiras, são
elementos do cotidiano que reiteram esta perspectiva familiarista de educação.
Tal como acontece nas famílias dos meios populares analisadas por Thin, as trocas
entre Denise e as crianças não se baseiam em uma comunicação pedagógica: “A criança não
se constitui em objeto de educação no sentido pedagógico do termo, mas não se pode dizer
que não se ocupa, ou que não existe uma prática pela qual se transmitem regras, modos de
existência, modos de relações com a autoridade...” (Thin, 1998, p.20).
As divisões dos papéis sexuais que aparecem nas brincadeiras e em outras situações da
creche domiciliar confirmam as similaridades entre o que pensam as famílias das crianças e
Denise, quanto aos papéis feminino e masculino. Exatamente como aconteceu nas trajetórias
de Denise e das mães, as meninas são estimuladas a proteger e cuidar das crianças menores. E
Estela, tal como Nara, provavelmente será uma das ajudantes de Denise nos próximos anos, se
esta continuar exercendo a mesma atividade.
As distinções entre as coisas de menino e as coisas de menina parecem se entrelaçar
com a concepção de família nuclear valorizada por Denise, na qual o homem é o provedor e a
mulher deve ser mãe e dona-de-casa. São as mulheres que cuidam, que conciliam os conflitos,
que se preocupam com a organização da casa e a manutenção dos laços familiares. Estes são
243
traços valorizados no grupo de moradores do local, presentes na socialização das crianças. É
assim que o processo de ser mulher e ser homem parece ter início antes mesmo da entrada das
crianças na escola formal.
Nos processos de socialização da creche, compreendemos as crianças como sujeitos
ativos que produzem práticas e representações a respeito do mundo com o qual interagem.
Mas é impossível ignorar os limites do espaço social no qual são socializadas. Mesmo com
suas culturas de pares interferindo no cotidiano da creche, elas fazem parte de um bairro, de
grupos familiares das camadas populares que têm modos de socialização e lógicas muito
peculiares ao meio de origem. Tanto os meninos como as meninas repetem os padrões dos
grupos aos quais pertencem, entre eles a divisão sexual do trabalho. Como vimos no
desenvolvimento do capítulo há um espaço de autonomia relativa das crianças, mas esta
autonomia também supõe a incorporação de padrões e valores que fazem parte do meio sóciocultural das crianças.
Denise, Bia, Nara, as crianças e seus familiares, pertencem às camadas populares e a
socialização vivida na creche domiciliar se dá segundo os valores de uma classe social. O
trabalho de Denise reforça os modos de socialização das camadas populares. Apresentamos
exemplos disto neste capítulo, entre eles a ajuda mútua, que é valorizada nas relações entre as
crianças. Conforme destaca Thin (1998, p.26 - 27), para vencer a precariedade e as
dificuldades da vida, existe uma forma de solidariedade própria das famílias populares. A
ajuda mútua manifesta-se e aparece freqüentemente entre vizinhos. Em várias famílias, a ajuda
mútua tem caráter comunitário. Esta vida comunitária contribui para a pequena separação
entre as atividades das crianças e dos adultos61.
Denise é quem deve transmitir os valores baseados nas ordens e na submissão às regras
dos adultos, exatamente como acontece em uma família. Estes são valores específicos de uma
classe social. Como observa Queiroz (1995)62, as classes mais altas insistem nas capacidades
61
O autor chama atenção para um aspecto importante, que diz respeito ao cuidado que devemos ter quando
idealizamos a idéia de comunidade ou solidariedade nas famílias populares. Nós vimos que Denise não mantinha
uma relação estável com toda a vizinhança, ocorrendo fofocas constantes sobre a sua vida privada.
62
QUEIROZ, Jean-Manuel de. L’école et ses sociologies. Paris: Nathan, 1995. Tradução do item 2 Comprendre
lês familles populaires, p. 70-81 do capítulo 3 Familles et élèves, p.63-89 Rita Cristina Lima Lages e Ramon
Correa de Abreu.
244
de iniciativa e autonomia, na sensibilidade e expressividade pessoal, enquanto que nos meios
populares os valores estimulados são a ordem, a obediência e a limpeza.
Finalizando, só é possível compreender as práticas que constituem o que denominamos
de perspectiva familiarista de educação a partir das condições de existência de Denise, dos
familiares das crianças e dos moradores do local. Tentamos contemplar a realidade em foco
evitando o olhar da classe média sobre as práticas que lhe causam estranhamento (Queiroz,
1995), entendendo que as práticas socializadoras da creche coexistem com as condições
materiais de existência daqueles adultos e daquelas crianças.
Para encerrar este capítulo lançaremos uma questão. Daniel, o sobrinho de Denise, é
quem sofre mais punições no grupo. Precipitadamente, poderíamos afirmar que os atrasos no
pagamento por parte de Carlos é que provocam esta rigidez na relação de Denise com o
sobrinho. Há, porém, outros dados que podem explicar a situação. Denise sabe que Daniel
convive com o alcoolismo e com a dependência de drogas do pai. Ela própria, na sua
trajetória, relatou a dependência de drogas do irmão e a participação dele em alguns assaltos.
O crime, o tráfico e o envolvimento com a polícia fazem parte do cotidiano dessas pessoas.
Podemos recordar os relatos sobre a violência dos bailes funk, sobre a prisão do filho de
Nilcéia, antiga parceira de Denise, entre outros. Estes fatos podem explicar a insistência de
Denise para que o sobrinho obedeça às regras que ela estipula na creche domiciliar, uma vez
que o medo da transgressão ou o medo de que os parentes entrem no mundo do tráfico faz
parte das vidas das mulheres que entrevistamos.
“O risco da decadência está sempre presente para essas famílias
perpetuamente no limite da sombra de dificuldades maiores ainda, ou de
serem estigmatizadas pelo comportamento de um de seus membros. A
decadência pode vir notadamente através das crianças se elas
envergonharem os pais ou levarem o conjunto da família a ter problemas
judiciais e suscitarem a reprovação social” (Thin, 1998, p.19).
5.
PARA
CONCLUIR:
TECENDO
OS
SENTIDOS
DO
TRABALHO DE TOMAR CONTA DE CRIANÇAS
Com esta investigação propusemo-nos analisar os significados de tomar conta de
crianças, para Denise e cinco mães, e os desdobramentos desse trabalho no cotidiano da
creche domiciliar. No processo de escrita da tese defrontamo-nos com um desafio: como
romper com estereótipos e preconceitos sobre uma realidade diferente e, de certa forma,
estranha?
Fomos buscar respaldo em estudos sociológicos e antropológicos realizados,
sobretudo, em meios populares, os quais forneceram pistas a respeito de como a
compreensão daqueles que nos são diferentes deve superar a perspectiva da falta ou
carência de algo. Não vimos as mulheres somente como figuras pobres, excluídas,
desmobilizadas e sem direitos sociais. Percebemos seus sentimentos e as dimensões
simbólicas de suas vidas, trabalho e criação dos/as filhos/as.
Denise realiza uma atividade que não é reconhecida pela legislação trabalhista. Ela
apresenta uma dimensão simbólica de sofrimento (Paixão, 2002, p. 280) decorrente da
desvalorização com que a sociedade concebe o trabalho que realiza. Denise luta, à sua
maneira, para obter reconhecimento, pelo menos no bairro em que reside.
Lembramos que ela freqüentemente manifestava seu desejo de continuar os estudos
e concluir um curso superior. A frase que abre o capítulo segundo da tese, Creche, não!
Aqui se toma conta de crianças, demonstra preocupação quanto à ilegalidade e
clandestinidade da sua função.
Não ignoramos a importância da conjuntura social, econômica e política e das
condições materiais de existência dos atores sociais na análise da problemática. Porém,
propusemo-nos a analisar os significados: isto requer um olhar voltado para as
subjetividades, mesmo não pressupondo um descolamento das condições objetivas de vida.
Procuramos examinar as soluções criadas por moradores de um bairro sem acesso a
creches e pré-escolas públicas, observando suas diferentes perspectivas sobre
cuidado/educação de crianças. No convívio com essas pessoas fomos aprendendo que suas
interpretações sobre a realidade são bem mais complexas do que um primeiro olhar pode
perceber. Logo, evitamos classificar essas práticas como pobres, uma vez que Denise tem
246
conhecimentos acerca das crianças e do trabalho que realiza e as mães das crianças
refletem sobre o que esperam da creche domiciliar.
Como voltamo-nos para os significados e o cotidiano da creche, no
desenvolvimento do estudo as falas dos adultos, das crianças e jovens foram a pedra de
toque para responder nossas questões; falas carregadas de “subversão, porque contêm
porções de irreverência, ironia e espontaneidade, falas que contêm o traço do que se
gostaria de recalcar” (Perrot, 1988, p.206-207). No exercício de deixar falar estas vozes no
texto, evitamos a sobreposição da teoria, ou dos dados empíricos na escrita dos capítulos.
Desta forma procuramos construir uma simbiose discursiva, entre as vozes dos atores
sociais, a literatura consultada e as dimensões analisadas.
O universo observado apontou questões sobre as crianças e suas culturas a cultura
hegemônica, que entra pela televisão e pela mídia em geral, bem como as interações com o
local, presentes nas brincadeiras e jogos infantis. Não tínhamos intenção de tratar das
vozes das crianças quando definimos a problemática. Todavia, a entrada no universo da
creche domiciliar fez com que as culturas infantis aparecessem nos diários de campo.
Partindo dessa visibilidade pensamos que as vozes e culturas das crianças sugerem uma
continuidade de estudos voltados para os significados construídos pelas crianças, o que
demonstra que uma tese abre outros caminhos e possibilidades de investigação.
Salientamos que ter escutado as vozes dos atores sociais não significou enaltecer,
de forma ingênua ou romântica, os saberes, as experiências ou a capacidade de organização
das mulheres do local. Os sentidos do trabalho, bem como as relações e os cruzamentos
com o referencial teórico, mostraram a coexistência das dimensões de fragilização e força,
possibilidades e limitações, tanto nas trajetórias de vida como nos discursos e organização
do cotidiano da creche domiciliar. Concluímos o estudo com a convicção de que é inviável,
na análise dos dados, um raciocínio que se pauta em binarismos.
Como escreve Ramalho:
“(...) as distinções entre ciência e senso comum, razão e emoção são
reconhecidas como binarismos culturais, pois a cultura se entende a si
própria como estruturalmente binária, distinguindo o bem do mal, o
branco do preto, o mito da verdade, a ciência da fantasia, o corpo da
alma, o norte do sul, o oriente do ocidente, a história da literatura, o
fato da ficção, a razão do sentimento, o feminino do masculino”
(2002, p.537).
247
Diversas estudiosas feministas como Dallery (1997); Ferreira (2001); Jaggar e
Bordo (1997); Joaquim (2001); Narayan (1997); Perrot (1984; 1988); Ramalho (2001)
chamam atenção sobre como o recalcamento do tema feminino e do cotidiano das
mulheres é conseqüência de uma ciência fundada nos princípios de uma racionalidade
masculina que exclui as emoções, os sentimentos, as experiências e o conhecimento
prático, todos eles considerados como expressões de um modo de ser feminino1.
Ferreira (2001, p.10) observa que a ciência praticada, para além dos seus
praticantes serem homens, tem matriz, substância e ethos masculinos. Santos (2001, p.13),
igualmente, tem criticado o modelo de racionalidade da ciência moderna que vê a natureza
como o feminino, como o que deve ser dominado e controlado pela ciência.
Esta ciência, cujo discurso é andocêntrico ou falocrático (Agacinski, 1999)2,
fundamenta-se em um modelo de racionalidade hoje em crise. Podemos estabelecer
relações entre os estudos sobre gênero, que criticam um modelo de ciência racional e
masculino, e as críticas dos sociólogos/as da infância, no que diz respeito à exclusão das
culturas infantis nas investigações centradas nos olhares e vozes dos adultos.
Santos (2001) analisa a crise da ciência moderna, as ambigüidades e complexidades
do tempo presente, um tempo caracterizado como de transição, visto que nele existe uma
constante indagação sobre o papel do conhecimento científico acumulado, seja no
enriquecimento, ou no empobrecimento prático das nossas vidas. Propõe este autor que as
ciências sociais recusem todas as formas de positivismo lógico ou empírico, ou de
mecanicismo materialista ou idealista, pela valorização do humanístico, assim como pela
busca do desaparecimento da distinção hierárquica entre o conhecimento científico e o
dizer da filosofia da prática.
Nesse sentido procuramos apresentar os adultos, jovens e crianças do bairro
Saudade como atores sociais com corpos, sentimentos, desejos e racionalidades.
Portella escreve no prefácio do livro “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, que
a linguagem é energia, atividade, produtividade de sentidos. A personagem central do
livro, Macabéia, num primeiro momento parece a encarnação da exclusão num corpo de
1
Cabe esclarecer que, para estas autoras, isto não pressupõe que somente os homens partilham dessa
racionalidade, pois não existe uma associação entre masculino como modo de ser dos homens, e feminino
como modo de ser das mulheres.
2
Segundo Agacinski (1999, p.6 -7), o andocentrismo ou falocentrismo nada mais é do que colocar a
universalidade masculina no topo de uma hierarquia, seja a de uma organização social, ou a de um sistema de
representações ou de conceitos. Isto constitui uma maneira de apagar a dualidade dos sexos, com a
superioridade do masculino sobre o feminino.
248
mulher pobre, nordestina e subnutrida em busca de trabalho no Rio de Janeiro. Todavia
Macabéia vai se tornando grandiosa e viva quando questiona sua existência: “o corte
grotesco, humano, demasiado humano, tão humano que dói, expôs sem complacência as
lesões que a moça alagoana trazia no corpo e na alma” (Portela 1984, p. 11-12).
Macabéia indaga, pergunta, questiona os sentidos da sua existência, como Denise,
Bia, Nara e as mães das crianças fazem nas entrevistas. Pensamos que o rigor da ciência se
encontra na sua capacidade de perguntar, mais do que fornecer certezas e respostas. Por
estas razões, em nosso texto aparecem flashes de poesias, pois conforme escreve Ramalho,
a linguagem poética é o lugar por excelência da pergunta:
“Porque o que ensina a poesia é que a palavra nunca é ‘certa’, é
sempre, por ser ‘rigorosa’, perturbadora - ou desassossegante, se
quisermos voltar a Pessoa. É na linguagem do desassossego da poesia
que pode buscar-se, paradoxalmente, o rigor da ciência. À ciência
exigimos a capacidade de jamais deixar de perguntar, mesmo pelo que
parece óbvio, ou pelo dado que, por mais de adquirido, se tornou
matéria de fé” (2001, p. 108).
No processo de escrita da tese, as indagações perturbaram nossas certezas. Algumas
delas estão mais expostas nesta parte final. Tendo em vista o retorno ao debate sobre
financiamento de creches domiciliares a baixo custo, agora com a intervenção do Banco
Mundial nos países do terceiro mundo (Penn, 2002; Rosemberg, 2002), buscamos
relacionar esta experiência com uma parte da bibliografia brasileira e de países como
Colômbia, Chile, Venezuela, Estados Unidos, França e Portugal.
No Brasil e em outros países do terceiro mundo predominam experiências nas quais
as trabalhadoras estão vinculadas a um tipo de programa emergencial financiado por
órgãos internacionais3 e pelo Estado, de forma parcial.
As subvenções parciais do Estado e de instituições internacionais implicam em
poucos recursos para as populações mais pobres, assim como reforçam uma tendência ao
não profissionalismo das trabalhadoras das creches domiciliares. Como salienta Franco
(1988), o Estado passa a contar com a comunidade na forma de prestação de serviços e
diminui seu ônus de investimento na educação infantil.
3
Segundo Rosemberg (2002), a partir dos anos de 1970 estas influências ocorrem principalmente pela
UNESCO e UNICEF e, a partir dos anos de 1990, a maior influência provém do Banco Mundial.
249
Em países como França, Portugal e Estados Unidos, as trabalhadoras em creches
domiciliares recebem uma remuneração e há negociações que norteiam as relações entre
elas e o Estado. De forma geral, predomina nesses países o atendimento das crianças
menores de três anos nessas creches.
Em Portugal e nos Estados Unidos há mulheres que trabalham na ilegalidade, seja
porque não querem pagar impostos (Nelson, 1990), ou porque passaram da idade máxima
para realizar esse trabalho, como no caso das amas ilegais do município de Guimarães. Nos
Estados Unidos, mesmo com um sistema regulador dos Estados Americanos, falta controle
público, pois existem profissionais clandestinas e a relação entre elas e esse sistema é
opcional. Nelson observa que a ausência de políticas e a tendência de privatizar o cuidado
das crianças resultou num aumento das creches domiciliares nesse país.
Até a finalização da tese, não encontramos nenhum tipo de levantamento que
permitisse traçar um panorama da situação brasileira, no que diz respeito a espaços não formais de educação infantil. O caso do bairro Saudade nos coloca um desafio: há creches
domiciliares e tomadoras de conta de crianças preenchendo as lacunas deixadas pelo
Estado no que diz respeito ao cuidado/educação das crianças pequenas dos meios
populares. A partir daqui temos um longo caminho a percorrer: Criticar estes espaços é
suficiente? Defender a educação infantil pública e dizer não às creches domiciliares já
existentes é uma resposta viável? Devemos silenciar, ou procurar soluções frente à
existência desses espaços? Como irão reagir as populações que procuram as casas das
tomadoras de conta?
A creche de Denise é um caso isolado, do ponto de vista do apoio e subvenções
recebidas de órgãos governamentais e organismos estrangeiros. Não investigamos uma
creche domiciliar inserida em um programa, cujo objetivo é o deslocamento da ação do
Estado para grupos familiares. Por outro lado, o estudo insere-se em um contexto social,
político e econômico que não podemos ignorar.
No final do século XX, o papel do Banco Mundial (Penn, 2002; Rosemberg, 2002)
ganha importância crescente no campo da educação infantil. Os discursos dos organismos
internacionais defendem os modelos hegemônicos de políticas, de programas e projetos
para as crianças pobres baseados na redução dos custos com a educação infantil.
Novamente ouvimos falar de experiências que reduzem investimentos e centralizam as
responsabilidades nas famílias, especialmente nos serviços com baixa remuneração e
qualificação das trabalhadoras. Nesse panorama, possivelmente surjam programas como os
250
dos anos de 1970, nos quais as creches domiciliares eram a solução para resolver as
lacunas do Estado, no que diz respeito à universalização do financiamento de creches e
pré-escolas para as crianças brasileiras.
Considerando as particularidades da creche de Denise, indagamo-nos se o uso da
expressão creche domiciliar é coerente, em um contexto em que os moradores reconhecem
estes espaços como casas das tomadoras de conta de crianças. Contudo, no
desenvolvimento do estudo, não percebemos como um problema o uso concomitante das
duas terminologias: a dos moradores do bairro Saudade e a da bibliografia consultada. Isto
se confirma, principalmente porque encontramos aproximações entre as dimensões
analisadas nos capítulos da tese e na literatura consultada, as quais comentaremos
brevemente.
Sobre as trabalhadoras das creches domiciliares há cruzamentos com nosso estudo,
no que diz respeito à ausência de uma identidade profissional, na medida em que elas não
se consideram profissionais, mas boas mães, podendo, inclusive superar as mães de
origem. Nesse sentido, as trabalhadoras representam as mães das crianças com
ambigüidades, num contexto de valores que ainda vê com desconfiança as mulheres que
trabalham fora do lar. As tensões são quase sempre associadas ao fato de que as crecheiras
consideram que criam as crianças das outras mulheres, pois estas se acostumam ao novo
lar e as reconhecem como mães, tias ou avós. Geralmente as trabalhadoras querem ganhar
dinheiro e ficar em tempo integral com os/as filhos/as e conciliar as atividades domésticas
com o trabalho, uma vez que têm uma escolaridade baixa. Também predomina nos bairros
populares a falta de condições de recreação, como praças ou parques infantis para as
crianças, bem como uma limitação das crecheiras para atividades de lazer e
relacionamentos sociais fora do círculo familiar (Bonamigo, 1984; Centro de Cultura Luiz
Freire, 1994; Horn e Dornelles, 1997).
Em revisão de literatura nos Estados Unidos para uma avaliação do Programa de
Lares de Cuidado Diário na Venezuela, Halpern et al. (1978) observa que as mulheres
desejam oferecer às crianças um ambiente rico e estimulante, porém não têm uma infraestrutura de trabalho adequada e trabalham demasiado. Algumas delas se descrevem como
pessoas que gostam de crianças e que realizam uma atividade social útil; para as mais
jovens, esse é um trabalho transitório que une o mundo da casa ao mundo do trabalho.
O emprego de mão-de-obra infanto-juvenil, geralmente de parentes ou outras
pessoas pagas, também foi encontrado nas referências consultadas. Nas interpretações que
251
as crecheiras fazem sobre as relações com as crianças, aparecem questões similares às que
encontramos, como gostar de crianças, ter paciência e oferecer carinho (Horn & Dornelles,
1997).
O uso de punições e castigos também é enfatizado, uma vez que as crecheiras
percebem as crianças como passivas no ato de aprender, numa relação em que os adultos
dizem o que é certo ou errado, bom ou mal, bonito ou feio. A aprendizagem é vista como
imitação e repetição, o que impede uma intervenção pedagógica junto às crianças, ou a
problematização e organização de um ambiente mais desafiador (Horn & Dornelles, 1997;
Bonamigo, 1984).
No que se refere às preferências e expectativas dos familiares, encontramos
aproximações na literatura quanto à flexibilidade de horários, à preferência pelos pequenos
grupos e pelas aprendizagens informais semelhantes às experiências vividas nas famílias, à
acolhida de irmãos e irmãs, à interação entre idades diferentes, pelo que os mais velhos
convivem, ensinam e estimulam os mais novos, bem como à aceitação das crianças
portadoras de necessidades especiais, ou doentes (Bonamigo, 1984; Ferrier, 1988; Halpern
et al., 1978; Nelson, 1990).
Parece predominar uma preferência entre os familiares dos meios populares pelas
creches domiciliares para as crianças menores de três anos, pois o valor atribuído à creche
convencional é que ela se aproxima da escola e prepara para a alfabetização (Bonamigo,
1984).
Como as crianças permanecem com a mesma trabalhadora alguns anos antes da
entrada na escola obrigatória, isto possibilita laços mais próximos entre as trabalhadoras e
os familiares, geralmente com o mesmo nível sócio-cultural (Bloch e Buisson, 1998;
Halpern et al., 1978; de Singly e Maunaye, 1996; Nelson, 1990). A opção por uma creche
domiciliar perto do local onde residem as famílias das crianças também é decorrente da
facilidade de contato com as trabalhadoras. Assim ocorre uma forma mais pessoal de
atendimento, pela qual os familiares se informam de como suas crianças são cuidadas
(Bonamigo, 1984, Halpern et al., 1978; Nelson, 1990).
Quando ocorrem tensões entre as trabalhadoras e os familiares, estas são quase
sempre decorrentes da sobreposição de responsabilidades, dos dilemas enfrentados com
os/as filhos/as dos outros e com os/as próprios/as filhos/as (Halpern et al., 1978; Nelson,
1990).
252
Os familiares geralmente têm expectativas de que as trabalhadoras utilizem normas
da vida familiar no cotidiano das crianças (Nelson, 1990); nas camadas populares
brasileiras, valorizam o castigo, a disciplina ou a conversa explicando às crianças porque
elas não devem fazer certas coisas (Bonamigo, 1984).
Em todas as experiências consultadas predomina um cotidiano sem rotinas
definidas, a não ser pelos horários de sono e alimentação. A higiene e a troca dos bebês são
feitas conforme a necessidade das crianças e nestas atividades é comum o auxílio das
crianças mais velhas. A televisão é um elemento que foi citado como parte do cotidiano
das creches domiciliares (Bonamigo, 1984; Halpern et al., 1978). Sem condições de tempo
e de espaços para as crianças, as saídas das creches são escassas. Bonamigo (1984) chama
a atenção sobre o altíssimo percentual de crianças que assistem televisão (85%) sem
alguém que discuta com elas os programas, situação que também encontramos na creche
de Denise. O uso indiscriminado da televisão é visto pela autora como um recurso para
ocupar as crianças, visto que as trabalhadoras estão quase sempre sobrecarregadas de
trabalho.
Considerando as aproximações entre a literatura sobre creches domiciliares e a
creche de Denise, cabe agora estabelecer as distinções. É fundamental considerarmos que
esta é uma iniciativa que faz parte de uma rede paralela de atendimento à pequena infância
criada por moradores de um local, à margem das políticas públicas.
A maior parte das/os autoras/es que analisam as creches domiciliares no contexto
das políticas públicas discorda dos programas que vão buscar apoio na comunidade
contribuindo para uma maior isenção do Estado, no que diz respeito ao compromisso e
investimento com cuidado/educação. Concordamos com estas críticas, pois entendemos
que essas são as alternativas historicamente propostas para as populações mais pobres. São
justamente as crianças das camadas populares, que estão em locais sem acesso a jogos,
materiais de aprendizagem, brinquedos, praças ou áreas de lazer, que têm as menores
condições de acesso a espaços públicos e gratuitos.
Ao contrário de algumas críticas apontadas na bibliografia brasileira, não foi
possível afirmar que Denise não apresenta um conhecimento mínimo sobre aprendizagem,
saúde, nutrição e lazer das crianças (Bonamigo, 1984; Horn & Dornelles, 1997; Franco,
1988). Nos Estados Unidos, Nelson (1990) aponta que muitas mulheres desempenham
estes serviços de forma satisfatória e respeitam os anseios das crianças e seus pais.
253
De um lado, a creche de Denise parece ser uma iniciativa decorrente do abandono e
da descontinuidade no cuidado/educação das crianças no município de São Gonçalo. De
outro, este é um modelo criativo e cultural, no qual uma mulher proporciona um ambiente
de extensão familiar. Esta provavelmente foi a solução encontrada pelas mulheres frente às
rupturas das redes de parentesco causadas pelas novas organizações do mundo do trabalho.
No capítulo sobre as famílias comentamos sobre a circulação de crianças e de
vizinhos mais jovens na casa de Denise4. Entendemos que estas são práticas que
demonstram a existência de outras lógicas nas organizações familiares das camadas
populares. Fonseca (1993) investigou a circulação de crianças nas vilas de Porto Alegre e,
embora tenha encontrado algumas diferenciações nos tipos de relações e trocas
estabelecidas entre as mães de origem e as mães substitutas, há aproximações com nosso
estudo. Quando a mãe substituta não mantém laços de parentesco com a família da criança
(Fonseca, 1993) o surgimento de conflitos é maior, na medida em que a outra mãe sente
que é explorada. Encontramos estes sentimentos em Denise que, mesmo cobrando em
dinheiro pelos serviços prestados aos familiares, experimenta insatisfações, uma vez que
seu tempo de convivência com as crianças é superior ao tempo vivido pelas mães de
origem.
Vimos como as trajetórias de vida das mães e de Denise se relacionam com os
sentidos que elas atribuem a esse trabalho. Mas afinal, o que aproxima e o que distingue as
trajetórias das mães e de Denise e os sentidos sobre o trabalho de tomar conta de crianças?
Como esses significados interferem no cotidiano da creche?
Em primeiro lugar, viver em um bairro considerado barra pesada produz sentidos e
expectativas de que a creche domiciliar ofereça proteção às crianças. Lembramos que
Isadora relacionou a atividade de tomar conta de crianças com a função do olheiro, aquele
que observa de um lugar mais alto do bairro as entradas e saídas dos policiais e das outras
pessoas. Não é possível ignorar esse contexto, no qual a violência imprime uma marca
social e cultural sobre as vidas humanas.
Estas marcas encontramos na linguagem carregada de expressões metafóricas
quando as pessoas se referiam ao local e às suas vidas. Quando Denise falou que o mal está
aqui, somos prisioneiros do próprio lar, lembramos do que escreve Portela no prefácio do
4
Utilizamos o conceito de Fonseca (1993) que entende a circulação de crianças como um fenômeno que
caracteriza a alta incidência de crianças que passam parte da sua infância e juventude fora das casas dos
genitores, nas casas de outras famílias. Entretanto, no caso da creche de Denise, as crianças retornam aos
locais de origem, ainda que freqüentem em tempo superior a creche domiciliar.
254
livro de Clarice Lispector, anteriormente referido. Interpretamos as lesões das mulheres
como marcas de uma existência cercada de dificuldades que tensionam as suas vidas, as
vidas dos seus companheiros e das crianças. Como poderíamos interpretar os significados,
as expectativas e o cotidiano da creche, sem considerar essas marcas?
Foi dito que é importante proteger as crianças, cuidá-las, brincar com elas.
Provavelmente a ausência de tranqüilidade no bairro faz com que o desejo de proteção e
sobrevivência se sobreponha a qualquer intenção pedagógica. As mães procuram conhecer
a vida pessoal da tomadora de conta, sua conduta e hábitos familiares. A confiança é um
indicador importante nessa relação.
A violência e insegurança são marcas nas vidas das mulheres que desejam investir
num futuro melhor para os/as filhos/as, no sentido de evitar a convivência com o mundo do
crime. Matricular uma criança na classe pré-escolar ou de alfabetização em meio período e
confiar esta criança a Denise por mais oito ou nove horas, significa um investimento. Este
se constitui, contudo, em um investimento diferente daquele das famílias das camadas
médias, pois a maior preocupação das mães de origem é afastar as crianças do tráfico, seja
pelos cuidados da tomadora de conta, seja pelas expectativas de escolarização que podem
favorecer o acesso a um trabalho remunerado.
No capítulo anterior citamos o estudo de Thin (1998); em uma perspectiva
semelhante, Fonseca observa que nas famílias dos meios populares é importante assegurar
que certas necessidades objetivas sejam atendidas, mais do que manter uma relação
emocional saudável com os filhos, o que é típico das classes médias:
“As classes médias atribuem à criança uma série de fases de
desenvolvimento emocional e intelectual que exigem, cada uma,
cuidados especialmente adaptados e ministrados por adultos
específicos. A escola e a família nuclear desempenham os papéis
principais de socialização, onde a criança é metida numa estratégia
familiar de ascensão sócio-econômica a longo termo. Entre meus
informantes nunca ouvi preocupação ou fórmulas mágicas ligadas ao
desenvolvimento emocional ou aproveitamento escolar” (Fonseca,
1993, p. 119).
Lembramos que Isadora relatou a preocupação das mulheres do bairro com o
descaminho das crianças, que significa a entrada no mundo do crime. Por isso, um
emprego em uma loja de computadores, ou em um escritório, para algumas mães
255
representa status e distanciamento do mundo do tráfico: qualquer coisa que elas chamam
de serviço fino, isso é ser doutor (Isadora, 03/07/2001).
É nesse universo que se circunscrevem tanto as relações de solidariedade quanto as
desavenças entre os moradores. Alguns atos de solidariedade entre os vizinhos foram
destacados nas entrevistas e Isadora acrescentou que nós somos assim, porque não temos
proteção de fora. Entretanto, vimos que a solidariedade não garante uma relação
harmoniosa, ocorrendo disputas entre vizinhos, desconfiança e fofocas.
Para dar conta da grandeza de questões que circundam as trajetórias de vida, os
sentidos do trabalho, as expectativas, as ambigüidades e as práticas cotidianas, não
limitamos nossas análises às relações de trabalho. Procuramos articular as reflexões sobre
trabalho informal, clandestino e domiciliar com gênero, famílias dos meios populares,
infância e cultura. Compreendemos estes eixos teóricos como categorias móveis e
relacionais, o que propiciou uma compreensão sobre força e vitimização, como expressões
das vidas das mulheres deste estudo.
A forma como construímos o texto pode ser representada metaforicamente como
uma espiral, uma vez que fomos retomando questões e reconstituindo as interpretações,
pois entendemos o conhecimento científico como um interrogar-se constante.
Além da existência circunscrita a um bairro no qual ocorre o tráfico de drogas,
Denise, Bia, Nara e as famílias das crianças têm outros traços em comum, como: a
pobreza, caracterizada pela insuficiência de recursos econômicos, sociais e educacionais; a
tradição de moradia, que consiste no aproveitamento de lotes para a construção de casas
que abrigam pessoas ligadas por laços de parentesco no mesmo quintal; o trabalho precoce
desde a primeira infância, com a participação das crianças nos serviços domésticos ou na
educação dos irmãos mais novos; a interrupção da escolaridade quando as crianças ou
jovens trabalham para contribuir com a renda familiar.
A atividade profissional dos familiares das crianças também os aproxima. As
mulheres trabalham para aumentar a renda familiar, geralmente em serviços domésticos e
com longas jornadas de trabalho, que reduzem o tempo de convívio familiar. Os cônjuges
ou estão desempregados, ou encontram-se em subempregos, geralmente na rede informal.
Encontramos igualmente dimensões mais individuais que aproximam estas pessoas
e suas trajetórias, tais como as histórias das famílias de origem que se cruzam, o
sofrimento, as rupturas, o alcoolismo dos homens e a violência contra a mulher e as
crianças, em alguns casos.
256
Denise e as mães das crianças trabalham e se responsabilizam, parcial ou
inteiramente, pela sobrevivência familiar, pela criação dos/as filhos/as e pelos serviços
domésticos. Elas enfrentam limitações cotidianas geradas pelas condições materiais de
existência, o que interfere no simbólico, ou nas formas como elas significam suas vidas e a
atividade da creche. É assim que o cansaço decorrente das longas jornadas de trabalho vai
se misturando com os sentimentos de culpa pela menor atenção oferecida aos filhos.
Mulheres mais velhas, como Elisa e Marta, com experiências de alcoolismo na família,
sofrem mais. Já Juçara sente alívio quando entrega os filhos para Denise, pois considera
importante para sua liberdade o trabalho fora de casa. As subjetividades das mulheres
refletem a inserção de classe e gênero em uma vida marcada por dificuldades, porém entre
sonhos e desejos de dias melhores.
Denise sofre, mas também experimenta sentimentos como felicidade e
descontração, assim como sonha com um futuro melhor para ela e suas filhas. As outras
mães manifestam, nos discursos sobre casamento e trabalho, um desejo de igualdade entre
homens e mulheres. No cotidiano, contudo vivem uma profunda desigualdade, uma vez
que acumulam as funções de donas de casa e mantenedoras das famílias. Sonho e realidade
se fundem nos sentidos e nas formas de existência.
Por outro lado, Denise apresenta dimensões simbólicas de sofrimento que a
distinguem das mães das crianças. Ela faz parte de uma família monoparental e exerce um
trabalho que não é considerado legal. O lugar social que Denise ocupa a diferencia das
mães das crianças.
Poderíamos dizer que ela vive no limite entre a sobrevivência e as modalidades que
encontrou para ficar mais perto das filhas e sustentar a família. Luta bravamente, e
consideramos um paradoxo os sentidos que ela própria atribui a sua existência, sentidos
que expressam vitimização e força, como faces de uma mesma trajetória de vida.
É tenso para todas elas viverem a maternidade e o trabalho dentro e fora de casa.
Mas para Denise as tensões se refletem na sobrecarga de trabalho com as crianças de
outras mulheres, nos sentimentos de ser a outra, aquela que cria os filhos das vizinhas sem,
contudo, receber um retorno no futuro. Para ela tal relação se torna mais tensa na medida
em que o grosso das responsabilidades do cuidado/educação das crianças ocupa seu tempo
de trabalho e seu tempo de viver outras experiências.
O fato de as crianças chamarem Denise de mãe é tolerado pelas mães de origem e
não é discutido no interior da creche. De nosso ponto de vista, entre as mães as tensões se
257
diluem em outros sentimentos, como culpa e ciúme. Elas parecem compreender, por
exemplo, que aquela é uma relação temporária que pode ser interrompida quando os
cônjuges conseguem trabalho e remuneração suficiente para o sustento da família, ou
quando as crianças crescem e vão para a escola formal. A frase ela faz mais do que tomar
conta de crianças, ela praticamente cria as crianças demonstra o reconhecimento das
mães de origem quanto ao papel de Denise.
É certo que as condições objetivas de vida interferem nos significados mas, além
disso, observamos uma complexidade de fatores que explicam porque algumas preferem
deixar as crianças com Denise, alegando que ela cuida melhor das crianças, ou que tem
mais paciência. Por que Juçara prefere trabalhar e ganhar pouco, a ficar em casa com os
filhos? Ou por que Marta preferiu deixar a filha do primeiro casamento vivendo com sua
irmã, quando casou outra vez? Novamente referenciamos Fonseca (1993, p. 127-128),
quando explica que sem o conceito de fases de desenvolvimento emocional da criança, em
alguns grupos das camadas populares pouca diferença faz a presença da mãe biológica em
termos de bem-estar e sucesso dos filhos.
Os sentimentos de culpa e ciúme revelam dramas de mães que trabalham mais de
oito horas diárias e acumulam uma jornada de trabalho doméstico sem ajuda dos cônjuges.
A perspectiva do papel feminino nas famílias fica mais dilacerada, assim como há um
modelo de família nuclear, um pouco controverso, que parece influenciar os significados e
as expectativas das mulheres.
Dizemos que existe um modelo de família nuclear controverso porque os homens
não são os provedores principais, pelo menos em três casos. Todas as mulheres, com
exceção de Denise, continuam casadas mesmo com dificuldades, como nos casos de
Juçara, Elisa e Marta.
Provavelmente elas queiram garantir a união com os cônjuges e manter a unidade
familiar, pois em algumas trajetórias de vida vimos que quando os homens constituem
nova família gradualmente perdem o contato com os filhos. Também vimos que a presença
do homem em casa, como chefe e provedor, ainda que simbólica, é importante nos meios
populares, o que para Sarti (1995, p.136) se explica por uma análise da autoridade na
família pobre e da concepção do trabalho entre os pobres urbanos. Como comentamos
anteriormente, não somente o controle dos recursos internos à família fundamenta a
autoridade do homem, mas seu papel de mediação entre a família e o mundo externo, ou de
guardião da respeitabilidade familiar (Sarti, 1995, p. 138).
258
A divisão do trabalho doméstico por sexo parece contraditória com a situação
sócio-econômica das famílias, nas quais predominam mulheres com empregos e salários
mais estáveis que os cônjuges. Como explicar as razões que fazem as mulheres persistirem
com uma representação simbólica de família, pela qual o homem é o chefe e o provedor,
quando na realidade elas é que cumprem estes papéis, além do acúmulo dos serviços
domésticos? Como dar conta das fragilidades e forças encontradas nos discursos sobre os
cotidianos das mulheres? O que, afinal, pode explicar este emaranhado de relações e
sentimentos ambivalentes nos sentidos e modos de existência dessas pessoas?
Sarti (1995, p. 142-144) explica uma parte das nossas indagações. É o valor moral
dado pelo papel familiar de provedor o que dá sentido ao trabalho nos meios urbanos. É
este sentido de trabalhar para a família e não somente para si que, segundo a autora, pode
explicar a valorização do trabalho doméstico pela mulher. Igualmente o bom trabalhador é
o bom provedor, o que também constatamos em nosso estudo quando as mulheres
consideram como “bom marido” aquele que trabalha, não joga e não bebe.
Um outro aspecto apontado por Sarti em consonância com nossas análises diz
respeito à lógica da casa que domina a concepção de trabalho com uma divisão de gênero.
É um ethos feminino que rege as relações das mulheres com o trabalho. Nos casos de
Juçara e Marta percebemos que as duas justificam o trabalho para obtenção de um extra na
família, como a construção dos cômodos da casa ou a compra de roupas, brinquedos e
outros artigos para os/as filhos/as, ainda que a primeira afirme trabalhar porque necessita
viver outras relações além das familiares.
Por outro lado, há uma incidência de mulheres chefes de família (caso de Denise)
ou de baixos salários masculinos (casos de Marta, Elisa e Íris). Nesses casos, o extra
feminino confunde-se com o fundamental (Sarti, 1995, p.144). Com exceção de Juçara, as
mães das crianças não mantêm uma relação de prazer com o trabalho, muito pelo contrário.
Como escreve Sarti (1995, p.145) “a baixa qualificação, baixa remuneração e sobrecarga
de trabalho para as trabalhadoras pobres contribuem para tornar o trabalho remunerado
muito pouco gratificante (...)”.
Vimos que todas elas são críticas nos discursos, mas na prática não conseguem
romper com a divisão sexual do trabalho e com a sobrecarga de responsabilidades. Por
outro lado, não são apenas vítimas, subordinadas e passivas nas relações com os cônjuges.
Apresentam ambigüidades nos discursos que expressam vitimização e força, passividade e
resistência. Como explicar os discursos sobre os corpos femininos quase sempre
259
associados à dor e ao sofrimento? Vimos que é inviável analisar as subjetividades e
ambigüidades com conceituações cristalizadas de gênero, trabalho e família dos meios
populares. Como salientam Castro & Lavinas (1992, p. 239), as relações sociais entre os
sexos, como quaisquer relações sociais, exprimem-se nas práticas concretas, tanto no
domínio do simbólico como do material, produzindo subordinações, resistências e
cumplicidades.
Almeida (1987) pesquisou a migração feminina do campo para a cidade, em um
bairro popular nas proximidades de Lisboa, e encontrou traços semelhantes ao de nosso
estudo. A estranheza da autora é expressa no texto pelo contato com um discurso
vitimizado e fatalista que se contrapõe a um fazer feminino protagonista e despachado.
Estes traços também encontramos nos discursos de Denise e de algumas mães sobre o
universo feminino, quando seus papéis nas famílias e nas relações do cotidiano
demonstram força e coragem.
Almeida indaga se as mulheres são criaturas dependentes e passivas nos discursos,
ou são as mágicas da ação. Conclui que as mulheres são as duas coisas, numa relação de
cumplicidade entre maneiras de fazer e maneiras de dizer.
Tudo isto tem implicações na vida diária da creche domiciliar. As crianças, embora
portadoras de culturas que interferem no cotidiano da creche, sofrem a inculcação de
normas, valores e comportamentos do grupo sócio-cultural de origem. Observamos uma
profunda divisão entre meninos e meninas nas punições e castigos, nas atividades de
higiene e ajuda e nas brincadeiras. As diferenças de papéis sexuais fazem parte do processo
de socialização das crianças e nada melhor do que o cotidiano para demonstrar que os
significados do que é masculino e feminino são uma construção sócio-cultural. Os modos
de socialização na creche de Denise refletem o universo familiar das crianças e dela
própria. As distinções entre coisas de menino e coisas de menina parecem se entrelaçar
com a concepção de família nuclear valorizada por Denise, na qual o homem é o provedor
e a mulher deve ser mãe e dona de casa.
Por outro lado, encontramos mudanças de comportamentos entre as crianças com
relação às expectativas dos adultos, assim como observamos traços masculinos nas ações e
discursos das mulheres, mesmo quando elas se definem como mães e esposas zelosas.
Como enfatiza Connell (1995, p.189), se a masculinidade significasse simplesmente as
características dos homens, não poderíamos falar da feminilidade nos homens ou da
260
masculinidade nas mulheres (exceto como desvio) e deixaríamos de compreender a
dinâmica de gênero, que é sempre uma estrutura contraditória.
O cotidiano se distancia das rotinas mais estruturadas e de um planejamento
pedagógico. Denise faz com as crianças o que faz com suas filhas e isto é diferente do que
ocorre em uma creche coletiva. Lembramos que as trabalhadoras de creches domiciliares
entrevistadas no estudo de Nelson (1990) valorizam coisas como assar um bolo, caminhar
e falar sobre as coisas da rua, observar os animais, propiciar momentos de diversão nos
quais as crianças possam ser como são, sem preocupação com planejar cada minuto. Um
bom cuidado para elas é uma atmosfera caseira onde se possa brincar e jogar.
Denise explicou que a relação com os familiares vai além, assim como algumas
mães disseram que formam com Denise uma família. Vimos como isto se relaciona com o
contexto local, na medida em que Denise representa uma pessoa de confiança que protege
as crianças. Mas a confiança em Denise como alguém da família também expressa a
expectativa de que ela ofereça cuidado/educação da forma que as mães os oferecem aos
filhos/as, o que denominamos, nos capítulos anteriores, de perspectiva familiarista de
educação. Esta educação familiarista estrutura-se em torno de objetivos que emergem das
necessidades de sobrevivência dos adultos e crianças.
Para que isto aconteça efetivamente, as mães delegam a criação dos/as filhos/as a
Denise, o que produz sentimentos controversos como alívio e culpa, ciúme e satisfação.
Por outro lado, questionamos se Denise é uma mulher altruísta quando tolera
atrasos de pagamentos dos familiares, visita as crianças doentes, acompanha algumas ao
Posto de Saúde, encarrega-se de marcar exames médicos e até se mobiliza para conseguir
uma colocação para os pais desempregados. Dito de outra forma, esta relação que vai além
é somente uma extensão das redes de parentesco, baseada na afetividade?
Pensamos que há trocas, solidariedade e afetos, mas é preciso considerar que na
relação entre Denise e as mães das crianças há um acordo comercial, que prevê um
contrato com pagamentos mensais. Denise permanece com as crianças em tempo superior
ao das mães de origem. Ela é uma babá dos meios populares, uma mãe substituta, ou mais
do que isso? Não temos respostas fechadas; consideramos que a procura pelos serviços de
tomar conta de crianças constitui uma possibilidade ou arranjo encontrado pelas mulheres,
para garantir as condições de existência e sobrevivência das crianças em um ambiente
próximo ao das famílias de origem.
261
Do lado das mães acontece a delegação da criação dos/as filhos/a para uma outra
mulher, devido à ausência de outras possibilidades de cuidado/educação no local e porque
essas mães necessitam trabalhar e aumentar a renda familiar. A delegação é vivida com
sentimentos controversos, principalmente nos casos de doença, o que gera revolta e
descontentamento em Denise. É justamente nos casos de delegação de crianças doentes
que Denise esbarra nas contradições da função, pois ela sente que faz mais do que as mães
de origem.
Do lado de Denise ocorre a terceirização da função materna, ou seja, ela se propõe
a terceirizar o que faz com suas filhas para com outras crianças do bairro, como forma de
sobrevivência. Não existe um empregador que faça essa mediação na relação entre ela e as
mães. Denise não está vinculada a nenhuma instituição pública ou privada encarregada de
garantir a sobrevivência das crianças num local sem creches e pré-escolas públicas. Nesse
sentido, ela terceiriza o trabalho de tomar conta de crianças para sobreviver e sustentar sua
família.
Sobre a terceirização das funções domésticas, Haicault5 (1996, p. 110-120) observa
um movimento de terceirização da produção de bens e serviços, em que misturam-se as
fronteiras entre a esfera privada e a esfera pública. Observa essa autora que as normas do
tempo industrial hoje ocupam os espaços domésticos e o tempo livre das crianças. Em
função disso ocorre uma degradação do tempo em coisa, em mercadoria que se pode
vender ou trocar.
Embora a autora trate de um universo diferente do caso investigado6, entendemos
que na creche de Denise acontece um movimento de terceirização das atividades
domésticas. De certa forma, isto também tem implicações no tempo livre das crianças e,
embora as mães tenham dito que na creche domiciliar as rotinas não são tão rígidas, não
podemos esquecer que outrora as crianças do bairro Saudade ficavam mais livres pelas
ruas; hoje estão apartadas da rua, da cidade e, assim, desprovidas de outras formas de
socialização.
Tudo isto é vivido com nuances diferentes entre Denise e as mães. Com exceção de
Juçara, as outras mães vivem a delegação com culpa, embora também aceitem que seus
filhos/as se refiram a Denise como a outra mãe porque, de certa forma, sabem que essa é
5
HAICAULT, Monique. La tertiarisation des activités parascolaires. In: KAUFMANN, Jean-Claude. Faire
ou Faire-Faire? Famille et services. Presses Universitaires de Rennes: 1996.
262
uma relação temporária. Com relação às mães das crianças, Denise expressa sentimentos
de culpabilização, porque sente que faz mais pelas crianças e que isto um dia terá um fim.
O reconhecimento pelo seu esforço e dedicação provavelmente se perderá no tempo e no
espaço. Denise fica sobrecarregada de atividades e esta relação que vai além parece não ter
um fim, pois algumas crianças circulam na sua casa inclusive nos finais de semana. É por
isto que ela também se culpa quando percebe que sobra pouco tempo para conviver com as
filhas.
As mães e Denise confluem na expectativa de que a creche domiciliar seja um
espaço que propicie proteção, carinho, alimentação, saúde, resolução de emergências ou
acompanhamento das crianças maiores às classes pré-escolares ou classes de alfabetização.
A disponibilidade de tempo e a flexibilidade de horários viabilizam a realização de tantas
demandas. Nesse aspecto não há tensões e os acordos parecem bem resolvidos entre elas,
exceto quando as crianças estão doentes. Quando acontecem tensões que resultam na
suspensão dos acordos, a origem delas está nas divergências quanto à educação das
crianças entre Denise e os familiares.
Quando afirmamos que ocorre uma perspectiva familiarista de educação na creche
de Denise é porque as mães querem que seus filhos/as fiquem num ambiente mais próximo
ao das famílias de origem, com uma pessoa de confiança com os mesmos hábitos e valores,
porque querem que as crianças convivam em um ambiente sem rotinas muito rígidas.
Porém, não nos pareceu que as mães queiram uma outra família para os/as filhos/as, uma
vez que a delegação e terceirização da criação têm uma temporalidade.
Caracterizamos o trabalho de Denise como informal, instável, clandestino e ilegal.
Por este trabalho estar situado na rede da informalidade, do ponto de vista das relações de
Denise com o Estado, na forma de acesso aos direitos do trabalho, poderíamos afirmar que
não consegue exercer sua cidadania. Ela não tem direitos sociais no que diz respeito ao
trabalho que realiza, assim como não obtém reconhecimento e amparo da legislação.
As mães das crianças não têm acesso aos serviços públicos como educação e
cuidado dos/as filhos/as e algumas se situam na rede de trabalho informal. São todas elas
mulheres impossibilitadas de exercer sua cidadania? Preferimos não assumir um
posicionamento fechado, porque do ponto de vista das relações destas mulheres com o
Estado e como cidadãs, ainda há muitas dificuldades para superar. Mas, por outro lado, não
6
Esta autora analisa as atividades de tempo livre de crianças francesas do primário nas quartas-feiras e
sábados, salientando que as crianças perdem o sentido do tempo não orientado e livre que lhes é confiscado
263
podemos esquecer que no momento em que elas criam estratégias de educação dos/as
filhos/as e de sobrevivência no cotidiano, estão, de certa forma, exercendo sua cidadania.
No que diz respeito à creche de Denise; vê-se uma organização dos moradores no
sentido de solucionar a ausência do Estado no cuidado/educação das crianças. Está aí mais
um motivo pelo qual não podemos tratar os grupos envolvidos somente como excluídos,
uma vez que os atores sociais se organizam, independente dos atrasos e impasses das
políticas públicas.
Henriques & Pinto (2002) questionam se as mulheres que ocupam somente a esfera
privada e que cuidam da casa e dos/as filhos/as não exercem cidadania. Percebe que assim
como as relações que se passam na esfera privada não são percebidas como relações de
cidadania, também não há uma noção sobre a forma como o Estado estrutura não apenas os
setores da vida pública, mas igualmente os da vida privada.
A atividade aqui analisada é uma atividade social e comunitária e, embora não
legalizada, é legitimada por grupos da população. Não sendo uma proposta de educação
infantil formal, a creche domiciliar estrutura-se principalmente para atender às demandas
de trabalho e às necessidades dos familiares das crianças e de Denise, que preferiu
trabalhar em casa e cuidar das filhas. Este parece um aspecto fundamental para
compreendermos os significados do trabalho de tomar conta de crianças.
Pensamos que é necessário considerar os contextos sociais, os anseios e
expectativas dos grupos sem acesso aos serviços de cuidado/educação, na elaboração das
políticas públicas. As mães preferem espaços menores com um número reduzido de
crianças, sem um tempo excessivamente planejado e programado. Elas valorizam o
relacionamento mais íntimo entre Denise e as crianças, assim como desejam um cuidado
amoroso, atenção e contato físico. Estas questões merecem reflexão, pois constatamos que
os familiares são capazes de refletir sobre o cuidado/educação das crianças.
Para finalizar, nosso percurso foi o de contemplar este trabalho e, sem idealizações
ou romantismos examinar seus riscos, mas também as suas possibilidades. Nesse
movimento pensamos que contribuímos com o campo da educação infantil, pois nem
sempre priorizamos nas pesquisas os atores sociais à margem das políticas públicas.
O estudo de caso indica que o que existe e funciona, ainda que na precariedade, não
pode mais ser ignorado. O crescimento de espaços educativos privados para grupos das
camadas mais pobres é resultante de uma pressão e demanda da população. Talvez seja o
pelos tempos programados, pela obrigação de fazer algo, segundo os dogmas da pedagogia dominante.
264
momento de iniciar um levantamento nacional sobre espaços não formais de
cuidado/educação, com uma caracterização das trabalhadoras, das famílias, das crianças e
das condições dos locais. Tal levantamento se justifica na medida em que as redes
paralelas de educação infantil demonstram que há uma pressão da população por estes
serviços. Provavelmente outros estudos sobre experiências como a da creche de Denise
permitam verificar o que ocorre nesses espaços e quais soluções devem ser propostas.
265
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Relação das Escolas Particulares Sindicalizadas de São Gonçalo - Sinepe, 2000.
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para a Educação Infantil.
São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro. Lei Orgânica do Município de São Gonçalo,
promulgada em 4 de abril de 1990.
Superintendência de Programas e Projetos. Projetos desenvolvidos com verba estadual
1997 / 1998, Projetos desenvolvidos com verba federal anos de 1997/98/99, Programas
desenvolvidos com verba municipal 1997/98/99.
280
7. ANEXOS
7.1 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM TOMADORAS DE CONTA
1) Ano em que o estabelecimento começou a funcionar.
2) Situação do Prédio: ( )Alugado ( )Próprio ( )Emprestado ( )Outros / Especificar.
3) Número de peças internas e externas do prédio, indicando suas funções.
4) Horário de entrada e saída das crianças.
5) Número de crianças que freqüentam o estabelecimento. Especificar idade, raça e gênero
das crianças. Há fichas com informações sobre as crianças?
6) As crianças são divididas em turmas ou agrupadas em conjunto? No caso de divisão por
turmas, especificar.
7) Descrever a situação sócio-econômica das famílias das crianças.
8) Mensalidade cobrada das crianças. Despesas cobertas com estas mensalidades. Tem taxa
de matrícula?
9) Descrever brevemente a rotina de um dia de trabalho com as crianças.
10) Refeições que as crianças fazem no local.
11) Pessoas que trabalham no estabelecimento. Especificar a função de cada uma,
escolaridade, faixa salarial, tempo de trabalho.
12) Indicação de outras creches domiciliares no bairro.
281
7.2 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DENISE
DADOS GERAIS DE IDENTIFICAÇÃO
a) Nome:
b) Idade:
c) Estado civil:
d) Número de filhos:
e) Com quem reside na creche e residência?
f) Número de crianças (idade, raça e gênero):
g) Escolaridade:
h) Profissão do marido e dos filhos:
i) Renda familiar por cada componente da família:
DADOS SOBRE O TRABALHO NA CRECHE DOMICILIAR
a) Que outros trabalhos você já desempenhou (ou ainda exerce)? Duração tempo
trabalhado e descrição do trabalho desde a infância.
b) Quando você começou a trabalhar em creche domiciliar? Por que escolheu essa
atividade?
c) Que vantagens e desvantagens você encontra nesse tipo de trabalho?
d) Como você se sente quando as crianças (exceto as filhas) lhe chamam de mãe?
e) Como você faz quando vai receber uma criança pela primeira vez?
f) Descreva o grupo de crianças com o qual você trabalha (idade com que chegou, que
idade tem agora, comportamentos, situação familiar e sócio-econômica). Se possível,
incluir as crianças do ano passado. Porque você parou de trabalhar com as crianças
maiores?
g) Na sua opinião, por que existem creches como a sua em São Gonçalo e no bairro?
h) Aqui na frente da sua casa tem uma placa: “toma-se conta de crianças”. O que isto
significa para você? Ou o que é preciso saber para tomar conta de crianças?
i) Na sua opinião, é importante ter algum estudo específico ou formação para tomar conta
de crianças?
282
j) Como é a sua relação com os familiares das crianças? Que dificuldades e/ou que pontos
positivos você encontra? Por que os familiares do ano passado pararam de enviar os
filhos/as?
l) Que tipo de contrato você estabelece com as famílias das crianças? Há contratos
diferenciados? Dê exemplos (incluir pagamentos, alimentação, horários combinados, dias e
meses, cuidados com a saúde etc.).
m) O que você já viveu em termos de experiências que tenham lhe ajudado a definir o tipo
de trabalho que hoje executa?
n) Em termos de educação, de escolarização, o que você deseja para as suas filhas?
o) Você aceitaria discutir o trabalho que faz aqui na creche com profissionais de outros
locais, como a Universidade, por exemplo?
p) Como você percebe o trabalho que faz? O que mais gosta de fazer e o que não gosta de
fazer? Há divisões de trabalho entre você e as ajudantes? Como isto ocorre?
q) Como você organiza o trabalho com as crianças? O que se mantém durante os dias e o
que é modificado?
r) Se houvesse condições de modificar alguma coisa na creche, o que você modificaria?
DADOS SOBRE CULTURA, REDES DE VIZINHANÇA, INFÂNCIA E GÊNERO
a) Algumas manifestações culturais do bairro (cantigas de roda, a reza, o pagode, o funk,
os remédios caseiros) e outras de fora (como a TV e os programas infantis, por exemplo)
estão presentes no dia a dia da sua creche. Como você percebe estas influências?
b) Como você se relaciona com a vizinhança ou como percebe as relações entre os
vizinhos? O que significa, para você, ser “sobrinho de consideração”?
c) Aqui na sua creche as crianças organizam algumas atividades ou brincadeiras? Como
você percebe essa organização das crianças?
d) Que vantagens e desvantagens você percebe no agrupamento das crianças por diferentes
faixas de idade?
e) Como você vê a criança de hoje e a criação dos filhos?
f) Como você faz com as crianças que apresentam dificuldades com as regras que você
estabelece? Isto ocorre com mais freqüência entre os meninos ou as meninas? Por que?
g) Você pensa que existem diferenças (além do sexo) entre meninos e meninas? Dê alguns
exemplos de como você trabalha com isto na creche.
h) Como era a sua família na infância e como ela está estruturada nos dias atuais?
(casamento, filhos, posição ocupada na família, etc.)
283
i) O que você pensa sobre ser pai e ser mãe? Você vê diferenças? Quais?
j) O que você considera mais fácil: ser homem ou ser mulher? Por que?
l) O que os homens do bairro costumam fazer para se divertir? E as mulheres? E você?
7.3 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM AJUDANTES
DADOS GERAIS DE IDENTIFICAÇÃO
a) Nome:
b) Idade:
c) Estado civil:
d) Escolaridade:
e) Dados sobre a família (número de irmãos, profissão dos pais, dos irmãos se for o caso,
renda dos familiares). Se recebe algum salário pelo trabalho, especificar.
f) Número de cômodos da casa, material de construção, luz elétrica, água encanada,
esgotamento sanitário, como fazem com o lixo.
DADOS SOBRE O TRABALHO NA CRECHE DOMICILIAR
a) Que trabalhos você tem feito desde a sua infância?
b) Quando você começou a ajudar na creche? O que você gosta e o que você não gosta de
fazer aqui na creche?
c) Quando as crianças chamam Denise de mãe, o que você pensa sobre isso? Como as
crianças lhe chamam?
d) Como vocês fazem quando recebem uma criança pela primeira vez?
e) Conta sobre as crianças da creche (idade com que chegou, que idade tem agora,
comportamentos, situação familiar e sócio-econômica). Se possível, incluir as crianças do
ano passado. Por que Denise parou de trabalhar com as crianças maiores?
f) Na sua opinião, porque existem creches como essa em São Gonçalo e no bairro?
g) Aqui na frente tem uma placa: “toma-se conta de crianças”. O que isto significa para
você? Ou o que é preciso saber para tomar conta de crianças?
h) Na sua opinião, é importante ter algum estudo específico ou formação para tomar conta
de crianças?
i) Como são os familiares das crianças? Que dificuldades e/ ou que pontos positivos você
encontra? Por que os familiares do ano passado pararam de enviar os filhos/as?
j) O que você pretende fazer no futuro? Por que você está estudando?
284
l) Conte sobre como vocês organizam as atividades com as crianças. O que sempre
acontece e o que pode ser modificado?
m) O que acontece em cada uma das dependências/cômodos da creche?
n) Se houvesse condições de modificar alguma coisa na creche, o que você modificaria?
DADOS SOBRE CULTURA, REDES DE VIZINHANÇA, INFÂNCIA E GÊNERO
a) Algumas manifestações culturais do bairro (cantigas de roda, a reza, o pagode, o funk,
os remédios caseiros) e outras de fora (como a TV e os programas infantis, por exemplo)
estão presentes no dia a dia da creche. Como você percebe estas influências?
b) Como você se relaciona com a vizinhança ou como percebe as relações entre os
vizinhos? O que significa, para você, ser “sobrinho de consideração”?
c) Aqui na creche as crianças organizam algumas atividades ou brincadeiras? Como você
percebe essa organização das crianças?
d) Que vantagens e desvantagens você percebe no agrupamento das crianças por diferentes
faixas de idade?
e) Como você vê a criança de hoje e a criação dos filhos?
f) Como vocês fazem com as crianças que apresentam dificuldades com as regras que
vocês estabelecem? Isto ocorre com mais freqüência entre os meninos ou as meninas? Por
que?
g) Você pensa que existem diferenças entre meninos e meninas? Dê alguns exemplos de
como vocês trabalham com isto na creche.
h) Como era a sua família na infância e como ela está estruturada nos dias atuais? (pais,
filhos, posição ocupada na família, etc.)
i) O que você pensa sobre ser pai e ser mãe? Você vê diferenças? Quais?
j) O que você considera mais fácil: ser homem ou ser mulher? Por que?
l) O que você costuma fazer para se divertir? E os rapazes da sua idade?
285
7.4 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM MÃES
DADOS GERAIS DE IDENTIFICAÇÃO
a) Nome:
b) Idade:
c) Estado Civil:
d) Número de filhos (idade, raça, gênero):
e) Número de cômodos da casa, material de construção, luz elétrica, água encanada,
esgotamento sanitário, lixo:
f) Escolaridade:
g) Profissão e escolaridade do marido e dos filhos/ou outros membros da família:
h) Renda familiar (cada um dos componentes):
i) O trabalho que exerce hoje e funções anteriores:
DADOS SOBRE O TRABALHO NA CRECHE DOMICILIAR
a) Na sua opinião, por que existem creches domiciliares aqui no bairro e em São Gonçalo?
b) Por que você escolheu a creche da Denise entre as outras creches existentes no bairro? O
que você considera como ponto positivo deste trabalho e o que você gostaria de modificar?
c) Aqui na frente tem uma placa: “toma-se conta de crianças”. Na sua opinião, o que
significa tomar conta de crianças ou o que é preciso saber para se tomar conta de crianças?
d) Na sua opinião, é importante ter algum estudo específico ou formação para tomar conta
de crianças?
e) Às vezes eu percebo que as crianças chamam Denise de mãe. Enquanto mãe, como você
se sente quando seu filho/a chama Denise de mãe?
f) Você lembra dos primeiros dias em que seu filho/a veio para cá? (reações da criança, as
suas reações, se ele/ela ficou o dia todo, etc.)
g) Que tipo de contrato você estabelece com Denise? Inclua pagamentos, alimentação,
horários, dias e meses etc.
h) Como você vê o espaço da creche? Você sente necessidade de mudanças no espaço
físico? Especificar.
286
i) O que você pensa sobre o trabalho de Denise e das ajudantes? O que seu filho/a fala
sobre o cotidiano da creche?
j) Como é seu relacionamento com Denise e as ajudantes?
l)Você já enfrentou algum tipo de problema aqui na creche? Qual?
DADOS SOBRE CULTURA, REDES DE VIZINHANÇA, INFÂNCIA E GÊNERO
a) Algumas manifestações culturais do bairro (cantigas de roda, a reza, o pagode, o funk,
os remédios caseiros) e outras de fora (como a TV e os programas infantis, por exemplo)
estão presentes no dia a dia da creche. Como você percebe estas influências entre as
crianças e no espaço da creche?
b) Aqui na creche de Denise as crianças são agrupadas por idades diferentes. Como você
vê este agrupamento entre crianças maiores e menores?
c) Como você vê as relações de vizinhança aqui no bairro?
d) O que você pensa sobre a criança nos dias atuais e sobre a criação dos filhos?
e) Você vê diferenças (além do sexo) entre meninos e meninas? Quais?
h) Como era a sua família na infância e como ela está estruturada nos dias atuais?
(casamento, filhos, posição ocupada na família, etc.)
i) O que você pensa sobre ser pai e ser mãe? Você vê diferenças? Quais?
j) O que você considera mais fácil: ser homem ou ser mulher? Por que?
l) O que os homens do bairro costumam fazer para se divertir? E as mulheres? E você?
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7.5 DIÁRIO DE CAMPO
(Diário de campo, 21/06/2001)
7:30: Entro na cozinha e todos estão tomando café. Jane está zangada e chorando atrás do
sofá. Ouço Denise comentar que ela brigou com a mãe e em tom de brincadeira ela
observa: “é a amiguinha dela que está chegando” (numa referência à menstruação.
Parece que o mau humor das mulheres para Denise sempre se relaciona com as regras).
São 8:30 e Estela vai buscar o bebê (Mauro) que está acordando. Denise está conversando
com Bia sobre um curso profissionalizante no Rio de Janeiro. Ela fala que eles pagam
estudo, vale transporte e no final conseguem emprego (eu fico ouvindo e pensando se isto
realmente acontece). Enquanto elas conversam, Denise pede ajuda aos meninos para
montar o andador de Mauro. Bia coloca o bebê no andador e ele caminha sorridente em
direção a Denise. Ouço elas comentarem que o bebê chegou sem chapéu na creche e que
pode estar com os ouvidos inflamados. Estela aparece do lado de fora da porta da cozinha
gritando: Ana! Os meninos estão engatinhando no corredor estreito e segue a conversa
sobre o curso profissionalizante. Ouço Denise comentar sobre Mauro: “a própria mãe
falou que não é para ficar o tempo todo no colo e ontem ele ficou o dia todo...” E Bia fala:
“Hoje ele está enjoado...”. Denise fala que a mãe de Mauro solicitou que elas ofereçam
mais atenção ao bebê. Ela conversa com o bebê: “quer um pouco de chamego?” Beija e
segura Mauro no colo. “Só que eu não vou poder ficar o dia todo com você no colo. Vamos
trocar?”
As crianças estão jogando bola no corredor e a TV está ligada. Denise e Bia vão trocar
Mauro, o que é acompanhado com interesse pelos maiores. Denise oferece mamadeira para
Mauro, mas ele não aceita muito bem o leite. Ela estende o cobertor no chão e oferece ao
bebê um ursinho e uma pequena garrafa de plástico. Como ele morde a garrafa diversas
vezes ela comenta: “Isto tem uma pontinha de dente, heim! Tá roçando na garrafinha!”
Estela comenta que Daniel tirou os chinelos. Segue o jogo de bola no corredor e é Bia
quem cuida das crianças. Denise varre o chão da cozinha e limpa a mesa. Daniel se
aproxima de Denise e fala: “Tá, mãe, troca a sandália!”
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Denise propõe que as crianças joguem bola na rua com Bia. Ela acompanha Mateus ao
banheiro e solicita que eu cuide do nenê, que está sobre o cobertor na cozinha. Eu escuto
Denise conversando com Mateus: “quando terminar me chama! Tá fazendo? Ih, tá brabo,
heim?” Eu seguro o bebê no meu colo, porque ele chora um pouco. “Acabou Mateus?”
Ele diz: “acabou”. Estela entra e pergunta se a mãe vai dar Mucilon para o bebê e o pega
no colo. Denise quer saber porque Estela carrega o bebê e ela explica que é Bia quem está
pedindo. Mas Denise não permite que ela leve o bebê sozinha e resolve acompanhá-los. Na
rua está úmido e elas colocam Mauro no carrinho. As crianças ficam em volta do bebê e
Denise comenta: “é prá ele ficar vendo as paisagens”. Ela também pergunta a Jane se a
mãe lhe deu o remédio e pinga Cataflan na garganta de Estela. As outras crianças também
querem remédio e Denise oferece o xarope caseiro. Mas serve na mesma colher e não lava,
quando passa de uma criança para outra. Bia e Denise chamam atenção de Estela, que tirou
o brinquedo de Daniel. Alguns minutos depois, Denise sobe na goiabeira. Estão todos em
torno da árvore. Ela pede que as crianças fiquem olhando e sobe na casa ainda em
construção, para alcançar as goiabas. Ela vai jogando e pedindo que as crianças entreguem
as frutas para Jane. Vai perguntando: “Jane, tem quantas goiabas aí?” Mateus fala: “mãe,
cadê você?” Ela responde: “Tô aqui”.
As crianças estão na cozinha comendo goiabas e Bia está com o bebê no colo assistindo
TV. Ela pede que Daniel entre porque está frio. Estela pergunta aos outros: “vai ficar aí,
nesse frio?” Todos entram e Bia chama para que assistam um filme. Na cozinha Mateus e
Jane brincam de carrinho sobre a mesa. E Jane fala: “sabia que eu ia dormir sozinha?”
Denise comenta: “como assim, sozinha? Sua mãe não lhe deixou sozinha, não! Que susto!
Agora você me deixou assustada!” Ela conversa com Jane e parece que isto não aconteceu,
mas não ficou muito claro. Bia entra na cozinha: “ô tia...você colocou a fralda agora no
Mauro? Tá frouxa!” Marcos vai andar na motocicleta de plástico no pátio. Marcos vem
tirar a bola de Daniel e Denise diz: “você vai brincar com o carrinho, ele já estava com a
bola”. E Bia comenta: “é só você que ele escuta”. Denise conversa com Marcos sobre o
carrinho: “tá com cinto de segurança? Comprou sua carteira aonde?” Ele responde: “aí,
mãe...vou sentar na cadeira do carro, aí mãe, vai bater, ó...” Denise responde: “Tô vendo,
meu filho...”.
São 9:25 e as crianças continuam no pátio. Bia está com o bebê no alpendre. Marcos anda
na motocicleta e os outros brincam com a bola. Estela pega a motocicleta e Bia diz:
“Estela, ele já estava andando”. Ela puxa a motocicleta de Marcos, ouve um barulho e
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pede para Marcos parar. Ela fica atenta e diz: “acho que é a máquina”. E conversa com
Bia sobre o carro do nenê que trava e destrava. Bia exclama: “ah, podia fazer sol...”.
Jane e Marcos brincam embaixo da mesa da cozinha. Ouço Denise falar para Jane sobre
Marcos e Mateus que estão brigando: “Dá a mão você a ele. Você é menina e mais
amigável”. Jane leva Marcos pela mão e ele grita: “mãeee!!!” Denise cuida eles brincarem
na cozinha e Jane fala: “vem com a mamãe, vem! Vou levar seu carrinho!” O nenê está no
colchão que foi colocado na sala. Ele dormiu e Bia está perto dele.
A irmã de Júlio o entrega na porta às 10:05. Ele traz uma sacola cheia e Bia diz para ele
entrar e falar com a tia Denise. Ouço ela dizer alegremente: “Oi!” Agora há crianças no
quarto de Denise e Bia os chama para ver TV. Os meninos brincam na sala e Bia comenta
que o bebê que dorme no colchão vai acordar. Denise aparece na sala sugerindo que ela o
leve para o quarto. Bia vai servindo água para as crianças na mesma caneca. Da cozinha
Denise avisa: “carrinho é no corredor, heim! Na sala, não!” As crianças brincam no
corredor e engatinham (é o brinquedo de cachorro) e comentam sobre o desenho da TV,
porém não ficam assistindo. Ouço Bia mandar que eles parem de engatinhar, mas eles
continuam e uma das crianças propõe: “vamos brincar de sapo?”
São 10:30 e as crianças estão no quarto dos brinquedos, enquanto Bia intervém nas
disputas pelos carrinhos. Denise está cozinhando e o bebê está dormindo. Entro na cozinha
e Daniel está sentado de castigo. Denise diz: “Você vai brincar com o carrinho, pede a
Estela que pegue o carrinho com Bia...vai lá brincar e sem confusão no corredor, senão
volta a sentar aqui de novo!”. Bia pergunta porque Jonathan não veio e Denise responde
que a vó deve ter ficado em casa. Ela torna a colocar Daniel sentado na cozinha: “Fica aí.
Já que você não quer brincar com ninguém...fica aí bem pertinho de mim”. Fala para
Estela: “levanta desse carrinho, que você é pesada para isso, levanta” (refere-se à
motocicleta de plástico). Daniel pede para sair da cadeira e ela fala: “não, você não está
brincando direito, você está batendo nas crianças...é isto”. Daniel chora e pede para sair.
Ela fala: “não vai fazer bagunça, não? Então vem sentar perto de mim”. Estela está
fazendo tarefas da escola com Denise, que novamente chama atenção de Daniel: “vem,
pode vir. Aqui não adianta fazer cara feia, que eu não tenho medo não...Senta”. Bia entra
na cozinha e avisa que vai ver se Mauro ainda está dormindo. Estela: “mãe, Daniel fica me
empurrando...” Denise diz: “senta aqui Daniel. Julinho, você quer sentar perto de mim?
Então para de correr...” Jane pede para ir ao banheiro e Denise recomenda que vá
devagarinho, porque Mauro ainda está dormindo. Na rua Bia e as crianças brincam de roda
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e eu anoto algumas canções: “É de tango, tango. É de carrapicho, joga o Marcos na lata
de lixo, a lata furou, o lixeiro carregou”. Na frente da creche estaciona uma moto e Bia
observa: “nossa, que moto!” As crianças vão para o portão olhar a moto.
Começam os preparativos para o banho às 11:10 e Denise muda a dinâmica do banho,
porque o bebê está dormindo no quarto. Ela diz para Bia: “Pode ficar aí. Vou pegar um
por um para não acordar o Mauro. Mando para a rua e você manda os outros”. Mateus é
o primeiro a entrar e ouço os dois conversando, enquanto ela o ajuda a se despir: “vê se a
sua sandalinha tá na sala prá titia...” Passa o sabonete e diz: “fecha o olho, lava o rosto,
soa o nariz! Isto! Viu quanta sujeira que sai daí? Que melecada, heim? Eca!” Na rua as
crianças brincam de prenda com Bia. Eu ouço Denise comentar: “Olha que criança linda e
cheirosa! Tomando um banhozinho fica cheiroso a beça”! Agora é Daniel quem entra e
diz: “mãe, acabou...mamãe...”. “Acabou nada, você recém entrou...que mamãe nada,
deixa de ser medroso...Isto! Muito bem! Aí você vai lá prá fora brincar de novo!”.
Nara chega da escola e Mauro acorda. Denise comenta sobre como o nenê fica louquinho
com a presença dela: “eu nunca vi tanto chamego com alguém”. E Nara conversa com o
nenê: “que é que o neném tinha, heim? Neném piquititinho...beijinho na testa, na
bochecha, no nariz, no braço...”. Julinho e Marcos entram para tomar banho e Denise
brinca com eles: “que fedor, cadê meu pandeirão!” Na rua Bia colocou Daniel sentado e
ele chora. Após o banho, as crianças cantam em roda com Bia e Denise: “dois patinhos na
lagoa, começaram a nadar, quando viram a minhoca começaram a... minhoca, minhoca,
me dá uma beijoca, não dou, então eu vou roubar, minhoco, minhoco, você tá muito louco,
beijou do lado errado, a boca é do outro lado, eu vi uma barata na careca do vovô...”.
Enquanto esperam o almoço, Bia e Nara brincam com as crianças no chão da cozinha
(sentados no cobertor). O clima do almoço é sempre muito alegre. O nenê vem para o colo
de Bia e ela diz: “tia, traz o babador dele aí, por favor...” Em roda Bia e Nara solicitam
que as crianças falem palavras (um de cada vez fala e todos batem palmas). As palavras
são babador, amor, chocolate e outras. Denise fala para Bia: “lamento informar, mas ela
não trouxe babador...”.
Denise arruma Estela e Jane para a escola e os outros vão para o corredor brincar de
carrinho. Em torno de 12:00 elas começam a chamar as crianças para o almoço. Jane
chama a atenção de Julinho: “Julinho, chega, tá na hora da comida...que frio....” Os
meninos sentam no chão e as meninas à mesa. Nara diz para sua mãe: “ai, que ciúme, meu
Deus”, numa referência ao comportamento de Daniel com relação ao bebê. O irmão de
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Mauro o beija e Denise brinca com as crianças: “pega esse nenezinho, pega a bochecha
dele e depois dá um beijinho...” Bia serve para o bebê legumes amassados com feijão e
mais adiante eu observo que ele demora para comer, pois não parece muito disposto. As
outras crianças comem arroz branco, carne fatiada com molho, abóbora e feijão batido com
legumes. Vou tomar café e peço uma colher pequena para Denise. Jane pergunta porque eu
quero uma colher pequena e eu explico que é para mexer o café. Ela insiste que não é
preciso, que eu posso mexer o café com o cabo do garfo. Denise ajuda os meninos a comer,
com exceção de Júlio que come sozinho. Após o almoço, Bia acompanha as crianças ao
banheiro, para que escovem os dentes. Denise confere a escovação de Estela e a merenda
das meninas. A mãe de Jane não mandou refrigerante ou suco e Denise comenta que foi
por este motivo que ela pediu para dar uma “olhadinha” na mochila. Denise fala para as
meninas que ela aprendeu isto com Estela, “que não precisa ficar explanando”. Enche de
guaraná as duas garrafinhas e pede cuidado para não entornar o guaraná dentro das
mochilas.
Nara e Bia levam as meninas para a escola às 12:50 e Denise fica com o bebê no colo, que
ainda está comendo a papinha. Ele levou mais de uma hora para comer e ela explica que é
preciso paciência. Alguns minutos depois, ele dorme de bruços no colo de Denise. Ela o
leva para o colchão. As outras crianças estão no corredor brincando de carrinho e ela
pergunta: “Está todo mundo de carrinho? O que está faltando agora?” Ela faz este
comentário porque alguns estão disputando os carrinhos. Pergunta quem quer água e todos
aceitam. Ela senta os meninos no sofá para ver “Os Simpsons” enquanto Nara e Bia
almoçam. Denise comenta com eles que está quase na hora de se recolherem e eles
brincam dizendo que vão para o colégio.
Às 13:35, Nara traz para a sala caixas vazias de leite Parmalat e mostra as letras coloridas
para Denise. Ela aponta as letras dos nomes das crianças e vai comentando: “a de Ana, M
de Marcos, Mauro, Mateus...” Eles falam sobre tartarugas e Denise traz um livro de uma
coleção sobre Animais Noturnos. Ela vai mostrando os animais para os meninos: aqui é a
raposa, o guaxinim, os castores, o morcego, grilo, sapo... Ela canta : “o sapo não lava o pé
porque não quer, ele está na lagoa...”. Eles olham as gravuras bem atentos. O jaguar...e
Daniel diz: “é o gatinho...” Bicho-preguiça...”aqui bicho”. Denise segue mostrando:
“aqui é o tamanduá, ele come formiga...este é o macaco, ih o macaco com rabo...” E as
crianças riem bastante. Algum tempo depois ela abre o armário e oferece uma revista Caras
para cada criança. Coloca o cobertor no chão e eles sentam para olhar as revistas. Júlio
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grita: “piscina! A minha tem piscina!” A propaganda do Kinder Ovo na TV sempre
mobiliza todos eles. “Carro, carro!” diz Júlio.
As meninas estão lavando a louça do almoço e os meninos comentam sobre as revistas.
“Praia!” diz Júlio. Eu pergunto se ele já foi à praia e ele fala que já foi a Icaraí ver a mãe
dele. Ele segue fazendo observações: “ih, mulher pelada!”
Após ter almoçado, em torno de 14:30, Denise acompanha os meninos até o banheiro
porque eles vão dormir. Eles beijam Nara antes de ir para o quarto. As crianças dormem na
cama de Denise e, durante este período do sono, Bia foi para casa verificar se tem algum
serviço para fazer. São 17h e as crianças ainda não acordaram. Denise vai chamá-las para o
lanche e comenta: “hoje elas nem vão jantar, porque vão comer o bolo e tomar chocolate
a esta hora... Estela e Jane chegam da escola e todos comem bolo e tomam o chocolate que
eu preparei durante a tarde. Em torno de 17:25, Denise chama as crianças para o quarto e
veste roupas mais quentes, porque está um pouco frio. Mauro está no colo de Nara
tomando mamadeira.
As crianças se aproximam das minhas folhas e canetas. Dou folhas e elas vão desenhar no
chão. Daniel que havia saído, entrou novamente e agora sai mais uma vez. Júlio abre a
porta e pergunta se ele vai embora. “Vou!” “Então tchau!”
Chega Juçara, mãe de Marcos e Mauro, às 18:15: “oi, meu amor de minha mãe” (fala isto
para o neném e eu observo que Marcos fica se agarrando nela e pedindo balas, mas parece
que ele quer é atenção da mãe). O bebê reage muito alegre e Marcos tenta abrir a bolsa de
Juçara: “você sabe que não pode mais chupar balas...aquele negócio que eu dava, não dou
mais...” Fala que o bebê quando está em casa, só quer saber de colo. Ouço Denise falar que
com elas isto não acontece. Ela explica que o antibiótico vai secar o catarro dele e que
sábado os dois vão ficar na creche, porque ela precisa trabalhar. “O Amoxil tá aí?” Ela sai
e fica conversando com Denise no portão e as crianças ficam observando e jogando bola.
Denise manda elas entrarem e comenta com Juçara que as roupas dos meninos estavam
úmidas e que ela precisou secar na corda. Ela pede mais roupas por causa do frio. Eu saio
com Denise, porque ela vai para a escola e pega ônibus no terminal. Nara fica com Júlio,
Jane e Mateus. Daniel voltou e chama os outros para ver bichos. No caminho Denise conta
que enquanto tem bebês na creche ela não sai. Fala que estuda mais longe, porque nas
escolas dentro do Saudade faltam professores.
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ANA CRISTINA COLL DELGADO - Universidade Federal Fluminense