ANA CRISTINA COLL DELGADO “TOMA-SE CONTA DE CRIANÇAS” OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO E O COTIDIANO DE UMA CRECHE DOMICILIAR Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação. Orientadora: Profª. Drª. LÉA PINHEIRO PAIXÃO Niterói - RJ 2003 2 ANA CRISTINA COLL DELGADO “TOMA-SE CONTA DE CRIANÇAS”: OS SIGNIFICADOS DO TRABALHO E O COTIDIANO DE UMA CRECHE DOMICILIAR Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação. Aprovada em outubro de 2003 BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________________________ Profª Drª Léa Pinheiro Paixão - Orientadora Universidade Federal Fluminense ____________________________________________________________________________ Prof. Dr. Manuel Jacinto Sarmento Universidade do Minho - Portugal Prof. Dr. Geraldo Romanelli Universidade de São Paulo - Campus Ribeirão Preto ____________________________________________________________________________ Profª Drª Vera Maria Ramos de Vasconcellos Universidade do Estado do Rio de Janeiro Profª Drª Adonia Antunes Prado Universidade Federal Fluminense 3 “A Haydée, moradora de São Gonçalo, e às mulheres do bairro Saudade que possibilitaram a realização do estudo”. 4 AGRADECIMENTOS À CAPES pela possibilidade de estudar durante quatro anos e compartilhar experiências no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF e no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho - Braga. À Léa Pinheiro Paixão por inúmeras razões, entre as quais a orientação comprometida e a aprendizagem da paciência e tolerância. Ao Manuel Jacinto Sarmento pela acolhida fraterna, co-orientação e confiança no meu trabalho. A todas as pessoas com as quais convivi e aprendi no período de afastamento; seria inoportuno citar algumas e excluir outras, na medida em que elas e eles são co-autoras/es das mudanças, encontros e desencontros que vivi durante esse tempo. Às outras pessoas que ficaram e com as quais voltei a conviver, familiares e amigos/as, principalmente ao Rodrigo e à minha mãe. 5 “A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida Que eu já tô ficando craque em ressureição. Bobeou eu tô morrendo Na minha extrema pulsão Na minha extrema - unção Na minha extrema menção de acordar viva todo dia Há dores que sinceramente eu não resolvo sinceramente sucumbo Há nós que não dissolvo e me torno moribundo do doer daquele corte do haver sangrento e forte que vem no mesmo malote das coisas queridas Vem dentro dos amores dentro das perdas de coisas antes possuídas dentro das alegrias havidas Há porradas que não têm saída há um monte de ‘não era isso que eu queria’ Outro dia, acabei de morrer depois de uma crise sobre o tema existencialismo 3º mundo, ideologia e inflação...” (Elisa Lucinda) 6 SUMÁRIO RESUMO.....................................................................................................................................9 RÉSUMÉ...................................................................................................................................10 1. INTRODUÇÃO AO TEMA DE INVESTIGAÇÃO..........................................11 1.1 O MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO E OS PRIMEIROS CONTATOS COM AS CRECHES DOMICILIARES....................................................................................................14 1.2 AS QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO..............................................................................22 1.3 A METODOLOGIA............................................................................................................23 1.3.1 As observações..................................................................................................................26 1.3.2 As entrevistas....................................................................................................................28 1.3.3 Análise dos dados.............................................................................................................29 1.4 CRECHES DOMICILIARES E EIXOS TEÓRICOS ARTICULADORES DO ESTUDO....................................................................................................................................30 1.5 O BAIRRO SAUDADE CONTADO PELOS MORADORES...........................................37 CAPÍTULO 2. “CRECHE, NÃO! AQUI SE TOMA CONTA DE CRIANÇAS!” - TRAJETÓRIA E SENTIDOS DO TRABALHO PARA DENISE...............................................................................................................44 2.1 DENISE, UMA TRAJETÓRIA DE MULHER, MÃE E TOMADORA DE CONTA DE CRIANÇAS...............................................................................................................................45 2.2 AS RELAÇÕES DE TRABALHO E AS NEGOCIAÇÕES NA CRECHE DOMICILIAR............................................................................................................................51 2.2.1 Informalidade e instabilidade de renda: quais acordos e negociações?............................53 2.2.2 Clandestinidade e ilegalidade do trabalho........................................................................57 2.2.3. Trabalho no domicílio, flexibilidade de horários e redução do tempo de lazer...............62 2.3 O EMPREGO DE MÃO-DE-OBRA JUVENIL NA CRECHE DOMICILIAR.................65 7 2.4 OS SENTIDOS DE SER MULHER, MÃE E TRABALHADORA EM UMA FAMÍLIA MONOPARENTAL..................................................................................................................72 2.4.1 Ser mãe e trabalhar para ter uma renda: a feminização da pobreza..................................75 2.4.2 Viver em uma família monoparental e desejar uma família nuclear: vitimização e valorização dos sentidos de ser mulher......................................................................................78 2.4.3 Experiências dos corpos de mulheres...............................................................................84 2.5 AS AMBIGÜIDADES DA FUNÇÃO E OS SABERES PARA TOMAR CONTA DE CRIANÇAS...............................................................................................................................89 2.5.1 Mãe substituta, tia, tomadora de conta, professora ou psicóloga?....................................90 2.5.2 A culpabilização das mães e de si própria........................................................................99 2.5.3 Os saberes para tomar conta de crianças.........................................................................103 2.6 SÍNTESE............................................................................................................................108 CAPÍTULO 3. “ELA FAZ MAIS DO QUE TOMAR CONTA, ELA PRATICAMENTE CRIA AS CRIANÇAS” - TRAJETÓRIAS E SENTIDOS DO TRABALHO PARA CINCO MÃES.......................................................111 3.1 TRAJETÓRIAS DE CINCO MULHERES, MÃES E TRABALHADORAS..................113 3.2 TRAÇOS QUE APROXIMAM E TRAÇOS QUE DISTINGUEM AS TRAJETÓRIAS DAS MÃES.............................................................................................................................124 3.2.1 Percursos familiares anteriores e formação de novas famílias.......................................125 3.2.2 Trajetórias escolares e profissionais das cinco mães e seus cônjuges............................128 3.2.3 Trabalho, casamento e lazer na perspectiva das mães....................................................133 3.3 RELAÇÕES COM DENISE E COM A CRECHE DOMICILIAR..................................147 3.3.1 A escolha da creche de Denise........................................................................................147 3.3.2 Os acordos entre as mães e Denise.................................................................................153 3.3.3 As expectativas das mães quanto à função de Denise....................................................157 3.3.4 Avaliação do trabalho de Denise....................................................................................162 3.4 CRECHE DOMICILIAR E DELEGAÇÃO DA FUNÇÃO MATERNA.........................169 3.4.1 Quando as crianças chamam Denise de mãe..................................................................171 3.5 SÍNTESE: DELEGAÇÃO E PERSPECTIVA FAMILIARISTA DE EDUCAÇÃO.......178 8 CAPÍTULO 4. O COTIDIANO NA CRECHE DE DENISE.......................189 4.1 ENTRANDO NA CASA: CRECHE E RESIDÊNCIA.....................................................191 4.2 O ACOLHIMENTO DAS CRIANÇAS............................................................................194 4.3 O DIA NA CRECHE.........................................................................................................200 4.3.1 Rotinas............................................................................................................................201 4.3.2 Acontecimentos e outras atividades................................................................................203 4.3.3 A presença constante da televisão...................................................................................210 4.3.4 Atividades espontâneas e expressões das culturas infantis.............................................213 4.4 DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO...............................................................................223 4.4.1 Afetividade e participação nos cuidados das crianças menores......................................224 4.4.2 Para exercer a autoridade é necessário punir e castigar..................................................226 4.4.3 Coisas de menino e coisas de menina.............................................................................231 4.5 O TRABALHO DE DENISE NA CRECHE–SÍNTESE...................................................236 5. PARA CONCLUIR: TECENDO OS SENTIDOS DO TRABALHO DE TOMAR CONTA DE CRIANÇAS................................................................241 6. OBRAS CITADAS.......................................................................................260 7.ANEXOS...........................................................................................................................274 7.1 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM TOMADORAS DE CONTA.................................274 7.2 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DENISE.................................................................275 7.3 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM AJUDANTES........................................................277 7.4 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM MÃES....................................................................279 7.5 DIÁRIO DE CAMPO........................................................................................................281 9 RESUMO Esta tese trata de estudo de caso etnográfico realizado em uma creche domiciliar de um bairro popular de São Gonçalo, Rio de Janeiro. O foco da investigação é a análise dos significados que assume a atividade de tomar conta de crianças para uma trabalhadora e cinco mães, bem como a organização desse trabalho no cotidiano. Os principais instrumentos de pesquisa utilizados foram entrevistas semi-estruturadas e observações. No tratamento dos dados obtidos pela pesquisa de campo fizemos uma análise de conteúdo. Recortamos três dimensões que entendemos como macro-categorias (trajetórias e sentidos do trabalho para a tomadora de conta, trajetórias e sentidos do trabalho para as mães e o cotidiano na creche domiciliar), que por sua vez geraram categorias médias, todas elas analisadas no desenvolvimento e na conclusão do estudo. Para dar conta da grandeza de questões que circundam as trajetórias de vida, os sentidos do trabalho, as expectativas, as ambigüidades e as práticas cotidianas, não limitamos nossas análises apenas às relações de trabalho. Procuramos articular as reflexões sobre trabalho informal, clandestino e domiciliar com gênero, famílias dos meios populares, infância e cultura. Compreendemos estes eixos teóricos como categorias móveis e relacionais, o que propiciou um distanciamento da análise das trajetórias, dos significados e do cotidiano com ênfase nas limitações, na pobreza e na exclusão. Os modos de socialização na creche refletem o universo familiar das crianças e da tomadora de conta. Esta educação que denominamos familiarista estrutura-se em torno de objetivos que emergem das necessidades de sobrevivência dos adultos e crianças. Para que isto aconteça efetivamente, as mães delegam a criação dos/as filhos/as à tomadora de conta, o que produz sentimentos controversos de ambos os lados. Do lado da tomadora de conta ocorre a terceirização da função materna, ou seja, ela se propõe terceirizar o que faz com suas filhas para com outras crianças do bairro, como forma de sobrevivência. A atividade aqui analisada é uma atividade social e comunitária e, embora não legalizada, é legitimada por grupos da população. Não sendo uma proposta de educação infantil formal, a creche domiciliar estrutura-se principalmente para atender às demandas de trabalho e às necessidades dos familiares das crianças e da tomadora de conta, que preferiu trabalhar em casa e cuidar das filhas. Entretanto, a tomadora de conta possui saberes e reflete sobre o seu cotidiano. Estes são aspectos cruciais para compreendermos os significados do trabalho de tomar conta de crianças. (Inclui Bibliografia) 10 RÉSUMÉ Dans cette dissertation on étudie un cas ethnographique dans une crèche domiciliaire d’un quartier populaire de la ville de São Gonçalo (Rio de Janeiro). L’enquête se fonde sur l’analyse des sens qu’assume l’activité d’une travailleuse et de cinq mères quand elles s’occupent d’enfants, aussi bien que sur l’organisation de ce travail au jour le jour. Les principaux instruments de recherche utilisés ont été des interviews à demi structurées et des observations. A partir du traitement des données obtenues par la recherche, nous avons fait une analyse de contenu. Nous en avons dégagé trois dimensions classées comme des macrocatégories (trajets et sens du travail pour celle qui s’occupe des enfants, trajets et sens du travail pour les mères et le quotidien dans la crèche domiciliaire) qui, à leur tour, ont engendré des catégories moyennes, analysées toutes dans le développement et la conclusion de l’étude. Pour rendre compte de la grandeur des questions qui entourent les trajets de vie, les sens du travail, les expectatives, les ambigüités et les pratiques quotidiennes, nous n’avons pas limité nos analyses uniquement aux relations de travail. Nous avons essayé d’articuler les réflexions sur le travail informel, clandestin et domiciliaire avec le genre, les familles des milieux populaires, l’enfance et la culture. Nous avons considéré ces axes théoriques comme des catégories mobiles et relationneles, ce qui nous a permis un recul pour l’analyse des trajets, des sens et du quotidien, l’accent étant mis sur les limitations, la pauvreté et l’exclusion. Les aspects de la socialisation à la crèche reflètent l’univers familier des enfants et de celle qui s’en occupe. Cette éducation que nous appelons “familiariste” s’appuie sur des buts qui découlent des besoins de survie des adultes et des enfants. Pour que cela arrive effectivement, les mères délèguent l’éducation de leurs enfants à celle (s) qui s’en occupe (nt), ce qui crée des sentiments controversés de part et d’autre. En ce qui concerne celle qui s’occupe des enfants, ce qui arrive, c’est que le rôle maternel est joué pars des tiers, c’est-à-dire, elle veut étendre à d’autres enfants du quartier ce qu’elle fait de ses propres enfants, comme un moyen de survie. L’activité dont il est question ici est une activité sociale et communautaire et, quoiqu’elle ne soit pas protégée par la loi, est acceptée par des groupes de la population. La crèche domiciliaire n’est pas une proposition d’éducation des enfants formelle mais elle a pour but de répondre aux demandes de travail et aux besoins des parents d’enfants et de celle qui s’en occupe. Elle a préféré travailler chez elle et s’occuper de ses filles. Cependant cette femme a le savoir-faire et réfléchit à sa vie quotidienne. Voilà des aspects importants pour comprendre le sens de l’activité qui consiste à s’occuper des enfants. (Bibliographie Incluse) 11 1. INTRODUÇÃO AO TEMA DE INVESTIGAÇÃO Este estudo é sobre uma creche domiciliar de um bairro popular do município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro. Focalizamos as análises nos significados do trabalho de tomar conta de crianças para uma tomadora de conta e um grupo de mães, e nos desdobramentos desse trabalho no cotidiano. A introdução, embora extensa, constitui-se em uma exposição dos itinerários que percorremos até a definição da problemática e da metodologia. Entendemos que a construção de um texto é uma das possibilidades de interpretação, dentre tantas outras possíveis, dependendo de quem escreve, do contexto no qual acontece a escrita, bem como das leituras e debates que ocorrem nesse processo. A escritura de uma tese envolve construção e destruição de certezas, escolhas e rupturas, pois esquadrinhamos inúmeros atalhos até a definição de um caminho possível, mas nunca o único viável. Trata-se de uma construção tensa, frente às fragilidades do que outrora acreditávamos como certezas, que nos obriga a um exercício de recuo ou de avanço, quando nos encontramos imersos em uma realidade que nos coloca desafios habituais. Compreendemos uma problemática de pesquisa como uma construção com um percurso no tempo e no espaço, o que nos impõe um confronto permanente entre o campo teórico e o empírico, entre as escolhas que são feitas até a redução do tema de investigação. Dito de outra forma, uma problemática é como uma pedra que vamos lapidando diariamente; o teor desse trabalho, artesanal no sentido de que é trabalho de construção e tessitura, relacionase com nossas experiências sociais e culturais em confronto com as experiências dos outros, estranhos e próximos, íntimos e distantes como num claro-escuro de verdade-engano, expressão que tomamos de empréstimo de Kosik (1989). O duplo exercício de familiarização e distanciamento é, no mínimo, instigante e este jogo tenso de estabelecer relações entre o que é estranho e ao mesmo tempo tão próximo e íntimo, como imagens que se cruzam quando observamos um caleidoscópio, é o que consideramos um desafio na produção de uma tese. Este desafio Lima (1985, p.13) expressa 12 com muita propriedade ao comentar a respeito do movimento percorrido pela antropologia: “Ela partiu de uma investigação sobre povos e instituições sociais exóticas, descobrindo nesse movimento que tais instituições não eram tão exóticas nem ‘indígenas’, mas que em certos aspectos se assemelhavam à própria sociedade do investigador”. Nosso esforço implica uma reflexão sobre as escolhas teórico-metodológicas e as experiências sociais, culturais e emocionais que carregamos conosco e que fazem parte desse processo. Não vamos para o campo empírico como tábulas rasas, ou sem as marcas de uma existência que se constrói permanentemente, inclusive em confronto com os outros eus dos sujeitos de pesquisa. Estabelecemos trocas permanentes com esses sujeitos e este movimento, que não é linear, nos faz construir e destruir argumentos e hipóteses ao longo do percurso, tudo isto como resultado do esforço de interpretação. Como explica Costa (1989, p.143), desde o momento do planejamento da metodologia da pesquisa, dos instrumentos e procedimentos de investigação, precisamos estabelecer relação com uma teoria do objeto em estudo, com uma teoria do investigador como sujeito social e com uma teoria das relações entre ambos no decorrer da pesquisa. Já Sarmento (2003, p. 137-173) chama a atenção para a impossibilidade de um isolamento do cientista diante das coisas que acontecem no mundo, pois a lógica da produção científica é a produção discursiva construída por um discurso científico pré-estabelecido. Os efeitos dos paradigmas já são percebidos na formulação das perguntas que geram uma investigação, na seleção das estratégias, técnicas, métodos e no tratamento e apresentação dos resultados de um estudo. Assim, toda investigação científica estabelece um diálogo com um determinado campo científico. De acordo com Sarmento, os paradigmas têm um fundamento epistemológico e apoiam-se em um posicionamento acerca das relações entre sujeito e objeto de conhecimento. Ele ainda comenta sobre os paradigmas positivista, interpretativo e crítico. Identificamo-nos com o paradigma crítico, pela possibilidade de articulação da interpretação empírica dos dados sociais com os contextos políticos e ideológicos em que se geram as condições da ação social. O texto que apresentamos como resultado de nossa investigação é constituído de partes que compõe uma descrição que pretendemos tornar densa, no sentido compreendido por Geertz (1989). A tessitura de uma descrição densa na concepção deste e outros autores (Sarmento, 2003; Woods, 1987) é um desafio, pois o esforço de interpretação exige uma 13 representação dos significados e vozes de outros sujeitos de forma crítica e analítica. No desenvolvimento desse percurso necessitamos desenvolver habilidades como as que Ginzburg identifica no paradigma indiciário: “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” (1989, p. 179). Durante um período extenso - que iniciou no final de 1999 - fomos construindo interações com pessoas fundamentais para a efetivação do estudo e, nesse sentido, o texto final não é uma construção individual, porque sua estrutura contém as marcas e os textos de outras pessoas, seja dos sujeitos envolvidos na recolha das informações, seja dos sujeitos com os quais dialogamos na produção do texto, ou ainda no diálogo estabelecido com o referencial teórico consultado. A redação final contém as marcas, as experiências e vozes destes diferentes sujeitos e, por esta razão, optamos pela escritura na terceira pessoa do plural1, uma vez que o eu da pesquisadora encontra-se atravessado e em permanente relação dialógica com outros eus; este “nós” expressa de forma mais viva todos os atalhos que percorremos e que apresentamos em forma de texto. Para iniciar apresentamos o município de São Gonçalo e os primeiros contatos com as creches domiciliares. 1.1 O MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO E OS PRIMEIROS CONTATOS COM AS CRECHES DOMICILIARES Nosso tempo de permanência em campo iniciou com um olhar mais amplo, até que um aspecto da realidade foi-se impondo e nos obrigando a um esforço de definição da problemática. Da situação da educação da primeira infância de São Gonçalo passamos para um estudo piloto de cinco creches domiciliares, até definirmos que a investigação 1 Como o trabalho de campo foi feito pela minha pessoa e o/a investigador/a nos estudos de caso etnográficos é o principal instrumento de recolha das informações, em algumas partes do texto em que fizermos referência ao trabalho de campo priorizaremos a escrita na primeira pessoa do singular. 14 compreenderia um estudo de caso, em uma creche domiciliar do bairro que denominamos Saudade2. A pesquisa iniciou em dezembro de 1999 e até junho de 2000 realizamos um mapeamento3 da situação da educação infantil em São Gonçalo com ênfase nas creches que, segundo a legislação nacional vigente, destinam-se à faixa etária de zero a três anos de idade. Durante o levantamento encontramos 15 creches comunitárias e quatro não conveniadas4, e uma creche pública de responsabilidade do poder público municipal, que recebiam crianças dos dois anos e meio aos seis anos incompletos. Este dado, de certa forma, produziu mudanças em nosso percurso, porque não estava claro onde e com quem ficavam as crianças menores de três anos, em São Gonçalo. “São Gonçalo é um corredor, você passa, mas não fica aqui” (Isadora, 03/07/01). Em nossos primeiros contatos com o município de São Gonçalo experimentamos sensações de estranhamento e familiaridade, uma vez que as primeiras imagens obtidas se assemelhavam a um quadro cuja paisagem expressava, ao mesmo tempo, nitidez e nebulosidade de forma contínua. Foi nesse jogo entre o estranhamento e as sensações de familiaridade que percebemos a cidade sempre com novas impressões a cada visita. Se as primeiras imagens das ruas se apresentavam acinzentadas ou desbotadas, alguns meses depois, já conseguíamos distinguir suas cores, principalmente porque nosso olhar se voltou para o outro de forma menos rígida. Quando escrevemos que as primeiras impressões sobre a cidade estão marcadas por um predomínio das nuances acinzentadas, esta afirmação tem um sentido relacionado à arquitetura dos prédios, que aparentam uma permanente construção ou inacabamento das reformas. Ao 2 O nome do bairro é fictício, assim como os nomes de pessoas, ruas ou outros bairros que referenciamos no texto. 3 Iniciamos a investigação quando participamos da linha de pesquisa “Políticas nacionais de educação e suas repercussões nas políticas e práticas educativas locais” do campo de confluência Educação Brasileira - do Curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF. O mapeamento foi possibilitado mediante entrevistas semi-estruturadas com dirigentes de órgãos públicos e privados responsáveis pela infância, tais como: Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SEMEC; Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social - SMDES; Fundação para a Infância e Adolescência de São Gonçalo - FIASG; Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente - CMDCA; Articulação de Creches Comunitárias de São Gonçalo ARTICRECHE e Sindicato das Escolas Particulares de São Gonçalo – SINEPE; pelo exame de documentos, consulta a dados censitários e anotações em diários de campo que permitiram, de forma exploratória, uma compreensão do funcionamento de algumas creches visitadas durante esta primeira etapa. 15 circular pela cidade, tanto na parte onde se localizam o comércio e os prédios públicos, quanto nos bairros mais pobres, encontramos poucas áreas verdes, praças, árvores ou flores. A metáfora utilizada para definir o município de São Gonçalo, um corredor, tem um sentido sociológico intenso. Isto é dito de formas variadas por pessoas que mantêm vínculos com o município, o que denota certo sentimento de inferioridade social dos moradores, provavelmente fruto de um passado histórico que não temos pretensão de explorar e também de um presente marcado pelo empobrecimento da população. Esta expressão só foi adquirindo significado com o passar do tempo, à medida que ampliávamos as leituras sobre o município e os contatos com os moradores. O município também é constituído de trabalhadores de Niterói ou do Rio de Janeiro que, na sua maioria, não residem no local. Em estudo etnográfico realizado em outro bairro de São Gonçalo, sobre a construção da identidade dos trabalhadores nos meios populares, Guedes (1997) percebe que a cidade aparenta um longo processo de construção pelos moradores. Ela identifica São Gonçalo como um espaço de trabalhadores ocupado principalmente pelos desenraizados, denominação atribuída aos habitantes de outras cidades pelos moradores mais antigos que nasceram e residem no local. São basicamente os que transformaram o local em uma cidade-dormitório, provenientes de Niterói ou do Rio de Janeiro, que ocupam a “segunda São Gonçalo”, classificada como nova ou periférica, cobrindo as áreas de ocupação urbana mais recentes, em loteamentos carentes de serviços urbanos e com índices de poluição e violência marcantes (Guedes, 1997, p.60). O estudo identifica a presença de um estigma ou preconceito dos moradores de Niterói ou do Rio de Janeiro, que classificam os gonçalenses como “caipiras ou roceiros, pessoas que não detém as regras do comportamento público nas cidades, fazendo escândalos ou algazarras” (Guedes, 1997, p.59). Dados censitários sobre São Gonçalo permitem classificá-lo como um município pobre pois, apesar de ocupar o terceiro lugar em número de habitantes no estado do Rio de Janeiro, com 889.828 habitantes (Censo 2000, IBGE) distribuídos pelos seus 90 bairros, foi classificado em 37º lugar em termos de índice de qualidade de vida (IQV - UFF, 1997) entre os 81 municípios do Rio de Janeiro. 4 As creches comunitárias recebem convênios obtidos da Organização Mundial para a Educação Pré - Escolar OMEP, e verbas da Prefeitura de São Gonçalo. As creches comunitárias devem apresentar um padrão de infraestrutura avaliado por profissionais da FIASG que se encarregam da distribuição dos convênios. 16 São Gonçalo5 está localizado a 10 quilômetros de Niterói e 30 quilômetros do Rio de Janeiro. De acordo com documento da Prefeitura Municipal (2000), predominam iniciativas econômicas nos setores farmacêutico, pesqueiro, químico, metalúrgico, de construção civil e de confecção de roupas. Quando circulamos pelos bairros encontramos vendedores ambulantes, camelôs e creches domiciliares, que caracterizam um crescimento do setor informal de trabalho num contexto social marcado pelo desemprego. Em um bairro vizinho ao bairro Saudade está localizado um grande aterro sanitário, com famílias, crianças e adolescentes vivendo do trabalho de catação do lixo6. A população infantil gonçalense enfrenta condições sócio-econômicas precárias, pois a vulnerabilidade à pobreza e à violência é maior entre as crianças pequenas. São Gonçalo apresenta casos de violência contra crianças e adolescentes, tráfico de drogas e problemas ambientais como poluição das águas, vazamento e lançamento de óleo, deficiência de cobertura arbórea, favelização e sub-habitação. Na medida em que ampliávamos o conhecimento sobre São Gonçalo identificávamos a ausência de uma política de creches públicas para as crianças menores de três anos, no ano 20007. A Lei Orgânica do Município de São Gonçalo, promulgada em abril de 1990, prevê no capítulo II que o município deve manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do estado, programas pré-escolares e de ensino fundamental. Porém, não há qualquer referência às creches. Na parte sobre o dever do município com a educação, só o ensino fundamental é considerado obrigatório e gratuito no artigo 166, e a atuação prioritária do município abrange 5 Nos quatro últimos anos, São Gonçalo foi governado pela Frente Popular formada por um conjunto de onze partidos das mais variadas matrizes ideológicas (PDT, PT, PTB, PSL, PST, PPS, PRN, PSB, PSD, PV e PR), com o PDT à frente do governo. Nas eleições de 2001 o partido que venceu as eleições foi o PMDB. 6 Sobre o lixão de São Gonçalo consultar PAIXÃO, Léa Pinheiro “Catadoras de Dignidade: Assimetrias e tensões em pesquisa no lixão” In: ZAGO, Nadir & outros. Itinerários de Pesquisa. Perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 7 Em maio de 2000 a Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SEMEC - contava com 1.337 crianças matriculadas na faixa dos quatro anos e 1.581 crianças matriculadas na faixa dos cinco anos. Naquele ano a SEMEC havia suspendido o atendimento a crianças de três anos que freqüentavam classes pré-escolares. O município contava com apenas uma creche com aproximadamente 75 crianças dos dois anos e meio aos seis anos. Quanto à rede estadual, o relatório de pesquisa de Neves & Lugão Rios (FAPERJ, 2000) destacava uma redução da matrícula de educação infantil de 5.583 crianças em 1997, para 686 matrículas no ano 2000, quando o município assumiu a rede pré-escolar. No que se refere às creches comunitárias encontramos 15 creches conveniadas e quatro não conveniadas, que cobravam mensalidades em torno de sete a dez reais dos familiares e atendiam 1.132 crianças dos dois anos e meio aos seis anos. 17 o ensino fundamental e o pré-escolar. No item IV é mencionado como dever do município o atendimento em creches e pré-escolas até os sete anos de idade. Entretanto, só as pré-escolas são incluídas nos parágrafos 1º e 4º do artigo 166, no tocante às previsões de instalações adequadas e com adaptações nas escolas municipais. No Projeto de Lei sobre as Diretrizes Orçamentárias para 1999, a parte referente à educação e ao objetivo de ampliar a oferta de vagas e melhoria do ensino está direcionada apenas para o ensino fundamental. Os resultados do mapeamento confirmam a prioridade do município com relação ao ensino fundamental. São setores da sociedade civil, ONGs - Organizações NãoGovernamentais e organizações internacionais que assumem o ônus dos custos com a educação infantil, principalmente das creches, como saída para cobrir os déficits das políticas públicas. Predomina a rede privada no atendimento às crianças menores de três anos das camadas populares, uma vez que há iniciativas para suprir a ausência de políticas públicas, através do atendimento privado não legalizado (creches domiciliares e filantrópicas), ou privado legalizado (creches comunitárias). Em São Gonçalo é quase inexistente uma política pública que pelo menos sirva de apoio, supervisão ou orientação às iniciativas privadas destinadas às camadas populares. Mas é importante ressaltar que existem diferenciações entre São Gonçalo e outros municípios brasileiros que têm procurado investir em políticas de creches e de qualificação das profissionais, como os de São Paulo, Florianópolis, Belo Horizonte, entre outros. Os primeiros contatos com as creches domiciliares aconteceram durante nossas incursões pela cidade. Impossível passar pelas suas ruas sem observar as placas com anúncios de toma-se conta de crianças, espalhadas pelos 90 bairros do município. Pelas informações obtidas com a dirigente de Creches Comunitárias de São Gonçalo Isadora - soubemos que as creches domiciliares começaram a ocupar espaço no município num contexto em que as creches comunitárias eram insuficientes para atender as demandas 18 das camadas populares. Alguns grupos de moradores começaram a procurar esses espaços para suprir as necessidades de emprego e de cuidado/educação8 das crianças. Foi possível identificar nossa opção de estudo em 1999 quando, em uma visita ao Sindicato das Escolas Particulares de São Gonçalo - SINEPE obtivemos uma listagem com 571 escolas infantis não legalizadas9, entre elas as creches domiciliares. O contato com o SINEPE forneceu as primeiras pistas ou evidências de que ali tínhamos um desafio; entretanto, não conseguimos obter dados mais completos sobre a listagem, porque naquele ano ela incluía somente a contagem e o registro das instituições. Foi dito que as mensalidades das escolas não legalizadas variam de 30 a 50 reais e que a fiscalização dos equipamentos deve ser realizada pelo Conselho Municipal de Educação. Quando definimos as creches domiciliares como problemática de pesquisa começamos a pensar em possibilidades mais efetivas de aproximação com esses espaços. Encaminhamos em setembro de 2000 um questionário via correio para os endereços que continham a denominação creche - totalizando 51 equipamentos da lista do SINEPE. Esse questionário tinha como objetivo coletar informações gerais sobre o perfil das trabalhadoras, dos espaços, das crianças e das famílias. Não obtivemos respostas a nenhum dos questionários enviados e seis retornaram por motivo de troca de endereço10. Possivelmente a tentativa de aproximação pelos questionários não tenha obtido êxito porque as mulheres trabalham na clandestinidade e temem a possibilidade de fechamento das creches domiciliares, o que representa uma ameaça a sua sobrevivência e das famílias, que necessitam desses serviços para trabalhar. Nossa última opção foi procurar a Presidente da ARTICRECHE11 e fazer uma análise das probabilidades de escolha de um ou dois bairros do município para a coleta das informações. Escolhemos o bairro Saudade, que já conhecíamos de outras visitas. Além disso, 8 Utilizamos a nomenclatura cuidado/educação dessa forma, com base nas reflexões de Kramer (2003) a respeito das dissociações que as palavras cuidar e educar podem contemplar, quando na realidade quem educa sempre cuida. 9 Na lista do Sinepe, as escolas não legalizadas recebem as denominações de creches, pré-escolas, jardins de infância, alfabetização e séries iniciais. 10 Uma carta acompanhava o questionário e propunha contatos por telefone, caso fosse difícil para as profissionais o encaminhamento das respostas pelo correio. Apenas duas profissionais fizeram ligações, uma informando o fechamento da sua creche em 1999 e outra justificando que cuidava de uma criança da vizinhança e que não era proprietária de creche. 19 Isadora residia no local há mais de 30 anos e se propôs intermediar nosso acesso às creches domiciliares, nenhuma delas registrada no levantamento do SINEPE. Nessa fase inicial elaboramos entrevistas semi-dirigidas com questões referentes aos problemas que identificávamos, seja pela consulta à literatura, seja pelas primeiras explorações no município12. Entramos em cinco creches domiciliares, totalizando 10 horas de entrevista com cinco tomadoras de conta que chamaremos de Norma, Regina, Suzana, Fernanda e Denise13. Norma e Regina trabalham em outras casas pertencentes às famílias de origem. Um traço que caracteriza o bairro Saudade é que as mulheres casadas costumam alugar ou utilizar casas de parentes para tomar conta de crianças, devido às pressões dos cônjuges que não aceitam a fusão entre mundo doméstico e mundo do trabalho. Suzana é a única tomadora de conta casada que trabalha na residência. Porém, estava trabalhando há apenas um mês e com horários mais flexíveis, das 10: 30 às 19h. Fernanda e Denise são mulheres sozinhas e responsáveis pelo sustento da família. Ambas têm filhas e residem na casa em que tomam conta de crianças. Quanto ao tipo de prédio e organização do espaço, as creches de Regina, Suzana e Fernanda localizam-se em casas velhas, com pouca iluminação e ventilação. Apenas a creche de Denise situa-se em uma casa nova e ampla, bem arejada e com boa iluminação. Todas as casas possuem pátios relativamente espaçosos, com grama ou área coberta. As casas de Suzana, Fernanda, Norma e Regina possuem dois quartos, cozinha e copa, banheiro, varanda e pátio. A casa de Denise tem três quartos, uma cozinha, dois banheiros, sala, pátio e varanda coberta. No que diz respeito ao tempo de trabalho, apenas a creche de Suzana estava funcionando há um mês. As demais funcionavam há um tempo que variava entre três e seis 11 A presidente da ARTICRECHE de São Gonçalo, Isadora, também dirigia no ano 2000, a única creche comunitária do bairro Saudade. 12 Optamos por não usar o gravador, pois pretendíamos retornar mais adiante e temíamos intimidar as trabalhadoras. Nosso procedimento foi conversar com as pessoas, mediante um roteiro semi-estruturado que preenchíamos durante a conversa; após as entrevistas completávamos o roteiro com maiores detalhes. 13 Os dados comentados sobre as cinco creches domiciliares são referentes ao ano de 2000 e, pelo menos na creche de Denise (local selecionado para o estudo de caso), observamos algumas modificações comentadas nos capítulos posteriores, tais como diminuição do número de crianças e alterações dos horários de trabalho. 20 anos, com exceção da de Denise, que trabalhava há três anos na residência atual, mas tomava conta de crianças desde 1987, em casas alugadas. No ano 2000 as creches recebiam crianças com menos de um ano até 11 ou 12 anos. As crianças maiores permaneciam meio período nas creches; além da alimentação e higiene recebiam orientação escolar e eram acompanhadas pelas profissionais, ou ajudantes, até a escola de ensino fundamental. Os horários de trabalho geralmente ultrapassam oito horas diárias. Norma, Denise e Fernanda iniciam o trabalho entre 5:30 e 6:00 da manhã sem horário de encerramento. A creche de Norma funciona como um semi-internato, pois três crianças dormem durante a semana na sua casa. Exceto a creche da Regina, que mantém um horário mais formalizado (de segunda a sexta-feira, das 7hs até 21hs), as demais funcionam em feriados e fins de semana. As tomadoras de conta não gozam férias e só descansam no carnaval e nas festas de final de ano. As rotinas de trabalho incluem alimentação, higiene, algum tipo de recreação ou brincadeiras livres, sono e TV. A importância da disciplina e dos castigos foi enfatizada por Regina e Norma. Há poucos brinquedos e jogos nas creches, e foi dito que as crianças trazem seus brinquedos de casa, ou as tomadoras de conta aproveitam os brinquedos dos/as filhos/as. Também não há uma organização do espaço das casas em função das crianças. Não encontramos armários e prateleiras com objetos ao alcance das crianças, com exceção da creche de Fernanda, que possui armários baixos e uma mesa com cadeiras pequenas na sala. As refeições principais (café, almoço e janta) são servidas em todas as creches e mantidas com as taxas pagas pelos familiares. Algumas famílias contribuem com o lanche, fornecendo leite, biscoitos, iogurte ou frutas. Todas as tomadoras de conta levam as crianças ao pronto-socorro, médico, ou posto de vacinação, quando isto não é possível para os pais. As taxas de matrícula são cobradas por Regina e Fernanda (dez e quinze reais, respectivamente) e as mensalidades nas cinco creches variam em torno de cinqüenta reais. Norma, Fernanda, Suzana e Denise estabelecem preços de acordo com a situação financeira das famílias, e há casos de famílias mais pobres que pagam trinta reais. Com exceção de Suzana, as outras disseram que preenchem fichas das crianças e familiares, mas não permitiram que eu as consultasse, sempre fornecendo respostas evasivas: não estão aqui nesta casa... eu ainda estou organizando. 21 A maior parte das mães exerce profissões domésticas como empregadas ou diaristas e se responsabilizam pelos/as filhos/as de forma integral, mesmo quando casadas. Denise e Fernanda são mulheres que assumem a criação das filhas, sem ajuda de cônjuge ou outros familiares. Fernanda, de 39 anos, definiu-se como mãe solteira de uma menina de quatro anos e viúva, porque o pai da sua filha faleceu. Suzana, de 41 anos, tem três filhos do primeiro casamento e mais quatro filhos do segundo. Regina, de 42 anos, e Norma, de 45, são mulheres casadas há mais de 15 anos com dois e um filho, respectivamente. A idade das mulheres varia em torno dos 40 anos; apenas Denise tem 30 anos. Norma, Regina e Fernanda são negras e Denise e Suzana são brancas e descendentes de índios. As cinco mulheres trabalham com as filhas, filhos ou sobrinhos/as. Os filhos, sobrinhos ou vizinhos desempenham funções ligadas ao mundo externo, como fazer compras para a creche, ou levar e buscar as crianças na escola. Eles não participam das atividades ligadas ao cuidado das crianças, ao contrário das ajudantes, que trabalham diretamente com as crianças. Nenhuma das tomadoras de conta possui formação para o trabalho com crianças pequenas, mas sua escolaridade varia: Fernanda cursou até o segundo ano do ensino médio, Norma completou o ensino fundamental, Denise estava concluindo o ensino fundamental no ano de 2000 e Suzana e Regina não haviam completado o ensino fundamental. Quanto às crianças atendidas nas creches domiciliares, o número varia de oito a 19, e todas as tomadoras de conta têm filhos/as ou sobrinhos/as que convivem com as outras crianças. O número total de crianças freqüentando as cinco creches no período de novembro a dezembro de 2000 era de 62 e, destas, apenas 12 foram apontadas nas entrevistas como brancas. A distribuição da faixa etária e do sexo era de 13 meninas e seis meninos de zero a dois anos; quatro meninas e cinco meninos entre dois e três anos; cinco meninas e dois meninos entre três e quatro anos, três meninos de quatro a cinco anos; cinco meninos e uma menina de cinco a seis anos e seis meninas e 12 meninos na faixa etária a partir dos seis anos. Na última etapa da pesquisa, optamos por uma permanência mais longa dentro de uma creche que preenchesse os seguintes requisitos: faixa etária das crianças de zero a seis anos; presença do trabalho infanto-juvenil; conciliação entre o espaço de trabalho e a residência da tomadora de conta; disponibilidade de receber visitas para observações, pelo menos durante três meses consecutivos. Norma e Fernanda disseram que seria inviável aceitar nossa 22 permanência no local por muito tempo14. As outras tomadoras de conta concordaram, mas somente Denise preenchia os requisitos que selecionamos para o estudo, cujas questões de investigação e metodologia apresentaremos a seguir. 1.2 AS QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO O foco da investigação é a análise dos significados que assume a atividade de tomar conta de crianças para Denise e as mães das crianças, bem como a organização desse trabalho no cotidiano. A expressão utilizada pelos moradores do local quando se referem às creches domiciliares é tomar conta de crianças. Encontramos esta expressão nas placas de alguns equipamentos e, principalmente, nos discursos das mulheres que oferecem os serviços: vou receber mais dois bebês para tomar conta...; comecei a tomar conta dele na minha casa...; isto aqui é uma casa em que eu tomo conta de crianças. Ao escolher esta terminologia na formulação do problema queremos dissecar o termo tomo conta de crianças, sua abrangência e seus significados. Como Denise percebe o seu trabalho? O que faz com que algumas mulheres entreguem os filhos/as para Denise, quando a realidade do bairro demonstra que há outras creches domiciliares com preços compatíveis e que, aparentemente, as rotinas das tomadoras de conta são similares entre si? Como este trabalho se organiza no cotidiano? A questão central tem seus desdobramentos formulados a partir de nossos primeiros contatos com o campo empírico e do aprofundamento do referencial teórico: - Quais as relações entre os significados da atividade e as trajetórias de vida de Denise e das mães das crianças? - Por que Denise realiza essa atividade e como ela negocia e transita entre a sua vida familiar e o trabalho? 14 Norma e Fernanda foram mais resistentes em nos acolher e Isadora precisou fazer várias negociações até conseguir que elas nos recebessem. Como Norma não permitiu nossa entrada no interior da casa, sua entrevista foi feita no pátio. 23 - Quais as expectativas e impressões de Denise e das mães das crianças? O que esperam as mães das crianças quando delegam responsabilidades para Denise e, por outro lado, o que Denise pensa sobre estas responsabilidades e como reage frente às expectativas? - Como reagem as mães das crianças quando estas chamam Denise de mãe? - Como aparecem o mundo feminino e o mundo masculino nas falas e situações cotidianas da tomadora de conta e das mães das crianças? O que pensam as mulheres sobre a educação das crianças, a divisão sexual do trabalho, o casamento e o lazer? - Como se organiza o trabalho no dia a dia da creche domiciliar e quais modos de socialização são valorizados? Considerando o objetivo principal e o levantamento destas questões foi possível elaborar os objetivos específicos da investigação: 1)Descrever o universo físico da creche e os sujeitos adultos/crianças que o integram; 2) Analisar o tipo de trabalho que acontece no espaço da creche; 3) Analisar os sentidos do trabalho para Denise e as mães das crianças; 4) Relacionar a organização e os sentidos deste trabalho para os adultos com imagens de infância, de feminino, masculino e educação; 5) Identificar pontos de acordo e pontos de tensão nas relações entre Denise e as mães das crianças. 1.3 A METODOLOGIA Embora saibamos que a nomenclatura não é o mais importante na definição de uma investigação, a construção do trabalho de campo, essencialmente na sua última etapa, proporcionou uma identificação com o estudo de caso etnográfico, também denominado de pesquisa de terreno sociológica por Costa (1989, p.129)15. Os termos designados pelo autor numa referência ao estilo de pesquisa que supõe a presença prolongada do investigador no contexto social em estudo e o contato direto com as pessoas e as situações - não são 15 Quanto às origens da pesquisa de terreno em sociologia, Costa (1987, p. 130) escreve que o seu maior impulso foi dado nos EUA pela Escola de Chicago e que a dupla influência desta escola e do trabalho de campo tal como vinha a ser praticado em antropologia estão na base, em termos metodológicos, de pesquisas de terreno em meios urbanos e rurais. 24 exatamente sinônimos uns dos outros. Todavia eles são assim referidos para designar este estilo de pesquisa, porque se diferenciam de outras estratégias metodológicas, como aquelas baseadas somente na análise de dados estatísticos, ou as que têm como principais procedimentos a realização de inquéritos por questionários ou entrevistas através de contatos pessoais, de caráter pontual (Costa, 1987, p.130). Por estas razões concordamos com o autor quando estabelece semelhanças entre a pesquisa de terreno sociológica e o estudo de caso etnográfico, na medida em que há aproximações, principalmente no que diz respeito às técnicas de coleta e registro das informações, à presença do/a pesquisador/a no contexto estudado, entre outras características que são aqui enunciadas. O estudo de caso tem sido identificado como a observação detalhada de um contexto, de um indivíduo, de uma única fonte de documentos ou de um acontecimento específico (Merrian16 apud: Bogdan & Biklen, 1994). Como observa Sarmento, o estudo de caso foi apropriado diferenciadamente, revelando-se pregnante às diversas inspirações teóricas e metodológicas. As referências, porém, são quase sempre direcionadas para a inspiração etnográfica, seja porque marcadas pelos aspectos simbólicos e culturais da ação social, ou ainda porque tratam da “apropriação dos aspectos existenciais que se revelam fundamentais na interpretação do modo de funcionamento das organizações e outros contextos singulares de ação” (2003, p. 137-179). De acordo com Bogdan & Biklen (1994), nos anos de 1980 a investigação qualitativa recebeu influências da teoria e prática feministas. As feministas desempenharam um papel importante enquanto impulsionadoras de investigações sobre as emoções e os sentimentos; nas ciências sociais foram atraídas pelos métodos qualitativos porque estes possibilitavam que as interpretações das mulheres assumissem um papel central. Os autores ainda destacam que as feministas se voltaram para as relações entre investigadores e atores sociais e para as implicações políticas das investigações. Na apreensão dos sentimentos e emoções, contudo, a palavra escrita assume importância tanto no registro dos dados como na apresentação dos resultados. 16 MERRIAM, S. B. The case study research in education. San Francisco: Jossey-Bas, 1988. 25 Tal como observa Geertz “fazer etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos” (1989, p. 20). Para Bogdan & Biklen (1994, p. 59), a descrição densa implica em uma apreensão dos significados que os membros de uma cultura têm como adquiridos; no registro dos dados e resultados da investigação, estes novos significados são apresentados às pessoas exteriores à cultura. Esta descrição minuciosa é possível porque o principal instrumento de recolha de informações é o/a pesquisador/a. Nesse sentido, o termo significado é central nesse estudo, pois estamos interessados no modo como diferentes pessoas dão um sentido para fatos das suas vidas, como elas próprias interpretam as suas experiências ou estruturam o mundo social no qual vivem (Bogdan & Biklen, 1994, p. 50). Como temos afirmado, o principal instrumento de pesquisa é o próprio investigador que observa locais, objetos e símbolos, pessoas, atividades, comportamentos, interações e situações. A presença diária do investigador no contexto introduz no local novas relações sociais, não só no que diz respeito às relações entre observador e observados: o próprio tecido social em análise e os processos sociais desencadeados pela pesquisa devem ser tomados em conta na produção e análise dos dados (Costa, 1989, p.132). Tecidas estas considerações pensamos que é improvável que não tenhamos construído uma identidade no local de estudo, pois nas trocas estabelecidas entre observadora e observados também sedimentam-se os papéis da investigadora, “certas características sociais do investigador, particularmente a sua pertença de classe e a sua atividade profissional, condicionam o processo de recolha da informação e devem ser tomados em conta na análise” (Costa, 1989, p. 145). A forma como nos apresentamos para as pessoas não corresponde necessariamente à imagem que elas constroem e nossa identidade vai se redefinindo na seqüência do trabalho de campo. Uma prova desta afirmativa é a interpretação que os sujeitos envolvidos na pesquisa fizeram do meu papel enquanto pesquisadora no local. Mesmo que eu tenha me apresentado como aluna do curso de doutorado em educação e particularmente interessada na educação da infância, outras interpretações foram construídas durante meu período de convivência no local. Fui, desta forma, interpretada como uma assistente social e alguns moradores temiam que eu fosse encarregada de fechar a creche domiciliar. Após algum tempo fui interpretada como 26 alguém com jeito de psicóloga, e finalmente como uma pedagoga que podia responder questões sobre educação, uma vez que eu havia obtido um diploma na Universidade. Passamos a seguir a expor os métodos e técnicas utilizados, entendendo o método como “uma estratégia integrada de pesquisa que organiza criticamente as práticas de investigação, incidindo sobre a seleção e articulação das técnicas de recolha e análise da informação” (Costa, 1989, p. 129). A escolha das técnicas de coleta de dados relaciona-se tanto à nossa opção metodológica - vinculada aos estudos qualitativos - como ao nosso quadro teórico, o que nos permite falar de um método de pesquisa compreendido como um conjunto de estratégias para responder as questões formuladas pela investigação. Os principais instrumentos de pesquisa que utilizamos foram entrevistas semiestruturadas e observações. 1.3.1 As observações Num período de quatro meses (de setembro a dezembro de 2000) observamos creches domiciliares de forma assistemática, ou seja, com visitas curtas e esporádicas e anotações exploratórias que permitiram levantar hipóteses a respeito destes espaços, assim como redirecionamos nossas questões de pesquisa e opções metodológicas. Totalizamos, nesse período inicial, oito horas de observações em creches domiciliares. Quando definimos a creche de Denise para o estudo de caso somamos 60 horas de observações entre os meses de junho, julho e agosto de 2001, assim como definimos nesse período alguns procedimentos básicos. Inicialmente procuramos alternar as visitas durante os dias da semana, com permanência total segundo os horários de funcionamento da creche: manhã, tarde e aproximadamente até 22h, de maneira que as rotinas e atividades fossem objeto de nota. Como tínhamos realizado algumas observações curtas, desta vez sentimos necessidade de permanecer os três turnos na creche durante pelo menos duas semanas, para compreender melhor sua dinâmica de funcionamento. Assim, decidi passar uma noite na creche com o intuito de observar os preparativos de Denise para receber as crianças, bem como a chegada de cada uma delas e as recomendações dos familiares. Escolhi pernoitar na casa de Denise de 27 domingo para segunda-feira, o que não se constituiu em uma experiência tranqüila, devido ao medo que experimentei com relação ao bairro Saudade, considerado um local perigoso pelos moradores de São Gonçalo. Gradativamente fomos diminuindo a intensidade das observações que nos primeiros momentos atingiram um tempo muito extenso, uma vez que alguns padrões se repetiam, embora com variações. André (1995, p.28) escreve que na observação “o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”. Durante o tempo em que permanecemos em campo, esta questão se tornou evidente, não somente pelo que observávamos e pelo grau de importância que isto assumia para nós, como também pelas evidências de que eu também era observada o tempo inteiro desde que descia do ônibus e caminhava em direção à casa da tomadora de conta onde ela, as ajudantes e as crianças passavam boa parte do tempo a me observar e fazer comentários, ou perguntar sobre os rumos da investigação. Como sempre procurei expor com clareza o objetivo da pesquisa, na medida em que o tempo passava percebia que Denise procurava contribuir comigo, pois freqüentemente fazia observações sobre a coleta de informações: vem cá, que eu tenho um monte de dados; este texto que você tem na pasta é da sua pesquisa? Você já conseguiu digitar tudo que você anotou ontem? Pensamos que as atitudes de confiança com relação ao nosso trabalho são também uma conquista pelo cuidado e seriedade que demonstramos logo de início, pois procuramos garantir a proteção dos informantes, bem como o anonimato e a discrição quanto aos fatos e acontecimentos que observamos. Todos os acordos e pedidos foram respeitados, como, por exemplo, a solicitação de um documento escrito da Universidade com o intuito de confirmar minha presença no local, devido ao controle exercido pelos traficantes com relação à entrada e saída de pessoas estranhas no bairro. As crianças interagiam todo o tempo comigo e constantemente faziam perguntas sobre as anotações. O diário de campo para elas tornou-se fonte de explorações. Elas solicitavam minha presença em algumas brincadeiras e canções, ou nas perguntas que faziam sobre minhas anotações e visitas diárias. Em algumas situações Denise solicitava minha ajuda no cuidado dos bebês, assim como preparei pipocas e bolo para as crianças em algumas tardes. 28 O registro das observações foi acompanhado de anotações reflexivas em diários de campo que priorizaram os seguintes aspectos: descrição do espaço físico, dos sujeitos, do cotidiano da creche, das reações e alterações em nosso comportamento e no comportamento das crianças, jovens e adultos, das entradas e saídas na creche e das situações inusitadas que vez por outra aconteciam no local. Igualmente utilizamos a técnica da observação como um recurso para a elaboração dos roteiros de entrevistas com Denise, Bia, Nara e as mães das crianças. 1.3.2 As Entrevistas Caracterizamos as entrevistas como semi-estruturadas. Os roteiros foram elaborados após as observações, quando nos deparamos com situações ou acontecimentos significativos, como depoimentos informais, ou com as reflexões decorrentes das anotações de campo e contatos com a literatura consultada. Destacamos que as entrevistas possibilitaram uma reflexão dos atores sociais entrevistados sobre suas existências, comportamentos ou situações. Registramos as entrevistas pelo gravador e por meio de anotações redigidas no início ou no final das entrevistas. Inicialmente ficamos receosas de que as pessoas não aceitassem o fato de que suas informações fossem gravadas. Mas as/os informantes sentiam-se importantes ao falar e, antes de algumas entrevistas, passamos um tempo brincando, gravando e ouvindo as vozes. Isso aconteceu, sobretudo, com os informantes mais jovens e com a tomadora de conta de crianças. Completando 17 horas de registro das informações, realizamos 11 entrevistas em três etapas. Primeiro entrevistamos pessoas do bairro com a intenção de compreender melhor a situação do local e dos seus moradores, totalizando três entrevistas com três horas de duração. Foi elaborado um roteiro de questões específicas sobre o bairro e entrevistamos Isadora, a dirigente de creches comunitárias que lá reside aproximadamente 30 anos; entrevistamos ainda Denise, a tomadora de conta de crianças e Fernando, um jovem de 16 anos amigo de Nara (filha mais velha de Denise). 29 Num segundo momento, elaboramos um roteiro com questões sobre a trajetória de vida e trabalho da tomadora de conta que totalizou quatro horas de entrevista, bem como um roteiro de entrevista para as duas ajudantes, Bia e Nara, totalizando duas horas. Por último entrevistamos cinco mães de crianças (Elisa, Juçara, Marta, Laura e Íris), somando seis horas de entrevistas. No que diz respeito a esta seleção, as condições de trabalho dos familiares das crianças e as longas horas decorridas entre a sua chegada e saída do trabalho limitaram nosso acesso a estes. Em função disso, a tomadora de conta marcava horários alternativos, de acordo com a situação de vida de cada uma das mães17. As entrevistas foram realizadas aos sábados, domingos, em horários noturnos, ou em intervalos de almoço. 1.3.3 Análise dos dados A análise de dados, para Bogdan & Biklen (1994), é o momento em que organizamos de forma sistemática as transcrições das entrevistas e as notas de campo. Este processo envolve a organização, a divisão das informações em unidades ou eixos temáticos, a síntese das informações e a decisão do que iremos apresentar e analisar na redação final. Optamos pela análise das informações após o período de trabalho de campo, o que não excluiu uma préanálise dos dados enquanto redigíamos as notas de campo. No tratamento dos dados obtidos pela pesquisa de campo fizemos uma análise de conteúdo com fundamentos em Bardin (1977) e Vala (1989). A análise de conteúdo é uma técnica de pesquisa que permite fazer inferências dos dados para o seu contexto e exige uma explicitação dos procedimentos utilizados (Vala, 1989). Para Bardin (1977) é a inferência que permite a passagem da descrição à interpretação, enquanto atribuição de sentidos às características do material que levantamos e organizamos. Conforme explica Vala (1989), nesse percurso desmontamos um discurso e produzimos um outro. A análise dos dados incluiu a codificação das informações coletadas durante o trabalho de campo em conexão com o referencial teórico. As categorias de codificação são decorrentes 17 Não conseguimos entrevistar os pais das crianças. Um deles se dispôs a conceder entrevista, mas como estava alcoolizado e sob efeito de drogas não conseguimos levá-la adiante. 30 da leitura exaustiva das informações, processo que permitiu o destaque de frases, acontecimentos e formas de pensamento que apresentavam certa regularidade. Procuramos organizar os dados em unidades e eixos temáticos. Esta análise temática dos dados é denominada por Bardin de “núcleos de sentido”, que são os elementos que “compõem a comunicação e cuja presença ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido” (1977, p.105). Fomos recortando as três dimensões que entendemos como macro-categorias (trajetórias e sentidos do trabalho para a tomadora de conta, trajetórias e sentidos do trabalho para as mães e cotidiano na creche domiciliar), que por sua vez geraram categorias médias, todas elas analisadas no desenvolvimento e conclusão da tese. Como optamos por uma simbiose discursiva entre as referências teóricas, os dados empíricos e nossas análises na construção do texto, informaremos brevemente sobre a literatura referente às creches domiciliares e sobre os eixos articuladores do estudo. 1.4 CRECHES DOMICILIARES E EIXOS TEÓRICOS ARTICULADORES DO ESTUDO Nosso procedimento não foi fazer um levantamento bibliográfico sobre creches domiciliares. Assim selecionamos alguns textos com a intenção de compreender a origem, os programas implantados, o trabalho e o cotidiano desses espaços no Brasil e em outros países. No desenvolvimento do texto utilizamos as expressões creche domiciliar, creche de fundo de quintal, lar vicinal, lares de cuidado diário, casa da tomadora de conta, creche e residência de Denise, todas elas com o mesmo sentido que é a de um espaço no qual “uma mulher toma conta em sua própria casa, mediante pagamento, dos/as filhos/as de outras famílias” (Rosemberg, 1986, p.73). Adotamos o mesmo procedimento com relação às trabalhadoras de creches domiciliares, designadas na literatura como mães crecheiras, mães substitutas, mães guardadeiras, amas, assistentes maternais, provedoras de cuidado diário, ou como tomadoras de conta de crianças, pelos moradores de São Gonçalo. De forma geral, os estudos brasileiros mencionam experiências que foram aproveitadas, legalizadas ou apoiadas por órgãos governamentais, entidades assistenciais e 31 organismos estrangeiros desde 1970. Os programas nacionais de creches domiciliares iniciaram em cidades satélites de Brasília. Mais adiante, passaram a ser adotados, com algumas alterações, em outros municípios brasileiros, com orientação do Ministério da Previdência e Assistência Social - MPAS - até os anos de 198018. Estes programas propunham-se oferecer assistência às famílias das camadas populares, com ênfase nos aspectos de nutrição, saúde e desenvolvimento das crianças sem acesso a creches coletivas. As justificativas quase sempre se referem às limitadas disponibilidades físicas e financeiras do Estado para ampliar as creches convencionais, ou à liberação de mão-de-obrafeminina para o trabalho, associada à proteção das crianças em situação de pobreza (Boianovsky, 1981). As comunidades envolvidas nos programas implantados nos diferentes estados brasileiros19 são de baixo poder aquisitivo, com renda mínima de até dois ou três salários mínimos; as mães crecheiras, quando não são analfabetas, não completaram o ensino de primeiro grau. Entretanto, nas experiências de Brasília, as trabalhadoras selecionadas deveriam ter ensino primário completo e idade mínima de 65 anos. Franco (1988) destaca a pobreza das creches lares do Mucuripe por ela investigadas, algumas no nível da miséria, bem como os casos de desnutrição das crianças. 18 A literatura sobre creches domiciliares que consultamos vai dos anos de 1970 aos anos de 1990 e compreende experiências realizadas em cidades satélites de Brasília e em outros Estados brasileiros que passaram a adotar estes modelos. 19 Algumas dessas experiências são a de João Pessoa, com apoio da Legião Brasileira de Assistência - LBA (Viana, 1985); a de Campo Grande nos anos de 1980, em que as mães vinham desenvolvendo experiências com vizinhas que tomavam conta dos/ as filhos/as menores; estas foram aproveitadas pela Organização Mundial de Educação Pré - Escolar - OMEP e LBA, atingindo 300 crianças em 50 creches (Simão & Morettini, 1996); a de Fortaleza, com o Programa de Creches Lares do Mucuripe implantado pela Fundação Estadual do Bem - Estar do Menor - FEBEM (Franco, 1988); a experiência de Goiânia (Matos, Balestra & Simão, 1980); as experiências do Rio Grande do Sul mantidas pela FEBEM e pelo SESI (Bonamigo, 1984, Horn & Dornelles, 1997) e as experiências das cidades satélites em Brasília em 1979, com apoio da OMEP, que atingiram em média 472 creches domiciliares. As crianças atendidas nas cidades satélites de Brasília tinham matrícula garantida em préescolas, após os quatro anos de idade; este projeto fornecia material lúdico-pedagógico e avaliativo do desenvolvimento psico-motor (Boianovsky, 1981). A produção mais recente sobre creches domiciliares é o relatório geral do PRODEMAN - Coordenadoria de Pesquisa de Demandas Sociais19, que trata do serviço de mãe crecheira em áreas populares da cidade do Rio de Janeiro (1998). Esse trabalho é o resultado parcial de um levantamento sobre as condições de funcionamento das UCECs - Unidades de Cuidados e Educação de Crianças, denominadas Mães Crecheiras, no sentido de orientar a ação governamental para a adequação dessas iniciativas aos padrões de qualidade definidos pela SMDS - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Entretanto, o relatório contém só as tabelas referentes às entrevistas realizadas em uma das 34 comunidades selecionadas para a pesquisa e não apresenta uma análise dos dados obtidos. 32 Quanto às relações de trabalho, em todas as experiências observa-se o predomínio da informalidade, uma vez que as trabalhadoras não possuem vínculo empregatício, assim como o pagamento é dividido entre os programas financiadores e as famílias das crianças, com pequenas variações regionais. As mães crecheiras oferecem os serviços nos seus lares e contam com a ajuda de outros membros familiares. Em geral, recebem visitas domiciliares de jovens selecionadas na comunidade e treinadas por técnicos de nível superior. Outros profissionais também visitam esporadicamente as creches domiciliares, tais como assistente social, pedagoga, médico e nutricionista. Alguns estudos argumentam que as experiências são valiosas para as crianças menores de três anos, pelo cuidado mais individual que é proporcionado (Boianovsky, 1981), ou que o acompanhamento das visitadoras obtém boa receptividade, pelas similaridades entre a linguagem e os costumes culturais das famílias (Boianovsky, 1981; Simão & Morettini, 1996; Viana, 1985). Em todos os programas há um limite de crianças por creche, geralmente em torno de seis (Boianovsky, 1981; Matos, Balestra & Simão, 1980) ou dez (Bonamigo, 1984), incluindo os/as filhos/as das trabalhadoras. As crianças permanecem nas creches em média de 12 horas diárias e fazem as refeições. Os alimentos são fornecidos pelos familiares, mas em casos de extrema pobreza, os órgãos financiadores dos programas se encarregam da alimentação. A proximidade entre as casas dos familiares e as creches domiciliares, a flexibilidade de horários e os laços afetivos caracterizam todas as experiências consultadas. Destacamos, nesse conjunto de experiências, a do Centro de Cultura Luiz Freire (1994), pelas aproximações com o caso de São Gonçalo. Trata-se de pesquisa sobre a criação de uma rede paralela de educação infantil e de ensino fundamental, em 12 municípios da Região Metropolitana do Recife, por iniciativa de grupos das camadas populares20. O objetivo do levantamento foi desvendar as realizações dos excluídos das políticas públicas na educação, situação desconsiderada pelos que formulam, propõem e geram políticas educacionais. As escolas residenciais funcionam em casas alugadas ou cômodos da 20 O levantamento incluiu 864 escolas classificadas como particulares, residenciais, comunitárias e filantrópicas. A predominância da oferta de matrícula se concentrou nas pré-escolas (76%). Num total de 67.913 alunos/as matriculados/as na faixa etária de dois a sete anos, 45.112 estavam nas escolas particulares e residenciais, as mais procuradas pelas famílias pobres; 14.873 nas escolas comunitárias e 7.928 nas escolas filantrópicas. 33 residência da proprietária, ou em áreas do próprio quintal. Localizadas em bairros de periferia de áreas urbanas, apresentam problemas como falta de ventilação e aeração, iluminação insuficiente e falta de espaço de circulação entre as carteiras. São de pequeno porte e caracterizam-se pela informalidade e pelo relacionamento quase doméstico, funcionando praticamente como uma extensão da casa da professora, que divide as atividades docentes com os afazeres do lar. Freqüentemente trabalham na mesma escola duas ou três pessoas da mesma família. As famílias que procuram as escolas são em grande maioria pobres e com renda mensal próxima do salário mínimo. O documento propõe que sejam definidos critérios de legalização e reconhecimento destas escolas, uma nova conceituação de escola pública baseada nos interesses coletivos da população que extrapole a visão do sistema oficial, a necessidade de investimento na capacitação em serviço e uma articulação das experiências entre as escolas da rede oficial e estas escolas, no sentido de fortalecê-las no que elas têm de melhor. A respeito dos lares vicinais em Porto Alegre, Horn & Dornelles (1997) observam que a qualidade do atendimento à criança pequena deve existir em qualquer espaço e que num país tão grande e com características distintas é inviável padronizar este atendimento, assim como a institucionalização de todas as crianças de zero a seis anos a curto ou médio prazo. Destacamos, ainda, o artigo “Creches domiciliares: argumentos ou falácias”, de Rosemberg (1986), que analisa os principais argumentos utilizados por organismos internacionais e por experiências subvencionadas pelo Estado para justificar programas que pretendem conciliar baixo custo, baixa tecnologia, responsabilizando, ainda que indiretamente, famílias e profissionais, que acabam assumindo o ônus dos custos com creches domiciliares. Por outro lado, os estudos comprovam que no Brasil existe uma rede paralela de educação infantil que não podemos ignorar. Esta rede paralela para as camadas populares confirma a pressão da população por serviços de creches e, ao mesmo tempo, a omissão de uma política pública para a pequena infância. Os órgãos governamentais responsáveis pela elaboração de políticas públicas, os intelectuais do campo e as instituições responsáveis pelos levantamentos estatísticos de educação infantil terão de considerar esta realidade, na definição 34 de ações, recursos e orientações. Este é o ponto mais importante a ser enfatizado, porque o que já existe e funciona, ainda que precariamente, não pode mais ser ignorado. Possivelmente, programas como aqueles desenvolvidos em Brasília não tenham tido continuidade pelos avanços obtidos com a Constituição de 1988 e com a Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9.394/96, no que diz respeito ao entendimento das creches como instituições vinculadas à educação básica devendo, assim, ser regulamentadas, autorizadas e credenciadas segundo critérios pedagógicos, de infra-estrutura dos espaços e de formação das profissionais. Todavia, tudo indica que estas saídas emergenciais estão retornando com a entrada do século XXI. Em junho de 2000 a Secretaria de Estado da Assistência Social - SEAS - aprovou uma proposta de portaria instituindo novas modalidades de atendimento que observem a Política Nacional de Assistência Social, priorizando ações para os destinatários cujo rendimento familiar mensal per capita seja de até meio salário mínimo (crianças de zero a seis anos portadoras de deficiência e crianças em situação de extremo risco). O Artigo 6º autoriza a criação de novas modalidades, como atendimento domiciliar. No Anexo II está previsto o atendimento de crianças em casas de família, com adequada supervisão técnica. Mais recentemente, o Plano Plurianual de Educação do MEC, justificando a baixa cobertura do atendimento de zero a três anos, bem como as dificuldades para atender esta demanda e a situação de pobreza das crianças pequenas, apresentou a proposta de Bolsa Infância, para que a mãe fique em casa com as crianças menores de quatro anos. É assim que as soluções de emergência e os sistemas paralelos de atendimento, com ênfase na responsabilidade das famílias pobres, estão reaparecendo como medidas paliativas para o cuidado/educação das crianças pequenas, agora com a intervenção do Banco Mundial nos países do terceiro mundo (Penn, 2002; Rosemberg, 2002). É interessante examinar programas mais amplos de creches domiciliares em outros países da América Latina, como Colômbia, Chile e Venezuela. A literatura sobre as experiências desses países confirma a isenção do Estado e o apoio de ações para que as famílias e as comunidades assumam o cuidado/educação das crianças menores de sete anos pertencentes a setores pobres. A orientação dos programas segue os mesmos preceitos das experiências brasileiras do final do século XX, que colocam ênfase na saúde, nutrição e desenvolvimento das crianças. 35 Bonamigo (1984) escreve que as primeiras experiências domiciliares na Colômbia datam de 1800 com as Escolas Banco, nas quais as crianças de quatro a dez anos levavam um banco para as casas nas quais eram ensinadas por mães voluntárias de baixa escolaridade. No Chile e na Colômbia é relevante a ênfase na responsabilidade e controle dos programas pelas pessoas da comunidade, como jovens de 15 a 20 anos treinados como líderes comunitários, ou pais das crianças responsáveis pela execução dos programas. Na Colômbia (ICBF, 1991), uma experiência de Lares Comunitários utilizou o sistema de Associação de Pais para administrar as iniciativas em cada comunidade, incluindo a seleção de mães crecheiras e a distribuição de recursos recebidos do governo nacional, das entidades públicas e privadas e das cotas de participação dos familiares. Ocorre uma redução do papel do Estado, justamente nas experiências destinadas às camadas mais pobres da população, em países como Brasil, Colômbia, Venezuela e Chile. No Brasil, o caso de São Gonçalo e de outros municípios confirma que existe uma rede paralela de educação infantil que ainda permanece incógnita. No que se refere à produção de estudos em outros países optamos por tecer alguns comentários sobre as experiências dos Estados Unidos, Portugal21 e França. Esta escolha se justifica porque no desenvolvimento dos capítulos utilizamos referências de sociólogos/as ou educadores/as que discutem questões pertinentes à nossa problemática e que pertencem a esses países. Assim, as informações sobre os três países visam tão somente estabelecer algumas semelhanças e diferenças com o Brasil, o que aprofundaremos ao longo dos capítulos. De forma geral, nos três países as creches domiciliares são subvencionadas pelo Estado e são menos caras do que as creches convencionais. A preferência pelas creches domiciliares concentra-se na faixa inferior a três anos de idade; elas são conhecidas pelas estatísticas, assim como existe supervisão e tentativas de profissionalizar as trabalhadoras. Destacamos ainda outros aspectos, como a localização das creches no domicílio das trabalhadoras, as aprendizagens informais e a preferência das famílias pelo ambiente mais caseiro que permite acolher os irmãos das crianças. 21 Em Portugal, país no qual realizei doutorado sanduíche no período de novembro de 2001 a abril de 2002, mantive contato com um projeto de formação de amas ilegais. Esse projeto estava vinculado à Associação PróDesenvolvimento para as Comunidades Locais, em parceria com a Universidade do Minho - Instituto de Estudos da Criança. No período visitei duas creches domiciliares da área rural do município de Guimarães e entrevistei a 36 Na França há uma variedade de modalidades de creches com apoio do Estado e a creche domiciliar não se constitui na única opção dos familiares. Nos Estados Unidos esta era a modalidade de creche mais difundida nos anos de 1980 (Ferrier, 1988; Nelson, 1990). Nesse país e em Portugal há trabalhadoras ilegais e, no caso dos Estados Unidos, algumas creches não cumprem as exigências e disposições legais para sua inscrição e funcionamento. Segundo Margareth Nelson (1990), na legislação norte-americana é dito que a provedora fornece serviços a crianças por menos de 24horas e freqüentemente completa o atendimento de crianças mais velhas que passam outros períodos na pré-escola, ou em programas escolares elementares. Considerando nossa problemática de pesquisa, a literatura brasileira sobre creches domiciliares é insuficiente para dar conta das questões que nos propusemos investigar. Fomos buscar respaldo, sobretudo, em estudos da sociologia voltados para famílias dos meios populares, para lógicas de socialização, gênero, infância, trabalho informal e domiciliar. Entretanto, outros campos de estudo foram referenciados, como a antropologia, no que diz respeito às relações de gênero e trabalho em famílias dos meios populares; e a história, educação e a filosofia, com ênfase nas relações de gênero e em perspectivas feministas de conhecimento. Os eixos articuladores do estudo igualmente possibilitaram um distanciamento da análise das trajetórias, dos significados e do cotidiano com ênfase nas limitações, na pobreza, na miséria e na exclusão. Percebemos que adultos, jovens e crianças se relacionam mediatizados por atos de submissão e resistência, e que nas trajetórias das mulheres também há possibilidades de respostas e reações frente aos desafios impostos por suas duras condições de existência. As relações de trabalho e as negociações na creche domiciliar foram examinadas com base na informalidade, instabilidade, clandestinidade e ilegalidade dos serviços, o que produz reflexos nas existências e nos significados expressos pelas mulheres. Outros estudos sobre trabalho doméstico e domiciliar possibilitaram compreender os desdobramentos da atividade, como o emprego de mão-de-obra infanto-juvenil no local. profissional responsável pelo projeto de formação de amas na região, assim como consultei fichas e questionários respondidos pelas amas. 37 Para dar conta das questões do cotidiano partimos das contribuições de sociólogos/as da infância, para os quais as crianças são atores sociais com uma autonomia relativa, o que tem implicações no conceito de socialização. Como salienta Pinto (1997, p.45) a sociologia interpretativa dos atores sociais rompe com uma compreensão da socialização como uma espécie de “programação cultural”, na qual as crianças absorvem passivamente as realidades com as quais entram em contato. No desenvolvimento dos capítulos dialogamos com o campo da educação infantil, no que diz respeito às creches domiciliares e em questões vinculadas à infância, ao cotidiano e às políticas das creches e pré-escolas. Como optamos por apresentar uma introdução e uma síntese na estruturação de cada um dos capítulos, finalizamos esta introdução ao tema de investigação com uma caracterização do bairro Saudade, o que consideramos crucial para a compreensão das dimensões analisadas. 1.5 O BAIRRO SAUDADE CONTADO PELOS MORADORES “Hoje em dia eu posso dizer: morar no lugar onde eu vivo, você tem que ter cuidado... você simplesmente tem que ser surdo, cego e mudo. É como eles falam na gíria deles, ‘não me atrasa que eu não vou te atrasar’” (Denise, 13/07/2001). A denominação Saudade não poderia ser outra, pois nas entrevistas com Isadora, na faixa dos 50 anos, com Denise, de 30 anos e Fernando, de 17 anos, havia um sentimento forte de saudosismo de um tempo no qual as pessoas não estavam apartadas da livre circulação nas ruas. Um tempo em que nas ruas do bairro era possível brincar, dormir em redes nas noites de verão, ouvir o canto dos pássaros e outros sons mais agradáveis do que os barulhos de fogos ou tiros. Violência, medo e insegurança são expressões usuais nas falas das pessoas, que vez por outra se referiam em tom baixo aos conflitos entre os meninos e os policiais. Os meninos são os rapazes do local que fazem parte do tráfico de drogas. São em sua maioria jovens que, atraídos pelo dinheiro fácil, ingressaram em um mundo no qual a vida é breve e vulnerável. Vida breve traduzida nas pichações dos muros, ou nos comentários dos moradores: é muito 38 difícil a pessoa ficar viva um ano, dois anos...quando faz aniversário nessa vida eles soltam fogos, eles dão tiros pro alto...é a felicidade deles (Fernando, 13/07/01). As ruas do bairro Saudade não têm calçamento, com exceção da avenida principal. O local tem vários aglomerados e conjuntos habitacionais. Como no final do bairro, no sentido da área com maior vegetação, há uma entrada para o Jardim Catarina, Isadora observou aqui se entra, mas não tem saída, o povo cuida nessa área verde sem habitações, quem entra e quem sai... - numa referência ao tráfico de drogas. Isadora chegou no Saudade em 1969, quando ele apresentava características rurais. Sem luz elétrica, ônibus circulando nas ruas e com poucos estabelecimentos comerciais, o bairro era considerado tranqüilo para se viver e sua população era basicamente constituída por descendentes de índios e negros pobres. Na rua de Isadora havia um armazém que vendia querosene, vela, cachaça, mortadela. Algumas pessoas viviam da pesca, pois a prainha do Saudade, que hoje é um rio morto, tinha uma água límpida. As carroças eram utilizadas como meio de transporte e havia poços de água limpa, entre eles o da rua do poço, onde se localiza a creche de Denise. Sem transporte coletivo, as pessoas se deslocavam para utilizar ônibus em um bairro mais próximo, quando necessitavam ir à cidade. Também não havia luz elétrica e esgoto e a criminalidade, embora existente, ainda era distante do cotidiano das pessoas. A luz elétrica só entrou no Saudade no início dos anos de 1970, quando predominava a tranqüilidade e o silêncio entre os moradores. Isadora constantemente se referia aos silêncios e barulhos, para contrapor passado e presente: eu tenho um problema com determinados barulhos, né. Então o que me encantava aqui era assim: você ouvia os pássaros cantar, as crianças brincando...mas não tinha esse barulho ensurdecedor que tem hoje... (Isadora, 3/07/01). Há uns trinta anos atrás era possível encontrar no bairro índios, parteiras, rezadeiras e curandeiros, além de alguns centros de umbanda. Estas raízes religiosas foram gradativamente substituídas pela chegada das igrejas de várias congregações religiosas, que provavelmente contribuíram para silenciar a cultura dos negros e índios. Atualmente muitos moradores freqüentam diversos tipos de igrejas como Universal, Batista, Evangélica, Metodista, entre outras. É comum caminharmos pelo bairro entre prédios de igrejas de diversas congregações. Houve uma redução no local dos terreiros de umbanda ou 39 candomblé e são poucos os centros de religião afro-brasileira. Denise e outras mulheres que freqüentavam terreiros de umbanda hoje preferem a Igreja Universal: “Começaram a surgir várias igrejas aqui. A minha Tia Dalva havia saído do centro e tinha entrado na igreja. Veio a conversar com a minha mãe sobre essa igreja. Minha mãe simplesmente tomou uma atitude e saiu. E foi para a Igreja e ninguém entendeu nada. Minha mãe dava tudo pelos guias dela, pela mãe de Santo dela. Até que chegou um dia em que ela me convidou. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida” (Denise, 13/07/01). Segundo Isadora informou, nos anos de 1970 houve a derrubada de boa parte das matas e da vegetação do Saudade, com a construção de um conjunto habitacional. Esta construção provocou conflitos entre os moradores antigos e as pessoas provenientes das favelas de Niterói, que foram obrigadas a se retirar dos locais de origem para ocupar o município de São Gonçalo. A população local foi surpreendida por esta invasão, sem saber ao certo como reagir: “Então de uma hora prá outra, quando inaugurou o conjunto foi terrível. A gente vendo aqueles carros do Estado, da Prefeitura, sabe, com lata, planta, criança, galinha, polícia...Pegaram as pessoas e jogaram aqui dentro com tudo que elas tinham. Um grupo ia atrás derrubando os barracos, e os caminhões pegando as poucas coisas que sobravam e trazendo prá cá...aí vieram várias favelas prá cá, pessoas de favelas diferentes... Isto foi feito assim (bate palmas)...Rápido! aqui não tinha favela, derrubaram lá em Niterói. Foram obrigadas a vir pro Saudade...acho que era uma pretensão deles, acabar com as favelas de dentro de Niterói.” (Isadora, 3/07/01). Esta ocupação causou vários problemas no bairro, como insuficiência de escolas públicas para atender à população, um comércio improvisado, ônibus lotados para Niterói ou para os outros bairros de São Gonçalo. Como solução para os conflitos foi criado um posto policial, que não durou muito tempo, pois os policiais foram logo conquistados pelas prostitutas do bairro: 40 “as prostitutas começaram a andar com aqueles policiais, a dar cachaça prá eles e eles também passaram a ser nossos. Você não tem o que comer, não tem para onde ir e ainda vai levar pancada? O que é isso? Vamos conquistar esses homens. Aí a mulherada tratou de fazer isso. Deve ser em 1977, 1978 (...)” (Isadora, 3/07/01). Com o passar dos anos, a divisão entre os moradores do Bairro Saudade e os que vieram das favelas de Niterói foi-se diluindo, agora com os conflitos entre traficantes e policiais. Hoje há um fluxo grande de entrada e saída de moradores do Saudade, entre aqueles que moram em casas alugadas. Porém, os moradores com casa própria, de forma geral, permanecem no local uma vida inteira. As creches domiciliares já existiam nesse período, porque as mulheres que moravam no Saudade e trabalhavam no Rio de Janeiro ou Niterói não tinham com quem deixar os filhos, pela ausência de creches públicas no local, ou porque não podiam contar com o apoio de parentes que pudessem tomar conta das crianças: “tinha muita criança amarrada no pé da mesa, mas também tinha muita criança trancada dentro de casa até a hora em que a mãe chegasse. Ou você amarra no pé da mesa, ou você deixa com alguém. Então se eu descubro que a Dona Joana é tranqüila e trata bem, eu deixo o meu filho e ainda falo prás outras mulheres que eu conheço. Aí a Dona Joana diz: eu agüento ficar com cinco, mais de cinco eu não agüento. Com certeza vai aparecer uma outra que fica com mais cinco. Porque com três, quatro anos dá prá amarrar no pé da mesa, mas com seis meses não dá. Quando você chegar tá morto (risos)” (Isadora, 3/07/01). Hoje o bairro tem somente uma escola pública de primeira a quarta série e uma escola pública com ensino fundamental e médio. Não há creches ou pré-escolas públicas e a creche comunitária trabalha somente com crianças de dois anos e meio a seis anos. Isadora comentou que existe uma rede de escolas infantis e de ensino fundamental pela periferia de São Gonçalo, com preços populares e conhecida como Sete de Setembro. No que diz respeito às condições de proteção do ambiente e saúde da população, destaca-se a precariedade do controle do lixo e do saneamento básico. As invasões de 41 mosquitos nos finais de tarde são constantes e as crianças costumam chegar na creche domiciliar com picadas de insetos pelo corpo e rosto. A cultura local pode ser percebida nos grupos de pagode ou funk, de capoeira, nos grupos que soltam balões de papel ou cafifa22 e que organizam as festas juninas. Alguns grupos de samba ou pagode acabam conquistando a mídia e dificilmente seus integrantes retornam ao bairro. O jogo de futebol é uma das formas de lazer mais utilizadas, tanto entre os homens quanto entre as mulheres. Bia e Nara, ajudantes na creche domiciliar, participam de um time de futebol feminino e jogam nos finais de semana. É pouco provável falar sobre o bairro com os moradores e não ouvir as conexões entre o tráfico e o cotidiano das pessoas. Igualmente, a linguagem com a qual as pessoas se referem aos perigos do local é quase sempre carregada de metáforas: Tem uma última rua e pra lá tem um manguezal enorme, que o pessoal chama área do curral (...) e tem o grande lago que o pessoal fala, que é onde mora o jacaré...e quando mata alguém bota lá, porque o jacaré come” (Isadora, 03/07/01). O clima do local pode ser percebido quando andamos pelo bairro e observamos as pichações nos muros que se referem ao Comando Vermelho - organização que comanda várias áreas do tráfico no Rio de Janeiro. Não parece haver uma idade específica para ingressar no tráfico e se uma criança de doze anos for esperta, ela pode entrar no ramo, situação que possivelmente explica porque há crianças entre sete e doze anos freqüentando creches domiciliares, em meio período. Minha entrada no bairro para a recolha de informações esteve condicionada à mediação de moradores; Isadora revelou que fui apresentada a alguns traficantes e que esta foi sua primeira atitude quando lá cheguei. Como durante a entrevista ouvimos barulhos de fogos, ela explicou que a polícia estava chegando do outro lado, e que aquela era uma operação de rotina. 22 Cafifa é um termo utilizado pelos moradores do local para designar o brinquedo conhecido como ‘papagaio’, que consiste em uma armação de varetas de bambu, ou de madeira leve, coberta de papel fino, e que, por meio de uma linha, se empina, mantendo-se no ar (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1986). 42 O bairro tem formato de uma bacia, com uma parte alta e uma parte baixa. Isadora relatou que ao mesmo tempo em que há pessoas circulando, os olheiros observam quem entra e quem sai: “Olheiro tem uma grande função, quer dizer, ele não pode cochilar. Pode até morrer dependendo do que acontecer. Ele é pago por isso e tem um bom salário, uns 500,00 reais por duas semanas... Aqui por exemplo, tem os comandantes...se a coisa estiver feia eles passam nas creches e falam: tia, bota as crianças pra brincar dentro da sala! Eles batem no portão da escola” (Isadora, 03/07/01). Assim, expressões corriqueiras como ficar de olho, ficar esperto significam os códigos dominados pelos adultos e crianças que, mesmo no lazer das rodas de pagode são obrigados a ficar atentos, ou saber a hora de sair: a polícia mandou baixar o som. Maior falta de respeito, com arma em punho. Eu avisei: quem quiser que fique, eu e as meninas vamos embora (Diário de Campo, 26/06/01). Os bailes funk também expressam as disputas entre moradores de várias favelas e num passado recente se constituíam em um corredor de violência, representado por uma corda. Como disse Fernando, é assim que a pregada comia, numa referência às brigas entre grupos de moradores de locais diferentes. Esses bailes, durante os anos 90, foram alvo da imprensa, devido à violência que os caracterizava: “Se saísse morte, o segurança só olhando. Homem com homem e mulher com mulher também. O nome era corredor do baile, entendeu? Aí ficavam as pessoas, cada grupo de um lado. Tipo Saudade, a gente ficava no lado A junto com a Fazenda dos Mineiros, Palmeiras, Caçador. No lado B ficava o pessoal lá de fora. Tinha o Porto da Pedra, Cruz Vermelha, Oswaldo Cruz. Vinha pessoal de longe. Vinha do Rio também, do Morro dos Macacos, lá de Vila Isabel. Esperava eles chegar...eles vinham de ônibus e a gente já estava do nosso lado aguardando eles. Quando eles chegavam aí começava aquela ginga, tocava a música, ia pra cima do outro, chutava, mas não podia um invadir o lado do outro. Briga mesmo. Soco, chute...na hora de sair que era ruim pra eles. Porque eles eram minoria. E na hora de sair os seguranças tinham que ficar escoltando eles. Porque se deixasse a gente quebrava o ônibus, quebrava tudo” (Fernando, 13/07/01). 43 É habitual no bairro Saudade a invasão domiciliar da polícia nas casas consideradas suspeitas. A ocorrência dessas invasões parece algo naturalizado entre os moradores, pelo que é difícil lutar. Uma outra situação de rotina são “as batidas” dos policiais nas ruas do Saudade, o que provoca constrangimentos ou até mesmo violência da polícia com os moradores: “Eles batem primeiro, pra depois perguntar, eles me perguntaram batendo...Depois que eles me bateram bastante, que eles me deixaram ir embora (...)” (Fernando, 13/07/01). “A polícia entra aqui de arma em punho. Isso já aconteceu comigo. De ir buscar as crianças na escola e dizerem - ‘vai pra casa’. Todo mundo é suspeito pra eles. Eu acho um desrespeito não ter uma policial feminina pra revistar uma mulher, um desrespeito ao ser humano, nem pode abrir a boca. De repente leva um tabefe no meio da lata” (Denise, 13/07/01). De outro lado, os moradores devem obedecer às regras estabelecidas pelos traficantes que, embora ofereçam algum tipo de proteção, exigem em troca silêncio e conivência com o tráfico: “Eles não são contra a gente. Isto jamais. São contra se a gente fizer alguma coisa (...) aqui não tem estuprador. Se tiver eles morrem. Outra coisa: se vem uma pessoa de fora e quiser assaltar eles protegem. Festa do dia das crianças eles distribuem brinquedos, fazem bom alimento, jogam dinheiro pro alto. A única coisa em que eles erram é de vez em quando em festas que eles fazem ali embaixo. Eles ficam junto do pessoal, entendeu? Porque a qualquer momento a polícia pode chegar e dar tiros” (Fernando, 13/07/01). Estas regras são compreendidas pelos moradores, que costumam consultar os traficantes, antes de chamar a polícia nos casos de crimes ou assalto. Na ótica de Isadora, quando a população chama os meninos para resolver os problemas do bairro, isto implica em aceitação das regras dos traficantes. Apesar de não concordar com a situação, ela reconhece os limites a que todos os moradores se submetem, na medida em que é feito um pacto de convivência no silêncio: eu não atravesso o teu caminho, e você também 44 não atravessa no meu...eu faço as minhas coisas ali, e você faz o que você quiser...não dá prá partir pro enfrentamento, porque morre. Quando questionada se esta convivência no silêncio significa cumplicidade entre os moradores e os traficantes, Isadora preferiu a dúvida explicando que é, ao mesmo tempo que pode não ser cumplicidade, pois você precisa saber como é que dança essa dança. CAPÍTULO 2. “CRECHE, NÃO! AQUI SE TOMA CONTA DE CRIANÇAS!” - TRAJETÓRIA E SENTIDOS DO TRABALHO PARA DENISE Primavera nos dentes “Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe e no centro da própria engrenagem inventa a contra-mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade, decepado entre os dentes segura a primavera” (João Ricardo - João Apolinário) Neste capítulo focalizaremos o trabalho de tomar conta de crianças realizado por Denise na creche domiciliar. Num primeiro momento apresentamos a trajetória da vida pessoal e profissional da tomadora de conta. A partir de seus percursos buscamos entender as relações de trabalho e as negociações que se estabelecem no local. Caracterizamos esse trabalho como informal e instável, clandestino e ilegal, assim como o tratamos como domiciliar, o que é diferente de trabalho doméstico. Os acordos e concessões feitos com os familiares das crianças incidem sobre a vida privada de Denise, o que reduz suas possibilidades de lazer e tempo para si. Como ela se divide entre as atividades domésticas rotineiras e os cuidados com as crianças, ocorre o auxílio da filha e de uma vizinha, ambas adolescentes. A presença do trabalho infanto - juvenil na creche é um dado que procuramos explorar, pois isso gera a presença de relações de subordinação de idade - uma vez que a remuneração das jovens não foi esclarecida - assim como a reprodução das diferenças de trabalho por gênero. A trajetória de Denise nos ajuda a compreender como vida pessoal e trabalho estão interligados. Os sentidos de ser mulher, mãe e trabalhadora influenciam as percepções sobre o trabalho na creche, o que está repleto de ambigüidades. Denise optou por conciliar a maternidade e os cuidados da casa com uma atividade que lhe proporcionasse uma renda. Ela vive em uma família monoparental e faz parte de um fenômeno social que atualmente a 46 literatura tem denominado de feminização da pobreza. Mas ela não é apenas isto: há significados, saberes e sentimentos acerca do seu trabalho e da sua vida que são contraditórios, tais como o modelo de família conjugal1 que ela tem como referência, as percepções de ser mulher e mãe como vítima, as experiências dos corpos de mulheres compreendidas como sofrimento, limitação e dor e, ao mesmo tempo, a valorização da figura feminina. As ambigüidades da atividade emergem quando ela constrói um raciocínio a respeito do que faz que oscila entre ser mãe substituta, tomadora de conta, tia, professora ou psicóloga. Os sentidos sobre a sua atividade estão envoltos em expectativas, sonhos, frustrações e tensões que vive enquanto mulher, mãe e trabalhadora sem direitos sociais. Nesse emaranhado de experiências percebemos um movimento de culpabilização das mães das crianças cuidadas por ela e de culpa dela própria enquanto mãe, o que também é ocasionado pelas disputas e pela insatisfação de quem realiza um trabalho informal, instável e clandestino. Como tomar conta de crianças pressupõe um processo de aprendizagem, por último analisamos quais os saberes que na perspectiva de Denise são necessários para que uma mulher tome conta de crianças. A análise dos dados em confronto com a literatura consultada possibilitou, de certa forma, a ruptura com uma perspectiva de análise centrada apenas na falta, na negatividade e na pobreza da atividade. No desenvolvimento do capítulo, os sentidos e significados de tomar conta de crianças também apontam para aspectos positivos, tais como o uso de diferentes racionalidades e emoções adquiridas com a experiência de vida e de trabalho. 2.1 DENISE, UMA TRAJETÓRIA DE MULHER, MÃE E TOMADORA DE CONTA DE CRIANÇAS “A maioria vem para cá depois que cai o umbigo! Eu até falo: espera mais um pouco, pelo menos completar um mês! Mas a mãe diz: Eu preciso trabalhar!” (Denise, 5/12/00). Denise é uma mulher de trinta anos, estatura mediana, corpo forte e traços marcantes no rosto às vezes cansado, mas que sugere um jeito arrojado de enfrentar a vida. Foi esse rosto franco que não esconde os sentimentos que permitiu que eu sempre soubesse quando ela 1 Entendemos este modelo de família conjugal ou nuclear, como uma organização familiar constituída de casal com filhos/as. 47 estava disposta e quando seria necessário ter mais cautela durante nosso tempo de convivência. É provavelmente esse rosto espontâneo que conquista as crianças e leva a que algumas mães façam observações como esta: ela é uma mulher muito positiva, o que ela tem que falar, ela fala na cara. Em nosso primeiro encontro ela pareceu desconfiada e só aceitou me receber porque eu estava acompanhada de outra tomadora de conta de crianças e de Isadora, diretora da creche comunitária do bairro Saudade. Na medida em que ampliávamos nossa convivência, eu passei a conhecer seus humores sempre nítidos no olhar, que ora brilhava, ora parecia apagar; no sorriso aberto, ou nas poucas palavras e no rosto fechado; ou, ainda, nos gestos retraídos ou receptivos. E nesse movimento de olhar o outro e ser olhada foi possível constatar que ela me observava o tempo todo, ela também me estudava, o que me permite pensar que Denise é uma mulher inteligente, perspicaz e observadora. Sua família materna descende de índios e pelas fotos da mãe, que parece ter sido uma figura importante na sua criação, se reconhecem os traços indígenas. O pai é branco e descendente de alemães, mas as marcas da origem paterna estão presentes na figura do irmão, pois Denise se parece mais com a mãe. A memória da infância e juventude de Denise parece marcada pelas brigas freqüentes entre seus progenitores; não raro ela fez descrições do pai como tendo um caráter violento; recordou que uma vez agrediu sua mãe grávida da irmã menor e que continuamente batia no seu irmão. O alcoolismo e o uso de drogas pelo irmão, bem como sua participação em pequenos assaltos, também foram lembrados por ela: “O que eu posso dizer sobre os meus pais é que eles viviam sempre em conflitos. Porque eu tenho uma irmã que é caçula, que quando a minha mãe estava grávida dela, por conflitos, desavenças, brigas conjugais o meu pai a empurrou. E ela bateu com a barriga em uma ponta, uma tora de pau e isto acabou afetando o crânio do bebê dentro da barriga. Tinha uns quatro para cinco meses. Causou na criança um traumatismo craniano pequeno, mas causou. Os meus pais brigavam muito. O meu pai sempre foi uma pessoa muito rígida. Tanto é que o meu irmão Carlos veio a entrar no mundo das drogas, da criminalidade, por causa disso. Ele via mais esses conflitos. Apanhava muito. Eu e a minha irmã, não (...) meu pai talvez por trauma. Saber que ele que causou aquele tipo de problema (...) acabou que ele sempre deixava nós duas (...)” (Denise, 22/08/01). 48 A mãe de Denise trabalhou em serviços domésticos para ajudar no sustento da família; seus rendimentos permitiram comprar um terreno e construir a casa na qual hoje Denise reside com as duas filhas e toma conta de crianças. Nesse terreno também habitam, em uma casa menor e mais velha, Carlos - irmão de Denise, sua esposa e o filho que freqüenta a creche domiciliar. Parece haver uma disputa entre os dois irmãos e Carlos demonstrou contrariedade pelo fato de morar no quintal da casa; durante nosso tempo de convivência, ele estava construindo uma casa maior com dois pisos, mas as obras ficavam suspensas quando ele estava desempregado. Atrás da casa de Denise moram um sobrinho e a esposa, ambos na faixa dos 16/17 anos, que no ano de 2001 aguardavam o nascimento do primeiro filho. Seguindo o mesmo percurso da mãe e para ajudar na divisão das despesas, Denise ingressou no mundo do trabalho aos 12 anos de idade como empregada doméstica, em um bairro nobre de Niterói. Ela trabalhava durante o dia e estudava durante a noite, permanecendo nesse emprego até os 15 anos. Como ela necessitava trabalhar, mentiu sua idade. Foi assim que ela iniciou a lavar, passar, cozinhar e cuidar de crianças no final da primeira infância: “(...) o meu pai estava desempregado, o meu irmão mais velho estava desempregado, só a minha mãe trabalhando (...) eu queria ajudar de alguma forma, não só dentro de casa tomando conta da minha irmã e do meu irmão (...) porque minha mãe trabalhava de segunda a segunda, três vezes na semana em casa de família e três vezes na semana de faxina. Então aquilo me machucava por dentro, ao ver a minha mãe trabalhar da forma que ela trabalhava. Então eu meti a cara para trabalhar. Com isso, nesse trabalho eu menti, omiti a minha idade e aí continuei. Só que eu entrei prá trabalhar lá, dizendo que eu tinha 14 anos, porque a mulher com certeza não ia aceitar uma criança de 12 anos trabalhando na casa dela. Mas como eu sempre fui fortinha e tinha corpo, ninguém dizia que eu tinha 12 anos de idade. Ela me deu 15 anos de idade” (Denise, 22/08/01). Além de trabalhar em Niterói como babá e empregada doméstica, Denise ajudou a tomar conta de um sobrinho, dos 12 aos 15 anos de idade. Segundo seu próprio relato foi essa primeira experiência que lhe proporcionou o gosto por tomar conta de crianças, pois ela pode acompanhar o crescimento do menino, dos zero aos três anos de idade. 49 Aos 14 anos Denise conheceu Antônio, seu ex-marido e pai das suas duas filhas: Nara, de 13 anos, cursando a sexta série do ensino fundamental e Estela, de seis anos, freqüentando a classe de alfabetização. Antônio tinha 33 anos quando o conheci; negro e bonito, tinha estudado até a terceira série do ensino fundamental; quando fomos apresentados estava bem vestido, com uma calça jeans e uma camisa azul que pareciam novas, carregava um celular no bolso e aparentava menos de trinta anos de idade. Naquele período, estava novamente casado e tinha um filho ainda bebê. Antônio e Denise casaram quando ela tinha 15 anos, acontecimento que ocasionou a interrupção dos estudos de Denise, cursando então a sexta série do ensino fundamental. O casamento durou 12 anos, com altos e baixos decorrentes da situação econômica precária de Antônio, que trabalhou quase sempre como autônomo. Após o casamento, Denise saiu do emprego e durante três meses ficou cuidando da casa. Em seguida engravidou e voltou a trabalhar como doméstica em uma outra residência, permanecendo por mais cinco anos nesse trabalho. Nara, a primeira filha de Denise, nasceu quando ela estava com 16 anos. Nesse período, eles moravam em um outro bairro de São Gonçalo. Denise, o marido e a filha passaram a residir no bairro Saudade quando sua mãe ficou doente e ela abandonou o trabalho para cuidá-la, até seu falecimento um ano e meio após. O pai de Denise constituiu nova família após a morte da esposa. Atualmente reside em outro bairro de São Gonçalo, com a filha mais nova do primeiro casamento, que é portadora de necessidades especiais. Como Antônio estava desempregado, Denise passou a tomar conta de crianças na própria casa durante seis anos. Mesmo trabalhando com mais três ajudantes, os conflitos com o cônjuge se acentuavam, pois ele não tolerava a fusão entre mundo doméstico e mundo do trabalho. Apenas uma vez Antônio conseguiu trabalho estável, por um período de quatro anos. Durante esse tempo trabalhou em uma empresa de construção civil, como encarregado de obras. Com uma situação econômica mais estável, Denise fechou a creche por um ano e meio, pois além de estar grávida de Estela pretendia descansar um pouco. Mas para ela foi difícil permanecer parada e, por isto, logo retornou ao trabalho e alugou uma casa com uma colega para tomar conta de crianças. A mudança de residência desta vez objetivava amenizar os conflitos entre o casal: 50 “Foi aí que eu desde os 12 anos tomando conta de crianças, levando criança no colégio, com responsabilidade de tudo, de crianças pequenas, recém nascidas (...) Já que eu tenho jeito prá isso então eu vou fazer alguma coisa dentro dessa casa, onde eu possa tomar conta da minha filha e poder ganhar o dinheiro tomando conta dos filhos de outras pessoas que necessitam trabalhar. Eu coloquei uma placa e começou a vir crianças, aqui mesmo. Aqui eu passei seis anos na minha casa. Só que aí é aquela coisa, quando você está sozinha dentro da sua casa, como hoje eu estou, eu posso ter aquela possibilidade de pegar uma criança e de repente ficar até mais tarde, da criança dormir aqui. Só que nessa época eu ainda estava casada, aí quer dizer, já estava havendo um conflito entre o casal. Ah, criança até tarde, porque não sei o quê, porque você não tem mais tempo prá mim (...) E com esses conflitos que começou a arrumar entre o meu ex - marido e eu, eu parei. Só que nessa época foi que ele ficou quatro anos trabalhando de carteira assinada. Aí, quer dizer, nessa época ele tava muito bem empregado, ele tava numa empresa de construção civil, como encarregado de obras. Então falei assim: não pera aí, agora eu vou descansar um pouco. Eu fiquei um ano e meio parada. Só que é aquela coisa, a pessoa que já está acostumada a trabalhar não consegue ficar parada. Lógico, realmente só se eu estiver muito cansada. Aí tudo bem, do contrário não. Aí eu comecei a procurar lugares, eu não vou mais fazer dentro da minha casa, porque talvez possa trazer problemas para o meu casamento. Então o que eu fiz? Eu juntei com uma amiga chamada Nilcéia e começamos a procurar casas aqui para alugar” (Denise, 22/08/01). Como Nilcéia enfrentou problemas familiares decorrentes da prisão do filho e da nora, elas fecharam a creche um ano mais tarde. Em 1999, Denise voltou a tomar conta de crianças na própria casa. Nesse período o casal estava se separando e ela trabalhava de acompanhante de uma mulher doente durante a noite: “Já nessa fase eu estava separada, quer dizer, já foi bem mais difícil para mim. Eu trabalhava na creche durante o dia, de sete da manhã a sete da noite. E consegui arrumar um trabalho de acompanhante de 10 da noite, até quatro e meia, cinco horas da manhã. Eu só era mesmo acompanhante. Cinco horas da manhã a enfermeira chegava e eu vinha embora” (Denise , 22/08/02). 51 Com o trabalho noturno a renda de Denise aumentou, mas ela não conseguiu conciliar as duas atividades. Assim, ela optou pelo trabalho na creche domiciliar auxiliada por três jovens: Nara, sua filha e seus vizinhos e sobrinhos de consideração2, Bia e Marcos. No tempo de nossa convivência, Denise disse não contar com auxílio para o sustento das duas filhas, pois Antônio estava desempregado e vivia com a família da nova esposa, de 19 anos. Em dezembro de 2000, quando fizemos nosso contato inicial, as primeiras crianças entravam 5:50 da manhã e as duas últimas saíam em torno de 1:30 da manhã. Algumas crianças costumam dormir na casa de Denise, dependendo da situação de trabalho das mães que precisam fazer hora-extra ou quando, por outras razões, elas não têm hora certa para chegar em casa. Denise falou que atualmente não trabalha nos feriados e nos finais de semana, embora no ano 2001 ela tenha trabalhado em alguns sábados. É pelo conhecimento da situação de cada mãe e das suas necessidades que ela faz algumas concessões como, por exemplo, permitir entradas e saídas na creche para que as mães possam ver as crianças ou, ainda, combinar sobre cuidados das crianças doentes, entre outras solicitações. Esta flexibilidade, provavelmente, foi adquirida na experiência com mulheres que enfrentam longas jornadas de trabalho que impedem, vez por outra, um tempo mais amplo de convivência com os/as filhos/as. Essas concessões são permitidas porque o trabalho de Denise é instável e está sujeito a um fluxo de entrada e saída de crianças que é irregular, pois há uma relação intrínseca com a situação empregatícia das mães que só procuram a creche domiciliar quando estão trabalhando. Denise necessita manter as crianças na creche para seu sustento e, também por isto, a flexibilidade é uma característica da sua atividade. No movimento de receber crianças novas ou perder crianças em função do vai e vem da situação empregatícia das mães Denise pode, inclusive, fazer acertos sobre a possibilidade de receber bebês que ainda estão por nascer. Ela narrou que toma conta de algumas crianças desde o primeiro mês de vida e que as mães sentem confiança para entregar os bebês logo 2 Os laços de sangue nem sempre são indicadores de pertencimento à rede familiar em alguns grupos dos meios populares. No caso deste estudo, os “sobrinhos de consideração”, que não estão ligados por laços de sangue com a tomadora de conta, participam da rotina familiar. Este é um aspecto já investigado pela antropóloga Claudia Fonseca (1995) e que poderíamos caracterizar como redes de parentesco que extrapolam os laços de consangüinidade. 52 após o umbigo cair: cinco bebês que nascem a partir de maio já estão garantidos. Ainda acrescentou que muitas vezes pede que as mães esperem até o bebê completar um mês, mas elas insistem em deixar os recém-nascidos, porque necessitam trabalhar. Assim, Denise tomou conta de Larissa dos 20 dias até um ano e meio; de Amanda dos 17 dias aos dois anos e meio; e de Igor, o que chegou com menos idade, dos dez dias aos dois anos. Estas três crianças apresentam traços similares, como a responsabilidade da família centralizada nas mães e, no caso de Larissa, ausência dos pais, porque a mãe passou um período como presidiária e a menina morava com os avós. Tanto Amanda quanto Igor saíram da creche porque as mães engravidaram novamente e pararam de trabalhar. 2.2 AS RELAÇÕES DE TRABALHO E AS NEGOCIAÇÕES NA CRECHE DOMICILIAR Vai e vem “Ser estrangeiro camaleão ilegal no vai e vem da própria terra vento que ora sopra aqui, ora sopra lá... Ser estrangeiro, provisório na casa, bairro, favela... Sem fronteiras ser camaleão saber a hora de entrar correr na hora de sair ser ilegal, informal na casa, bairro, favela... casa no vai e vem vida no vai e vem vento que ora sopra aqui, ora sopra lá...” (Ana Cristina) A trajetória de Denise nos ajuda a compreender quem é esta mulher que se tornou tomadora de conta de crianças e os fatores que podem explicar os motivos que a levaram a abrir uma creche domiciliar. Este é um caso, entre outros do bairro Saudade, que indica que a 53 origem social, as condições econômicas, a baixa escolaridade e o fato de ser mulher e mãe responsável pelo sustento da família são dados que interferem na escolha da atividade. Por outro lado, as experiências de cuidar crianças pequenas desde o final da primeira infância e as ocupações domésticas também contribuíram para que Denise se tornasse uma tomadora de conta. Denise é uma mulher que enfrentou limitações para ocupar posições no mercado formal de trabalho, decorrentes de sua baixa escolaridade e da ausência de formação profissional. Isto reduziu suas possibilidades de trabalho aos serviços domésticos quando mais jovem e ao mercado informal e à clandestinidade da creche domiciliar quando casou e se tornou mãe. Ela sempre demonstrou estar ciente de sua situação e, vez por outra, enunciava frases que sugerem medo de perder sua única fonte de renda e sobrevivência. Quando ela se referiu ao trabalho das outras tomadoras de conta, informou que a maioria entra no serviço porque é difícil encontrar um emprego com pouca escolaridade ou com idade avançada. Tal situação se agrava quando as mulheres estão separadas, têm filhos/as pequenos/as e não podem contar com apoio de avós ou outros familiares para trabalhar fora de casa. Tanto no que diz respeito à posição profissional da tomadora de conta de crianças, como dos familiares, se pode conjecturar que estes grupos vivem no mercado informal de trabalho, ou no trânsito entre o formal e o informal, no vai e vem de estar empregado/a ou desempregado/a, com um salário fixo, ou vivendo de bicos, expressão recorrente entre algumas das mulheres entrevistadas. Denise e os familiares das crianças buscam sobreviver num contexto de reestruturação do mercado capitalista, onde há uma crescente diminuição e precarização dos empregos. Essas pessoas formam um grupo de uma imensa população que vive de trabalho às margens da proteção formal. Denise está sujeita a dificuldades decorrentes da ausência de direitos trabalhistas, pois não tem registro em carteira e não contribui para a previdência, assim como não tem uma faixa salarial estável. Portanto, caracterizamos seu trabalho como informal, clandestino e domiciliar. Devido às peculiaridades dessa atividade, tais características se interpenetram e, em alguns momentos, nós as comentaremos conjuntamente. 54 2.2.1 Informalidade e instabilidade de renda: quais acordos e negociações? Do ponto de vista do direito do trabalho3, essa é uma atividade sem registro e sem vínculo com o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social - e, por isto, informal. Embora o direito do trabalho classifique e defina o que é trabalho informal, na legislação não há qualquer tipo de garantias ou direitos para os trabalhadores informais. Denise não está amparada por nenhuma proteção legal, o que nos permite enquadrá-la em uma atividade que está fora da lei, pois não possuí vínculos com os deveres da legislação e não é protegida por direitos. Algumas pessoas, como as que fabricam e vendem comidas, doces ou roupas em casa, são autônomas, isto é, trabalham de forma independente e sem relação de emprego formal, mas contribuem com o INSS na categoria de contribuintes individuais. Este não é o caso de Denise, que não se enquadra no que a legislação do trabalho reconhece como trabalho autônomo. De forma geral, os termos trabalho informal, trabalho ilegal ou clandestino são encontrados na literatura, para definir um tipo de trabalho que se caracteriza pela ausência de proteções sociais. Interessa-nos apresentar alguns comentários de Chinelli & Durão (1999); Potengy & Paiva, (1999) e Mozère, (1997) que estudam as novas relações de trabalho e as redes de informalidade, porque Denise vive em um contexto marcado por estas novas relações que produzem modificações nas vidas das pessoas, afetando a organização do tempo e dos espaços familiares. Como escrevem Chinelli & Durão (1999) estamos diante de uma nova ética social e isto produz antagonismos, divergências e opiniões diversas no âmbito da informalidade. Surgem novas formas de emprego, de trabalho autônomo e novas formas de figuras profissionais que se encontram entre o trabalho dependente e as mais diversas alternativas de inserção informal. Estas autoras ainda ressaltam, como temos observado em outros textos 3 Encontramos referências para fazer tais afirmações em MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2001 e CARRION, Valentin. Comentários à consolidação das leis do trabalho. Legislação complementar jurisprudência atualizada e ampliada. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. 55 sobre o tema do trabalho informal, que as pessoas se tornam camaleões, numa aventura permanente que mistura os acontecimentos profissionais e os da vida cotidiana. De acordo com Potengy & Paiva (1999) essas transformações, que repercutem nos modos e estilos de vida, obviamente têm reflexos no marketing e nas técnicas virtuais, hoje também presentes no espaço privado. As placas discretas que anunciam os serviços de tomar conta de crianças, a propaganda “de boca” que consiste em transmitir informações, que se deslocam entre a vizinhança, sobre a eficiência do trabalho ou sobre os serviços das concorrentes e negociações de preços mais ou menos equiparados, contribuem para a formação de um tipo de mercado informal, privado, criado e ajustado pelas mulheres que oferecem esses serviços no bairro e pelas mulheres que os procuram. Mozère4 (1997), focaliza o trabalho informal a partir de estudos de diversos autores: Amselle (1980); Castells, Benton & Portes (1989, 1994); Donzelot (1994); Laé (1993); Lautier (1994); Morice (1996); Pichon (1995); Sassen (1989, 1991, 1996); Tarrius (1996), entre outros. Apesar de escrever sobre o trabalho informal no contexto francês, ela estabelece relações com outros países desenvolvidos e do Terceiro Mundo, incluindo o Brasil. Estar na informalidade é se “fazer camaleão, se esconder, conhecer os lugares e as redes, saber o momento certo de se unir ao território, mas também saber se desligar quando for preciso” (Tarrius5 apud Mozère, 1997). Conforme escreve Mozère (1997), na França a origem da noção de informalidade está vinculada com a crise do petróleo da década de 70 e com a crise do Estado Providência, a partir de 1968. Estes acontecimentos contribuíram para desencadear o desenvolvimento das atividades informais, através da mobilização de solidariedades locais ou familiares e recursos a formas de trabalho que não contam com benefícios de proteção social. No Terceiro Mundo, o setor informal cresceu - o que não significa que não tenha existido em períodos anteriores principalmente a partir da expansão urbana resultante do êxodo rural e das conseqüências da monocultura, por meio de atividades que permitem às populações urbanas periféricas sobreviver. 4 MOZÈRE, Liane. Informalitès sans protection. Une lecture de travaux relatifs à l’économie informelle. Centre d’études, de recherches et de formations institutionnelles du Sud-est, 1997. Mimeografado. 5 TARRIUS, A. Fin de siècle incertaine à Perpignan. Drogues, pauvreté, communautés d’étrangers, jeunes sans emplois et renouveau des civilités dans une ville moyenne française. Université Toulouse: 1996. 56 Diversos autores citados no texto de Mozère, não compreendem a economia formal e a informal como espaços distintos ou fechados; argumentam, por exemplo, “que a maior parte das empresas opera ao mesmo tempo na economia formal e na informal” ou que “a ordem pode criar a desordem e a economia formal pode engendrar a informalidade” (Castells e Portes6 apud Mozère, 1997). Mesmo que este trânsito entre a economia formal e informal não atinja diretamente a tomadora de conta, as pessoas com as quais ela convive ou faz acordos se encontram nesta situação. Este é o caso de seu ex-cônjuge, que oscila no vai e vem dos serviços formais e informais, situação que também caracteriza os familiares do sexo masculino das crianças. Ao fazer referência sobre a situação empregatícia do ex-cônjuge, Denise relatou que: Eu posso te dizer quais foram os trabalhos de carteira assinada que o meu ex-marido teve. Quem sustentou praticamente a casa, em tudo fui sempre eu. Nossa opção é pelo tratamento dessa atividade como trabalho informal, porque destituído dos direitos do trabalho. Embora a informalidade desse trabalho, que não é reconhecido e legalizado pelos órgãos públicos, engendre a clandestinidade, a tomadora de conta estabelece, de certa forma, um contrato com os familiares das crianças e tem seu serviço reconhecido e legitimado pelos grupos que dele usufruem. Denise faz acordos com os familiares das crianças e, mesmo que estes se fundamentem na palavra, tanto quem oferece como quem procura os serviços está ciente dos seus direitos e deveres. Já no primeiro contato com as mães ela esclarece sobre horários, preços, atividades e responsabilidades que assume e mostra as dependências da casa. O café da manhã, o almoço e o jantar são fornecidos por ela, mas as mães devem contribuir semanalmente com biscoitos, frutas, iogurtes ou outros alimentos que as crianças estão acostumadas a comer fora das três refeições. Os biscoitos, frutas e iogurtes são divididos entre todas as crianças, conforme Denise declarou: Então na segunda eu dou o do Daniel. Na terça eu ponho o da Jane e dou para todos. Na quarta eu dou o do outro que trouxe. Quando vai chegando o final de semana, que já tem um pouco de cada, eu boto tudo na vasilha, misturo e dou para eles. 6 CASTELLS M, PORTES A. Benton. The informal economy. Studies in advanced and less developped countries. London: The John Hopkins University Press, 1989. 57 As mães das crianças menores de um ano devem levar fraldas descartáveis e uma roupa para as trocas do final do dia, além do leite ou farinha para o preparo das mamadeiras. Denise cobra uma taxa de 60,00 reais para cada criança de zero a seis anos que permanece na creche, de segunda-feira a sexta-feira, ou nos finais de semana e feriados quando necessário7. O único documento exigido das mães no estabelecimento do acordo é o xerox da certidão de nascimento. Este procedimento se justifica porque Denise costuma acompanhar as crianças ao Pronto Socorro ou Posto de Saúde: Eu vou ter todos os dados da criança. Não vou precisar estar levando caderno ou nada escrito. Esse contrato com os familiares, de certa forma, legitima os serviços de tomar conta de crianças. Mas tal relação não exclui a instabilidade e incerteza, no que diz respeito à tomadora de conta manter sua família e pagar suas despesas, pois há uma dependência da situação de emprego/desemprego dos familiares das crianças. Em dezembro de 2000, Denise mantinha na creche 17 crianças de dois a nove anos de idade; no final de agosto de 2001, contava com apenas cinco crianças. Dois tipos de explicações foram utilizados para justificar a perda das crianças. O primeiro diz respeito às mães das crianças, visto que algumas entraram em licença maternidade por motivo de gravidez, outras interromperam o trabalho quando os cônjuges conseguiram emprego no mercado formal e outras perderam seus empregos. O segundo relaciona-se às dificuldades enfrentadas por Denise no trabalho com as crianças maiores de seis anos. Do início do ano 2001 até o final de agosto, Denise havia perdido em torno de sete crianças e ela constantemente expressava seus obstáculos para manter as despesas da casa. Reclamava, também, dos atrasos no recebimento das taxas cobradas dos familiares, embora não tenha relatado nenhum caso de suspensão dos pagamentos. No final de agosto, quando Denise havia perdido algumas crianças, Nara relatou as dificuldades que elas enfrentavam, decorrentes da redução das mensalidades: “Não ficou muito ruim, mas também não está boa. Mas dá para segurar, sim. Minha mãe com tudo, mas dá para segurar, sim. Às vezes eu peço um dinheirinho e ela: Ah, Nara, não dá... A mãe está trabalhando e ainda 7 No capítulo posterior, veremos como as taxas variam segundo a situação de cada família. No ano 2000, Denise informou que cobrava 50,00 reais de cada criança e ela aumentou os valores em 2001 para 60,00 reais. 58 tem que pagar as contas. Então tá bom, eu espero. Se ela tiver um dinheirinho direitinho, aí eu nem peço. Ela mesma me dá. Nara, o que você pediu naquele dia, hoje eu posso te dar. Eu digo: não, não precisa. E ela: não, Nara, agora eu quero te dar, pode pegar” (Nara, 23/08/01). Quando trabalhava com 17 alunos a renda mensal bruta de Denise, sem descontar o pagamento dos ajudantes era em torno de 850,00 reais. A renda de Denise até o final do primeiro semestre de 2001 era em torno de 420,00 reais e em agosto, com a perda de três crianças, passou a receber aproximadamente 240,00 reais. Além da diminuição da renda, ela também convivia com atrasos de pagamentos dos familiares. Porém, mesmo que Denise negocie e faça acordos com os familiares das crianças, quando não ocorre um entendimento entre as partes ela pode romper o contrato. No relato a seguir percebemos sua opção pela suspensão dos acordos com os familiares: “Já essas crianças, a dificuldade que eu entreguei essas crianças aos pais foi essa: de que as minhas filhas nunca me responderam: Ah, vai tomar naquele lugar, você não me manda, você não é minha mãe, eu não quero fazer, eu não sou obrigado a tomar banho, eu não sou obrigado a escovar os dentes. E eu falei: realmente você não é obrigado, mas a partir do momento que você está aqui, você tem que escovar como todo mundo está escovando (...) foi por isto que eu parei com estas crianças maiores. Crianças dos sete anos em diante, eu não pego. Muito difícil lidar com esta faixa de idade. Então fica difícil de você lidar com aquilo, se em casa já não sabem lidar” (Denise, 22/08/2001). Quando ela se viu diante de limitações para trabalhar com as crianças maiores, não hesitou em suspender o atendimento aos maiores de seis anos. Denise associou a resistência das crianças com o desinteresse dos familiares, que não souberam colaborar e garantir a obediência dos/as filhos/as dentro da creche, aspecto que exploraremos posteriormente. 2.2.2 Clandestinidade e ilegalidade do trabalho Do ponto de vista da legislação do trabalho, não poderíamos classificar o trabalho de Denise como clandestino e ilegal, visto que não encontramos referências no direito do trabalho 59 ao trabalho clandestino, uma vez que é considerado ilícito e abrange atividades como contrabando ou tráfico de drogas, que pertencem ao campo do Direito Penal. O mesmo ocorre com o trabalho ilegal, que inclui o trabalho escravo, sem salário mínimo, por exemplo. Como Denise não faz nada ilícito, ou contra a lei o que não quer dizer fora da lei8 conforme esclarecemos no item anterior torna-se necessário justificar nossa opção. Quando caracterizamos o trabalho de Denise como clandestino e ilegal, nós o fazemos tomando como referência de análise a Nova LDB 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Para Oliveira a Nova LDB: “aponta uma melhor definição de níveis de responsabilidade em relação à regulamentação da educação infantil dentro dos sistemas de ensino federal, estaduais e municipais, e também no que se refere à autorização e credenciamento, supervisão e avaliação institucional” (2002, p.81). No município de São Gonçalo, creches domiciliares como a de Denise não contam com qualquer tipo de regulamentação, autorização e credenciamento para funcionamento, ou supervisão dos órgãos competentes. Para a autora (Oliveira, 2002), incluir a creche9 no sistema de ensino significa elaborar uma proposta pedagógica e atender critérios pedagógicos de desenvolvimento de competências pelas crianças, além de outros requisitos que uma instituição para crianças deve apresentar, como ambiente limpo, saudável, organizado e com cuidados físicos observados. Um outro aspecto destacado na Nova LDB diz respeito à valorização dos profissionais de educação. A creche deve ser dirigida por um adulto habilitado na área da educação, podendo este contar com profissionais de outras formações. O trabalho junto às crianças na creche deve ser exercido por professor com formação mínima de curso normal em nível superior. Como este não é um trabalho legalizado, Denise vive uma situação de clandestinidade frente à sociedade como um todo. Ainda que o serviço seja reconhecido no bairro e procurado 8 No item anterior classificamos este tipo de trabalho como fora da lei, uma vez que não é amparado pelo direito do trabalho e a trabalhadora não tem deveres a cumprir perante a lei. 9 Segundo a Nova LDB a educação infantil se divide em creches (crianças de zero a três anos) e pré – escolas (crianças de quatro a seis anos), pelo critério exclusivo da faixa etária. As creches são compreendidas como espaços que envolvem o cuidado e educação das crianças pequenas. Logo, elas não se limitam a guardar, 60 pelos moradores, tanto a tomadora de conta como os familiares das crianças parecem compreender que é um trabalho situado na clandestinidade, o que provoca situações inusitadas, quando outras pessoas visitam o local. Uma destas situações foi objeto de nota de diário de campo, quando decidi passar um final de semana na creche, com a intenção de observar a entrada das crianças e familiares no primeiro dia útil da semana: “Após 17h30 chegaram duas pessoas que ficaram me observando. Um pai que ficou do lado de fora esperando Denise e que trouxe alguns peixes para a creche e uma vizinha que sentou na sala enquanto Denise tomava banho. Ela começou contando sobre a sua vida (trabalha em casa de família e tem três filhos) e devagar foi perguntando sobre minha entrada na creche. Às 18:30hs entram Fernando, um adolescente, e Daniel, sobrinho de Denise que hoje está de aniversário. Num dado momento Estela diz: “mãe, o pai ligou dizendo que amanhã ele vem aqui”. Denise retorna dizendo que foi chamada pela avó de Fernando e por outros vizinhos que gostam dela, pois ela reside no local desde que nasceu. Segundo informou, eles se preocuparam com a minha chegada porque tempos atrás o ex-marido esteve aqui ameaçando de lhe tirar as duas filhas. Os vizinhos pensaram que sou assistente social encarregada de levar as meninas.” (Diário de Campo, 17/06/2001) Estas anotações de campo, embora sugiram que os pais e vizinhos estivessem preocupados com as filhas de Denise, também demonstram o receio de que pessoas de fora do bairro possam cancelar o funcionamento da creche domiciliar. Isto foi evidenciado nos depoimentos da tomadora de conta, que abordou questões como a legalização da creche e fez distinções entre creche e local de tomar conta de crianças, devido à clandestinidade. Provavelmente por entender que creche é um espaço educativo com regulamentos e normas e que, por isto, não é qualquer pessoa que pode abrir uma creche, Denise relatou sua intenção de concluir os estudos, pois compreende que a legalização de seu trabalho depende de uma qualificação com nível universitário. Ela também forneceu indícios de que reconhece a situação de clandestinidade da sua atividade, pois tem receio de usar a designação creche, que sugere uma instituição credenciada: Era mais coisa de fundo de quintal como chegaram a dizer, coisa de fundo de quintal(...). proteger, assistir ou tomar conta de crianças. Embora o artigo 4º trate do atendimento gratuito em creches e pré - 61 Nesse sentido, ela explicou que se colocar a palavra creche na placa, os familiares que procuram os serviços sabem que a palavra sugere credenciamento, ao passo que o anúncio toma-se conta de crianças indica que há uma pessoa que se habilita a tomar conta de crianças, mas que não tem formação e credenciamento para tal atividade: “Por isto que eu te falei que aqui não é de hábito falar creche, nem creche domiciliar. É mais toma-se conta de crianças. Creche é mais lá para fora, que você já vê creche, tudo direitinho, aqui não. Aqui você pode ver em qualquer lugar sempre tem: toma-se conta de crianças. Essa que é a diferença, quando vê creche é porque realmente a mãe vai entrar e vai ver que tem lá a plaquinha, tudo direitinho, que está tudo legalizado. Já essa coisa de toma-se conta de crianças, é uma pessoa que se habilita a tomar conta daquela criança” (Denise, 22/08/01). Isadora também observou que a maioria das mulheres que tomam conta de crianças no bairro não aceita a denominação “creche”. O credenciamento do trabalho está associado, para Denise, a uma formação específica, um curso universitário que habilite a lidar com crianças e que promova o reconhecimento, valorização e legalização da sua atividade: “Por exemplo, eu voltei a estudar porque? Ficou um sonho lá atrás. De exercer a pedagogia. De lidar com crianças. Eu voltei a estudar, porque eu quero saber mais sobre a criança e o que eu já tenho de experiência, juntar com isso e colocar mais a frente. Eu não quero ser somente uma tomadora de conta de crianças. Eu quero ter a minha própria creche credenciada. Eu não posso realizar com uma sexta série simplesmente. Eu tenho que ter o ensino fundamental, o ensino médio, eu tenho que ter uma faculdade. Eu voltei a estudar por um sonho que ficou lá atrás. E que eu já falei, não importa o tempo que vai durar, dez, doze, treze anos. Mas esse sonho vai ser realizado” (Denise, 22/08/01). A análise de Denise, embora possa estar carregada de certo receio com relação a minha presença no seu espaço de trabalho, por outro lado sugere que ela reconhece a posição que ocupa no mercado de trabalho, posição limitada pela clandestinidade. escolas às crianças de zero a seis anos de idade, a lei não prevê a obrigatoriedade do atendimento. 62 Denise afirmou em diversas ocasiões que voltou a estudar porque pretende legalizar seu espaço de trabalho, ou ocupar uma profissão de melhor prestígio social. Após 15 anos de interrupção dos estudos, ela estava concluindo a sexta série do ensino fundamental no período noturno. Assim, as atividades escolares e os comentários sobre a vida escolar faziam parte do cotidiano da creche domiciliar: "Hoje quando cheguei na casa de Denise ela estava no quarto e enquanto as crianças dormiam, ela estudava com Nara e Bia. Ela parece cansada das provas e pede que eu vá até a cozinha e observe as anotações das provas da semana que vem na geladeira. Eu observo que ela está realmente com a semana ocupada de provas e trabalho, assim como constato que a sua letra é bonita e que ela escreve bem quando leio, por exemplo, suas redações. Ela e a filha estudam no quarto, enquanto os meninos dormem, pois Estela e Jane estudam em uma classe pré-escolar no período da tarde” (Diário de Campo, 20/06/01). As conversas sobre notas, provas e avaliações escolares eram freqüentemente o assunto principal enquanto as crianças dormiam no período da tarde, bem como as aprovações e elogios dos/as professores/as eram motivo de orgulho para Denise, sua filha e Bia. Pelo menos nos discursos, Denise parece compreender que seu trabalho é uma forma de sobrevivência e de permanência em casa com as filhas, caracterizando uma ocupação passageira. Seu desejo é abrir uma escola, assim como ela espera que suas filhas não tenham um destino semelhante ao seu: "Eu não quero que elas fiquem tomando conta de crianças toda a vida, ou que fiquem no fogão da patroa, não. Eu não quero saber se elas serão uma micro-empresária, uma pedagoga, advogada, mas alguma coisa elas vão ser. ‘E contando sobre as conversas com as filhas acrescentou’: Eu não vou deixar que vocês fiquem da maneira como a sua mãe está. De ter parado quinze anos de estudar e agora com 30 anos na cara, voltar a estudar para pelo menos buscar um pouco do futuro que eu deixei lá atrás. Eu vou lutar. Eu posso levantar as mãos para o céu e dar graças a Deus. Eu trabalho e me esforço para pelo menos tentar dar o melhor para elas, para que elas não venham a passar o que eu passei" (Denise, 22/08/01). 63 O aspecto do prestígio social também nos ajuda a compreender porque para ela é mais importante ser tomadora de conta do que trabalhar como empregada doméstica ou babá. É provavelmente por isto que ela se define como mais do que tomadora de conta, ainda que contraditoriamente revele gostar do papel de mãe substituta, como veremos mais adiante. 2.2.3 Trabalho no domicílio, flexibilidade de horários e redução do tempo de lazer No caso de Denise é necessário estabelecer uma diferenciação entre trabalho doméstico e trabalho domiciliar. O trabalho doméstico, ainda pouco investigado no Brasil, ocupa, segundo o estudo de Santos (2001, p. 132), uma posição importante na economia brasileira, pois uma parcela significativa da população brasileira está concentrada nos serviços domésticos. Denise executa um trabalho domiciliar, embora tenha passado por empregos como o de babá ou empregada doméstica a partir dos 12 anos de idade. O trabalho doméstico enquadra-se nas atividades formais que abrangem uma ampla categoria como empregada doméstica, babá, caseiro ou motorista. Esta categoria de empregados/as trabalha para uma família e mantém uma relação de emprego, de subordinação e de hierarquia. Atualmente Denise trabalha dentro da própria casa, mas sendo este um trabalho totalmente desvinculado das instituições da lei, não podemos classificá-lo como doméstico. Potengy & Paiva (1999, p. 116-117) distinguem dois enfoques referentes aos estudos sobre o trabalho a domicílio no Brasil. O primeiro analisa os trabalhadores/as a partir de uma referência marxista e o segundo enfoque constrói seu objeto a partir da autonomia do trabalhador, de um trabalho realizado por conta própria e não mediado por um contrato empresarial, como é o caso de Denise, ainda que ela não seja uma trabalhadora autônoma. Os estudos sobre o trabalhador por conta própria, autônomo e sem vínculo empregatício são escassos e as pesquisadoras destacam, por exemplo, a definição de uma outra autora (Cacciamali10 apud Potengy e Paiva, 1999, p. 117) sobre estes/as profissionais a partir de alguns critérios como: “a propriedade dos instrumentos de trabalho, o conhecimento e o controle do processo de trabalho, o emprego da mão-de-obra familiar, o uso do capital advindo 10 CACCIAMALI, M.C. Setor informal e formas de participação na produção. São Paulo: Editora IPE, 1983. 64 da venda dos serviços ou mercadorias para consumo individual, familiar ou para a manutenção da atividade econômica”. Embora esta discussão seja muito ampla é importante ter em conta que este trabalho que se situa no domicílio da tomadora de conta apresenta alguns critérios levantados pelas autoras, entre eles o emprego da mão-de-obra familiar. As creches domiciliares assemelhamse a micro-empresas familiares, que empregam parentes ligados pela consangüinidade, ou vizinhos pertencentes às redes de parentesco, nem sempre vinculados aos laços de sangue. Para Denise seu trabalho lhe proporciona algumas vantagens, e ela reconhece que não conseguiria uma ocupação melhor considerando seu grau de escolaridade. Em algumas situações ela disse que vê vantagens em ser seu próprio patrão e, mesmo em meio a uma extensa jornada de trabalho, o seu cotidiano, de certa forma, apresenta uma autonomia relativa de trabalho. O trabalho realizado dentro de casa e em contato com as filhas é o que proporciona que Denise se sinta mais livre. Por outro lado, esta autonomia é relativa, porque ela organiza seu trabalho em função das expectativas dos familiares das crianças. Se não considerasse as necessidades dos familiares, provavelmente não estaria trabalhando como tomadora de conta de crianças, e tampouco conseguiria sobreviver. O trabalho domiciliar acontece junto às atividades e rotinas da casa, mas também é trabalho social e econômico, porque pressupõe acordos, pagamentos e rotinas que envolvem entrada, permanência e saída de crianças que não fazem parte do universo familiar da tomadora de conta. Dentro dos acordos estabelecidos ocorre uma flexibilidade de horários e concessões que evidenciam a necessidade de Denise de manter um número suficiente de crianças para sobreviver e preservar sua fonte de renda. Tais concessões, porém, limitam sua vida privada e, mesmo que ela tenha preferido trabalhar na própria casa e ser seu próprio patrão, não dispõe de um tempo para si dentro da própria moradia. O que consideramos problemático é que Denise não dispõe de tempo para o lazer ou para o exercício de outras atividades sociais e culturais. Quando encontra tempo para o lazer, isto geralmente acontece na companhia das filhas. Ela se definiu como uma mulher religiosa que pertence à Igreja Universal. Vários objetos como quadros, bíblias, fitas cassetes e discos que encontramos na sua casa são de conteúdo religioso. Comumente rezava com as crianças 65 antes das refeições mas, quando questionada sobre a freqüência à igreja, explicou que não dispõe de tempo, nem mesmo para as atividades religiosas. Segundo Denise relatou, a programação das mulheres do local pode envolver, vez por outra, uma visita a um bar para beber com as amigas, mas o comportamento mais típico é o de freqüentar a igreja com os/as filhos/as, assistir jogos de futebol ou campeonatos de cafifa, visitar familiares ou freqüentar pagodes nos finais de semana: “Diversão aqui para homem, acho que é mais o futebol...tem futebol à noite, tem futebol sexta, sábado e domingo direto. Para as meninas e mulheres praticamente não tem nada. Domingo eu fui no festival de cafifa no Mafra. Eu fiquei com a Estela brincando no parquinho de escorrego, balanço, um negócio lá que roda e as meninas ficaram vendo os amigos dela no pagode. Esse foi o meu divertimento. No sábado tem o futebol das meninas, eu vou. Acabo me divertindo, acabo jogando futebol também. Acabo fazendo uma atividade física que eu quase não tenho tempo de fazer durante a semana. Não tem muito divertimento aqui nesse lugar, não” (Denise, 22/08/01). O trabalho das mulheres vinculado ao cuidado dos outros é um tipo de trabalho que por ser repetitivo, também supõe que as mulheres que o executam coloquem as necessidades dos outros acima das suas próprias necessidades tornando o “tempo para si” cada vez mais curto. Tempo de trabalho e tempo de viver (Chinelli e Durão, 1999) estão amalgamados entre si e isto produz sentidos, significados culturais e corporais diversos, subjetividades e modos de percepção de ser e estar no mundo pelas figuras femininas. Os homens do bairro Saudade circulam mais pelas ruas e não se limitam aos vínculos com a casa e família. Provavelmente seja esperado de mulheres como Denise que elas cumpram os papéis de mãe, esposa e mulher. Para Denise, as dificuldades econômicas impedem que viva outras experiências além do trabalho e das responsabilidades da casa e criação das filhas: Aqui se vive com muita dificuldade(...). Quem mora de aluguel é pagar aluguel e viver. Comer e se vestir, pouco. Para quem não paga aluguel é praticamente comer, beber, vestir e se calçar. Nesse sentido, não podemos ignorar o lado mais perverso desta atividade, “como a precarização das relações de trabalho e seus rebatimentos na perda de status e na subjetividade 66 dos trabalhadores; a redução dos salários e dos benefícios sociais (...)” (Chinelli e Durão, 1999). 2.3 O EMPREGO DE MÃO-DE-OBRA JUVENIL NA CRECHE DOMICILIAR Retrato “Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas, eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face”? (Cecília Meireles) Como na creche de Denise ocorre a presença do trabalho infanto-juvenil, neste item analisaremos como se estrutura esse trabalho principalmente do ponto de vista das ajudantes, Bia e Nara11. Estas meninas realizam um trabalho que é domiciliar: No caso específico do 11 Nara, a filha mais velha de Denise, em 2001 estava com 13 anos e estudava pela manhã em uma escola pública, cursando a sexta série do ensino fundamental. Nara é uma menina alegre que recebe alguns amigos em casa. Ela está sempre acompanhada de Bia e ambas jogam futebol feminino. Além do futebol também gosta de dançar e cantar. Muito carinhosa com todas as crianças, ela também revelou seu sentimento de ciúmes com relação à dedicação da sua mãe para com os filhos de outras mulheres. Freqüentemente manifestava seu descontentamento com o comportamento do pai, que visitava as filhas com menor assiduidade após o segundo casamento. Bia, a vizinha de Denise, era considerada como uma “sobrinha” e freqüentava a casa todos os dias, inclusive nos finais de semana. Ela ajudava na creche desde o ano de 2000 e foi apresentada a Nara por amigos. No ano de 2001, estudava na oitava série do ensino fundamental no período noturno. Com 15 anos, comentou que já tinha vida sexual e que uma ou duas vezes pensou que estava grávida. Bia tinha um comportamento mais arredio e desconfiado com relação a minha presença na creche. Bia é albina e tem sérios problemas de visão, embora não use óculos. Algumas vezes conversamos sobre o seu problema e ela disse que estava esperando que seu pai a levasse ao médico. Ela disse não gostar do Saudade e das pessoas, porque é um fim de mundo. Provavelmente pela influência musical, relatou que seu sonho é morar na Bahia. Ela assiste TV, ouve música, mas critica algumas como a do “Tigrão”. Cuida e zela pelas crianças, mas não se envolve inteiramente nas atividades. Na época lia poesias e um dia estava com um livro de Ferreira Gullar emprestado por sua irmã mais velha. 67 trabalho domiciliar infanto-juvenil escrevem Sarmento, Bandeira & Dores (2000)12 que este é produzido em resposta a um estímulo de contratação, a qual pode ser explícita ou implícita e exterior à dinâmica familiar. De acordo com os autores esse é um trabalho efetuado em casa, mas não é trabalho de casa ou trabalho doméstico. O trabalho doméstico é instituído no interior das relações familiares. O trabalho domiciliar é realizado por crianças e jovens em contexto doméstico por conta de outra pessoa, geralmente um adulto. Os autores escrevem que o trabalho domiciliar infanto-juvenil é clandestino, porque nele se mobilizam seres humanos com menos de 16 anos. Como este tipo de trabalho ocorre quase sempre no contexto da casa, aparece dissimulado como trabalho doméstico, ou como realização de atos de convivência e relação entre pessoas vinculadas entre si por laços de sangue. Quando iniciamos os contatos com a creche de Denise em dezembro de 2000, ela contava com a ajuda de Nara, de Bia, e de Marcos, um outro vizinho jovem que levava e buscava as crianças maiores de seis anos na escola13. Este ajudante não participava das atividades que ocorriam no interior da creche, em situação diferente das meninas. Naquele período Denise tomava conta de 17 crianças e Nara com 12 anos e Bia com 14 trabalhavam pela manhã e estudavam à tarde. Em sua primeira entrevista ela descreveu a filha como seu braço direito, pois a menina recebia as crianças no primeiro horário da manhã, além de ajudar em outras atividades. Denise ainda informou que não pretendia trabalhar com outras colegas, porque sua filha e Bia faziam o serviço de forma satisfatória e não brigavam com as crianças. A respeito do pagamento das meninas e do menino, ela disse que a filha não recebia salário, mas tem tudo que quer, eu que compro. Sobre a situação de Bia explicou que ela não ganha nada, mas também ela come muito (risos). Quanto ao menino que levava e buscava as crianças na escola, informou que ele recebia 10,00 reais mensais por cada criança. No ano de 2001, Denise suspendeu o atendimento para crianças maiores de seis anos e somente Nara e Bia trabalhavam na creche. Durante a pesquisa de campo não ficou claro se as meninas recebiam uma remuneração mensal pelo trabalho realizado na creche. 12 Os autores portugueses denominam este tipo de trabalho de domiciliário infantil, mas considerando a realidade da creche domiciliar e as variações da língua nós optamos pela denominação de trabalho domiciliar infantojuvenil. 13 Em nosso primeiro encontro, Denise ainda trabalhava com crianças acima dos seis anos de idade que freqüentavam a escola fundamental em meio período e permaneciam na creche nos períodos subseqüentes. 68 Denise relatou experiências anteriores com creches domiciliares, nas quais trabalhava com outras jovens; havia uma diferenciação entre a forma de pagamento estabelecida com estas ajudantes e o tipo de contrato com Bia e Nara, que parecia não incluir um pagamento mensal: “Já teve outra menina aqui, a tia Claudia, mas não deu para ela ficar comigo maior tempo porque a mãe dela veio também a ficar doente e é só ela de menina. Ela é a única menina da família. Então cabe a ela ver o lado da mãe. Também trabalhei com duas ajudantes que não ficaram nem dois meses. O maior tempo que uma passou aqui foi de seis meses. Ela saiu porque engravidou. Ela trabalhou em outra creche com 13 anos. Com 14 para 15 anos, ela estava aqui comigo e engravidou (...)” (Denise, 22/08/01). Nos anos anteriores ela pagava suas ajudantes, provavelmente porque o número de crianças era maior e também porque ela não tinha relação de parentesco com estas jovens: Era por mês. A que trabalhou aqui seis meses recebia 100,00 e as outras duas recebiam 80,00. Era por boca mesmo (sem carteira de trabalho). Em 2001 ela mencionou algumas vezes que pagava uma quantia para Bia, mas o valor exato não foi esclarecido. Bia também não soube explicar durante sua entrevista qual o valor do pagamento pelos serviços prestados na creche14: “Entrevistadora: Aqui na Denise tu recebes algum pagamento? Bia: Quando eu ajudo, sim...o salário que é de 80,00. Entrevistadora: Tu recebes 80,00? Bia: Sim, 80,00 por mês.” (Bia, 21/08/01) Aparentemente, o depoimento de Bia indica que ela recebe um pagamento mensal; em 2000, porém, Denise informou que ela recebia alimentação em troca do trabalho realizado. 14 Nossa opção de apresentação dos depoimentos das entrevistas não inclui os diálogos entre entrevistadora e entrevistados. Mas nos casos de Bia e Nara optamos por esta apresentação, porque seus relatos apresentam controvérsias decorrentes da situação instável do pagamento das ajudantes. 69 Bia, porém, declarou, em sua entrevista de 2001, contraditoriamente, que estava trabalhando há apenas três meses: “Entrevistadora: Quando tu começastes a ajudar aqui na creche? Bia: Há três meses atrás. Que agora eu não estou mais, porque não tem muita criança. Agora quando vem muita criança, aí ela precisa dos meus trabalhos. Entrevistadora: Então tu ajudas há três meses? Bia: Três meses atrás. Mais ou menos três ou dois meses atrás. Entrevistadora: Agora tu não tens ajudado? Bia: Não, eu venho porque ela é minha amiga. Eu não posso ficar sem vir aqui um dia (risos). Entrevistadora: Quando tu ajudavas na creche, o que tu gostavas de fazer e o que tu não gostavas de fazer? Bia: Eu gostava de dar comida para as crianças. Botar elas pra tomar banho, botar a roupa nelas...e o que eu não gostava de fazer? Trocar fraldas” (Bia, 21/08/01). O depoimento de Bia é contraditório porque ao mesmo tempo que ela afirma ser amiga de Denise, suas descrições das atividades confirmam o trabalho efetivo com as crianças. No período em que permanecemos na creche, não encontramos evidências de que ela aparecesse por lá somente para visitar Denise, uma vez que ela sempre prestava algum tipo de ajuda. Em um momento posterior perguntamos pelo trabalho que ela realizava no ano 2000, ocasião de nosso primeiro contato. Bia confirmou que trabalhava na creche. Ainda que ela continuasse argumentando que trabalhava há dois ou três meses, esta resposta foi contraditória porque nos encontramos pela primeira vez em dezembro de 2000 e a entrevista foi realizada em agosto de 2001: “Entrevistadora: Agora lembrando um pouco do teu trabalho anterior...quanto tempo tu trabalhaste aqui, quando o número de crianças era maior? Bia: Mais ou menos uns dois ou três meses” (Bia, 21/08/01). Nara, a filha de Denise, apresentou um relato diferente no que se refere ao pagamento, além de não ter omitido que trabalha de ajudante da mãe desde os dez anos de idade. Como 70 Nara parece aceitar melhor o fato de trabalhar na creche, uma vez que é filha da tomadora de conta e participa das atividades domésticas desde cedo, o problema do pagamento para ela parece ser algo bem resolvido: “Entrevistadora: Com que idade tu começaste a ajudar aqui na creche? Nara: Com dez anos. Lá embaixo. Eu fazia a mesma coisa. Entrevistadora: E lá tu recebias alguma quantia? Nara: Também a mesma coisa. De 10,00 a 20,00 reais” (Nara, 23/08/2001). Estas situações revelam a presença do trabalho infanto-juvenil na creche domiciliar, um trabalho nem sempre remunerado, o que também significa a presença de relações de subordinação de idade, nas quais um adulto explora o trabalho dos mais jovens. Sarmento, Bandeira & Dores (2000), salientam a importância da desocultação deste fenômeno, que representa um tipo de trabalho clandestino, ilegal e presente nas atividades cotidianas das crianças. Ele geralmente não é considerado um trabalho de natureza econômica, porque acontece no espaço da casa e não possui fins lucrativos. Não considerar as atividades infanto-juvenis como trabalho é semelhante ao que acontece com as atividades domésticas, normalmente desempenhadas pelas mulheres (Sarmento, Bandeira & Dores p.41). Ainda destacam os autores que nas micro-empresas familiares encontramos o desenvolvimento de uma economia subterrânea, caracterizada pela exploração de uma mão-de-obra adquirida sem qualquer tipo de contrato de trabalho e mal remunerada, ou sustentada pelo recurso a trabalhadores externos, como crianças e adolescentes. Conforme escreve Lautier15 (apud Mozère, 1997), o informal é regulamentado pelos “códigos privados”, que vão produzir tensões, porque as solidariedades essencialmente familiares são caras; nem sempre o apelo à família significa liberdade, podendo ocorrer formas de violência sem lei e exploração crescente. Esta lógica da solidariedade entre as famílias das camadas populares, principalmente quando há um envolvimento no trabalho informal, não pode ser compreendida como “sinônimo de harmonia e de consenso entre os diversos atores 15 LAUTIER, B. L’économie informelle dans lê Tiers-monde. Paris: La Découverte, 1994. 71 individuais” (Bilac, 1995). Apesar destes autores fazerem referência ao trabalho informal realizado em casa por diversos membros da família, o trabalho na creche domiciliar, que inclui ajuda de outros jovens, também apresenta contradições decorrentes das ambigüidades resultantes de uma atividade domiciliar que não apresenta remuneração. A tomadora de conta administra esse trabalho e, mesmo que o contrato não seja formalizado, existe um acordo e as ajudantes mantêm uma relação de dependência com um adulto que fiscaliza o trabalho. Se Denise não têm horários e garantias no serviço que oferece, a situação se agrava porque suas ajudantes são menores de idade. Além do mais, estes espaços reproduzem as diferenças de trabalho por sexo, pois “as desigualdades de gênero persistem, com o trabalho domiciliário a incidir mais sobre as raparigas, sobre as quais incide, fortemente, o trabalho doméstico” (Sarmento, Bandeira & Dores, 2000). Obviamente existe uma estruturação dos serviços e distribuição dos papéis de gênero que é bem marcante no caso das meninas. Delas se espera que façam serviços domésticos e de apoio, como cuidar e organizar brincadeiras com as crianças, como fazem Nara e Bia, ajudantes na creche domiciliar. Como já evidenciamos, o vizinho que ajudava Denise no ano 2000 fazia somente os serviços vinculados à rua, como levar e buscar as crianças maiores na escola. Provavelmente este distanciamento masculino das atividades que acontecem no interior da creche tem relação, por parte dos familiares das crianças, com o receio de abusos sexuais ou outras formas de violência. Mas fundamentalmente o que ocorre é uma reprodução dos papéis de gênero, com uma delimitação das atividades domésticas para as meninas e das atividades vinculadas ao mundo da rua para os meninos. Para Bia, no trabalho doméstico os papéis são claramente definidos entre os meninos e as meninas. Desta forma, relatou que ajuda a mãe em casa, cozinha e faz outros serviços exceto lavar roupas - além de auxiliar Denise na creche. O irmão, alguns anos mais velho, apenas estuda e não divide com ela as tarefas da casa. Igualmente Nara referiu que aos cinco anos começou a arrumar a casa, assim como o trabalho de auxiliar a mãe a tomar conta de crianças parece ser algo aceito e naturalizado por ela: “Minha mãe escolheu cuidar de crianças, então isso é o que ela gosta, né? Ela gosta muito de crianças, então ela escolheu isso. Eu também gosto. Mas...é o jeito...eu moro aqui e eu tenho que aturar as crianças também. A 72 mesma coisa que a minha mãe dá, eu dou para as crianças. (Pergunta: Então tu ajudas porque tu estás morando aqui, ou porque tu gostas?) As duas coisas, porque eu moro aqui também e porque eu gosto das crianças” (Nara, 23/08/01). Também encontramos uma divisão de tarefas no cotidiano da creche, expressa tanto pela tomadora de conta como pelas meninas. A preparação dos alimentos e os serviços de cozinha, assim como os cuidados com a higiene das crianças menores são atividades desempenhadas por Denise: “Só que aquela coisa, eu ficava mais com a parte da cozinha e com as crianças menores, porque eu já tinha a experiência de ser mãe (...) A cozinha fica comigo. A parte da casa fica com minha filha. Ela nunca arruma a casa durante o dia. Depois que eu vou para o colégio, depois que as crianças vão embora que ela arruma. Eu passo uma vassoura e tiro o grosso. Agora limpar pelos cantos essas coisas, só quando as crianças vão embora. Aí ela limpa” (Denise, 22/08/01). A divisão das tarefas entre a tomadora de conta e as ajudantes também foi evidenciada nos relatos das meninas. Bia participava das rotinas de cuidado e higiene (acompanhada por Denise), ou de recreação com as crianças. Nara participava de atividades como organização das refeições das crianças, banho, brincadeiras e recreação (geralmente acompanhada por Bia), mas relatou que não apreciava a troca de fraldas. No transcorrer das observações foi possível constatar que os serviços de trocar fraldas dos bebês eram realizados por Denise, com o auxílio de Bia. Nara parecia menos envolvida do que Bia com o cuidado das crianças no ano de 2001, uma vez que estudava na parte da manhã. Durante a tarde as crianças dormiam e ela, sua mãe e Bia faziam as tarefas da escola, uma vez que as três estavam cursando o ensino fundamental. Porém, no final da tarde, quando Denise ia para o colégio, Nara aguardava com as crianças a chegada das mães e arrumava a casa. Podemos afirmar que Bia trabalhava mais do que Nara, porque durante a manhã ela participava de brincadeiras, cuidava das crianças no pátio ou na sala e ajudava Denise nas trocas, alimentação e banho. Após o almoço, Bia permanecia um tempo na creche e mais tarde 73 ia para casa ajudar a mãe nos serviços domésticos. Quando finalizava estas atividades, retornava para a creche e concluía as tarefas da escola, permanecendo até o final da tarde, pois estudava à noite. Bia realizava trabalho domiciliar na creche de Denise e trabalho doméstico na sua casa. Como Denise, Bia e Nara estavam cursando o ensino fundamental, freqüentemente conversavam sobre o futuro profissional, expectativas de escolaridade e carreira. Nara pretende seguir uma carreira profissional, embora condicionada pela atividade de tomar conta de crianças, enquanto vive com a mãe: "Ai, eu queria ser veterinária. Eu adoro mexer com bichos, até eu acabar meus estudos eu queria ser veterinária. Mas por enquanto que eu estou estudando, eu gosto muito de cuidar de crianças, até os dezenove por aí eu vou cuidar de crianças. Aí depois eu quero fazer um curso de veterinária. E seguir em frente, até conseguir o que eu quero" (Nara, 23/08/01). Da mesma forma, Bia também manifestou seu desejo de no futuro cursar uma Universidade: Eu pretendo estudar bastante para fazer uma faculdade, para ser psicóloga. Porque eu primeiro quero me entender, prá depois entender as pessoas. As expectativas das ajudantes quanto ao futuro profissional e escolar possivelmente se relacionam com a valorização do estudo e da formação profissional, o que comumente era exposto por Denise. 2.4 OS SENTIDOS DE SER MULHER, MÃE E TRABALHADORA EM UMA FAMÍLIA MONOPARENTAL Mulher ao espelho “Hoje que seja esta ou aquela, pouco me importa. Quero apenas parecer bela, Pois, seja qual for, estou morta. Já fui loura, já fui morena, Já fui Margarida e Beatriz. 74 Já fui Maria e Madalena. Só não pude ser como quis. Que mal faz, esta cor fingida do meu cabelo, e do meu rosto, se tudo é tinta: o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto?” (Cecília Meireles) Como mulher responsável pela criação e sustento das filhas, Denise tem procurado formas de sobrevivência num contexto marcado por dificuldades sociais e econômicas. Por esta razão pensamos que é necessário um olhar sobre ela enquanto mãe, mulher e trabalhadora que nos permita analisar os sentidos que atribui à sua existência em uma família monoparental. Tais sentidos são marcados por ambigüidades e contradições. Denise toma conta dos/as filhos/as de outras mulheres na própria casa; podemos caracterizar este serviço em São Gonçalo como uma atividade representativa da atual conjuntura social, econômica e política, marcada pelo crescimento do setor informal e da violência gerada pelo tráfico de drogas. Como vimos no capítulo inicial, as disputas geradas entre os meninos ligados ao tráfico e os policiais causam impacto no modo de vida da população do bairro, que cria estratégias de proteção das crianças pequenas, ou das crianças maiores, que atualmente também freqüentam creches domiciliares em meio período. No Brasil, os programas de creches domiciliares surgiram nos anos de 1970. Mas como estamos estudando um caso no município de São Gonçalo que apresenta particularidades, necessitamos contextualizar nossa problemática no tempo e no espaço. A creche de Denise é um local que se estrutura a partir de horários e rotinas de alguns grupos das camadas populares e, de forma geral, as mulheres que procuram seus serviços desempenham profissões domésticas, não dispondo de tempo suficiente para permanecer com os/as filhos/as em casa. Existe uma relação entre a trajetória de vida de Denise e a sua ocupação como tomadora de conta de crianças, mas também há relação entre a sua ocupação e a reestruturação do mercado de trabalho capitalista, que causou mudanças na organização das famílias afetando as condições materiais de existência de grupos das camadas populares. Desta forma, com o desemprego ou a escassez de empregos no mercado formal para os homens, as mulheres trabalham como domésticas ou como autônomas fazendo faxinas para garantir a sobrevivência das famílias. Sem o apoio de parentes ou vizinhos que outrora ajudavam a cuidar das crianças pequenas, e sem creches públicas ou comunitárias com atendimento de zero a três anos, 75 conforme estabelecido na Nova LDB, a saída é procurar serviços como a creche domiciliar de Denise, que se organiza em função das necessidades das mães das crianças e dela própria. De um lado Denise é uma mulher afastada do mercado formal de trabalho e responsável pelo sustento dos/as filhos/as. De outro lado, depende de mulheres que enfrentam problemas semelhantes para garantir a sua sobrevivência. Ambas as partes convivem em um local marcado pela ausência de serviços públicos educativos para as crianças pequenas e restrições de ajuda por parte de avós ou outros parentes, quando as mulheres necessitam trabalhar. A escolha do trabalho de Denise está vinculada a três motivos que se relacionam com suas condições de vida e com as saídas que ela própria encontrou para conciliar a maternidade com o trabalho. O primeiro deles diz respeito à baixa escolaridade e às poucas chances de conseguir um trabalho mais qualificado. Com o casamento, Denise interrompeu os estudos e nem mesmo concluiu o ensino fundamental. Desta forma seria inviável para ela obter uma ocupação melhor do que a de empregada doméstica. O segundo se refere à opção de ficar perto das filhas e conciliar o trabalho com as atividades da casa. A atividade de tomar conta de outras crianças lhe proporciona permanecer em casa e obter um rendimento igual, ou maior, do que o obtido quando se trabalha fora de casa, especialmente em ocupações domésticas. Como não há garantias de segurança no local onde reside, Denise preferiu ficar perto das filhas fazendo algo que lhe proporcionasse uma renda, pois o marido não tinha emprego estável. O último motivo e o mais significativo nas análises de Denise é o da possibilidade de autonomia na atividade que realiza, ainda que se trate de uma autonomia relativa, conforme já esclarecemos. A decisão de ganhar dinheiro na própria casa permitiu a Denise ser o seu próprio patrão, num trabalho que acontece junto às atividades domésticas cotidianas: “(...) eu passei 15 anos fora do colégio e voltei a estudar. É aquela coisa, por eu não ter com quem deixar a minha filha e não ter confiança de deixar, porque no lugar onde eu vivo é muito difícil. Aqui é um lugar em que você não tem confiança, mesmo em nada. Nem andar na rua. Já que eu tenho esse interesse por criança, porque não conciliar tomar conta de crianças na minha casa e tomar conta da minha filha? Outro ponto também: eu não tinha como trabalhar. Então eu tinha que fazer alguma coisa em que eu pudesse ter o meu sustento e tomar conta da minha filha. 76 Então eu falei: eu vou sair daqui prá ser dona de casa novamente? Eu posso ser dona de casa dentro da minha casa, tomando conta da minha filha e dos filhos de outras pessoas e ganhando o meu dinheiro também da mesma forma. Quer dizer, eu vou ser o meu próprio patrão. Quer dizer, eu posso escolher a minha hora de entrada, a minha hora de saída, eu posso, ou não, fazer hora extra, se eu não quiser também eu não faço...É aquela coisa de querer estar perto da criança e também cuidar de outras crianças. Tenho certeza de que esse foi o meu maior ponto. De não ter aquele ensino para procurar outra coisa, um bom emprego e por não ter tido esta oportunidade, por ter largado os estudos e por querer estar perto da minha filha, não deixar ela com outra pessoa, que eu escolhi esta parte de creche domiciliar. De tomar conta de crianças” (Denise, 22/08/01). Tomar conta de crianças na própria casa foi a solução que ela encontrou para garantir sua sobrevivência econômica. Quando residia na casa dos pais, com a filha mais velha ainda pequena e o marido desempregado, Denise percebeu que não poderia depender economicamente do marido ou do pai, pois este último logo constituiria nova família após a morte da sua mãe. Após ter se separado de Antônio, Denise tornou-se provedora de uma família monoparental e responsável por uma creche domiciliar que deveria lhe garantir fonte de renda e sobrevivência. A seguir vamos explorar parte das ambigüidades que cercam a vida pessoal e profissional da tomadora de conta. 2.4.1 Ser mãe e trabalhar para ter uma renda: a feminização da pobreza No Brasil, as mulheres das camadas populares que criam os filhos pequenos sozinhas estão mais próximas da linha da pobreza. Denise é uma mulher que enfrenta tais dificuldades, considerando sua situação familiar e seu contexto local sem creches públicas para as crianças pequenas. Ela faz parte do universo de um fenômeno denominado por Lavinas (1996); Torremocha & López (1999); entre outras autoras, “feminização da pobreza”. Para Lavinas (1996), a feminização da pobreza é hoje um fenômeno contemporâneo que surge como uma categoria sexuada e com características próprias, reunindo duas fragilidades: ser do sexo feminino e das camadas populares. 77 Este não é, contudo, um fenômeno que atinge somente os países do terceiro mundo16. As pesquisadoras espanholas Torremocha & López (1999) definem feminização da pobreza17 como o maior risco que as mulheres apresentam, frente aos homens, de serem pobres. Elas geralmente ocupam posições mais frágeis no mercado de trabalho, devido às diferenças salariais decorrentes da concentração em profissões com nível de qualificação e remuneração mais baixos. Para ambas (1999, p.46), a maior vulnerabilidade das mulheres à pobreza se agrava quando elas são as únicas provedoras de uma família e necessitam cuidar das pessoas dependentes, principalmente dos/as filhos/as pequenos/as. Em geral são as mulheres mais jovens, procedentes de uma ruptura matrimonial e que chefiam famílias maiores as que padecem de situações de pobreza mais graves. Desta forma, elas defendem a tese de que a pobreza não é somente reflexo da insuficiência de recursos econômicos, mas igualmente de situações sociais, familiares e pessoais muito precárias, que tornam as mulheres mais vulneráveis aos processos de exclusão social. Entendemos que é necessário cuidado no uso do termo exclusão social18 mesmo que as análises sobre a feminização da pobreza nos ajudem a compreender o caso de Denise, e ainda constatando que ela provavelmente enfrenta maior insuficiência de recursos sociais, educacionais, econômicos e familiares do que as mulheres analisadas pelas pesquisadoras espanholas, nem por isso a vemos tão somente como excluída. Em pesquisa sobre catadores do lixão de São Gonçalo, Paixão (2002) expõe os dilemas enfrentados pelos/as pesquisadores/as que convivem com grupos da população que experimentam sentimentos de sofrimento de ordem simbólica, definidos de forma apressada como à margem da sociedade do trabalho. O termo exclusão tem sido precipitadamente usado para definir homens e mulheres que precisam lutar por uma identidade no mundo do trabalho. Por esta razão, o uso da definição de excluídos merece ponderação. Nessa perspectiva, a 16 No Brasil, a feminização da pobreza hoje assume contornos graves, pois entre os 45 milhões de famílias brasileiras, 19,6% possuem renda inferior a meio salário mínimo e, destas, 16,7% são chefiadas por mulheres sem cônjuge e com filhos (IBGE, 2000). 17 Para as pesquisadoras, a feminização da pobreza tem suas raízes nas modificações da estrutura familiar européia a partir dos anos 60, tais como: baixas taxas de fecundidade, diminuição do número de matrimônios, aumento do número de divórcios e de nascimentos fora do casamento (Torremocha e López, 1999). 18 Embora o termo excluídos, ou exclusão social apareça diversas vezes em nosso texto, isto não significa que consideremos os sujeitos da pesquisa desta forma. 78 autora (2002) faz uma opção pelo termo inclusão precária, termo utilizado por Martins19 (apud Paixão, 2002), para o qual não existe exclusão, mas contradição e vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes. Alguns/as estudiosos/as sobre famílias das camadas populares como: Fonseca (1995); Sarti (1995, 1996); Romanelli (1997) e Salen (1981) reconhecem que nos arranjos familiares monoparentais as taxas de pobreza em geral são maiores. Sarti comenta que na literatura sobre famílias existe uma relação entre pobreza e responsabilidade da figura feminina pela manutenção das famílias: “(...) as famílias chefiadas por mulheres estão numa situação estruturalmente mais precária, mais dependentes de variações conjunturais, quando comparadas com a situação das famílias pobres, equivalentes no ciclo familiar, que têm chefe masculino presente, dadas as diferenças nas formas de inserção da mulher no mercado de trabalho” (1996, p.45). Todavia, este não é um fenômeno recente, muito menos uma invenção da modernidade. Famílias chefiadas por mulheres sempre existiram, apesar do número ter crescido nos últimos anos20. Como observa Fonseca (1995, p.70) é necessário evitar o “mito da família unida” de tempos antigos, porque no início do século XIX havia no Brasil famílias chefiadas por mulheres, bem como famílias conjugais. De forma geral, a literatura consultada sobre feminização da pobreza discute a situação de mulheres sozinhas e responsáveis pela criação e sustento dos/as filhos/as, um fenômeno que não é recente mas que tem aumentado, sobretudo nos países pobres. Essa literatura nos ajuda a compreender o caso de Denise, a sua atividade econômica, as relações sociais que ela estabelece, bem como suas percepções sobre ser mãe, mulher e trabalhadora. Na medida em que ampliamos esta análise, no entanto, um outro olhar sobre a problemática despontou: o de que Denise, embora mulher, pobre e membro de uma família monoparental, apresenta outros significados sobre a sua existência. 19 MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997. No final dos anos 80, segundo Ribeiro e Sabóia (1993), aproximadamente quatro milhões de crianças e adolescentes brasileiros viviam em famílias chefiadas por mulheres sem cônjuge, com uma renda familiar per capita de, no máximo, meio salário mínimo. 20 79 Tais significados, embora fortemente marcados pelas condições materiais de existência e pela classe social, têm igualmente um recorte de gênero, principalmente no que diz respeito à posição de Denise enquanto mulher e mãe em uma família monoparental. Nesse sentido, as restrições sociais, econômicas e culturais que lhe são impostas produzem subjetividades e modos de significar sua existência muito peculiares. O fato de ser a única provedora e responsável pela educação das filhas não parece ser algo resolvido por Denise. Ela se ressente por não fazer parte de um arranjo familiar no qual o homem é o pai e o provedor. Ser mulher e mãe é algo que para ela assume significados de sofrimento e de fragilização. Por outro lado ela se valoriza, principalmente porque pode tomar decisões sem o apoio dos homens. Procuraremos analisar as tensões expressas por Denise, que vive em uma família monoparental, mas deseja e organiza a sua vida e o trabalho na creche tendo como pressuposto o modelo de família conjugal. Ela apresenta ambigüidades nos discursos e tanto vitimiza quanto valoriza os sentidos de ser mulher, assim como relaciona os corpos femininos com dor e sofrimento e, ao mesmo tempo, sente prazer em trocar carinho com as crianças. 2.4.2 Viver em uma família monoparental e desejar uma família conjugal: vitimização e valorização dos sentidos de ser mulher A experiência do casamento foi relatada por Denise como frustrante - com 15 anos...prá mim eu posso dizer que caí na besteira de me casar - e, não raro, ela demonstrou seu descontentamento com a situação da separação, uma vez que os encargos financeiros e a educação das filhas foram assumidos por ela de forma integral. O percurso de Denise após a separação sugere um tipo de vida que se voltou para o trabalho, estudo e criação das filhas. Em quase todos os seus depoimentos percebemos um discurso negativo a respeito dos homens, assim como nos comentários sobre as frustrações dela e das filhas com relação ao comportamento do ex-marido que, ao assumir uma outra família, passou a dedicar pouco tempo para as filhas do primeiro casamento. A partir da sua experiência de vida e também pelo conhecimento das experiências das outras mulheres com as quais convive, Denise considera que é mais fácil ser homem, mesmo 80 na atualidade, quando é possível, por exemplo, que os filhos fiquem com os pais após as separações, o que ela vê como uma vantagem do ponto de vista legal21, mas como uma opção improvável na prática, uma vez que, para ela, os homens preferem a liberdade: “Porque, por exemplo, não sei se você já viu que saiu um novo estatuto. Agora já tem que na separação fica com as crianças quem tiver melhor condição. Se de repente o pai tem mais possibilidades de ficar com o filho, ele simplesmente não vai querer. Vai tirar a liberdade dele de sair, de repente estar aqui, estar ali ao mesmo tempo (...)” (Denise, 22/08/01). Na ótica de Denise, as separações implicam em rupturas e aumento das dificuldades para as mulheres, pois além de assumir a criação dos filhos sozinhas - porque geralmente os homens constituem novas famílias - elas sustentam a casa e, em alguns casos, também pagam as dívidas dos ex-maridos: “Quando ele trabalha e dá alguma coisa, tudo bem. Mas quando não? Aí a mulher praticamente tem que ser mãe e pai ao mesmo tempo. Eu estou falando sobre aquilo que eu estou vivendo. Basicamente o homem não esquenta. Ele não esquenta para o que está passando, pelo que de repente o que a criança está passando dentro de casa, se ela tem o que comer, se ela tem o que calçar, o que vestir. Ele simplesmente não se preocupa. Aí vai fazendo, deixou uma família para trás, está fazendo outra, se de repente não der certo aí vai fazendo outra (...) já para a mulher isso fica bem fechado. Ainda fica com aquela coisa de sem-vergonhice, isso e aquilo outro ...ainda existe isso. Bem mais viável ser homem hoje em dia (risos)” (Denise, 22/08/01). Ela compreende que para os homens é mais fácil constituir uma nova família a partir de sua experiência de vida, pois seu pai e o ex-marido casaram novamente e tiveram filhos. Ao assumir as responsabilidades da casa e o sustento das filhas, Denise optou pela esterilização antes dos 30 anos. Esta atitude aponta para um aspecto importante: ela não quer ter mais filhos com outro homem, ou não pretende reconstituir sua vida afetiva? Freqüentemente reafirmava 21 Denise parece se referir ao Artigo 1.584 do Código Civil que explica que decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar 81 o discurso de que os homens podem desfrutar de maior liberdade, quando não são responsáveis pela casa, filhos/as e sustento das famílias. Embora sustente um discurso negativo sobre a experiência do casamento, quando comenta sobre o lugar da figura masculina na família seu desejo parece o de estar num casamento no qual a estrutura familiar seja a nuclear. O lugar ocupado pela figura masculina no casamento, para ela, vincula-se à imagem do homem dentro de casa, que não só garante o sustento da família, mas também oferece segurança expressa pelo respeito, contato e carinho com os filhos. A função do carinho e do cuidado com os filhos, na sua perspectiva, é quase sempre delegada à figura materna, embora ela almeje um posicionamento mais igualitário. A importância que a figura masculina assume para Denise, mesmo quando ela expressa ressentimento, é um aspecto analisado por estudos antropológicos realizados em favelas brasileiras. Alguns autores ressaltam que não existe uma relação de equivalência entre mulheres que assumem a chefia das famílias e a superação das assimetrias de gênero. Sarti (1995, 1996), Romanelli (1997) e Salen (1981), em estudos sobre famílias das camadas populares, têm evidenciado que as mulheres chefes de família, que não dependem de homens ou de filhos para seu sustento, em determinados casos buscam em outros homens o papel de “provedor” ou “chefe” para se sentirem valorizadas. Isto ocorre porque a família nos meios populares representa um valor fundamental, uma referência básica na construção do universo simbólico de homens e mulheres. Conforme analisa Sarti (1996, p. 136), entre os pobres dos meios urbanos a família estrutura-se de forma hierárquica, com precedência do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos e dos mais velhos sobre os mais novos. Isto pode explicar a organização doméstica baseada na tradicional divisão sexual, na qual o homem é o provedor e a mulher a dona-decasa. Dentro deste modelo hierárquico, a autora percebe como os papéis de gênero e de idade são definidos em termos recíprocos e complementares. Entretanto, a identificação do homem com a figura da autoridade não significa que a mulher seja privada de autoridade. Para Sarti, a diferença de autoridade por gênero corresponde à divisão entre a casa e a família, na qual o homem é o chefe de família e a mulher a chefe da casa. É assim que a autoridade da mulher melhores condições para exercê-la. Fonte: LEITE, Heloisa Maria Daltro. O Novo Código Civil. Livro IV do Direito da Família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002. 82 estrutura-se no papel de gênero de mãe e dona-de-casa, ocorrendo uma forte valorização simbólica da figura da mãe. O que dizer, então, do caso de Denise e de outras mulheres que exercem não somente a autoridade da casa, mas também a da família? Na visão de Sarti (1996, p.136) a discussão da noção de mulher “chefe de família” é um fenômeno cada vez maior entre os pobres urbanos, o que revela o importante papel econômico das mulheres nas unidades de baixa renda. A análise da autora não se restringe, todavia, ao papel econômico, ou das relações de trabalho, ou seja, ela compreende a existência de um universo simbólico na estruturação dos papéis de gênero e idade. Assim, mesmo quando a mulher assume o papel de provedora dos recursos econômicos, a identificação do homem com a figura da autoridade não se altera em todas as suas dimensões. Denise não casou outra vez e não encontrou um chefe ou provedor substituto de origem familiar. Como seu pai foi viver em outro local com a nova família e o irmão apresenta problemas com drogas e álcool, nenhum dos dois pode preencher tal lacuna. Provavelmente porque deseja para si uma estrutura de família nuclear, quando se refere às mulheres, de forma geral, ela faz uma análise baseada na vitimização. A partir da sua experiência de vida e das experiências de outras mulheres com as quais convive, ressente-se de que os encargos e responsabilidades com a criação dos/as filhos/as são delegados às figuras maternas. Desta forma, considera que é mais fácil ser homem, porque eles são mais livres e sentem menos culpa e, por isto continuam ausentes da participação na criação dos/as filhos/as, o que verificamos quando ela relatou sua conversa com a filha mais velha, a respeito da figura paterna: “A mãe é mais aquela coisa dentro do lar (...) mas porque o pai paterno não pode ser um pouco mais viável? Em brincar, em colocar a criança no colo e brincar um pouquinho. Esta parte joga tudo do lado da mãe (...) eu sei a falta que faz a figura do pai delas. A Nara diz que não, sabe? Mas dá para perceber naquilo que ela deixa no ar (...)” (Denise, 22/08/01). Em outras situações, falou de sua extensa jornada de trabalho, do estudo e responsabilidade com as filhas, enaltecendo sua figura de mãe, mulher e trabalhadora. É significativo o posicionamento da socióloga catalã Izquierdo (1999) sobre o sentimento de 83 onipotência experimentado por mulheres que exercem dupla jornada de trabalho22. A autora argumenta que é pouco rigoroso dizer que as mulheres trabalham o dobro dos homens e que é possível interpretar-se o estar mentalmente em todas as partes não só como uma marca da desigualdade social das mulheres, mas também como um sentimento de onipotência. Percebemos que ocorre uma contradição quando Denise se refere às mulheres como vítimas e, ao mesmo tempo, avalia de forma positiva sua capacidade de enfrentar as dificuldades causadas pela ausência de um chefe e provedor na sua família. Há uma tensão na sua forma de pensar em um modelo familiar que não corresponde à sua realidade, vendo-se enquanto vítima e, ao mesmo tempo, valorizar ou enaltecer suas experiências. Freqüentemente ela se referia a si própria como uma mulher forte que soube direcionar sua vida, mesmo diante das dificuldades, como no episódio que ela própria relatou sobre o enfrentamento com um vizinho. Chamamos a atenção sobre os preconceitos de gênero, raça e classe expressos neste depoimento extraído de um diário de campo: "Denise relata uma discussão com ela e um vizinho, sobre um problema no esgotamento da rua na qual ela reside. Eu não consigo entender muito bem o motivo da discussão, mas ela conta que falou para o vizinho que ela não tem homem em casa, mas sabe se virar. Explica que um outro vizinho ofereceu ajuda e chamou um menino para fazer a vala e que Nara acompanhou a briga pela janela da sala; Aparentando orgulho, diz que ficou até o final da discussão e não saiu do lugar enquanto a vala não estava pronta. Informa, ainda, que o vizinho com o qual brigou dizia que se furassem o cano dele iam ter que colocar outro no lugar. Ela ficou de pé enfrentando o vizinho e lhe disse que ao invés de conferir o cano, ele deveria conferir a sujeira que vem da casa dele. E eu anoto esta frase muito sugestiva: ‘tá pensando que eu sou o quê? Nega de morro? Sou muito branca e tem negro que tem muita educação. Você não está se valorizando...’depois acrescentou que os dois acabaram se entendendo" (Diário de Campo, 13/07/ 2001). 22 A socióloga (1999, p.42) faz uma crítica aos posicionamentos que atribuem as relações de reprodução às mulheres e as relações de produção aos homens. Ela argumenta que o fato de atribuir a função reprodutora às donas de casa contém uma negação que é a de supor que os homens não participam da produção da vida humana, ou que as atividades que os homens realizam não comportam reprodução física ou social, pois eles são indispensáveis na geração de nossas vidas e a permanência das formas de vida também dependem das atividades que eles desenvolvem. Defende, portanto, que o que diferencia as mulheres dos homens são as condições de trabalho e a posição que ocupam nas relações de produção. 84 É possível afirmar que os discursos de Denise não são lineares ou sempre coerentes; ao contrário, apresentam fissuras e contradições. E apesar dos estreitos limites de possibilidades impostos por sua condição social e por sua condição de mulher, Denise foi capaz de encontrar soluções para garantir a sobrevivência dela e das filhas. Ela mesma afirmou que não consegue ficar parada e voltou a trabalhar um ano e meio após uma interrupção, quando o marido conseguiu um emprego estável. Após a separação, ela retomou os estudos, pois quer ocupar uma profissão qualificada e reconhecida. Nos estudos já citados sobre mulheres dos meios populares, são também objeto de análise as contradições entre as representações das mulheres por elas próprias como seres frágeis e vitimizadas, e formas de viver que demonstram sua força. Um exemplo é o estudo de Salem (1981) sobre como 17 mulheres da favela da Rocinha no Rio de Janeiro pensam e constróem a identidade feminina. Fundamentalmente a autora aponta a ambivalência apresentada pela imagem de mulheres que não se afirmam enquanto sujeitos de sua existência, que não existem para si, mas para e através dos outros apresentando ao mesmo tempo outra face, revelando a capacidade de lidar com “coisas de homem”, o que destoa da auto-imagem construída e apoiada na fragilidade, passividade e impotência (Salem, 1981, p. 93). Nesse sentido, ela pergunta por que a mulher tende a privilegiar nas suas representações a faceta supostamente impotente e fragilizada. Não são, porém, apenas os estudos antropológicos que nos ajudam a compreender tais ambigüidades e contradições. Pesquisadoras sobre relações de gênero na história e na educação como Scott (1995); Louro (1995); Cunha (1998) e Brugger (1995) denunciam a tendência de vitimizar as mulheres, ou tratá-las como submissas ao domínio masculino, sem explorar os outros espaços que propiciam sua atuação social. Para Scott (1995, p. 88) os homens e as mulheres reais não cumprem literalmente os termos das prescrições de sua sociedade ou de nossas categorias analíticas. E Louro (1995) escreve que nos dois pólos da relação entre homens e mulheres há sujeitos livres e capazes de agir e reagir. O caso de Denise, apesar de singular, é representativo; todos os estudos citados sobre mulheres das camadas populares com um recorte de gênero demonstram que é necessário 85 superar análises que polarizam submissão e contestação, como se as formas de atuação das mulheres ocorressem somente em extremos. Como demonstra a trajetória de Denise, na sua relação com o marido fez concessões para manter o casamento, mas também soube criar estratégias para manter sua atividade de tomadora de conta, alugando uma casa em parceria com uma colega, por exemplo. Ela tem procurado encontrar suas alternativas de sobrevivência, mesmo imersa em um universo cercado de limitações impostas pela sua condição social. Sua vida sem dúvidas reflete o fenômeno da feminização da pobreza, mas as dificuldades que ela enfrenta também convivem com estratégias e soluções para superar as limitações do cotidiano. Este é um processo que nos permite afirmar que exclusão/inclusão, submissão/resistência são elementos que se interpenetram e que as vidas dessas mulheres não são apenas marcadas por adversidades e pobreza; ao contrário percebemos que na vida diária de Denise também há espaço para o riso e para enfrentar os desafios cotidianos. Por estas razões, não faz sentido uma análise da tomadora de conta apenas como força de trabalho domiciliar, excluída ou vitimizada. Como escreve Sarti (1996) a análise dos homens e mulheres dos meios populares como pessoas desmobilizadas, excluídas e isentas de direitos acaba negando a vida social e simbólica dos pobres naquilo que ela carrega de positividade, que permite sua atuação no mundo social e a possibilidade de atuação no plano político. Mesmo que Denise mantenha um discurso que torna sua posição de mulher, mãe e trabalhadora bastante fragilizada com relação aos homens, durante as observações e nos seus depoimentos foi possível constatar que ela busca rupturas e outros modos de vida num mundo que, na sua ótica, privilegia os homens. Ela estrutura o seu cotidiano de trabalho e estudo pensando no futuro, mesmo que limitada pelas incertezas geradas por um trabalho informal e clandestino, num local marcado pela violência do tráfico de drogas e pela ausência do Estado no delineamento de políticas públicas para a pequena infância. Segundo Saffioti (1992), o ser humano não é somente força de trabalho; ele exerce outros papéis sociais, o que nos convida a analisar o trabalho como uma atividade envolta em sentimentos e afetos, mas também mediatizada pelo exercício da reflexão e por escolhas e opções. As questões vinculadas ao corpo eram constantemente comentadas no cotidiano da creche domiciliar, pois ser mulher, mãe e trabalhadora é sem dúvida algo sentido e vivido com o corpo. Não poderíamos deixar de analisar como manifestações vinculadas ao sofrimento, à 86 dor, à fecundidade e à menstruação eram constantemente relacionadas com um sentimento de vitimização com relação às mulheres. 2.4.3 Experiências dos corpos de mulheres Na vida diária da creche domiciliar, comumente Denise conversava com suas ajudantes, vizinhas ou mães das crianças sobre contracepção, esterilização, parto e menstruação. Tais discursos são decorrentes das vivências corporais destas mulheres. Denise trabalha e experimenta sentimentos com o corpo. O envolvimento com as crianças pressupõe contatos corporais, o que é extremamente valorizado pelas mães das crianças, como discutiremos no capítulo posterior. Para Denise e suas ajudantes, as mulheres vivenciam com seus corpos sofrimento, limitação e dor. Não encontramos entre elas significados sobre os corpos femininos vinculados ao prazer ou à alegria. Possivelmente as sensações negativas de ser mulher em um corpo feminino possam explicar porque Denise optou por um método contraceptivo como a esterilização antes dos 30 anos de idade. Um fato que nos chamou a atenção desde os primeiros contatos com as tomadoras de conta do bairro foi a naturalização da esterilização como um recurso adotado entre mulheres que antes dos 30 anos decidem que não querem engravidar. Esta é uma prática do local, que acontece geralmente em períodos de eleições, pois há candidatos que são médicos e oferecem a cirurgia por um preço simbólico. Eles estabelecem um tipo de acordo com as mulheres que garante a propaganda política no local, em troca de serviços como atendimento em posto médico, exames de rotina e ajuda através de cestas básicas para as que tomam conta de crianças. Sobre a prática da esterilização se manifestou Isadora: Na época da eleição isso acontece demais. Os caras fazem de graça. Fazem por 20,00. Oferecem. Difícil é você orientar a mulher a aceitar outro método menos violento que esse. Denise foi esterilizada por um vereador que é médico e que lhe fornece mensalmente alguns quilos de arroz e feijão, assim como encaminha exames para as mães e crianças no Posto de Saúde. Ela e suas ajudantes freqüentemente utilizavam no trabalho camisetas de 87 propaganda desse político. Sobre a prática da esterilização no local, ela fez o seguinte comentário: “A maioria das mulheres só têm dois ou três filhos e tá todo mundo operado. Não dá, não... Tá muito difícil... A maioria faz a operação dos 22 aos 28 anos. Eu foi com 24. Praticamente só eu que trabalhava. Tudo fui eu quem pagou, só paguei o anestesista. A maioria acerta no Posto de Saúde ou em Clínica. Denise relata que conheceu o Doutor B através de campanha política. Ele perguntou se eu tinha certeza de fazer a ligadura agora. Eu disse que queria fazer porque pelo menos são só duas filhas. Algumas tem a sorte que eu tive, operação gratuita, só pagar o anestesista. A maioria daqui é operada: a mãe de Daniel, a mãe do Mateus e a mãe do Júlio. Só as mães de Marcos, Mauro e de Jane que não são esterilizadas” (Diário de Campo, 16/07/01). Episódios observados na creche, ou certos discursos, expressavam concepções diferenciadas dos corpos femininos e masculinos, assim como uma concepção do corpo e da sexualidade feminina como símbolo de sofrimento ou negatividade. Quando se referiam aos homens, inclusive as mulheres mais jovens, os corpos masculinos eram descritos como expressão de virilidade e liberdade, ao contrário dos corpos femininos, quase sempre representados por limitações como as dores da menstruação, do parto ou pelos riscos de engravidar. O período menstrual era freqüentemente descrito como uma etapa difícil que impossibilita o trabalho ou a dedicação às crianças, em comparação com os outros dias do mês. Assim, a menstruação e o parto são definidos como períodos que tornam as mulheres mais suscetíveis às dores do que os homens, aspecto recorrente tanto nas conversas que coletamos nas observações quanto nos depoimentos obtidos pelas entrevistas: “Prá mim, é difícil ser mulher, porque mulher sente dor desde quando nasce. A mulher sente dor quando a regra dela vem, mulher sente dor prá ter filho, mulher sente dor quando tem cólicas, e homem não sente nada. Homem nunca sente nada e a mulher tem mais dificuldade” (Bia, 21/08/01). 88 “Ah, porque eu não gosto de ser menina, não. Porque menina sente muita dor” (Nara, 23/08/01). A menstruação era sempre relacionada com dor, indisposição e mau humor; quando Denise ou uma das ajudantes estavam sem disposição para o trabalho, percebemos que elas estabeleciam uma relação com o período menstrual. Destacamos, igualmente, que esta relação era explicitada por meio de códigos ou expressões como a amiga, ela está doente, amolada, entre outros: “Hoje Denise fala que está cansada porque a amiga (se referindo à menstruação) chegou hoje” (Diário de Campo, 18/06/01). “Jane parece magoada e passa o tempo todo atrás do sofá e chorando. Ouço Denise comentar que ela brigou com a mãe e Denise fala em tom de brincadeira: ‘é a amiguinha dela que está chegando’ (numa referência à menstruação. Percebo que o mau humor é algo que Denise sempre relaciona com o período menstrual). Mais tarde Denise comenta com sua filha (Nara) sobre a menstruação, fala que é preciso comprar modess e que tomara que não venha a menstruação no sábado, dia que ela tem jogo de futebol” (Diário de Campo, 21/06/01). “Eu pergunto para Denise onde está Bia porque hoje ela não veio à creche. E ela responde ‘ela está amolada e talvez não venha’. Ela ainda acrescenta que as meninas sempre ficam assim, porque são muito novas. Mais tarde Bia chega mas ajuda muito pouco e passa o tempo todo parada. A menina comenta sobre a menstruação, que não sai de casa, porque parece que as pessoas sabem e falam: ‘ih, esta garota está sangrando’ ” (Diário de Campo, 26/06/01). Todos esses relatos contêm em si significados que atribuem sentimentos negativos às experiências corporais das mulheres. Provavelmente estas experiências não são percebidas como positividade porque alguns desses significados são socialmente construídos e interferem nas subjetividades das mulheres. De acordo com Dimen, para toda mulher a sexualidade está enredada com a reprodutividade, com a procriação, o relacionamento e a sociabilidade. Apesar de extensa a citação ela nos oportuniza compreender os significados expressos por Denise e suas ajudantes: 89 “Em nossa cultura, elas (as mulheres) são responsáveis pelos bebês, não tanto porque os colocam no mundo, mas porque constituem o gênero socialmente responsável pela ligação e pelos relacionamentos. Essa responsabilidade as coloca num conflito fundamental. Enraíza a identidade de gênero das mulheres na ligação, mesmo quando sua identidade adulta é definida pela individualização (...) Essas decisões, que todo mundo enfrenta, tornam-se muito ambivalentes para as mulheres devido ao interesse permanente do Estado por elas. Este usa a experiência das mulheres para controlar a reprodução social, que, por sua vez, se torna a via por excelência para o âmbito doméstico e a intimidade e, finalmente, a própria subjetividade (...)” (1997, p. 53). Para Bordo (1997) o corpo é um agente de cultura e, também, um lugar prático de controle social. Mesmo que não tenhamos a pretensão de ampliar uma discussão sobre as experiências corporais vividas pelas mulheres, o que nos remeteria a uma análise sobre sexualidades e gênero, assuntos como parto, esterilização e menstruação eram constantemente tratados no dia a dia da creche. Assim, optamos por uma abordagem destas experiências, conscientes de que há uma pluralidade de sentidos contida na expressão “sexualidades”. De acordo com Bourdieu (1999), é pelo habitus que o mundo social constrói o corpo como uma realidade sexuada e como depositário de categorias de percepção e de apreciação sexuantes, que se aplicam ao corpo na sua realidade biológica. O sociólogo nos ajuda a compreender as origens da dominação num trabalho milenar de socialização do biológico e de biologização do social, o que transforma a construção social dos gêneros masculino e feminino em uma construção social naturalizada, que também poderá justificar a divisão sexual do trabalho. Esta é sem dúvida uma perspectiva interessante para que entendamos muitos dos posicionamentos negativos enunciados por nossas informantes a respeito dos seus corpos. Entretanto há outras perspectivas que nos ajudam a compreender que os padrões de masculinidade e de feminilidade hegemônicos são também contestados ou transformados historicamente, como defende Connell (1995, p. 192) ao escrever sobre as políticas de masculinidade. As questões ligadas ao corpo são problematizadas em estudos sobre relações sociais de gênero porque também são percebidas como construções culturais que produzem identidades 90 subjetivas entre homens e mulheres. Nesse sentido, as reflexões em torno da maternidade, dos cuidados e do trabalho doméstico ganham pouco a pouco expressão no campo acadêmico. Como escreve Ferreira (2001) teorizar sobre as prestações de cuidados - tarefa que ainda é convencionalmente atribuída às mulheres - constitui-se hoje em objeto de atenção dos estudos sobre gênero. Assim, pensamos que as reflexões sobre os cuidados estão profundamente enraizadas com os corpos femininos e masculinos, o que cotidianamente era discutido na creche domiciliar. No ensaio de Saffioti, o gênero é compreendido como um certo estilo de se viver o corpo em um mundo com estilos corporais já estabelecidos e o caminho se faz das relações de gênero para o sexo: “Eis porque se insiste na direção do vetor: das relações de gênero para o sexo anatomicamente conformado (...). Os fatos biológicos nus da sexualidade não falam por si próprios; eles devem ser expressos socialmente. Sente-se o sexo como individual, ou, pelo menos, privado, mas estes sentimentos sempre incorporam papéis, definições, símbolos e significados dos mundos nos quais eles são construídos” (1992, p.187). Entretanto, isto não significa que a maternagem seja algo inato ou comportamental; na visão da autora (1992), a atividade de maternar e obter gratificação é percebida como algo organizado internamente e psicologicamente reforçado, ou algo estruturado durante um processo de desenvolvimento e no interior da estrutura psíquica feminina. Esta construção interna só é possível, contudo, porque há inserção em um processo social no qual intervêm as relações sociais de gênero. A socióloga e feminista Agacinski (1999), percebe a maternidade como possibilidade de gestação, em um corpo, do feminino e do masculino. Assim, esta é uma capacidade inerente às mulheres e que também pode ser compreendida como positividade. Provavelmente sejam as contradições e tensões que cercam o trabalho e a vida de Denise aquilo que reforça as expressões negativas sobre os corpos das mulheres. 2.5 AS AMBIGUIDADES DA FUNÇÃO E OS SABERES PARA TOMAR CONTA DE CRIANÇAS 91 “(...) Não despreze a meditação doméstica É da poeira do cotidiano que a mulher extrai filosofia cozinhando costurando e você chega com a mão no bolso julgando a arte do almoço: Eca!...” (Elisa Lucinda) Para Denise, a atividade de tomar conta de crianças está repleta de ambigüidades, principalmente porque ela oscila entre ser mãe substituta, tia ou tomadora de conta o que parece refletir o conhecimento de que realiza uma atividade sem qualificação, e entre ser professora ou psicóloga o que assinala um desejo de reconhecimento do seu trabalho que também envolve saberes e reflexões sobre sua prática. Inicialmente exploraremos como Denise se vê na função de tomadora de conta de crianças. Como ela oscila nas definições sobre sua função, produzem-se sentimentos contraditórios, como a culpabilização de si própria enquanto mãe e mulher bem como das mães das crianças. O trabalho aqui focalizado é um trabalho feminino realizado no domicílio da tomadora de conta, porém articulado com o mundo da rua. Interessa-nos compreender quais os sentidos dessa atividade para Denise e que saberes ela tem adquirido ao longo da sua vida como mãe, mulher e trabalhadora que levaram-na a construir raciocínios sobre a sua função permeados de contradições, tensões, sonhos e expectativas de futuro. Na sua atividade cotidiana entram em jogo conhecimentos adquiridos de experiências anteriores ou de trocas de experiências com outras mulheres; isto evidencia que mesmo em um ambiente limitado do ponto de vista do espaço físico e de qualificação específica para a educação infantil, Denise está construindo uma prática que não podemos classificar como pobre meramente porque gerada em um local pobre com restrições em termos de recursos materiais e humanos para o trabalho com crianças pequenas. Os significados que Denise expressa acerca de sua atividade estão repletos de ambigüidades entre sentimentos de disputa com as mães e de satisfação pelo reconhecimento que obtém das crianças. Conforme escreve Osborne (1999, p. 22), valores como individualidade e competitividade são também reproduzidos em ambientes de trabalho feminino. A vinculação, o afeto e a sensibilidade emocional não são incompatíveis com a 92 racionalidade e a objetividade e todos estes fatores são indispensáveis na execução de qualquer tipo de trabalho, seja ele tido como masculino ou feminino. Esta autora (1999, p. 23-24) ainda comenta que raramente é discutido o fato de que são outras mulheres que habitualmente cuidam os filhos das mulheres, às custas de baixos salários e condições limitadas de trabalho. As condições precárias de existência e de trabalho certamente interferem na construção de sentidos ambíguos sobre como Denise se vê naquilo que faz, quais saberes compreende como importantes e como culpa as mães e a si própria quando percebe os limites da sua atividade. Observa Tronto (1997, p. 188) que uma abordagem feminista dos cuidados considera que cuidar implica responsabilidade e compromisso. Ela ainda enfatiza o valor do cuidado, visto como uma atividade que não é apenas banal, mas que também envolve julgamentos. E mesmo que cuidar tenha sido tradicionalmente percebido como uma atividade feminina e maternal, isto não significa, para a autora, que quem cuida o faça de forma intuitiva. Denise certamente não toma conta das crianças e das suas filhas utilizando apenas a intuição, ou simplesmente jogando emoções nesses cuidados. Veremos como há uma combinação de racionalidades e emoções nos seus significados sobre o trabalho que realiza, o que também observamos ao analisar os significados para ela, de ser mãe, mulher e trabalhadora. 2.5.1 Mãe substituta, tia, tomadora de conta, professora ou psicóloga? Já questionamos como Denise percebe a sua atividade na creche domiciliar, ou como, afinal, ela se vê na sua ocupação. Em alguns depoimentos, definiu-se como alguém que acumula as funções de mãe, enfermeira, professora e psicóloga no trabalho com as crianças. Em outros depoimentos, referiu-se a si própria como a tia Denise, ou como alguém que sabe mais sobre as crianças do que as próprias mães. Visto que Denise oscila entre estas definições e expressa ambigüidades quando procura definir o que é ou o que faz, supomos que ela não acumulou muitas certezas acerca da sua função justamente porque faz um trabalho clandestino e ilegal. 93 Como vimos em itens anteriores, ela realiza uma atividade informal, domiciliar, clandestina, instável do ponto de vista do rendimento e ilegal porque não é regulamentada. Tais características configuram um perfil de trabalho sem garantias e direitos e, por isto, sem regularização das atividades, dos horários, salários e preços. Denise oscila no vai e vem de receber e perder crianças, tal como os familiares que oscilam no vai e vem do emprego/desemprego. Ela depende da situação de trabalho das mães para garantir suas condições de existência. Produzem-se aqui uma série de ambigüidades que envolvem tanto a sobrevivência econômica de Denise quanto seus sentidos sobre o que é e o que faz. Quando ela fala sobre sua vida privada e profissional, revela uma duplicidade de oscilações que se refletem nas suas condições materiais de existência, e na produção das subjetividades. Em outras palavras, Denise oscila nas relações de trabalho e nas negociações que estabelece com os familiares, assim como oscila quando se refere aos sentidos de ser mulher, mãe e trabalhadora em uma família monoparental. Não poderia ser de outra forma quando expressa os sentidos sobre sua atividade. Como Denise vivenciou experiências anteriores que preparavam crianças para a escolarização, é provável que as denominações tia, professora ou psicóloga tenham se originado dessas vivências. De outro lado, não podemos negligenciar o fato de que ela e suas filhas freqüentam a escola formal, o que provavelmente produz análises que incluem outras denominações, além de mãe substituta ou tomadora de conta. É interessante constatar que quando ela se refere ao espaço creche, do ponto de vista de uma organização institucional, existe uma preocupação de demarcar linhas bem fechadas quando, por exemplo, fala que seu espaço de trabalho não é uma creche, mas um local em que se toma conta de crianças, porque creche sugere credenciamento. Quando se trata, porém, de falar de si própria, daquilo que é e do que faz, ou de como se vê no que é e no que faz, as análises são mais ambíguas, ocorrendo uma oscilação de sentidos e interpretações. É que as condições materiais de existência, por si só, não dão conta de explicar tais significados. Ocorre uma produção de subjetividades e sentidos sobre a vida, nem sempre coerentes entre si. Na sua trajetória de trabalho, Denise possui experiência com pré-escola e classes de alfabetização. Tal atividade era exercida na sua casa em parceria com mais três colegas, duas delas com formação de magistério. Segundo ela própria informou, trabalhavam com pré- 94 escola e alfabetização. Quando relatou essa situação, foi possível perceber que considerava o trabalho realizado como uma preparação para a escolarização das crianças: “(...) era mais coisa de fundo de quintal, como chegaram já a dizer, coisa de fundo de quintal. Eu já ouvi dizer que muitas das vezes a criança não sai preparada para uma primeira série, para um colégio. Mas foram poucos, posso te garantir que foram poucos. Com o trabalho da creche, da escola, eles saíram muito bem preparados para onde eles estão hoje (...)” (Denise, 22/08/2001). Provavelmente essas experiências anteriores tenham contribuído para que Denise compreenda seu trabalho como algo mais do que tomar conta de crianças. Mas um aspecto importante é que ela diferencia o trabalho com as crianças pequenas, de até quatro anos de idade, daquele realizado com as crianças maiores de quatro anos. Com as crianças menores, o trabalho envolve cuidados que não necessitam de um planejamento mais sistemático; com as crianças maiores, o trabalho se estrutura com o objetivo de preparação para a escolarização. Tal diferenciação pode explicar a prática observada na creche domiciliar, que consiste em enviar as crianças maiores de quatro anos (como Estela e Jane) para escolas infantis particulares do local, que trabalham com pré-escolar e preparação para a alfabetização. Chamamos atenção sobre a importância que Denise atribui a conhecer as crianças com as quais trabalha, pelo menos nos discursos sobre a sua prática. Para ela é importante que o adulto se coloque no lugar da criança para entender o funcionamento do seu mundo. Isto necessita de conhecimentos e, embora saiba que não possui formação específica para trabalhar com crianças, Denise reconhece que utiliza conhecimentos acumulados através de experiências anteriores que lhe permitem observar e entender cada criança, o que supera, na sua perspectiva, a função de tomadora de conta. Neste caso, ela faz um movimento inverso ao da análise que fez sobre a clandestinidade da creche. Agora ela se define como alguém que é mais do que tomadora de conta e, em algumas situações, ela se sente como psicóloga ou professora que domina conhecimentos de psicologia infantil: “Tem outra coisa também, que eu nem sei como te falar. É você, tipo você deixar de ser a tia que toma conta, para entrar no mundo da criança e 95 conhecer a criança. Uma colega minha esteve aqui um dia e falou assim: Denise, o que eu vejo da maneira que você lida com essas crianças, você conhece mais essas crianças do que as próprias mães. É tipo uma psicóloga, entendeu? Você tem que entrar naquele mundo, no que ela gosta de fazer, no que ela gosta de brincar, as reações que ela tem com algumas coisas. Se elas têm medo de alguma coisa, isso aí se você me perguntar, eu sei o medo de cada um deles. Eu sei a insegurança de cada um deles. O que eles gostam, o que eles não gostam, o que eles gostam de comer, o que eles não gostam de comer. Tudo isso de cada um deles, eu sei. Dos que estão aqui e dos que já saíram. É aquela coisa: gostar, a parte do carinho e aquela coisa de ser um pouco mãe, psicóloga e tia. Tem que entrar um pouco no ramo da psicologia para tentar entender a criança” (Denise, 22/08/01). Encontramos pelo menos dois significados de tia para Denise. Quando analisamos o depoimento acima, ela está se referindo à tia numa relação similar a de mãe substituta, ou babá, que não exige conhecimentos sobre as crianças. Em outras situações utiliza o termo tia para estabelecer uma diferenciação com mãe e corrige as crianças no sentido de que elas lhe chamem de tia e não de mãe. Neste segundo caso, a denominação tia assume um sentido mais profissional, que procura romper com a relação de mãe substituta das crianças. Outros sentidos da função que realiza, no entanto, também foram evidenciados por Denise. Ao mesmo tempo em que se vê como alguém que faz mais do que uma tomadora de conta, em outras ocasiões ela se assume como tomadora de conta e estabelece uma diferenciação com a função de babá, porque reconhece que trabalha com um grupo de crianças que apresenta diversidades. Isto pressupõe um trabalho de socialização no coletivo, o que não é feito pelas babás: “Eu já fui babá, eu tomei conta de uma criança de dois meses até um ano. Você vai colocar aquela criança como a mãe pede, no ritmo que a mãe pede. Então você só vai lidar com aquela criança. Agora tomar conta de crianças já envolve o loirinho, o moreno, o pretinho, o amarelo, o verdinho, o azul, entendeu? Então é saber dar atenção para cada uma (...) um quer cantar atirei o pau no gato, o outro quer cantar a barata na careca do vovô (...) a babá faz com um só. A que toma conta tem que saber dividir. Não, vamos cantar esta primeiro, aquela depois (...) ela tem que saber dividir o seu tempo com várias crianças” (Denise, 03/07/2001). 96 Conforme destacamos, é interessante o modo como Denise percebe as crianças, bem como a sua sensibilidade para as diferenças. De onde vem tal compreensão e sensibilidade para com as diferenças, se ela não possui formação para trabalhar com crianças pequenas? Pensamos que ela construiu esta análise das crianças com suas experiências e capacidade de observação, o que não pode ser obtido apenas com a intuição. Vejamos outra diferenciação expressa por Denise, agora entre uma tomadora de conta e as mães das crianças. Novamente o conhecimento das diferenças e das necessidades das crianças são o parâmetro que Denise utiliza na análise. Ela atribui importância ao tempo que disponibiliza para observar as reações das crianças e as suas diversidades, o que, na sua perspectiva, uma mãe que trabalha fora não consegue fazer: “A pessoa que toma conta já tem aquele tempo de sentar, de desenhar...às vezes a criança desenha uma linha e diz que é um ventilador de teto, dizem que é uma janela, é uma barata...e você tem que achar aquilo lindo! A mãe não tem aquele tempo de parar, ver e falar: ai, que lindo, que bonito que você fez! Que cor é esta? Vamos distinguir o que é goiaba, do que é maçã e do que é banana? Ou que cor é a goiaba, que cor é a banana? A mãe realmente não tem esse tempo... E para aquele filho que fica na creche ela praticamente tem o mínimo, o mínimo do tempo (...)” (Denise, 03/07/2001). Ainda que Denise estabeleça distinções entre uma tomadora de conta e as mães das crianças, parece reconhecer que a experiência da maternidade favorece o seu trabalho, especialmente com as crianças menores. Este posicionamento gera ambigüidades que exploraremos mais detalhadamente, porque ao mesmo tempo que Denise usa denominações para sua função e estabelece diferenças que parecem romper com a perspectiva da mãe substituta, ela relaciona a experiência da maternidade com a função de tomadora de conta. Compreendemos que tais ambigüidades são decorrentes da natureza do trabalho que Denise realiza e das expectativas dos familiares, aspecto que analisaremos no terceiro capítulo. Tais ambigüidades se reforçam, sobretudo, quando confunde sua função com o papel de mãe, ou de mãe substituta das crianças. Desta forma, ela oscila entre o não querer ser chamada de mãe das crianças e o justificar a função de mãe substituta, enfatizando as vantagens ou o reconhecimento do seu trabalho pelas crianças: 97 “Esse lado da atitude das crianças de começar a me chamar de mãe é mais porque ninguém aqui me chama de tia, quer dizer, só tem eu e as minhas filhas dentro de casa. Elas me chamam de mãe. Quem começou com isso foi a Jane. Um dia sem querer ela me chamou de mãe e eu olhei assim e falei: ‘o quê?’ E ela: ‘ah, mãe não pode não, tia?’ E eu: ‘não, meu amor, pode. Você se sente a vontade em me chamar de mãe, pode chamar’. E com isso foi, aí juntou o Mateus, juntou o Daniel, juntou o Júlio, aí juntou o Mauro e continuou. É gostoso. Porque eles estão vendo que eu não sou só a Tia Denise, aquela pessoa que toma conta. Porque a pessoa que toma conta é tipo: ah, tomar conta é só olhar para não fazer nada de errado (...) é ver se tomou banho direitinho, se comeu direitinho, se a criança lavou a orelha, se fez isso, se fez aquilo. O lado deles, eles já estavam me vendo por outro lado de uma forma. ‘Ai, mãe, tá doendo aqui!’ E quando você falar, ai mãe tá doendo aqui com a sua mãe, a mãe já fica assim: ‘não, vem cá meu neném, vamos ver o que está acontecendo, vamos ver isso, vamos ver aquilo’. Talvez você tenha percebido naquele dia em que a Jane estava com febre do jeito que ela ficou. Eu fico assim, é como se fosse um filho, de 20 em 20 minutos estar tirando a temperatura, de repente a mãe não trouxe o remédio, eu tiro o remédio das minhas filhas e dou... É gostoso ouvir, entendeu?” (Denise, 22/08/2001). Com este depoimento analisamos em primeiro lugar a sensação de prazer que Denise experimenta quando as crianças lhe chamam de mãe. A observação é gostoso aparece duas vezes. Denise experimenta um sentimento de satisfação, seja porque reconhece que passa mais tempo com as crianças do que as mães de origem, ou porque ela, como qualquer outra profissional, necessita de respaldo, reconhecimento e legitimidade, principalmente se tomarmos em consideração o fato de que sua atividade é ilegal e clandestina. Em segundo lugar, observamos como a função de tia é agora relacionada com a de tomadora de conta, o que por sua vez, é diferente da de uma mãe. Denise define o que é tomar conta, que adquire um sentido de um cuidado com as crianças, porém não tão comprometido como o cuidado de uma mãe. Neste caso, a função da mãe nos sugere ser de alguém que cuida, mas que também ama e faz o que for preciso para ver suas crianças alimentadas, limpas, protegidas e curadas. Entretanto, é necessário cautela quando supomos que para ela sua função é a de cuidar com amor, quando sabemos que há uma linha muito tênue entre gostar e não gostar do que faz, entre amar todas as crianças sem fazer distinções e ser tocada por sentimentos negativos com 98 relação a algumas crianças. Como nosso principal foco de análise são os discursos de Denise, veremos no quarto capítulo, sobre o cotidiano da creche domiciliar, que não existe harmonia ou consenso entre o que a tomadora de conta diz e o que faz. Quando Denise se considera como mais mãe das crianças do que as mães de origem, isto pressupõe a construção de um raciocínio sobre o que é ser mãe. Como já vimos, ela passou a se dedicar à criação das filhas e ao trabalho de tomar conta após a separação. O lazer de Denise está condicionado à presença das filhas. Não teríamos aqui mais uma articulação entre sua trajetória de vida e os sentidos que ela atribui à função que realiza? Quando ela define o que é ser mãe e demonstra satisfação com o reconhecimento das crianças, provavelmente está refletindo em sua análise a relação que mantém com as duas filhas. Logo, o cuidar de uma mãe, que é diferente do cuidar de uma tia ou tomadora de conta, para Denise, relaciona-se com a sua experiência de maternidade. É a sua experiência com as filhas que possivelmente serve como modelo, quando ela faz as distinções entre uma tomadora de conta e uma mãe, no sentido de valorizar o seu trabalho. Quando Denise no entanto se refere a outras tomadoras de conta do Bairro Saudade - o que supõe um distanciamento do que ela própria vive - novamente nos surpreende, porque mostra-se capaz de perceber as ambigüidades da função e as dificuldades de conciliar a maternidade com o trabalho e, ao mesmo tempo, ser mãe das outras crianças: “Das que eu conheço é difícil ser mulher, mãe e ainda ter que ser ‘mãe’ de outras crianças. As próprias mães daquelas crianças, praticamente não tem tempo. Aquele tempo, aquela disponibilidade de sentar, de ver as cores da árvore, do céu...” (Denise, 03/07/2001). Na perspectiva de Bia, as crianças chamam Denise de mãe porque se acostumaram com ela desde cedo. Porém, ela distingue que para as crianças Denise é vista como mãe e para os adolescentes como tia: “Ah, eu acho que elas são criadas desde bem pequenininhas, então já acostumaram. Eu acho que é um carinho muito grande que ela tem pela minha tia (...) então elas chamam ela de mãe” (Bia, 21/08/2001). 99 E sobre a denominação tia, comumente atribuída a Denise pelos jovens, ela explicou que: “Ah, porque eu já acostumei. Todo mundo chama. Todo mundo que vem aqui chama ela de tia. Porque eu conheci ela assim, entendeu? As pessoas da vizinhança já chamavam ela de tia. Aí eu me apeguei a isso e ficou tia. Eu não consigo chamar ela de Denise e falo Tia Denise” (Bia, 21/08/2001). Com os jovens a expressão tia adquire uma conotação de relação de parentesco, o que também observamos quando Denise se refere a Bia e Marcos, como sobrinhos de consideração. Mas por outro lado, a tia também pode representar a professora para os moradores do bairro. Como Denise mantém uma creche domiciliar, ela pode ser assim denominada, porque atualmente a professora da educação infantil ou do ensino fundamental é confundida com a tia, numa perspectiva de relação de parentesco e de desqualificação da profissão. Com relação aos sentimentos das mães, Denise esclareceu que somente a mãe de Jane sente ciúmes. Ao mesmo tempo ela própria justificou a situação, argumentando que passa maior tempo com as crianças, que se responsabiliza pelas doenças e vacinas, ou que responde pela mãe de Jane nas solicitações da escola que a menina freqüenta. Isto contém um outro significado, que é o da disputa de Denise com as mães das crianças: “Do lado das mães, eu percebi que só uma mãe teve ciúmes... Que foi a mãe da Jane. Talvez por ser filha única. Mas depois ela mesma disse: ‘Ah, você fica com ela mesmo, ela que é sua mãe mesmo... Porque ela que vê colégio... Quer dizer, elas estão mais com a Tia Denise, do que com a própria mãe...” (Denise, 22/08/2001). Quando as crianças chamam Denise de mãe, isto provoca reações de ciúme entre suas filhas. Mas esta relação parece bem resolvida para Nara, que demonstra compreender que o amor de Denise é bem dividido entre as filhas e as outras crianças. Assim, ela fez uma análise muito delicada da situação, esclarecendo que as crianças demonstram carinho e reconhecimento pelo trabalho de sua mãe: 100 “Eu gosto. Tem um carinho, significa que a pessoa é importante para as crianças...por isso que chama ela de mãe. Eu sinto ciúmes. Tenho muito ciúme das crianças com a minha mãe. E tudo que falam com a minha mãe, eu: hum, só vai ficar dando beijinhos nele? E ela fala: Ah, meu neném grande está com ciúmes. E começa a ficar me dando beijinhos também. E ela diz: eu sei disso, dá prá ver nos seus olhos que você tem ciúmes deles. Ela compreende que eu sinto ciúmes dela com as crianças” (Nara, 23/08/01). E sobre as reações da irmã ela ainda relatou que: “Sempre que as crianças vão dar beijinhos nela, a Estela vai logo atrás. Aí vai lá e começa a agarrar a minha mãe também. Mas a minha mãe divide a amizade dela com as crianças e com a gente também. É bem dividido” (Nara, 23/08/01). Um outro aspecto valorizado por Denise e que faz parte das ambigüidades da função e dos cuidados de mãe é a relação de amizade que ela mantém com os familiares das crianças. Ela sugeriu que a relação com os familiares é algo que vai além de um simples acordo, pois: Fica tipo uma amizade. Para mim já é família. Faz parte da minha família. Esta afirmativa é decorrente de uma situação observada na creche, quando recebeu um bilhete entregue pelo tio de Marcos e Mauro que solicitava um empréstimo em dinheiro, para comprar remédios para Mauro. Episódios como este aconteciam com freqüência na creche, além de outros, como o caso de Mateus, que iria se submeter a uma cirurgia. Neste caso ela providenciou os exames pré-operatórios no Posto de Saúde. Quando mencionava esses acontecimentos, ressaltava sua responsabilidade perante as crianças. Vejamos como ela se posicionou a respeito do pedido de empréstimo e sobre os exames de Mateus: “Eu simplesmente, na hora, eu fui lá dentro e peguei o dinheiro. Eu dei o dinheiro e não falei mais nada. Leva e eu quero retorno, não retorno do dinheiro. Eu quero saber como é que ele está. E eu cobrei isso dela. Quer dizer, ela me telefonou mais tarde para dizer como é que ele estava, o que foi diagnosticado, o que era. Mas que era para eu não me preocupar, que ele estava bem, tudo normal. Quer dizer, que ele só tinha que fazer um tratamento. É aí que eu falo prá você que não é somente uma relação patrão e empregado. Ela está há três semanas atrás: ‘Ai Denise, eu tenho que fazer os exames do Mateus, eu tenho que acordar cedo, pegar 101 número, você leva o Mateus para mim?’ Eu falei: ‘Levo Íris, pega o número (Denise se referia à ficha de atendimento do Posto de Saúde) que eu levo o Mateus para você’. Ela não pegou o número. Semana passada eu não falei nada com ela, o que eu fiz? Eu fui levar as crianças pro colégio, levei e deixei eles lá. Saí e passei no Posto de Saúde. Tem uma pediatra lá que me conhece, a Cátia. Então eu falei assim: ‘Cátia, eu trouxe a certidão, o xerox, você me faz um favor? Me passa todos os exames para essa criança, que ele vai fazer uma operação e tem que fazer os exames pré-operatórios. Você passa prá mim?’ E ela passou todos os exames. Quando a mãe dele chegou a noite, eu já havia ido para o colégio. No outro dia, ela: ‘Poxa, Denise, você só faz surpresa! Você nunca vem com problema, você sempre vem com a solução’” (Denise, 22/08/2001). Em situações como estas, Denise acaba assumindo os encargos das famílias, seja porque precisa do trabalho, ou porque se sente mais responsável do que as próprias mães das crianças. De forma geral, Denise se sente mais mãe do que as mães das crianças porque dispõe de mais tempo para fazer o que as mães não podem fazer com os/as filhos/as. Isto produz ambigüidades na forma como percebe a sua função. Assim, ser tia pode significar o mesmo que tomadora de conta, ou pode indicar uma relação mais profissional. Esta atividade, que acontece no espaço da casa, gera, além dos acordos com os familiares, algumas tensões e disputas, principalmente da tomadora de conta com relação às mães das crianças. Nesse emaranhado de funções aparecem sentimentos controversos, como a culpabilização das mães das crianças ou dela própria, conforme veremos a seguir. 2.5.2 A culpabilização das mães e de si própria Denise fez a opção de trabalhar na própria casa e tomar conta das filhas. Para ela ser mãe e ter que trabalhar fora parece ter sido algo vivido com muita culpa. O medo com relação à violência do local no qual vive com as filhas reforçou sua opção de ser mãe em tempo integral. Sem contar com o apoio da mãe, que morreu quando Nara era pequena, as chances de deixar as filhas com pessoas de confiança diminuíram. Após a separação, Denise ficou só e responsável pela criação e sustento das filhas, embora se ressinta pelo fato de não viver em 102 uma família nuclear. Pensamos que é justamente esta idealização de família conjugal, onde há um provedor e uma mãe que se encarrega da educação dos/as filhos/as, que também impulsionou Denise a optar pelo trabalho no domicílio. Pelas próprias características e ambigüidades da função que realiza, alguns sentimentos como a culpabilização das mães23 e dela própria são muito fortes. Tais sentimentos se relacionam com a internalização das obrigações das mulheres, numa concepção de família nuclear. Com relação ao pouco tempo de convívio entre mães e filhos/as que freqüentam sua creche, Denise culpabilizou as mães principalmente quanto aos horários de entrada e saída das crianças. Seus comentários geralmente faziam referência à falta de cumprimento de horários pelas mães. E mesmo que ela tenha demonstrado em algumas situações sensibilidade para com as dificuldades das mães responsáveis pelo sustento e criação dos/as filhos/as, alguns indícios de uma compreensão de que estar longe dos/as filhos/as é prejudicial, sobretudo quando muito pequenos, apareceram em seus depoimentos: Eu até falo: espera mais um pouco, pelo menos completar um mês! Mas a mãe diz: Eu preciso trabalhar! Como o trabalho de Denise se realiza no domicílio, seus relatos, algumas vezes expressavam desconfiança com relação ao trabalho feminino realizado fora do contexto doméstico e, não raro, muito distante do bairro, o que também ocasiona uma redução do tempo de convívio das mães com os/as filhos/as. A crítica com relação às atitudes das mães também sugere disputas, quando Denise afirma, por exemplo, que conhece melhor a situação das crianças do que os próprios familiares: citou casos em que detectou doenças nas crianças que as mães não foram capazes de perceber, ou disse que assume as responsabilidades da mãe de Jane na escola que a menina freqüenta à tarde, assim como é responsável por acompanhar as crianças ao posto de saúde para vacinação. 23 Encontramos tais sentimentos em duas outras tomadoras de conta do local. Fernanda expressou sua lamentação diante do tempo que não aproveitou junto à filha; a culpa e o desejo de ficar mais próxima da menina aparecem em depoimentos como estes: “não tenho mãe, vó...mãe solteira, tenho elazinha...” ou ainda “estou nesse trabalho por acaso”. Suzana também expressou sentimentos de culpabilização com relação ao pouco tempo que as mães dedicam aos filhos, quando por exemplo, relatou suas idas à igreja acompanhada pelas crianças das quais toma conta: “às vezes eu pego no domingo...ficam muito presos, não saem com as mães e aí eu levo na igreja”. 103 O tempo para se dedicar à criação dos/as filhos/as era comumente citado como um divisor entre Denise e as mães: “Praticamente eu que, a assinatura no colégio dela não tem da mãe... tem a minha, sabe? Quem leva para tomar vacina em campanha, sou eu. Quer dizer, eles estão mais com a tia Denise do que com a própria mãe. É como eu te falei. Muitas das vezes, quando as mães chegam em casa, não têm o tempo que a tia Denise tem. Que eu corro, eu corro para ter aquele tempo prá eles. Às vezes é só de manhã que eu tenho esse tempo. Mas eu quero ter esse tempo com eles” (Denise, 22/08/01). “Quer dizer, não deixa que a criança entre naquele diálogo. Já comigo, não: ‘-Espera aí, é uma de cada vez. Começa você, depois você’. É aquela coisa de ouvir a criança, a criança gosta muito de falar o que ela está sentindo: ‘-não, eu fiz isso, eu fiz aquilo, a tia fez isso, fez aquilo, a tia não me deu brinquedo’ (...) isso eles querem colocar” (Denise, 22/08/01). Denise só assume estas responsabilidades porque ocorre uma delegação da função materna pelas mães das crianças; sem a permissão dessas mães, a tomadora de conta provavelmente não tomaria decisões que competem aos familiares. Como a relação com os familiares das crianças é também uma relação comercial, a culpabilização somente ocorria e alguns conflitos eram somente comentados quando as mães estavam ausentes, ou na presença de outras mães. Logo, as reclamações de Denise ocorriam na ausência dos familiares envolvidos nos conflitos. A culpabilização das mães se relaciona com as ambigüidades da função de Denise, principalmente quando ela sente que é mais mãe das crianças do que as mães de origem. Nos casos de doenças graves, porém, ou de crianças com problemas de adaptação, a função de mãe substituta é vivida com sentimentos contraditórios. Como Denise se sente impotente para resolver casos mais graves que dependem da decisão dos familiares, a culpabilização se fortalece. Desta forma, nas situações mais tensas, Denise, culpa a negligência das mães, como no caso de Jane, que passou um dia na creche com febre muito alta, ou de Marcos, que estava com escabiose e continuava freqüentando a creche. Nestes dois casos, ela conversou com as mães e solicitou que procurassem um médico. Outro caso citado foi o de um bebê que apresentou dificuldades de adaptação à creche. Como o bebê chegava em torno de cinco horas 104 da manhã e chorava muito, Denise se sentia impotente para suprir a falta da mãe e da amamentação: aquele choro de criança quando quer a mãe. Em outras situações, ela demonstrou não aprovar algumas práticas educativas dos familiares. Entretanto, este sentimento de ser mãe substituta tem limites, pois reconhece que não é a mãe verdadeira das crianças. Assim, quando as crianças relatavam casos de conflitos com os familiares, Denise demonstrava insatisfação ou procurava descobrir pela criança o que tinha gerado os conflitos, mas não podia fazer nada além de conversar: “Hoje em dia o que a gente vai mais ver é a violência contra a criança. Ou dentro do lar, ou fora do lar. Mas basicamente o que a gente vê é dentro do lar. O que pelo menos para mim, nunca ninguém falou. E eu tenho certeza que eu nunca fiz. Mas quantas das vezes eu já vi as próprias crianças que estão aqui chegar e dizer que a mãe fez algo em casa com eles, que até me desagradou, mas eu nunca cheguei para a mãe e falei (...) Eu tento contornar: ‘mas porque o papai fez isso? Porque a mamãe fez isso? O que você fez de errado para o seu pai fazer isso com você?’” (Denise, 22/08/2000). Denise também se culpa com relação à educação das suas filhas. Ela se ressente pelo pouco tempo que sobra para se dedicar às filhas, embora faça arranjos para escapar das limitações impostas pela ocupação cotidiana com as outras crianças. Nesse sentido, cria mecanismos de trabalho para superar os limites do tempo e se envolve com as atividades escolares de Estela enquanto prepara o almoço e cuida das outras crianças, assim como na parte da tarde e aos sábados procura participar das atividades escolares e extra-escolares de Nara. Vimos até aqui como Denise se vê na função que realiza e como ela experimenta sentimentos de culpabilização das mães e de si própria que também são decorrentes das ambigüidades da sua atividade. A função de tomadora de conta pressupõe um processo de aprendizagem, e Denise demonstra que passou por uma série de experiências e dificuldades em sua trajetória de vida, até optar por esse trabalho. Interessa-nos entender, do ponto de vista dessa mulher, quais saberes são necessários para que alguém se torne uma tomadora de conta de crianças. 105 2.5.3 Os saberes para tomar conta de crianças Os saberes para tomar conta de crianças assumem na ótica de Denise, duas ordens de explicações. Na primeira, ela se refere aos saberes do ponto de vista do processo de construção da atividade, o que envolve as experiências anteriores à creche domiciliar e o que ela passa a vivenciar desde os primeiros contatos com a função de tomadora de conta, assim como a troca de experiências com outros serviços e profissionais, como nutricionistas e pediatras. Como ela experimenta diversas estratégias para melhorar seu trabalho, o conhecimento de cada criança se amplia pelas conversas com as mães, no sentido de incorporar os saberes das famílias. Para Denise, os anos de experiência como tomadora de conta lhe proporcionaram adquirir alguns conhecimentos sobre as crianças e sobre sua atividade. É significativo que, para ela, estes conhecimentos são adquiridos nas trocas estabelecidas com outras tomadoras de conta do local, ou com profissionais especializados e com formação, como nutricionistas e médicos. Estas trocas só acontecem porque ela faz um movimento no sentido de se deslocar do interior do seu espaço de trabalho: “O conhecimento que eu tenho agora, eu não tinha antes. Sabe, ter conhecimento em posto de saúde, ter conhecimento em várias creches que eu tenho aqui dentro, creches domiciliares também. Eu não tinha tanto contato com pessoas lá de fora, como hoje eu tenho (...)” (Denise, 22/08/2001). Em situações mais difíceis e que necessitam de conhecimentos mais especializados, ela procura ajuda de profissionais habilitados: “Na creche onde Mateus estava, ele só tomava mamadeira. Ele não comia nada. Só havia barriga naquela criança. Ele é bem moreno, só que o rosto dele estava amarelo. Eu cheguei a comentar: Nilcéia, esta criança está anêmica. E se a mamadeira não tivesse bem doce, ele não tomava. Eu procurei uma colega minha que trabalha como nutricionista. Ela falou: Olha, Denise, a melhor coisa que tem prá criança que não come verduras é cozinhar três cenouras, duas beterrabas, dois inhames, uma folha de couve e dois a três galhos de espinafre e misturar no feijão. Começamos a 106 fazer não só para ele, mas para todas as crianças. Mas como nós iríamos dar prá essa criança, se ele não comia a comida? Nós passamos a bater tudo no liquidificador. Como ele sentia que era comida de sal, ele colocava para fora. E eu falei: Nilcéia, pega uma colher de açúcar, coloca dentro do liquidificador e bate. Ele começou a tomar. Fomos diminuindo a colher de açúcar até não colocar nada. Nós acabamos com aquilo e ele começou a comer não só no pratinho, mas comendo de tudo. A mamadeira era normal. A comida, ele começou a comer direitinho, tudo direitinho” (Denise, 22/08/2001). Uma outra estratégia que ela desenvolveu ao longo do trabalho foi conversar com as mães sobre cada criança, no sentido de incorporar os hábitos e saberes que são desenvolvidos nas famílias. Estas estratégias permitem manter um número de crianças na creche para garantir a sua sobrevivência, assim como ela procura atender às expectativas dos familiares. Um exemplo são os primeiros contatos que ela mantém com as mães, antes da entrada das crianças na creche. Com a intenção de evitar problemas de adaptação, Denise procura conhecer as crianças, antes do primeiro dia na creche domiciliar: “Eu tento pegá-los naquilo que eles gostam. Entendeu? Eu deixo eles a vontade. Eu primeiro pergunto para a mãe: o que ele gosta de fazer? Ele gosta de brincar de bola, ele gosta de brincar de carrinho? Ele gosta de ver televisão, ele dorme à tarde? O que ele gosta de comer? O que ele pode e o que ele não pode comer?” (Denise, 03/07/2001). Entretanto, esta não é apenas uma estratégia que permite conquistar a confiança das crianças; ela também contribuí para pensar a organização do trabalho. Desta forma, Denise relatou as saídas que encontra para resolver os problemas que aparecem na creche decorrentes das histórias diferenciadas de cada criança: “Muitas das vezes eu guardo comigo. Mas quando é coisa séria, quando é uma criança que tem alergia, tipo a algum tipo de comida. Eu tive uma criança aqui, que ela não podia comer feijão. Então aí eu botava um mapa na minha geladeira. Tipo: eu sei que o Mateus não pode tomar chocolate muito forte. Então, eu já sei. O chocolate dele eu faço mais fraquinho. O Mauro tem alergia a picadas de mosquitos. Então eu já sei que quando chega mais ou menos a noite, eu tenho que colocar uma calça comprida e 107 um casaquinho nele. O Júlio, ele é mais restrito na hora que acorda. Ele não come assim que acorda. É o primeiro a dormir e o último a acordar. Então quando ele acorda, eu já tenho que deixar ele de lado (...)”(Denise, 03/07/2001). Quando perguntamos para Denise, se é preciso uma formação específica para exercer sua atividade, ela respondeu que não é necessário, mas ao mesmo tempo relatou seu desejo de cursar Pedagogia, para lidar com crianças e saber mais sobre elas: Eu voltei a estudar, porque eu quero saber mais sobre a criança e o que eu já tenho de experiência, juntar com isso e colocar mais a frente. Da mesma forma questionamos na entrevista se aceitaria discutir seu trabalho com pessoas que tenham formação específica para o trabalho com crianças menores de seis anos, ao que ela respondeu: “Com certeza. Foi o que eu acabei de te falar lá atrás, eu quero juntar a minha experiência com o meu futuro promissor que é estudar, estudar para isso. E quem sabe um dia, até, ou com você, ou com outras pessoas que já tem base nisso. Você já tem base no estudo e trabalhando com isso. Porque a gente não pode sentar ou até mesmo trabalhar nesse sentido? É o que eu quero” (Denise, 22/08/2001). Nara considera o conhecimento sobre as crianças um ofício difícil, ao mesmo tempo que reconhece o valor da aprendizagem pela experiência. Desta forma, declarou que ela e Bia ainda são inexperientes e que Denise conhece mais a função, porque possuí mais tempo de trabalho com crianças. Para ela, o valor da experiência e a aprendizagem que se adquire com os anos de trabalho são aspectos suficientes, não sendo necessário uma formação específica para exercer esse trabalho: Não. Só precisa ter responsabilidade. Porque se você escolheu isso, então você tem que ter responsabilidade, tem que saber o que você quer fazer mesmo. Na perspectiva de Bia, para tomar conta de crianças é necessário ter responsabilidade com o trabalho e conhecer as crianças, o que elas fazem, o que elas comem, além dos horários de cada uma delas. Na segunda ordem de explicações, Denise trata os saberes do ponto de vista da qualidade, o que se ampliou na medida em que as experiências com a atividade foram se acumulando. Assim, ela cita a importância de gostar da atividade e de criar um ambiente no 108 qual a criança goste de ficar. Denise valoriza o conhecimento adquirido com a prática e com a capacidade de observação, bem como os cuidados e a proteção das crianças, porém não faz qualquer referência a desenvolver aprendizagens mais sistematizadas na creche domiciliar. Do ponto de vista de Denise, uma boa tomadora de conta deve gostar de crianças e gostar da sua atividade: “(...) quando você faz o que você gosta, a criança vai ver que você realmente gosta de fazer, entendeu? Mas eu acho que o mais gratificante é de saber que a criança se sente a vontade com você, se sente bem em estar com você, não é aquela criança que de repente chega no portão e diz: ai, eu não quero ficar... Isso graças a Deus na minha casa nunca teve (...)” (Denise, 22/08/2001). Denise também procura entender as crianças, os seus gostos e as coisas das quais não gostam. Aliado ao conhecimento das crianças, valoriza o carinho porque, segundo ela própria falou, sem o carinho as crianças não serão receptivas. Em algumas notas de campo, podemos perceber como ela observa e conhece as reações das crianças pequenas e como a afetividade faz parte das interações: “Denise oferece mamadeira para Marcos e Jane observa. Ele não aceita muito bem o leite. Ela coloca Marcos sobre um cobertor estendido no chão e lhe entrega um ursinho e uma pequena garrafa de plástico. Como ele morde a garrafa diversas vezes ela comenta: Isto tem uma pontinha de dente, heim! Tá roçando na garrafinha” (Diário de Campo,21/06/2001). “O irmão de Marcos o beija e Denise brinca com as crianças: Pega esse nenezinho, pega a bochecha dele e depois dá um beijinho” (Diário de Campo, 21/06/2001). “Observo Denise conversando com o bebê, enquanto comenta comigo sobre as provas e a escola: ‘Não quero saber de escola, não, quero um pouco de atenção que você não deu hoje, só arruma isto, só arruma aquilo (...)’ Ela fala como se fosse o bebê e parece que está fazendo um movimento de se colocar no lugar do bebê, dos sentimentos que ela julga que ele experimenta. Estas falas são sempre melodiosas, alegres e carregadas de afeto” (Diário de Campo, 02/07/2001). 109 “Denise brinca com as crianças: ‘Ô Mateus lagartixa! Quem é Mateus lagartixa, quem é Mauro / Mariola?’” (Diário de campo, 06/07/2001). Os conhecimentos adquiridos com a experiência proporcionaram que ela ampliasse a capacidade de observação. A prática da observação lhe possibilita, inclusive, encontrar doenças ou deficiências nas crianças, antes mesmo dos familiares. “Eu via que o Mateus tinha o saco escrotal, mas que não tinha o ovinho. Quando você seca você tá sentindo. Ele tinha um ano e meio por aí. Então eu vi que não tinha, ao passar aquela pomadinha Hipoglós. Quer dizer, eu notei que havia alguma diferença. Aí teve um dia que eu tive a curiosidade. Eu coloquei dois meninos e comecei a reparar. Então eu pedi que a mãe levasse ele ao médico, para fazer um exame porque ele vivia com febre e com garganta inflamada...” “quem acabou descobrindo que uma menina tinha problemas de audição fui eu. Ela estava quase ficando surda, quer dizer, ela tinha audição, mas muito pouca...eu comecei a perceber quando chamava, quando falava alguma coisa com ela, ela demorava muito a responder. A mãe dela dizia que não tinha. E eu dizia tudo bem, então você simplesmente coloca ela na sala, liga a TV baixa, prá você ver o que ela vai fazer. Foi esse o teste que eu fiz. Eu liguei a TV e ela: Tia, aumenta a TV. Mas eu estava na sala e estava escutando nitidamente. Ela não. Quer dizer, eu tive que aumentar o dobro do que estava prá que ela pudesse ouvir com a mesma clareza que eu estava ouvindo antes. Esse mesmo teste eu fiz junto com a mãe. Quer dizer, eu deixei todas as crianças irem embora e pedi que ela ficasse até mais tarde. Ela ficou espantada com o que viu. Ela foi procurar médico e a menina estava com uma grave infecção nos tímpanos. Essa infecção poderia causar a surdez total na criança” (Denise, 22/08/2001). Outros acontecimentos relacionados com a alimentação e saúde das crianças evidenciam que ela não apenas observa, mas também reflete e procura uma solução para resolver os problemas que enfrenta no cotidiano. Denise considera importante o trabalho com a preparação dos alimentos, uma vez que faz desta atividade uma experimentação que lhe permite conhecer e transformar alguns hábitos alimentares das crianças. No entanto, todos os conhecimentos que ela foi acumulando com a prática da observação e com a busca de soluções para melhorar seu trabalho relacionam-se somente com a higiene, saúde, alimentação e proteção das crianças. 110 2.6 SÍNTESE A partir da trajetória de Denise, percebemos que tomar conta de crianças foi algo que se estruturou em meio à sua instabilidade de vida. Não podemos afirmar que esta foi uma opção, pois ocupar profissões domésticas e cuidar de crianças foi, para ela, uma necessidade de sobrevivência. Assim, sua trajetória de vida é feita de tensões, de ambigüidades, de vida na precariedade e de instabilidade. A sua é uma atividade que gera tensões, uma vez que tempo de viver se confunde com tempo de trabalho. Não podemos olhar nossa problemática obscurecendo alguns aspectos que são cruciais. Ao analisar os significados daquela atividade para Denise focalizamos questões como: ela é provedora, enquadra-se no que a literatura denomina de feminização da pobreza e faz parte de um conjunto de mulheres das camadas populares que são responsáveis pelo sustento e criação dos/as filhos/as, com poucas opções de cuidado/educação mantidas pelo Estado, quando as crianças são pequenas. Contextualizamos o caso de Denise no município de São Gonçalo, em um bairro popular, e procuramos, pela sua trajetória, apontar os conflitos que viveu com o ex- marido quando iniciou a trabalhar com creches domiciliares. As relações mais próximas das mães das crianças, que em geral fazem parte das redes de vizinhança da tomadora de conta, bem como a ilegalidade dos serviços do ponto de vista de um estatuto social e jurídico, são fatores que geram ambivalências nos significados daquele trabalho. Por outro lado, existem acordos estabelecidos com os familiares das crianças que legitimam os serviços para alguns grupos da população local. E esses serviços possuem uma finalidade lucrativa e se fundamentam em regras, direitos e deveres negociados entre as partes envolvidas. A divisão das tarefas domésticas e o cuidado dos/as irmãos menores é uma prática usual entre a tomadora de conta e suas ajudantes desde a primeira infância. Embora o cuidado dos irmãos e as tarefas domésticas sejam atividades realizadas pelas crianças dos meios populares, isto ocorre principalmente entre as meninas. Ocorre no espaço da creche domiciliar o trabalho infanto - juvenil e com ele a reprodução da divisão sexual do trabalho, visto que no 111 período em que Denise mantinha um menino e duas meninas como ajudantes, acontecia uma diferenciação das atividades por gênero. O trabalho de tomar conta de crianças se constrói através de práticas que são pensadas e realizadas com abstração, mas em meio a muitas tensões. As ambigüidades e tensões estão expressas na função de tomar conta de crianças, nos significados de ser mãe, na culpabilização das mães das crianças e no exercício de conciliar a necessidade de ganhar dinheiro e cuidar dos próprios filhos. Denise reconhece que é preciso formação de nível superior para abrir e credenciar uma creche, por isto ela foi estudar para garantir a manutenção da sua fonte de renda. Seus discursos apresentam fissuras e ambigüidades, principalmente quando ela se refere às mulheres assumindo uma postura de vitimização. Como também procura valorizar suas experiências, encontramos outros significados sobre ser mulher, mãe e tomadora de conta, tais como: o sentido e a real possibilidade de mudança da opressão feminina, o lado vulnerável do poder patriarcal e os traços masculinos que podemos encontrar nas ações e discursos das mulheres, mesmo quando elas se definem somente como seres que cumprem o seu papel de mulher, esposa e mãe. A valorização da experiência social das mulheres representa para Potengy & Paiva (1999) uma forma de enfrentamento da nova realidade do mundo globalizado e das transformações produtivas, que geram insegurança e incerteza. Nesse sentido, questionamos: por que há traços de invisibilidade sobre as atividades femininas caracterizadas pela clandestinidade, ou por constituírem ocupações menos importantes - ou não consideradas como profissão - considerando o contingente significativo de mulheres que ocupam estas posições no Brasil? Este é o caso de uma tomadora de conta, que procura dentro dos limites que enfrenta realizar um trabalho que respeita as crianças e as suas diferenças. Na medida em que Denise foi apontando os saberes necessários para tomar conta de crianças, foi possível perceber que ela procura estruturar sua atividade pensando nas crianças enquanto sujeitos sociais e com necessidades e características diferentes. Denise adquiriu no decorrer da sua trajetória de vida um conjunto de saberes para tomar conta de crianças que não têm, do nosso ponto de vista, apenas uma conotação intuitiva, emotiva ou maternal. Compreendemos que estes saberes também foram construídos com 112 racionalidades e afetividades na experiência com crianças e mães, experiências não somente familiares ou domésticas, mas igualmente sociais, culturais e educativas. Por outro lado, nos discursos de Denise não encontramos qualquer referência sobre a organização do seu trabalho de forma mais sistematizada, com objetivos de promover o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social. Ela não mencionou nenhuma intenção de planejamento e sistematização das atividades cotidianas que partissem das crianças. Mesmo considerando as diferenças das crianças, observando e procurando soluções, podemos afirmar que hoje sua função limita-se a guardar, proteger, assistir e tomar conta de crianças. Denise, contudo, apresenta um potencial de trabalho e de sensibilidade com as crianças que seguramente nos possibilita refletir sobre os cursos de formação para profissionais de creches e pré-escolas. 113 CAPÍTULO 3. “ELA FAZ MAIS DO QUE TOMAR CONTA, ELA PRATICAMENTE CRIA AS CRIANÇAS” - TRAJETÓRIAS E SENTIDOS DO TRABALHO PARA CINCO MÃES Mulher barriguda “Mulher barriguda que vai ter menino qual o destino que ele vai ter? que será ele quando crescer? Haverá guerra ainda? tomara que não, mulher barriguda, tomara que não...”(João Ricardo - Solano Trindade) No capítulo anterior, a partir da trajetória de Denise, vimos que sentidos ela atribui ao seu trabalho e à sua vida como mulher, mãe e tomadora de conta. Neste capítulo propomo-nos analisar quem são as mães que procuram esses serviços e que significados elas atribuem ao trabalho de tomar conta de crianças. Nosso universo de mães entrevistadas compreende um número reduzido, pois o vai e vem das condições de existência produz situações de vida muito precárias, com o deslocamento cotidiano para outras cidades ou bairros a fim de trabalhar. Como as mães saem muito cedo e chegam muito tarde do trabalho e ainda precisam organizar a casa e atender suas famílias, não foi possível fazer entrevistas nas casas, conforme pretendíamos nos contatos iniciais. Geralmente na entrada ou na saída das crianças eu solicitava uma entrevista das mães, 114 mas por força das circunstâncias e das dificuldades de locomoção no bairro foi Denise quem fez a mediação com as mães e propiciou que elas fossem entrevistadas dentro da creche domiciliar. Inicialmente pretendíamos entrevistar as mães das 17 crianças que freqüentavam a creche domiciliar em dezembro de 2000. Como minha entrada no local foi proporcionada após um longo período de negociações, com a mediação de Isadora e, inclusive, com a permissão de algumas pessoas ligadas ao tráfico e que mantêm uma relação de poder com os moradores, eu não tinha muitas alternativas a não ser contar com o apoio de Denise. Desta forma, não é possível omitir as dificuldades de circulação ao local, bem como as negociações que foram realizadas e as limitações da pesquisadora. O processo para nós assume um viés delicado e, por isto, ele não pode ser omitido. Houve dificuldade com o objeto de estudo, na medida em que pessoas ligadas ao tráfico sabiam de nossa pesquisa e só autorizaram nossa entrada no bairro mediante documentação da Universidade, que foi entregue para a tomadora de conta. Em várias situações recebi recados que chegavam através de Denise. Os códigos eram discretos e em nenhum momento fui abordada por pessoas do local. Entretanto, Denise algumas vezes dizia que minha entrada e saída estava limpa, que os meninos avisaram que eu estava protegida e podia circular à vontade. Assim, eu sabia que havia uma concessão para fazer observações e entrevistas na creche domiciliar, mas por outro lado também sentia medo de que algo pudesse acontecer enquanto eu estava no local. Eu não dominava os códigos e as maneiras de viver, num local marcado pelo medo e pela constante possibilidade de violência. Logo, a sensação de estranhamento foi vivida intensamente e se estendeu por todo o período em que convivi com as pessoas ligadas à creche domiciliar. Com poucas possibilidades de mobilização no local foi Denise quem fez a mediação, no sentido de conseguir que as mães concordassem com as entrevistas. Para isso, ela conversava com as mães e marcava as entrevistas dentro da creche domiciliar. Com algumas mães marcamos entrevistas mais de uma vez, pois as jornadas de trabalho algumas vezes impediam que elas comparecessem nos horários combinados. Tentamos entrevistar os pais, o que infelizmente não foi possível. Através das entrevistas das mães, porém, conseguimos informações sobre eles. 115 Em alguns momentos tivemos a impressão de que Denise estava selecionando as mães que garantissem a avaliação esperada por ela. Mas no grupo das cinco mães não obtivemos respostas homogêneas, assim como as entrevistas foram realizadas sem a presença de outras pessoas. Logo, não podemos deduzir que Denise tenha manipulado as entrevistadas. De qualquer forma, pensamos que tais comentários são importantes e necessitamos considerar os limites desta seleção das mães na análise dos resultados obtidos. Quando iniciamos as observações, oito crianças freqüentavam a creche: Daniel, Julinho, Jane, Estela, Mateus, Jonathan, Marcos e Mauro. Jonathan, Marcos e Mauro saíram da creche domiciliar em julho de 2001. Conseguimos entrevistar as mães de Daniel, de Jane, de Mateus, de Marcos e Mauro e a mãe de Patrícia, uma menina que havia saído da creche no ano 2000. Este capítulo começa com as trajetórias das cinco mães, para que possamos compreender a escolha do local e a importância que assume a creche domiciliar para cada uma delas. Entendemos que as trajetórias das mães também se relacionam com os sentidos que elas atribuem a esse trabalho. Partindo destas trajetórias, buscamos analisar os traços que aproximam e os traços que distinguem as mães, considerando seus percursos familiares, as trajetórias de escolaridade e de profissão suas e de seus cônjuges, bem como suas percepções sobre trabalho, casamento e lazer. Como as cinco mães estabelecem relações com Denise e a creche domiciliar, analisamos suas escolhas, os acordos estabelecidos com a tomadora de conta, suas expectativas e avaliações a respeito da atividade de tomar conta de crianças. Desde o capítulo anterior, temos discutido que existe compatibilidade entre o modo de Denise cuidar e educar suas filhas, com os familiares das outras crianças. No último item trataremos dos sentidos que as mães atribuem ao trabalho, o que para nós se traduz em uma perspectiva de educação familiarista, que ocorre por meio da delegação da função materna à tomadora de conta. 3.1 TRAJETÓRIAS DE CINCO MULHERES, MÃES E TRABALHADORAS 116 “Eu fui uma criança que na verdade eu não fui, eu não tive infância” Elisa, é a mãe de Jane, de quatro anos. Ela trabalha como diarista, é negra, alta, sorridente e está sempre disposta a trocar idéias, o que constatamos durante nossas observações, quando ela seguidamente conversava com Denise. Elisa tem 34 anos e atualmente mora com Neuci, de 47 anos. Os dois pretendem legalizar a união de oito anos. Elisa, Neuci e Jane residem em uma casa alugada quase em frente à creche domiciliar e estão construindo uma outra casa, um pouco mais afastada da Rua do Poço24. Eles pagam R$180,00 de aluguel e a casa tem um quarto, sala, cozinha e banheiro. A sala se transforma no quarto de casal a noite. Embora tenham coleta de lixo três vezes por semana e luz elétrica, não existe água encanada no local e os moradores utilizam água do poço. Elisa é natural de Minas Gerais e nasceu em uma família numerosa, com um total de oito irmãos. Seu pai trabalhava como lavrador em uma fazenda e, como ganhava pouco, os filhos e as filhas trabalhavam na roça desde os sete anos de idade. Elisa relatou que não teve infância, porque chegava da escola e ao invés de tomar um banho, almoçar e estudar ia para a roça com a família. O trajeto da fazenda à escola levava em torno de duas horas e todos iam num caminhão que carregava leite: “(...) a gente ia de manhã num caminhão de leite. Aí tinha que andar um pedação prá pegar o único caminhão que passava. Então ia aquela turma de meninos, tudo em cima daquelas latas de leite, sabe? Correndo o maior perigo, né...e hoje a gente vê tantos acidentes com crianças de escola por causa disso. Aí voltava a pé. Saía naquele sol quente de verão e chegava em casa e tinha que ir para a roça. Era tudo muito difícil (...)” (Elisa, 21/08/2001). Com 11 anos de idade, Elisa estudava à noite no ensino fundamental. Na faixa dos 20 anos ela veio morar no Rio de Janeiro, como empregada doméstica de uma família de Minas Gerais. Concluiu o ensino médio à noite e quando foi viver com Neuci passou a trabalhar como faxineira: 24 Como vimos no capítulo introdutório, a rua da creche de Denise é denominada pelos moradores “Rua do Poço” justamente porque as pessoas costumam utilizar água de um poço artesanal, uma vez que ainda não chegou água encanada ao local. 117 “Eu trabalhava de doméstica a semana toda. E dormia no trabalho antes de estar com o pai de Jane. Eu dormia no trabalho, porque eu vim de Minas Gerais com um pessoal de lá. Aí trabalhava e ficava com eles. Depois que eu conheci o Neuci, o pai da minha filha, é que eu vim para cá. Há uns oito anos atrás. E eu continuei trabalhando de doméstica nesse mesmo lugar. Aí depois a gente se casou e eu passei a usar a faxina” (Elisa, 21/08/2001). O percurso escolar de Elisa é diferente das outras mães, porque ela é a única que concluiu o ensino médio com curso de formação de professores. Ela prestou vestibular duas vezes para Pedagogia, mas só conseguiu aprovação na primeira fase e não ingressou na Universidade: eu trabalhava como doméstica e tendo que estudar era complicado. Assim, ela preferiu trabalhar como diarista, porque considera difícil lidar com crianças, afirmando que se sente perdida com os gritos e solicitações constantes. Hoje ela disse que consegue sobreviver com as faxinas e fazer umas economias para garantir o futuro de Jane. Neuci está trabalhando há quatro meses como encanador em um estaleiro. Nos meses anteriores, estava desempregado. Ele cursou até a oitava série do ensino fundamental e tem duas filhas adultas do primeiro casamento. Elisa não tem trabalhado todos os finais de semana, porque com o emprego de Neuci a renda familiar aumentou. Ela informou que recebe 550,00 reais e Neuci 800,00 reais, mas esta não é uma situação freqüente, uma vez que ele passa mais tempo desempregado. Atualmente Elisa trabalha em vários bairros de Niterói (Santa Rosa, Icaraí, Ingá) e do Rio de Janeiro (Vila Isabel e no centro). Recentemente eles reataram o relacionamento, pois viveram separados alguns meses, devido ao alcoolismo de Neuci. Durante o período de separação, Elisa assumiu a responsabilidade integral da casa e da educação de Jane. Ela contou que precisou sair de casa, para que o cônjuge abandonasse o vício: “Ele me perdeu, aí entrou em desespero que ele viu que era bebida. Porque antes ele não acreditava que eu tivesse essa decisão, sabe? Eu fiz tudo quieta e quando ele ficou sabendo eu já estava tirando as minhas coisas. Então foi um choque grande. Aí ele decidiu, foi até fim de ano. Isso foi no final de novembro, aí já vinha Natal essas coisas assim e marca muito. É perto do aniversário dele. Dia primeiro de janeiro ele decidiu não beber mais e não bebeu (...)” (Elisa, 21/08/2001). 118 No período da separação, Neuci estava desempregado e tentou se aproximar novamente de Elisa, mas ela permaneceu sozinha com a filha por mais alguns meses, sem receber qualquer ajuda financeira dele. Alguns meses depois, eles voltaram a morar juntos na casa que ela alugou. Elisa contou orgulhosa que atualmente ele trabalha bem e mudou o comportamento, principalmente quando passou a freqüentar a Igreja Universal. A rotina de trabalho de Elisa começa ao amanhecer, quando ela organiza a casa e prepara as coisas de Jane para a creche domiciliar e para a classe pré-escolar que a menina freqüenta à tarde. Geralmente entrega a filha na creche domiciliar após às 9h e costuma buscála após 20h. Quando Elisa trabalha nos sábados ou feriados, deixa a filha na creche domiciliar, no período da manhã e no período da tarde. Quando chega em casa, Elisa procura oferecer atenção para Jane, além de organizar o ambiente e preparar tudo o que for necessário para o dia seguinte. Ela só faz o serviço de casa depois que Jane está dormindo, pois reconhece que a menina necessita de atenção. No período diurno, quando Neuci está de folga25 sai com Jane, mas à noite todas as responsabilidades são assumidas por Elisa. “Eu sempre fui acostumada a ficar na casa dos outros, porque na época não tinha creche e a gente ficava um dia na casa de um, outro dia na casa de outro” Juçara é mãe de Marcos com três anos e Mauro com dez meses. Ela trabalha como empregada doméstica, é branca e descendente de índios, alegre e extrovertida. Juçara tem 23 anos e é casada com João de 26. Ela mora no mesmo terreno da mãe, deixado por seu pai quando se separaram. A casa que ela e o marido estão construindo localiza-se atrás da casa de sua mãe e tem dois cômodos: um conjugado de sala, quarto e cozinha e o banheiro. Eles residem na Estrada das Mangueiras, uma rua afastada da creche domiciliar de Denise. Não há coleta de lixo na rua de Juçara e seus familiares preferem queimar ou jogar o lixo em um terreno baldio. O esgotamento sanitário é recente e os moradores têm água encanada e luz elétrica. 25 Como Neuci trabalha em um estaleiro como encanador, Elisa relatou que ele às vezes tem folgas no período diurno. 119 Os pais de Juçara se separaram quando ela estava com oito anos de idade. Seu pai trabalha como motorista de caminhão e sua mãe, que era dona de casa, passou a trabalhar como empregada doméstica logo após a separação: “Meus pais se separaram porque brigavam muito. Meu pai arrumou outra mulher que engravidou. Ele mora com ela há 14 anos. Quando nós éramos crianças, nós éramos mais revoltados. Às vezes eu via meu pai uma vez por ano, outras vezes não. Minha mãe sempre trabalhou em uma casa só. Ela está lá desde que é nova. Meu irmão tem 17 anos e trabalha desde cedo. Ele mora com minha mãe até hoje” (Juçara, 24/08/01). Como a mãe de Juçara começou a trabalhar após a separação, ela e o irmão ficavam em casas de vizinhos, enquanto não havia creches no local. Com dez anos, Juçara iniciou a tomar conta do irmão. Com 11 anos trabalhava nos finais de semana como repositora em um mercado perto da sua casa, pois estudava durante a semana. Ela interrompeu o trabalho porque se sentia cansada para estudar. Com 13 anos voltou a trabalhar no mesmo mercado, desta vez pesando legumes. Ela ficou trabalhando nesse local até os 17 anos de idade, quando concluiu o ensino fundamental e foi trabalhar como vendedora de computadores. Algum tempo depois, com o fechamento da loja de computadores, passou a trabalhar como auxiliar de caixa em um supermercado. Como o supermercado quebrou, foi trabalhar como empregada doméstica em uma praia de Niterói. Quando sua patroa mudou para São Paulo, ela não pode acompanhá-la, pois estava grávida do primeiro filho. Juçara iniciou o namoro com João quando tinha 16 anos. Parou de estudar com 19 anos e não concluiu o ensino médio, porque ficou grávida e casou: “Eu casei cedo porque engravidei com 19 anos. Aí eu casei com oito meses de gravidez do Marcos. Eu casei no civil, só não casei na igreja. Aí a gente morava de aluguel e eu sempre tive um relacionamento muito bom com a família dele. Tem seis anos que nós estamos juntos. Três de casados e três de namoro. Eu e a família dele temos uma cumplicidade fora de série” (Juçara, 24/08/01). Dois anos após o nascimento do primeiro filho, Juçara voltou a trabalhar como doméstica. Seu marido trabalha como motorista de caminhão e cursou até a sexta série do 120 ensino fundamental. Ela informou que quando trabalhava como doméstica, obtinha uma renda de 270,00 reais. No período da entrevista, havia perdido o emprego. Como Marcos estava com escabiose, precisou faltar algumas vezes ao trabalho e foi demitida. João recebe 500,00 reais e ela pretende retornar ao trabalho, porque é difícil concluir as obras da casa e sustentar a família somente com a renda do cônjuge. Juçara definiu João como um homem ciumento e de temperamento forte. Disse que a relação dos dois é conflituosa e, embora as tentativas de separação ocorram com freqüência, permanecem juntos porque ele é um bom pai para os meninos. Segundo ela, João sente ciúmes do seu temperamento extrovertido, assim como não aprova que ela trabalhe fora de casa: pra ele mulher tinha que ser assim: dentro de casa. Pra fora, só se for pra levar uma criança ao médico. Esta situação provoca conflitos, porque ela quer trabalhar fora e João quer que fique em casa cuidando dos filhos: “(...) eu quero mais porque quando eu era criança eu tive pouco. Não tinha roupa nova, não podia sair de casa, ir a aniversário, não podia comer isso porque não tinha dinheiro e eu quero mais pros meus filhos. Então eu achava que se eu trabalhasse eu poderia passar pra essa parte e ele ficar com a parte da alimentação, terminar as obras da casa. E ele não, ele acha que a mulher tem que ficar. Ele acha que eu quero trabalhar pra poder passear, ficar na rua. Então é nessas partes que a gente briga muito. Ele nem queria que eu voltasse a trabalhar de novo e eu falei que vou voltar e ele falou que sai de casa. E eu falei: então você saia, mas eu vou trabalhar (...)” (Juçara, 24/08/01). Juçara levava os filhos para a creche domiciliar as 7 horas e, quando chegava cedo, buscava os dois às 18:30. Mas comumente eles ficavam na creche até 20horas, porque, ainda que saísse do trabalho às 17horas, tinha que esperar o ônibus. Como Juçara trabalhava perto de Niterói, fazia parte do trajeto a pé para economizar passagens, assim como algumas vezes saía do trabalho e encontrava algumas amigas para beber e conversar. Estes encontros aconteciam nas sextas feiras e ela chegava na creche em torno de 22horas. Nos sábados e feriados em que trabalhava, os meninos ficavam com Denise. Quando Juçara saía para trabalhar não se preocupava com os filhos, mas com as reações do cônjuge, pois ele bebe e tornava-se agressivo quando ela chegava atrasada em casa. 121 “A gente era oito irmãs e dois irmãos. A minha mãe ainda pegou uma menina para criar e a gente se dava super bem. Somos unidos até hoje.” Marta é mãe de Daniel com três anos. Trabalha no SESC como faxineira, tem 39 anos, é branca e casada com Carlos de 32 anos. Apesar de casada com o irmão de Denise e residindo nos fundos da creche domiciliar, ela resistiu para conceder uma entrevista. Após duas tentativas nas quais alegou estar muito cansada, ou doente, concordou em ser entrevistada. Em comparação com as outras mães das crianças que são falantes e dispostas, Marta aparenta fragilidade e tristeza, seja no tom baixo da voz ou no jeito de olhar. Marta, Carlos e Daniel moram nos fundos da creche domiciliar, em uma casa com sala, quarto e banheiro. Carlos está construindo uma outra casa maior e com dois pisos no mesmo terreno. Mas as obras estão suspensas, porque no momento está desempregado. Eles não têm água encanada e usam água do poço. O esgotamento da rua apresenta problemas que, segundo ela informou, são solucionados por Carlos, pelo menos na área onde eles residem. Marta vem de uma família numerosa e com ela são no total oito irmãs e dois irmãos. O pai trabalhava como pedreiro e porteiro e faleceu há cinco anos. A mãe era passadeira e hoje não trabalha mais. Ela tem boas recordações da família, que definiu como bastante unida. A mãe de Marta ainda criou uma menina sem laços de consangüinidade com a família. Marta iniciou a trabalhar com 14 anos, como bordadeira em uma fábrica de tecidos. Trabalhou nesse local até os 24 anos. Ela relatou que começou a trabalhar para ajudar a família e para comprar as coisas das quais gostava. Com o trabalho suspendeu os estudos na sétima série do ensino fundamental. Quando estava com 24 anos, ela e o pai da sua primeira filha foram morar juntos. Marta parou de trabalhar nesse período. Eles viveram durante quatro anos, mas separaram quando Maria completou três anos e Marta passou a criar sua filha sozinha, fato que provocou seu retorno ao trabalho em um mercado. Após este último emprego ela começou a trabalhar no 122 SESC - Serviço Social do Comércio, onde está há cinco anos. Quando Maria completou 12 anos, Marta casou com Carlos. Atualmente a jovem está com 16 anos e reside com a irmã de Marta, pois não tem um bom relacionamento com o padrasto. Maria parou de estudar e toma conta dos dois filhos da tia. Segundo Marta informou, sua filha parou de estudar na oitava série do ensino fundamental porque não conseguiu vaga na escola. Carlos estudou até a sexta série do ensino fundamental e parou de estudar com quinze anos. Nesse período, passou a trabalhar como ajudante de obras de seu pai. É empreiteiro e recebe de acordo com os serviços realizados; no período da entrevista, estava desempregado. Marta sustenta sozinha a família, com uma renda mensal de 200,00 reais. Durante a entrevista, ela refletiu sobre sua vida, enfatizando que não houve mudança para melhor após a união com o atual cônjuge, pois no passado ela recebia um salário maior, além de morar na casa dos pais. Ainda contou que quando Carlos está trabalhando, o dinheiro obtido com os serviços é consumido com bebidas e drogas. O casamento de Marta e Carlos é marcado por desavenças e cenas de violência e, quando alterado, ele agride a esposa ou o filho, por meio de palavras ou com violência física. Ela disse que gostaria de se separar de Carlos, mas não toma esta atitude porque ele vai procurá-la e perturbá-la: “Eu preciso trabalhar, porque às vezes tem dias que o meu marido fica em casa a semana toda, então eu tenho que bancar tudo isto (...). Meu casamento é muito atribulado. A gente discute muito, ele bebe e me agride na frente do garoto (...); na hora que ele xinga, o menino também xinga (...). Esses dias mesmo ele me agrediu, mas é bêbado, depois que passa o efeito da bebida ele diz que não fez (...). Outro dia ele bêbado deu um soco no estômago do garoto. Já falei que vou me separar dele por causa disso, eu só não separo dele, porque eu sei que ele vai me procurar e perturbar. Onde eu estiver ele vai perturbar. Então eu não separo” (Marta, 28/08/01). Marta acorda 4 horas da manhã e sai às cinco para o trabalho. Ela deixa o filho com Carlos que o entrega às sete na creche domiciliar. Marta contou que quase não entra na creche, porque chega muito cansada do trabalho. Daniel vai para casa perto das 19horas, quando a mãe está chegando do trabalho. Mas ele costuma circular pela creche, mesmo quando seus pais estão em casa. Marta disse que ao chegar em casa ainda faz os serviços domésticos e, 123 quando vê, está na hora de dormir novamente. Ela trabalha todos os finais de semana, às vezes nos sábados, outras nos domingos. Daniel fica na creche de Denise nos finais de semana, porque Carlos sai com os amigos para beber e não fica com o filho. “Acho que agora é melhor. Quando eu era solteira, o meu pai bebia muito, era uma convivência muito ruim.” Íris é mãe de Mateus, com dois anos, e Edilson, com sete. Ela trabalha como empregada doméstica, é negra, alta, magra e tem 29 anos. Está casada há 12 anos com José, de 33 anos. Seu filho mais velho é portador de necessidades especiais; fica na parte da manhã com a avó materna e, durante a tarde, freqüenta o colégio, além de receber atendimento semanal na APAE - Associação de Pais e Amigos de Excepcionais, na cidade do Rio de Janeiro. Íris é uma mulher alegre e, segundo Elisa comentou na creche, sua vida é dureza, mas ela não se deixa abater. Íris mantém um bom relacionamento com Denise e as duas costumam sair juntas, ou para a Igreja Universal, ou para visitar os parentes de Íris e José nos finais de semana. Íris reside com o marido e os filhos perto da creche domiciliar, em uma casa própria, com quatro cômodos: sala, quarto, cozinha e banheiro. Eles têm água encanada, luz elétrica e o lixo é coletado duas vezes por semana. No mesmo quintal de Íris moram um cunhado e a esposa. Segundo ela informou, ele bebe muito e briga com a esposa cotidianamente. Íris tem mais dois irmãos mais velhos do que ela. Quando criança, sua vida foi difícil, porque seu pai era alcoólatra e constantemente brigava com a esposa e os filhos. Íris veio morar com um dos irmãos no bairro Saudade, quando tinha 17 anos. Nesse período, começou a trabalhar como caixa em supermercados e padarias. Foi aí que conheceu José. Eles não passaram nem um ano namorando e casaram rapidamente. Quando casou, Íris parou de estudar, na sétima série do ensino fundamental. O primeiro filho do casal nasceu cinco anos após o casamento. Ela declarou que está satisfeita com o seu casamento, pois José não bebe e não fuma, o que para ela proporciona uma relação estável entre os dois: Não 124 levamos nem um ano namorando e casamos. Já tenho 12 anos de casada e considero bom. Não tenho do que reclamar. Ele comigo e com as crianças é muito bom. Após o nascimento de Edilson, Íris começou a trabalhar como empregada doméstica. Há um ano trabalha em um bairro de Niterói, com um salário de 220,00 reais. Ainda não teve sua carteira assinada e não se preocupa com isto, porque não tem certeza de que vai continuar nesse emprego. José estudou até a quinta série do ensino fundamental. Faz biscates como eletricista e passa um tempo sem emprego. Segundo Íris informou, ele às vezes pode receber até 450,00 reais mensais, mas não tem uma renda certa. Íris acorda as 5 horas da manhã e sai para trabalhar as seis, em um bairro de Niterói. A respeito da creche, ela se posicionou: Então prá mim é ótimo deixar ele aqui pertinho, né? É José quem entrega Mateus na creche domiciliar em torno de 7 horas da manhã. Íris vai buscar o filho após as 20 horas. Ela só atrasou uma vez e pegou Mateus às 22:30. Quando chega em casa, Íris trabalha, organiza a casa e deixa tudo em ordem para o dia seguinte. Relatou que o marido só ajuda no final de semana, porque ele sempre chega mais tarde. Assim, durante a semana, a responsabilidade com a casa é dela: Eu que chego primeiro, eu adianto tudo. Nos sábados ou feriados em que Íris trabalha, deixa Mateus na creche de Denise. Ele chega 8 horas e sai às 15. Mas nem sempre isto acontece, porque quando o cônjuge de Íris não trabalha aos sábados, ele costuma ficar com os filhos. Ressaltando a importância da creche domiciliar, Íris explicou que no lugar em que vive não é possível deixar uma criança sozinha em casa, uma vez que não há segurança. E referindo-se aos traficantes, ela baixou o tom de voz e falou: Porque aqui vive muito esses caras que fuma, cheira, estes marginal mesmo. “Eu tinha oito anos quando os meus pais se separaram, minha mãe ficou responsável, mas casou com outro. Pelas dificuldades eu fui morar com minha avó três anos depois.” Laura é mãe de Patrícia, de três anos, e de Júnior, de três meses. Ela trabalha como empregada doméstica, tem 22 anos, é mulata e vive com Renato que tem a mesma idade. Laura parece mais séria do que as outras mães, o que também pode ser explicado porque estava um pouco tensa durante a entrevista. Enquanto ela foi entrevistada, Denise e as 125 ajudantes ficaram brincando com Patrícia e cuidando o bebê de Laura. Atualmente ela está sem trabalhar há seis meses e fica em casa cuidando dos filhos. Patrícia ficou na creche dos oito meses até os dois anos e quatro meses, saindo quando Laura engravidou novamente e parou de trabalhar. Laura e a família moram no piso de cima da mãe de Renato. A casa tem dois cômodos: um quarto, que também serve de cozinha, e um banheiro. Ao todo são cinco casas no mesmo quintal e estão todas ocupadas por parentes da sogra de Laura. Estas pessoas só têm acesso à água uma vez por semana. Nos outros dias, pedem água para uma vizinha. Laura falou que nos outros bairros tem água encanada todos os dias, mas que na casa onde moram falta água, o que se agrava no verão. Eles também enfrentam dificuldades com o esgoto, pois há fossas, e quando chove misturam-se os esgotos de todos os moradores da rua. O lixeiro passa três vezes por semana na rua de Laura. Os pais de Laura se separaram quando ela tinha oito anos. Com ela são três irmãos. Seu pai era bicheiro e hoje não trabalha mais, porque ele se encostou faz uns quatro anos. A mãe de Laura trabalha como doméstica há seis anos e antes trabalhava como caixa em uma lanchonete. Após a separação, ela casou novamente. Alguns anos depois, Laura foi morar com a avó paterna, pois trabalhava como vendedora em uma fábrica de flores e o serviço ficava muito longe da casa na qual ela vivia com a mãe, o padrasto e os irmãos. Além de trabalhar como empregada doméstica, Laura passou por outros serviços, tais como: recepcionista, garçonete, vendedora, babá e faxineira. Laura estudou até a sétima série do ensino fundamental e parou de estudar aos 16 anos, pelas dificuldades que encontrou para conciliar estudo e trabalho. Com 18 anos e seis meses de namoro com Renato, ficou grávida de Patrícia. Foi morar com Renato e eles vivem juntos há cinco anos. Laura parou de trabalhar porque teve problemas na gravidez e no parto. Renato também parou de estudar na sétima série do ensino fundamental. Trabalha como repositor de mercado e Laura falou que ele ganha somente 260,00 reais. Assim, ela disse que precisa de trabalho para ajudar na casa, pois quando ela trabalhava a renda familiar era de 460,00 reais. Informou que é responsável pelos cuidados de Patrícia e de Júnior e pela organização da casa, mesmo quando trabalha fora: A gente que é mãe, a gente convive com a criança, a 126 gente dá banho, cuida, escuta choro, quando tá doente a gente leva pro médico. O pai não, ele trabalha e leva pra passear (Laura, 27/08/2001). Para Laura, os homens encontram maiores facilidades para conseguir um emprego, pois há muitos preconceitos com relação aos serviços dos homens e mulheres: “tem certo tipo de serviço que tem preconceito com a mulher, pra segurança, pra trabalhar em mercado; mulher consegue emprego de doméstica, porque em outros empregos tem que ter mais escolaridade”. Quando Patrícia freqüentava a creche domiciliar, entrava às 7horas e saía em horários variados, porque Laura às vezes saía mais tarde do serviço, ou enfrentava engarrafamentos no trânsito, ou ainda resolvia alguns problemas na rua, antes de chegar na creche: às vezes eu pegava cedo que era sete e pouco, às vezes pegava oito e meia, nove horas da noite. E cheguei ao ponto de pegar a Patrícia 23hs. 3.2 TRAÇOS QUE APROXIMAM E TRAÇOS QUE DISTINGUEM AS TRAJETÓRIAS DAS MÃES “Não temos bens, não temos terra e não vemos nenhum parente. Os amigos já estão na morte e o resto é incerto e diferente. Entre vozes contraditórias, chama-se Deus onipotente: Deus respondia, no passado, mas não responde, no presente. Por que esperança ou que cegueira damos um passo para a frente?” (Cecília Meireles) As trajetórias de vida das cinco mães estão marcadas pela origem social e pelas relações de gênero. Todas elas têm procurado encontrar estratégias de sobrevivência frente às dificuldades que enfrentam desde a infância. São mulheres, mães e trabalhadoras pertencentes a um grupo social que tem um cotidiano de muito trabalho e de dificuldades para obter empregos com direitos sociais. A inserção em um bairro popular marcado pela violência do tráfico de drogas produz sentimentos como medo, insatisfação e desejo de mudança. Algumas 127 alternativas são estruturadas para garantir a vida nesse local, como o aproveitamento dos lotes para a construção de várias casas que abrigam grupos de pessoas vinculadas pelos laços de parentesco, ou os serviços de tomar conta de crianças. Por outro lado, nesse universo pequeno de mães, também encontramos singularidades nas suas trajetórias e não podemos afirmar ser ele um grupo homogêneo. Dentre as cinco mães entrevistadas apenas uma é branca, três são negras e uma é descendente de índios. Quatro delas sempre moraram em São Gonçalo, mas Íris, Marta e Laura passaram a viver no bairro Saudade após o casamento. Somente Elisa vem do Estado de Minas Gerais e do meio rural. Juçara, Íris, Marta e Laura residem em terrenos ocupados por outros parentes consangüíneos, exatamente como a tomadora de conta. Esta é uma característica de grupos das camadas populares, consistindo no aproveitamento de lotes para a construção de casas de duas ou mais famílias que pertencem a uma mesma rede de parentesco. Com exceção de Juçara, que está construindo uma casa no mesmo terreno onde residem sua mãe e o irmão, as outras três mães habitam lotes que pertencem às famílias de origem dos cônjuges. Fonseca (1997, p. 536) aponta a natureza aberta da unidade doméstica das famílias de baixa renda, muitas vezes aparente no próprio aspecto da residência, com múltiplas casas no mesmo quintal. As condições de moradia de Elisa, Juçara, Marta e Laura são precárias. Elas enfrentam problemas decorrentes da ausência de água encanada, de esgotamento sanitário, ou de coleta de lixo, o que certamente interfere na vida e saúde destas famílias. As cinco mães vivem em famílias nucleares (casal com filhos/as) e estão casadas há mais de cinco anos. Entretanto, Elisa e Laura não legalizaram a união com seus cônjuges. Com exceção de Laura, as demais mães enfrentaram ou enfrentam problemas com o alcoolismo dos cônjuges (Elisa, Juçara e Marta), ou do pai (Íris). O caso de Marta é mais complicado porque, além de alcoólatra, seu cônjuge é dependente de drogas e costuma ser violento com ela e o filho. A religião parece ser um recurso que permite a algumas famílias retirar os homens do vício, como no caso do pai de Íris, que freqüentava a igreja e parou de beber, ou do cônjuge de Elisa, que parou de beber quando ela saiu de casa e também porque ele passou a freqüentar a Igreja Universal. 128 3.2.1 Percursos familiares anteriores e formação de novas famílias Elisa e Marta vêm de famílias numerosas com oito e dez filhos respectivamente, mas Juçara, Íris e Laura vêm de famílias com dois e três filhos. Considerando que Elisa e Marta são as mais velhas do grupo, com 34 e 39 anos, enquanto as outras três mães têm 23, 29 e 22 anos, assim como nenhuma delas tem hoje mais de dois filhos, podemos supor que este grupo representa uma parte do que Romanelli (2002) denomina de “a nova face da pobreza”, representada pela diminuição do número de filhos26 nas famílias das camadas populares. Berquó (1998, p.415) salienta que apesar do caráter nuclear da família continuar predominando no Brasil, o tamanho da família diminuiu, assim como cresceu o número de uniões conjugais sem vínculos legais. Juçara e Laura têm histórias familiares nas quais as famílias se reorganizaram na primeira infância e a responsabilidade pela educação e sustento dos/as filhos/as passou para as mães. A mãe de Laura, quando casou novamente, passou a contar com a ajuda do novo companheiro no sustento da família. De forma geral, os progenitores do conjunto das entrevistadas exerciam profissões que não exigiam escolaridade, como serviços gerais ou biscates entre os homens (lavrador, pintor, pedreiro, motorista, porteiro) ou ainda serviços ilegais, como bicheiro. Entre as mulheres predominam os serviços domésticos, como passadeira, faxineira ou empregada doméstica, ou serviços ligados ao comércio, como caixa de supermercado27. Mas os progenitores de Elisa, que são do meio rural, trabalhavam na lavoura. 26 Romanelli (2002, p. 245-246) ressalta que existe uma nova face da pobreza que produz mudanças nas organizações familiares. Fundamenta tal afirmação a partir de uma pesquisa realizada em agosto de 2001 pela Prefeitura Municipal de São Paulo, que registra mudanças na composição das famílias pobres: “De acordo com esse levantamento, a nova face da pobreza não está mais associada a famílias de migrantes com baixa escolaridade e com grande número de filhos. Os resultados desta pesquisa mostram que a nova pobreza é constituída por famílias com maior grau de escolaridade, com poucos filhos, por jovens nascidos na cidade de São Paulo e por negros”. Interessa-nos sobretudo um dado, que é o da diminuição do número de filhos nas famílias das camadas populares. 27 Ressaltamos que nosso grupo de informantes representa uma parte de um conjunto muito heterogêneo que denominamos camadas pobres ou camadas populares. Como observa Romanelli (2002, p.246), “a nova pobreza é social e culturalmente diversificada, englobando trabalhadores com escolaridade correspondente ao ensino fundamental e médio e exercendo ocupações não-manuais. O exercício dessas ocupações é habitualmente utilizado como critério de pertencimento às camadas médias. No entanto, os indicadores de pobreza diluem a fronteira estabelecida entre trabalhadores manuais e não-manuais, ou seja, entre integrantes das camadas médias e das camadas populares”. 129 Juçara relatou que a separação de seus pais ocasionou a redução do convívio com o pai, pois ele constituiu uma nova família. Como temos constatado desde o capítulo anterior, em alguns grupos das camadas populares quando os homens formam novas famílias eles geralmente diminuem o contato com os/as filhos/as das primeiras uniões: “E a relação da gente assim com o meu pai (...) quando nós éramos crianças a gente era um pouco mais revoltado. Quer dizer, às vezes eu via o meu pai uma vez por ano, outras vezes eu não via. Quer dizer, eu sempre fui apaixonada pelo meu pai. Mas eu não gostava muito de ir na casa dele porque eu não me relacionava muito bem com a mulher dele (...)” (Juçara,24/08/01). Quanto à formação das novas famílias, as trajetórias de vida das mães também não são homogêneas. Já vimos que Íris, Juçara e Laura casaram entre 17 e 18 anos, mas Íris só ficou grávida cinco anos após o casamento. Marta casou duas vezes e tem uma filha da primeira união e um filho do casamento com Carlos. Ela foi morar com o pai de sua filha com 24 anos e, quatro anos após a separação ficou sozinha como mãe e provedora até sua filha completar 12 anos. Estava então com 35 anos e casou com Carlos, que é mais novo do que ela. Elisa foi viver com Neuci, já divorciado e com dois filhos do primeiro casamento e, algum tempo depois, engravidou. Tanto Marta como Elisa e Íris são as provedoras das famílias, uma vez que seus cônjuges não têm emprego fixo. Já Laura e Juçara vivem uma situação diferente, porque seus cônjuges têm trabalho com carteira assinada, ainda que recebam salários baixos. As duas saíram do trabalho, ou para cuidar o filho doente, como no caso de Juçara, ou para cuidar do bebê como Laura, que disse ter enfrentado problemas na gravidez e no parto. No capítulo anterior vimos que a feminização da pobreza está associada ao aumento na proporção de famílias identificadas com situação de pobreza e comandadas por mulheres sozinhas. Nesse capítulo, nosso grupo de mulheres apresenta traços diferentes. Embora tenhamos encontrado casos, nas famílias de Juçara e Laura, de mães que se tornaram responsáveis pelo sustento e guarda dos/as filhos/as após as separações, no grupo das mães das crianças todas têm cônjuges, apesar de Marta ter ficado alguns anos sozinha e responsável pela filha, até o segundo casamento, com Carlos. Mas há um dado significativo 130 nesse grupo, pois Íris, Marta e Elisa são responsáveis pela manutenção das famílias quando os cônjuges estão desempregados, o que ocorre com freqüência nesse grupo de homens. Para Oliveira (2000, p. 57-58), o crescimento da chefia feminina é apenas um indicador das mudanças nos modos de conceber e de viver as relações familiares28. Outras mudanças apontadas pela autora são a proporção de famílias conjugais originadas em segundas núpcias de um ou de ambos os cônjuges, ou a proporção de famílias recompostas com a presença de filhos/as de uniões anteriores. A autora destaca que têm crescido as uniões informais, que se rompem mais facilmente do que os casamentos legais. Berquó (1998, p.419) também salienta que vem ganhando importância em nosso país o número de casamentos não legalizados, a coabitação sem vínculos legais ou a união consensual. Em nosso grupo de mães, quatro delas apresentam características dessas mudanças familiares: Elisa, que não legalizou sua união com Neuci, divorciado e com duas filhas do primeiro casamento; Marta, que casou com Carlos após ter vivido quatro anos com o pai de sua primeira filha; Laura, que não legalizou sua união de cinco anos com Renato e que vem de uma família na qual tanto o pai quanto a mãe passaram por recomposições familiares; e Juçara que vem de uma família na qual o pai casou novamente. 3.2.2 Trajetórias escolares e profissionais das cinco mães e seus cônjuges Exceto Elisa, que concluiu o ensino médio com formação em educação básica29, e prestou vestibular duas vezes para Pedagogia, e Juçara, que cursou até o segundo ano do ensino médio, as outras três mães estudaram somente até a sétima série do ensino fundamental. Juçara e Laura pararam de estudar quando engravidaram e Íris e Marta suspenderam os estudos logo que começaram a trabalhar. Somente Elisa desistiu de estudar porque não conseguiu aprovação no vestibular. Como vemos, este grupo apresenta um nível 28 Acrescentaríamos ainda que a chefia feminina, em termos de manutenção econômica da família, pode também ocorrer com a presença dos cônjuges, como nos casos de Marta, Íris e Elisa. 29 Elisa informou que cursou o ensino médio com habilitação para educação básica e poderia trabalhar como professora, mas não obtivemos maiores detalhes sobre o caráter deste curso. 131 razoável de escolarização frente à maioria da população brasileira, que não consegue concluir as primeiras séries do ensino fundamental, ou chegar ao ensino médio. Nesse grupo, os homens têm menor escolaridade do que suas esposas e nenhum deles chegou a cursar o ensino médio. O cônjuge de Elisa estudou até a oitava série do ensino fundamental, o de Laura até a sétima série, os cônjuges de Juçara e Marta estudaram até a sexta série e o de Íris até a quinta. Sem qualificação para o trabalho, três deles trabalham com biscates ou serviços gerais. Os cônjuges de Juçara e Laura trabalham com carteira assinada, em profissões que não exigem qualificação ou estudo. O trabalho precoce faz parte das trajetórias das cinco mães. Elisa começou a trabalhar na lavoura com 11 anos, Juçara como repositora de mercadorias com 11 anos, Marta em uma fábrica de tecidos com 14 anos, Laura como vendedora em uma fábrica de flores com 16 anos e Íris como caixa de supermercado com 17 anos. Três mães fizeram avaliações negativas sobre suas experiências de trabalho no final da infância ou na adolescência: Elisa relatou que não teve infância, na medida em que tinha que trabalhar na lavoura, após chegar da escola. Juçara que trabalhava nos finais de semana desde os 11 anos e que suspendeu o trabalho por um tempo, porque se sentia cansada. Laura contou que por não conseguir conciliar o trabalho e estudo parou de estudar aos 16 anos. O ingresso no trabalho representa para todas elas a obtenção de uma renda que permita ou consumir artefatos que as famílias não podem oferecer, ou contribua com a renda mensal familiar: A gente era oito irmãs e dois irmãos. A minha mãe ainda pegou uma menina pra criar. Eu comecei com 14 anos pra ajudar e pra me manter porque eu gostava de ter as minhas coisas então eu fui trabalhar cedo na fábrica (Marta, 28/08/01). De forma semelhante ao que ocorre na trajetória da tomadora de conta, estas mulheres iniciaram muito cedo a auxiliar nos serviços domésticos, e o cuidado dos/as irmãos menores faz parte da sua rotina de vida desde a infância. Um exemplo é Juçara que precisou cuidar do irmão mais novo com dez anos de idade. A única dentre as cinco mães cujo primeiro emprego foi o de empregada doméstica é Elisa. Ela veio de Minas Gerais acompanhando uma família, trabalhando durante o dia e estudando à noite. Quando concluiu o ensino médio, Elisa tentou ingressar na Universidade sem êxito. Ao conhecer Neuci parou de trabalhar como doméstica e foram morar juntos. Elisa passou a trabalhar como faxineira e, segundo informou, continuou a fazer faxinas para a 132 família na qual trabalhava, assim como foi indicada a outras famílias por intermédio da expatroa. Um dado significativo diz respeito ao fato de Íris, Laura e Juçara ter exercido profissões vinculadas ao comércio, como caixas de supermercados, repositoras em estabelecimentos comerciais, recepcionistas ou garçonetes, antes do casamento ou do período da primeira gestação. Como as três passaram a trabalhar com serviços domésticos um pouco antes do casamento, ou quando se tornaram mães, pensamos que há aí uma relação com a discriminação que as mulheres sofrem no trabalho, uma vez que nos serviços vinculados ao comércio ocorre uma preferência pela contratação de mulheres mais novas e solteiras. Juçara começou a trabalhar como repositora de mercadorias, depois trabalhou como vendedora de computadores, auxiliar de caixa e, antes do casamento, começou a trabalhar como empregada doméstica, função que ocupa até hoje. De acordo com Juçara, as duas últimas firmas nas quais trabalhou quebraram, o que reflete a crise econômica que tem atingido lojas e empresas de pequeno porte, gerando contratações por pouco tempo, nas quais o empregado permanece alguns meses como estagiário e logo é substituído por outro. Íris iniciou a trabalhar como caixa em supermercado e padaria e atualmente trabalha como empregada doméstica. Ela está há um ano em uma casa de família e ainda não teve a carteira de trabalho assinada. Marta começou a trabalhar em uma fábrica de tecidos, depois trabalhou em um mercado e fazem cinco anos que trabalha como auxiliar de serviços gerais no SESC - Serviço Social do Comércio. Laura também passou por outras ocupações antes de trabalhar como empregada doméstica. Ela começou trabalhando como vendedora em uma fábrica de flores e depois como recepcionista, garçonete, babá e faxineira. Como há um fluxo de emprego/desemprego bem significativo principalmente nas vidas de Juçara, Laura e Íris, os condicionantes de classe e gênero podem explicar os seus percursos. Algumas delas trabalhavam em firmas que fecharam e as possibilidades de encontrar outras profissões com garantias como carteira de trabalho foram se reduzindo. Quando engravidaram ou casaram estas chances se tornaram cada vez menores, e como Laura explicou na sua 133 trajetória de vida, para as mulheres com pouca escolaridade é mais difícil encontrar outro serviço e elas acabam trabalhando como empregadas domésticas, babás ou faxineiras. Como quatro mães têm experiências com trabalhos domésticos, vale a pena situar estas atividades no âmbito da sociedade brasileira, tal como propõe Santos (2000, p. 131-134). A economista explica que o emprego doméstico no Brasil faz parte da história da nossa sociedade fundada nas discriminações de classe, gênero e raça. Como o trabalho de empregada doméstica prescinde de aprendizagens escolares ou de uma aprendizagem formal, ela questiona se a atividade de empregada doméstica é uma categoria profissional30. Das quatro mães que trabalham com serviços domésticos, nenhuma delas estava com a carteira assinada no período das entrevistas. Elisa disse contribuir com o INSS, Juçara e Laura estavam desempregadas e sem carteira assinada e Íris ainda estava fazendo uma experiência no trabalho. Como assinala Santos (2000), mais da metade das empregadas domésticas no Brasil31 não possui carteira de trabalho. Estas trabalhadoras que não têm carteira de trabalho desenvolvem uma atividade informal. Ela também chama a atenção para o fato de que, em comparação com outros empregos, as empregadas domésticas não têm uma maior flutuação em suas atividades profissionais do que outras profissões. Nós também observamos que depois que as mães começaram a trabalhar como domésticas ou faxineiras, não passaram por outros serviços. Os cônjuges de Marta, Íris e Elisa se encontram no vai e vem do mercado formal e informal, predominando entre eles os serviços gerais e os biscates, além dos longos períodos de desemprego. O cônjuge de Elisa tinha começado a trabalhar há quatro meses como encanador em um estaleiro e, segundo ela relatou, passou um longo período desempregado. O cônjuge de Íris também faz biscates como eletricista e seguidamente está sem serviço. E o 30 Existem no Brasil cerca de três milhões de empregadas domésticas; a autora explica que, segundo a lei 5859/1972, a atividade é oficializada e compreende todo/a empregado/a que presta serviço de natureza contínua e de finalidade não lucrativa a pessoa ou família no âmbito residencial. Mas a proximidade e a continuidade dos serviços cria certa intimidade com as famílias e ela argumenta que isto dificulta o reconhecimento desta atividade, como categoria de emprego ou profissão. Este relacionamento entre empregada e patrões produz contradições, pois ao mesmo tempo que a atividade traz uma característica de servidão, por outro lado, algumas são como membros das famílias. Este argumento, segundo a autora, bloqueou os direitos trabalhistas da profissão. 31 Segundo dados da economista 60% das empregadas domésticas não possuí carteira de trabalho, 30% tem carteira de trabalho e 10% são autônomas. 134 cônjuge de Marta, que trabalha com construção civil, no período da entrevista estava sem trabalho. Assim, nenhum deles tem uma renda certa. Somente os cônjuges de Juçara e Laura estavam empregados e com carteira assinada, e as duas não comentaram sobre casos de desemprego entre eles. O cônjuge de Juçara trabalha como motorista de caminhão e recebe em torno de 500,00 reais e o de Laura trabalha como repositor de mercado e recebe 260,00 reais. Nos casos de Marta, Elisa e Íris, são as mulheres que mantêm a casa e, por isto, seus filhos permanecem na creche. Ocorre uma centralização das responsabilidades pelo sustento das famílias entre estas três figuras femininas, que são mantenedoras das famílias durante longos intervalos de tempo. Os casos de Juçara e Laura são diferentes, porque seus maridos é que são os provedores. Contudo, ambas contribuem com as despesas da casa. Laura afirmou que precisa ajudar o cônjuge que recebe um salário baixo e Juçara, além de apreciar a oportunidade de sair do âmbito doméstico, trabalha para ajudar o marido na construção da casa. Quando Juçara fala sobre sua necessidade de trabalhar para comprar algumas coisas para os filhos, ou para ajudar nas obras da casa, é diferente, por exemplo, de Marta, que diz estar cansada de ter que sustentar a casa. Tanto Juçara quanto Laura interromperam o trabalho para cuidar dos filhos. Juçara foi demitida, porque falhou ao serviço algumas vezes para cuidar de Marcos; Laura parou de trabalhar nas duas vezes em que ficou grávida. Nosso objeto de estudo não é o trabalho doméstico, mas sim o trabalho de tomar conta de crianças, que caracterizamos como domiciliar. Mas quando nos propomos discutir os sentidos deste trabalho para as mães, não podemos ignorar que elas trabalham com serviços domésticos. Logo, o serviço de tomar conta, nesse caso, se direciona às crianças de mães que exercem profissões domésticas. Potengy & Paiva (1999, p. 109) explicam que o conceito de trabalho assalariado torna-se inadequado para refletir sobre o trabalho feminino em âmbito doméstico, geralmente caracterizado pela dupla ou tripla jornada de trabalho. Elas ressaltam que a dicotomização entre as atividades consideradas como de produção, geralmente centradas no desenvolvimento do trabalho assalariado, e as atividades ligadas à reprodução social dos indivíduos, comumente realizadas por mulheres e nos espaços domésticos, acabou excluindo os estudos sobre trabalho doméstico da esfera econômica. Não é nossa intenção ampliar estas discussões, mas como estamos tratando de mães que fazem serviços domésticos tanto fora como dentro das suas casas, é interessante destacar 135 que há várias estudiosas brasileiras32 que investigam o trabalho feminino em âmbito doméstico. Potengy & Paiva (1999) situam o início dos estudos sobre a mulher, com um enfoque no trabalho feminino, no final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970. Foi a emergência do movimento feminista que forneceu as condições para a legitimação da condição feminina como objeto de análise. Igualmente uma corrente de estudos sobre gênero se preocupava em ampliar as investigações sobre trabalho, incluindo o trabalho doméstico. De acordo com as autoras (Potengy & Paiva, 1999, p. 108) a crise econômica dos anos 80 impulsionou um número cada vez maior de mulheres a aceitar empregos não regulamentados, devido as rendas decrescentes das famílias, especialmente na América Latina e na África. As mulheres latinas estão fortemente representadas no setor informal e doméstico. Para estas autoras, as atividades realizadas pelas mulheres no âmbito doméstico fazem parte de um sistema de produção que se aproveita do trabalho feminino por ser mais barato e definido como tarefa da dona de casa. Ambas ainda enfatizam que qualquer análise sobre o trabalho feminino deve estar atenta à articulação entre produção e reprodução, assim como às relações sociais entre os gêneros. Com relação ao que elas escrevem investigamos um grupo de mães cujo trabalho tem estreita relação com o trabalho dos cônjuges. Uma parte delas enfrenta a situação de trabalho instável dos cônjuges, desempenhando o papel de mantenedoras das famílias. Mas ainda executam boa parte das tarefas domésticas e responsabilizam-se pela criação dos filhos os quais, por força das circunstâncias e das limitações que enfrentam na vida diária, delegam a Denise. No que diz respeito à feminização da força de trabalho, aspecto que exploramos no capítulo anterior, é interessante o posicionamento de Ferreira (2002, p. 116-155) de que a feminização da força de trabalho na verdade tem por detrás um fenômeno de generalização da relação salarial típica da mão-de-obra feminina a todos os trabalhadores. Assim, nesse processo, um número cada vez maior de homens vê-se na condição laboral das mulheres, isto 32 Além das autoras referenciadas no texto destacamos outras contribuições como: BRUSCHINI, Cristina. Mulher e trabalho: uma avaliação da década da mulher. São Paulo: Nobel, 1985; BRUSCHINI, Cristina. Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo: FCC, 1990; BRUSCHINI, Cristina. Maternidade e trabalho feminino: sinalizando tendências. Reflexões sobre gênero e fecundidade no Brasil. FHI [S.L], 1995; SAFFIOTI, Heleieth I.B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Quatro Artes, 1969; SAFFIOTI, Heleieth. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1989, entre outros estudos brasileiros. 136 é: atomizados, não-organizados e sem segurança econômica, como nos casos dos cônjuges de Elisa, Marta e Íris. 3.2.3 Trabalho, casamento e lazer na perspectiva das mães Vimos nas trajetórias das mães como os horários de trabalho e as rotinas cotidianas de acordar, levar e buscar os/as filhos/as na creche, de chegar em casa e ter ainda que trabalhar, ou adiantar as coisas para o dia seguinte, são acontecimentos presentes nas suas vidas. Uma questão nos instiga. Estas mulheres não são provedoras de uma família monoparental, como é o caso de Denise, mas acumulam tarefas como a de sustentar a família, responsabilizam-se quase que inteiramente pelos/as filhos/as na ausência de Denise, e ainda executam os serviços domésticos da casa. Ocorre uma centralização do trabalho doméstico entre as mães e a divisão das tarefas com os cônjuges é quase imperceptível. Provavelmente tenhamos aqui uma das explicações para entendermos porque mulheres como Elisa, Marta e Íris necessitam da creche domiciliar, pois os cônjuges, mesmo quando desempregados, não se responsabilizam pelos/as filhos/as e pelos serviços domésticos. Essa é uma estrutura familiar que centraliza todas as decisões na figura da mãe, sobrecarregando estas mulheres. Não podemos afirmar, portanto, que encontramos um modelo de família patriarcal onde o homem é ao mesmo tempo o chefe e provedor. Nos casos destas três mulheres, o que ocorre é que elas são as provedoras e as responsáveis pelos/as filhos/as, embora os homens tomem decisões e assumam a posição de chefia. Lobo (1992, p.259) faz uma crítica interessante sobre a produção brasileira que tem relacionado a divisão sexual do trabalho com o patriarcado. Ela discorda da insistência de colocar tal problemática no âmbito do patriarcado e cita Rowbotham33 (apud Lobo, 1992, p. 259-260), para a qual a palavra patriarcado apresenta muitos problemas, pois trabalha com uma forma universal e histórica de opressão, com uma estrutura fixa, enquanto as relações entre homens e mulheres são mutáveis e fazem parte de heranças culturais e institucionais, assim como implicam tanto em reciprocidades quanto em antagonismos. 33 ROWBOTHAM, Sheila. Lo malo del “patriarcado”. In: SAMUEL, R. Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Crítica, 1984. 137 Nesse sentido, interessamo-nos em compreender como estas cinco mães percebem o trabalho e a divisão das tarefas domésticas, o casamento e o lazer. Pensamos que algo pode justificar porque elas suportam esse excesso de responsabilidades. Para entender estas mães e seus posicionamentos precisamos considerar que elas são mulheres pobres, que trabalham fora de casa e que se responsabilizam quase que inteiramente pelos serviços domésticos. Isto nos remete a duas questões fundamentais. Primeiro há um recorte de classe que nos ajuda a compreender este grupo. Elas fazem parte das camadas populares e alguns estudos brasileiros vinculados à antropologia e referenciados no capítulo anterior discutem porque mulheres como Íris, Elisa e Marta necessitam da figura masculina do chefe ou provedor, mesmo quando são elas que assumem tais funções, ainda que temporariamente. Na sociologia há estudos que questionam porque as mulheres experimentam sentimentos de onipotência com o acúmulo de tarefas (Izquierdo, 1999), o que não pode ser explicado somente pelo viés econômico e pela classe social. O recorte de gênero nos permite buscar uma visão menos reducionista dos motivos que levam estas mulheres ao acúmulo de tarefas, o que se relaciona com suas percepções sobre divisão sexual do trabalho, casamento e tempo para o lazer. Lobo (1992, p. 260-263) procura situar a importância do uso do gênero como categoria analítica nos estudos sobre trabalho feminino e divisão sexual do trabalho. Ela fundamentalmente defende a articulação da divisão sexual do trabalho com a categoria gênero no âmbito da sociologia do trabalho, porque é possível uma compreensão das metamorfoses do trabalho, das subjetividades e identidades que são construídas no trabalho, entre outras questões. Um outro aspecto que ela discute é que a relação de trabalho, enquanto relação social, traz embutida uma relação de poder entre os sexos. Embora residindo com os cônjuges, as cinco mães os caracterizaram como figuras distantes do trabalho doméstico, da dinâmica familiar e da criação dos/as filhos/as, ainda que Elisa, Íris, Juçara e Laura tenham relatado que ocorre algum tipo de ajuda momentânea dos homens, principalmente nos finais de semana. A divisão dos papéis sexuais no trabalho foi alvo de críticas das informantes, mas ao mesmo tempo foi reconhecida como algo naturalizado e difícil de romper. Elisa explicou que quando uma mulher sai de casa para trabalhar é porque o que o marido ganha não é suficiente para sustentar a família. Mas ao chegar em casa, o homem quer 138 que a mulher cuide desta e dos filhos, como se não bastasse o que ela faz na rua. Elisa considera que é mais fácil ser homem, pois eles enfrentam menos restrições do que as mulheres e relaciona este fato com as normas culturais que, de certa forma, reforçam esses papéis: “Que o homem chega e bota a perna pro alto, vai ver TV, ou então vai pro bar tomar cerveja com os amigos, ou vai jogar bola...e a mulher trabalha fora e chega em casa, então já é obrigação dela...ela já sabe que não pode nem mandar o marido fazer, ela sabe que tem que chegar, arregaçar as mangas, fazer comida, né, lava uma roupa essas coisas assim. Então isso já ficou prá mulher, então é uma questão de cultura, né? Um preconceito de achar que mulher tem que fazer e às vezes no trabalho ela dá muito mais duro do que o homem” (Elisa, 21/08/01). O cônjuge de Íris chega mais tarde em casa e ela assume a responsabilidade de adiantar os serviços domésticos e cuidar dos filhos. Mesmo que José ajude nos finais de semana, ela reconhece que as responsabilidades de organizar a casa são assumidas por ela durante a semana. O caso de Marta é o mais difícil entre as mães, porque Carlos não consegue ficar com o filho, nem mesmo nos finais de semana. Além disso, sua filha mais velha saiu de casa devido aos problemas com o padrasto. Marta acumula a função de mantenedora da família, assume todos os encargos domésticos e sofre violência física e verbal cotidianamente, devido ao alcoolismo e dependência de drogas do cônjuge. O cansaço parece fazer parte da sua vida diária e não foi possível perceber qualquer sinal de motivação na vida de Marta, ao contrário das outras mães que, mesmo enfrentando problemas com o excesso de responsabilidades, têm uma relação estável com os cônjuges, ou disseram que eles são bons pais, apesar das discussões freqüentes, como no caso de Juçara. Juçara se destaca no grupo, porque o cônjuge não aceita que ela trabalhe fora de casa e prefere que ela cuide dos filhos. Nesse sentido, ela não fez comentários sobre o acúmulo de tarefas domésticas, mas centralizou seu discurso na necessidade de trabalhar fora, para oferecer uma vida melhor para os filhos. Esta é uma situação vivida com muita tensão e brigas entre o casal, porque João sente ciúmes de Juçara e pensa que ela quer trabalhar para se divertir. 139 Para Laura, que no momento cuida do bebê de três meses, há diferenças na divisão do trabalho, principalmente com relação aos cuidados e educação dos filhos. Assim ela contou que Renato apenas passeia com os filhos nos finais de semana e que ela é responsável pelos cuidados cotidianos de Patrícia e Júnior. No discurso de Laura aparece uma distinção bem clara sobre a função do homem e da mulher: a gente que é mãe, a gente convive com a criança...o pai não, ele trabalha e leva para passear. Como podemos constatar há diferenças entre as responsabilidades de Elisa, Marta e Íris e as responsabilidades de Laura e Juçara. Laura reconhece que é o homem quem deve trabalhar fora, embora tenha dito que precisa trabalhar outra vez, porque a renda de Renato é insuficiente para sustentar a família. Mas provavelmente Laura ficaria em casa cuidando dos filhos, se a renda de Renato fosse maior. Também podemos supor o mesmo a respeito de Marta, que é mantenedora por necessidade, de Elisa que explicou que uma mulher trabalha quando a renda do cônjuge é insuficiente para manter a família, ou de Íris que ainda não regularizou a carteira de trabalho e que reconhece a situação profissional instável de José. Somente Juçara afirmou que gosta de trabalhar, mas seus motivos são certamente mais amplos do que aumentar a renda familiar. O trabalho significa para Juçara uma possibilidade de estabelecer contatos com o mundo da rua, de sair do lar e da convivência com o marido e os filhos, para ver pessoas diferentes e experimentar coisas novas, ainda que ela mantenha um discurso de que deseja trabalhar para aumentar a renda da família. Desta forma, Juçara encontra resistência da mãe e do marido: “Pra ele mulher tem que ser assim: dentro de casa. Pra fora, só se for levar uma criança no médico. Minha mãe diz que eu deveria ficar só dentro de casa, aceitar aquilo e só aquilo. Eu não, eu quero mais porque quando eu era criança eu tive pouco, né. Não tinha roupa nova, não podia sair de casa, não podia ir a aniversário, não podia comer isso porque não tinha dinheiro, quer dizer eu quero mais pros meus filhos. Ele acha que não, que eu quero trabalhar prá poder ir passear, ficar na rua...então é nessas partes que a gente briga muito. Ele nem queria que eu voltasse a trabalhar de novo, mas ontem eu falei prá ele. Eu falei assim: ‘-olha, eu vou voltar a trabalhar’ ele falou: ‘-ah, então se você voltar a trabalhar eu saio de casa’. E eu falei prá ele: ‘-então você saia, mas eu vou trabalhar’. Pior não pode ficar, né, porque você vai ter que dar as coisas das crianças, 140 pelo menos eu vou trabalhar sossegada, porque eu trabalho preocupada só numa coisa: não com as crianças, é de eu chegar em casa um pouco mais tarde e ele vir brigar comigo, vir reclamar que (...) ele bebe um pouco, aí às vezes se altera e quer partir prá agressão (...)” (Juçara, 24/08/2001). A mãe e o marido de Juçara têm um modelo de família nuclear, no qual o homem deve ser o provedor e a mulher deve cuidar dos filhos e da casa. Pela trajetória da infância de Juçara, nós vimos que antes da separação, sua mãe não trabalhava fora de casa: Quando os meus pais moravam juntos, minha mãe não fazia nada e só tomava conta da casa. Mas este modelo de família que, de certa forma, estrutura as vidas das mães e seus cônjuges não significa que as mulheres são incapazes de exercer poder. Como vimos, Juçara relatou sua decisão de trabalhar, mesmo enfrentando os argumentos contrários do marido e da mãe a respeito da sua decisão. Elisa, com muito esforço, conseguiu impedir a continuidade do alcoolismo do cônjuge, usando, inclusive a estratégia de separação: "(...) tanto é que eu me separei do meu marido por causa disso. Porque ele estava com problemas sérios de bebida. Então ele bebia, ele não tinha controle. Ele chegava em casa xingando. Então eu preferi separar, sair até mais por causa da Jane. Prá mim era muito mais confortável morar na minha casa do que pagar aluguel. Mas eu via que aquilo estava prejudicando a educação dela (...)" (Elisa, 21/08/01). Possivelmente, o contato que estas mães mantêm diariamente com mulheres das camadas médias também é elemento formador de concepções de gênero e trabalho não tão rígidas nos discursos, ainda que na prática elas continuem com sobrecarga de trabalho. Elisa apresenta um nível de percepção avançado sobre a discriminação no trabalho, quando analisa que mesmo que os homens e as mulheres desempenhem uma mesma função, são as mulheres que acumulam mais tarefas e recebem salários inferiores: “E um dia eu estava numa lanchonete, aí tinha um rapaz atendendo, e a moça lavando a louça. Quer dizer, o rapaz às vezes não tinha mais fregueses, aí cruzava os braços. E ela o tempo todo trabalhava. Eu comentei com o Neuci: ‘ - poxa vida, no final do mês o salário dela não chega aos pés do que ele ganha. Sempre menos. Ela trabalha muito mais 141 e ganha muito menos’. Quer dizer, isso já é do preconceito mesmo, né...a mulher trabalha muito mais até pra ajudar a família. Porque se você sai de casa pra trabalhar é porque o que o marido ganha não é suficiente, até pra comprar tudo o que precisa, né? Então o que o marido ganha não tem condições da mulher ficar em casa. Ela tem que sair pra trabalhar também. E o homem chega a noite e ainda acha que é obrigação dela, né? Além do da rua, o da casa e o dos filhos também (...) Enquanto Jane não dorme, eu não consigo fazer outras coisas, cuidar de mim, sabe? E as outras coisas tudo pra mim. Então vida de mulher é muito mais difícil. Aí eu acho que nem é classe social, é geral mesmo. Pode ter muito dinheiro, nem trabalhar fora, mas a responsabilidade que você tem que ter com a casa, até com os empregados, é muito mais, o homem chega ali com o dinheiro, mas o resto ele não quer saber. Então em questão de sexo, em geral a mulher tem muito mais responsabilidade do que o homem. Em todas as classes sociais sempre foi assim” (Elisa, 21/08/01). Como podemos observar, Elisa apresenta um nível de percepção avançado no discurso, mas na prática ela própria reconheceu que trabalha mais do que Neuci. O mesmo acontece com Íris e Laura, que têm noção da divisão sexual do trabalho, mas que não rompem com estes papéis na vida diária. Os sociólogos portugueses Torres & Silva (1998, p.36-37), pesquisaram a guarda das crianças e a divisão do trabalho entre homens e mulheres na região da Grande Lisboa, concluíram que são as mulheres que continuam a assegurar o essencial das tarefas domésticas e o cuidado com as crianças, mesmo quando elas trabalham fora de casa. O preparo das refeições, o cuidado dos/as filhos/as e da casa são tarefas que exigem mais tempo e maior disponibilidade diária. A partilha das tarefas domésticas e dos cuidados com as crianças está longe de ser igualitária, ocorrendo naquele país uma tendência geral de sobretrabalho feminino. Como no grupo de mães que entrevistamos, os autores (1998) encontraram um enfraquecimento dos papéis sexuais tradicionais em comparação com as gerações anteriores, pois os homens tendem a participar um pouco mais da vida doméstica. O marido de Íris é quem leva o filho na creche domiciliar, assim como ajuda nas tarefas da casa nos finais de semana. Juçara relatou que seu marido é um bom pai e passeia com os filhos nos finais de semana. Elisa disse que quando Neuci está em casa ele oferece atenção a Jane e também está construindo a casa nova, assim como Laura contou que Renato sai com as crianças para 142 passear nos finais de semana. Mas, como destacam os sociólogos portugueses, tudo se passa mais ao nível do discurso e das boas intenções, do que em mudanças significativas na prática. No Brasil, Berquó (1998, p. 415) também observa que estaria havendo uma tendência à passagem de uma família hierárquica para uma família mais igualitária, tendência mais visível nas camadas médias urbanas e, com o tempo, passando a permear também as camadas populares. Para as cinco mães, o trabalho fora de casa torna-se uma necessidade devido às situações de desemprego dos cônjuges, a instabilidade de renda e aos salários baixos, que não são suficientes para cobrir as despesas das famílias. Como vimos, ocorre um acúmulo de tarefas para as mulheres que trabalham, porque é necessário oferecer atenção e cuidado aos filhos durante a noite, assim como organizar a casa. Por isto, ao mesmo tempo que elas reconhecem a dupla jornada de trabalho, também se culpabilizam porque não conseguem dedicar o tempo que sobra para a criação dos filhos. Ressaltamos que embora a culpabilização apareça nos discursos, surge difusa numa crítica às atitudes das outras mulheres: “(...) porque tem mulher que não consegue separar as coisas do trabalho. Então já tem que ficar o dia todo trabalhando. Então à noite às vezes está cansada, então dá um tempinho...pelo menos uns cinco minutos, né. As mulheres de hoje, poucas delas estão com aquela responsabilidade de mãe que deveria ter. Sempre a desculpa do trabalho. Eu não acredito que o trabalho influencie e atrapalhe a educação da criança. Se a pia está cheia de louça, se a minha casa está bagunçada, entre arrumar a casa e dar atenção a minha filha, eu prefiro dar atenção primeiro, sabe?” (Elisa, 21/08/01). Ainda comentam Torres & Silva (1998, p. 34-35) que mães e pais estão cansados e culpabilizados pela menor atenção que consideram dar aos filhos/as, mas entre as mulheres tal sentimento tem mais força. A concordância com a idéia de que os/as filhos/as merecem mais atenção do que a que eventualmente recebem é mais destacada pelas mulheres do que pelos homens. Ambos ainda observam que é nas profissões operárias ou entre os trabalhadores não qualificados que a idéia de cansaço no trabalho é maior, e que são tanto as mulheres que ocupam profissões que envolvem grande dedicação e correspondem a altos rendimentos quanto as mulheres que ocupam profissões não qualificadas, mais duras e com baixos 143 rendimentos, que reafirmam a falta de atenção dada aos filhos/as. Os dados analisados pelos autores demostram as dificuldades de conciliação entre vida familiar e vida profissional, sob o ângulo do cuidado/educação das crianças. A escassez dos equipamentos, a falta de apoio familiar, as baixas remunerações e o sobretrabalho para fazer face às despesas familiares são fatores apontados no artigo como importantes para explicar declarações tão evidentes de cansaço. Marta, por exemplo, além de se culpar pelo pouco tempo que dedica ao filho, também se culpa pela violência do marido que atinge Daniel e que afastou sua filha mais velha de casa. Mais do que as outras mães, ela se queixou do cansaço do trabalho e da vida difícil com Carlos: “(...) eu quase não entro na casa de Denise, porque eu chego muito cansada do meu trabalho. Eu deito, descanso, durmo, aí acordo e vou fazer as coisas. E quando eu vejo já está na hora de dormir de novo. Eu trabalho direto sábado e domingo, quando eu trabalho sábado, eu folgo no domingo. Eu deixo ele aqui esse tempo todo. Eu preciso trabalhar. Porque às vezes tem dias que o meu marido fica em casa a semana toda, meses sem trabalhar; então eu tenho que bancar tudo isto...eu acho que essa situação é difícil (...)” (Marta, 28/08/2001). Os relatos sobre os primeiros dias dos/as filhos/as na creche fornecem elementos interessantes sobre a culpabilização das mães. É interessante que tal sentimento bate mais forte justamente entre as que sofrem por ter que trabalhar e deixar as crianças com Denise. Juçara, Laura e Íris são as mães que menos demonstraram sentimentos de culpa e sofrimento quando relataram os primeiros dias em que deixaram os/as filhos/as na creche. Juçara contou que o filho mais velho chorou nos primeiros dias e que ela ficava alguns minutos com ele até o choro passar. Sobre o bebê ela não fez comentários, até porque a presença do irmão mais velho na creche certamente deixou Mauro mais tranqüilo. Íris não mencionou qualquer dificuldade para deixar Mateus na creche, até porque ela e Denise mantêm uma relação de amizade e convivência que envolve adultos e crianças de ambas as famílias. Como a filha de Laura já freqüentava uma outra creche domiciliar, ela contou que Patrícia chorou um pouco, mas em seguida se acostumou a ficar com Denise de segunda a sábado. 144 Elisa é a mãe que mais se culpa pelo pouco tempo disponível para a filha. Agora que o cônjuge conseguiu emprego, ela disse que está mais disponível para dar atenção a Jane, pois antes se cobrava muito. Quanto à adaptação de Jane, Elisa explicou que foi mais difícil para ela do que para a filha. A menina ainda mamava no peito, quando entrou para a creche. Jane estava com pouco mais de um ano e Elisa sofreu porque precisava trabalhar. Imaginava que a filha ao ficar com outra pessoa iria chorar muito. Por isso se surpreendeu, porque não imaginava que ela fosse reagir tão bem: “Ela tinha o costume de dormir só no meu colo e a Denise e a Nilcéia passaram uns dois dias com ela no colo e depois ela foi acostumando. No primeiro dia ela me chamava, mas não chorou o dia inteiro, só algumas horas. Prá mim foi horrível, eu saía do trabalho e vinha correndo. Acabou que quem chorava era eu e saía contando a hora de voltar” (Elisa, 21/08/2001). A situação de Marta não é diferente da de Elisa. Como seu filho chorou nos primeiros dias, ela sentiu tristeza e chorava, porque já tinha passado por isso. Para Marta e Elisa ter que trabalhar e deixar os/as filhos/as é algo difícil de suportar: “Eu ficava triste e cheguei a chorar porque já tinha passado por isso. Por causa da minha filha, quando eu trabalhava eu deixava ela e chorava. Aí eu lembrava da minha filha e chorava pensando nele. Eu sou totalmente contra sair e deixar o meu filho. Mas eu preciso trabalhar”(Marta, 28/08/2001). Como não há uma divisão igualitária das tarefas domésticas e dos cuidados dos/as filhos/as entre estas mães e os cônjuges, pensamos que a culpabilização tende a se expandir, na medida em que elas se sentem impotentes para resolver tantas demandas. A figura da tomadora de conta surge como a substituta das mães, mas esta é uma análise que desenvolveremos posteriormente. Torres & Silva (1998) observam que não partilhar as tarefas domésticas e os cuidados com os/as filhos/as pode ocasionar uma relação “perversa” entre o casal, o que já foi estudado 145 desde os anos 60, em países como Bélgica, França e Estados Unidos. A conclusão destas pesquisas aponta que a satisfação no casamento é tanto maior, quanto mais repartidas forem as tarefas domésticas e os cuidados com as crianças (Michel34 apud Torres e Silva, 1998). Para Juçara e Marta a experiência do casamento está atravessada de frustrações e as duas falaram da possibilidade de separação, mas estas mães têm experiências diferentes. Juçara relacionou as dificuldades do casamento com o comportamento desconfiado e algumas vezes agressivo de João, mas por outro lado falou que não se separa porque ele é um bom pai. Como Juçara reside no terreno da mãe, para ela parece mais fácil lidar com a possibilidade de separação. Marta convive com a violência cotidiana de Carlos, devido ao alcoolismo e à dependência de drogas. Assim, contou que não se separa dele porque tem medo que ele vá perturbá-la. Entre as cinco mães, Íris é a que vive uma relação mais tranqüila com o cônjuge. Mesmo reconhecendo que trabalha mais do que José durante a semana, para ela a vida de casada é melhor do que a experiência vivida na infância e na juventude. Hoje Elisa e Neuci vivem bem, pois Neuci parou de beber e tem uma relação tranqüila com a filha, além de estar construindo a casa própria do casal. Laura foi a única que não fez comentários sobre o casamento. Ela apresenta posicionamentos bem rígidos quanto ao casamento e educação das crianças. Para ela a mulher é quem assume os encargos da casa e dos filhos e o papel do cônjuge é trabalhar para sustentar a família. Certamente esta sobrecarga de trabalho, assim como os sentimentos de culpa com relação ao pouco tempo dedicado aos filhos/as, repercutem na vida diária dessas pessoas. Sem tempo para as crianças e para si, questionamos se as mães conseguem dedicar algum tempo de suas vidas ao lazer. Em primeiro lugar, o lazer se restringe ao local no qual residem, porque sair para outros bairros ou cidades demanda maiores recursos econômicos ou tempo, o que é praticamente inviável. Nenhuma das cinco mães representou o bairro Saudade como um local que pode ser agradável; ao contrário, seus sentimentos a respeito do bairro são negativos. Principalmente pela violência gerada pelo tráfico de drogas e pela infra-estrutura precária, os desejos de Marta e Íris refletem a necessidade de mudança do Saudade: 34 MICHEL, Andrée. Sociologia da família e do casamento. Porto: Res Editora, 1983. 146 “Não gosto daqui desse lugar, não me agrada. Mas infelizmente o meu marido parece que está enterrado aqui, não quer sair daqui. Eu pedi a ele para sair, mas ele não quer sair daqui. Então tem que ficar onde ele quer” (Marta, 28/08/2001). “Nesse lugar que a gente vive é muito ruim, você não pode deixar uma criança sair sozinha. Porque aqui eles não têm segurança nenhuma” (Íris, 28/08/2001). A rua ou os espaços públicos do bairro Saudade apresentam uma divisão bem nítida entre a circulação dos homens, das mulheres e das crianças. Assim, quando caminhamos pelo bairro encontramos os homens em grupos jogando cartas, bebendo ou conversando. Mas as mulheres geralmente circulam acompanhadas das crianças ou conversam na frente das casas, o que provavelmente se relaciona com o medo da violência que pode ocorrer a qualquer momento. A Presidente da Articulação de Creches Comunitárias fez uma outra análise, mesmo reconhecendo que hoje a violência é o principal problema do bairro. Ela explicou que os homens encontram maiores dificuldades para conseguir trabalho e, assim, circulam mais do que as mulheres, que ou estão trabalhando fora de casa ou estão envolvidas com as tarefas domésticas: "Eu acho que na periferia tem isso: os homens têm mais dificuldade de arranjar trabalho, as mulheres têm mais facilidade até porque mulher lava roupa, limpa a casa e os homens nem sempre arranjam trabalho. Então tem mais homens mesmo. São homens desempregados. Porque na rua sempre pinta alguma coisa. Pede, sei lá, pra desentupir um banheiro. É alguém que chama prá carregar um aterro, sempre pinta uma possibilidade. O horário de se procurar trabalho é na madrugada, ir nas obras, por exemplo, quem trabalha em construção, quem vai trabalhar com peixe vai de madrugada pro mercadão, quem trabalha no lixão tem que trabalhar até 9h, 10h da manhã. Então depois de 10h, 11h é comum você encontrar os homens pela rua. E tem aqueles que sabem que não vão arranjar emprego, não vão arranjar nada. Vão fazer biscate o tempo todo" (Isadora, 03/07/01). 147 Mas este estar na rua, que é diferenciado entre os homens e as mulheres, também se relaciona com o medo e a necessidade de proteger as mulheres e as crianças da violência do local. É comum que a polícia entre no bairro proibindo a população de circular livremente, principalmente quando há “batidas” para encontrar traficantes ou usuários de drogas. Nesse sentido, para este grupo de mães se reduzem as possibilidades de lazer no bairro Saudade, o que não significa que seus moradores não se divertem. No local há bailes funk, rodas de pagode, campeonatos de futebol e cafifa e encontros em bares, nos quais os homens e as mulheres mais ousadas saem para beber e conversar. Nosso grupo de mulheres deseja fundamentalmente um tipo de lazer mais familiar, ou locais onde elas possam levar suas crianças com tranqüilidade. Elisa falou que costuma sair com a filha para visitar parentes ou ir à igreja, assim como reconheceu que há uma divisão entre as formas de diversão femininas e masculinas e que algumas mulheres vão para o botequim como os homens, mas as mais comportadinhas ficam em casa assistindo TV, enquanto os cônjuges se divertem com os amigos. Ela igualmente manifestou seu ressentimento com relação às poucas opções de lazer, argumentando que mesmo nos subúrbios, a organização e o lazer podem fazer parte do cotidiano dos habitantes. Tal como Elisa, Juçara relatou que não há possibilidades de diversão no bairro e que a programação com os filhos envolve visitas aos parentes. Ela apontou outros problemas no local, tais como violência, ausência de assistência médica e demora na obtenção de consultas médicas, bem como ausência de creches públicas. A situação de Laura não é diferente da das outras mães, pois ela e o cônjuge costumam visitar parentes, assistir campeonatos de cafifa ou jogos de futebol nos finais de semana. Considerando as trajetórias de trabalho das mães que, inclusive, cumprem horários nos finais de semana e nos feriados, constatamos que elas têm pouco tempo para si e para a diversão. A única delas que parece não conviver muito bem com esta condição de ser mulher é Juçara, que foi buscar no trabalho uma possibilidade de relaxar com as amigas após o expediente das sextas-feiras, o que também gerou conflitos com o cônjuge. Como escrevem Chinelli e Durão (1999, p.100), as novas relações de trabalho modulam horários e regimes de trabalho, ampliam turnos em dias da semana tradicionalmente 148 dedicados ao descanso, trazem o trabalho para o âmbito doméstico, difundindo diferentes formas de atividades, nas quais as mulheres tendem a engajar-se cada vez mais. Tal problemática interfere nas vidas dos familiares das crianças, principalmente entre as mulheres, que têm sobrecarga de trabalho quando trabalham fora de casa. Mas há razões não apenas econômicas que podem explicar porque elas acumulam tantas funções, ou vivem relações tensas com os companheiros e mesmo assim continuam casadas. Pensamos que estas mães, tal como Denise, têm um modelo de estrutura de família nuclear que pode explicar porque elas reconhecem a desigualdade na divisão do trabalho entre homens e mulheres mas não rompem com tal situação. Por que algumas apresentam discursos tão avançados e, mesmo assim, continuam a reproduzir esta divisão? Ou por que três delas sustentam a família quando os homens estão desempregados e fazem praticamente todo o serviço doméstico? Certamente as explicações não são apenas de ordem econômica. Possivelmente esta é uma estratégia feminina para manter a união com os cônjuges, uma vez que nos meios populares, quando os homens constituem novas famílias, geralmente reduzem ou perdem o contato com os/as filhos/as. Uma outra explicação é que para os homens é mais fácil a recomposição familiar do que para as mulheres. Sobretudo entre as mulheres mais velhas esta recomposição familiar parece mais difícil, o que não ocorre com os homens mais velhos. E são justamente as mulheres mais velhas em nosso grupo as mantenedoras e responsáveis pelos cuidados da casa. Como escreve Berquó (1998, p. 417-436), o fato dos homens se casarem com mulheres mais jovens é uma constante praticamente universal e isto se relaciona com as relações de poder entre os sexos35. Assim, a possibilidade de mobilidade dos homens em várias uniões instáveis é maior, e eles podem dividir-se entre diversas mulheres ao longo dos anos. A autora destaca que à medida que homens e mulheres avançam em idade, as chances no mercado matrimonial diminuem para as mulheres e aumentam para os homens. Juçara e Laura, as mais novas, vivem situações diferentes das outras três mulheres. Como vimos, Juçara não se deixou abater quando João ameaçou sair de casa caso ela 35 Esta autora ainda escreve que “São raros em nosso meio os estudos sobre ‘as moedas de troca’ oferecidas pelas mulheres e aceitas pelos homens no mercado matrimonial, além da juventude. A persistência do fato mencionado, no caso do Brasil, que conta com um superávit de mulheres em todas as faixas etárias a partir dos 15 anos, tem conseqüências diretas no celibato feminino e no avolumado segmento de separadas e viúvas com poucas chances de recasamento” (Berquó, 1998, p.417). 149 trabalhasse fora. O caso de Elisa é diferente, porque ela separou-se de Neuci quando ele não tinha condições de pelo menos representar a figura do chefe e provedor devido ao alcoolismo, além de ser 13 anos mais nova do que ele. Uma outra explicação para que as mulheres segurem o casamento diz respeito à figura do homem como proteção dentro de casa, num local marcado pela violência, em que as pessoas não confiam no apoio da polícia. Quando estas mulheres trabalham fora de casa, elas não conseguem ser mãe, mulher e trabalhadora durante as 24 horas do dia. Como o tempo que elas passam longe dos/as filhos/as é extenso, vão procurar a tomadora de conta que funciona como uma mãe substituta das crianças. 3.3 RELAÇÕES COM DENISE E COM A CRECHE DOMICILIAR “Quem é essa mulher Que canta sempre este estribilho Só queria embalar meu filho Que mora na escuridão do mar...” (Miltinho/ Chico Buarque) Quando as cinco mães trabalham, deixam as crianças aos cuidados de uma mulher que tome conta delas em tempo integral. Como no local onde vivem não existe apenas uma tomadora de conta, elas fazem uma escolha entre as creches domiciliares existentes. As mães procuram justificar suas escolhas estabelecendo comparações com outras creches que não são domiciliares, ou comparando Denise com outras tomadoras de conta. Elas apontam as vantagens que oferece a creche domiciliar, principalmente quanto à flexibilidade dos horários e à atenção proporcionada às crianças. Nos primeiros contatos com Denise, as mães estabelecem acordos que são negociados antes mesmo da entrada das crianças na creche domiciliar. A escolha e os acordos são feitos porque elas têm expectativas quanto ao trabalho e à função da tomadora de conta. As mães avaliam este trabalho e emitem opiniões sobre a vida de Denise, o que demonstra que as escolhas são feitas levando em consideração a pessoa da tomadora de conta enquanto mãe, mulher e trabalhadora. Procuraremos explorar cada um destes aspectos que constituem as relações entre as mães e a creche domiciliar. 150 3.3.1 A escolha da creche de Denise No bairro Saudade há uma creche comunitária36 que atende crianças de dois anos e meio a seis anos de idade em período integral, mantida por convênios ou doações de pessoal da comunidade. As mães que podem pagam uma taxa mensal de 15,00 reais. Também há escolas infantis particulares, que cobram em torno de 40,00 reais por criança. Como não entramos nas escolas infantis legalizadas temos poucas informações a oferecer, a não ser o que soubemos sobre Jane e Estela, que freqüentam uma escola infantil em meio período para crianças acima de três anos de idade. Tanto a creche comunitária como as escolas infantis particulares funcionam com crianças agrupadas por turmas, realizando atividades planejadas e orientadas pelos adultos. Num bairro vizinho ao Saudade encontramos algumas creches filantrópicas mantidas por políticos influentes no local, que recebem crianças carentes de zero a seis anos em período integral e crianças maiores de seis anos em meio período. Como as mães estabelecem comparações com outras creches não domiciliares, é importante esclarecer sobre as opções viáveis no local, principalmente para as crianças menores de três anos. Ocorre que dentro do bairro Saudade não há outra opção para esta faixa etária além das creches domiciliares. Este é um dado importante para entendermos as justificativas e comparações das mães. Logo, quando elas mencionam às creches gratuitas ou com mensalidades baixas, as informações referem-se às creches filantrópicas ou comunitárias, uma vez que existia em 2001 apenas uma creche pública para crianças maiores de dois anos, em um bairro distante do Saudade. Algumas mães disseram que no local há poucas creches diferentes das domiciliares, e manifestaram desconfiança com relação às creches gratuitas ou creches com mensalidades mais baixas, principalmente no tocante aos cuidados e atenção que elas desejam para os/as filhos/as: 36 Esclarecemos que o uso do termo obedece ao que a população local reconhece como creche, que é diferente do que está estabelecido na Nova LDB, cuja divisão é feita por faixa etária. Neste caso, as creches trabalham com crianças em período integral, mas nem sempre com a faixa etária abaixo de zero a três anos. 151 “Eu acho que por aqui têm poucas creches, poucas opções para as pessoas que querem trabalhar. Acho que as que têm que são gratuitas, ou que pagam bem menos, a gente não tem confiança de deixar as crianças. Eu moro perto de outra creche que é gratuita. Eu vejo as crianças quando vêm de lá sujas. Parece que as meninas lá não davam banho, porque estão com muitas crianças, né. Aí acho que não dava para cuidar de todas, e por isso eu preferi botar ele aqui” (Íris, 28/08/2001). “Não que as outras sejam ruins, creches comunitárias também da prefeitura, do governo sejam ruins, pelo contrário, eu só ouço falar bem dessas creches. Eu só não acredito que tenha um acompanhamento tão bom quanto... Não é que eu tenha nada contra. De repente eu posso até precisar, mas graças a Deus eu nunca precisei. Eu acho que com pouca criança é muito mais fácil de acompanhar do que com muitas. E mesmo porque tem muita gente que não está preparada, na hora ali não é bem assim, a pessoa tem duas caras entendeu? Mas quando está diretamente com a criança, a coisa de repente muda e é bem diferente, mesmo” (Elisa, 21/08/2001). “Por aqui tem uma creche pública, mas que só cuida de criança a partir de dois anos. Só tem uma e é muito difícil de arrumar vaga” (Laura, 27/08/2001). Juçara estabeleceu diferenças entre a creche domiciliar e as creches legalizadas. Mas no depoimento dela aparecem duas comparações: primeiro com uma escola infantil particular e depois com a creche comunitária. Embora reconhecendo que a creche de Denise não é um espaço legalizado, ela prefere as creches domiciliares, que oferecem um trabalho mais adequado para mães que, como ela, não podem faltar ao serviço: “Eu acho que é porque...por exemplo, estas creches legalizadas igual tem ali a Estrelinha. Da Sônia. Só que ali, se a criança estiver doente a mãe não pode levar porque a criança tem que tomar remédios e elas não dão. Quer dizer, a gente que trabalha como empregada doméstica, que começou a trabalhar agora... Criança é imprevisível. Hoje tá boa, amanhã de repente está doente. Quer dizer, a gente vai ter que parar de trabalhar prá poder ficar com a criança? E aí a gente acaba perdendo o emprego. Já assim com Denise, Regina, não. Elas dão o remédio certinho, quer dizer a gente não precisa ficar preocupada de ter que parar de trabalhar. Já lá na creche, não. Eu tenho, por exemplo, uma cunhada que tem três filhos lá. Quando a menina dela ficou doente ela teve que parar de trabalhar, quer dizer, ela foi mandada embora do serviço, porque ela faltou uma semana 152 direto. Se a criança não sabe fazer cocô no vaso, não pode ficar lá, porque elas não limpam. Então, por exemplo, prá gente que precisa mesmo, ou que não tem uma outra pessoa prá ficar no lugar da gente, a gente tem que botar assim mesmo. E a gente ainda tem que dar graças a Deus de encontrar uma pessoa igual a Denise. Que tome conta, que faça tudo pelas crianças, né...É porque assim, creche legalizada é difícil de conseguir, por exemplo tem que estar trabalhando. Paga uma taxa mínima, mas aquele monte de crianças prá poucas pessoas. Quer dizer, a gente fica meio preocupada de deixar, né. Por exemplo, eu deixava as crianças aqui, mas sem preocupação. Porque eu sei que Denise tem poucas crianças, ela consegue ficar mais tempo com as crianças, ter um contato maior. Lá são tantas crianças que fica meio difícil” (Juçara, 24/08/2001). O que faz a diferença entre as creches domiciliares e as outras creches, na perspectiva das mães, são os cuidados e a dedicação para com as crianças. Elas compreendem que o número pequeno de crianças propicia que as tomadoras de conta ofereçam mais atenção, proteção, que cuidem da higiene, alimentação e saúde dos/as filhos/as. Um outro aspecto que faz a diferença é a organização da creche domiciliar em função das demandas e necessidades das mães, que não podem se ausentar dos serviços nem mesmo quando os/as filhos/as estão doentes. A creche domiciliar é um local apropriado para os/as filhos/as de mães que trabalham em tempo integral, nos finais de semana e feriados. As mães reconhecem que há vantagens de ambos os lados, pois elas precisam trabalhar e deixar os/as filhos/as e a tomadora de conta, por outro lado, necessita de dinheiro para sustentar sua família. Para Elisa, o número maior de crianças por profissional dificulta um trabalho individual que considere aspectos tais como os tempos diferentes, o respeito aos hábitos alimentares das crianças, ou a administração dos remédios em caso de doenças. Laura fez comparações entre a creche de Denise e uma outra creche domiciliar, na qual deixava sua filha: “Essa aqui da Denise já é a segunda em que a Patrícia entrou. Só que na outra ela não se habituou. Ela se habituou mais aqui do que na outra em que ela estava. Não se habituou, não sei porque. Uma amiga minha diz que é porque batiam nela, aí ela não se habituou porque na época em que ela entrou ela tinha seis meses, então ela ficou só dois meses. E aqui não. 153 No primeiro dia que ela ficou ela não chorou. Aí ela ficou dos oito meses até os dois anos e quatro meses nessa creche” (Laura, 27/08/2001). Juçara informou que na sua rua há uma creche domiciliar que oferece um preço mais barato, que é o de 40,00 reais por criança; mesmo assim ela prefere deixar seus filhos com Denise: Ela pode até cobrar 200,00 reais, mas eu só deixo se for com ela. Porque eu já estou acostumada com a Denise, eu sei que as crianças são apaixonadas por ela, ela toma conta muito bem. As mães fazem suas escolhas pesquisando a vida pessoal da tomadora de conta. Elas procuram obter informações com outras mães ou com os moradores do bairro, a respeito da pessoa que se habilita a tomar conta de crianças. Após essas informações, elas procuram conversar com a tomadora de conta e conhecer a casa na qual ela vive: “Acho que em primeiro lugar fazer um levantamento do caráter da pessoa. Saber da vida da pessoa, do comportamento dela. Então eu acho que o principal é isso. A gente fazer um levantamento para ver se é um lugar adequado para se colocar um filho para ficar todo o dia...a gente tem que sair para trabalhar e não se sabe o que se passa (...)” (Elisa, 21/08/2001). “Ela, eu já conhecia, eu via o tratamento dela com as crianças, quando ela tinha a creche lá embaixo. Primeiro eu fui lá ver como é que era, como é que ela tratava das crianças quando a creche dela era lá embaixo na outra rua. Aí dei uma passada lá, olhei, um dia conversei com ela e vi como é que ela tratava as crianças. Aí gostei, aí botei ele para fazer uma experiência, aí ele foi ficando foi se adaptando e agora está aí, já tem um tempão” (Íris, 28/08/2001). As informações sobre a creche circulam no local e as mães fazem a escolha quando têm certeza de que este é um espaço adequado para suas crianças. A primeira visita à creche domiciliar pode ser acompanhada pelo cônjuge, como no caso de Juçara: “Bom, quando eu decidi voltar a trabalhar quando o Marcos ia fazer dois anos, eu tinha uma vizinha que deixava o filho com Denise. Mas nessa época era Denise e Nilcéia aqui embaixo. Aí ela falou assim, ah é uma boa pessoa, elas tomam conta muito bem. E o meu marido nessa parte é 154 muito chato com as crianças. Ele nunca deixou eu largar as crianças. Com ninguém, nem com a minha mãe ele deixava. Mas quando as coisas apertaram mesmo, pagando aluguel aí eu decidi voltar a trabalhar. Aí nós fomos lá na Denise conversamos e ela explicou tudo prá gente direitinho. Aí ele ficou lá. Aí depois a Denise e a Nilcéia se separaram. Aí a gente tinha que escolher, ou a Nilcéia ou a Denise. Mas o Marcos era muito agarrado com a Denise e então eu decidi ficar só com ela. Foi assim que eu conheci ela. Por intermédio de outra mãe que deixava as crianças aqui” (Juçara, 24/08/2001). No estudo de Nelson (1990) sobre mulheres que trabalham com creches domiciliares nos Estados Unidos, os familiares das crianças também procuram conhecer a vida pessoal da profissional que oferece os serviços. A escolha da creche domiciliar está vinculada à proximidade de moradia dos pais, mas estes utilizam redes informais de comunicação e fazem consultas a pessoas de seus contatos sociais e familiares. Os pais entrevistados nessa pesquisa confiam no que ouvem dos outros, e mesmo que as mulheres obtenham uma licença do Estado - o que não exclui a existência das trabalhadoras ilegais - alguns pais não se preocupam com o registro, mas com o que ouvem sobre a pessoa da trabalhadora. Entre nossas cinco mães, o fato da creche domiciliar não ser um espaço legalizado não interfere nas suas escolhas, porque o que elas valorizam é a pessoa da tomadora de conta e seus atributos para a função. Para Juçara, a creche domiciliar é como uma segunda família e ela justificou seu posicionamento explicando que as mães também são amigas de Denise. Para ela, o fato das crianças dormirem na creche quando isto se torna uma necessidade e a flexibilidade dos horários fazem a diferença entre a creche domiciliar e as outras creches. Assim, ela discorda de que este espaço possa ser chamado de creche: “Porque se tiver que dormir, a criança dorme. Não é uma creche. Numa creche você fica de sete a sete. Passou das sete da noite não pode mais. Sábado e domingo nem pensar. E aqui não. Se passar das sete da noite, Denise não liga. Se precisar dormir, dorme. Se precisar passar a semana inteira passa. Quer dizer, para mim isso não é uma creche. Creche é quando você tem aquele horário de sete às sete e se a criança estiver doente, não pode ficar. Tem creche que se a criança usar fraldas não pode ficar e aqui não. Se tiver que dar remédios, Denise dá no horário certo. Eu não chamo isso de creche. É como fosse o segundo lar das crianças. Eu falo que ele fica com a segunda mãe dele (risos). Às vezes vem alguém 155 perguntar: ‘- com quem você deixa as crianças? Ah, eu deixo com a minha amiga ali. É a segunda mãe deles e toma conta de crianças, também’” (Juçara, 24/08/2001). Marta pertence à família de Denise e falou que não tinha com quem deixar o filho e por isto preferiu sua cunhada, que mora no mesmo quintal. Como ela acorda às quatro horas da manhã e vai para o trabalho às cinco horas, prefere deixar Daniel com alguém de confiança: porque é minha cunhada...e eu não confiaria em deixar o meu filho com outra pessoa. 3.3.2 Os acordos entre as mães e Denise Como mostramos no capítulo anterior, existem acordos e negociações entre as famílias das crianças e a tomadora de conta. Estes acordos envolvem o pagamento das mensalidades, a contribuição com alimentos, fraldas descartáveis, roupas limpas, produtos de higiene e a combinação dos horários de entrada e saída das crianças. Em geral, as mães entregam os alimentos e outros produtos semanalmente. Estes acordos não seguem uma regra única para todas elas. Dependendo da situação de trabalho e das demandas de cada mãe, Denise estabelece diferenciações nos acordos. Por exemplo, as mães que têm dois ou mais filhos/as na creche pagam 50,00 reais por cada criança e não 60,00 reais, conforme o preço estipulado em 2001. Não há contrato, recibo de pagamento ou qualquer papel que possa comprovar esta relação de serviço; entretanto, há regras e negociações estabelecidas e cumpridas durante o período em que as crianças freqüentam a creche domiciliar. Para Bloch & Buisson (1998), a circulação de tempo e de dinheiro entre pais e profissionais necessita de um contrato que, na visão das pesquisadoras, confirma uma negociação interpessoal não mediatizada por uma instituição, mas nem por isto isenta de regulamentações. Isto gera o estabelecimento de um contrato que estipula um salário mensal para a assistente maternal, além dos direitos e deveres de cada um, que são delimitados. Quanto aos dias e horários de funcionamento da creche há algumas distinções, feitas de acordo com as necessidades de cada mãe. São estas concessões que permitem que as mães 156 trabalhem sem preocupação podendo, inclusive, passear com as amigas após o expediente, como Juçara fazia: “Eu posso trabalhar sem preocupação. Tanto que às vezes eu chegava em torno de 22hs nas sextas feiras. Eu parava no shopping para encontrar com as amigas, tomar uma cerveja, mas sem preocupação. As meninas falavam assim: ‘-Juçara, cadê seus filhos?’ Eu falava assim, tá lá com a mãe dele, deixa eles lá. Não tem aquela preocupação de ter que vir embora, ter que sair correndo prá ir pegar o Marcos e o Mauro. Não, nunca tive essa preocupação. Eu sempre vinha com calma, sem pressa, porque eu sei que aqui eles estão bem guardados” (Juçara, 24/08/2001). Todas as mães deixam as crianças na creche em alguns finais de semana, ou em feriados nos quais elas trabalham; da mesma forma, não há período de férias na creche. No período da nossa coleta de dados, nenhuma das crianças precisou dormir na casa de Denise. Marta disse que o filho costuma ficar na creche todos os finais de semana, das oito até as 16 horas, porque ela trabalha ou nos sábados ou nos domingos.Na perspectiva de Marta, Daniel deveria ficar com o pai nos finais de semana, mas ele sempre entrega o menino para Denise. O filho de Íris freqüenta a creche nos sábados das oito às 15 horas. Quando o marido não trabalha, ele fica com o pai. Em alguns feriados, ela também deixa o menino na creche. A filha de Laura, que hoje não freqüenta a creche, costumava ficar nos sábados das sete até as 16 horas, mas Laura falou que nesse período (ano 2000) Denise suspendeu o funcionamento da creche nos finais de semana: Depois a Denise teve um problema, então ela suspendeu os sábados. No sábado era das 7h até 16h. Mas elas buscavam os filhos/as 19h, 19h30. E ela não podia descansar, então suspendeu. Os filhos de Juçara às vezes ficavam nos finais de semana das sete até as 16 horas, quando ela e o marido estavam trabalhando. Elisa referiu-se ao contrato com Denise explicando que não há regras definitivas e que por isto é possível chegar um pouco mais tarde para buscar a filha. Ela contou que procura ligar e avisar quando vai chegar mais tarde. A filha de Elisa não tem freqüentado a creche nos finais de semana e nos feriados, porque ela diminuiu o ritmo de trabalho. Mesmo assim, Jane costuma visitar Denise quando está em casa com os pais: 157 “Mas agora que eu não estou mais sábado, aí (...) De responsabilidade de Denise, não. Ás vezes ela vem pra cá brincar, mas aí eu estou em casa. Então a responsabilidade fica comigo. Feriado também não. Férias é complicado, porque eu não tenho. Férias da escola, ela fica com Denise. Tempo integral, né? Não tem aquela regra definitiva (se referindo aos dias em que ela fica em casa e Jane mesmo assim, vai na casa de Denise). As outras crianças é diferente porque moram longe, então eu moro aqui do lado.‘- mãe, eu posso ficar aqui com a tia Denise, um pouquinho?’ Ela gosta de vir, então eu deixo. Qualquer coisa a Denise sabe que eu estou em casa. Então não é de responsabilidade dela (...)”(Elisa, 21/08/2001). No que diz respeito às mensalidades e contribuições com alimentos, fraldas e outros produtos, observamos que há variações segundo as necessidades das mães e a idade das crianças. Como temos observado, as negociações com as mães se estabelecem conforme as suas necessidades. Um exemplo é o caso de Elisa. Como a sua filha freqüenta uma classe préescolar particular no período da tarde, Denise assume todos os encargos escolares da menina, como o controle dos deveres, da merenda, e a presença nas reuniões e festas quando Elisa não pode comparecer. Além destes encargos, Denise também negocia as taxas de pagamento com a diretora da escola e obteve um desconto para Jane e Estela. A mensalidade está 41,00 reais. Denise tem muito conhecimento, então conseguiu um desconto para Jane (Elisa, 21/08/2001). Quando se referiu às mensalidades e aos alimentos, Elisa esclareceu que paga um preço mais alto do que as outras mães, pois reconhece que Denise não é uma trabalhadora bem remunerada: “o meu caso é diferente, um pouquinho diferente das outras. Eu pago 80,00 reais a ela, porque na verdade ela cobra 60,00 reais. Mas eu acho que suporto pagar um pouquinho mais, eu acho que ela merece muito mais do que isso. Eu pago porque eu não tenho condições de ficar com minha filha, apesar que Jane estuda à tarde, né? Tem mães que às vezes trazem o lanche, às vezes é uma fruta, leite, essas coisas...eu prefiro dar o dinheiro a ela por semana para comprar o pão. Acho que é até um contrato, que é até relativo, que não tem aquela regra definitiva, sabe?” (Elisa, 21/08/2001). 158 Elisa também paga o décimo terceiro para Denise, o que não está estipulado no contrato com as mães: “O décimo terceiro também. Não que ela me exija, sabe? Não, não são todas que pagam. Eu pago porque (...) eu também, eu até não tenho direito, mas os meus patrões me pagam, sabe? Porque diarista às vezes nem tem direito a décimo terceiro, mas eles me pagam, então eu não vejo porque não pagar para ela também. Porque eu reconheço um pouco do que ela faz por minha filha” (Elisa, 21/08/2001). Juçara pagava uma mensalidade de 100,00 reais pelos dois filhos e explicou que Denise fazia um abatimento, porque eles são irmãos. Ela levava para a creche farinha, leite, legumes, biscoitos, às vezes um iogurte e fraldas descartáveis. Os alimentos são divididos entre as crianças, o que demonstra que há uma rede de solidariedade entre as mães: “Que aqui não tem nada assim: ah, isso aqui é dele...Trouxe prá um e é prá todo mundo. Então eu sempre trazia bastante, nunca teve nada disso de separar as coisas. Eu acho que Denise não separa nada. Porque às vezes uma mãe tem condições de comprar uma coisa e a outra não tem, né...a gente nunca sabe porque hoje em dia está meio difícil, né. Então eu acho que tudo é prás crianças, trouxe prá um é prá todas. Não tem diferença”(Juçara, 24/08/2001). Marta paga 60,00 reais por mês e contribui com leite e às vezes com uma lata de farinha biscoito é raro. essas coisas, eu não compro não. Íris paga 60,00 reais e contribui com leite, biscoitos, frutas e às vezes outros alimentos como gelatina ou iogurte, além de produtos de higiene como sabonete e creme dental. A filha de Laura não freqüentava mais a creche domiciliar no período da entrevista; sua mensalidade no ano 2000 havia sido de 50,00 reais e Laura fornecia leite, biscoitos, frutas e fraldas descartáveis. Como ocorre um acordo comercial entre Denise e as mães, as tensões são geradas principalmente nos casos de atrasos de pagamentos, o que freqüentemente ocorria com o irmão da tomadora de conta. Da mesma forma, quando as mães enviam os/as filhos/as muito doentes para a creche, isto não é bem tolerado por Denise, ainda que ela não se recuse a receber as crianças. 159 No estudo de Nelson (1990) a pesquisadora encontrou reclamações semelhantes com relação aos pais que não levam roupas suficientes, aos atrasos para buscar os/as filhos/as, às crianças que chegam muito doentes ou aos pais que não pagam as mensalidades em dia. Tal como no caso de Denise, ela comenta sobre cuidadoras que apresentam problemas nas negociações com parentes. Uma delas reclamou do irmão como alguém que se tornou um infrator dentro da creche, tanto no que diz respeito ao cumprimento dos horários, quanto à pontualidade dos pagamentos. 3.3.3 As expectativas das mães quanto à função de Denise De forma geral, as mães esperam que seus filhos e filhas tenham na creche domiciliar amor, carinho, proteção, segurança, espaço para brincar, cuidados com a higiene e a saúde, limites e responsabilidades. Como o tempo que lhes sobra para o convívio com as crianças é cada vez mais reduzido, as mães preferem encontrar alguém que preencha tais requisitos e ofereça tudo aquilo que elas gostariam de oferecer, mas não podem. Nenhuma delas falou em sistematização do trabalho com objetivos de socialização das crianças, ou em atividades pedagógicas mais organizadas. Tais constatações não indicam que as mães não queiram para suas crianças uma escola infantil. Os casos de Elisa e Denise demonstram que as mães desejam que suas filhas freqüentem uma pré-escola ou classe de alfabetização, após os três anos de idade. Para elas, o trabalho pedagógico acontece em outros espaços, legalizados, e essa não é a função de Denise: Jane está no jardim à tarde. Então faz deveres, está estudando as vogais, as consoantes(...) (Elisa, 21/08/2001). Sabemos que todas as atividades de cuidado também são educativas, mas na ótica dessas mães, as aprendizagens mais formais são vivenciadas em espaços legalizados. Elisa sabe que existem diversas escolas infantis particulares no bairro destinadas às populações mais pobres, e que é mais seguro matricular a filha em uma escola infantil legalizada. Após três anos de idade, mesmo permanecendo meio período na creche domiciliar, o restante do tempo é dedicado a uma experiência de preparação para a escolarização e alfabetização. 160 As expectativas das mães com relação ao trabalho de Denise envolvem duas ordens de respostas. A principal se relaciona com os saberes de ordem afetiva. Tudo o que se relaciona com afeto, amor e carinho, Elisa, Juçara, Íris e Laura colocam como função principal da tomadora de conta. A outra ordem de respostas corresponde à responsabilidade e à substituição dos familiares. Elisa, Íris, Juçara e Laura disseram que o afeto e o amor pelas crianças são importantes na função da tomadora de conta. Assim, gostar do que faz, conhecer e saber se colocar no lugar das crianças fazem parte da função de Denise. O amor e o carinho são sentimentos valorizados, porque elas reconhecem que as crianças exigem paciência e nem todos os adultos conseguem trabalhar com elas, sendo necessário gostar dessa atividade: Para começar a Denise sempre gostou de crianças, né. Se tem criança, ela vira criança também (Elisa, 21/08/2001). Os cuidados com a higiene, com a saúde e alimentação das crianças também estão articulados com o toque e o afeto: “Acho que saber dar banho (risos), dar carinho, no caso de uma emergência e a criança cair, às vezes um primeiro socorro e a pessoa saber o que fazer. Então quem está tomando conta tem que saber o que fazer de imediato, até chegar o médico ou encontrar a mãe. Saber dar a alimentação também. Porque tem alimentação que não é adequada para a criança” (Elisa, 21/08/2001). “Ah, eu gostei do jeito carinhoso dela tratar as crianças. Tudo tem muita higiene, muito limpinho, asseado, melhor do que as outras creches” (Íris, 28/08/2001). Juçara e Laura valorizam a paciência, como uma qualidade de quem sabe tomar conta de crianças. Juçara se definiu como uma mãe desesperada, que não consegue manter a tranqüilidade em momentos conflituosos vividos com os filhos. Para ela, Denise dedica tanto amor e paciência às crianças, que elas não querem ir embora para casa quando chegam suas mães: Que se ela não tiver amor e tiver só responsabilidade, as crianças não vão gostar tanto dela, como gostam. Que você vê que todas as crianças estão agarradas com ela. Ninguém quer ir embora para casa. 161 Somente Marta não priorizou o afeto, como as outras mães. Ela disse que a tomadora de conta tem que saber educar uma criança, principalmente nos momentos de conflitos: Tem que saber como deve agir com uma criança. Porque criança toda hora briga, né? Tem que saber separar, educar, explicar as coisas às crianças e ensinar. Em primeiro lugar tem que ensinar. Porque esse negócio de bater e devolver, eu não gosto disso. Como vemos Marta quer que Denise saiba educar e ensinar as crianças, priorizando o ensino de hábitos, valores, atitudes e comportamentos, principalmente nos casos de conflitos ou brigas entre as crianças. A outra expectativa das mães, com relação à função de Denise, diz respeito à responsabilidade com o trabalho. Nesse caso ser responsável adquire um sentido que é o de não falhar com as mães, porque elas precisam trabalhar e deixar as crianças com alguém que esteja sempre presente: “É isso aí, é tomar conta e ter responsabilidade. A mãe vai trabalhar e fica tranqüila, porque sabe que ele vai ficar bem. Vai trabalhar e não precisa estar se preocupando com quem vai deixar a criança, porque tem pessoas que falam: vou tomar conta do seu filho. Aí no outro dia você vai trabalhar e a mulher já não pode ficar com a criança. E ela não. Está sempre pronta e nunca falou: ah, tal dia eu não vou poder ficar, isso nunca aconteceu” (Íris, 28/08/2001). Para Marta é necessário responsabilidade, do momento em que a tomadora de conta pega a criança até o momento em que a entrega às mães. Laura explicou que uma pessoa que toma conta de crianças tem que ser muito responsável, porque as crianças são levadas. A responsabilidade para Laura adquire um significado de olhar mais as crianças, que podem se machucar quando correm, por exemplo. A responsabilidade também está relacionada com a necessidade de segurança e proteção das crianças. Desta forma, o medo gerado pelos conflitos entre policiais e traficantes era freqüentemente motivo de comentários dentro da creche domiciliar: “Denise informa que está sempre atenta com as crianças. Que elas ficam na rua tomando sol, mas que ela não tira os olhos das crianças. Que as mães só largam as crianças com ela por este motivo, pelo fato dela ser 162 uma pessoa que se preocupa demais. Ainda fala: ‘o mal está aqui, somos prisioneiros do próprio lar’” (Diário de Campo, 17/06/2001). Juçara, também reconheceu que é melhor deixar as crianças dentro da casa, porque o local em que moram é perigoso: “(...) hoje em dia a gente não pode deixar a criança ficar muito tempo brincando na rua, porque muita gente já foi (...) levaram as crianças. O meu marido mesmo tem uma sobrinha que está desaparecida. A gente não sabe se ela está viva ou morta. Você vê que as crianças só brincam aqui no quintal se ela ficar, se ela não ficar é todo mundo dentro de casa. Quer dizer, ela já está se precavendo porque se a pessoa tiver que pegar, a pessoa entra no quintal, não tem adulto, sai e leva. Eu acho que segurança a gente não tem. Porque a polícia quando bate aqui é prá bater em alguém, pegar gente inocente...nunca faz nada que preste. A gente tem mais medo deles, do que dos meninos que moram aqui e infelizmente entraram prá essa vida” (Juçara, 24/08/2001). Para Íris, no lugar onde vive não é possível criar um filho com liberdade, ou deixar uma criança sozinha. Ela definiu o local como desprovido de segurança, porque há pessoas envolvidas com o tráfico e que andam armadas na frente das crianças. Este é um traço encontrado por antropólogos que pesquisam bairros populares, como Romanelli (2002, p. 9-11), quando observa que hoje as famílias de pobres e trabalhadores convivem com outros moradores ligados ao universo da transgressão. As famílias das crianças procuram as creches domiciliares como forma de evitar o convívio com a rua, cercada de conflitos gerados pelo tráfico de drogas. A segurança e a proteção das crianças são aspectos norteadores do trabalho desenvolvido no espaço da creche domiciliar. Esta é uma necessidade dos familiares que nos parece plenamente incorporada pela tomadora de conta e suas ajudantes, no cotidiano vivido com as crianças. Por último a tomadora de conta, que cuida e protege as crianças com carinho, que gosta do que faz e que é responsável, também assume a condição de substituir a mãe ou outros familiares, nos momentos em que a criança permanece na creche domiciliar: substituir uma mãe, o responsável naquelas horas ali, a criança vai ficar aos cuidados daquela pessoa. 163 Fazer o que os responsáveis têm que fazer, o que o pai e a mãe tem que fazer (...) (Elisa, 21/08/2001). Juçara ressaltou que a função de Denise ultrapassa o tomar conta, pois isto significa dar uma olhada nas crianças, enquanto Denise assume o papel de segunda mãe e praticamente cria as crianças. Os sentimentos das mães com relação a Denise ser considerada a outra mãe das crianças, nós exploraremos mais adiante. A idéia de que ela substitui as mães ou os outros familiares, porém, faz parte das expectativas deste grupo de mulheres. Juçara disse que não sai preocupada para o trabalho, porque seus filhos são bem cuidados por Denise. Ela parece confiar mais em Denise do que nela própria enquanto mãe lembrando, inclusive, que o filho mais velho não engordava em casa e na creche começou a aumentar de peso, aprendeu a caminhar e resolveu o problema de sinusite: A minha casa era muito fechada, ele não pegava sol e adoecia de novo. Denise levava ele para pegar sol e a sinusite parou. Como podemos observar, as mães valorizam as habilidades da ordem dos cuidados com as crianças. Tais habilidades, para elas, são adquiridas com a experiência e o gosto pela função. Quando questionadas sobre a necessidade de uma formação específica para tomar conta de crianças, Juçara, Laura e Marta responderam que não é necessário, enquanto Elisa e Íris disseram que é importante uma formação. Juçara entende que para trabalhar com crianças pequenas não é necessário ensino superior. Para ela, o estudo pode ajudar Denise a auxiliar as crianças maiores na realização das tarefas escolares. Para Laura não é necessário estudo para tomar conta de crianças, mas carinho, pois a criança gosta de carinho, gosta de atenção, gosta que brinque e gosta que conversem com ela, e concluiu que para isto não é preciso estudar. Marta, ao mesmo tempo em que reconheceu a necessidade de saber muitas coisas sobre a criança, sobre como agir, como educar, explicar as coisas e intervir nos momentos de conflitos, também respondeu que não é necessário estudar para isto, alegando que como Denise é mãe de duas meninas, ela naturalmente deve saber como fazer com as outras crianças. 164 Elisa disse que é necessário uma formação, embora reconheça que no local em que moram é difícil encontrar pessoas com curso superior. Ela explicou que os moradores do Saudade, em geral, não conseguem concluir os estudos e quem consegue vai trabalhar em bairros mais próximos do centro, ou afastados da periferia: É meio difícil a gente achar uma pessoa que tenha curso superior para poder tomar conta de crianças por aqui (...). Íris pensa que é importante uma formação, mas com uma orientação psicológica que possibilite conversar mais e saber lidar com as crianças, sobretudo com as mais novas. Mas no seu discurso percebemos que ela deseja uma formação que também preencha a função dos familiares: “Que hoje em dia as crianças precisam muito disso, de alguém que converse com eles, quer dizer, na ausência da gente, quem fica com a criança é ela. Ela teria que ter mais diálogo, conversar mais com as crianças. Ter um curso, alguma coisa que tratasse melhor as crianças (...)” (Íris, 28/08/2001). 3.3.4 Avaliação do trabalho de Denise Embora as mães tenham quase sempre afirmado as qualidades do trabalho de Denise e as vantagens que elas encontram na creche domiciliar, quando questionadas sobre o espaço da creche todas responderam que é necessário organizar o espaço em função das crianças e oferecer mais possibilidades para que elas brinquem, além da garantia de segurança. Elisa, por exemplo, reconheceu que a casa e o pátio são amplos, mas não são organizados em função das crianças: Tanto é que espaço até que tem, mas se fosse mais preparado seria até mais ideal, né. Ali do lado que tem um monte de material de construção. Então se não tivesse essas coisas teria mais espaço... (Elisa, 21/08/2001). Marta e Íris disseram que é necessário ampliar o espaço da creche e criar uma área de lazer para as crianças, como uma sala com brinquedos, por exemplo. As mães avaliam o trabalho de Denise visitando a creche, observando os acontecimentos, ou questionando os filhos e as filhas, sobre os eventos do cotidiano. As quatro mães, com exceção de Marta, disseram conversar com as crianças, a fim de obter informações 165 a respeito do tratamento que recebem na creche. Para Elisa são poucas as pessoas que têm paciência e disponibilidade para sentar e rolar no chão com as crianças, como Denise: Às vezes eu fico do lado da minha casa, às vezes eu olho e ela está brincando de cabra-cega, ela está brincando de bola com as crianças, às vezes eu chego aqui quietinha e ela está sempre brincando. Íris conversa com o filho a respeito de Denise e também justificou que confia na tomadora de conta porque ambas mantêm uma relação de amizade: “Tudo que se passa com ele, ele fala. Que tia Denise deu banho, escovou dente. Tudo ele conta. Só vive com tia Denise na boca. Eu sou muito chegada a ela, sempre fomos muito amigas mesmo. Eu sempre estou aqui, mesmo que não seja dia de trabalhar eu venho aqui aos domingos, ela vai na minha casa. Então somos muito ligadas eu e ela. Quando eu saio e vou para algum lugar ela vai junto comigo. Sempre que eu vou na casa dos meus parentes em Itaboraí, ela vai comigo” (Íris, 28/08/2001). Laura relatou suas conversas com a filha a respeito dos acontecimentos da creche, incluindo os castigos: “E às vezes ela falava: ‘-mãe...’ ‘-o que é que foi Patrícia? A Tia Denise colocou de castigo? Porque fez arte?’ Tem mais é que botar, porque criança tem que consertar o erro da criança, né. Mas só isso também. Porque a Patrícia é uma criança muito agitada, muito levada mesmo. Então só disso que ela falava (...) eu não me importo, porque ela toma conta e eu quase não ficava com a Patrícia, então não ligo para essas coisas, não (...)” (Laura, 27/08/2001). Laura também lembrou que as mães costumam entrar e conversar com Denise sobre como foi o dia, se as crianças tiveram febre, se aprontaram alguma coisa, se comeram bem ou se dormiram à tarde. Juçara recordou que quando Marcos começou a freqüentar a creche, sempre chegava em casa falando coisas boas sobre Denise. Ela e o cônjuge perguntavam ao menino se Denise batia, ou brigava com as crianças, como uma estratégia para saber o que se passava na ausência deles: No começo a gente perguntava, que a gente tinha receio (...) na primeira vez 166 que eu deixei o Marcos, aí a gente perguntava. Mas como ele não falava e estava sempre bem, sempre brincando (...) Então a gente foi vendo que ela tomava conta muito bem. Mas diferente das outras mães, Marta e Laura apontaram problemas com relação ao trabalho de Denise. A primeira relatou um episódio de maus tratos com o filho que lhe desagradou. Daniel chegou em casa com uma marca no rosto, mas ela e Carlos não conversaram sobre o assunto com Denise, o que provavelmente não teria acontecido com as outras mães. Possivelmente, esta atitude de Marta e Carlos de aceitação da violência física tenha alguma relação com os atrasos de pagamentos. De outro lado, a violência faz parte do cotidiano desta família, o que também pode nos ajudar a entender o silêncio quanto ao episódio relatado por Marta: “Eu gosto do trabalho delas. Até hoje não vi nada demais, não. Só uma vez que eu vi uma coisa que eu não gostei, mas isto já passou. Quando eu vim pegar o meu filho ele estava com cinco dedos aqui no rosto. Entendeu? Cinco dedos da pessoa estavam aqui no rosto dele. Então como ele é branquinho, eu percebi que tinha sido um tapa. A gente conhece e ele estava chorando muito. Os dedos era de gente grande. Faz uns seis meses. Eu ia até tirar ele da creche, mas aí falei com o meu marido e ele disse: não, deixa lá, porque a gente precisa” (Marta, 28/08/2001). Laura, por sua vez, fez observações sobre a importância da disciplina das crianças, sugerindo que a tomadora de conta deveria ser mais rigorosa: Acho que ela poderia ter mais dureza com as crianças, que elas fazem muita manha. Então as crianças são muito manhosas com ela. A minha então, era muito manhosa aqui. Elisa salientou a franqueza e a abertura de Denise, principalmente quando ela não concorda com o comportamento das crianças, o que é logo resolvido com as mães. Informou que Denise também coloca limites às crianças e ela não vê problemas, assim como aprova os castigos. Os castigos como uma forma de socialização das crianças parecem fazer parte das expectativas educativas das mães. Elas valorizam a formação de hábitos, valores e atitudes baseados numa relação de hierarquia entre adultos e crianças. 167 Quando questionadas sobre a existência de conflitos entre as mães e a tomadora de conta, Elisa e Marta relacionaram a perda das outras crianças com problemas entre Denise e alguns moradores do local. Principalmente Elisa informou sobre os conflitos vividos entre Denise e outras mães, ou com a vizinhança, sugerindo que estes conflitos possivelmente ocasionaram a perda de algumas crianças no ano de 2001. Elisa teceu críticas sobretudo com relação à vida pessoal da tomadora de conta. Para ela é importante investigar a vida pessoal de Denise, mas quando se referiu aos conflitos esclareceu que os problemas não incluem a relação da tomadora de conta com as crianças e o cotidiano da creche: “Eu tô falando do dia-a-dia, sabe? Não em relação à minha filha. Aí acaba entrando na vida pessoal e isso não tem nada a ver, eu acho que até por ela tomar conta em casa, né? A gente acaba até entrando um pouco na vida pessoal da pessoa que não tem nada a ver (...). Mas são coisas que não me dizem respeito, que eu às vezes não concordo, sabe? Porque não tem nada a ver com crianças, com horário de creche. Uma coisa que eu não concordo muito...esses adolescentes entrando aqui...ela confia, sabe? Mas é nesse ponto que eu quero dizer...é que às vezes os meninos ficam aí...É que a gente vê tanta maldade, que eu não sei até que ponto a pessoa chega. Desde que não está no horário da minha filha estar aqui, então se a minha filha está é porque eu permiti até que estivesse, mas se não é no horário, então não me diz respeito. Mas aí já é um problema pessoal dela, mesmo porque ela sai e a noite ela não tem mais responsabilidade com criança de ninguém...só com as filhas dela, né...então, aí já não vem o caso” (Elisa, 21/08/2001). Provavelmente Elisa estivesse se referindo às entradas de Fernando e um outro vizinho, que são amigos das ajudantes da creche domiciliar. Como a segurança e proteção das crianças são valorizadas pelos seus familiares, qualquer motivo que gere desconfiança com relação ao tráfico de drogas ou abuso sexual é comentado entre eles. Certamente que os preconceitos de gênero, principalmente porque Denise vive somente com as filhas, também contribuem com a avaliação de Elisa. Neste trecho de entrevista, ela relaciona a perda das crianças com problemas entre a tomadora de conta e a vizinhança, sugerindo que há preconceitos com relação ao homossexualismo de alguns amigos de Denise e sua filha: 168 “É porque aqui tinha muita criança, sabe? E de repente acabou. Foi tirando, tirando, tirando...a gente acredita que seja até por isso. Por esse entra e sai. Que era pior, não que eu tenha nada contra homossexual, essas coisas assim...tinha uns garotos que moravam ali, então eles ficavam assim...invadiam muito, sabe? Então ficava muita mistura, de entra e sai, aquele montão de crianças e são tudo adolescentes...então fica uma coisa assim, meio...eu que sempre acompanhei assim, eu sei o caráter dela (...) a Jane é esperta à beça, posso notar a diferença dependendo da pergunta dela, então eu já ia sacar alguma coisa. Mas isso nunca aconteceu, então prá mim nunca foi problema. Mas eu acredito que muita mãe tirou o filho por esse motivo” (Elisa, 21/08/2001). Marta também apresentou um discurso ambíguo sobre a relação de Denise com outras pessoas da vizinhança, apesar de não comentar sobre o que realmente acontece: Tem muita gente que não gosta dela. Eu moro aqui há sete anos, então eu não sou uma pessoa que conhece todo mundo. Mas tem muita gente por aqui que não gosta dela. Agora porque, eu não sei. O problema referente à saída das crianças foi analisado de forma diferente por Íris: Esse negócio de vizinho...só alguns que eu conheço. Que é a Elisa, mãe de Jane e uma outra que mora no quintal da casa dela. Com Denise, que eu saiba, as amizades dela são boas. Para Íris, a saída das crianças está relacionada com a crise econômica, com o desemprego das mães, o nascimento de outros/as filhos/as e com a idade avançada das crianças maiores, que permanecem em casa nos turnos em que estão afastadas da escola: “agora que pegou mais idade, tirou, deixou com algum parente, que aí não tem que pagar. A pessoa já ganha pouco, porque quando é pequeno a gente tem que deixar, porque não vai poder deixar sozinho. Mas quando pega uma certa idade já começa a deixar sozinho. Tem uma ali embaixo que as filhas ficavam com Denise. Agora uma tá com nove anos e fica com a outra em casa. E as outras que eu sei, a maioria ficou desempregada. Aí tirou. Mas tem umas duas ou três mães que falou: assim que voltar a trabalhar, os filhos voltam para cá. Quer dizer, elas gostam, não tem do que reclamar” (Íris, 28/08/2001). 169 Nesse depoimento de Íris é possível perceber o quanto a creche domiciliar substitui as redes de apoio familiares, pois quando as crianças são maiores elas podem ficar sozinhas. Provavelmente as tensões apontadas pelas mães, especialmente no que diz respeito à vida privada de Denise, se relacionam com uma percepção da tomadora de conta como alguém que deve estar sempre pronto a servir os outros. Assim como entre as mães foi dito que ela é uma amiga, uma substituta das famílias, alguém que faz mais do que tomar conta, também foram emitidas opiniões sobre a vida pessoal de Denise: Apesar de Denise ser uma pessoa profissional, em relação às mães ela é uma pessoa amiga, entendeu? (Laura, 27/08/2001). Um outro dado relevante no que se refere à saída de crianças é a presença do irmão de Denise, que mora nos fundos da creche. Carlos é reconhecido desde a adolescência como alguém ligado ao mundo das drogas. Como a violência e o tráfico de drogas provocam medo entre os familiares, as queixas freqüentes de Denise com relação ao comportamento do irmão podem sugerir que ela perdeu crianças devido aos comentários dos vizinhos e familiares sobre a conduta de Carlos. A entrada de jovens que são amigos de Nara pode aumentar as suspeitas de envolvimento com drogas, assim como as suspeitas de violência e abuso sexual com as crianças. Elisa, Marta, Laura e Íris não aprovam a presença da música funk na creche. Como Nara e Bia comumente ouviam e dançavam músicas desse estilo com as crianças, as mães se posicionaram contra o funk, que para elas está associado à violência e ao apelo sexual: “Eu tenho pavor de funk, então eu sou uma pessoa até abençoada, porque Jane não é ligada. Às vezes ela dança um pouquinho, mas a roupa dela...ela nunca pediu para colocar uma roupa indecente, essas coisas, assim, sabe? Aí às vezes quando ela canta, eu não gosto, porque eu acho as letras muito pesadas, não tem nada a ver com criança...então eu procuro colocar as coisas bem claras para ela (...) canta outra coisa, aí ensino, que ela tem a fita de cantigas de criança” (Elisa, 21/08/2001). “Eu acho que esse negócio de pagode, acho que não influi em nada (...)o que influi muito é o funk. Mas só isso mesmo, algum rap de funk que tem palavrão ou violência” (Laura, 27/08/2001). “Tem umas coisas que eu acho muito impróprias (...) esse negócio de funk, eu não gosto, mas as outras coisas eu vejo com naturalidade. O Mateus já nem gosta dos outros tipos de músicas. Ele quer mais ouvir 170 funk porque vê muito na TV, quando ele está em casa, ele prefere que botem um funk prá ele” (Íris, 28/08/2001). “Eu só não gosto do funk. Eu sou contra elas dançarem na frente deles. Isso aí eu já não concordo. Essas músicas de funk são todas pornográficas, né. Então ensina as coisas erradas prás crianças. O Daniel luta, dá soco na gente, então acho que ele está aprendendo, né? Ensinar a dançar funk, eu também não gosto” (Marta, 28/08/2001). Como vimos na introdução, o funk é um estilo de música que no local adquiriu uma imagem de violência. Como houve uma época em que os bailes funks resultavam em brigas ou tiroteios, possivelmente as mães queiram evitar que seus filhos/as convivam com estas manifestações. Um aspecto que as cinco mães valorizam é o da mistura de idades na creche domiciliar. Assim, elas disseram que as crianças menores aprendem a se relacionar com as crianças mais velhas, bem como consideram importante que elas mantenham interações com crianças diferentes, com outras idades e sexos: “O Marcos antes não se relacionava muito bem com as crianças, ele batia muito. Hoje ele sabe que não se bate em criança pequena e está mais calmo” (Juçara, 24/08/2001). “Eu acho legal, porque a criança quando é bebê se desenvolve com uma criança mais velha do que ela. Tem criança que tem dificuldade para falar, então quando vê uma criança maior, já tem a curiosidade de aprender e fazer o que a outra criança está fazendo. Então desenvolve e fica mais esperta” (Laura, 27/08/2001). Mas Elisa, que vê com positividade as diferenças de idade, também observou que isto só é possível num espaço com poucas crianças, e que num grupo maior seria difícil de controlar os interesses diferentes. Entretanto, esta aceitação das diferenças de idades apresenta outros vieses. No que diz respeito à avaliação do trabalho de Denise na socialização das crianças, algumas delas esbarram em preconceitos, que no fundo reproduzem os modelos de mãe, mulher, homem e pai que elas próprias vivem nas suas casas. Para Laura é preciso pulso forte para se educar 171 uma criança. Vimos como ela se expressou a respeito das manhas das crianças. O pulso forte, para Laura, está associado a educar para a obediência, o que se baseia em hierarquia e autoridade entre as pessoas mais velhas e as crianças. Entretanto, ela não vê diferenças entre meninos e meninas nas brincadeiras. O que não acontece com Marta, por exemplo. Para Marta é preciso ensinar o que são coisas de meninos e o que são coisas de meninas. Assim, ela não vê com positividade as brincadeiras que não estabelecem uma divisão de papéis sexuais entre as meninas e os meninos: O meu filho quando vê uma boneca, ele quer pegar a boneca. Mas é a convivência...Aí eu brigo com ele e digo: Daniel, você não pode brincar de boneca, você tem que brincar de carrinho. Aí ele larga a boneca. Elisa fez comparações com a educação da roça e da cidade grande. Na sua perspectiva, as crianças da cidade grande são mais espertas e atualmente está tudo muito liberado. Na roça há muitas regras e ela disse que apesar do seu pai ter exagerado e ter sido radical, ele soube dar educação para os filhos. Ela também vê diferenças entre os meninos e as meninas, o que se acentua quanto maior for a idade. Ela justificou dizendo que as conversas são diferentes e enquanto os meninos falam em cafifas, as meninas falam em bonecas. É interessante registrar que Elisa faz uma análise de que estas diferenças são criadas pela família e pela sociedade: porque menina é educada para lavar a louça e menino para namorar. Então a família já ensina errado. A mãe reprime: você não faz isso que é coisa de mulher, vão botando maldade que a criança não tem ainda. 172 3.4 CRECHE DOMICILIAR E DELEGAÇÃO DA FUNÇÃO MATERNA “Quem vem contar-me uma história Dos meus tempos de menina? Quando eu era pequenina, A minha ama contava Aquela história em que entrava Uma menina e um papão. Eu, ao ouví-la, chorava. A fábula é outra agora: A menina já não chora No meio da escuridão. Quem tem medo é o papão” (Natália Correia) As cinco mães entrevistadas vivem em famílias nucleares constituídas de um casal com filhos/as. Neste modelo geralmente o homem é o provedor e o chefe da família e as responsabilidades pelos/as filhos/as estão centradas quase que exclusivamente na figura feminina. Ocorre que três destas mães são as provedoras das famílias durante a maior parte do tempo. Nos casos de Juçara e Laura os cônjuges são os provedores, mas quando elas trabalham responsabilizam-se pela casa e pelas crianças. De forma geral, quando os cônjuges se envolvem com a casa ou filhos/as, passeiam nos finais de semana ou levam as crianças à creche depois que as mulheres saem para o trabalho, ou são responsáveis pelas obras que acontecem nos quintais divididos com outros familiares, ou em terrenos próprios, como no caso de Elisa e Neuci. Quando as mães trabalham, seja para sustentar a casa, para aumentar a renda familiar ou para conseguir uma cota de felicidade pessoal, como é o caso de Juçara, obviamente não conseguem cuidar dos/as filhos/as como gostariam, ou como a sociedade espera que elas façam. Sentimos que há uma expectativa muito forte em torno da função materna nesse grupo. Ser mãe é viver exclusivamente para os/as filhos/as e para o lar. As mulheres que trabalham vivem um dilema: como cuidar da casa e dos/as filhos/as e ao mesmo tempo trabalhar para obter uma renda? Como elas não conseguem resolver este dilema, porque não há parentes ou vizinhos que possam cuidar das crianças em tempo integral, adotam uma medida paliativa, que é pagar uma outra mulher para tomar conta dos/as filhos/as. Este tomar conta adquire sentidos de 173 afeto, carinho, responsabilidade, controle da alimentação, da higiene, da saúde, do sono, e do desenvolvimento de hábitos e valores de educação em que as crianças devem obedecer às pessoas mais velhas, numa ordem de hierarquia bem definida. Não percebemos qualquer intenção das mães, de que seus filhos/as tenham uma experiência educativa mais sistematizada. Porém, também esperam que as crianças possam brincar na creche e demonstram satisfação quando Denise assume uma postura lúdica e carinhosa com os meninos e as meninas. Quem cumpre as funções das mães, uma vez que os cônjuges não participam em pé de igualdade na criação dos/as filhos/as, é uma outra mãe, sem cônjuge, cuja vida está voltada para a criação e sustento das duas filhas e para a busca de sobrevivência. Esta mulher é conhecida no local como a tomadora de conta de crianças, para a qual as cinco mães delegam a função de cuidar e educar seus filhos/as. Trabalharemos neste item com as reações e resoluções das mães frente a uma problemática: as crianças chamam a tomadora de conta de mãe na creche e de tia quando estão em casa, ou pode acontecer o contrário, isto é, elas podem chamar a mãe de origem de tia e Denise de mãe. Vimos como outras modalidades de creches não resolvem a problemática das mães, que trabalham em serviços domésticos e necessitam deixar os/as filhos/as mais do que oito horas por dia, incluindo alguns finais de semana, ou feriados. Ocorre uma educação familiarista na creche domiciliar, que se baseia na delegação das funções dos familiares das crianças para a tomadora de conta. 3.4.1 Quando as crianças chamam Denise de mãe No capítulo anterior analisamos como Denise reage quando as crianças lhe chamam de mãe e vimos como há ambigüidades nos seus posicionamentos, pois ela se define como mãe substituta, tomadora de conta, psicóloga, professora ou tia. Pensamos que há uma relação entre esta diversidade de papéis e as expectativas e desejos das mães. Como elas esperam que a tomadora de conta seja uma mulher capaz de resolver seus problemas e criar seus filhos/as, obviamente ocorrem tensões, principalmente da parte de Denise. Neste item nos deteremos nos sentimentos experimentados pelas mães e como elas tratam da questão com as crianças. 174 Os filhos de Juçara, Marta, Íris e as filhas de Elisa e Laura começaram a freqüentar a creche domiciliar desde que eram bebês. Ocorre que estas crianças passam muito mais tempo com Denise do que com as mães de origem. Logo, chamam a tomadora de conta de mãe. Embora Denise algumas vezes corrija: mãe, não, tia, em inúmeras situações observadas as crianças referiram a ela como a mãe. Mesmo em um universo pequeno, as reações entre as mães não são idênticas. De forma geral, elas reconhecem que Denise é mais mãe do que elas próprias, pelo pouco tempo que lhes resta para conviver com os/as filhos/as. Assim, parecem entender as razões pelas quais as crianças chamam Denise de mãe e não discutem este problema dentro da creche. Elisa e Íris procuram resolver estas questões com os/as filhos/as, mas Marta, Juçara e Laura não discutem o problema, porque possivelmente sabem que esta é uma situação temporária, uma vez que elas são as mães de origem e mantêm laços de consangüinidade com as crianças37. Nós supomos que as interpretações das mães também se relacionam com uma certa clareza a respeito da temporalidade da situação, pois Denise as substitui no período em que as crianças necessitam da presença de um adulto que as proteja. Certamente haverá um dia em que a figura de Denise não será necessária. Entretanto, isto não significa que algumas mães não sofram com a situação. Ao contrário, este é um tempo doloroso para algumas delas, como veremos. Pensamos que um dado pode mediatizar nossas análises: esta é uma relação comercial que pode ser interrompida a qualquer instante. Não se trata da circulação de crianças entre vários adultos num grupo de parentesco. Mesmo que estas crianças circulem na família da tomadora de conta, as mães pagam os serviços, fazem acordos e têm expectativas que certamente interferem no modo como Denise organiza seu trabalho. Juçara disputa com o cônjuge a necessidade de trabalhar fora de casa. Ela disse na entrevista que trabalha para aumentar a renda familiar, para oferecer aos filhos tudo aquilo que não teve na infância. Por outro lado, Juçara contou que nas sextas-feiras ela costumava sair do trabalho para conversar e beber com as amigas e que chegava por volta das 22 horas na creche. 37 No estudo de Fonseca (1997) sobre famílias dos meios populares do início do século XX, ela observa que a circulação de crianças em outras famílias não acarretava problemas maiores, porque o maior aliado das famílias era a própria noção de consangüinidade. Logo, a afeição no sentido de acompanhamento pessoal e íntimo dos filhos não era prioritária. A responsabilidade das famílias era zelar pelo bem de seu filho, não necessariamente de 175 Tal situação provocava conflitos em casa. O marido foi descrito como um homem desconfiado, que bebia e às vezes se tornava violento. Em suma, João não quer que Juçara trabalhe porque sente ciúmes. Conforme comentamos anteriormente, algo mais move Juçara, em comparação com as outras mães. Ela quer sua cota de satisfação pessoal, porque parece que ela não se sente à vontade nos papéis de mãe e esposa em tempo integral. Juçara é cobrada pela mãe e pelo marido e quando o filho mais velho ficou doente faltou algumas vezes ao trabalho e ficou desempregada. O fato de Juçara trabalhar movida por um desejo de satisfação pessoal, produz nela reações diferentes das outras mães, quando seu filho chama Denise de mãe. Juçara se definiu como uma mãe nervosa, que não tem paciência e perde o controle com os filhos. A mãe de Juçara também reconhece que Denise toma conta dos filhos melhor do que ela. Assim, Juçara não se culpa por deixar as crianças na creche, porque seu desejo quando trabalha é estar fora de casa. “Eu me sinto normal, porque ela trata eles bem...porque ela é uma ótima pessoa, uma mãe exemplar. Você vê pela Nara, pela filha mais nova. Tanto que no Dia das Mães a gente vem aqui. O Marcos até deu um coração prá ela, acho que tá até na sala, foi o Marcos que deu. Nessa parte eu não tenho ciúmes, não. O pai tem ciúmes dela com as crianças, mas eu não” (Juçara, 24/08/2001). Logo, o ciúme e o sofrimento ela atribui ao marido. Isto nos faz perguntar se José está sofrendo somente porque seus filhos chamam Denise de mãe, ou também porque ele não quer ver Juçara que é nova, bonita e sorridente na rua? “É porque ele é muito ciumento com as crianças. Então o Marcos e o Mauro são muito agarrados com Denise. Aí às vezes quando ele vinha buscar as crianças aqui, elas ficavam agarradas no pescoço de Denise e não queriam ir embora e ele falava: ah, as crianças gostam mais dela do que de mim. Porque Denise toma conta muito bem deles e ele fica meio receoso e com ciúmes das crianças gostarem mais dela do que dele. É pai, né?” (Juçara, 24/08/2001). conviver com ele, e a identidade familiar, centrada nos laços de sangue, era garantia suficiente para saber que, a longo prazo, o vínculo não seria rompido. 176 Elisa apresenta reações diferentes de Juçara. Ela, dentre todas as mães, é a que sente mais ciúme e que procura conversar com a filha, como estratégia de resolução dos conflitos que experimenta. Elisa não se sente bem quando sua filha chama Denise de mãe. Como as outras mães, ela não discute a situação na creche, porque no fundo compreende que este chamamento denota um sinal de que Jane é bem tratada e que gosta de Denise. Por um lado, isto resolve seu dilema de deixar a filha com alguém que a cuide e proteja com carinho. Por outro lado, ela se culpa pelo pouco tempo dedicado à filha e sofre com isto. Elisa está sempre presente na creche para conversar com Denise e dar uma espiada no que acontece. Como costuma sair mais tarde para o serviço, entrega Jane na creche após às 9 horas. Geralmente ela fica alguns minutos na cozinha ou na sala conversando com Denise e com as crianças. Seguidamente ela fazia recomendações: hoje não é para lavar o cabelo de Jane, porque ela está gripada,” ou “é preciso dar Cataflan antes do almoço, entre outras. De todas as mães, ela sempre pareceu a mais preocupada e aflita com a filha. Nas avaliações sobre o trabalho de Denise, vimos como ela se preocupa com a entrada de jovens na creche e com os boatos dos vizinhos sobre a vida pessoal da tomadora de conta. Também vimos como Elisa não hesitou em romper temporariamente sua relação com Neuci, como estratégia para combater o alcoolismo dele que, na sua ótica, estava prejudicando a educação de Jane. O trabalho fora de casa representa, para Elisa, uma necessidade de sobrevivência quando a renda familiar é insuficiente. Logo, deixar a filha na creche domiciliar e aos cuidados de Denise para ela não é algo tão simples. Elisa paga mais do que as outras mães e contribui com o décimo terceiro de Denise. Elisa sente ciúme desta relação entre a filha e Denise, ao mesmo tempo que reconhece que quando Jane chama Denise de mãe é porque ela está recebendo um bom tratamento. Por isto, procura esclarecer e conversar com a filha, sobre qual a diferença entre a mãe de origem e a tomadora de conta: “Eu não demonstro meu ciúme, mas às vezes eu penso, poxa eu que sou mãe e ela participa melhor das coisas engraçadas que ela faz do que eu... Mas do mesmo lado eu fico feliz que ela tem aquele carinho de achar que ela é a mãe, aí é sinal que realmente ela se sente uma filha. Dá carinho, dá 177 atenção que ela precisa, que às vezes na hora eu não posso dar, então ao mesmo tempo que eu fico meio enciumada, eu fico feliz em saber que ela fica bem. Teve um tempo quando ela era menor, que ela falava que tinha duas mães. A mãe um e a mãe dois. A mãe um era a tia Denise que ficava de dia e a mãe dois era eu. Ela entendia assim, ela tinha uns dois aninhos. Aí depois eu fui deixando, ela foi crescendo também, aí passou a chamar de tia. Eu sempre falava com ela, minha filha a Tia Denise é mãe um prá você porque ela fica com você de dia. Então a mamãe chega de noite, por isso eu sou mãe dois. Mas quem é sua mãe sou eu. Então fui deixando assim sem problemas e...mesmo se ela continuasse, também não ia ligar não. Acho que até ia acostumar com a idéia. É melhor chamar de mãe, do que de madrasta. Aí que eu ia ficar triste. Realmente eu acho que nenhuma madrasta é igual a mãe. Acho que não tem pessoa para ter paciência igual uma mãe tem. Uma mãe verdadeira, porque o que tem de mãe aí que é só biológica...Jane me faz de boneca na mão dela, sabe? Eu procuro atender porque é pouco tempo que eu tenho, não que eu faça todas as vontades, mas as coisas que eu acho que não vão prejudicar o caráter dela, eu acabo fazendo. Então eu não acho que isso vai atrapalhar o desenvolvimento dela” (Elisa, 21/08/2001). Íris, que viveu uma infância difícil, devido ao alcoolismo do pai e brigas freqüentes em casa, está satisfeita com seu casamento, que para ela representou uma nova vida. Íris ainda parece apaixonada por José. Quando ela fala sobre o cônjuge seus olhos brilham e ela descreve a vida a dois como algo tranqüilo. Ela é a mantenedora, mas durante a coleta de dados ele estava trabalhando. Nos finais de semana José ajuda Íris nas tarefas da casa. O fato do filho mais novo freqüentar a creche domiciliar e chamar Denise de mãe, para Íris, é algo vivido de forma menos tensa do que por Elisa. Como Íris tem um outro filho portador de necessidades especiais, ela e o cônjuge se ocupam intensivamente com o menino, que recebe atendimento semanal no Rio de Janeiro e estuda em uma escola pública do bairro Saudade. Provavelmente este envolvimento com o filho mais velho e a amizade que ela sente por Denise podem explicar porque Íris encara com naturalidade que seu filho chame Denise de mãe: “Não, eu até gosto porque eu sei que tá tratando ele bem. Porque ele me chama de mãe também. Mas não é sempre, tem vezes que ele me chama e tem vezes que ele me chama mais de tia. Quando tá eu e Denise junto e ele chama a tia, as pessoas não sabem se é eu, ou se é ela. E em casa ele chama, ô tia e eu falo: não é tia, é mamãe. Mas aí ele esquece e chama de 178 tia de novo. É porque ela trata ele bem. Ela fica com ele desde neném. Ele entrou aqui e não tinha um aninho, ele tinha uns dez meses. Então ele se acostumou demais a ela. Ela levava ele em pediatra, tudo prá mim. Então ele tem mais ela como mãe, do que eu própria. Porque quando eu trabalho nos sábados, ele fica direto com ela, então ele fica mais tempo com ela do que comigo” (Íris, 28/08/2001). Mas isto não significa que Íris também não sinta ciúme, principalmente porque Mateus sente falta de Denise e visita a creche nos feriados e finais de semana em que ela não trabalha. Ao mesmo tempo em que reconhece que bate o sentimento de ciúme, ela procura entender as razões de seu filho: “Eu fico meio enciumada, mas é coisa que passa logo. Também ela não tem culpa, né? Porque ele fica melhor com ela do que comigo. O dia que ele fica comigo em casa, ele chama querendo vir prá cá. Domingo ele fala: me leva na tia Denise, aí quando tá comigo, ele chama ela de tia (...)” (Íris, 28/08/2001). Laura atualmente está em casa cuidando do bebê e tirou Patrícia da creche quando parou de trabalhar. Para Laura, trabalhar e cuidar da casa e dos filhos não é algo fácil de conciliar, embora tenha dito que necessita trabalhar porque o salário do marido é muito baixo. Mas se Renato recebesse um salário maior, Laura possivelmente ficaria em casa cuidando da filha e do bebê. Das cinco mães, ela foi a única que reclamou da falta de uma disciplina mais rígida com as crianças dentro da creche domiciliar. Provavelmente ela tenha enfrentado problemas quando a filha saiu da creche e por isso falou que Denise deixa as crianças com manha. Laura também reconhece que Patrícia estava muito agarrada com Denise e que por isso a menina a chamava de mãe. Ela não manifestou sentimentos de culpa, mas o ciúme parece evidente quando culpa Denise por deixar as crianças com manha: “Então ela era muito agarrada com a tia Denise. Tanto é que devido a ela ter ficado muito tempo com a tia Denise, a tia Denise não era a tia Denise, era a mãe Denise. Mas ela é uma ótima pessoa, eu gosto dela, mas o negócio dela é que ela dá muita manha e as crianças são muito manhosas em relação a isto” (Laura, 27/08/2001). 179 Marta não está satisfeita com o casamento e com o trabalho. Ela é responsável pelo sustento da família e está cansada de trabalhar, ganhar pouco e não ter qualquer ajuda do cônjuge. Quando Carlos trabalha, gasta o salário com drogas e bebidas. Questionamos o que mantém Marta atada a este casamento, se ela e o filho sofrem violência quando Carlos está alcoolizado. As razões pelas quais ela continua na relação não são para manter um chefe ou provedor. Marta disse que ainda está casada, porque sente medo das perseguições do cônjuge. Mas também supomos que ela não quer ficar só e voltar para a casa dos pais, uma vez que está com 39 anos e num segundo casamento. A relação de Marta e Carlos com o filho é difícil, e Denise e suas ajudantes diziam que o menino não apreciava ficar em casa, que ele chorava na presença dos pais e ficava mais calmo na creche. No período das observações constatamos que mesmo com a chegada de Marta do trabalho, Daniel continuava entrando e saindo na creche. Nos finais de semana a mesma situação se repetia. Como Marta disse estar cansada de trabalhar, fazer o serviço da casa, dormir e acordar de novo para trabalhar, ela não consegue dar atenção para Daniel, mesmo nas horas em que está em casa. As atribulações e brigas do casal fazem com que o menino se desloque para a casa de Denise. Marta disse não sentir ciúme quando o menino chama Denise de mãe: Entretanto, algo aqui nos parece problemático com relação a Daniel. Ele sofre com a relação dos pais e com a violência cotidiana. Na creche domiciliar regularmente estava de castigo, e Denise não era carinhosa com ele como era com as outras crianças. Nesse grupo de mães a função materna, que consideramos uma construção social e cultural internalizada desde que somos meninas, é dividida com Denise, que recebe um pagamento pelo que faz. Esta é uma relação comercial que ocorre por meio de um contrato informal, mas que prevê normas e obrigações de ambas as partes. A transmissão/delegação da função materna, que precipitadamente poderíamos classificar como prejudicial ao desenvolvimento das crianças, numa classificação carregada de um preconceito de classe, característico das camadas médias, para as cinco mães é algo encarado com naturalidade, ainda que experimentem sentimentos como ciúme e culpa. Tais sentimentos têm uma explicação que não é apenas de ordem simbólica ou psicológica, mas material. Há condições materiais de trabalho e de existência que não permitem a estas 180 mulheres passar um tempo maior com os/as filhos/as, para fazer coisas divertidas e brincar, por exemplo. As condições materiais de existência não permitem que elas fiquem com os/as filhos/as, seja em tempo integral ou mesmo parcial. O desejo de quatro delas é de estar mais perto de suas crianças, em uma família conjugal, na qual os homens possam trabalhar e ganhar o suficiente para manter a família. Mas tal situação se inviabiliza e elas delegam à Denise a função materna. Para estas mães, quando as crianças chamam Denise de mãe dentro da creche e de tia na presença dos pais, ou quando chamam Denise de mãe dois e a mãe de origem de mãe um, isto adquire um sentido: elas estão sendo bem tratadas e gostam da tomadora de conta. Este é o termômetro que permite medir a temperatura desta delegação da função materna. É por isto que as mães não levam tal problemática para a creche domiciliar. Elas resolvem o problema do ciúme e da culpa conversando com os/as filhos/as ou deixando o tempo passar, porque certamente quando maiores eles e elas saberão distinguir quem é a mãe de origem. Não compreendemos tal situação como um problema insolúvel, ou como algo que possa prejudicar o desenvolvimento emocional das crianças. Quando Fonseca (1997, p. 534 - 535), analisa os significados do que é ser mãe entre mulheres pobres do início do século XX, escreve que é necessário tirar a experiência materna do isolamento conjugal e situá-la dentro de redes sociais que perpassam a unidade doméstica. A circulação de crianças entre uma casa e outra é para ela uma prática particular dos grupos populares, cujas famílias são extensas e que necessitam acionar estratégias coletivas para a sobrevivência das crianças. O cuidado das crianças nem sempre cabia à mãe biológica, mas às avós, criadeiras e mães de criação. Nosso caso apresenta algumas singularidades, mas Denise não deixa de ser uma mãe de criação, embora receba um pagamento mensal para exercer tal função. Entre as mães e as crianças tudo parece mais resolvido do que para Denise, que se ressente por fazer mais do que as próprias mães. Provavelmente sinta que a delegação, por maior duração que tenha, um dia terá um fim. 181 3.5 SÍNTESE: DELEGAÇÃO E PERSPECTIVA FAMILIARISTA DE EDUCAÇÃO Os sentidos do trabalho para as mães se relacionam com suas trajetórias de vida, com o modo como elas vivem as relações familiares com os cônjuges e os/as filhos/as. Como a estrutura de família nuclear tem importância nesse grupo, elas desejam que a tomadora de conta possa dar continuidade aos laços de parentesco e à educação do tipo familiar que elas próprias não conseguem oferecer, por suas limitadas condições de existência. A afetividade e os cuidados são valorizados, assim como uma educação para a formação de hábitos, valores e atitudes baseados na obediência aos mais velhos. Entretanto, esta entrega dos/as filhos/as para a tomadora de conta é algo vivido com culpa, ciúme ou com uma certa sensação de alívio, como no caso de Juçara. Todos estes sentimentos estão carregados de materialidade, das condições de vida e trabalho destas mulheres, bem como das suas vivências afetivas e de estratégias para manter a estrutura familiar. As mães convivem com a situação dos filhos/as chamarem Denise de mãe, apesar do ciúme e da culpa. Elas têm explicações e lógicas bem estruturadas a respeito da problemática. O fato da maioria delas circular no mesmo quintal dos outros parentes, assim como as suas crianças circulam na casa de Denise, mesmo quando elas não estão trabalhando possivelmente proporcione esse caráter aberto à situação. Lembramos do que escreve a antropóloga Fonseca (1997, p.536) a respeito do caráter aberto das casas construídas no mesmo quintal e que proporcionam que “as crianças se infiltrem pelas fronteiras dessas casas burlando os limites entre uma família e outra”. Ao longo do capítulo fornecemos exemplos, como o de Daniel, que mesmo após a chegada da mãe continua circulando na creche, ou de Jane e Mateus, que freqüentemente visitam Denise, nos horários fora do expediente de trabalho. Exploraremos duas dimensões que perpassam os sentidos do trabalho de tomar conta de crianças para as mães. A primeira dimensão se refere às expectativas das mães de que na creche domiciliar ocorra uma educação de tipo familiarista. Este é um conceito que descobrimos no estudo de Torres & Silva (1998) que encontram, nos setores menos escolarizados e com menores rendimentos, uma tendência mais familiarista (deixar as crianças aos cuidados de uma ama, ou de parentes mais próximos) na escolha dos serviços de guarda 182 para as crianças, embora a partir dos três anos estes setores prefiram serviços que preparem para a escolarização como forma de evitar o insucesso escolar. Outras autoras, como Bloch & Buisson (1998), escrevem sobre esta relação entre as perspectivas de educação das famílias e das tomadoras de conta de crianças (denominadas por elas de assistentes maternais). Para estas autoras a escolha da creche domiciliar não é apenas uma escolha material e temporal, mas simbólica, ou “uma reinterpretação da herança material e simbólica das origens familiares”. Encontramos similaridades com nossa investigação, porém as singularidades decorrentes do contexto estudado merecem atenção. Para as cinco mães, Denise substitui uma mãe, cria as crianças, e elas preferem um ambiente acolhedor que funcione como uma família, diferente das creches e pré-escolas legalizadas. Também esperam que os valores e hábitos familiares sejam estimulados dentro da creche domiciliar e que seus filhos sejam protegidos dos perigos da rua. Para elas é importante conhecer a vida pessoal da tomadora de conta, logo não é qualquer mulher que pode fazer o que elas almejam. Ocorre um certo controle da vida de Denise, dos acontecimentos da sua casa, assim como algumas mães fazem programações junto com ela. Foi dito, por exemplo, que Denise e as mães formam uma família. Nós optamos pelo conceito em foco tendo em vista estas questões. Ocorre no espaço estudado uma reprodução do ambiente familiar das crianças. Não esqueçamos, porém, que tal reprodução só acontece porque existe uma simultaneidade de objetivos e intenções de ambas as partes, pois Denise não trabalha com crianças cujas famílias tenham valores muito distantes daqueles que ela considera importantes. A segunda dimensão diz respeito à relação das mães com a creche domiciliar, que caracterizamos como uma relação de delegação. Este é um conceito desenvolvido por Singly & Maunaye (1996, p. 99-100)38 em pesquisa na França sobre mães que delegam os cuidados dos/as filhos/as pequenos/as e doentes a outras pessoas. Considerando nosso contexto, compreendemos que as mães transmitem por delegação a função materna que elas não podem exercer em tempo integral para a figura da tomadora de 38 SINGLY François de e MAUNAYE, Emmanuelle. Le rôle et sa délégation. In: KAUFMANN, Jean–Claude. Faire ou Faire-Faire? Famille et services. Presses Universitaires de Rennes: 1996. 183 conta. Nesse sentido, conferem alguns direitos a Denise para agir na ausência delas. Tal delegação envolve outras atribuições e responsabilidades, como levar ao pronto-socorro quando necessário, cuidar das crianças quando estão doentes, acompanhar a vida escolar e substituir a mãe em eventos da escola infantil, marcar exames médicos, preparar e controlar a sua alimentação, acompanhar o desenvolvimento de cada uma delas, seus primeiros passos e primeiras palavras, entre outras. No desenvolvimento deste último item exploraremos a dimensão da educação familiarista e da delegação da função materna dialogando com autores e com outras experiências de creches domiciliares, além de estabelecer relações com nossa empiria. Como temos argumentado, o sentido da creche domiciliar para as cinco mães não é o de uma creche ou pré-escola legalizada. Elas não desejam para os/as filhos/as menores de três anos experiências pedagógicas mais sistematizadas. As mães delegam os cuidados e educação dos/as filhos/as, em tempo integral, para Denise. Elas querem que ocorra na creche uma educação do tipo familiarista, que seja coerente com os hábitos, valores e atitudes do meio sócio-cultural de origem das crianças. Isto de certa forma explica porque elas desejam conhecer a vida pessoal da tomadora de conta, o tipo de educação que ela proporciona as filhas, o modo como organiza a vida doméstica e a casa, para depois fazerem suas escolhas. É necessário que haja uma correspondência entre a forma de Denise criar e educar suas filhas, com o tipo de cuidados e educação que as mães desejam para os seus. Quando as mães dizem preferir que a tomadora de conta trabalhe com um número pequeno de crianças, porque assim elas recebem mais atenção, provavelmente isto tem um outro sentido, que é o de propiciar uma educação familiarista que dê continuidade aos laços de parentesco entre as crianças e Denise. Não é por acaso que elas argumentam que quando as crianças chamam Denise de mãe, isto representa satisfação pelo carinho e atenção que recebem na creche. Elisa explicou tal sentimento de certa forma com preconceitos, quando disse que é melhor chamar Denise de mãe, do que madrasta. Marta se distingue das outras mães, porque é cunhada de Denise. Ela foi muito clara ao dizer que prefere deixar o filho com um familiar e que não confiaria em outra pessoa. Entretanto, os maiores conflitos ocorrem justamente com as pessoas ligadas por um laço de 184 parentesco. Os problemas com atrasos de pagamento envolvem o irmão de Denise, assim como os castigos e punições são quase sempre aplicados em Daniel. No caso de Marta, Carlos e Daniel, a perspectiva familiarista assume outros contornos, porque Denise não quer trabalhar sem um pagamento. Enfatizamos, portanto, que acontece uma educação familiarista que é concretizada pela delegação da função materna. Isto é radicalmente diferente de deixar os/as filhos/as aos cuidados de um parente que não cobre uma taxa pelos serviços prestados. No ano de 2001 fizemos contato com o Projeto de Formação de Amas na cidade de Guimarães, em Portugal39. Alguns achados do projeto, nos permitiram estabelecer vínculos com nosso objeto de estudo. Um deles diz respeito à proximidade entre familiares e amas, no que diz respeito à escolaridade, à situação econômica e às estratégias de educação dos/as filhos/as. O ambiente familiar da casa da ama apresenta similaridades com o da família da criança. O estilo de educação das amas40 e as estratégias de promoção do desenvolvimento estão muito próximas daquelas dos familiares. Como existe uma certa compatibilidade entre os pais e as amas foi dito, por exemplo, que os pais que têm um nível de escolaridade mais alto procuram as amas que têm também um nível de escolaridade mais alto. Portanto, há uma coerência muito grande entre o estilo de educação dos pais e o estilo de educação da ama41. 39 Este projeto foi acompanhado durante o doutorado sanduíche em Portugal, no ano de 2001. Ele faz parte de um Programa Nacional de Apoio a Crianças em situação de Risco ou de Desigualdade. Esclarecemos que o termo amas tem o mesmo significado de tomadoras de conta. O objetivo do projeto era trabalhar com crianças e amas que não estivessem legalizadas pela Seguridade Social. No final dos anos 90 foi feito um levantamento e caracterização das amas e crianças em cinco freguesias rurais do Conselho de Guimarães. Em uma segunda etapa foi realizado um projeto de formação com as 47 amas incluídas no levantamento. A título de esclarecimento, Portugal é o país, no conjunto da União Européia, com maior número de mães trabalhadoras, sendo também o país onde essas mães trabalham mais horas. As taxas de cobertura dos equipamentos públicos destinados ao cuidado e educação das crianças são as mais baixas da União Européia. A rede nacional de educação da primeira infância é ao mesmo tempo pública e privada, e a responsabilidade política está dividida em dois Ministérios: o da Educação (crianças de três a seis anos) e o do Trabalho e Solidariedade (crianças a partir de três meses). A educação pré-escolar é gratuita somente para as crianças de cinco anos (Fonte: Unesco, Educação e Cuidado na Primeira Infância, 2002). 40 Existe uma diferença entre as amas ilegais, que fazem parte do projeto referido, e as amas da seguridade social: estas podem ter no máximo quatro crianças e se tiverem um filho com idade até três anos, só podem atender mais três crianças. Após os três anos, as crianças devem ir para o jardim de infância. No caso das amas ilegais, estas recebem as crianças enquanto os pais quiserem; não há limite de idade: no Projeto Ludo Ser foi possível encontrar crianças de 14 anos com as amas, em situação semelhante ao caso de São Gonçalo, ou seja, as crianças e adolescentes freqüentam a escola em meio período e nos períodos subseqüentes ficam com as amas. 41 Alguns pais estiveram com amas quando eram crianças. Além disso, nessa região os pais não encontram muitas opções de educação para os/as filhos/as. Soubemos, por exemplo, de uma ama que ficou acompanhando uma 185 Em nosso grupo de mães percebemos que há compatibilidades entre elas e a tomadora de conta com relação à situação econômica, ao grau de escolaridade (com exceção de Elisa e Juçara), às experiências profissionais com serviços domésticos, ao tipo de moradia que é compartilhada em um mesmo terreno com outros familiares e ao estilo de educação das famílias. No Projeto de Formação de Amas da cidade de Guimarães, foi constatado igualmente que as crianças chamam as amas de mãe, ou de segunda mãe, exatamente como em nosso estudo. A delegação e a expectativa de uma educação familiarista ocasionam sentimentos de preocupação entre algumas mães com relação à vida pessoal da tomadora de conta. Íris e Elisa relataram que são amigas de Denise e que costumam convidá-la para programações de finais de semana. Como vimos, Elisa paga mais do que as outras mães, porque disse reconhecer o esforço de Denise. Para Juçara, Denise é uma mulher que se acostumou a servir os outros, mas que não tem quem se preocupe com ela. Ela falou sobre a necessidade de que outros profissionais atuassem na creche uma vez por semana, como um médico encarregado da saúde das crianças e de Denise: porque praticamente ela toma conta das crianças, mas esquece da parte dela. Da saúde dela, das coisas dela dentro de casa e ela poderia ter uma ajuda de fora. No Projeto de Formação de Amas, na cidade de Guimarães, foi constatado que assim como as crianças necessitam de atenção, as próprias amas também precisam de apoio e a maior parte delas não encontra ajuda, uma vez que são sempre elas que oferecem apoio aos outros, seja aos próprios familiares, ou às mães e crianças com as quais trabalham diariamente. Bloch & Buisson (1998) pesquisam sobre a guarda da pequena infância na França e percebem estes serviços como um apoio no qual se mantêm laços de sociabilidade entre pais e profissionais, tal como temos observado na relação entre as mães das crianças e Denise. Estas autoras francesas encontram em seu estudo características semelhantes às encontradas em São Gonçalo e em Guimarães, com relação a educação das crianças pequenas nos meios populares. Elas observam que as crianças menores de três anos ficam com outras mulheres que tomam conta delas, podendo ser pessoas da família ou profissionais como as criança no período em que seus pais imigraram para trabalhar. Os pais da criança faziam visitas de três em três meses quando vinham a Portugal. 186 assistentes maternais42. Relatam que as creches familiares são espaços nos quais não ocorre somente a socialização das crianças, mas também dos adultos, porque acontecem trocas e solidariedades que permitem às famílias sair do seu isolamento. As redes de sociabilidade em torno das assistentes maternais não são uma regra geral, geralmente ocorrendo quando se estabelecem relações de vizinhança entre famílias, profissionais e crianças. Nós também observamos o mesmo, especialmente nos casos de Íris e Elisa que são vizinhas de Denise e mantêm com ela uma relação de amizade. Quando Bloch & Buisson (1998) escrevem que a escolha da creche domiciliar é “uma reinterpretação da herança material e simbólica das origens familiares”, isto tem sentidos que para nós também se relacionam com uma perspectiva familiarista de educação. Elas argumentam que a opção pelas creches domiciliares permite reatar com a assistente maternal uma sociabilidade característica do meio social de origem. E a dinâmica relacional entre pais e profissionais que se sentem quites se apóia sobre dons, presentes, ajudas mútuas e amizades que circulam entre eles. Ainda observam as autoras: “uma grande distância social entrava a possibilidade de reconhecer no outro e no dom recebido uma parte de si mesmo e instaura uma relação de dominação” (1998, p.66). São estes laços de sociabilidade, que também encontramos entre as mães e Denise (com exceção de Marta), que estruturam uma relação de confiança, o que igualmente possibilita que as mães estabeleçam uma relação de delegação com a creche domiciliar. No capítulo anterior, vimos como Denise vive, principalmente a delegação das crianças doentes, com dificuldades e conflitos. Analisaremos aqui um aspecto da delegação, que diz respeito à entrega das crianças doentes na creche. As mães não encontram condições de faltar ao trabalho para acompanhar os/as filhos/as doentes e, muitas vezes nem mesmo para marcar exames pré-operatórios, como no caso de Mateus. Não esqueçamos que a escolha da creche domiciliar está vinculada a esta acolhida de Denise, que não pode falhar com as mães, inclusive nos momentos mais delicados. 42 Esta parece ser uma denominação empregada para as mães crecheiras ou profissionais de creches domiciliares na França, embora tenhamos encontrado expressões como amas em Singly e Maunaye (1996). 187 Singly & Maunaye (1996, p. 99-100) 43 analisam casos de mães que delegam os cuidados das crianças doentes, e se esta delegação pode significar ausência ou presença da dimensão da mãe cuidadosa ou zelosa. Para os autores, duas dimensões intervêm na decisão das mulheres sobre cuidar ou não os/as filhos/as doentes: uma delas está ligada a identidade maternal e à concepção que as mães têm do seu papel de mães cuidadosas; a segunda está vinculada às condições de trabalho e à existência de um direito de férias para acompanhamento dos/as filhos/as doentes. Na primeira dimensão, vinculada ao papel de mãe cuidadosa estão as que pensam que é importante que as mães se ocupem dos/as filhos/as doentes, pois as crianças sentem necessidade da presença materna. A presença no trabalho, nesse grupo fica em segundo plano, pois a disponibilidade e o investimento materno em torno da criança fazem parte da definição de uma boa mãe. Este não é o caso das cinco mães entrevistadas, que delegam o acompanhamento das crianças doentes para Denise, uma vez que elas não têm qualquer tipo de proteção social que lhes permita faltar ao trabalho para cuidar das suas crianças. A segunda dimensão relaciona-se com as condições de trabalho e com a existência de um direito de trabalho que contemple a necessidade da mãe acompanhar os/as filhos/as doentes. Assim, cuidar uma criança doente não é necessariamente papel da mãe e pode ser confiado a outras pessoas. A dimensão da mãe cuidadosa não faz parte do papel maternal, pois as mães conferem mais importância ao trabalho. Esta dimensão não representa inteiramente nosso grupo de mães, porque pelo menos quatro delas não parecem colocar o trabalho em primeiro lugar e a identidade maternal em segundo. O que ocorre é que como elas não podem faltar ao trabalho, depositam toda a confiança e expectativas na pessoa da tomadora de conta, mesmo quando os/as filhos/as estão muito doentes. 43 Pensamos que é importante esclarecer quais são os modos de guarda das crianças pequenas em Paris no final dos anos 90, uma vez que os autores escrevem a partir da realidade francesa: creches coletivas para crianças de dois anos a três meses com funcionamento em média de 11horas por dia de segunda a sexta; creches familiares para uma ou mais crianças de dois meses a três anos; creches parentais que são minicreches coletivas geridas por uma associação de pais; jardins de infância municipais para crianças de dois a quatro anos; os jardins de l’opac que são geridos pela cidade e recebem crianças de dois a seis anos; os jardins maternais que acolhem crianças de dois a três anos ainda não beneficiadas por um tipo de guarda coletiva; as altas creches públicas ou privadas que recebem crianças até seis anos com ritmos de trabalho que podem variar de uma hora a muitas jornadas por semana (Fonte: MAIRIE DE PARIS. Les modes de garde. Parents à Paris. Paris: 1998). 188 É possível relacionar os casos das cinco mães com a análise destes sociólogos franceses, principalmente quando argumentam que a escolha entre acompanhar ou delegar a guarda das crianças não se explica somente pela presença ou ausência da identidade maternal, pois as condições materiais de existência também interferem na delegação. Vejamos o caso de Juçara, que distinguimos das outras mães pela necessidade do trabalho para adquirir um pouco de felicidade pessoal. Quando seus filhos estão muito doentes, ela se ressente por não conseguir uma dispensa para acompanhá-los,e as dificuldades econômicas e de trabalho interferem na resolução destas situações: “As 7:00 Marcos e Mauro são entregues pela mãe. Juçara fica na porta e conta em voz alta e agitada o caso de Mauro (bebê de sete meses) que está doente. Relata que no final de semana não encontrou a pediatra e outro médico cobrou 120,00 reais pela consulta. Como ela não tinha dinheiro, explica para Denise que comprou Mucosolvan e Cataflan por sua conta. Comenta que vai ligar para a pediatra e perguntar sobre o remédio correto. Ela tentou conseguir dispensa com a patroa pelo telefone, mas a patroa disse que é assim mesmo, que é uma virose e que o filho mais velho também esteve assim. Denise interroga um pouco sobre os remédios e ela explica que comprou genéricos, que não encontrou Mucilon (farinha) e que trouxe frutas. Entrega as frutas a Denise e pergunta se ela tem nebulizador. Denise diz que não e ela dá um beijo nos filhos e deixa na creche o carrinho do nenê” (Diário de Campo, 18/06/2001). Singly & Maunaye (1996) relacionam as decisões das mulheres de acompanhar ou delegar os cuidados com a obtenção de licença para cuidar dos/as filhos/as doentes. Uma destas decisões, que apresenta similaridades com nosso grupo de entrevistadas, diz respeito às mães que não têm direito a férias e são obrigadas a delegar o cuidado dos/as filhos/as a outras pessoas. Estas mulheres consideram indispensável a presença da mãe em conformidade com a sua identidade maternal, por isto vivem mal esta decisão, porque se sentem contrariadas ao negligenciar um papel para elas essencial, em detrimento de uma atividade profissional menos valorizada. Este é o caso de Elisa, que vive a decisão de deixar a filha doente na creche domiciliar com culpa e preocupação. Ela seguidamente fazia recomendações a respeito da importância 189 dos cuidados com a saúde de Jane: se tiver chovendo muito, não manda para a escola, é melhor não lavar o cabelo dela, ela teve febre a noite e está muito gripada. Por último, os sociólogos (1996, p. 101-103) analisam os três principais substitutos das mães, quando as crianças pequenas estão doentes, que são: a participação moderada dos pais, a ajuda das amas e o apelo aos avós. Segundo os autores os pais pouco participam das resoluções de problemas gerados pelas doenças infantis, pois o trabalho profissional masculino é considerado pelos homens e suas mulheres como mais importante, não devendo sofrer interrupções. Embora alguns homens substituam as mães com ritmos específicos de trabalho que as impedem de acompanhar os/as filhos/as, ou quando a criança pequena é gravemente doente, em geral eles não guardam os/as filhos/as doentes, porque se sentem amputados, mesmo que provisoriamente, da profissão. Como vimos no caso dos pais do nosso estudo, nem mesmo os cônjuges desempregados assumem o cuidado das crianças. Íris, Marta e Elisa não comentaram sobre algum tipo de ajuda dos pais, no sentido de acompanhar os/as filhos/as doentes. No que diz respeito à ajuda das amas 44 , Singly & Maunaye (1996) observam que as mães encontram qualidades nestas trabalhadoras que outros modos de guarda, como a creche, não apresentam. Para estas mulheres a personalização da relação afetiva é uma dimensão valorizada, porque as amas apresentam um funcionamento mais compatível com as mães. Elas oferecem horários mais flexíveis e estão sempre disponíveis nos casos difíceis, como os de doenças das crianças. Em nosso estudo a tomadora de conta explicou que a relação com as mães é uma relação que vai além, ocorrendo, inclusive, empréstimos em dinheiro quando as crianças estão doentes: 44 Sobre as amas ou assistentes maternais é importante esclarecer que em Paris elas estão agregadas pela Prefeitura (Serviço de Proteção Maternal e Infantil) e são assalariadas. Elas recebem acompanhamento de uma diretora-enfermeira-puericultora diplomada do Estado que faz visitas regulares. Esta se ocupa pessoalmente da criança e é ajudada por uma equipe que trata de cuidados médicos, psicológicos e educativos. Para favorecer a socialização e o bom desenvolvimento das crianças, as ações coletivas são regularmente organizadas por uma educadora. A duração da guarda não pode exceder 10 horas por dia ou 50 horas por semana. Um contrato assinado entre os pais, a diretora e a assistente maternal define as modalidades concretas de acolhida (horários, repasses) (Fonte: MAIRIE DE PARIS. Les modes de garde. Parents à Paris. Paris: 1998). 190 “Um homem bate no portão e Estela corre para avisar a mãe. Os outros vão atrás dela e ela grita: ‘Todos lá prá dentro!’ Denise recebe um bilhete do irmão de Juçara. Ela comenta comigo sobre o conteúdo do bilhete e diz: ‘Isso aí não é uma relação só. Vai além...’ Como ela permite que eu leia o bilhete eu anoto o pedido de Juçara: ‘Denise: Por favor se você puder me emprestar 20,00 reais eu agradeço, amanhã João vai receber e eu te dou. Por favor, se você puder me emprestar eu agradeço pois o Marcos está com quase 40 graus de febre. VIRE: Vou levar ele no médico e na volta eu passo aí na sua casa para a gente conversar. Obrigado! Amanhã João recebe eu te dou o dinheiro. Juçara Obs: Não fique muito preocupada, vai ficar tudo bem!’” (Diário de campo, 19/06/2001). Um outro ponto destacado pelos autores diz respeito à formação das amas que não são especialistas o que, para as mães da classe trabalhadora, representa uma vantagem, pois para elas é mais fácil a obtenção de uma relação equilibrada, assim como é mais raro que ocorram sentimentos de inferioridade social destas para com aquelas. Aqui podemos traçar um paralelo com os depoimentos das mães que responderam não ser preciso formação para tomar conta de crianças, justificando que amor, dedicação e atenção são aspectos importantes, assim como algumas valorizaram a relação de amizade e de solidariedade que mantêm com Denise. Ainda explicam os sociólogos que ao olhar a maioria das mulheres que utilizam estes serviços exceto as que temem a concorrência da relação da criança com outra mulher - a vida de trabalho e a vida familiar são mais fáceis de conciliar com o apoio daquelas amas que também aceitam ocupar-se das crianças doentes, quando não há perigo de contágio e riscos para as outras crianças. Para finalizar o presente capítulo, lembramos que esta delegação é paga, mas igualmente acontece uma circulação de crianças, de mães e outros vizinhos na casa de Denise. Isto proporciona certa abertura para que ela seja chamada de mãe ou tia e para que, inclusive, as mães se sintam no direito de emitir opiniões sobre a sua vida privada. Nenhuma das mães expressou expectativa de que a creche domiciliar substitua o meio natural em que se encontram crianças e adultos, pois a tomadora de conta incorpora as crianças nas atividades da casa exatamente como acontece em uma família. Vimos como as mães avaliam, informam-se no local e procuram investigar o que acontece na creche domiciliar, o que também confirma que o estilo de educação da tomadora de conta é semelhante ao estilo de educação dos pais. 191 Ocorre que esta perspectiva familiarista de educação interfere no tipo de trabalho que se estrutura no cotidiano da creche, bem como nas concepções de socialização dos meninos e das meninas, aspectos que desenvolveremos no capítulo seguinte. 192 CAPÍTULO 4. O COTIDIANO NA CRECHE DE DENISE “Quando as crianças brincam E eu as oiço brincar, Qualquer coisa em minha alma começa a se alegrar. E toda aquela infância Que não tive me vem, Numa onda de alegria Que não foi de ninguém. Se quem fui é enigma, E quem serei visão, Quem sou ao menos sinta Isto no coração” (Fernando Pessoa) Nos capítulos anteriores tratamos dos sentidos do trabalho de tomar conta de crianças para Denise e para as mães que procuram os serviços no bairro Saudade. Neste capítulo, propomo-nos examinar o cotidiano da creche de Denise, a utilização dos espaços, a organização das atividades num local que combina creche e vida familiar, as dificuldades, os acertos e, fundamentalmente, as peculiaridades desse trabalho. É um trabalho semelhante ao das creches e pré-escolas coletivas? Ou existem particularidades que o distinguem de outros espaços de cuidado/educação para as crianças pequenas? Os itens que compõem o capítulo são decorrentes das análises dos diários de campo escritos no período das observações. Entretanto, algumas informações obtidas nas entrevistas complementaram os dados coletados nas observações. Assim, utilizaremos depoimentos de entrevistas, e estabeleceremos relações com informações dos outros capítulos. Quando iniciamos as observações, as crianças que freqüentavam a creche de Denise eram: Daniel, seu sobrinho, com três anos; Mateus, com dois anos; Julinho, que completou quatro anos em julho; os irmãos Marcos, com dois anos e Mauro, com dez meses; Jane, com quatro anos; Jonathan, com seis meses; e Estela, a filha de Denise, com cinco anos45. No desenvolvimento do capítulo, algumas situações vividas por estas crianças serão referenciadas. 45 Para evitar descrições estereotipadas das crianças preferimos deixar que elas apareçam nos relatos que fomos construindo nos diários de campo. Exceto Daniel, as demais crianças são negras (Jonathan, Julinho e Jane) ou mestiças (Marcos, Mauro, Estela, e Mateus). Denominamos de mestiçagem a mistura de raças, com pai da raça 193 Este trabalho apresenta uma peculiaridade que é a combinação de creche e residência. Tudo que ali acontece envolve cenas da vida familiar de Denise. No primeiro item deste capítulo descreveremos o espaço, a entrada e o interior da casa, os cômodos, os objetos e outros detalhes que oferecem uma leitura do local no qual circulam a família de Denise e as crianças provenientes de outras famílias. No segundo item, analisamos o acolhimento das crianças. Embora não tenhamos observado os primeiros momentos das crianças e seus familiares na creche, acompanhamos comentários entre Denise, Bia e Nara sobre as dificuldades de inserção de alguns bebês. Optamos pela inclusão dos dados obtidos nas entrevistas, para descrever como as crianças e os adultos reagem nos primeiros tempos de convivência. No terceiro item tratamos do dia a dia na creche domiciliar, iniciando com uma descrição das rotinas. Mas como no cotidiano não encontramos somente atividades rotineiras, trataremos dos acontecimentos e das outras atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara. Como percebemos a presença constante da televisão na creche domiciliar optamos pelo tratamento desta questão, hoje amplamente discutida por sociólogos da infância, sensibilizados pela criação de um mercado voltado exclusivamente para os públicos infantis. Além dos acontecimentos e atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara, constatamos que as crianças também criam atividades espontâneas, todas elas baseadas no ato de brincar, na imaginação e interpretação da realidade de uma forma própria dos grupos infantis. Assim, as expressões das culturas infantis e o referencial teórico da sociologia da infância são pontos debatidos no terceiro item. Os sociólogos da infância percebem as crianças como atores sociais com uma autonomia relativa, o que produz mudanças na noção de socialização. No quarto item caracterizaremos três dimensões do processo de socialização vivido na creche domiciliar, considerando que as crianças, assim como têm suas culturas, também passam pelo crivo cultural dos adultos com a inculcação de normas, valores e comportamentos típicos das camadas populares. branca ou descendente de índios e mãe da raça negra ou vice versa. Como os pais de Julinho são separados, ele permanecia uma semana na creche de Denise e outra semana na casa de seu pai, que havia constituído nova família. A mãe de Julinho é cabeleireira e ele reside com ela e mais duas irmãs na faixa dos 17/18 anos. Jonathan vivia com a avó materna e a mãe, que trabalhava na feira vendendo verduras. Ele saiu da creche no mês de julho, 194 Por último, sintetizamos o trabalho de Denise retomando questões discutidas no final do terceiro capítulo, quando afirmamos que ocorre uma perspectiva familiarista de educação na creche domiciliar. A análise do cotidiano permitiu ampliar esta idéia, lançada no capítulo anterior, conforme veremos. 4.1 ENTRANDO NA CASA: CRECHE E RESIDÊNCIA Quando descemos no ponto de ônibus mais próximo à creche é necessário caminhar pela rua principal e dobrar uma esquina em direção à Rua do Poço, onde se localiza a casa de Denise. Esta é uma rua sem calçamento, repleta de homens conversando em grupos, bebendo ou jogando cartas, de meninos soltando cafifas, de mulheres, idosos e crianças em frente às casas e de pessoas caminhando com diferentes destinos. Perto da creche há uma casa maior com muro extenso, no qual se lê a frase: Vivos somos traídos, presos somos esquecidos e mortos deixaremos saudades. A casa de Denise localiza-se na esquina com o Brizolão46. Do lado de fora da casa, a fachada do muro está com reboco e sem pintura. O portão que dá acesso à casa de Denise é de ferro. Há duas inscrições, uma em cada lado do portão, com letras grandes e em tinta vermelha. Em uma lê-se Vende-se Sacolé a R$ 0,20; na outra, Toma-se Conta de Crianças47. Quando abrimos o portão, avistamos um pequeno alpendre na frente da residência e creche de Denise. Na fachada vemos uma janela ampla e uma porta de madeira. Há um espaço cimentado no chão, que cobre a parte da frente da casa. O lote é extenso e nos fundos há um pátio de terra com algumas árvores, entre elas uma imensa goiabeira. Nesse pátio há duas casas velhas de madeira e uma casa ainda em construção. Em uma das casas reside Carlosirmão de Denise- com a esposa e o filho e na outra residem um sobrinho e a esposa que na época esperavam um bebê. A obra pertence a Carlos, que pretende construir uma casa mais ampla para a família. em decorrência do desemprego da mãe, assim como Marcos e Mauro saíram da creche no final de julho de 2001. Outras crianças que não freqüentavam a creche em 2001 serão citadas nos depoimentos de Denise, Bia e Nara. 46 Brizolão é como os moradores do local chamam o CIEP - Centro Integrado de Educação Popular. 47 No verão Denise vende sacolé para os moradores do local. Ela havia suspendido as vendas, porque no período da coleta de dados fazia frio. 195 A creche e residência tem sete cômodos: sala, cozinha, um quarto ocupado por Denise, um outro quarto que pertence a Nara e Estela, um quarto para guardar brinquedos e dois banheiros. O piso todo é em revestimento de cerâmica e as paredes da sala, do corredor e dos quartos são de alvenaria rebocada. Somente a sala, o corredor, o quarto e o banheiro de Denise têm as paredes e tetos pintados de cor gelo. Os demais cômodos, com exceção da cozinha revestida de lajota de cerâmica nas paredes e no piso, não são pintados. Não há nenhum tipo de mobiliário apropriado para as crianças. Os brinquedos disponíveis são velhos e em pouca quantidade, assim como no pátio não há brinquedos direcionados às crianças, como balanços, escorregadores, canos, tanques de terra, entre outros. De forma geral há uma boa iluminação na sala, na cozinha, no quarto de Denise e no quarto das meninas. Nos quartos e na sala há ventiladores de teto. A casa é relativamente nova e ampla, mas alguns cômodos ainda não estão concluídos, porque Denise só consegue dar continuidade às obras quando sobra dinheiro. A entrada principal permite o acesso à sala, que é relativamente espaçosa e iluminada por uma janela grande e três janelas menores. Na sala há dois sofás com o forro gasto e coberto por capas de tecido estampado, uma pequena estante com TV, vídeo cassete, aparelho de som, fitas de vídeo da Igreja Universal e alguns cds de estilos musicais variados, como pagode, samba, funk, infantis e religiosos. Nas paredes da sala há alguns quadros religiosos e retratos de artistas de televisão como Sandy e Júnior, por exemplo. Não há gravuras, fotos ou produções das crianças nas paredes, exceto um coração que foi confeccionado por Marcos e entregue a Denise no dia das mães. Nos quadros religiosos encontramos frases como Eu e minha casa serviremos ao Senhor ou Seja sobre nós a graça do Senhor Nosso Deus. Saindo da sala há um corredor estreito e sem iluminação, no qual as crianças brincam de carrinho. Este corredor se comunica com os quartos, banheiro e cozinha. O quarto dos brinquedos e o banheiro são dois cômodos pequenos com uma abertura desprovida de esquadria (uma porta convencional), o que não permite o fechamento dos cômodos e a privacidade. Ambos localizam-se em frente ao corredor. Ainda não estão prontos e nem mesmo a instalação elétrica foi providenciada. Como não há janelas e nem mesmo iluminação indireta nesses dois cômodos, é difícil descrever todos os objetos e detalhes. Os brinquedos aparentam ser velhos e alguns não funcionam. Há um teclado pequeno sem pilhas, 196 alguns carrinhos, uma boneca sem uma perna, alguns bichos de pelúcia (dois ursos, um elefante e um tigre), uma bola, um pequeno quadro negro, duas bicicletas e uma motocicleta de plástico. O quarto de Nara e Estela é amplo, porém as paredes e o teto ainda não foram pintados e a janela está com os vidros quebrados. Segundo informou Denise, as meninas não dormem no quarto, porque sentem medo dos tiroteios freqüentes que ocorrem durante a noite. Foi possível verificar, na noite em que fiquei na casa de Denise, que Estela e Nara dormem no quarto da mãe com o rádio ligado em volume alto. O quarto delas está sempre arrumado e, para evitar a entrada de mosquitos, cobrem a janela com uma colcha. As duas camas de solteiro são cobertas por colchas cor-de-rosa. Em frente às camas há um armário pequeno com espelho e prateleiras. Nas paredes há vários pôsteres de conjuntos musicais estrangeiros. Quase todos os artistas são brancos, loiros, de olhos azuis. Há também um quadro do Garfield e dois quadros de paisagens, com papel laminado contrastando ao fundo. Em frente ao quarto das meninas fica o quarto de Denise, uma suíte com um pequeno banheiro desprovido de porta e com uma esquadria apresentando uma abertura, através da qual é permitido o acesso ao quarto. No banheiro há um chuveiro sem água quente, um vaso sanitário e uma pia. Todas as atividades de higiene e repouso são realizadas nesses dois cômodos. O quarto tem uma cama tubulada de casal, um guarda - roupa de compensado com três portas e maleiro, uma cômoda com espelho, um cabideiro de madeira no qual as crianças penduram as mochilas com roupas, toalhas e outros utensílios, e um andador para os bebês. Quando os bebês dormem, Denise costuma utilizar um colchão do quarto das meninas para acomodá-los no chão. As crianças maiores dormem na cama de casal. Não há quadros nas paredes do quarto e como também não há cortinas, Denise costuma cobrir a janela com um cobertor, principalmente nos momentos de repouso das crianças. A cozinha é espaçosa, tem duas janelas grandes e por isto está sempre iluminada e arejada. A porta da cozinha permite o acesso ao pátio e há situações em que as mães ou a sobrinha de Denise entram por essa porta e ficam conversando, enquanto ela prepara as refeições. A cozinha está sempre limpa, com pratos, panelas e talheres lavados. Há uma geladeira caramelo que aparenta ser nova, um armário grande com pia no qual Denise guarda os utensílios, um fogão azul e velho e uma mesa pequena e retangular com quatro cadeiras. No 197 horário do almoço, os meninos sentam no chão sobre um cobertor e as meninas sentam à mesa para fazer as refeições. 4.2 O ACOLHIMENTO DAS CRIANÇAS “A louca agitação das vésperas de partida! Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo E a gente esquecendo o que devia trazer, Trazendo coisas que deviam ficar... Mas é que as coisas também querem partir, As coisas também querem chegar A qualquer parte! - desde que não seja Este eterno mesmo lugar...” (Mário Quintana) Vimos como Denise procura conhecer cada uma das crianças, por meio de informações obtidas com os familiares, ou de observações que vai fazendo ao longo dos dias. O interesse pelo conhecimento das crianças, antes mesmo da entrada na creche, justifica-se, porque os primeiros tempos de convívio são desafiadores, tanto para Denise, quanto para as crianças e familiares48. Quando as crianças ingressam pela primeira vez na creche domiciliar o relacionamento com as pessoas da família de origem deixa de ser exclusivo. Como elas permanecem um período extenso no local, interessamo-nos em saber como acontece o acolhimento, ou a inserção das crianças (Bondioli e Mantovani, 1998). Tradicionalmente temos denominado este tempo inicial de convívio entre adultos e crianças, como período de adaptação. Nos primeiros contatos com a creche de Denise, as crianças não enfrentam um ambiente diferente daquele que elas habitualmente conhecem. O número de crianças não é grande-mantidas as diferenciações com o ano anterior, em que Denise tinha 17 crianças na creche - assim como o espaço da creche e residência se assemelha ao ambiente familiar. Porém, as relações que se construirão a partir desta entrada representam um desafio para cada criança. Como, afinal, acontece esse momento de transição, que se constitui na inserção das crianças ao novo ambiente da creche e residência de Denise? Vimos no capítulo anterior que 48 No item final do capítulo analisamos três dimensões do processo de socialização, embora saibamos que o acolhimento das crianças é o início desse processo na creche de Denise. 198 as primeiras semanas não produzem reações somente das crianças, mas igualmente de algumas mães, que sofrem com a separação dos/as filhos/as. Na creche domiciliar não ocorre um período de inserção com o envolvimento dos familiares. Denise procura criar estratégias de trabalho, pelas quais as crianças possam se adaptar tão logo entrem no local. Conforme comentamos no segundo capítulo, ela conversa com as mães sobre as preferências, hábitos, rotinas de alimentação e higiene das crianças. A partir desta conversa, procura privilegiar os gostos de cada uma delas nos primeiros dias de experiência com o novo local. Nos casos difíceis, ou dá-se a saída da criança, ou Denise cria novas estratégias de acolhimento. Ela considera mais fácil a adaptação das crianças menores: Se a criança for pequena, de zero a um ano, é mais fácil de acostumar, bem mais fácil e bem mais prático. Já de um ano e meio, dois anos pra cima, já é mais difícil. Porque a criança já está habituada a ver a mãe o dia inteiro. Perguntamos a Denise sobre o que ela faz quando as crianças não conseguem se adaptar nos primeiros dias, e se ela costuma convidar os familiares para participarem destes primeiros tempos de convívio. Denise explicou que é inviável envolver as mães no período de acolhimento, pois elas não têm direito a licença para o acompanhamento dos/as filhos/as. Sobre os pais ou outros familiares, não ofereceu informação. No entanto, relatou o caso de uma mãe com a qual conseguiu estabelecer um período de adaptação. Embora esta não tenha sido uma estratégia previamente planejada, é interessante como ela tomou uma decisão não convencional frente a uma situação difícil de inserção de uma criança: “Ela chegou e eu vi que a criança se agarrou no pescoço dela. Como ela trabalhava na parte da tarde, ela deixava ele de manhã para fazer as coisas da casa, para trabalhar de tarde e deixar tudo arrumado. Eu falei: não, na primeira semana você vai ficar no mínimo duas horas com a gente. Para ele ver que você está brincando com um monte de crianças e junto comigo. Eu vou chamar a atenção dele pro meu lado e tentar te esquecer um pouco. Para quando você sair, ele saber que eu vou ficar junto com ele e que também tem outros amiguinhos para ele brincar. Não vai ter só você. Ela concordou numa boa” (Denise, 22/08/2001). 199 Neste caso, Denise apresentou uma atitude diferente de outras situações vividas com os familiares, porque percebeu que aquela mãe tinha tempo livre pela manhã e que poderia acompanhar o filho na creche domiciliar. Nara descreveu outro caso de inserção com participação de um familiar. Mas neste há um traço diferencial, por tratar-se de Daniel, que reside no pátio de Denise. Como a irmã de Daniel - filha do primeiro casamento de Marta - ainda morava nos fundos da creche, fazia um acompanhamento do irmão, que chorava nos primeiros tempos de convivência: Aí ela vinha aqui, acalmava um pouco, e saía de mansinho. Aí ele se distraía com as crianças e parava de chorar (Nara, 23/08/2001). Para Denise, no período de inserção as crianças também observam o local e fazem um tipo de estudo da creche, das outras crianças e dos adultos. Percebemos que os saberes que ela adquiriu com suas experiências possibilitam que reflita sobre as crianças e suas relações com o local nos primeiros dias de convivência. Vejamos um longo trecho de entrevista, no qual ela comenta sobre a inserção de Julinho: “O Julinho foi um. A mãe dele trabalha de cabeleireira em salão. Ele tinha um ano, mas era enorme. Eu fiz tipo uma casinha. Tinha o lado dos meninos e o lado das meninas. Cheio de carrinhos e bola de um lado, boneca e casinha para as meninas, panelinha. Quando ele chegou e viu os carrinhos e a bola, ele olhou para mim e ficou mostrando. Ele só apontava com o dedo. Aí coloquei ele no chão e ele desceu numa boa e parou de chorar. Aí foi prá lá, olhou, olhou, como quem diz: ‘- eu posso mexer?’ Eu falei: ‘- Pode mexer, pode pegar, o que é que você quer?’ Ele pegou o carrão de bombeiros e colocou uma bolinha dentro da cestinha e foi subindo. Ali eu vi que o interesse dele é brincar lá do lado de fora. Quer dizer, no outro dia ele chegou com a intenção e perguntando se o carrinho estava lá fora. Ele passou uns dois ou três dias desse jeito, meio calado e sem comer. Eu falei, olha mãe, você vai ter que ter paciência, mas eu estou passando para você todo o dia que ele não comeu. Ele comeu sim, um pedacinho de pão, ele comeu dois biscoitos, comida ele não comeu. Mamadeira, ele não mamou. Mas é aquela coisa, quando ele acostumar com a minha presença e com a presença dos amiguinhos (...) Então o que ele está fazendo? Ele está estudando prá ver se é bom. Então ele vai começar a fazer tudo o que as crianças estão fazendo. Vai com calma. Você nem precisa dar nada agora. Deixa ele com esta experiência de três semanas, conforme for você deixa, conforme for você pode colocar em outro local. Eu pegava o pratinho dele, colocava o biscoito, isso no café da manhã. Botava ali o copinho, não dava mamadeira, porque ele não 200 queria nem ver mamadeira na frente. Aí de vez em quando ele olhava para o copo e para o biscoito. Quando não tinha ninguém por perto, ele comia tudinho e deixava o copo vazio, o prato vazio. Aí eu chegava: ‘Julinho, você viu qual foi o bicho que comeu tudo isso aqui?’ ‘Tia, foi o pombo!’ ‘Mas que pombo safado! Pode deixar que a tia vai pegar esse pombo amanhã!’ Na hora do lanche foi a mesma coisa. Ele comeu direitinho. No almoço ele já estava comendo junto com as crianças. É aquela coisa: você tem que parar, estudar a criança, ver como é que a criança é, o que ela gosta de fazer e deixar ela fazer o que ela gosta. A experiência maior foi esta” (Denise, 22/08/2001). Apesar desta fala de Denise demonstrar o seu investimento para conquistar a confiança das crianças e transmitir segurança às mães, não podemos esquecer que Julinho tem uma identidade própria e modos de reagir frente às situações novas, que não são idênticos aos seus pares. Ele, por exemplo, não chorou durante os primeiros dias e foi gradativamente adquirindo confiança no ambiente. Nem todas as crianças, porém, reagem como Julinho e há casos de bebês que choram por longos períodos desde a entrada na creche. Embora Denise tenha dito que prefere trabalhar com as crianças menores de um ano, nem sempre consegue manter a tranqüilidade quando os primeiros tempos de convivência com os bebês apresentam adversidades. Nos primeiros dias de acolhimento dos bebês, Nara e Bia não interagem com eles. Como Nara relatou, ela e Bia preferem um distanciamento dos bebês, uma vez que o choro deles provoca ansiedade: “Nos primeiros dias eu não gosto de pegar as crianças. Porque elas choram muito e eu fico nervosa. Minha mãe fala: ‘Nara, não pega nos primeiros dias, porque as crianças estão chegando agora e não conhecem a casa’. Aí no terceiro dia eu começo a pegar a criança, ensinar onde é a casa, mostrar os cômodos para a criança, para ela se acomodar melhor. A minha mãe fala: - ‘Nara, segura a criança direitinho, cuidado que está nos primeiros dias’. Aí eu pego a criança, começo a ninar, começo a cantar com a criança e ela começa a se acostumar”(Nara, 23/08/2001). Como vemos, há casos de bebês que demonstram ansiedade nos primeiros tempos na creche. Contudo, este não é um período difícil apenas para as crianças. Vimos no capítulo anterior como Elisa e Marta sofreram ao deixar seus filhos pela primeira vez na creche de 201 Denise. As mães saem da creche sem saber ao certo o que irá acontecer e esta incerteza provoca ansiedade. Além disso, Denise, Bia e Nara também passam por situações difíceis, pois cabe a elas resolver as primeiras dificuldades de inserção dos bebês, sem a participação das mães de origem. Tudo isto provoca transtornos na residência e creche de Denise. “O único que não se acostumou direito foi o Lucas. Gente, essa criança foi difícil! Ele já chegou chorando! Acho que tinha uns sete meses, eu querendo ir pra escola e ele acordou e eu: Gente, que garoto é esse? Pelo amor de Deus! E minha mãe falou:‘Nara, agora vou ter que aturar essa criança!’ Aí, eu cheguei prá dar beijo na minha mãe e ele tinha parado. Na hora que eu dei o beijo na minha mãe prá ir a escola ele: ‘uéééééééééééééééé’ e começou a chorar. Na hora que eu voltei a criança chorando do mesmo jeito que eu saí prá escola. Eu, gente que criança é essa? Chorando, chorando...eu pegava ele, mas ele se acostumou mesmo foi com o Fernando. Aí a mãe pegava ele e começava a ninar, andava prá lá e prá cá com ele e ele parava. Olhava as coisas e aí, conseguia parar. Aí quando ele dormia dava até um alívio. Ele ficou conosco uns três meses, porque a mãe dele foi despedida do emprego” (Nara, 23/08/2001). Foi relatado o caso de outro bebê que chorava na creche, pois como a mãe trabalhava em Niterói, seu horário de chegada era cinco horas da manhã. Segundo Denise informou, Jonathan chorava cerca de duas horas desde o horário de entrada na creche, mas com o tempo foi-se adaptando. Ela explicou, de forma bem humorada, como compreende este choro: “O período que ele chorava mais era no horário de chegada, como quem diz assim: ‘eu tô despertando, mas eu ainda estou aqui’. Aí quando ele via onde estava e o que estava fazendo, ele se acalmava. Era na hora da entrada e na hora da saída. Quando ele estava assim: ‘acho que a minha mãe está quase chegando...’aí ele começava a chorar de novo” (Denise, 22/08/2001). Pensamos que os posicionamentos de Denise, Bia e Nara a respeito do choro dos bebês indicam o quanto elas próprias se sentem impotentes, quando enfrentam situações com as quais não conseguem lidar de forma imediata. Para Denise, o choro dos bebês parece ter relação com a dificuldade de inserção causada pela ausência da presença materna, ou ainda pela ruptura com a amamentação. No capítulo referente à trajetória de vida e trabalho de 202 Denise, ela própria relatou que pede às mães que esperem o cordão umbilical cair. Esta frase contém um sentido, que é o da expectativa de que as mães assumam seus bebês até que eles se tornem mais independentes, pois Denise parece temer esta relação com os bebês, o que demanda mais trabalho e atenção da sua parte. Na creche domiciliar, o pranto dos bebês foi descrito como motivo de preocupação e geralmente estava vinculado a sensações negativas, produzindo ansiedade e desconforto entre Denise, Bia e Nara. Álvarez (2001, p. 36-39) chama atenção sobre a discriminação geral da sociedade ocidental com relação ao pranto dos bebês. No texto Porque Choram? encontramos uma indagação interessante sobre a idéia errada, que os adultos foram acumulando, de que os bebês se sentem melhor quando param de chorar. Assim, a tendência é de que as pessoas que lidam com bebês tentem acalmá-los para que eles deixem de chorar e o choro é visto como uma manifestação que deve ser controlada ou reprimida. O choro é compreendido como uma expressão emocional necessária para o equilíbrio vital dos bebês, e pode ter efeitos positivos na sua saúde físico-emocional futura (Álvarez, 2001). Nesse sentido, a autora desenvolve diversos argumentos que explicam a necessidade de atenção e contato físico que sentem os bebês quando choram. Mais do que criar estratégias que permitam interromper o pranto dos bebês, ela entende que é necessário prestar atenção ao bebê e aceitar a expressão emocional do choro, porque isto permite descarregar a tensão acumulada que é produzida pelo stress físico e emocional. Esta autora ainda menciona uma limitação dos adultos que, de forma geral, não estão conscientes de que os bebês podem estar descarregando uma experiência de outras semanas ou meses, quando choram. Estas reações dos bebês, que são diferentes da lógica dos adultos, não são compreendidas inteiramente por Denise, Bia e Nara, mesmo que Denise, ao falar com os bebês, procure expressar suas vozes e sentimentos, como constatamos em alguns depoimentos e nas observações da vida diária. Um outro aspecto importante é que a manutenção de um número de crianças na creche domiciliar, para Denise, representa a possibilidade de sobrevivência. Logo, o choro pode indicar aos familiares que os bebês não estão satisfeitos; para ela isto representa uma perda e, conseqüentemente, mais dificuldade para assegurar uma renda que permita manter sua família. 203 4.3 O DIA NA CRECHE Quero saber “Quero saber se você vem comigo a não andar e não falar, quero saber se ao fim alcançaremos a incomunicação; por fim ir com alguém a ver o ar puro, a luz listrada do mar de cada dia ou um objeto terrestre e não ter nada que trocar...” (Pablo Neruda) De acordo com Barbosa (2000, p.94), a rotina da educação infantil é uma categoria pedagógica que os responsáveis pela educação institucional das crianças pequenas estruturam para desenvolver o trabalho nas creches e pré-escolas. As rotinas geralmente sintetizam o projeto pedagógico das instituições e apresentam a proposta educativa dos educadores. De forma geral, esta autora percebe a rotinização pedagógica como uma forma de controle social sobre as crianças, principalmente porque cada minuto planejado pelos adultos reflete uma dominação adultocêntrica sobre os modos de vida infantis. O cotidiano é, para ela, mais abrangente, pois ainda que nele caibam atividades repetitivas ou rotineiras, sempre é possível que inovações e acontecimentos inesperados aconteçam, pois o cotidiano é o cruzamento das múltiplas dialéticas entre o rotineiro e o acontecimento (Pais49 apud Barbosa, 2000, p. 95). Adotaremos esta perspectiva de abrangência da cotidianeidade, que incluí tanto as atividades rotineiras e repetitivas como os acontecimentos, as atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara e as atividades espontâneas criadas pelas crianças. Antes é preciso estabelecer diferenças entre as rotinas das creches e pré-escolas estudadas pela autora, e as da creche domiciliar de Denise. Assim, não podemos afirmar que o trabalho de Denise se estrutura em torno de rotinas com um planejamento pedagógico. Por 49 PAIS, José Machado. Paradigmas Sociológicos na análise da vida quotidiana: Uma introdução. Análise Social, V. XXII, 90, p.7-57, 1986. 204 outro lado, encontramos atividades rotineiras que seguem um padrão de repetição, principalmente as que envolvem alimentação, higiene e repouso. Estas rotinas não são categorias pedagógicas estruturadas para desenvolver um trabalho com as crianças. Tanto as rotinas, como os acontecimentos e outras atividades, transcorrem em uma atmosfera caseira e sem preocupação com um planejamento. O cotidiano domiciliar é diferente do das creches e pré-escolas legalizadas, sejam elas públicas ou privadas. Temos argumentado ao longo dos capítulos que Denise e as mães das crianças não evidenciam a necessidade de uma proposta pedagógica na creche domiciliar. As lógicas que estruturam as relações entre Denise, Bia, Nara e as crianças são diferentes das lógicas pedagógicas de outros espaços de educação infantil. Quando nos referimos a uma proposta pedagógica tratamos da intencionalidade de um trabalho que é pensado em torno de objetivos, de uma metodologia e de procedimentos voltados à educação das crianças pequenas50. Estas são questões singulares para compreendermos os pontos analisados neste capítulo. Porém, ainda que Denise não evidencie uma intencionalidade pedagógica, seria precipitado afirmar que as relações que se produzem na creche domiciliar não são educativas, aspecto que discutiremos ao longo do capítulo. 4.3.1 Rotinas “Denise acorda em torno de 6h da manhã para tomar banho e chamar Nara para a escola. Ela toma café com Nara e arruma a sala para receber as crianças, caso tenha alguma coisa fora do lugar. Logo que Estela acorda ela arruma o quarto e as camas e começa a receber as crianças. Em torno de 7h da manhã, ou mais cedo, dependendo da situação, as mães ou pais começam a entregar as crianças na porta da casa de Denise. Os que ainda encontram tempo conseguem trocar informações com Denise, ou solicitar cuidados especiais, principalmente 50 Fundamentamo-nos no estudo de Rocha (2000, p.134-135), sobre a possibilidade de uma pedagogia da infância com corpo, procedimentos e conceituações próprias: “Identifica-se, portanto, uma acumulação de conhecimentos sobre a educação infantil que tem origem em diferentes campos científicos, que além de resultarem em um produto de seu próprio campo, têm resultado em contribuições para a constituição de um campo particular no âmbito da pedagogia, ao qual venho denominando de Pedagogia da Educação Infantil e que se inscreve, por sua vez, no âmbito de uma Pedagogia da Infância”. 205 nos casos de doenças. Mauro (um dos bebês) quase sempre chega dormindo ou em estado sonolento e Denise o coloca na cama. As crianças maiores também chegam sonolentas, mas geralmente ficam sentadas nos sofás da sala assistindo televisão e aguardando que Denise feche a porta e comece a servir o café da manhã. Quando o movimento de familiares e crianças se tranqüiliza, Denise prepara as mamadeiras, o café com leite ou leite com Nescau e começa a passar margarina no pão que foi comprado no dia anterior. As crianças sentam em torno da mesa para tomar o café. Como Jane, Jonathan e Julinho quase sempre entram após 8:30h, Denise retoma as conversas com as mães, serve o café, ou oferece mamadeira para Jonathan que freqüentemente entra chorando na creche domiciliar. No decorrer das rotinas, Denise atende os bebês que são trocados, alimentados ou embalados antes do sono. Geralmente Bia participa desse atendimento, assim como as crianças maiores acompanham com interesse a higiene e alimentação dos bebês e algumas delas prestam algum tipo de auxílio à Denise. Após o café da manhã, as crianças costumam assistir televisão, ou brincar de carrinhos no corredor. Mas elas também inventam outras brincadeiras ou escutam música na companhia de Bia que chega na creche em torno de 9h. Com a chegada de Bia, Denise costuma sair para as compras e deixa os bebês e as outras crianças aos seus cuidados. Ao retornar das compras, em torno de 9h30, Denise, acompanhada por Bia, leva as crianças para a parte da frente da casa, que está sempre com o portão de ferro fechado. Ali as crianças apanham sol, jogam bola, inventam brincadeiras ou cantigas de roda. Algumas vezes, Denise ou Bia, improvisam atividades no pátio. Comumente as meninas carregam os bichos de pelúcia e passeiam com eles pelo pátio como fazem as mães quando levam os bebês para passear e tomar sol, enquanto os meninos se divertem com a motocicleta ou carregam pedras em latas que encontram na casa em construção. Quando Denise vai para a cozinha em torno de 10h, as crianças se deslocam para a sala, ou ficam no pátio de terra ao lado da cozinha e brincam de casinha, ou inventam outras brincadeiras. Enquanto Denise prepara o almoço, as crianças entram e saem da cozinha e conversam com ela e Bia, que se envolvem com os bebês, ou resolvem conflitos principalmente entre os meninos. Quando chove, as crianças brincam de carrinho no corredor, cantam, dançam e escutam músicas, ou assistem televisão. Em torno de 10h30, Denise oferece um lanche que pode ser biscoito, suco, ou alguma fruta. Após o lanche, as crianças não comem até a hora do almoço, mas freqüentemente Denise e Bia oferecem água para elas, principalmente nos dias mais quentes. Até a hora do banho as crianças brincam no 206 pátio, na casa, ouvem música, dançam na sala ou assistem televisão. Um pouco antes do banho, Denise ajuda Jane e Estela nas tarefas da escola infantil que ambas freqüentam no turno da tarde. Em torno de 11h ou 11h30, Denise começa a preparar o banho com a ajuda de Bia. Nara chega da escola perto do meio dia e começa a se envolver nas atividades da creche. Após o meio dia, as crianças almoçam e depois assistem televisão, ou olham livros e revistas. Denise acompanha as meninas à escola antes das 13h 30, enquanto Nara e Bia almoçam e cuidam dos meninos e dos bebês. Quando Denise chega da escola, ela almoça e acomoda as crianças para dormir no quarto, em torno de 14h. Durante o sono das crianças, ela, Bia e Nara conversam, estudam e assistem televisão. Geralmente Bia vai fazer algum serviço doméstico em casa, no meio da tarde. Em torno de 17h as crianças acordam, fazem lanche, tomam banho, jantam e esperam os familiares. Denise e Bia vão para a escola perto das 19hs e Nara fica com as crianças, que saem da creche em horários diversificados. Algumas saem por volta das 20h e outras aguardam os familiares até 22 ou 23h”. Estas rotinas se distribuem nos cômodos da creche e residência de Denise. A divisão dos espaços parece ser tolerada pelas crianças, embora nem sempre elas obedeçam às regras estabelecidas. No quarto de Denise acontecem as atividades de higiene e sono. A sala é o local para assistir televisão, ouvir música e dançar, olhar livros e revistas ou de reunir adultos, jovens e crianças. É na sala que Denise recebe e entrega as crianças, assim como conversa com os familiares. No corredor, as crianças podem jogar bola ou brincar de carrinho, quando não estão no pátio. A cozinha é o espaço das refeições, ou do acompanhamento das tarefas escolares de Estela e Jane. No pátio acontecem as brincadeiras, as cantigas de roda, os jogos de bola ou os jogos de faz de conta. As rotinas de alimentação, de higiene e sono também são estruturadas segundo um tempo que geralmente se repete, mesmo que ocasionalmente aconteçam mudanças na estrutura de algumas delas, como por exemplo, no banho. Denise modifica a dinâmica do banho quando os bebês estão dormindo no quarto e, ao invés de começar o banho com o grupo de meninos, como faz habitualmente, ela deixa todas as crianças no pátio com Bia e vai chamando uma de cada vez, para não acordar os bebês. As outras atividades não apresentam uma repetição, podendo ocorrer modificações a cada dia que são propostas. 207 4.3.2 Acontecimentos e outras atividades Denominamos de acontecimentos ou eventos tudo o que sucede na creche domiciliar e que produz alterações nas rotinas diárias (Barbosa, 2000). Estes acontecimentos ou eventos podem modificar o que as crianças vinham fazendo, ou se configurar como atividades diferenciadas sem, contudo, expressar uma intenção pedagógica. Alguns exemplos de acontecimentos que observamos no local ou dos quais tivemos notícias serão descritos de forma resumida. Geralmente a entrada de outras pessoas na creche produz alterações nas rotinas diárias. O café da manhã era eventualmente interrompido pelas conversas entre Denise e os familiares das crianças, como no dia em que a avó de Jonathan bateu no portão e as crianças foram para a rua observar o que ela conversava com Denise: tem mamadeira, aí? Como o bebê de nove meses entrou chorando, Denise avisou a Estela que não o carregasse no colo. Após esta interrupção, o café transcorreu normalmente na cozinha (Diário de Campo, 19/06/2001). Num outro dia, antes do repouso dos meninos, um homem bateu no portão e Nara chamou Denise. Os meninos ficaram observando da janela a conversa entre os dois. Denise saiu pela porta da cozinha e enquanto conversava no portão de entrada, Fernando entrou na creche para conversar com Nara. Os meninos aproveitaram a entrada de Fernando e foram para o pátio brincar de carrinho (Diário de Campo, 04/07/2001). Outros acontecimentos foram observados enquanto Denise preparava as refeições, ou no momento do banho. Vejamos exemplos de acontecimentos provocados pelas crianças. Denise está na cozinha preparando o almoço e um suco de maracujá. As crianças entram e pedem que ela ligue o liquidificador. Isto mobiliza o grupo que começa a pular ao redor do balcão da cozinha, devido às transformações provocadas pelo aparelho (Diário de Campo, 20/06/2001). 208 Na hora do banho, Denise vai até o quarto e as crianças estão escondidas, algumas embaixo da cama e outras no banheiro. Denise procura cada uma delas e, na medida em que as encontra solicita aos meninos que tirem a roupa (Diário de Campo, 20/06/2001). Como a goiabeira do pátio está carregada de frutos, freqüentemente as crianças pedem que Denise colha goiabas. Isto sempre mobiliza as crianças e Denise, que sobe em uma escada, colhe as goiabas e joga para o grupo. Denise joga uma goiaba para cada criança e costuma perguntar quantas goiabas têm no total, enquanto Jane e Julinho guardam as frutas em uma bolsa (Diário de Campo, 06/07/2001). Outros acontecimentos consistem em passeios dentro do bairro Saudade, como visitas ao posto de saúde, ao mercado para fazer compras, ou ao Brizolão. Os passeios ao Brizolão comumente acontecem nas tardes ensolaradas. Denise, Bia, Nara e as crianças fazem piquenique com pipocas, bananas, goiabas e suco, jogam bola, correm e brincam naquele espaço. Como há pedaços de giz no local, as crianças escrevem no chão de cimento e voltam sujas e cansadas para a creche. No dia seguinte, as mães costumam comentar com satisfação que as crianças chegaram cansadas na noite anterior. As principais festas comemorativas do ano como Dia das Mães, Dia dos Pais, Páscoa, Dia da Criança, ou Natal são geralmente motivo de mobilização na creche, o que também envolve os familiares. Denise costuma pedir uma contribuição para as mães para confeccionar lembranças, ou para comprar brinquedos e preparar alimentos. No Natal, ela recebe brinquedos do mesmo vereador que fornece uma cesta de alimentos para a creche. Todos estes acontecimentos não possuem uma intenção pedagógica e o objetivo principal é o relaxamento e a diversão, tal como ocorre com os passeios dentro do bairro, ou nas brincadeiras, jogos e cantigas de roda. Thin (1998, p. 1-10)51 pesquisa as lógicas escolares de socialização versus as lógicas populares de socialização em escolas primárias de bairros populares do subúrbio de Lyon, na França. Ele pretende compreender a maneira como essas relações se estabelecem e como os sujeitos sociais (professores, assistentes sociais e pais das camadas populares) e suas diferentes lógicas se comportam nessas relações. Comentaremos neste capítulo algumas 51 Este texto, que comentaremos ao longo do capítulo, é uma tradução livre realizada por Ramon Correa de Abreu, de alguns capítulos do livro Quartiers Populaires: l’école et les families (1998) de Daniel Thin. Trata-se 209 questões de análise do autor, sobretudo as que estão vinculadas às relações entre as famílias e crianças das camadas populares, uma vez que não estamos trabalhando com a institucionalização escolar da infância. Interessamo-nos especialmente pelas práticas não escolares de socialização das famílias populares, porque há aspectos relacionados a nosso estudo, como as saídas e passeios não pedagógicos, os jogos e as brincadeiras com as crianças, a autoridade parental e as sanções. Compreendemos que algumas formas de dominação adulta nas famílias das camadas populares, com inculcação normativa e comportamental, também incidem sobre as relações sociais vividas na creche domiciliar, aspectos que aprofundaremos no desenvolvimento do capítulo. Como destaca Thin (1998, p.13-15), as saídas circunscritas ao espaço familiar não possuem vocação educativa e as saídas de lazer são fortemente limitadas pelas condições de existência, pois elas são o momento de liberação do trabalho e, por isto, não compreendem um trabalho pedagógico. O que importa realmente é o prazer recíproco que as pessoas trocam entre si. Tal como no estudo de Thin, observamos que nos momentos de passeios pelo bairro e nas festas comemorativas, o objetivo principal de Denise é a diversão e o lazer e tudo acontece naturalmente e de acordo com as circunstâncias diárias. As atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara são ao mesmo tempo reguladas. Em outras palavras, elas improvisam no momento, mas não deixam de controlar o movimento das crianças. Estas atividades ocorrem tanto na parte interna, como na parte externa da creche e residência, envolvendo brincadeiras, jogos de bola como caçador ou futebol, cantigas de roda e concursos de dança. Elas também sugerem escutar música, observar gravuras de livros e revistas, ou assistir programas de televisão. Denise, Bia, Nara e as mães entrevistadas valorizam a necessidade do brinquedo e do movimento que sentem as crianças. Elas reconhecem que a creche domiciliar oferece um espaço limitado, no sentido de criar oportunidades para que as crianças brinquem com maior liberdade. Denise se ressente da ausência de uma área livre com brinquedos como balanços, de uma tese de doutorado, defendida pelo autor em 1994, na Universidade de Lyon II e publicada posteriormente sob a forma de livro. 210 escorregadores, canos, ou tanques de areia para as crianças. Recordamos as frustrações das mães que entrevistamos, no que se refere à ausência de praças, parques e outras áreas de lazer destinadas ao público infantil no bairro Saudade. Denise compreende que as crianças sentem necessidade de brincar, explicando que gosta de inventar jogos, brincadeiras ou cantigas de roda no pátio, porque sabe que estas atividades são prazerosas: na parte da manhã, para mim é um ponto obrigatório de brincar, ou de dançar com eles, ou se eles quiserem pegar revistas e ler, eu leio alguma coisa para eles (Denise, 22/08/2001). Nos dias de chuva acentuam-se os conflitos entre Denise e as crianças porque, sem acesso ao pátio, elas ficam limitadas ao corredor, sala, quarto e cozinha. Como nestes cômodos há eletrodomésticos, fios e tomadas, as crianças não podem se movimentar livremente, o que gera mais disputas pelos poucos brinquedos e pelo espaço reduzido. Nestes dias, Denise costuma sentar na sala e propor atividades de entretenimento, que descreveremos brevemente. Em uma tarde chuvosa, antes do repouso das crianças, Denise apresentou ao grupo uma coleção de livros sobre animais noturnos. Na medida em que ia mostrando os animais para os meninos, ela fazia comentários: ‘aqui é a raposa, o guaxinim, os castores, o morcego, o grilo, o sapo’. Ela então começou a cantar: ‘O sapo não lava o pé porque não quer, ele está na lagoa...’. Algum tempo depois, ela abriu uma das portas da estante e ofereceu uma revista (Caras) para cada menino. Ela estendeu um cobertor sobre o chão e os meninos sentaram para olhar as revistas (Diário de Campo, 19/06/2001). Uma manhã, ao mesmo tempo em que mostrava as certidões de nascimento das crianças para eu olhar, Denise começou a cantar com as crianças: dois patinhos na lagoa (...), A formiguinha corta folha e carrega (...) Deus não quer preguiçoso em sua obra, porque senão o vento sopra (...). Alguns minutos depois, Mateus pediu para escutar o Bonde do Tigrão e ela desligou a televisão e ligou o aparelho de som. As crianças começaram a cantar e dançar: ‘são as cachorras, as preparadas, as popozudas (...)’ (Diário de Campo, 05/07/2001). No pátio Bia costumava brincar de roda com as crianças É de tango, tango. É de carrapicho, joga o Marcos na lata de lixo, a lata furou, o lixeiro carregou. Às vezes Denise acompanhava Bia, como no dia em que as duas foram para o pátio antes do almoço, para brincar de roda com as crianças: dois patinhos na lagoa, começaram a nadar, quando viram a 211 minhoca começaram a cantar: minhoca, minhoca, me dá uma beijoca, não dou, então eu vou roubar. Minhoco, minhoco, você tá muito louco, beijou do lado errado, a boca é do outro lado...Eu vi uma barata na careca do vovô (...) (Diário de Campo, 21/06/2001). Como podemos observar, estas atividades não seguem um planejamento pedagógico e Denise, Bia e Nara não se preocupam em ampliar o desenvolvimento e a criatividade das crianças. Conforme destaca Thin (1998, p.14), nas famílias populares os jogos não são considerados como instrumentos de desenvolvimento cognitivo ou apoio para a imaginação52. Recordamos quando as mães, Denise, Bia e Nara falaram sobre a importância de ampliar os espaços da creche e residência e oferecer mais brinquedos às crianças. A intenção expressa nas respostas não era de melhorar a qualidade de uma proposta pedagógica, mas sim oportunizar mais momentos de lazer, diversão e prazer para as crianças. Para os familiares das camadas populares investigados por Thin (1998), como para as mães e Denise, brincar com as crianças é algo descrito como uma explosão de descontração e prazer. Quando Denise e suas filhas falam sobre os jogos de futebol e os passeios dos finais de semana, ou quando as mães reclamam que o bairro não oferece áreas de lazer para as crianças, tudo isto tem um significado, que é o da obtenção de mais tempo de prazer e diversão com os/as filhos/as, sem discursos sobre as vantagens pedagógicas que este lazer pode proporcionar. Na creche de Denise não encontramos atividades que culminam com produções como desenho, colagem, texto ou modelagem, por exemplo. Também não vimos materiais pedagógicos como jogos, livros infantis, massa de modelar, tintas, lápis, cola, tesouras, folhas ou outros que pudessem agrupar as crianças em torno de uma atividade organizada pelos adultos. Não existe um planejamento com objetivo de estimular a criação e o desenvolvimento de outras habilidades e conhecimentos que não fazem parte das vivências do meio sóciocultural das crianças. Todavia, a convivência com a cultura da escola faz parte deste cotidiano e, embora não ocorra formalização pedagógica das práticas, não podemos esquecer que Denise, Bia e Nara 52 O autor se refere aos trabalhos de Basil Bernstein (1975), sobre os jogos entre pais e filhos nas famílias operárias. 212 freqüentam a escola de ensino fundamental, assim como Jane e Estela freqüentam uma escola infantil. Elas trazem elementos para a creche que constituem o que denominamos de presença da cultura escolar implícita. Entretanto, isto é vivido de forma semelhante a um ambiente familiar, no qual as crianças maiores freqüentam a escola. Obviamente as crianças convivem com outras manifestações culturais quando assistem televisão, escutam música, dançam ou manuseiam livros e revistas. Em algumas situações, elas manifestaram interesse em desenhar ou escrever, principalmente quando eu levava cadernos, lápis e canetas para as observações. Estela fazia algumas tarefas da escola com as outras crianças e comentava sobre os desenhos, as colagens, ou as cópias da escola. Comumente Julinho desenhava em meu diário e perguntava o que eu estava vendo: Julinho vem mostrar seu desenho e pergunta o que é. Eu respondo que talvez seja uma maçã e ele diz que não, é um sofá. E Julinho segue me questionando sobre os desenhos, eu falo é uma minhoca e ele diz que é uma barata, e depois quando falo que é uma barata, ele diz que é um caranguejo. Jane também costumava escrever letras, números ou desenhar no meu diário (Diário de Campo, 06/07/2001). Na creche de Denise só encontramos uma coleção de livros sobre animais noturnos, alguns livros religiosos e exemplares da revista Caras. Como vimos, após o almoço as crianças olhavam as gravuras de revistas ou livros. Em outros momentos, Bia e Nara comentavam sobre letras de nomes encontradas em embalagens de alimentos, ou então propunham jogos que envolviam palavras, canções, ou versos sem acontecer uma problematização das observações e perguntas das crianças. Para as crianças menores, como vimos em capítulo anterior, os familiares desejam cuidados, afeto e possibilidades de movimento e brincadeiras, o que para nós não representa ausência de uma perspectiva educativa. O que ocorre é que estamos diante de uma experiência de educação de um grupo das camadas populares, cujas expectativas não são de estruturação de uma proposta pedagógica. Denise incorpora as crianças nas atividades da casa exatamente como acontece em uma família, seja nas trocas de fraldas e na alimentação dos bebês, atividades nas quais as crianças maiores também se envolvem, seja nas compras de mantimentos para a residência e creche, na preparação das refeições ou nas solicitações freqüentes de ajuda. Provavelmente porque não 213 há uma intencionalidade pedagógica no trabalho, não tenhamos encontrado livros de histórias infantis, jogos ou brinquedos educativos na creche domiciliar. Nos momentos em que as crianças olhavam as gravuras de revistas e da coleção de animais noturnos, ou quando estabeleciam relações entre as letras de embalagens de produtos alimentícios com as iniciais dos nomes, ou participavam de jogos com palavras, canções ou versos, percebemos que isto acontecia de forma prazerosa, embora não planejada. Bia e Nara faziam uma roda no chão da cozinha com as crianças, enquanto o almoço não era servido. Elas propunham que as crianças dissessem palavras relacionadas com coisas das quais elas gostassem muito, como chocolate, amor, boneca. Nara costumava procurar nas caixas de leite Parmalat, ou de outros produtos alimentícios, as letras iniciais dos nomes das crianças: M de Mauro, de Marcos e Mateus, E de Estela. Mas nada mais acontecia além destes comentários (Diário de Campo, 21/06/2001). As experiências vividas na residência e creche de Denise, quase sempre estavam vinculadas à vida e aos costumes da família de Denise e dos familiares das crianças. Contudo, encontramos a presença de outras manifestações culturais nesse cotidiano, como algumas práticas escolares trazidas por Denise, Bia, Nara, Estela e Jane, e outras manifestações da cultura hegemônica presente nos programas de televisão, nos estilos musicais apreciados na creche, assim como as expressões das culturas infantis. Na creche domiciliar não encontramos rotinas planejadas em torno de objetivos e procedimentos pedagógicos. Mas há rotinas que seguem um padrão de repetição e que se sucedem segundo uma organização temporal e espacial. Mesmo sem uma rotinização pedagógica, observamos que em algumas situações ocorre o controle social sobre as crianças. Este controle, porém, nem sempre funcionava, o que nos permite afirmar que a creche domiciliar não é somente um espaço de opressão. Da mesma forma, nas creches e pré - escolas coletivas o planejamento pedagógico, por si só, não garante que as crianças possam expressar livremente as suas culturas. 4.3.3 A presença constante da televisão 214 A televisão é presença constante nas rotinas da creche domiciliar, pois permanece ligada desde a entrada até a saída das crianças. Metaforicamente poderíamos representar a televisão como uma babá eletrônica na vida diária da creche, embora nem sempre tolerada pelas crianças. A televisão é um recurso utilizado para o entretenimento das crianças quando chegam na creche, nos dias de chuva, nos momentos de conflitos, antes ou depois das atividades de higiene e alimentação. Os programas destinados ao público infantil e que passam nos horários da manhã, ou no final da tarde, são geralmente selecionados por Denise, Bia e Nara. Como a televisão permanece ligada cotidianamente, alguns gostos e hábitos das crianças podem ser explicados a partir da interferência da mídia como, por exemplo, a preferência pelos programas infantis com concursos de dança e com brincadeiras que imitam as academias de ginástica: No momento eles estão no vício da ginástica. Antes era o vício de dançar funk, de dançar pagode, essa coisa do Bonde do Tigrão. Agora é a fase da ginástica. Que é a Jane, a Estela que diz que está muito gordinha. Aí eu entro porque também estou gordinha (Denise, 22/08/2001). Algumas programações são acompanhadas diariamente, como um programa que as crianças assistiam no final da tarde conhecido como Interligado. Este programa envolve uma competição entre dois grupos que devem tocar dentro de caixas contendo animais peçonhentos, insetos ou crustáceos. Como Denise relatou, as crianças ficam ansiosas no horário do Interligado; ela procurou justificar este interesse estabelecendo diferenciações com outros programas considerados prejudiciais às crianças, como os desenhos que contém violência, por exemplo. Porém, não observamos na creche quaisquer tentativas de discussão com as crianças sobre os conteúdos das programações da televisão: “Eles já sabem que o animal, não é aquela coisa medonha que a criança tem que ter medo. Já é uma coisa que ele vê que pode mexer, lógico que com cuidado, com alguém por perto, que não é aquela coisa que te põe apavorada. Influência má que eu vejo por parte da TV são certos desenhos, que agora graças a Deus eu não tenho visto mais. Que lidam com espada, que o Julinho andou trazendo uma espada e sem querer ele acabava machucando os amiguinhos com aquilo. Era de plástico, mas batia e doía. Isso aí eu acho uma má influência para a criança, porque está lidando com a agressividade, com a briga. De manhã eles assistem 215 desenhos, que não colocam tanta coisa na cabecinha deles” (Denise, 22/08/2001). Surpreendemo-nos com o impacto que exercem as propagandas de brinquedos ou outros produtos direcionados ao público infantil, como o kinder ovo e os brinquedos da Estrela. Quando estas propagandas eram anunciadas, mesmo que as crianças estivessem distraídas com os carrinhos ou com outras brincadeiras (como a imitação de animais, por exemplo), interrompiam suas atividades e ficavam em frente à televisão repetindo as canções e textos dos anúncios com atenção. Alguns estudiosos da infância como Kincheloe (1997); Pinto (2002) e Sarmento (1999, 2002) têm observado que nas sociedades contemporâneas o mercado está mais atento aos modos de vida das crianças que hoje não estão ausentes das relações econômicas e são consumidoras em potencial. Conforme destaca Sarmento (2002), uma das características da contemporaneidade é o efeito homogeneizador do processo de globalização53, com o investimento do marketing e da publicidade destinados ao público infantil. Atualmente há uma divulgação de produtos para as crianças, o que faz com que aparentemente haja uma só infância no espaço mundial, com todas as crianças partilhando os mesmos gostos. Ainda que as crianças da creche domiciliar não tivessem acesso aos artigos divulgados nas propagandas da televisão, elas se mobilizavam com os anúncios e manifestavam com freqüência seus desejos de consumo. Por outro lado, esta mesma globalização da qual fala Manuel Jacinto Sarmento produz seus paradoxos decorrentes das desigualdades sociais. Chamamos a atenção para o mercado paralelo e informal criado nos países do terceiro mundo 53 No artigo “La globalisation et l’enfance. Les impacts sur le métier d’enfant”, (Mimeografado), Sarmento (2000) escreve que a globalização da infância é conseqüência de uma combinação de fatores, como os processos políticos decorrentes da regulação de instâncias internacionais como a UNICEF, os processos econômicos que criam um mercado global de produtos específicos para a infância, os processos culturais influenciados pelos mitos infantis criados pelas séries de televisão e os processos sociais resultantes da institucionalização dos cotidianos da infância e da difusão da escola de massa. Este artigo foi publicado no Brasil em: SARMENTO, Manuel Jacinto. A Globalização e a Infância: impactos na condição social e na escolaridade. In GARCIA, Regina Leite & FILHO, Aristeo, L. (org.) Em Defesa da Educação Infantil. Rio de Janeiro: Sindicato Nacional dos Editores de Livros, 2001. 216 - como o Brasil - e que produz as imitações dos produtos originais, geralmente vendidos entre os camelôs, ou nas lojas conhecidas como de 1,99. As crianças não são consumidores passivos e ingênuos, o que, segundo Kincheloe (1997) foi percebido pelos profissionais da publicidade que utilizam os comerciais de televisão. O investimento no marketing e publicidade direcionados ao público infantil confere maior poder às crianças, que dominam gostos e capitais culturais desconhecidos pelos adultos. Pinto (2002, p.226-227) analisa o papel da mídia e da televisão no universo das crianças e coloca ênfase na necessidade de as olharmos como agentes com capacidade reflexiva e conscientes, em determinado grau, das condições e conseqüências da sua ação. A preocupação central do autor não é tanto saber o que a televisão provoca na criança, mas saber o que as crianças fazem com a televisão. Ele vê as crianças como agentes ativos, capazes de apropriação e interpretação, de forma singular, das mensagens veiculadas pela televisão. Esta afirmação de Pinto (2002) tem relação com fatos observados na creche de Denise. Como vimos, as crianças param suas atividades no momento das propagandas. Da mesma forma, nem sempre aceitam passivamente as programações sugeridas por Denise, Bia e Nara. Foi possível averiguar que na vida diária da creche, elas com efeito escolhem as suas programações. Mesmo que Denise, Bia e Nara constantemente chamassem o grupo de crianças para assistir os desenhos e programas infantis matutinos, nem sempre elas ficavam atentas. Geralmente inventavam brincadeiras enquanto a televisão estava ligada, ou então solicitavam que ligassem o aparelho de som. Principalmente os meninos engatinhavam no chão imitando animais, brincavam com os carrinhos, ou conversavam entre si quando era proposto que sentassem para assistir televisão. Em uma manhã na qual Denise saiu com as meninas para as compras, Bia solicitou várias vezes que os meninos sentassem para ver o desenho vai sentar prá ver desenho? Então senta bonitinho, isto!. Enquanto ela falava, Mateus pegou um telefone de brinquedo: Alô, quem tá falando? Oi, meu pai, já vai embora? e os outros meninos continuaram engatinhando no chão ignorando os pedidos de Bia (Diário de Campo, 02/07/2001). 217 Por estas razões, percebemos que em meio a este cotidiano de rotinas que se repetem, de acontecimentos e atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara, as crianças criam atividades espontâneas, o que demonstra a presença das culturas infantis na creche domiciliar. 4.3.4 Atividades espontâneas e expressões das culturas infantis As crianças não se organizam em turmas, deslocam-se pelos cômodos da casa e dispõem de maiores intervalos de tempo livre. Provavelmente por isto, encontram possibilidades de vivenciar atividades espontâneas que acontecem diariamente, quando inventam brincadeiras com os brinquedos a sua disposição, quando dançam, cantam e escutam músicas, quando criam brincadeiras como estátua, esconde-esconde, quando jogam bola ou participam de jogos de faz-de-conta, como de casinha. Denominamos estas atividades de espontâneas, porque são elas as crianças as protagonistas, não ocorrendo a participação de Denise, Bia ou Nara, exceto nos casos de conflitos. Nas observações do cotidiano percebemos o movimento das crianças e suas maneiras de interagir de forma lúdica, quase sempre por intermédio de brincadeiras e jogos de faz-deconta. As brincadeiras não envolvem necessariamente as imitações e o desempenho de papéis como mãe, pai, filho ou tomadora de conta, como os jogos de faz-de-conta que refletem as interpretações das crianças sobre situações vividas no cotidiano. De qualquer forma, tanto as brincadeiras quanto os jogos de faz-de-conta refletem algo específico dos grupos infantis, que é o ato de brincar. De acordo com Sarmento (2002), o brincar e o brinquedo são fatores fundamentais na recriação do mundo e na produção das fantasias infantis. Saramago (1994, p.164) observa que as brincadeiras surgem fortemente conotadas com um saber totalmente prático e, de forma semelhante ao que se passa na cultura popular tradicional, no que diz respeito à infância parece existir um conjunto articulado de práticas e de tradições orais relativas às brincadeiras que só é possível transmitir pela via da demonstração. 218 No Brasil Fernandes observou algumas décadas atrás, como as cantigas de roda, os jogos, folguedos e brincadeiras são elementos constitutivos do folclore infantil: “Boa parte dos elementos constitutivos da cultura infantil são restos de romances velhos, hoje transformados em jogos cênicos, como ‘A noiva’, ‘Organdão’, ‘Juliana’, etc.; ou antigas danças coreográficas, como ‘A canoa virou’, ‘O Picoton’, ‘Passei pela Barca’, ‘Ciranda a Roda’ etc. (...). Todas essas composições restringiam-se aos círculos dos adultos e só posteriormente passaram para os grupos infantis. Transferiram-se por aceitação, como falamos, aos grupos infantis e através desse mecanismo do ‘aprendi na rua’ conservam-se até hoje, séculos ou dezenas de anos depois, conforme a composição. O notável, nisso tudo, é que a maioria dessas composições já desapareceu entre os adultos, mesmo em Portugal, permanecendo, entretanto, entre as crianças” (1961, p.171). Nós optamos por uma diferenciação entre as brincadeiras e os jogos de faz-de-conta, a partir de Corsaro (2002). Para ele acontece uma passagem do brincar ao faz-de-conta sociodramático das crianças pré-escolares. O brincar sociodramático é o brincar no qual as crianças produzem atividades de faz-de-conta que se relacionam com as suas experiências de vida. São geralmente as crianças maiores, como Julinho, Jane e Estela, que inventam e coordenam algumas brincadeiras e jogos de faz-de-conta. Um exemplo de brincadeira coordenada pelas crianças é a de estátua. Freqüentemente Julinho propunha ao grupo esta brincadeira, cuja forma de organização era logo criada, assim que as outras crianças concordavam com a proposta. Assim, Julinho ordenava: Para, vai, roda; se alguma criança se mexia ele mandava parar e dizia: agora é Jane, se mexeu todos dois, sai!, Vai, roda, roda todos dois, encosta na parede, roda, para (...) (Diário de Campo, 18/06/2001). As brincadeiras que envolviam danças e canções freqüentemente aconteciam na sala. As crianças pediam que Bia ou Denise ligassem o aparelho de som, ouviam discos de música funk, de pagode ou das Chiquititas e inventavam concursos de dança, sempre coordenados pelas crianças mais velhas. Usualmente as crianças criavam jogos de faz-de-conta, nos quais fatos da vida real estavam presentes, mas com uma forma bem característica dos grupos infantis. Elas costumavam viver nesses jogos situações que provavelmente observavam nas suas casas, ou 219 na creche domiciliar. No pátio e na casa em construção do irmão de Denise acontecia a brincadeira de casinha. Com brinquedos e tijolos as crianças criavam ambientes como quarto, cozinha, despensa e sala. Estela e Jane assumiam os papéis de mães e cuidadoras de Mateus, de Marcos e dos bichos de pelúcia. Em uma das observações vimos que as meninas cuidavam Mateus dormir. Num certo momento, Mateus despertou e perguntou: ‘Tá de dia?’ Ao que Jane respondeu: ‘já acordou?’ ‘senta aí, senta aí...’. Estela indagou se Mateus desejava comer pipocas; como ele respondeu afirmativamente, elas providenciaram um balde cheio de pedrinhas e Estela riscou um palito simulando acender o fogo em um fogão feito de tijolos. Os movimentos das meninas refletiam sua observação das ações dos adultos quando preparam os alimentos. Assim Estela sacudiu o balde, tal como quem prepara pipocas. No papel de mãe e tomadora de conta, tocou no rosto de Mateus e perguntou se depois de comer ele gostaria de dormir mais um pouco. Jane parecia assumir o papel de ajudante de Estela. Num dado momento, Estela pediu a Jane que olhasse se a menina (a boneca) tinha acordado. Como Jane respondeu que estava escutando o choro do nenê, as duas passaram a embalar os bichos de pelúcia (Diário de Campo, 20/06/2001). Nesses jogos as crianças misturam elementos do real e do faz-de-conta, ou seja, não reproduzem inteiramente os fatos da realidade. O simbólico, a imaginação, o lúdico e a criação caracterizam as culturas infantis, quando as crianças incluem nos jogos as situações que observam na vida com os adultos e seus pares. Para melhor exemplificar retornaremos à brincadeira de casinha. Mateus choramingou um pouco reclamando que sua cabeça estava doendo por causa do tijolo, uma vez que dormia em uma cama feita de tijolos. Estela logo saiu do papel de pequena tomadora de conta dizendo ao colega que a cabeça dela não dói, quando ela deita nos tijolos. Mas esta foi uma atitude muito rápida, porque em seguida ela assumiu seu papel no jogo colocando Mateus no colo e o embalando, como se ele fosse um bebê. Nesse instante Jane subiu em uma pilha de tijolos perguntando onde estava o Neston. Estela informou que o Neston havia acabado e sugeriu que Jane colocasse Nescau. Porém, mudou de idéia e falou: ‘Bota leite com banana’ (Diário de Campo, 06/07/2001). Na creche domiciliar, as crianças apresentam traços que são específicos da infância como a capacidade de imaginação, de fantasia e criação. Kramer (2000, p.66) comenta que as 220 crianças produzem culturas e são nela produzidas, possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Em 1947, Florestan Fernandes (1961, p.170) já afirmava que existe uma cultura infantil construída de elementos culturais quase exclusivos das crianças e caracterizados por sua natureza lúdica. Foi possível observar que na creche de Denise as crianças oferecem respostas típicas do universo infantil, quando os adultos interferem nos seus jogos de faz-de-conta ou nas brincadeiras com uma lógica de raciocínio que exclui a imaginação, a fantasia e a criação. Como elas, afinal são capazes de subverter esta lógica? Novamente retornamos às observações realizadas no cotidiano da creche . No pátio, Estela empurra um elefante de pelúcia no carrinho de bebê de Marcos. Jane traz um tigre de pelúcia e Estela arruma os dois no carrinho com o cinto de segurança. Como as duas não conseguem passar com o carrinho em uma extensão do pátio com pedras, Julinho entra no jogo e ajuda a empurrar o carrinho. Estela comenta com as outras crianças que vai pegar um cobertor para tapar os bebês. Quando ela sai para buscar o cobertor, observa algo no varal e retorna. Como vê sua camisa pendurada no varal, a idéia de cobrir os bichos de pelúcia com o cobertor é logo substituída. Desta forma, tapa os bichos com a camisa e continua no pátio. Julinho e Daniel desempenham papéis de trabalhadores e carregam pedras e as depositam dentro de latas. Estela propõe preparar pipocas para o grupo e corrige Mateus: É pi-po-ca! Não é pi-co-ca! Mas este jogo não se limita ao pátio. Num dado momento, Estela entra na cozinha com um saquinho contendo pedrinhas e oferece: querem pipocas? Eu aceito e Denise observa: cuidado, que Daniel coloca na boca. Estela responde para Denise: não coloca, não...eu tô fazendo pipocas de micro-ondas...(Diário de Campo, 06/07/2001). Como vimos, Denise interrompeu o jogo das crianças com sua lógica de adulto sugerindo que as pedrinhas não são pipocas. Comumente as crianças brincavam de comer pipocas ou outros alimentos sem, contudo, engolir as pedrinhas. Como Estela resolveu a questão colocada por Denise? De forma criativa respondeu que estava fazendo pipocas de micro-ondas e que Daniel não iria se machucar colocando as pedrinhas na boca. Iturra (2002, p.139) analisa as diferenças entre as lógicas infantis e as lógicas dos adultos em uma perspectiva antropológica. Segundo ele, as formas de respostas das crianças são criadas devido às tensões existentes entre a sua lógica e a onipotente sabedoria que o adulto pretende ter sobre o saber infantil. 221 Embora na situação em que Estela substituiu a camisa pelo cobertor não tenha havido uma intervenção de Denise, é provável que ela tenha retornado quando encontrou a camisa no varal porque certamente encontraria resistência da mãe ao pegar o cobertor de Mauro. Nos jogos e brincadeiras, as crianças maiores contribuem com as aprendizagens das crianças menores. Vimos como Estela corrigiu Mateus quando ele pronunciou picoca, ao invés de pipoca. Em outra situação, Julinho comentou que tem uma cafifa vermelha em casa. Marcos, ouvindo o comentário do colega, falou vemelho, mas Julinho corrigiu pronunciando vermelho (Diário de Campo, 04/07/2001). No início do capítulo explicamos que nem sempre as crianças ocupam os espaços da creche e residência obedecendo às regras estipuladas por Denise. Para as brincadeiras com os carrinhos, o espaço permitido é o corredor. Mas como no corredor as possibilidades de movimento se reduzem, os meninos costumam ultrapassar seus limites e brincam na sala ou nos quartos. Isto nem sempre é aceito por Denise, o que provoca reações interessantes entre as crianças. Usualmente, quando os meninos se dirigiam ao corredor com os carrinhos, Denise logo iniciava as recomendações: sem confusão... se for brincar de carro é no corredor(...) esse carro aí está sem roda... Daniel, pega um pra você (...) no corredor. Como o corredor é estreito, dificilmente os meninos conseguem rodar os carrinhos ao mesmo tempo e acabam se arrastando em direção à sala que é mais espaçosa. Em uma dessas ocasiões, Denise avisou: É no corredor! Quem tá brincando na sala? Marcos, é no corredor, não é na sala não!!! Daniel, ouvindo as recomendações de Denise, dirigiu-se para a sala repetindo: é no corredor! No entanto, Mateus e o próprio Daniel continuaram na sala e Marcos integrou-se ao grupo. Denise escutou o movimento deles e falou do quarto: Marcos! E os três meninos continuaram a repetir as ordens de Denise: é no corredor... titia falou que é pra brincar aonde? No corredor, porque se for para a sala eu vou tirar os carrinhos... o carro vai para a garagem. Daniel ainda observou: mãe, o caminhão vai subir aí...o caminhão vai subir.. (Diário de Campo, 19/06/2001). Como vemos, a imposição de regras não parece algo plenamente incorporado pelos meninos. Eles não parecem compreender esta divisão dos espaços que reflete uma lógica que não é a deles. Assim as reações, embora sugiram acatamento das ordens pela repetição das frases de Denise, também sinalizam para a resistência. Desta forma, quando predomina o 222 prazer e a descontração da brincadeira, o que realmente conta é sair dos limites do corredor, em direção à sala ou aos quartos, que oferecem melhores condições de movimento. As crianças criam situações nas quais imitam cenas do cotidiano nos jogos em que brincam de casinha, na preparação de alimentos, nos cuidados com os bichos de pelúcia, ou no trabalho de carregar pedras dentro de latas. Nesses jogos, fazem as suas interpretações sobre a realidade, de forma bem criativa. O mundo dos adultos, com suas regras de comportamento e valores sócio-culturais, é reproduzido nos jogos em que desempenham papéis de mãe, tomadora de conta, de pai, de trabalhador da construção civil ou de filhos. Denise demonstrou compreender as interpretações das crianças: “O brinquedo que eles gostam agora é pegar bichinhos de pelúcia e me imitar. Oh, você tá de castigo por causa disso e disso. Você bateu em não sei quem, isso é feio. Vai sentar ali e ficar cinco minutos de castigo. É isso que eles falam com o boneco, tentando me imitar. O que eles estão falando pro boneco é o que eu falo com eles” (Denise, 22/08/2001). Para Fernandes, as crianças referem-se mais a funções sociais do que a pessoas reconhecíveis quando desempenham os papéis de papai, mamãe etc.. Ele explica que as crianças abstraem estas funções de modo genérico, preservando o conteúdo social que as relações entre os indivíduos implicam: “Nos brinquedos desse gênero, como “papai e mamãe”, nós não podemos reconhecer o pai da criança, ou Paulo, ou Maria; o senhor fulano de tal desaparece porque, de fato, o que a criança tem em mente é executar um folguedo que ela aprendeu em contato com seu companheiro e para ela, no momento, o seu pai não existe...” (1961, p.172-173). Na perspectiva do autor, predomina o genérico nas funções sociais desempenhadas pelas crianças. No caso do grupo de crianças que observamos é interessante verificar que quando brincavam de casinha não havia a figura paterna, mas apenas a figura materna e de tomadora de conta, representada por Estela, e a de uma provável ajudante, representada por Jane. 223 Igualmente constatamos diferenciações nos papéis representados pelas crianças o que, de certa forma, demonstra a existência de uma hierarquia de idade entre elas. Assim, as crianças menores (Mateus, Marcos e Daniel) são geralmente os filhos e as crianças maiores (Julinho, Estela e Jane) coordenam as brincadeiras ou representam papéis de comando nos jogos de faz-de-conta. Tal situação se intensifica no caso de Estela, que além de ser a criança mais velha é a filha de Denise. Ela freqüentemente corrigia as outras crianças e inclusive Bia, quando esta carregava os bebês. Em algumas situações, quando os meninos se dirigiam à sala ou aos quartos para brincar de carrinho, solicitava que eles não arranhassem o piso. Os papéis desempenhados por Estela, tanto na vida diária da creche como nos jogos de faz de conta pareciam ser reforçados por Denise. Ela costumava solicitar ajuda de Estela, como na distribuição dos biscoitos do lanche da manhã. Nem sempre, contudo, as crianças se dispunham a tolerar esta hierarquia e recordamos que Julinho não deixava que Estela escolhesse os seus biscoitos. Conforme comentamos, Denise reconhece este papel de pequena tomadora de conta da filha, nas brincadeiras e na vida diária da creche. Vale a pena citar um outro depoimento seu a respeito de Estela: “A Estela se acha tipo como se fosse eu tomando conta das crianças. Ela se põe no meu lugar. Acaba todo mundo aceitando a brincadeira, acaba todo mundo fazendo aquilo que ela quer, entendeu? Ela tenta me imitar. Eu não quero que faça isso, é assim...não pode brigar, se brigar vou botar de castigo e se ficar de gracinha eu vou chamar a minha mãe. Ela é assim, ela quer fazer tudo que eu faço, ela quer se impor dentro da minha imagem. Pior que ela acaba até fazendo direitinho”(Denise, 22/08/2001). Tomando como ponto de partida as evidências obtidas nas observações, é possível afirmar que as crianças interferem no cotidiano da creche com as atividades espontâneas, que são expressões das culturas infantis. Tais constatações são decorrentes da análise dos fatos vividos no local e das reflexões obtidas pelo referencial da sociologia da infância54. 54 Segundo Pinto (1997, p. 67-68), uma boa parte da produção recente que tem contribuído para a construção da sociologia da infância é teórica e metodologicamente inspirada nas correntes da sociologia interpretativa, de inspiração fenomenológica, como o interacionismo simbólico e a etnometodologia. 224 Os autores e as autoras que estudam a infância citados neste capítulo compreendem as crianças como atores sociais55. Suas perspectivas se organizam em torno de uma sociologia interpretativa dos atores sociais, o que os diferencia dos estruturalistas e funcionalistas, que percebem a socialização como a inculcação de padrões sociais. Em um artigo sobre a emergência de uma sociologia da infância no Brasil, Quinteiro (2002, p.138-139) comenta que os estudos de Sirota (2001) e Montandon (2001) são um marco na releitura crítica do conceito de socialização e de suas definições funcionalistas, na produção de língua francesa e de língua inglesa. Ela ainda explica que a questão central colocada pelas duas pesquisadoras é a crítica à visão de criança considerada como tábula rasa, na qual os adultos imprimem a sua cultura. Sobre a produção brasileira, Quinteiro (2002, p.140-161) observa que ao contrário da produção européia, que tem preocupação com a revisão do conceito de socialização, em nosso país há uma vasta produção sobre a sociologia escolar e ausência de estudos sobre a condição social da criança no interior da escola pública. Afirma ela que não só na sociologia, mas no campo das ciências humanas e sociais, em geral os estudos sobre a criança e a infância não têm merecido, por parte dos pesquisadores, ao longo de todo o século XX e início do século XXI, uma atenção mais regular e sistemática. A autora refere ainda o trabalho de Fernandes, publicado em 1947 sob a denominação As trocinhas do bom retiro56, como um destaque na sociologia brasileira, no sentido de reconhecer a criança como um agente de socialização. Os autores que pensam e produzem estudos sobre a infância nos permitem compreender que as crianças da creche de Denise não são objetos de inculcação pura e simples 55 Vários trabalhos sobre a infância estudam as crianças como atores que interagem com as pessoas e com as instituições, que criam para si um lugar no mundo que as rodeia, que reagem aos adultos, negociam e redefinem a realidade social. Para Montandon (2001, p. 2), o conceito de socialização que se refere a um processo unilateral, no qual as instituições e agentes sociais procuram fazer com que os indivíduos assimilem, se adaptem e se integrem na sociedade, suscitou reações entre os sociólogos que estudam a infância. Assim, as diversas reflexões sobre a socialização não são independentes de um outro problema teórico que é a relação entre ator-estruturas. A sociologia interpretativa enfatiza mais a produção da vida social pelos indivíduos do que a produção dos comportamentos pelas estruturas sociais. 56 O estudo de Fernandes é um registro inédito de elementos constitutivos das culturas infantis captados a partir de observações sobre grupos de crianças em bairros operários de São Paulo que, após o período da escola, juntavam-se nas ruas para brincar. Além desse estudo, Quinteiro (2002) destaca outras obras como a de Martins (1993, p.15), que organizou uma coletânea de textos intitulada “O massacre dos inocentes”. O autor elegeu a criança como testemunha da história por reconhecer que são elas, nos dias atuais, os principais portadores da crítica social. 225 dos valores sociais transmitidos pelos adultos. Entendemos que no processo de socialização elas são sujeitos ativos, embora nas interações com os adultos e jovens também sofram imposições sociais. Sarmento & Pinto (1997, p.20) destacam que considerar as crianças como atores sociais tem implicações, como o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte delas e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas. Ambos questionam se as culturas das crianças, afinal, têm um sistema de construção de conhecimento e de apreensão do mundo que é específico das crianças e diferente dos adultos, e se é possível falar em uma autonomia das culturas infantis57. Temos afirmado que as culturas infantis interagem na creche domiciliar, principalmente pela criação de atividades espontâneas pelas crianças. Todavia elas não produzem culturas no vazio social, assim como não têm uma completa autonomia no processo de socialização. Como destacam os sociólogos portugueses (Sarmento & Pinto, 1997), é possível falar sobre uma autonomia relativa das culturas infantis. Isto significa que as respostas e reações das crianças, os jogos de faz-de-conta, as brincadeiras e interpretações que fazem da sua realidade, são um produto das interações com os adultos e outras crianças. Logo é preciso considerar as condições sociais nas quais vivem, com quem interagem e como produzem sentidos sobre o que fazem. Em artigo mais recente, Sarmento (2002) escreve que a identidade das crianças é também a identidade cultural, ou a sua capacidade de constituírem culturas não redutíveis totalmente às culturas dos adultos. Mas novamente observa que seria desajustado compreender as culturas da infância desligadas das interações com o mundo dos adultos. É por isto que não é suficiente afirmar que as crianças são atores sociais, ou que a infância é uma construção social, se não considerarmos suas posições específicas na estrutura social58. Voltando o olhar para o nosso estudo, isto quer dizer que não basta contemplarmos as 57 Estes autores portugueses (1997, p. 21 e 22) explicam que se essas culturas assentam nos mundos de vida das crianças e estes mundos se caracterizam pela heterogeneidade, é preciso ter em conta que há uma pluralidade de sistemas de valores, de crenças e representações sociais das crianças. É por isto que ao invés de falar de uma cultura da infância, eles defendem que existe uma pluralidade dos sistemas simbólicos, sendo preferível falar em culturas das crianças, ou culturas infantis. 58 Sarmento & Pinto (1997, p.10) destacam que a infância concebida como uma categoria social autônoma é analisada nas suas relações com a ação e a estrutura social. Eles explicam que as crianças sempre existiram, desde o primeiro ser humano, mas a infância como uma construção social - a propósito da qual se construiu um conjunto de representações sociais e dispositivos de socialização e controle - é uma idéia moderna. 226 atividades espontâneas das crianças sem considerar o local no qual elas vivem, os adultos com os quais se relacionam e a presença de elementos valorizados no contexto sócio-cultural de origem, como a televisão e os estilos musicais apreciados na creche domiciliar. A perspectiva interpretativa da sociologia da infância analisa as crianças como atores sociais e como portadoras de culturas. Essa concepção interfere na noção de socialização, que não mais se trata de adaptação ou interiorização das regras, hábitos e valores do mundo adulto. De acordo com Montandon (2001, p.42-43), Corsaro foi um dos precursores de uma perspectiva interpretativa e construtivista no estudo da socialização das crianças, ao se interessar pelo ponto de vista das crianças, pelas questões que elas se colocam e pelos significados que atribuem ao mundo que as rodeia. Para entendermos a teoria de Corsaro (2002, p.114-115) é fundamental remetermo-nos ao seu conceito de reprodução interpretativa. Em um artigo sobre a reprodução interpretativa no brincar ao faz-de-conta das crianças, denomina este processo de “reprodutivo”, porque as crianças não se limitam individualmente a interiorizar a cultura adulta que lhes é externa, mas tornam-se parte da cultura adulta e contribuem para a sua reprodução, através das negociações com os adultos e da produção criativa de série de pares com outras crianças59. Ele chama a atenção para um aspecto que também encontramos na creche domiciliar, qual seja, o de que numerosos estudos norte-americanos acerca do faz-de-conta das crianças enfatizam que estas, tanto nas camadas médias quanto nas camadas populares, recorrem a um estilo autoritário quando assumem papéis de chefia como mães, pais ou patrões. Encontramos este estilo autoritário, principalmente quando Estela assumia o papel de mãe e tomadora de conta das crianças menores, ou quando mantinha uma relação de hierarquia com Jane, ao brincarem de casinha. Não podemos, contudo, esquecer da valiosa observação de Fernandes (1961) ao assinalar que as crianças se referem mais a funções sociais do que a pessoas específicas nesses jogos. Provavelmente as crianças não estavam representando Denise, Elisa ou outras pessoas conhecidas nos jogos de faz-de-conta, mas sim os papéis de comando que absorveram das relações com os adultos. 59 Barra & Sarmento (2002), definem cultura de pares ou série de pares a partir da concepção de Corsaro, ou seja, como um conjunto de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e partilham na interacção com seus pares. Escrevem os autores que “antes de tudo o mais, as crianças aprendem com outras crianças, nos espaços de partilha comum. Estabelece-se dessa forma a cultura de pares. Entende-se 227 4.4 DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO “Por que esqueci quem fui quando criança? Por que deslembra quem então era eu? Por que não há nenhuma semelhança Entre quem sou e fui? A criança que fui vive ou morreu? Sou outro? Veio um outro em mim viver? A vida, que em mim flui, em que é que flui? Houve em mim várias almas sucessivas Ou sou um só inconsciente ser?” (Fernando Pessoa) No item anterior, a partir das contribuições de sociólogos da infância, afirmamos que as crianças são atores sociais com uma autonomia relativa, o que tem implicações no conceito de socialização. No desenvolvimento deste capítulo, temos apontado a constante atividade das crianças, suas apropriações de elementos do meio sócio-cultural de origem e as conseqüentes interpretações da realidade, com uma lógica peculiar das suas culturas de pares. Por estas razões, consideramos as crianças sujeitos ativos da socialização vivida na creche domiciliar. Quando tratamos do acolhimento das crianças, vimos como os bebês reagem com o choro aos estímulos ou às dificuldades que encontram nas relações com os adultos e com outras crianças. Considerando que as crianças têm uma autonomia relativa, o que significa que elas são limitadas pelo grupo social no qual convivem, trabalharemos com três dimensões da socialização no desenvolvimento deste item. Na medida em que ampliamos nossas análises, fomos constatando que estas dimensões refletem uma dominação dos adultos sobre os mundos por pares (de uma criança) o grupo de crianças com as quais esta partilha o mesmo espaço em regime de 228 das crianças, principalmente no que diz respeito à inculcação de normas e atitudes de comportamento valorizadas por Denise e pelas mães das crianças. Encontramos, em nosso estudo, traços de socialização das camadas populares, problematizados por Thin (1998), que são reproduzidos de forma interpretativa pelas crianças, principalmente quando brincam. Para compreender as três dimensões da socialização que referiremos é necessário ter em conta um aspecto: existe compatibilidade entre os valores, normas e hábitos de comportamento valorizados por Denise e os valores, normas e hábitos de comportamento que as famílias consideram corretas. Denise procura transmitir para as crianças os valores que transmite para as filhas. Assim, a educação da residência e a educação da creche parecem se complementar. A primeira dimensão da socialização que comentaremos trata das relações afetivas entre Denise e as crianças. O afeto e o toque corporal são aspectos valorizados no cotidiano da creche e isto se estende às relações de cuidado entre as crianças maiores e as menores. A segunda dimensão diz respeito à imposição de regras baseadas na autoridade dos adultos e no uso de punições e castigos, bem como à presença de valores religiosos, como o hábito de rezar e agradecer antes das refeições. Por último, abordaremos os modos de socialização que estabelecem diferenças entre os meninos e as meninas, constatando a existência de uma divisão de papéis sexuais na creche de Denise que reflete as divisões de papéis sexuais na vida e no trabalho dos familiares das crianças. 4.4.1 Afetividade e participação nos cuidados das crianças menores Como as crianças não são divididas em turmas e não há um projeto pedagógico na creche, as práticas de modo geral aproximam-se das de um ambiente familiar. Desta maneira, as crianças maiores convivem com as menores, havendo uma circulação constante delas nos espaços da casa e um envolvimento nos cuidados dos bebês, na troca de fraldas e na alimentação, por exemplo. habitualidade”. 229 As crianças costumam ajudar Denise em algumas tarefas cotidianas, carregando compras ou auxiliando as menores nas atividades de higiene. Freqüentemente demonstram interesse pelos cuidados dos bebês. Em uma das observações, Jane perguntou a Denise se Mauro ia tomar banho, ao que ela respondeu: não sei, meu amor, talvez eu dê um banho nele para refrescar. No horário do banho, Denise solicitou a Jane que pegasse um casaco de Mateus no varal: vê aquele casaco dele lá na corda, o do super-homem. Ao mesmo tempo, pediu que Julinho e Marcos não deixassem Mauro (o bebê) pegar as pipocas que eles estavam comendo no quarto. Marcos concordou e garantiu que eles iriam cuidar para que Mauro não comesse as pipocas (Diário de Campo, 18/06/2001). Já vimos que para as mães das crianças é importante o contato afetivo que Denise proporciona, e que valorizam o toque corporal. Além disso, as conversas sobre os corpos das mulheres eram freqüentes na creche. Como analisa Thin (1998, p.15), a distância entre os corpos é menor nas classes populares do que nas outras classes sociais, principalmente no que concerne às crianças. Os corpos são importantes, porque através deles os sentimentos se expressam mais facilmente do que pelas palavras. Os momentos de afetividade e contato corporal com as crianças ocorriam principalmente nas atividades de cuidados com os bebês. Esses momentos eram quase sempre compartilhados pelas crianças maiores de forma prazerosa. Quando os bebês (Mauro e Jonathan) acordavam as crianças acompanhavam Denise até o quarto e observavam as trocas com interesse. Elas costumavam brincar ou cantar para os bebês enquanto Denise conversava com eles de forma carinhosa: Ih, tá cagadinho! Meu pretinho, tá cocô? Heim, fedorento? A tia encontrou o Jonathan na rua! Heim, gostoso? (Diário de Campo, 19/06/2001). Nesses momentos, tanto os bebês quanto as outras crianças se beneficiam com as trocas e aprendem coisas novas. Esta participação estimula a solidariedade entre as crianças e o respeito às diferenças de idade, na socialização. Quando as crianças comem ou bebem alguma coisa diferente, costumam dividir com as demais. Em uma tarde Daniel entrou no quarto com uma lata de refrigerante e ofereceu um pouco para cada uma das crianças. Elas também vibram quando os colegas aprendem coisas novas, como no dia em que Mateus conseguiu calçar as sandálias sem a ajuda de Denise. Reiteramos que não há intencionalidade pedagógica nestas atitudes; os fatos vão se sucedendo porque é assim que Denise e as mães ensinam as crianças, ou seja, a solidariedade, 230 a ajuda mútua, a divisão dos alimentos fazem parte dos modos de existência destas pessoas. Entretanto, isto não significa ausência de intenção como um ato de vontade, emergente da interação social. Sarmento (1997) explica que a intenção pedagógica decorre da constituição de um mundo de vida, que é pensado no quadro de uma racionalidade comunicativa e não de uma racionalidade cognitiva-instrumental60. 4.4.2 Para exercer a autoridade é necessário punir e castigar Quando as crianças não cumprem as regras estipuladas por Denise, ela geralmente faz uso de castigos e punições, como privá-las da televisão e das brincadeiras. Nos castigos, Denise quase sempre perde o controle e fala em tom mais alto que o habitual, ou os aplica sem explicar a razão. Quando oferece alguma justificativa, o que predomina é uma ligeira informação a respeito da censura ao comportamento da criança. Entre as crianças, somente Daniel e Marcos ficavam de castigo; as censuras eram geralmente feitas aos meninos, como no exemplo do brinquedo de carrinhos restrito aos limites do corredor. Daniel freqüentemente ficava de castigo sentado em uma cadeira na cozinha ao lado de Denise, que fazia comentários: você vai brincar com o carrinho, pede para Estela que pegue o carrinho com Bia... vai lá brincar e sem confusão no corredor, senão volta a sentar aqui de novo. Comumente Daniel voltava ao grupo, mas se algum conflito acontecia Denise o chamava novamente para o castigo: Fica aí. Já que você não quer brincar com ninguém fica aí bem pertinho de mim. Alguns minutos depois, ele tentava convencer Denise a tirá-lo do castigo e ela comentava: não vai fazer bagunça, não? Vem, pode vir. Aqui não adianta fazer cara feia, que eu não tenho medo, não. Senta! Julinho, você também quer sentar perto de mim? Então para de correr! (Diário de Campo, 20/06/2001). Em outra situação, Mateus e Marcos se desentenderam por causa de um carrinho. Marcos reagiu tirando o boneco das mãos de Mateus, que terminou chorando. Marcos logo devolveu o boneco para Mateus: toma o bebê, toma. Ele resolveu contar a Denise que havia 60 O autor usa expressões de Habermas que são desenvolvidas no capítulo dois da sua tese: SARMENTO, Manuel Jacinto. Lógicas da acção-Estudo organizacional da escola primária. Braga: Universidade do Minho, 1997. 231 brigado e entregou o carrinho e o boneco para Mateus, mas este continuou chorando. A reação de Denise foi de ordenar que os dois sentassem na cozinha: Os dois aqui! Onde eu estou vendo! Eu não quero confusão! (Diário de Campo, 20/06/2001). Como podemos perceber, Marcos refletiu sobre suas atitudes com relação ao colega e modificou sua conduta, provavelmente porque se solidarizou com Mateus quando ele ficou sem os brinquedos. E mais, a solução que ele encontrou foi além da devolução dos brinquedos ao outro, pois dirigiu-se a Denise para relatar o acontecimento. Denise, porém, não conseguiu escutar o que ele disse e logo reagiu com outra punição. Isto ocorria quando ela parecia nervosa ou atrapalhada com a preparação das refeições, com a higiene ou o sono dos bebês, ou quando estava sem dinheiro devido aos atrasos de pagamentos de alguns familiares. O que predominava nos momentos de resolução dos conflitos eram as ameaças, as punições e os castigos, quase sempre centrados na autoridade do adulto. Denise outorga a punição, mas não discute as regras nem escuta os posicionamentos das crianças. No transcorrer das observações era comum que ela fizesse comentários sobre as crianças da creche. Nesses comentários, privilegiava as atitudes das crianças, enfatizando aspectos positivos, como a tranqüilidade e a obediência, e aspectos negativos, como a agitação e a teimosia. Denise tem preferência pelo trabalho com as crianças menores, justificando que estas compreendem e internalizam melhor as regras. Uma das suas dificuldades é lidar com os valores e hábitos diferentes daqueles que ela oferece às filhas, o que se acentua no caso das crianças maiores: “Já essas crianças, a dificuldade que eu entreguei essas crianças aos pais foi essa: de que as minhas filhas nunca me responderam: ‘ah vai tomar naquele lugar, você não me manda, você não é minha mãe, eu não vou fazer, eu não quero fazer, eu não sou obrigado a tomar banho, eu não sou obrigado a escovar os dentes’. E foi por isto que eu parei com essas crianças maiores. Crianças de sete anos em diante, eu não pego. Muito difícil lidar com essa faixa de idade. Porque a criança começa a querer ter a sua própria opinião e o seu caráter. Então ela quer impor aquilo que ela já está mostrando que vai ser mais tarde. Então fica difícil de você lidar com aquilo, se em casa já não sabem lidar” (Denise, 22/08/2001). 232 Nos casos de conflitos com as crianças maiores que resultaram na suspensão dos acordos com os familiares, Denise utilizou argumentos que culpavam a educação de casa, ou que estabeleciam diferenciações entre o modelo de educação familiar dela própria e os modelos de educação das mães das crianças. É importante considerar que as justificativas de Denise a respeito das divergências educativas estão exclusivamente voltadas para a formação de hábitos, valores e atitudes baseados na obediência às regras que os adultos estipulam. É necessário que exista simultaneidade entre os valores educacionais de Denise e dos familiares para que se mantenham os acordos e negociações. Nos relatos sobre as dificuldades das crianças no cumprimento das regras, Denise relacionou os conflitos ao modelo de família das crianças, geralmente monoparental. Denise ainda relacionava as dificuldades de trabalho com as crianças maiores à situação conjugal dos familiares, condicionando os problemas enfrentados com as crianças, às brigas entre os casais, à recomposição familiar de um dos cônjuges, ou à sobrecarga de trabalho e educação dos filhos que enfrentam as mulheres sem cônjuge. De modo geral ocorre a legitimação das regras e castigos pelos familiares daquelas crianças que permanecem na creche. Temos argumentado que há uma simultaneidade entre os valores, hábitos e atitudes que Denise põe em relevo na educação das filhas e os modos de educação prestigiados pelos familiares das crianças. Ao lado do toque corporal e do afeto também encontramos uma ênfase nos castigos e punições baseados na autoridade dos adultos. E não esqueçamos que os castigos quase sempre incidem diretamente sobre os corpos das crianças, que são privadas de movimento por algumas horas. Encontramos diferenças, entretanto, entre as constatações anteriormente apresentadas e o discurso de Denise, Bia e Nara quando afirmam que fazem tentativas de dialogar com as crianças. Foi dito, por exemplo, que no caso do uso de punições e castigos elas procuram explicar às crianças as razões destes atos, razões estas quase sempre vinculadas ao não cumprimento dos acordos e regras: “Eu estava falando ontem com uma amiga minha que o melhor castigo pra uma criança é o castigo tipo: Ah, você fez isso? Você não vai ver televisão, você não vai ver o programa que você gosta. Enquanto você não melhorar nesse aspecto, você não vai ter o que quer. Antes eu 233 pensava que o melhor ensino era o bater, era isso, era aquilo. Hoje eu sei o que a minha mãe falava, que o melhor castigo é tirar o que gosta e o diálogo. Tendo esse diálogo desde criança, pode ter certeza de que a criança vai crescer, pelo menos tentando seguir aquilo que você está determinando para ela” (Denise, 22/08/2001). Denise apresenta uma análise bem realista da situação. Ela própria pensava que bater era a melhor solução, mas com o passar dos anos e com outras experiências de vida percebeu as vantagens de dialogar com as crianças. No entanto na vida diária da creche há muitas responsabilidades para cumprir e tarefas que acontecem em simultaneidade com outras, como cozinhar, cuidar dos bebês e das crianças maiores. Nem sempre Denise consegue manter um diálogo com as crianças. A prática de punir as crianças sem oferecer explicações é analisada por Thin (1998, p.21) no que diz respeito às sanções sem justificativas aplicadas pelas famílias das camadas populares. Convém destacar que este autor está olhando as práticas socializadoras de familiares que residem em bairros populares franceses. Respeitadas as diferenças geográficas, sociais e culturais, observamos que Denise não justifica suas decisões, fazendo predominar a sua autoridade, legitimada pelos familiares das crianças. Conforme escreve Thin (1998), a autoridade se manifesta de maneira contextualizada e se aplica a uma situação precisa e imediata. A sanção pode tomar a forma de punição consistente ao privar a criança de um brinquedo, de um passeio ou da televisão. Tais punições estão presentes na creche domiciliar: como vimos, os castigos mais freqüentes aplicados aos meninos são privá-los de brincar com as outras crianças, de assistir televisão ou de sair para as compras com Denise. Na perspectiva de Thin (1998, p.22), as sanções são pouco justificadas por considerações educativas gerais. Para ele, não se trata de admitir que não existe uma base moral às sanções infligidas às crianças; todavia é mais uma questão de moral prática que se exprime nos atos repressivos em si, sem o acompanhamento discursivo que permita uma tomada de distância reflexiva por parte das crianças ou dos pais. Está-se longe de uma relação pedagógica em que a punição se aplica às “faltas de regras” e em que reina a “submissão de todos a uma ordem impessoal”. 234 Na creche de Denise não encontramos um planejamento pedagógico e não poderia ser diferente com as punições e castigos. O que predomina é um modo de socializar as crianças semelhante ao universo familiar dela própria e dos familiares das crianças. Tais constatações nos colocam um outro problema: por que Denise, Bia e Nara apresentam discursos sobre as regras, os castigos e punições que estão mais próximos do universo escolar, se não encontramos nas práticas cotidianas tentativas de estabelecer trocas de pontos de vista com as crianças? Desde a descrição da trajetória e vida de Denise temos observado que ela é uma mulher inteligente e observadora. Denise sabe que representamos a Universidade e que esta investigação retornará a um meio predominantemente ocupado por profissionais da educação. Em uma análise precipitada poderíamos afirmar sem maiores explicações que existe um distanciamento entre o que ela diz e o que ela faz. Ainda que na convivência com as crianças nem sempre Denise consiga se distanciar e refletir acerca das suas práticas, pensamos que uma provável resposta para nossa indagação é que ela tenha fornecido respostas esperadas pelas pessoas ligadas à Universidade. Nesse sentido, não nos parece adequado afirmar que encontramos contradições entre os discursos e práticas de Denise. A explicação mais plausível é que ela tenha formulado respostas enfatizando um padrão de socialização que, na sua ótica, é o padrão considerado correto pelas pessoas que freqüentam o mundo acadêmico. Denise trabalhou no passado com pessoas com formação pedagógica, além de freqüentar a escola de ensino fundamental e de acompanhar a vida escolar das filhas. Estas experiências e as suas prováveis deduções parecem ganhar peso nos discursos que apresenta sobre as punições e castigos. A religião é outro aspecto valorizado na socialização da creche domiciliar: freqüentemente Denise cobra o respeito ao hábito de rezar antes das refeições; na descrição da creche e residência apontamos a existência de alguns objetos religiosos; Denise e algumas mães (Elisa e Íris) freqüentam a igreja Universal: “Eles têm que aprender que tudo que eles estão comendo, com certeza é o senhor Jesus que dá para eles. Então, eles têm que agradecer aquilo que o senhor Jesus está dando para eles comerem. Porque se não fosse o senhor Jesus dar condições para o pai e a mãe levantar para ir trabalhar, com certeza a tia Denise não teria condições de ter o dinheiro para comprar 235 para eles. Isso aí eu acho importante que a criança agradeça” (Denise, 22/08/2001). Este discurso demonstra como Denise enfatiza hábitos religiosos na creche domiciliar, embora não mais consiga freqüentar a Igreja Universal devido à extensa jornada de trabalho. Principalmente na hora do almoço, cobrava das crianças o hábito de rezar. Em uma dessas práticas, Denise serviu Estela e observou em voz alta: Não esqueceu nada, não, Estela? Estela havia iniciado a comer, e explicou que estava comendo só um pouquinho. Denise continuou a servir as outras crianças e solicitou a Julinho que iniciasse a oração. Como ele ficou calado, ela própria foi rezando e as crianças repetiam: papai do céu, abençoa o nosso papazinho de hoje, que nunca venha faltar, em nome do pai, de Jesus, amém. No final da oração ela, as ajudantes e as crianças bateram palmas (Diário de Campo, 15/06/2001). 4.4.3 Coisas de menino e coisas de menina No cotidiano da creche domiciliar observamos uma divisão nítida entre os meninos e as meninas tanto no que diz respeito às punições e castigos, quanto nas atividades de higiene, de ajuda, ou nas brincadeiras. Durante as observações, não vimos as meninas sofrerem qualquer tipo de punição ou castigo. Entretanto, Denise fazia cobranças a Estela com o intuito de que ela servisse de exemplo às outras crianças. Ela solicitava que Estela não estragasse os brinquedos, que não brigasse com as outras crianças, que não carregasse os bebês no colo, entre outras recomendações. Quanto às solicitações de ajuda, percebemos que as meninas participavam mais no auxílio das tarefas domésticas do que os meninos. Nas atividades de higiene, especialmente no banho, Denise separava os meninos e as meninas. Os meninos, especialmente Daniel, foram descritos por Denise, Bia e Nara como mais teimosos no sentido de seguir as regras estabelecidas na creche. Elas disseram que os meninos têm mais dificuldade para compreender as regras, o que demonstra os significados e estratégias diferentes nos modos de socialização dos meninos e das meninas: 236 “Com os meninos. Que é o Daniel (risos). Não tem um dia que ele não fique aqui dentro comigo. Porque é aquela coisa da criança ser mais explosiva. Ele sabe que brincando ali fora ele não pode subir onde o pai está construindo a casa deles. Que tem uma escada. Mas ele vai. Eles sabem que não podem ficar aqui na frente quando eu não estiver aqui na frente. E é sempre ele que vem aqui na frente. Ele fica aqui dentro comigo um tempo, dez, quinze, vinte minutos e depois eu ponho ele lá para fora de novo e ele vai brincar. Aí ele já não vai mais para lá. Aí ele vai e brinca direitinho ali naquele ponto onde eu estou vendo. Ele sabe que o limite é: se eu estou arrumando a sala, eles podem ficar aqui. Onde eu estou vendo, na minha vista. Se eu for para a cozinha, eles ficam ou aqui, ou ali daquele lado onde eu estou vendo” (Denise, 22/08/2001). “A gente explica, você não pode fazer isso. Mas só que a gente explica várias vezes pro Daniel e ele faz de novo. O Mateus fica de vez em quando, mas o Daniel é pior” (Bia, 21/08/2001). Percebemos que, nos momentos de conflito, as intervenções com os meninos se baseavam em um reforço do tipo negativo, enquanto com as meninas havia um reforço positivo, no sentido de ressaltar qualidades culturalmente definidas como femininas, entre elas a passividade e a obediência. Quando as crianças, inclusive as meninas, brigavam no pátio, Denise chamava por Daniel ou pelos outros meninos: Cai no chão agora, faz pirraça comigo, coisa feia! Tá de castigo, coisa feia! Fazendo pirraça e ainda querendo bater? Que negócio é este? Em outra situação Denise ordenou que Estela, Julinho e Jane colocassem as garrafas de água dentro da pia: Já colocaram? Agora vão para a sala e sem confusão. Ao mesmo tempo avisou que ia passar o desenho dos Simpsons na TV e mandou Daniel ficar na cozinha e Mateus terminar de almoçar. Como Daniel fez carinho em Denise, ela correspondeu, mas ao mesmo tempo observou: Senta, não tenta me enganar, não (Diário de Campo, 09/07/2001). Como estas situações predominavam na vida diária da creche, perguntamos a Denise, Bia e Nara se elas encontram diferenças entre os meninos e as meninas. As três responderam afirmativamente, sempre enfatizando as diferenças de comportamento e de atitudes. Para Denise existem diferenças entre os meninos e as meninas sobretudo porque os meninos querem impor suas vontades e gostos. Por outro lado, ela também reconheceu que as meninas não aceitam tranqüilamente os desejos dos meninos. Constatamos que em algumas atividades as meninas fazem prevalecer suas vontades, principalmente quando brincam de 237 casinha. Na brincadeira de casinha, o papel de filho é desempenhado pelos meninos menores e as crianças reproduzem, de forma interpretativa, as subordinações de idade entre adultos e crianças e os papéis das mães e mulheres que, nas camadas populares, são as responsáveis pela organização da casa. Logo, não é estranho Denise afirmar que em algumas situações as meninas fazem prevalecer suas vontades. Nas brincadeiras, observamos que as meninas jogavam bola com os meninos e, em algumas situações, brincavam com os carrinhos. Jane parecia mais flexível do que Estela, que nem sempre aceitava brincar com coisas de meninos. Um diálogo estabelecido entre as meninas ilustra esta afirmativa: Jane fala para Estela: Não vai brincar de carrinho, não? Estela responde: Eu não, eu não sou homem (Diário de Campo, 20/06/2001). Dificilmente os meninos brincavam com os bichos de pelúcia ou com a única boneca existente na creche. Brincar com bonecas não era permitido aos meninos, como veremos a seguir. Utilizamos a categoria gênero na análise das trajetórias e significados do trabalho de tomar conta de crianças para Denise e as mães das crianças. No cotidiano da creche domiciliar elegemos novamente esta categoria, porque percebemos que as diferenças de papéis sexuais também fazem parte da socialização das crianças. O uso da categoria gênero pressupõe uma relação com as dimensões das diferenças entre os sexos e as relações de poder resultantes destas diferenças. O referencial teórico de gênero que adotamos no estudo trata das relações sociais de gênero e sua variabilidade, na medida em que é possível tratar de contextos espaço - temporais diferentes e, suas relações com classe, raça e subordinações de idade. Delamont (1985, p.20), em estudo sobre os papéis sexuais e a escola, escreve que o gênero deve ser utilizado para mencionar todos os aspectos não biológicos das diferenças entre indivíduos do sexo masculino e indivíduos do sexo feminino, como: vestuário, interesses, atitudes, comportamentos e aptidões que separam os estilos de vida dos homens e das mulheres. Assim, entendemos que o gênero é criado socialmente, visto que todas as culturas já descobertas em todo este mundo têm normas muito diferentes para a masculinidade e feminilidade (1984, p.24). No cotidiano da creche domiciliar as diferenças de papéis sexuais apareciam em situações nas quais Denise, Bia e Nara intervinham, ou nas brincadeiras e jogos de faz-de- 238 conta das crianças. Para Denise, as diferenças entre os meninos e as meninas são estabelecidas quando eles brincam em grupos: “Tem que ser diferente. Não, você quer jogar bola, elas também vão jogar bola com vocês. Mas se elas estiverem brincando ali na casinha, vocês também podem brincar de casinha com elas, que isso não vai afetar você em nada. E graças a Deus, esse problema eu já não tenho mais. Elas brincam de bola, brincam de carrinho, eles só não brincam de boneca. Porque aqui você praticamente vê que bonecas não têm. Elas não são chegadas a bonecas. São mais chegadas aos bichinhos de pelúcia, que elas dizem que é o neném. Os meninos brincam da mesma forma, só que os meninos desempenham a parte do pai. Eles saem para trabalhar. E o trabalho deles é fazer o quê? Eles pegam o negócio ali que tem do carrinho, pega as pedras que estão espalhadas ali, joga tudo dentro do carrinho e vai jogando em cima das pedras. O trabalho deles é esse, é tipo o pai saindo para trabalhar. Jane e Estela ficam em casa tomando conta dos nenéns” (Denise, 22/08/2001). Bia e Nara enfatizaram que os meninos não podem brincar de bonecas porque isto pode afetar a construção do sujeito masculino deles, ao contrário das meninas, que podem jogar bola: “Ah, acho que boneca é pra menina, entendeu? Nem o pai, nem a mãe dele vai gostar disso. De ver o menino brincando com a boneca” (Bia, 21/08/2001). “Menino sempre brincando de carrinho. Carrinho e bola. Agora menina gosta muito de brincar de ursinho. Mas a gente só divide isso. Nas brincadeiras de bola, de jogar um a bola pro outro, a gente bota tudo junto. Agora de carrinho é menino, de ursinho e de bonequinha são as meninas. A gente divide isso. Porque depois vai pegar mal. As crianças vão crescer, aí depois na escola. Os meninos brincando de boneca na escola. Vão pensar o quê? Vai ficar zoando do coitado, né? Por isso que a gente começa logo de pequeno: oh, você vai brincar de carrinho, só de carrinho e de bola. Vocês meninas de boneca, brincar de arquinho, de pentear.Até hoje eles brincam da mesma coisa, os garotos de carrinho e as meninas de boneca” (Nara, 21/08/2001). 239 Seguramente as intervenções de Denise, Bia e Nara são marcantes e, neste aspecto, os discursos das três confirmam o que observamos na prática. Possivelmente esta coerência entre discurso e prática aconteça porque a divisão dos papéis sexuais é algo naturalizado entre Denise e as mães das crianças. Nos capítulos anteriores vimos que para elas cabe o cuidado da casa e das crianças, mesmo quando os cônjuges estão desempregados. Além disso, com exceção de Juçara, entre as demais mulheres o desejo predominante é de que os cônjuges obtenham uma renda melhor através de um emprego estável para que elas ou diminuam as atividades, ou parem de trabalhar. Assim estabelece-se a expectativa de que nas brincadeiras as crianças reproduzam imagens dos papéis masculinos e femininos que são valorizados nos grupos familiares. Lembramos do que observa Bourdieu (1999, p.3) sobre a eternização da dominação masculina que se produz num trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social, o que transforma a construção social dos gêneros masculino e feminino em uma construção social naturalizada. Em vários aspectos do cotidiano da creche domiciliar constatamos este trabalho de construção social naturalizada dos gêneros masculino e feminino, contudo encontramos outros movimentos no sentido contrário a esta construção, tanto nas trajetórias das mulheres retratadas nos capítulos anteriores, como entre as crianças que nem sempre correspondiam as expectativas dos adultos. Nem sempre as crianças reagem nas brincadeiras em conformidade com as expectativas dos adultos. Principalmente Marcos brincava com os bichos de pelúcia, ou com outros objetos considerados coisas de menina. Quando isto acontecia, Denise logo intervinha, embora Marcos não fizesse o que ela solicitava. Observamos Denise falar para ele, que carregava uma bolsa feminina de cor amarela nas mãos: Já falei para você que isto é bolsa de menina! Daniel escutou o que Denise disse e chamou Marcos de menininha. Mas Marcos, apesar de simular que iria entregar a bolsa para Estela, não concluiu a ação e continuou carregando a bolsa amarela nas mãos (Diário de Campo, 04/07/2001). Das meninas, Denise, Bia e Nara esperam passividade e conciliação. Já os meninos são descritos como explosivos e menos conciliadores. Quando os meninos brigavam, às vezes Denise solicitava a intervenção das meninas como conciliadoras. Em uma disputa por carrinhos entre Mateus e Marcos, escutei Denise pedir a Jane: dá a mão você a ele. Você é 240 menina e mais amigável! Jane logo reagiu falando para Mateus: Vem com a mamãe, vem! Eu vou levar o seu carrinho! (Diário de Campo, 21/06/2001). Ao refletir sobre as diferenças na escolha dos brinquedos segundo o gênero, Delamont (1985, p.33) destaca que o mundo dos brinquedos e dos jogos oferece às meninas uma gama de funções mais estreitas que aos meninos, assim como as funções oferecidas às meninas são essencialmente passivas e centradas no lar. O conceito de relações sociais de gênero nos ajuda a compreender que as pessoas são transformadas pelas relações de gênero em homens e mulheres, logo a trajetória se faz do social para os indivíduos que nascem e os significados do que é masculino e feminino são uma construção social, histórica e cultural. Mas não esqueçamos que esta construção com relação aos significados do que é masculino e feminino ocorre igualmente no simbólico, na linguagem, nos discursos e nos sentidos. Nós observamos que nesse cotidiano também ocorre uma produção de significados dos corpos como um depositário de princípios de visão e de divisão sexuantes tal como aponta Bourdieu (1999). Na rotina do banho observamos que os meninos têm mais liberdade do que as meninas, no que diz respeito à exposição dos corpos. Geralmente eles tomavam banho antes delas e se despiam na frente delas. Jane e Estela se despiam no banheiro e saíam vestidas do banho. No caso de Estela, a exposição do corpo era mais controlada por Denise, pois a menina tomava banho com a roupa de baixo. Por outro lado, alguns programas de televisão e estilos musicais estimulam os estereótipos de gênero, principalmente aqueles que exploram a exposição dos corpos femininos para sedução. Quando os meninos olhavam gravuras de revistas, expressavam as representações masculinas sobre os corpos das mulheres: ih, tem mulher pelada! Em algumas atividades com música, as crianças cantavam trechos de canções com estereótipos sobre as mulheres e seus corpos: são as cachorras, as preparadas, as popozudas...(Diário de Campo, 26/06/2001). 4.5 O TRABALHO DE DENISE NA CRECHE-SÍNTESE 241 Dialogamos neste capítulo com duas perspectivas de socialização: A de Daniel Thin, cujos conceitos são mais utilizados em uma perspectiva de institucionalização escolar da infância e de dominação adulta nas camadas populares, e a da sociologia da infância, que discute o conceito de socialização considerando os modos ativos de interpretação das crianças. Vimos, também, como a perspectiva da sociologia da infância, ao adotar o conceito de autonomia relativa das crianças, admite a perspectiva de inculcação normativa e comportamental dos adultos. Conforme destacamos anteriormente, os conceitos de Thin (1998) são utilizados porque encontramos na creche domiciliar, traços das práticas não escolares de socialização das famílias populares. Foi, porém, o referencial da sociologia da infância que possibilitou o entendimento de outras questões surgidas nas observações do cotidiano, tais como as brincadeiras, os jogos, as culturas infantis e a relação das crianças com a mídia. Assim, ainda que de forma indireta, as vozes e a presença das crianças nesse cotidiano foram ganhando expressão. Na creche domiciliar não encontramos uma proposta pedagógica formalizada, o que não significa ausência de educação no processo de socialização. As três dimensões de socialização analisadas, assim como as atividades rotineiras, os acontecimentos, as atividades improvisadas por Denise, Bia e Nara e as atividades espontâneas criadas pelas crianças demonstram a existência de relações educativas, embora sem intencionalidade pedagógica. Desde o capítulo anterior, analisamos situações que apontam para uma perspectiva familiarista de educação na creche de Denise. Neste capítulo vimos como esta perspectiva se estrutura nas práticas diárias. Poderíamos sintetizar dizendo que os modos de socialização na creche de Denise refletem o universo familiar das crianças e dela própria. Esta educação que identificamos como familiarista parece estruturar-se em torno de objetivos que emergem das necessidades de sobrevivência dos adultos e crianças, das limitadas garantias de bem estar das crianças, ou seja, da satisfação das necessidades básicas como alimentação, sono, higiene, cuidados com a saúde, proteção e afeto. Não há planejamento das ações, o que não exclui intenção educativa das práticas socializadoras vividas na creche domiciliar. Vimos que as propostas pedagógicas, tanto para os familiares quanto para Denise, significam “escolarização”; as crianças maiores de quatro anos geralmente freqüentam escolas 242 infantis e classes de alfabetização que preparam para as aprendizagens da leitura e escrita. Para Denise, Bia, Nara e para as mães das crianças, a escolarização significa um caminho para se conseguir um trabalho e uma profissão, ou para oferecer um futuro diferente para os filhos. As mães e Denise entendem que trabalho pedagógico é algo que acontece nas escolas infantis legalizadas, cuja função é preparar para a alfabetização e para a escolaridade formal. A creche domiciliar é o local para propiciar às crianças tudo aquilo que as mães não conseguem oferecer devido às suas condições de existência. Elas esperam que as suas crianças sejam cuidadas, protegidas, acariciadas, curadas, que se divirtam e brinquem, mas que também recebam limites e adquiram hábitos de obediência aos adultos. Afirmamos que o modo de socialização na creche é familiarista, porque Denise incorpora os filhos e filhas de outras mulheres no seu cotidiano de mãe. As rotinas da creche descritas neste capítulo, bem como os acontecimentos e as atividades espontâneas, podem ser comparados aos fatos que se sucedem em uma família numerosa. Desta forma, a higiene, a alimentação, as saídas para as compras, a participação das crianças em algumas tarefas, os passeios e festas comemorativas, a preparação para a escola, o repouso, as brincadeiras, são elementos do cotidiano que reiteram esta perspectiva familiarista de educação. Tal como acontece nas famílias dos meios populares analisadas por Thin, as trocas entre Denise e as crianças não se baseiam em uma comunicação pedagógica: “A criança não se constitui em objeto de educação no sentido pedagógico do termo, mas não se pode dizer que não se ocupa, ou que não existe uma prática pela qual se transmitem regras, modos de existência, modos de relações com a autoridade...” (Thin, 1998, p.20). As divisões dos papéis sexuais que aparecem nas brincadeiras e em outras situações da creche domiciliar confirmam as similaridades entre o que pensam as famílias das crianças e Denise, quanto aos papéis feminino e masculino. Exatamente como aconteceu nas trajetórias de Denise e das mães, as meninas são estimuladas a proteger e cuidar das crianças menores. E Estela, tal como Nara, provavelmente será uma das ajudantes de Denise nos próximos anos, se esta continuar exercendo a mesma atividade. As distinções entre as coisas de menino e as coisas de menina parecem se entrelaçar com a concepção de família nuclear valorizada por Denise, na qual o homem é o provedor e a mulher deve ser mãe e dona-de-casa. São as mulheres que cuidam, que conciliam os conflitos, que se preocupam com a organização da casa e a manutenção dos laços familiares. Estes são 243 traços valorizados no grupo de moradores do local, presentes na socialização das crianças. É assim que o processo de ser mulher e ser homem parece ter início antes mesmo da entrada das crianças na escola formal. Nos processos de socialização da creche, compreendemos as crianças como sujeitos ativos que produzem práticas e representações a respeito do mundo com o qual interagem. Mas é impossível ignorar os limites do espaço social no qual são socializadas. Mesmo com suas culturas de pares interferindo no cotidiano da creche, elas fazem parte de um bairro, de grupos familiares das camadas populares que têm modos de socialização e lógicas muito peculiares ao meio de origem. Tanto os meninos como as meninas repetem os padrões dos grupos aos quais pertencem, entre eles a divisão sexual do trabalho. Como vimos no desenvolvimento do capítulo há um espaço de autonomia relativa das crianças, mas esta autonomia também supõe a incorporação de padrões e valores que fazem parte do meio sóciocultural das crianças. Denise, Bia, Nara, as crianças e seus familiares, pertencem às camadas populares e a socialização vivida na creche domiciliar se dá segundo os valores de uma classe social. O trabalho de Denise reforça os modos de socialização das camadas populares. Apresentamos exemplos disto neste capítulo, entre eles a ajuda mútua, que é valorizada nas relações entre as crianças. Conforme destaca Thin (1998, p.26 - 27), para vencer a precariedade e as dificuldades da vida, existe uma forma de solidariedade própria das famílias populares. A ajuda mútua manifesta-se e aparece freqüentemente entre vizinhos. Em várias famílias, a ajuda mútua tem caráter comunitário. Esta vida comunitária contribui para a pequena separação entre as atividades das crianças e dos adultos61. Denise é quem deve transmitir os valores baseados nas ordens e na submissão às regras dos adultos, exatamente como acontece em uma família. Estes são valores específicos de uma classe social. Como observa Queiroz (1995)62, as classes mais altas insistem nas capacidades 61 O autor chama atenção para um aspecto importante, que diz respeito ao cuidado que devemos ter quando idealizamos a idéia de comunidade ou solidariedade nas famílias populares. Nós vimos que Denise não mantinha uma relação estável com toda a vizinhança, ocorrendo fofocas constantes sobre a sua vida privada. 62 QUEIROZ, Jean-Manuel de. L’école et ses sociologies. Paris: Nathan, 1995. Tradução do item 2 Comprendre lês familles populaires, p. 70-81 do capítulo 3 Familles et élèves, p.63-89 Rita Cristina Lima Lages e Ramon Correa de Abreu. 244 de iniciativa e autonomia, na sensibilidade e expressividade pessoal, enquanto que nos meios populares os valores estimulados são a ordem, a obediência e a limpeza. Finalizando, só é possível compreender as práticas que constituem o que denominamos de perspectiva familiarista de educação a partir das condições de existência de Denise, dos familiares das crianças e dos moradores do local. Tentamos contemplar a realidade em foco evitando o olhar da classe média sobre as práticas que lhe causam estranhamento (Queiroz, 1995), entendendo que as práticas socializadoras da creche coexistem com as condições materiais de existência daqueles adultos e daquelas crianças. Para encerrar este capítulo lançaremos uma questão. Daniel, o sobrinho de Denise, é quem sofre mais punições no grupo. Precipitadamente, poderíamos afirmar que os atrasos no pagamento por parte de Carlos é que provocam esta rigidez na relação de Denise com o sobrinho. Há, porém, outros dados que podem explicar a situação. Denise sabe que Daniel convive com o alcoolismo e com a dependência de drogas do pai. Ela própria, na sua trajetória, relatou a dependência de drogas do irmão e a participação dele em alguns assaltos. O crime, o tráfico e o envolvimento com a polícia fazem parte do cotidiano dessas pessoas. Podemos recordar os relatos sobre a violência dos bailes funk, sobre a prisão do filho de Nilcéia, antiga parceira de Denise, entre outros. Estes fatos podem explicar a insistência de Denise para que o sobrinho obedeça às regras que ela estipula na creche domiciliar, uma vez que o medo da transgressão ou o medo de que os parentes entrem no mundo do tráfico faz parte das vidas das mulheres que entrevistamos. “O risco da decadência está sempre presente para essas famílias perpetuamente no limite da sombra de dificuldades maiores ainda, ou de serem estigmatizadas pelo comportamento de um de seus membros. A decadência pode vir notadamente através das crianças se elas envergonharem os pais ou levarem o conjunto da família a ter problemas judiciais e suscitarem a reprovação social” (Thin, 1998, p.19). 5. PARA CONCLUIR: TECENDO OS SENTIDOS DO TRABALHO DE TOMAR CONTA DE CRIANÇAS Com esta investigação propusemo-nos analisar os significados de tomar conta de crianças, para Denise e cinco mães, e os desdobramentos desse trabalho no cotidiano da creche domiciliar. No processo de escrita da tese defrontamo-nos com um desafio: como romper com estereótipos e preconceitos sobre uma realidade diferente e, de certa forma, estranha? Fomos buscar respaldo em estudos sociológicos e antropológicos realizados, sobretudo, em meios populares, os quais forneceram pistas a respeito de como a compreensão daqueles que nos são diferentes deve superar a perspectiva da falta ou carência de algo. Não vimos as mulheres somente como figuras pobres, excluídas, desmobilizadas e sem direitos sociais. Percebemos seus sentimentos e as dimensões simbólicas de suas vidas, trabalho e criação dos/as filhos/as. Denise realiza uma atividade que não é reconhecida pela legislação trabalhista. Ela apresenta uma dimensão simbólica de sofrimento (Paixão, 2002, p. 280) decorrente da desvalorização com que a sociedade concebe o trabalho que realiza. Denise luta, à sua maneira, para obter reconhecimento, pelo menos no bairro em que reside. Lembramos que ela freqüentemente manifestava seu desejo de continuar os estudos e concluir um curso superior. A frase que abre o capítulo segundo da tese, Creche, não! Aqui se toma conta de crianças, demonstra preocupação quanto à ilegalidade e clandestinidade da sua função. Não ignoramos a importância da conjuntura social, econômica e política e das condições materiais de existência dos atores sociais na análise da problemática. Porém, propusemo-nos a analisar os significados: isto requer um olhar voltado para as subjetividades, mesmo não pressupondo um descolamento das condições objetivas de vida. Procuramos examinar as soluções criadas por moradores de um bairro sem acesso a creches e pré-escolas públicas, observando suas diferentes perspectivas sobre cuidado/educação de crianças. No convívio com essas pessoas fomos aprendendo que suas interpretações sobre a realidade são bem mais complexas do que um primeiro olhar pode perceber. Logo, evitamos classificar essas práticas como pobres, uma vez que Denise tem 246 conhecimentos acerca das crianças e do trabalho que realiza e as mães das crianças refletem sobre o que esperam da creche domiciliar. Como voltamo-nos para os significados e o cotidiano da creche, no desenvolvimento do estudo as falas dos adultos, das crianças e jovens foram a pedra de toque para responder nossas questões; falas carregadas de “subversão, porque contêm porções de irreverência, ironia e espontaneidade, falas que contêm o traço do que se gostaria de recalcar” (Perrot, 1988, p.206-207). No exercício de deixar falar estas vozes no texto, evitamos a sobreposição da teoria, ou dos dados empíricos na escrita dos capítulos. Desta forma procuramos construir uma simbiose discursiva, entre as vozes dos atores sociais, a literatura consultada e as dimensões analisadas. O universo observado apontou questões sobre as crianças e suas culturas a cultura hegemônica, que entra pela televisão e pela mídia em geral, bem como as interações com o local, presentes nas brincadeiras e jogos infantis. Não tínhamos intenção de tratar das vozes das crianças quando definimos a problemática. Todavia, a entrada no universo da creche domiciliar fez com que as culturas infantis aparecessem nos diários de campo. Partindo dessa visibilidade pensamos que as vozes e culturas das crianças sugerem uma continuidade de estudos voltados para os significados construídos pelas crianças, o que demonstra que uma tese abre outros caminhos e possibilidades de investigação. Salientamos que ter escutado as vozes dos atores sociais não significou enaltecer, de forma ingênua ou romântica, os saberes, as experiências ou a capacidade de organização das mulheres do local. Os sentidos do trabalho, bem como as relações e os cruzamentos com o referencial teórico, mostraram a coexistência das dimensões de fragilização e força, possibilidades e limitações, tanto nas trajetórias de vida como nos discursos e organização do cotidiano da creche domiciliar. Concluímos o estudo com a convicção de que é inviável, na análise dos dados, um raciocínio que se pauta em binarismos. Como escreve Ramalho: “(...) as distinções entre ciência e senso comum, razão e emoção são reconhecidas como binarismos culturais, pois a cultura se entende a si própria como estruturalmente binária, distinguindo o bem do mal, o branco do preto, o mito da verdade, a ciência da fantasia, o corpo da alma, o norte do sul, o oriente do ocidente, a história da literatura, o fato da ficção, a razão do sentimento, o feminino do masculino” (2002, p.537). 247 Diversas estudiosas feministas como Dallery (1997); Ferreira (2001); Jaggar e Bordo (1997); Joaquim (2001); Narayan (1997); Perrot (1984; 1988); Ramalho (2001) chamam atenção sobre como o recalcamento do tema feminino e do cotidiano das mulheres é conseqüência de uma ciência fundada nos princípios de uma racionalidade masculina que exclui as emoções, os sentimentos, as experiências e o conhecimento prático, todos eles considerados como expressões de um modo de ser feminino1. Ferreira (2001, p.10) observa que a ciência praticada, para além dos seus praticantes serem homens, tem matriz, substância e ethos masculinos. Santos (2001, p.13), igualmente, tem criticado o modelo de racionalidade da ciência moderna que vê a natureza como o feminino, como o que deve ser dominado e controlado pela ciência. Esta ciência, cujo discurso é andocêntrico ou falocrático (Agacinski, 1999)2, fundamenta-se em um modelo de racionalidade hoje em crise. Podemos estabelecer relações entre os estudos sobre gênero, que criticam um modelo de ciência racional e masculino, e as críticas dos sociólogos/as da infância, no que diz respeito à exclusão das culturas infantis nas investigações centradas nos olhares e vozes dos adultos. Santos (2001) analisa a crise da ciência moderna, as ambigüidades e complexidades do tempo presente, um tempo caracterizado como de transição, visto que nele existe uma constante indagação sobre o papel do conhecimento científico acumulado, seja no enriquecimento, ou no empobrecimento prático das nossas vidas. Propõe este autor que as ciências sociais recusem todas as formas de positivismo lógico ou empírico, ou de mecanicismo materialista ou idealista, pela valorização do humanístico, assim como pela busca do desaparecimento da distinção hierárquica entre o conhecimento científico e o dizer da filosofia da prática. Nesse sentido procuramos apresentar os adultos, jovens e crianças do bairro Saudade como atores sociais com corpos, sentimentos, desejos e racionalidades. Portella escreve no prefácio do livro “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, que a linguagem é energia, atividade, produtividade de sentidos. A personagem central do livro, Macabéia, num primeiro momento parece a encarnação da exclusão num corpo de 1 Cabe esclarecer que, para estas autoras, isto não pressupõe que somente os homens partilham dessa racionalidade, pois não existe uma associação entre masculino como modo de ser dos homens, e feminino como modo de ser das mulheres. 2 Segundo Agacinski (1999, p.6 -7), o andocentrismo ou falocentrismo nada mais é do que colocar a universalidade masculina no topo de uma hierarquia, seja a de uma organização social, ou a de um sistema de representações ou de conceitos. Isto constitui uma maneira de apagar a dualidade dos sexos, com a superioridade do masculino sobre o feminino. 248 mulher pobre, nordestina e subnutrida em busca de trabalho no Rio de Janeiro. Todavia Macabéia vai se tornando grandiosa e viva quando questiona sua existência: “o corte grotesco, humano, demasiado humano, tão humano que dói, expôs sem complacência as lesões que a moça alagoana trazia no corpo e na alma” (Portela 1984, p. 11-12). Macabéia indaga, pergunta, questiona os sentidos da sua existência, como Denise, Bia, Nara e as mães das crianças fazem nas entrevistas. Pensamos que o rigor da ciência se encontra na sua capacidade de perguntar, mais do que fornecer certezas e respostas. Por estas razões, em nosso texto aparecem flashes de poesias, pois conforme escreve Ramalho, a linguagem poética é o lugar por excelência da pergunta: “Porque o que ensina a poesia é que a palavra nunca é ‘certa’, é sempre, por ser ‘rigorosa’, perturbadora - ou desassossegante, se quisermos voltar a Pessoa. É na linguagem do desassossego da poesia que pode buscar-se, paradoxalmente, o rigor da ciência. À ciência exigimos a capacidade de jamais deixar de perguntar, mesmo pelo que parece óbvio, ou pelo dado que, por mais de adquirido, se tornou matéria de fé” (2001, p. 108). No processo de escrita da tese, as indagações perturbaram nossas certezas. Algumas delas estão mais expostas nesta parte final. Tendo em vista o retorno ao debate sobre financiamento de creches domiciliares a baixo custo, agora com a intervenção do Banco Mundial nos países do terceiro mundo (Penn, 2002; Rosemberg, 2002), buscamos relacionar esta experiência com uma parte da bibliografia brasileira e de países como Colômbia, Chile, Venezuela, Estados Unidos, França e Portugal. No Brasil e em outros países do terceiro mundo predominam experiências nas quais as trabalhadoras estão vinculadas a um tipo de programa emergencial financiado por órgãos internacionais3 e pelo Estado, de forma parcial. As subvenções parciais do Estado e de instituições internacionais implicam em poucos recursos para as populações mais pobres, assim como reforçam uma tendência ao não profissionalismo das trabalhadoras das creches domiciliares. Como salienta Franco (1988), o Estado passa a contar com a comunidade na forma de prestação de serviços e diminui seu ônus de investimento na educação infantil. 3 Segundo Rosemberg (2002), a partir dos anos de 1970 estas influências ocorrem principalmente pela UNESCO e UNICEF e, a partir dos anos de 1990, a maior influência provém do Banco Mundial. 249 Em países como França, Portugal e Estados Unidos, as trabalhadoras em creches domiciliares recebem uma remuneração e há negociações que norteiam as relações entre elas e o Estado. De forma geral, predomina nesses países o atendimento das crianças menores de três anos nessas creches. Em Portugal e nos Estados Unidos há mulheres que trabalham na ilegalidade, seja porque não querem pagar impostos (Nelson, 1990), ou porque passaram da idade máxima para realizar esse trabalho, como no caso das amas ilegais do município de Guimarães. Nos Estados Unidos, mesmo com um sistema regulador dos Estados Americanos, falta controle público, pois existem profissionais clandestinas e a relação entre elas e esse sistema é opcional. Nelson observa que a ausência de políticas e a tendência de privatizar o cuidado das crianças resultou num aumento das creches domiciliares nesse país. Até a finalização da tese, não encontramos nenhum tipo de levantamento que permitisse traçar um panorama da situação brasileira, no que diz respeito a espaços não formais de educação infantil. O caso do bairro Saudade nos coloca um desafio: há creches domiciliares e tomadoras de conta de crianças preenchendo as lacunas deixadas pelo Estado no que diz respeito ao cuidado/educação das crianças pequenas dos meios populares. A partir daqui temos um longo caminho a percorrer: Criticar estes espaços é suficiente? Defender a educação infantil pública e dizer não às creches domiciliares já existentes é uma resposta viável? Devemos silenciar, ou procurar soluções frente à existência desses espaços? Como irão reagir as populações que procuram as casas das tomadoras de conta? A creche de Denise é um caso isolado, do ponto de vista do apoio e subvenções recebidas de órgãos governamentais e organismos estrangeiros. Não investigamos uma creche domiciliar inserida em um programa, cujo objetivo é o deslocamento da ação do Estado para grupos familiares. Por outro lado, o estudo insere-se em um contexto social, político e econômico que não podemos ignorar. No final do século XX, o papel do Banco Mundial (Penn, 2002; Rosemberg, 2002) ganha importância crescente no campo da educação infantil. Os discursos dos organismos internacionais defendem os modelos hegemônicos de políticas, de programas e projetos para as crianças pobres baseados na redução dos custos com a educação infantil. Novamente ouvimos falar de experiências que reduzem investimentos e centralizam as responsabilidades nas famílias, especialmente nos serviços com baixa remuneração e qualificação das trabalhadoras. Nesse panorama, possivelmente surjam programas como os 250 dos anos de 1970, nos quais as creches domiciliares eram a solução para resolver as lacunas do Estado, no que diz respeito à universalização do financiamento de creches e pré-escolas para as crianças brasileiras. Considerando as particularidades da creche de Denise, indagamo-nos se o uso da expressão creche domiciliar é coerente, em um contexto em que os moradores reconhecem estes espaços como casas das tomadoras de conta de crianças. Contudo, no desenvolvimento do estudo, não percebemos como um problema o uso concomitante das duas terminologias: a dos moradores do bairro Saudade e a da bibliografia consultada. Isto se confirma, principalmente porque encontramos aproximações entre as dimensões analisadas nos capítulos da tese e na literatura consultada, as quais comentaremos brevemente. Sobre as trabalhadoras das creches domiciliares há cruzamentos com nosso estudo, no que diz respeito à ausência de uma identidade profissional, na medida em que elas não se consideram profissionais, mas boas mães, podendo, inclusive superar as mães de origem. Nesse sentido, as trabalhadoras representam as mães das crianças com ambigüidades, num contexto de valores que ainda vê com desconfiança as mulheres que trabalham fora do lar. As tensões são quase sempre associadas ao fato de que as crecheiras consideram que criam as crianças das outras mulheres, pois estas se acostumam ao novo lar e as reconhecem como mães, tias ou avós. Geralmente as trabalhadoras querem ganhar dinheiro e ficar em tempo integral com os/as filhos/as e conciliar as atividades domésticas com o trabalho, uma vez que têm uma escolaridade baixa. Também predomina nos bairros populares a falta de condições de recreação, como praças ou parques infantis para as crianças, bem como uma limitação das crecheiras para atividades de lazer e relacionamentos sociais fora do círculo familiar (Bonamigo, 1984; Centro de Cultura Luiz Freire, 1994; Horn e Dornelles, 1997). Em revisão de literatura nos Estados Unidos para uma avaliação do Programa de Lares de Cuidado Diário na Venezuela, Halpern et al. (1978) observa que as mulheres desejam oferecer às crianças um ambiente rico e estimulante, porém não têm uma infraestrutura de trabalho adequada e trabalham demasiado. Algumas delas se descrevem como pessoas que gostam de crianças e que realizam uma atividade social útil; para as mais jovens, esse é um trabalho transitório que une o mundo da casa ao mundo do trabalho. O emprego de mão-de-obra infanto-juvenil, geralmente de parentes ou outras pessoas pagas, também foi encontrado nas referências consultadas. Nas interpretações que 251 as crecheiras fazem sobre as relações com as crianças, aparecem questões similares às que encontramos, como gostar de crianças, ter paciência e oferecer carinho (Horn & Dornelles, 1997). O uso de punições e castigos também é enfatizado, uma vez que as crecheiras percebem as crianças como passivas no ato de aprender, numa relação em que os adultos dizem o que é certo ou errado, bom ou mal, bonito ou feio. A aprendizagem é vista como imitação e repetição, o que impede uma intervenção pedagógica junto às crianças, ou a problematização e organização de um ambiente mais desafiador (Horn & Dornelles, 1997; Bonamigo, 1984). No que se refere às preferências e expectativas dos familiares, encontramos aproximações na literatura quanto à flexibilidade de horários, à preferência pelos pequenos grupos e pelas aprendizagens informais semelhantes às experiências vividas nas famílias, à acolhida de irmãos e irmãs, à interação entre idades diferentes, pelo que os mais velhos convivem, ensinam e estimulam os mais novos, bem como à aceitação das crianças portadoras de necessidades especiais, ou doentes (Bonamigo, 1984; Ferrier, 1988; Halpern et al., 1978; Nelson, 1990). Parece predominar uma preferência entre os familiares dos meios populares pelas creches domiciliares para as crianças menores de três anos, pois o valor atribuído à creche convencional é que ela se aproxima da escola e prepara para a alfabetização (Bonamigo, 1984). Como as crianças permanecem com a mesma trabalhadora alguns anos antes da entrada na escola obrigatória, isto possibilita laços mais próximos entre as trabalhadoras e os familiares, geralmente com o mesmo nível sócio-cultural (Bloch e Buisson, 1998; Halpern et al., 1978; de Singly e Maunaye, 1996; Nelson, 1990). A opção por uma creche domiciliar perto do local onde residem as famílias das crianças também é decorrente da facilidade de contato com as trabalhadoras. Assim ocorre uma forma mais pessoal de atendimento, pela qual os familiares se informam de como suas crianças são cuidadas (Bonamigo, 1984, Halpern et al., 1978; Nelson, 1990). Quando ocorrem tensões entre as trabalhadoras e os familiares, estas são quase sempre decorrentes da sobreposição de responsabilidades, dos dilemas enfrentados com os/as filhos/as dos outros e com os/as próprios/as filhos/as (Halpern et al., 1978; Nelson, 1990). 252 Os familiares geralmente têm expectativas de que as trabalhadoras utilizem normas da vida familiar no cotidiano das crianças (Nelson, 1990); nas camadas populares brasileiras, valorizam o castigo, a disciplina ou a conversa explicando às crianças porque elas não devem fazer certas coisas (Bonamigo, 1984). Em todas as experiências consultadas predomina um cotidiano sem rotinas definidas, a não ser pelos horários de sono e alimentação. A higiene e a troca dos bebês são feitas conforme a necessidade das crianças e nestas atividades é comum o auxílio das crianças mais velhas. A televisão é um elemento que foi citado como parte do cotidiano das creches domiciliares (Bonamigo, 1984; Halpern et al., 1978). Sem condições de tempo e de espaços para as crianças, as saídas das creches são escassas. Bonamigo (1984) chama a atenção sobre o altíssimo percentual de crianças que assistem televisão (85%) sem alguém que discuta com elas os programas, situação que também encontramos na creche de Denise. O uso indiscriminado da televisão é visto pela autora como um recurso para ocupar as crianças, visto que as trabalhadoras estão quase sempre sobrecarregadas de trabalho. Considerando as aproximações entre a literatura sobre creches domiciliares e a creche de Denise, cabe agora estabelecer as distinções. É fundamental considerarmos que esta é uma iniciativa que faz parte de uma rede paralela de atendimento à pequena infância criada por moradores de um local, à margem das políticas públicas. A maior parte das/os autoras/es que analisam as creches domiciliares no contexto das políticas públicas discorda dos programas que vão buscar apoio na comunidade contribuindo para uma maior isenção do Estado, no que diz respeito ao compromisso e investimento com cuidado/educação. Concordamos com estas críticas, pois entendemos que essas são as alternativas historicamente propostas para as populações mais pobres. São justamente as crianças das camadas populares, que estão em locais sem acesso a jogos, materiais de aprendizagem, brinquedos, praças ou áreas de lazer, que têm as menores condições de acesso a espaços públicos e gratuitos. Ao contrário de algumas críticas apontadas na bibliografia brasileira, não foi possível afirmar que Denise não apresenta um conhecimento mínimo sobre aprendizagem, saúde, nutrição e lazer das crianças (Bonamigo, 1984; Horn & Dornelles, 1997; Franco, 1988). Nos Estados Unidos, Nelson (1990) aponta que muitas mulheres desempenham estes serviços de forma satisfatória e respeitam os anseios das crianças e seus pais. 253 De um lado, a creche de Denise parece ser uma iniciativa decorrente do abandono e da descontinuidade no cuidado/educação das crianças no município de São Gonçalo. De outro, este é um modelo criativo e cultural, no qual uma mulher proporciona um ambiente de extensão familiar. Esta provavelmente foi a solução encontrada pelas mulheres frente às rupturas das redes de parentesco causadas pelas novas organizações do mundo do trabalho. No capítulo sobre as famílias comentamos sobre a circulação de crianças e de vizinhos mais jovens na casa de Denise4. Entendemos que estas são práticas que demonstram a existência de outras lógicas nas organizações familiares das camadas populares. Fonseca (1993) investigou a circulação de crianças nas vilas de Porto Alegre e, embora tenha encontrado algumas diferenciações nos tipos de relações e trocas estabelecidas entre as mães de origem e as mães substitutas, há aproximações com nosso estudo. Quando a mãe substituta não mantém laços de parentesco com a família da criança (Fonseca, 1993) o surgimento de conflitos é maior, na medida em que a outra mãe sente que é explorada. Encontramos estes sentimentos em Denise que, mesmo cobrando em dinheiro pelos serviços prestados aos familiares, experimenta insatisfações, uma vez que seu tempo de convivência com as crianças é superior ao tempo vivido pelas mães de origem. Vimos como as trajetórias de vida das mães e de Denise se relacionam com os sentidos que elas atribuem a esse trabalho. Mas afinal, o que aproxima e o que distingue as trajetórias das mães e de Denise e os sentidos sobre o trabalho de tomar conta de crianças? Como esses significados interferem no cotidiano da creche? Em primeiro lugar, viver em um bairro considerado barra pesada produz sentidos e expectativas de que a creche domiciliar ofereça proteção às crianças. Lembramos que Isadora relacionou a atividade de tomar conta de crianças com a função do olheiro, aquele que observa de um lugar mais alto do bairro as entradas e saídas dos policiais e das outras pessoas. Não é possível ignorar esse contexto, no qual a violência imprime uma marca social e cultural sobre as vidas humanas. Estas marcas encontramos na linguagem carregada de expressões metafóricas quando as pessoas se referiam ao local e às suas vidas. Quando Denise falou que o mal está aqui, somos prisioneiros do próprio lar, lembramos do que escreve Portela no prefácio do 4 Utilizamos o conceito de Fonseca (1993) que entende a circulação de crianças como um fenômeno que caracteriza a alta incidência de crianças que passam parte da sua infância e juventude fora das casas dos genitores, nas casas de outras famílias. Entretanto, no caso da creche de Denise, as crianças retornam aos locais de origem, ainda que freqüentem em tempo superior a creche domiciliar. 254 livro de Clarice Lispector, anteriormente referido. Interpretamos as lesões das mulheres como marcas de uma existência cercada de dificuldades que tensionam as suas vidas, as vidas dos seus companheiros e das crianças. Como poderíamos interpretar os significados, as expectativas e o cotidiano da creche, sem considerar essas marcas? Foi dito que é importante proteger as crianças, cuidá-las, brincar com elas. Provavelmente a ausência de tranqüilidade no bairro faz com que o desejo de proteção e sobrevivência se sobreponha a qualquer intenção pedagógica. As mães procuram conhecer a vida pessoal da tomadora de conta, sua conduta e hábitos familiares. A confiança é um indicador importante nessa relação. A violência e insegurança são marcas nas vidas das mulheres que desejam investir num futuro melhor para os/as filhos/as, no sentido de evitar a convivência com o mundo do crime. Matricular uma criança na classe pré-escolar ou de alfabetização em meio período e confiar esta criança a Denise por mais oito ou nove horas, significa um investimento. Este se constitui, contudo, em um investimento diferente daquele das famílias das camadas médias, pois a maior preocupação das mães de origem é afastar as crianças do tráfico, seja pelos cuidados da tomadora de conta, seja pelas expectativas de escolarização que podem favorecer o acesso a um trabalho remunerado. No capítulo anterior citamos o estudo de Thin (1998); em uma perspectiva semelhante, Fonseca observa que nas famílias dos meios populares é importante assegurar que certas necessidades objetivas sejam atendidas, mais do que manter uma relação emocional saudável com os filhos, o que é típico das classes médias: “As classes médias atribuem à criança uma série de fases de desenvolvimento emocional e intelectual que exigem, cada uma, cuidados especialmente adaptados e ministrados por adultos específicos. A escola e a família nuclear desempenham os papéis principais de socialização, onde a criança é metida numa estratégia familiar de ascensão sócio-econômica a longo termo. Entre meus informantes nunca ouvi preocupação ou fórmulas mágicas ligadas ao desenvolvimento emocional ou aproveitamento escolar” (Fonseca, 1993, p. 119). Lembramos que Isadora relatou a preocupação das mulheres do bairro com o descaminho das crianças, que significa a entrada no mundo do crime. Por isso, um emprego em uma loja de computadores, ou em um escritório, para algumas mães 255 representa status e distanciamento do mundo do tráfico: qualquer coisa que elas chamam de serviço fino, isso é ser doutor (Isadora, 03/07/2001). É nesse universo que se circunscrevem tanto as relações de solidariedade quanto as desavenças entre os moradores. Alguns atos de solidariedade entre os vizinhos foram destacados nas entrevistas e Isadora acrescentou que nós somos assim, porque não temos proteção de fora. Entretanto, vimos que a solidariedade não garante uma relação harmoniosa, ocorrendo disputas entre vizinhos, desconfiança e fofocas. Para dar conta da grandeza de questões que circundam as trajetórias de vida, os sentidos do trabalho, as expectativas, as ambigüidades e as práticas cotidianas, não limitamos nossas análises às relações de trabalho. Procuramos articular as reflexões sobre trabalho informal, clandestino e domiciliar com gênero, famílias dos meios populares, infância e cultura. Compreendemos estes eixos teóricos como categorias móveis e relacionais, o que propiciou uma compreensão sobre força e vitimização, como expressões das vidas das mulheres deste estudo. A forma como construímos o texto pode ser representada metaforicamente como uma espiral, uma vez que fomos retomando questões e reconstituindo as interpretações, pois entendemos o conhecimento científico como um interrogar-se constante. Além da existência circunscrita a um bairro no qual ocorre o tráfico de drogas, Denise, Bia, Nara e as famílias das crianças têm outros traços em comum, como: a pobreza, caracterizada pela insuficiência de recursos econômicos, sociais e educacionais; a tradição de moradia, que consiste no aproveitamento de lotes para a construção de casas que abrigam pessoas ligadas por laços de parentesco no mesmo quintal; o trabalho precoce desde a primeira infância, com a participação das crianças nos serviços domésticos ou na educação dos irmãos mais novos; a interrupção da escolaridade quando as crianças ou jovens trabalham para contribuir com a renda familiar. A atividade profissional dos familiares das crianças também os aproxima. As mulheres trabalham para aumentar a renda familiar, geralmente em serviços domésticos e com longas jornadas de trabalho, que reduzem o tempo de convívio familiar. Os cônjuges ou estão desempregados, ou encontram-se em subempregos, geralmente na rede informal. Encontramos igualmente dimensões mais individuais que aproximam estas pessoas e suas trajetórias, tais como as histórias das famílias de origem que se cruzam, o sofrimento, as rupturas, o alcoolismo dos homens e a violência contra a mulher e as crianças, em alguns casos. 256 Denise e as mães das crianças trabalham e se responsabilizam, parcial ou inteiramente, pela sobrevivência familiar, pela criação dos/as filhos/as e pelos serviços domésticos. Elas enfrentam limitações cotidianas geradas pelas condições materiais de existência, o que interfere no simbólico, ou nas formas como elas significam suas vidas e a atividade da creche. É assim que o cansaço decorrente das longas jornadas de trabalho vai se misturando com os sentimentos de culpa pela menor atenção oferecida aos filhos. Mulheres mais velhas, como Elisa e Marta, com experiências de alcoolismo na família, sofrem mais. Já Juçara sente alívio quando entrega os filhos para Denise, pois considera importante para sua liberdade o trabalho fora de casa. As subjetividades das mulheres refletem a inserção de classe e gênero em uma vida marcada por dificuldades, porém entre sonhos e desejos de dias melhores. Denise sofre, mas também experimenta sentimentos como felicidade e descontração, assim como sonha com um futuro melhor para ela e suas filhas. As outras mães manifestam, nos discursos sobre casamento e trabalho, um desejo de igualdade entre homens e mulheres. No cotidiano, contudo vivem uma profunda desigualdade, uma vez que acumulam as funções de donas de casa e mantenedoras das famílias. Sonho e realidade se fundem nos sentidos e nas formas de existência. Por outro lado, Denise apresenta dimensões simbólicas de sofrimento que a distinguem das mães das crianças. Ela faz parte de uma família monoparental e exerce um trabalho que não é considerado legal. O lugar social que Denise ocupa a diferencia das mães das crianças. Poderíamos dizer que ela vive no limite entre a sobrevivência e as modalidades que encontrou para ficar mais perto das filhas e sustentar a família. Luta bravamente, e consideramos um paradoxo os sentidos que ela própria atribui a sua existência, sentidos que expressam vitimização e força, como faces de uma mesma trajetória de vida. É tenso para todas elas viverem a maternidade e o trabalho dentro e fora de casa. Mas para Denise as tensões se refletem na sobrecarga de trabalho com as crianças de outras mulheres, nos sentimentos de ser a outra, aquela que cria os filhos das vizinhas sem, contudo, receber um retorno no futuro. Para ela tal relação se torna mais tensa na medida em que o grosso das responsabilidades do cuidado/educação das crianças ocupa seu tempo de trabalho e seu tempo de viver outras experiências. O fato de as crianças chamarem Denise de mãe é tolerado pelas mães de origem e não é discutido no interior da creche. De nosso ponto de vista, entre as mães as tensões se 257 diluem em outros sentimentos, como culpa e ciúme. Elas parecem compreender, por exemplo, que aquela é uma relação temporária que pode ser interrompida quando os cônjuges conseguem trabalho e remuneração suficiente para o sustento da família, ou quando as crianças crescem e vão para a escola formal. A frase ela faz mais do que tomar conta de crianças, ela praticamente cria as crianças demonstra o reconhecimento das mães de origem quanto ao papel de Denise. É certo que as condições objetivas de vida interferem nos significados mas, além disso, observamos uma complexidade de fatores que explicam porque algumas preferem deixar as crianças com Denise, alegando que ela cuida melhor das crianças, ou que tem mais paciência. Por que Juçara prefere trabalhar e ganhar pouco, a ficar em casa com os filhos? Ou por que Marta preferiu deixar a filha do primeiro casamento vivendo com sua irmã, quando casou outra vez? Novamente referenciamos Fonseca (1993, p. 127-128), quando explica que sem o conceito de fases de desenvolvimento emocional da criança, em alguns grupos das camadas populares pouca diferença faz a presença da mãe biológica em termos de bem-estar e sucesso dos filhos. Os sentimentos de culpa e ciúme revelam dramas de mães que trabalham mais de oito horas diárias e acumulam uma jornada de trabalho doméstico sem ajuda dos cônjuges. A perspectiva do papel feminino nas famílias fica mais dilacerada, assim como há um modelo de família nuclear, um pouco controverso, que parece influenciar os significados e as expectativas das mulheres. Dizemos que existe um modelo de família nuclear controverso porque os homens não são os provedores principais, pelo menos em três casos. Todas as mulheres, com exceção de Denise, continuam casadas mesmo com dificuldades, como nos casos de Juçara, Elisa e Marta. Provavelmente elas queiram garantir a união com os cônjuges e manter a unidade familiar, pois em algumas trajetórias de vida vimos que quando os homens constituem nova família gradualmente perdem o contato com os filhos. Também vimos que a presença do homem em casa, como chefe e provedor, ainda que simbólica, é importante nos meios populares, o que para Sarti (1995, p.136) se explica por uma análise da autoridade na família pobre e da concepção do trabalho entre os pobres urbanos. Como comentamos anteriormente, não somente o controle dos recursos internos à família fundamenta a autoridade do homem, mas seu papel de mediação entre a família e o mundo externo, ou de guardião da respeitabilidade familiar (Sarti, 1995, p. 138). 258 A divisão do trabalho doméstico por sexo parece contraditória com a situação sócio-econômica das famílias, nas quais predominam mulheres com empregos e salários mais estáveis que os cônjuges. Como explicar as razões que fazem as mulheres persistirem com uma representação simbólica de família, pela qual o homem é o chefe e o provedor, quando na realidade elas é que cumprem estes papéis, além do acúmulo dos serviços domésticos? Como dar conta das fragilidades e forças encontradas nos discursos sobre os cotidianos das mulheres? O que, afinal, pode explicar este emaranhado de relações e sentimentos ambivalentes nos sentidos e modos de existência dessas pessoas? Sarti (1995, p. 142-144) explica uma parte das nossas indagações. É o valor moral dado pelo papel familiar de provedor o que dá sentido ao trabalho nos meios urbanos. É este sentido de trabalhar para a família e não somente para si que, segundo a autora, pode explicar a valorização do trabalho doméstico pela mulher. Igualmente o bom trabalhador é o bom provedor, o que também constatamos em nosso estudo quando as mulheres consideram como “bom marido” aquele que trabalha, não joga e não bebe. Um outro aspecto apontado por Sarti em consonância com nossas análises diz respeito à lógica da casa que domina a concepção de trabalho com uma divisão de gênero. É um ethos feminino que rege as relações das mulheres com o trabalho. Nos casos de Juçara e Marta percebemos que as duas justificam o trabalho para obtenção de um extra na família, como a construção dos cômodos da casa ou a compra de roupas, brinquedos e outros artigos para os/as filhos/as, ainda que a primeira afirme trabalhar porque necessita viver outras relações além das familiares. Por outro lado, há uma incidência de mulheres chefes de família (caso de Denise) ou de baixos salários masculinos (casos de Marta, Elisa e Íris). Nesses casos, o extra feminino confunde-se com o fundamental (Sarti, 1995, p.144). Com exceção de Juçara, as mães das crianças não mantêm uma relação de prazer com o trabalho, muito pelo contrário. Como escreve Sarti (1995, p.145) “a baixa qualificação, baixa remuneração e sobrecarga de trabalho para as trabalhadoras pobres contribuem para tornar o trabalho remunerado muito pouco gratificante (...)”. Vimos que todas elas são críticas nos discursos, mas na prática não conseguem romper com a divisão sexual do trabalho e com a sobrecarga de responsabilidades. Por outro lado, não são apenas vítimas, subordinadas e passivas nas relações com os cônjuges. Apresentam ambigüidades nos discursos que expressam vitimização e força, passividade e resistência. Como explicar os discursos sobre os corpos femininos quase sempre 259 associados à dor e ao sofrimento? Vimos que é inviável analisar as subjetividades e ambigüidades com conceituações cristalizadas de gênero, trabalho e família dos meios populares. Como salientam Castro & Lavinas (1992, p. 239), as relações sociais entre os sexos, como quaisquer relações sociais, exprimem-se nas práticas concretas, tanto no domínio do simbólico como do material, produzindo subordinações, resistências e cumplicidades. Almeida (1987) pesquisou a migração feminina do campo para a cidade, em um bairro popular nas proximidades de Lisboa, e encontrou traços semelhantes ao de nosso estudo. A estranheza da autora é expressa no texto pelo contato com um discurso vitimizado e fatalista que se contrapõe a um fazer feminino protagonista e despachado. Estes traços também encontramos nos discursos de Denise e de algumas mães sobre o universo feminino, quando seus papéis nas famílias e nas relações do cotidiano demonstram força e coragem. Almeida indaga se as mulheres são criaturas dependentes e passivas nos discursos, ou são as mágicas da ação. Conclui que as mulheres são as duas coisas, numa relação de cumplicidade entre maneiras de fazer e maneiras de dizer. Tudo isto tem implicações na vida diária da creche domiciliar. As crianças, embora portadoras de culturas que interferem no cotidiano da creche, sofrem a inculcação de normas, valores e comportamentos do grupo sócio-cultural de origem. Observamos uma profunda divisão entre meninos e meninas nas punições e castigos, nas atividades de higiene e ajuda e nas brincadeiras. As diferenças de papéis sexuais fazem parte do processo de socialização das crianças e nada melhor do que o cotidiano para demonstrar que os significados do que é masculino e feminino são uma construção sócio-cultural. Os modos de socialização na creche de Denise refletem o universo familiar das crianças e dela própria. As distinções entre coisas de menino e coisas de menina parecem se entrelaçar com a concepção de família nuclear valorizada por Denise, na qual o homem é o provedor e a mulher deve ser mãe e dona de casa. Por outro lado, encontramos mudanças de comportamentos entre as crianças com relação às expectativas dos adultos, assim como observamos traços masculinos nas ações e discursos das mulheres, mesmo quando elas se definem como mães e esposas zelosas. Como enfatiza Connell (1995, p.189), se a masculinidade significasse simplesmente as características dos homens, não poderíamos falar da feminilidade nos homens ou da 260 masculinidade nas mulheres (exceto como desvio) e deixaríamos de compreender a dinâmica de gênero, que é sempre uma estrutura contraditória. O cotidiano se distancia das rotinas mais estruturadas e de um planejamento pedagógico. Denise faz com as crianças o que faz com suas filhas e isto é diferente do que ocorre em uma creche coletiva. Lembramos que as trabalhadoras de creches domiciliares entrevistadas no estudo de Nelson (1990) valorizam coisas como assar um bolo, caminhar e falar sobre as coisas da rua, observar os animais, propiciar momentos de diversão nos quais as crianças possam ser como são, sem preocupação com planejar cada minuto. Um bom cuidado para elas é uma atmosfera caseira onde se possa brincar e jogar. Denise explicou que a relação com os familiares vai além, assim como algumas mães disseram que formam com Denise uma família. Vimos como isto se relaciona com o contexto local, na medida em que Denise representa uma pessoa de confiança que protege as crianças. Mas a confiança em Denise como alguém da família também expressa a expectativa de que ela ofereça cuidado/educação da forma que as mães os oferecem aos filhos/as, o que denominamos, nos capítulos anteriores, de perspectiva familiarista de educação. Esta educação familiarista estrutura-se em torno de objetivos que emergem das necessidades de sobrevivência dos adultos e crianças. Para que isto aconteça efetivamente, as mães delegam a criação dos/as filhos/as a Denise, o que produz sentimentos controversos como alívio e culpa, ciúme e satisfação. Por outro lado, questionamos se Denise é uma mulher altruísta quando tolera atrasos de pagamentos dos familiares, visita as crianças doentes, acompanha algumas ao Posto de Saúde, encarrega-se de marcar exames médicos e até se mobiliza para conseguir uma colocação para os pais desempregados. Dito de outra forma, esta relação que vai além é somente uma extensão das redes de parentesco, baseada na afetividade? Pensamos que há trocas, solidariedade e afetos, mas é preciso considerar que na relação entre Denise e as mães das crianças há um acordo comercial, que prevê um contrato com pagamentos mensais. Denise permanece com as crianças em tempo superior ao das mães de origem. Ela é uma babá dos meios populares, uma mãe substituta, ou mais do que isso? Não temos respostas fechadas; consideramos que a procura pelos serviços de tomar conta de crianças constitui uma possibilidade ou arranjo encontrado pelas mulheres, para garantir as condições de existência e sobrevivência das crianças em um ambiente próximo ao das famílias de origem. 261 Do lado das mães acontece a delegação da criação dos/as filhos/a para uma outra mulher, devido à ausência de outras possibilidades de cuidado/educação no local e porque essas mães necessitam trabalhar e aumentar a renda familiar. A delegação é vivida com sentimentos controversos, principalmente nos casos de doença, o que gera revolta e descontentamento em Denise. É justamente nos casos de delegação de crianças doentes que Denise esbarra nas contradições da função, pois ela sente que faz mais do que as mães de origem. Do lado de Denise ocorre a terceirização da função materna, ou seja, ela se propõe a terceirizar o que faz com suas filhas para com outras crianças do bairro, como forma de sobrevivência. Não existe um empregador que faça essa mediação na relação entre ela e as mães. Denise não está vinculada a nenhuma instituição pública ou privada encarregada de garantir a sobrevivência das crianças num local sem creches e pré-escolas públicas. Nesse sentido, ela terceiriza o trabalho de tomar conta de crianças para sobreviver e sustentar sua família. Sobre a terceirização das funções domésticas, Haicault5 (1996, p. 110-120) observa um movimento de terceirização da produção de bens e serviços, em que misturam-se as fronteiras entre a esfera privada e a esfera pública. Observa essa autora que as normas do tempo industrial hoje ocupam os espaços domésticos e o tempo livre das crianças. Em função disso ocorre uma degradação do tempo em coisa, em mercadoria que se pode vender ou trocar. Embora a autora trate de um universo diferente do caso investigado6, entendemos que na creche de Denise acontece um movimento de terceirização das atividades domésticas. De certa forma, isto também tem implicações no tempo livre das crianças e, embora as mães tenham dito que na creche domiciliar as rotinas não são tão rígidas, não podemos esquecer que outrora as crianças do bairro Saudade ficavam mais livres pelas ruas; hoje estão apartadas da rua, da cidade e, assim, desprovidas de outras formas de socialização. Tudo isto é vivido com nuances diferentes entre Denise e as mães. Com exceção de Juçara, as outras mães vivem a delegação com culpa, embora também aceitem que seus filhos/as se refiram a Denise como a outra mãe porque, de certa forma, sabem que essa é 5 HAICAULT, Monique. La tertiarisation des activités parascolaires. In: KAUFMANN, Jean-Claude. Faire ou Faire-Faire? Famille et services. Presses Universitaires de Rennes: 1996. 262 uma relação temporária. Com relação às mães das crianças, Denise expressa sentimentos de culpabilização, porque sente que faz mais pelas crianças e que isto um dia terá um fim. O reconhecimento pelo seu esforço e dedicação provavelmente se perderá no tempo e no espaço. Denise fica sobrecarregada de atividades e esta relação que vai além parece não ter um fim, pois algumas crianças circulam na sua casa inclusive nos finais de semana. É por isto que ela também se culpa quando percebe que sobra pouco tempo para conviver com as filhas. As mães e Denise confluem na expectativa de que a creche domiciliar seja um espaço que propicie proteção, carinho, alimentação, saúde, resolução de emergências ou acompanhamento das crianças maiores às classes pré-escolares ou classes de alfabetização. A disponibilidade de tempo e a flexibilidade de horários viabilizam a realização de tantas demandas. Nesse aspecto não há tensões e os acordos parecem bem resolvidos entre elas, exceto quando as crianças estão doentes. Quando acontecem tensões que resultam na suspensão dos acordos, a origem delas está nas divergências quanto à educação das crianças entre Denise e os familiares. Quando afirmamos que ocorre uma perspectiva familiarista de educação na creche de Denise é porque as mães querem que seus filhos/as fiquem num ambiente mais próximo ao das famílias de origem, com uma pessoa de confiança com os mesmos hábitos e valores, porque querem que as crianças convivam em um ambiente sem rotinas muito rígidas. Porém, não nos pareceu que as mães queiram uma outra família para os/as filhos/as, uma vez que a delegação e terceirização da criação têm uma temporalidade. Caracterizamos o trabalho de Denise como informal, instável, clandestino e ilegal. Por este trabalho estar situado na rede da informalidade, do ponto de vista das relações de Denise com o Estado, na forma de acesso aos direitos do trabalho, poderíamos afirmar que não consegue exercer sua cidadania. Ela não tem direitos sociais no que diz respeito ao trabalho que realiza, assim como não obtém reconhecimento e amparo da legislação. As mães das crianças não têm acesso aos serviços públicos como educação e cuidado dos/as filhos/as e algumas se situam na rede de trabalho informal. São todas elas mulheres impossibilitadas de exercer sua cidadania? Preferimos não assumir um posicionamento fechado, porque do ponto de vista das relações destas mulheres com o Estado e como cidadãs, ainda há muitas dificuldades para superar. Mas, por outro lado, não 6 Esta autora analisa as atividades de tempo livre de crianças francesas do primário nas quartas-feiras e sábados, salientando que as crianças perdem o sentido do tempo não orientado e livre que lhes é confiscado 263 podemos esquecer que no momento em que elas criam estratégias de educação dos/as filhos/as e de sobrevivência no cotidiano, estão, de certa forma, exercendo sua cidadania. No que diz respeito à creche de Denise; vê-se uma organização dos moradores no sentido de solucionar a ausência do Estado no cuidado/educação das crianças. Está aí mais um motivo pelo qual não podemos tratar os grupos envolvidos somente como excluídos, uma vez que os atores sociais se organizam, independente dos atrasos e impasses das políticas públicas. Henriques & Pinto (2002) questionam se as mulheres que ocupam somente a esfera privada e que cuidam da casa e dos/as filhos/as não exercem cidadania. Percebe que assim como as relações que se passam na esfera privada não são percebidas como relações de cidadania, também não há uma noção sobre a forma como o Estado estrutura não apenas os setores da vida pública, mas igualmente os da vida privada. A atividade aqui analisada é uma atividade social e comunitária e, embora não legalizada, é legitimada por grupos da população. Não sendo uma proposta de educação infantil formal, a creche domiciliar estrutura-se principalmente para atender às demandas de trabalho e às necessidades dos familiares das crianças e de Denise, que preferiu trabalhar em casa e cuidar das filhas. Este parece um aspecto fundamental para compreendermos os significados do trabalho de tomar conta de crianças. Pensamos que é necessário considerar os contextos sociais, os anseios e expectativas dos grupos sem acesso aos serviços de cuidado/educação, na elaboração das políticas públicas. As mães preferem espaços menores com um número reduzido de crianças, sem um tempo excessivamente planejado e programado. Elas valorizam o relacionamento mais íntimo entre Denise e as crianças, assim como desejam um cuidado amoroso, atenção e contato físico. Estas questões merecem reflexão, pois constatamos que os familiares são capazes de refletir sobre o cuidado/educação das crianças. Para finalizar, nosso percurso foi o de contemplar este trabalho e, sem idealizações ou romantismos examinar seus riscos, mas também as suas possibilidades. Nesse movimento pensamos que contribuímos com o campo da educação infantil, pois nem sempre priorizamos nas pesquisas os atores sociais à margem das políticas públicas. O estudo de caso indica que o que existe e funciona, ainda que na precariedade, não pode mais ser ignorado. O crescimento de espaços educativos privados para grupos das camadas mais pobres é resultante de uma pressão e demanda da população. Talvez seja o pelos tempos programados, pela obrigação de fazer algo, segundo os dogmas da pedagogia dominante. 264 momento de iniciar um levantamento nacional sobre espaços não formais de cuidado/educação, com uma caracterização das trabalhadoras, das famílias, das crianças e das condições dos locais. Tal levantamento se justifica na medida em que as redes paralelas de educação infantil demonstram que há uma pressão da população por estes serviços. Provavelmente outros estudos sobre experiências como a da creche de Denise permitam verificar o que ocorre nesses espaços e quais soluções devem ser propostas. 265 6. OBRAS CITADAS ABREU, Estela dos Santos & TEIXEIRA, José Carlos. Apresentação de trabalhos monográficos de conclusão de curso. Niterói: EDUFF, 2001. AGACINSKI Sylviane. Política dos Sexos. Portugal: Celta, 1999. ALMEIDA, Alberto Carlos. A qualidade de vida no estado do Rio de Janeiro - Niterói. Niterói: EDUFF, 1997. ALMEIDA, Ana Nunes. Mulheres e famílias operárias: a “esposa doméstica”. Análise social, Lisboa, n. 22, p. 105-132, 1986. ÁLVAREZ, Angel. Por qué lloran? Revista de la asociación de maestros Rosa Sensat, Barcelona, nº 68, p. 36-40, 2001. ANDRADE, Eugénio de. Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Porto: Campo das Letras, 1999. ANDRÉ, Marli. Etnografia da prática escolar. São Paulo: Papirus, 1995. BARBOSA, Maria Carmem. Por Amor & Por Força: Rotinas na educação infantil. 2000. 304f. 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ANEXOS 7.1 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM TOMADORAS DE CONTA 1) Ano em que o estabelecimento começou a funcionar. 2) Situação do Prédio: ( )Alugado ( )Próprio ( )Emprestado ( )Outros / Especificar. 3) Número de peças internas e externas do prédio, indicando suas funções. 4) Horário de entrada e saída das crianças. 5) Número de crianças que freqüentam o estabelecimento. Especificar idade, raça e gênero das crianças. Há fichas com informações sobre as crianças? 6) As crianças são divididas em turmas ou agrupadas em conjunto? No caso de divisão por turmas, especificar. 7) Descrever a situação sócio-econômica das famílias das crianças. 8) Mensalidade cobrada das crianças. Despesas cobertas com estas mensalidades. Tem taxa de matrícula? 9) Descrever brevemente a rotina de um dia de trabalho com as crianças. 10) Refeições que as crianças fazem no local. 11) Pessoas que trabalham no estabelecimento. Especificar a função de cada uma, escolaridade, faixa salarial, tempo de trabalho. 12) Indicação de outras creches domiciliares no bairro. 281 7.2 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DENISE DADOS GERAIS DE IDENTIFICAÇÃO a) Nome: b) Idade: c) Estado civil: d) Número de filhos: e) Com quem reside na creche e residência? f) Número de crianças (idade, raça e gênero): g) Escolaridade: h) Profissão do marido e dos filhos: i) Renda familiar por cada componente da família: DADOS SOBRE O TRABALHO NA CRECHE DOMICILIAR a) Que outros trabalhos você já desempenhou (ou ainda exerce)? Duração tempo trabalhado e descrição do trabalho desde a infância. b) Quando você começou a trabalhar em creche domiciliar? Por que escolheu essa atividade? c) Que vantagens e desvantagens você encontra nesse tipo de trabalho? d) Como você se sente quando as crianças (exceto as filhas) lhe chamam de mãe? e) Como você faz quando vai receber uma criança pela primeira vez? f) Descreva o grupo de crianças com o qual você trabalha (idade com que chegou, que idade tem agora, comportamentos, situação familiar e sócio-econômica). Se possível, incluir as crianças do ano passado. Porque você parou de trabalhar com as crianças maiores? g) Na sua opinião, por que existem creches como a sua em São Gonçalo e no bairro? h) Aqui na frente da sua casa tem uma placa: “toma-se conta de crianças”. O que isto significa para você? Ou o que é preciso saber para tomar conta de crianças? i) Na sua opinião, é importante ter algum estudo específico ou formação para tomar conta de crianças? 282 j) Como é a sua relação com os familiares das crianças? Que dificuldades e/ou que pontos positivos você encontra? Por que os familiares do ano passado pararam de enviar os filhos/as? l) Que tipo de contrato você estabelece com as famílias das crianças? Há contratos diferenciados? Dê exemplos (incluir pagamentos, alimentação, horários combinados, dias e meses, cuidados com a saúde etc.). m) O que você já viveu em termos de experiências que tenham lhe ajudado a definir o tipo de trabalho que hoje executa? n) Em termos de educação, de escolarização, o que você deseja para as suas filhas? o) Você aceitaria discutir o trabalho que faz aqui na creche com profissionais de outros locais, como a Universidade, por exemplo? p) Como você percebe o trabalho que faz? O que mais gosta de fazer e o que não gosta de fazer? Há divisões de trabalho entre você e as ajudantes? Como isto ocorre? q) Como você organiza o trabalho com as crianças? O que se mantém durante os dias e o que é modificado? r) Se houvesse condições de modificar alguma coisa na creche, o que você modificaria? DADOS SOBRE CULTURA, REDES DE VIZINHANÇA, INFÂNCIA E GÊNERO a) Algumas manifestações culturais do bairro (cantigas de roda, a reza, o pagode, o funk, os remédios caseiros) e outras de fora (como a TV e os programas infantis, por exemplo) estão presentes no dia a dia da sua creche. Como você percebe estas influências? b) Como você se relaciona com a vizinhança ou como percebe as relações entre os vizinhos? O que significa, para você, ser “sobrinho de consideração”? c) Aqui na sua creche as crianças organizam algumas atividades ou brincadeiras? Como você percebe essa organização das crianças? d) Que vantagens e desvantagens você percebe no agrupamento das crianças por diferentes faixas de idade? e) Como você vê a criança de hoje e a criação dos filhos? f) Como você faz com as crianças que apresentam dificuldades com as regras que você estabelece? Isto ocorre com mais freqüência entre os meninos ou as meninas? Por que? g) Você pensa que existem diferenças (além do sexo) entre meninos e meninas? Dê alguns exemplos de como você trabalha com isto na creche. h) Como era a sua família na infância e como ela está estruturada nos dias atuais? (casamento, filhos, posição ocupada na família, etc.) 283 i) O que você pensa sobre ser pai e ser mãe? Você vê diferenças? Quais? j) O que você considera mais fácil: ser homem ou ser mulher? Por que? l) O que os homens do bairro costumam fazer para se divertir? E as mulheres? E você? 7.3 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM AJUDANTES DADOS GERAIS DE IDENTIFICAÇÃO a) Nome: b) Idade: c) Estado civil: d) Escolaridade: e) Dados sobre a família (número de irmãos, profissão dos pais, dos irmãos se for o caso, renda dos familiares). Se recebe algum salário pelo trabalho, especificar. f) Número de cômodos da casa, material de construção, luz elétrica, água encanada, esgotamento sanitário, como fazem com o lixo. DADOS SOBRE O TRABALHO NA CRECHE DOMICILIAR a) Que trabalhos você tem feito desde a sua infância? b) Quando você começou a ajudar na creche? O que você gosta e o que você não gosta de fazer aqui na creche? c) Quando as crianças chamam Denise de mãe, o que você pensa sobre isso? Como as crianças lhe chamam? d) Como vocês fazem quando recebem uma criança pela primeira vez? e) Conta sobre as crianças da creche (idade com que chegou, que idade tem agora, comportamentos, situação familiar e sócio-econômica). Se possível, incluir as crianças do ano passado. Por que Denise parou de trabalhar com as crianças maiores? f) Na sua opinião, porque existem creches como essa em São Gonçalo e no bairro? g) Aqui na frente tem uma placa: “toma-se conta de crianças”. O que isto significa para você? Ou o que é preciso saber para tomar conta de crianças? h) Na sua opinião, é importante ter algum estudo específico ou formação para tomar conta de crianças? i) Como são os familiares das crianças? Que dificuldades e/ ou que pontos positivos você encontra? Por que os familiares do ano passado pararam de enviar os filhos/as? j) O que você pretende fazer no futuro? Por que você está estudando? 284 l) Conte sobre como vocês organizam as atividades com as crianças. O que sempre acontece e o que pode ser modificado? m) O que acontece em cada uma das dependências/cômodos da creche? n) Se houvesse condições de modificar alguma coisa na creche, o que você modificaria? DADOS SOBRE CULTURA, REDES DE VIZINHANÇA, INFÂNCIA E GÊNERO a) Algumas manifestações culturais do bairro (cantigas de roda, a reza, o pagode, o funk, os remédios caseiros) e outras de fora (como a TV e os programas infantis, por exemplo) estão presentes no dia a dia da creche. Como você percebe estas influências? b) Como você se relaciona com a vizinhança ou como percebe as relações entre os vizinhos? O que significa, para você, ser “sobrinho de consideração”? c) Aqui na creche as crianças organizam algumas atividades ou brincadeiras? Como você percebe essa organização das crianças? d) Que vantagens e desvantagens você percebe no agrupamento das crianças por diferentes faixas de idade? e) Como você vê a criança de hoje e a criação dos filhos? f) Como vocês fazem com as crianças que apresentam dificuldades com as regras que vocês estabelecem? Isto ocorre com mais freqüência entre os meninos ou as meninas? Por que? g) Você pensa que existem diferenças entre meninos e meninas? Dê alguns exemplos de como vocês trabalham com isto na creche. h) Como era a sua família na infância e como ela está estruturada nos dias atuais? (pais, filhos, posição ocupada na família, etc.) i) O que você pensa sobre ser pai e ser mãe? Você vê diferenças? Quais? j) O que você considera mais fácil: ser homem ou ser mulher? Por que? l) O que você costuma fazer para se divertir? E os rapazes da sua idade? 285 7.4 ROTEIRO DE ENTREVISTA COM MÃES DADOS GERAIS DE IDENTIFICAÇÃO a) Nome: b) Idade: c) Estado Civil: d) Número de filhos (idade, raça, gênero): e) Número de cômodos da casa, material de construção, luz elétrica, água encanada, esgotamento sanitário, lixo: f) Escolaridade: g) Profissão e escolaridade do marido e dos filhos/ou outros membros da família: h) Renda familiar (cada um dos componentes): i) O trabalho que exerce hoje e funções anteriores: DADOS SOBRE O TRABALHO NA CRECHE DOMICILIAR a) Na sua opinião, por que existem creches domiciliares aqui no bairro e em São Gonçalo? b) Por que você escolheu a creche da Denise entre as outras creches existentes no bairro? O que você considera como ponto positivo deste trabalho e o que você gostaria de modificar? c) Aqui na frente tem uma placa: “toma-se conta de crianças”. Na sua opinião, o que significa tomar conta de crianças ou o que é preciso saber para se tomar conta de crianças? d) Na sua opinião, é importante ter algum estudo específico ou formação para tomar conta de crianças? e) Às vezes eu percebo que as crianças chamam Denise de mãe. Enquanto mãe, como você se sente quando seu filho/a chama Denise de mãe? f) Você lembra dos primeiros dias em que seu filho/a veio para cá? (reações da criança, as suas reações, se ele/ela ficou o dia todo, etc.) g) Que tipo de contrato você estabelece com Denise? Inclua pagamentos, alimentação, horários, dias e meses etc. h) Como você vê o espaço da creche? Você sente necessidade de mudanças no espaço físico? Especificar. 286 i) O que você pensa sobre o trabalho de Denise e das ajudantes? O que seu filho/a fala sobre o cotidiano da creche? j) Como é seu relacionamento com Denise e as ajudantes? l)Você já enfrentou algum tipo de problema aqui na creche? Qual? DADOS SOBRE CULTURA, REDES DE VIZINHANÇA, INFÂNCIA E GÊNERO a) Algumas manifestações culturais do bairro (cantigas de roda, a reza, o pagode, o funk, os remédios caseiros) e outras de fora (como a TV e os programas infantis, por exemplo) estão presentes no dia a dia da creche. Como você percebe estas influências entre as crianças e no espaço da creche? b) Aqui na creche de Denise as crianças são agrupadas por idades diferentes. Como você vê este agrupamento entre crianças maiores e menores? c) Como você vê as relações de vizinhança aqui no bairro? d) O que você pensa sobre a criança nos dias atuais e sobre a criação dos filhos? e) Você vê diferenças (além do sexo) entre meninos e meninas? Quais? h) Como era a sua família na infância e como ela está estruturada nos dias atuais? (casamento, filhos, posição ocupada na família, etc.) i) O que você pensa sobre ser pai e ser mãe? Você vê diferenças? Quais? j) O que você considera mais fácil: ser homem ou ser mulher? Por que? l) O que os homens do bairro costumam fazer para se divertir? E as mulheres? E você? 287 7.5 DIÁRIO DE CAMPO (Diário de campo, 21/06/2001) 7:30: Entro na cozinha e todos estão tomando café. Jane está zangada e chorando atrás do sofá. Ouço Denise comentar que ela brigou com a mãe e em tom de brincadeira ela observa: “é a amiguinha dela que está chegando” (numa referência à menstruação. Parece que o mau humor das mulheres para Denise sempre se relaciona com as regras). São 8:30 e Estela vai buscar o bebê (Mauro) que está acordando. Denise está conversando com Bia sobre um curso profissionalizante no Rio de Janeiro. Ela fala que eles pagam estudo, vale transporte e no final conseguem emprego (eu fico ouvindo e pensando se isto realmente acontece). Enquanto elas conversam, Denise pede ajuda aos meninos para montar o andador de Mauro. Bia coloca o bebê no andador e ele caminha sorridente em direção a Denise. Ouço elas comentarem que o bebê chegou sem chapéu na creche e que pode estar com os ouvidos inflamados. Estela aparece do lado de fora da porta da cozinha gritando: Ana! Os meninos estão engatinhando no corredor estreito e segue a conversa sobre o curso profissionalizante. Ouço Denise comentar sobre Mauro: “a própria mãe falou que não é para ficar o tempo todo no colo e ontem ele ficou o dia todo...” E Bia fala: “Hoje ele está enjoado...”. Denise fala que a mãe de Mauro solicitou que elas ofereçam mais atenção ao bebê. Ela conversa com o bebê: “quer um pouco de chamego?” Beija e segura Mauro no colo. “Só que eu não vou poder ficar o dia todo com você no colo. Vamos trocar?” As crianças estão jogando bola no corredor e a TV está ligada. Denise e Bia vão trocar Mauro, o que é acompanhado com interesse pelos maiores. Denise oferece mamadeira para Mauro, mas ele não aceita muito bem o leite. Ela estende o cobertor no chão e oferece ao bebê um ursinho e uma pequena garrafa de plástico. Como ele morde a garrafa diversas vezes ela comenta: “Isto tem uma pontinha de dente, heim! Tá roçando na garrafinha!” Estela comenta que Daniel tirou os chinelos. Segue o jogo de bola no corredor e é Bia quem cuida das crianças. Denise varre o chão da cozinha e limpa a mesa. Daniel se aproxima de Denise e fala: “Tá, mãe, troca a sandália!” 288 Denise propõe que as crianças joguem bola na rua com Bia. Ela acompanha Mateus ao banheiro e solicita que eu cuide do nenê, que está sobre o cobertor na cozinha. Eu escuto Denise conversando com Mateus: “quando terminar me chama! Tá fazendo? Ih, tá brabo, heim?” Eu seguro o bebê no meu colo, porque ele chora um pouco. “Acabou Mateus?” Ele diz: “acabou”. Estela entra e pergunta se a mãe vai dar Mucilon para o bebê e o pega no colo. Denise quer saber porque Estela carrega o bebê e ela explica que é Bia quem está pedindo. Mas Denise não permite que ela leve o bebê sozinha e resolve acompanhá-los. Na rua está úmido e elas colocam Mauro no carrinho. As crianças ficam em volta do bebê e Denise comenta: “é prá ele ficar vendo as paisagens”. Ela também pergunta a Jane se a mãe lhe deu o remédio e pinga Cataflan na garganta de Estela. As outras crianças também querem remédio e Denise oferece o xarope caseiro. Mas serve na mesma colher e não lava, quando passa de uma criança para outra. Bia e Denise chamam atenção de Estela, que tirou o brinquedo de Daniel. Alguns minutos depois, Denise sobe na goiabeira. Estão todos em torno da árvore. Ela pede que as crianças fiquem olhando e sobe na casa ainda em construção, para alcançar as goiabas. Ela vai jogando e pedindo que as crianças entreguem as frutas para Jane. Vai perguntando: “Jane, tem quantas goiabas aí?” Mateus fala: “mãe, cadê você?” Ela responde: “Tô aqui”. As crianças estão na cozinha comendo goiabas e Bia está com o bebê no colo assistindo TV. Ela pede que Daniel entre porque está frio. Estela pergunta aos outros: “vai ficar aí, nesse frio?” Todos entram e Bia chama para que assistam um filme. Na cozinha Mateus e Jane brincam de carrinho sobre a mesa. E Jane fala: “sabia que eu ia dormir sozinha?” Denise comenta: “como assim, sozinha? Sua mãe não lhe deixou sozinha, não! Que susto! Agora você me deixou assustada!” Ela conversa com Jane e parece que isto não aconteceu, mas não ficou muito claro. Bia entra na cozinha: “ô tia...você colocou a fralda agora no Mauro? Tá frouxa!” Marcos vai andar na motocicleta de plástico no pátio. Marcos vem tirar a bola de Daniel e Denise diz: “você vai brincar com o carrinho, ele já estava com a bola”. E Bia comenta: “é só você que ele escuta”. Denise conversa com Marcos sobre o carrinho: “tá com cinto de segurança? Comprou sua carteira aonde?” Ele responde: “aí, mãe...vou sentar na cadeira do carro, aí mãe, vai bater, ó...” Denise responde: “Tô vendo, meu filho...”. São 9:25 e as crianças continuam no pátio. Bia está com o bebê no alpendre. Marcos anda na motocicleta e os outros brincam com a bola. Estela pega a motocicleta e Bia diz: “Estela, ele já estava andando”. Ela puxa a motocicleta de Marcos, ouve um barulho e 289 pede para Marcos parar. Ela fica atenta e diz: “acho que é a máquina”. E conversa com Bia sobre o carro do nenê que trava e destrava. Bia exclama: “ah, podia fazer sol...”. Jane e Marcos brincam embaixo da mesa da cozinha. Ouço Denise falar para Jane sobre Marcos e Mateus que estão brigando: “Dá a mão você a ele. Você é menina e mais amigável”. Jane leva Marcos pela mão e ele grita: “mãeee!!!” Denise cuida eles brincarem na cozinha e Jane fala: “vem com a mamãe, vem! Vou levar seu carrinho!” O nenê está no colchão que foi colocado na sala. Ele dormiu e Bia está perto dele. A irmã de Júlio o entrega na porta às 10:05. Ele traz uma sacola cheia e Bia diz para ele entrar e falar com a tia Denise. Ouço ela dizer alegremente: “Oi!” Agora há crianças no quarto de Denise e Bia os chama para ver TV. Os meninos brincam na sala e Bia comenta que o bebê que dorme no colchão vai acordar. Denise aparece na sala sugerindo que ela o leve para o quarto. Bia vai servindo água para as crianças na mesma caneca. Da cozinha Denise avisa: “carrinho é no corredor, heim! Na sala, não!” As crianças brincam no corredor e engatinham (é o brinquedo de cachorro) e comentam sobre o desenho da TV, porém não ficam assistindo. Ouço Bia mandar que eles parem de engatinhar, mas eles continuam e uma das crianças propõe: “vamos brincar de sapo?” São 10:30 e as crianças estão no quarto dos brinquedos, enquanto Bia intervém nas disputas pelos carrinhos. Denise está cozinhando e o bebê está dormindo. Entro na cozinha e Daniel está sentado de castigo. Denise diz: “Você vai brincar com o carrinho, pede a Estela que pegue o carrinho com Bia...vai lá brincar e sem confusão no corredor, senão volta a sentar aqui de novo!”. Bia pergunta porque Jonathan não veio e Denise responde que a vó deve ter ficado em casa. Ela torna a colocar Daniel sentado na cozinha: “Fica aí. Já que você não quer brincar com ninguém...fica aí bem pertinho de mim”. Fala para Estela: “levanta desse carrinho, que você é pesada para isso, levanta” (refere-se à motocicleta de plástico). Daniel pede para sair da cadeira e ela fala: “não, você não está brincando direito, você está batendo nas crianças...é isto”. Daniel chora e pede para sair. Ela fala: “não vai fazer bagunça, não? Então vem sentar perto de mim”. Estela está fazendo tarefas da escola com Denise, que novamente chama atenção de Daniel: “vem, pode vir. Aqui não adianta fazer cara feia, que eu não tenho medo não...Senta”. Bia entra na cozinha e avisa que vai ver se Mauro ainda está dormindo. Estela: “mãe, Daniel fica me empurrando...” Denise diz: “senta aqui Daniel. Julinho, você quer sentar perto de mim? Então para de correr...” Jane pede para ir ao banheiro e Denise recomenda que vá devagarinho, porque Mauro ainda está dormindo. Na rua Bia e as crianças brincam de roda 290 e eu anoto algumas canções: “É de tango, tango. É de carrapicho, joga o Marcos na lata de lixo, a lata furou, o lixeiro carregou”. Na frente da creche estaciona uma moto e Bia observa: “nossa, que moto!” As crianças vão para o portão olhar a moto. Começam os preparativos para o banho às 11:10 e Denise muda a dinâmica do banho, porque o bebê está dormindo no quarto. Ela diz para Bia: “Pode ficar aí. Vou pegar um por um para não acordar o Mauro. Mando para a rua e você manda os outros”. Mateus é o primeiro a entrar e ouço os dois conversando, enquanto ela o ajuda a se despir: “vê se a sua sandalinha tá na sala prá titia...” Passa o sabonete e diz: “fecha o olho, lava o rosto, soa o nariz! Isto! Viu quanta sujeira que sai daí? Que melecada, heim? Eca!” Na rua as crianças brincam de prenda com Bia. Eu ouço Denise comentar: “Olha que criança linda e cheirosa! Tomando um banhozinho fica cheiroso a beça”! Agora é Daniel quem entra e diz: “mãe, acabou...mamãe...”. “Acabou nada, você recém entrou...que mamãe nada, deixa de ser medroso...Isto! Muito bem! Aí você vai lá prá fora brincar de novo!”. Nara chega da escola e Mauro acorda. Denise comenta sobre como o nenê fica louquinho com a presença dela: “eu nunca vi tanto chamego com alguém”. E Nara conversa com o nenê: “que é que o neném tinha, heim? Neném piquititinho...beijinho na testa, na bochecha, no nariz, no braço...”. Julinho e Marcos entram para tomar banho e Denise brinca com eles: “que fedor, cadê meu pandeirão!” Na rua Bia colocou Daniel sentado e ele chora. Após o banho, as crianças cantam em roda com Bia e Denise: “dois patinhos na lagoa, começaram a nadar, quando viram a minhoca começaram a... minhoca, minhoca, me dá uma beijoca, não dou, então eu vou roubar, minhoco, minhoco, você tá muito louco, beijou do lado errado, a boca é do outro lado, eu vi uma barata na careca do vovô...”. Enquanto esperam o almoço, Bia e Nara brincam com as crianças no chão da cozinha (sentados no cobertor). O clima do almoço é sempre muito alegre. O nenê vem para o colo de Bia e ela diz: “tia, traz o babador dele aí, por favor...” Em roda Bia e Nara solicitam que as crianças falem palavras (um de cada vez fala e todos batem palmas). As palavras são babador, amor, chocolate e outras. Denise fala para Bia: “lamento informar, mas ela não trouxe babador...”. Denise arruma Estela e Jane para a escola e os outros vão para o corredor brincar de carrinho. Em torno de 12:00 elas começam a chamar as crianças para o almoço. Jane chama a atenção de Julinho: “Julinho, chega, tá na hora da comida...que frio....” Os meninos sentam no chão e as meninas à mesa. Nara diz para sua mãe: “ai, que ciúme, meu Deus”, numa referência ao comportamento de Daniel com relação ao bebê. O irmão de 291 Mauro o beija e Denise brinca com as crianças: “pega esse nenezinho, pega a bochecha dele e depois dá um beijinho...” Bia serve para o bebê legumes amassados com feijão e mais adiante eu observo que ele demora para comer, pois não parece muito disposto. As outras crianças comem arroz branco, carne fatiada com molho, abóbora e feijão batido com legumes. Vou tomar café e peço uma colher pequena para Denise. Jane pergunta porque eu quero uma colher pequena e eu explico que é para mexer o café. Ela insiste que não é preciso, que eu posso mexer o café com o cabo do garfo. Denise ajuda os meninos a comer, com exceção de Júlio que come sozinho. Após o almoço, Bia acompanha as crianças ao banheiro, para que escovem os dentes. Denise confere a escovação de Estela e a merenda das meninas. A mãe de Jane não mandou refrigerante ou suco e Denise comenta que foi por este motivo que ela pediu para dar uma “olhadinha” na mochila. Denise fala para as meninas que ela aprendeu isto com Estela, “que não precisa ficar explanando”. Enche de guaraná as duas garrafinhas e pede cuidado para não entornar o guaraná dentro das mochilas. Nara e Bia levam as meninas para a escola às 12:50 e Denise fica com o bebê no colo, que ainda está comendo a papinha. Ele levou mais de uma hora para comer e ela explica que é preciso paciência. Alguns minutos depois, ele dorme de bruços no colo de Denise. Ela o leva para o colchão. As outras crianças estão no corredor brincando de carrinho e ela pergunta: “Está todo mundo de carrinho? O que está faltando agora?” Ela faz este comentário porque alguns estão disputando os carrinhos. Pergunta quem quer água e todos aceitam. Ela senta os meninos no sofá para ver “Os Simpsons” enquanto Nara e Bia almoçam. Denise comenta com eles que está quase na hora de se recolherem e eles brincam dizendo que vão para o colégio. Às 13:35, Nara traz para a sala caixas vazias de leite Parmalat e mostra as letras coloridas para Denise. Ela aponta as letras dos nomes das crianças e vai comentando: “a de Ana, M de Marcos, Mauro, Mateus...” Eles falam sobre tartarugas e Denise traz um livro de uma coleção sobre Animais Noturnos. Ela vai mostrando os animais para os meninos: aqui é a raposa, o guaxinim, os castores, o morcego, grilo, sapo... Ela canta : “o sapo não lava o pé porque não quer, ele está na lagoa...”. Eles olham as gravuras bem atentos. O jaguar...e Daniel diz: “é o gatinho...” Bicho-preguiça...”aqui bicho”. Denise segue mostrando: “aqui é o tamanduá, ele come formiga...este é o macaco, ih o macaco com rabo...” E as crianças riem bastante. Algum tempo depois ela abre o armário e oferece uma revista Caras para cada criança. Coloca o cobertor no chão e eles sentam para olhar as revistas. Júlio 292 grita: “piscina! A minha tem piscina!” A propaganda do Kinder Ovo na TV sempre mobiliza todos eles. “Carro, carro!” diz Júlio. As meninas estão lavando a louça do almoço e os meninos comentam sobre as revistas. “Praia!” diz Júlio. Eu pergunto se ele já foi à praia e ele fala que já foi a Icaraí ver a mãe dele. Ele segue fazendo observações: “ih, mulher pelada!” Após ter almoçado, em torno de 14:30, Denise acompanha os meninos até o banheiro porque eles vão dormir. Eles beijam Nara antes de ir para o quarto. As crianças dormem na cama de Denise e, durante este período do sono, Bia foi para casa verificar se tem algum serviço para fazer. São 17h e as crianças ainda não acordaram. Denise vai chamá-las para o lanche e comenta: “hoje elas nem vão jantar, porque vão comer o bolo e tomar chocolate a esta hora... Estela e Jane chegam da escola e todos comem bolo e tomam o chocolate que eu preparei durante a tarde. Em torno de 17:25, Denise chama as crianças para o quarto e veste roupas mais quentes, porque está um pouco frio. Mauro está no colo de Nara tomando mamadeira. As crianças se aproximam das minhas folhas e canetas. Dou folhas e elas vão desenhar no chão. Daniel que havia saído, entrou novamente e agora sai mais uma vez. Júlio abre a porta e pergunta se ele vai embora. “Vou!” “Então tchau!” Chega Juçara, mãe de Marcos e Mauro, às 18:15: “oi, meu amor de minha mãe” (fala isto para o neném e eu observo que Marcos fica se agarrando nela e pedindo balas, mas parece que ele quer é atenção da mãe). O bebê reage muito alegre e Marcos tenta abrir a bolsa de Juçara: “você sabe que não pode mais chupar balas...aquele negócio que eu dava, não dou mais...” Fala que o bebê quando está em casa, só quer saber de colo. Ouço Denise falar que com elas isto não acontece. Ela explica que o antibiótico vai secar o catarro dele e que sábado os dois vão ficar na creche, porque ela precisa trabalhar. “O Amoxil tá aí?” Ela sai e fica conversando com Denise no portão e as crianças ficam observando e jogando bola. Denise manda elas entrarem e comenta com Juçara que as roupas dos meninos estavam úmidas e que ela precisou secar na corda. Ela pede mais roupas por causa do frio. Eu saio com Denise, porque ela vai para a escola e pega ônibus no terminal. Nara fica com Júlio, Jane e Mateus. Daniel voltou e chama os outros para ver bichos. No caminho Denise conta que enquanto tem bebês na creche ela não sai. Fala que estuda mais longe, porque nas escolas dentro do Saudade faltam professores.