Entrevista com Ana
Laura Prates Pacheco
por Silvana Pessoa
A Equipe de Publicação da Stylus (EPS 2011-12), sob minha coordenação, decidiu concluir sua gestão entrevistando a atual diretora da EPFCL – Brasil por considerar um momento oportuno de transmissão de uma experiência, haja vista que
em breve haverá uma nova permuta da Comissão de Gestão de nossa comunidade
de Fóruns. Não só por isso, mas também para homenagear a recém-criada Rede
de Psicanálise & Criança e, last but not least, para acolher e divulgar o recém-lançado livro de Ana Laura pela Letra Viva, que trata da direção do tratamento na
análise com crianças. A ela, e a todos os colegas da EPFCL – Brasil, agradecemos
a confiança e apoio na realização de nosso trabalho.
Silvana Pessoa: Prezada Ana Laura, sabemos que você já esteve numa comissão de gestão como Secretária no início da nossa Associação em 2002, e, agora,
mais uma vez, está na Comissão de Gestão (CG), desta vez como diretora da EPFCL –Brasil. Poderia nos falar dos principais avanços e impasses da nossa instituição desde então?
Ana Laura Prates Pacheco: Sim, eu fui Secretária da Comissão de Gestão da
AFCL (EPFCL-Brasil) com Ângela Mucida (FCL-BH) como Diretora, e Eliane
Schermann (FCL-RJ), como Tesoureira. São dois momentos bem distintos, tanto
no nível pessoal, quanto no da nossa associação. De fato, naquela época vivíamos
um tempo de construção de uma nova associação nacional no Brasil. Era ainda
um momento bastante reativo às dificuldades institucionais enfrentadas no Campo Freudiano, com o qual havíamos rompido para criar o Campo Lacaniano.
Não havia consenso, muito menos unanimidade a respeito da necessidade de nos
associarmos em nível nacional. Muitos preferiam priorizar o funcionamento dos
Fóruns em suas cidades e estados, como resposta a uma experiência institucional
anterior bastante centralizadora. A criação da AFCL como associação de membros e não de fóruns, dessa forma, foi uma solução de compromisso, que preservava a autonomia dos fóruns locais. Isso possibilitou sua existência, por um lado,
mas por outro nos trouxe várias questões com as quais estamos nos havendo até
hoje, embora nos últimos anos tenhamos avançado muito. O fato é que naquela
época, no início dos anos 2000, a confiança entre os membros da AFCL ainda
estava em processo de construção, uma construção que só um tempo de traba-
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lho comum possibilita. Nossa candidatura representava um grupo maior, com
colegas de vários fóruns, que vinha debatendo a importância de não recairmos
em erros passados, e não repetirmos a primazia de um discurso único em nossa
associação. Havia, eu diria, uma espécie de fobia do Um, tendendo, às vezes, a
certa paranoia: víamos o Um em todos os lugares (risos). Mas, ao mesmo tempo,
estávamos legitimamente preocupados em garantir a democracia e a expressão de
múltiplos estilos e sotaques. Fizemos uma chapa composta por membros de três
fóruns distintos, um arranjo muito difícil em termos administrativos, mas que
na ocasião tinha um intuito de pontuar essa pluralidade. Para mim, foi uma experiência importante, um aprendizado institucional. Trabalhamos muito, como
todos os colegas que já passaram por essas funções. Atualmente, penso que há
vários avanços notáveis em nossa associação, fruto justamente desse trabalho comum, principalmente em relação à articulação entre os fóruns locais e o nacional,
de modo que a EPFCL – Brasil represente hoje o conjunto dos fóruns no Brasil,
ou seja, configure-se como um fórum nacional. Como eu disse no relatório que
apresentei no primeiro ano da minha gestão atual como Diretora: “A comunidade
brasileira da EPFCL – Brasil é ampla, heterogênea e complexa. É composta de
colegas oriundos de diversas filiações transferenciais e experiências formativas
incomensuráveis, que geram uma dificuldade crônica de reconhecimento mútuo
(quando não uma desconfiança recíproca e paralisante). Uma associação nacional
precisa tentar conseguir – sem a pretensão benthaniana ingênua de uma lógica
distributiva sem restos – contemplar essas diversas representações locais, suportando essa diversidade (que é ao mesmo tempo nosso maior problema e nossa virtude mais frutífera). Não precisamos de panópticos ou regras estanques, burocráticas e engessadas, que proclamem a inútil tentativa de administrar o real, mas de
princípios coerentes com nossa orientação pelo real, que não exclua, entretanto, a
decisão e o ato diante de cada situação que se apresenta”. Essa foi a nossa tentativa
com a atual Comissão de Gestão.
Silvana Pessoa: Tenho escutado de forma recorrente, durante os nossos encontros institucionais, comentários elogiosos a essa gestão formada por você, Sandra
Berta e Beatriz Oliveira, e, por vezes, interrogam-nos se vocês não pensam em
continuar. Sabemos que a reeleição estatutariamente não é possível. Todavia, que
legado você, como diretora, gostaria de passar para os demais que a sucederão?
De outra maneira, quais foram as importantes decisões que precisam ser passadas
adiante?
Ana Laura Prates Pacheco: Gostaria de aproveitar essa oportunidade oferecida pela revista Stylus para agradecer os elogios e incentivos que temos recebido
durante a nossa gestão. Para mim, está muito claro que só pudemos fazer esse
trabalho porque temos – Sandra, Beatriz e eu – uma afinidade pessoal, política e
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institucional muito grande; além da incrível disposição ao trabalho de minhas colegas de gestão. Foi uma conjuntura muito favorável, as três estarem disponíveis
naquele momento para montar uma chapa. Nem sempre isso é possível, depende
de muitas variáveis. É evidente que não podemos fazer disso um universal, muito
menos uma regra, mas de fato, a partir dessa experiência, considero desejável, e
talvez até recomendável que as comissões de gestão possam trabalhar assim. A
gestão de uma associação como a nossa é algo muito complexo, que exige muito
trabalho, dedicação e esforço. Não somos administradores, nem contadores, nem
políticos. Somos psicanalistas. Isso nos traz inúmeras dificuldades, e está longe
de ser um problema apenas brasileiro. Vimos recentemente na última Assembleia
da IF, no Rio de Janeiro, as dificuldades para encontrarmos uma organização
internacional. Além disso, a responsabilidade é enorme, pois temos que lidar com
a questão do gerenciamento financeiro, jurídico etc. Mas as maiores dificuldades
estão em outro lugar, estão exatamente no tratamento da diversidade e dos inúmeros impasses que surgem daí, o que é mais do que natural e não deve de modo
algum ser eliminado. Os impasses são intrínsecos ao laço social e espera-se que
os psicanalistas possam lidar com isso de um modo que não leve ao pior. Bem,
no nosso caso, optamos por oferecer um tratamento formal. Não podemos nos
esquecer de que somos um país que viveu muitos anos sob uma ditadura militar
e que ainda sofremos as consequências disso no plano da sociedade civil. Há uma
tendência crônica de gerir a coisa pública (república) como se fosse algo privado,
particular, e sem querer passamos a achar isso natural. Essa confusão entre o
público e o privado, que nem sempre é mal intencionada, cria um estilo que ora
tende ao antigo coronelismo, ora ao individualismo. Ora, as associações psicanalíticas não estão imunes a isso, e Lacan chama a atenção para o risco de o psicanalista “autoritualizar-se” – que é diferente do autorizar-se. Então o tratamento
formal foi o modo que encontramos para lidar com esses impasses. Veja: não se
trata de burocracia, até porque nossos Princípios Diretivos e nossos Estatutos são
muito enxutos. Eles nos fornecem princípios e diretrizes que nos orientam, mas
o tempo todo foi preciso interpretá-los para aplicá-los ao dia a dia institucional.
Quanto à reeleição: até pela minha história e trajetória pessoal, sou uma defensora intransigente da democracia e da pluralidade. Sabemos que a democracia por
si mesma não garante a psicanálise, longe disso. Mas por outro lado, sem ela, não
vamos muito longe. Embora, seria ainda preciso nos perguntar de qual democracia estaríamos falando. É toda uma discussão política muito complexa, que talvez
em algum momento precisássemos abrir. Nesse caso específico, não sou favorável
à reeleição. Pode ser que algum dia eu mude de ideia quanto a isso, a depender dos
rumos que a situação da psicanálise irá tomar no Brasil e na EPFCL. De qualquer
forma, acho que a permutação é um dos princípios mais importantes da Escola
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de Lacan. E nossa associação não deixa de ser o suporte da Escola. Além disso,
apostar mais no funcionamento do que nas pessoas, é outro legado que Lacan nos
deixou, e é preciso levar isso a sério. Por isso fizemos questão de deixar princípios,
de formalizar os trabalhos que fomos construindo com a comunidade, pensando
sempre nas funções e não nas pessoas que as ocupam, e isso em vários âmbitos:
na Comissão de Acolhimento e Intercâmbio, na Equipe de Publicação e Divulgação, no Conselho Fiscal, na Revista Stylus, na relação com os Fóruns, e assim por
diante. Espero, sinceramente, que as próximas gestões possam dar continuidade
a esse trabalho.
Silvana Pessoa: Conhecendo de perto seu trabalho, constatamos que é uma
trabalhadora decidida da causa analítica. Sabemos que, além da implantação da
Rede Clínica do Fórum São Paulo, você participou ativamente da implantação da
Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância neste Fórum. Também temos conhecimento de iniciativas tão importantes quanto essa em outros Fóruns, como a Rede
de Psicanálise com crianças no Rio de Janeiro e a Rede Pião, em Salvador. Qual a
importância da criação da Rede Nacional de Psicanálise e Criança?
Ana Laura Prates Pacheco: A implantação da Rede Clínica do Fórum São Paulo foi fruto do esforço de muitos colegas, principalmente aqueles envolvidos nas
coordenações das redes de pesquisa, que já existiam há muitos anos. Minha contribuição foi a de ajudar a coordenar esse trabalho e colocar a Rede em funcionamento. Hoje, estamos colhendo frutos muito interessantes e importantes em relação à construção do caso clínico, e espero que em algum momento isso possa ser
publicado. Quanto à Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância, foi uma iniciativa
que tomei logo no início da criação do Fórum São Paulo. No início, contei com a
ajuda de Ana Cláudia Fossen, e quando ela foi para a Espanha, convidei Beatriz
Oliveira, que coordena a Rede comigo até hoje. Esse trabalho já havia se iniciado
antes, ainda no Campo Freudiano. Em São Paulo, especificamente, destaco, sobretudo, a iniciativa de Helena Bicalho. Nós demos continuidade a essa trilha que
já estava aberta. O mesmo ocorreu em outros Fóruns do Brasil, como você mencionou, na Rede de Psicanálise com Crianças do Rio de Janeiro – onde há inclusive a revista Marraio – e na Rede Pião em Salvador. Nessas cidades, Maria Anita
Carneiro Ribeiro e Sonia Magalhães, assim como outros colegas, também já desenvolviam um trabalho no Campo Freudiano. Em outras cidades, mesmo sem a
criação de uma rede de pesquisa específica, há vários colegas trabalhando com a
questão. Daí a importância da criação da Rede Brasil de Psicanálise & Criança da
EPFCL – Brasil. No fundo, trata-se de algo bastante paradoxal. Há algo de sintomático no fato de termos que criar uma rede com a finalidade de debatermos as
questões relativas à Psicanálise com crianças. Aliás, essa é a razão pela qual optamos por denominá-la “Rede de Psicanálise & Criança”. Trata-se de um conectivo
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lógico que aponta a um só tempo para uma conjunção e uma disjunção, já que
criança não é um conceito psicanalítico e não existe uma especificidade chamada
“Psicanálise de crianças”. Assim, não deixa de ser irônico que ainda seja necessário criar uma rede própria para sustentar a unidade da clínica, como diziam
Rosine e Robert Lefort. É o mesmo paradoxo da inclusão, que é tão atual: se falamos em inclusão, é porque há exclusão, trata-se de pares ordenados. Da mesma
forma, só podemos falar em criança, se consideramos a oposição criança-adulto,
o que não faz sentido para a psicanálise, já que desde Freud o desejo é sexual e
infantil e, desde Lacan “não existe gente grande”. Constatamos, portanto, que a
novidade da psicanálise ainda não foi suficientemente assimilada pela cultura, e
mesmo pela comunidade analítica. Penso que a resistência à sexualidade infantil
é a resistência à própria Psicanálise.
Silvana Pessoa: Certamente a sua vasta experiência na pesquisa e na clínica
com crianças foi determinante para a escrita do seu recém-lançado livro na Argentina pela Letra Viva: De la fantasía de infancia a lo infantil de la fantasía: la
dirección de la cura en el psicoanálisis con niños. Podemos ter esperança de vê-lo
lançado aqui também no Brasil?
Ana Laura Prates Pacheco: Sua pergunta aponta para algo bastante delicado,
que diz respeito ao mercado editorial brasileiro, especialmente no campo das Humanidades e, mais especificamente, no campo da Psicanálise. Essa questão é tão
complexa, que excederia muito os limites dessa entrevista. Apenas comento que
não deixa de ser irônico que trabalhos de psicanalistas brasileiros estejam sendo
publicados primeiro no exterior. Meu livro não é o único caso. Por outro lado,
há um movimento novo, de interesse internacional pela produção feita no Brasil,
escrita em português, que infelizmente não é uma língua muito conhecida, nem
sequer por nossos irmãos latino-americanos. Acho que isso se deve não apenas
ao inegável avanço da Psicanálise no Brasil nas últimas décadas, mas também
ao lugar que o Brasil passou a ocupar no cenário político internacional de dez
anos para cá. Por esse ângulo, vejo como uma coisa muito positiva o lançamento
desse livro, e não só no plano pessoal. Mas é claro que para mim, especialmente,
está sendo um momento muito gratificante, um reconhecimento inestimável de
meu trabalho. E sou muito grata aos colegas da FARP que me convidaram em
2007, num momento muito especial da minha vida e da minha formação analítica, para apresentar meu trabalho lá: o amigo Gabriel Lombardi, Cristina Toro e
Silvia Migdalek. Foi a partir dessas apresentações que Pablo Peusner, a quem sou
extremamente grata, começou a se empenhar para que meu livro fosse publicado
pela Letra Viva. E agora, cinco anos depois, voltarei a Buenos Aires para lançar o
livro na FARP, desta vez a convite do novo amigo Marcelo Mazzuca. Estou muito
feliz! Quanto ao lançamento no Brasil, está previsto para novembro de 2012, pela
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coleção Ato analítico, da Editora Annablume.
Silvana Pessoa: No quinto capítulo do seu livro você trata do título escolhido,
ou seja, da direção do tratamento psicanalítico de forma vetorial: “da fantasia de
infância ao infantil da fantasia”. O que poderia nos dizer neste momento sobre a
“fantasia de infância”?
Ana Laura Prates Pacheco: Essa é uma questão muito interessante, que me
mobiliza bastante. Por um lado, temos o ideal moderno, que Lacan chama no Seminário 7 de “ideal da não dependência”. Trata-se da ideia de progresso, de desenvolvimento, tributária da Modernidade e do advento do Discurso Universitário.
É o ideal do adulto pronto, acabado, maduro, desenvolvido. Ou, em vocabulário
psicanalítico: o sujeito neurótico bem constituído. Lacan adverte os psicanalistas
que atendem crianças a respeito dos riscos desse ideal. A esse ideal corresponde,
por outro lado, a fantasia da infância como adulto inacabado. Como eu disse antes, o par ordenado criança/adulto.
Silvana Pessoa: E sobre o “infantil da fantasia”?
Ana Laura Prates Pacheco: O problema é que sabemos que o neurótico é justamente aquele que, em sua fantasia fundamental inconsciente, se coloca como
objeto diante do Outro: infans, aquele que não fala. Então, acreditar na infância
como uma fase da vida em que se era inocente, e sustentar essa tese no laço social,
é um recurso que o neurótico usa para não ter que entrar em contato com sua
responsabilidade em seu gozo e em sua fantasia. Se o par ordenado adulto/criança
é criação do Discurso Universitário e não do Discurso Analítico, o conceito de
infantil é freudiano, e Lacan não o rejeita. O infantil é estrutural no ser falante.
Ele reaparece na fantasia pela via da versão imaginária do trauma que cada um
constrói. Assim, na fantasia, o trauma é o infantil. Mas, uma vez atravessada essa
fantasia, o infantil pode ser somente a “ascensão ao feto dos nomes”, como diz
nosso poeta Manoel de Barros, ou como diria Lacan, se deixar afetar por lalíngua.
Silvana Pessoa: O tema do próximo encontro internacional, que acontecerá em
Paris, será sobre o desejo. Em um dos seus capítulos você fala da infância e do
despertar do desejo. O que poderia nos dizer disso?
Ana Laura Prates Pacheco: Esse foi outro ponto muito interessante que encontrei em minha pesquisa: a antinomia entre Rousseau e Freud em relação ao tema
do desejo, embora partam de premissas bastante próximas. Rousseau considera
haver uma desproporção radical entre nossos desejos e nossas faculdades, pois há
uma inadequação do desejo em relação ao objeto, o qual é fruto de nossa imaginação e não da necessidade. É uma afirmação surpreendente e perturbadora, pois
parece antecipar Freud. Mas Rousseau crê na educação como algo que faria uma
suplência bem-sucedida a essa desproporção. Sabemos que para Freud isso não
acontece de modo algum. Não há esperanças de que a educação promova o final
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feliz. Eis, aliás, o engodo do Discurso Universitário – escrita lacaniana para o
“educar”, um dos impossíveis freudianos. Voltamos à antinomia entre o Discurso
Universitário e o Discurso Analítico. Para a Psicanálise, a infância não é o sono da
razão, mas o despertar do desejo. Com todos os seus paradoxos, para usar o termo
escolhido para o tema do VIII Encontro: “Os paradoxos do desejo”.
Silvana Pessoa: Dentre muitas outras coisas, na clínica com crianças, muitos
têm dificuldade de lidar com diversas demandas dos pais das crianças, que nunca vêm sozinhas. Parodiando o artigo de Freud, Recomendações aos médicos que
exercem a psicanálise, de 1912, você poderia dar alguma recomendação àqueles
que exercem a psicanálise com crianças?
Ana Laura Prates Pacheco: Esse é mais um aspecto muito importante, e agradeço a pergunta, pois é uma oportunidade de esclarecer algumas confusões. Em
primeiro lugar, acho que esse mantra que costumamos repetir: “a criança nunca
vem sozinha” contém certo preconceito de classe. Sim, é verdade que raramente
ela vem sozinha em nossos consultórios. Mas, isso já não é verdade para quem
trabalha em instituições. Há sim, uma condição legal da criança no mundo contemporâneo, que é a condição de ser tutelada. Assim, se não é a família, é o Estado
seu responsável legal. Mas em termos da análise propriamente dita, eu diria que
a presença dos pais na realidade é mais conjuntural do que estrutural. Aliás, o
movimento lacaniano teve uma importância muito grande na explicitação dessa
diferença, e isso se deve em grande medida aos atendimentos realizados em instituições e abrigos de crianças, onde os pais não estavam presentes. A experiência
da Rede Clínica do FCL – SP, nesse ponto, tem sido um grande aprendizado, pois
tenho supervisionado muitos casos de crianças de abrigo. Há um caso, inclusive
já publicado em Marraio. Isso posto, é claro que podemos debater o manejo dos
pais quando recebemos crianças em nossos consultórios. Costumo dizer que se
trata de um debate tático. É preciso manejar as demandas dos pais, o que se torna
bem mais difícil se o analista se identifica com o lugar da criança, ou sobrepõe
o ambiente familiar à estrutura. Escutamos os pais, basicamente, para que nos
deixem trabalhar. Quanto à recomendação, acho que há uma, bem simples, que
é na verdade uma recomendação claríssima de Lacan, no Seminário 8. Ele diz
mais ou menos assim: à pergunta “que sou eu?”, jamais responda: uma criança!
Essa é a pior resposta que, aliás, já estaria dada a priori. É comum os supervisionandos dizerem: “Mas eu não entendo o que ela (a criança) está fazendo, só fica
brincando, jogando, não consigo entender”. Talvez seja preciso perguntar se está
entendendo o que os analisantes adultos estão dizendo. Se a resposta for sim, é
bom começar a se preocupar. A clínica com criança não nos deixa esquecer que
escutamos as formações do inconsciente, tendo em vista a construção da fantasia
e seu atravessamento. Então, suspenda tudo o que sabe a priori sobre crianças,
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dispa-se de suas fantasias de infância e das supostas especificidades da infância.
Deixe-se surpreender, escute, simplesmente, o que aquele sujeito tem a dizer sobre
seu sofrimento.
Silvana Pessoa: Uma das epígrafes utilizadas no seu livro é a de Hermann Hesse, que diz: “O homem não é de modo algum, um produto firme e duradouro, é
mais um ensaio e uma transição...”. Entendo que queira destacar que a transformação está para todos e que a criança não é uma “meia-dose” do homem – ela é
uma “dose inteira”, nada firme ou duradoura como qualquer um de nós. Entretanto, o que esperar do tratamento psicanalítico com criança que ainda passa por
grandes transformações corporais e por vezes ainda está às voltas com a aquisição
da linguagem e da escrita? Nesses casos, podemos falar em final de análise com
crianças no estrito senso? De outro modo, podemos falar em travessia da fantasia
e identificação ao sintoma?
Ana Laura Prates Pacheco: Lembro-me de uma canção de Caetano Veloso que
começava com a frase: “Meia lua inteira”. É isso, somos sempre ensaio e transição,
independentemente da idade. Freud dizia que o que enlaçava o passado, o presente
e o futuro era o fio do desejo. Lacan, na mesma direção, elenca os momentos nos
quais as questões narcísicas e sexuais do sujeito se atualizam: desmame, Édipo,
puberdade, maternidade e, inclusive, o declínio, ou seja, o envelhecimento. Então
vemos que não é só a criança que passa por grandes transformações corporais, e
basta começarmos a envelhecer para constatarmos esse fato. Quanto à aquisição
da linguagem, penso que a partir de Lacan, sabemos que se trata de um tudo ou
nada de traço. Não tomamos a linguagem como instrumento de comunicação, o
que faz toda a diferença. A escrita é um ponto que mereceria todo um desenvolvimento que não poderei fazer aqui. Estou pesquisando essa questão da letra e da
escrita em meu pós-doutorado na UERJ, com a supervisão da nossa colega Sonia
Alberti, e espero que seja o tema do meu próximo livro. No Seminário 12, Lacan
tece algumas considerações sobre a alfabetização, lembrando que a escrita é uma
hiperestrutura. Ali, ele lembra que uma proporção muito grande da humanidade
é, ainda hoje, ágrafa ou analfabeta. Há autores, como Postman, que consideram,
inclusive, que a popularização da grafia e da escrita na Europa ajudou a criar a
noção moderna de infância tendo como parâmetro exatamente a alfabetização.
A Psicanálise, entretanto, não pode se aliar aos que infantilizam o analfabeto.
Então, é preciso redobrar o rigor quando estamos falando de letramento a partir
da Psicanálise. Eu lanço a questão: por que um analfabeto não poderia terminar
uma análise? Talvez aprender a ler poderia ser um efeito, talvez não. São questões
que a experiência clínica nos ajude a responder. E há, finalmente, a questão do encontro sexual com o que alguns colegas chamam de real do sexo e do gozo. Aqui,
multiplicam-se os preconceitos, e penso que eis um aspecto que os psicanalistas
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brasileiros podem colaborar muito para avançar. Quando estive em Belém, após
minha conferência sobre “O que pode o dispositivo analítico frente ao dispositivo
de infantilidade”, duas psicólogas que atendem as meninas ribeirinhas vieram
falar comigo. Elas me contaram das meninas a partir de sete, oito anos, que são
prostituídas pelas próprias mães, as quais as oferecem aos barqueiros da região.
E do quanto é difícil abordar a questão a partir de nossa “moral civilizada” para
usar ironicamente o termo de Freud, já que esse “comércio”, digamos assim, é
fator importante na economia doméstica dessas famílias. É apenas um exemplo,
que mostra a complexidade da questão. Espero que daqui a alguns anos essas
colegas possam nos trazer suas conclusões, para que possamos avançar. Quanto
ao final da análise, penso que precisamos definir o que estamos chamando de
“estrito senso”. Sabemos que não há a última palavra, mas há balizas: travessia da
fantasia, identificação ao sintoma etc. A questão é que sabemos que é preciso tempo. Nossas análises são longas, até porque há muito estrago para se arranjar. Normalmente, quando começamos uma análise, já deu tempo de nos complicarmos
bastante na vida. Sujeitos mais novos, em geral, conseguem se rearranjar mais
rapidamente e frequentemente decidem que têm mais o que fazer. É muito comum retornarem depois; tenho vários casos em minha clínica. Mas há exceções,
e penso que não cabe a nós decidirmos a priori até onde vai uma análise. O desejo
do analista é de conduzi-la até o impasse e, de preferência, ao passe. Resta ainda
a questão do ato, e de sua relação com a lei, lembrando, como dissemos anteriormente, que a criança, em nossa sociedade, é tutelada. Deixo isso apenas indicado.
Mas gosto de lembrar, como nos ensina Ariès, que na Idade Média, algumas Cruzadas foram lideradas por pessoas de apenas doze anos. Haja identificação!
Silvana Pessoa: Finalizando esta entrevista, gostaria de agradecer, em nome da
Equipe de Publicação da Stylus (EPS/2011-2012), sua disponibilidade, o cuidadoso tratamento dado às essas questões, além de recomendar fortemente a leitura do
seu livro para aqueles que desejam saber mais da formação do [eu], da constituição do sujeito, da extração do objeto, do diagnóstico estrutural e de tantas outras
questões dessa tão instigante clínica com crianças.
Ana Laura Prates Pacheco: Gostaria de agradecer imensamente aos colegas da
revista Stylus, especialmente a Silvana Pessoa o trabalho excelente na condução
editorial da revista. Agradeço também a oportunidade de falar sobre temas que
me são tão caros, aproveitando para me despedir da função de Diretora da EPFCL
– Brasil. Obrigada a todos!
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