COLÓQUIO: A FILOSOFIA NO ENSINO SECUNDÁRIO
O novo programa de 12.° Ano
Nos dias 22 , 23 e 24 de Março de 1995 realizou - se, em Coimbra, na
Faculdade de Letras, o V Encontro de Formação Educacional . As sessões
sectoriais na área da filosofia estruturaram - se em torno de duas preocupações
centrais : reflectir criticamente sobre o actual modelo de formação educacional e
abordar algumas questões ( quer ao nível dos conteúdos quer das metodologias)
dos novos programas de Introdução à Filosofia e Filosofia.
A Revista Filosófica de Coimbra, na sua qualidade de órgão da investigação
e de ensino do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, não
podia ignorar uma iniciativa em que participaram activamente muitos dos seus
docentes e o próprio Grupo de Filosofia . Regista igualmente com agrado a
participação de colegas de outras Universidades , alguns com responsabilidade
directa na elaboração dos novos programas . O Programa de Filosofia (12.° Ano)
é, sem dúvida , aquele que representa um corte mais radical com todos os
programas anteriores de Filosofia no ensino secundário ao organizar- se em torno
da leitura integral de textos filosóficos . A Revista Filosófica de Coimbra, sem
deixar de ser órgão de investigação , não se quer alhear dos problemas mais
directamente ligados à actividade profissional dos professores de filosofia, sem
paternalismos . Aproveitando a ocasião deste V Encontro de Formação Educacional e a disponibilidade do Prof. Doutor José Enes e do Mestre Alfredo Reis
em fornecer, em tempo útil, o texto escrito das suas intervenções no Colóquio
sobre o Programa de Filosofia (12.° Ano), a Revista Filosófica de Coimbra, dá
o seu modesto contributo para o debate publicando estes textos de uma
oportunidade indiscutível.
ANTÓNIO MANUEL MARTINS
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LEITURA INTEGRAL: PORQUÊ? COMO?
JOSÉ ENES
O título 1 questiona, de uma forma sucinta, clara e certeira, o Programa
da Filosofia do XII Ano. Pergunta pelas razões que fundaram a sua
proposta, e pelos princípios, regras e práticas que o definem e fecundam.
São duas perguntas capitais que nascem do espanto, suscitado pela
novidade estrutural e metodológica na perspectiva da tradição e do passado
próximo do ensino secundário da filosofia.
Era previsível que uma inovação, aparentemente tão radical e inesperada numa curta retrospectiva, provocasse uma incómoda perplexidade que
o texto do Programa só por sí não estaria apto a elucidar. Os problemas
surgidos na sua aplicação experimental viriam naturalmente não só
acumular obstáculos a uma correcta compreensão, mas também pôr a
descoberto lacunas e incorrecções. Na sequência destas suposições, aquelas
duas perguntas trarão, assolapada na sua formalidade breve e incisiva, uma
numerosa e complexa questionação. A elaboração do meu discurso
almejou contribuir para o seu esclarecimento.
As duas perguntas incidem expressamente sobre a leitura integral.
E, na verdade, o parágrafo 4.5 do Programa apresenta, sob este título, o
método de leitura a empregar na utilização da obra filosófica como texto
escolar, considerando-o como núcleo essencial do processo didático do
programa. O método, aliás, deve entender-se como a globalidade deste
processo didático, ou seja, a funcionalidade estrutural das operações e
meios do ensino e da aprendizagem, enquanto produtivos da acquisição
do saber. Para além do método, o programa inclui a definição de objecFoi o título, proposto pela Comissão Organizadora do V Encontro de Formação
Educacional, para a exposição do colóquio sobre o Programa de Filosofia do 12° ano,
efectuado no dia 24 de Março de 1995, na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra.
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José Enes
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tivos e conteudos didáticos, tendo em vista as metas de educação e de
formação profissional estabelecidas pelos sistemas de ensino, a ordenação
no espaço e no tempo das fases e actividades da organização lectiva, e
bem assim as normas referentes à utilização de textos, de tecnologias e
de práticas.
A leitura integral, portanto, constitui uma parte, a mais importante e
efectiva, do método, e este, por sua vez, é uma parte do programa, como
projecto ou plano escrito do ensino da disciplina, a Filosofia do 12° ano.
Posso entendê-la como sinédoque; mas vejo também que, na sua accepção
própria, ela pode expressar a intenção de se propor como tema exclusivo
de aprofundamento. Todavia, mesmo neste sentido, para que me inclino,
a via para uma compreensão aprofundada não se descobrirá senão a partir
das razões que determinaram a decisão de adoptar a leitura integral como
matriz metodológica. Ora tais razões não se encontram só, nem
principalmente, nas virtualidades desta matriz, mas sobretudo, e em
primeira instância, nos pressupostos e regras formulados pelos outros
parágrafos do texto programático.
1. Razões decisórias da opção metodológica
A primeira fonte de razões brota das funções de continuidade e de
complemento que liga o ensino da Filosofia do 12° ano ao da Introdução
à Filosofia dos 10° e 11 °, no quadro jurídico e pedagógico do sistema do
ensino secundário. Com efeito, ambas as disciplinas constituem um mesmo
e único plano de ensino da filosofia, que as une e ordena para a prossecução do mesmo objectivo global: prestar, à educação humana e à
formação intelectual das gerações portuguesas, o contributo próprio do
saber filosófico, em coordenação integrante com os das outras disciplinas.
O novo programa da Introdução à Filosofia assumiu, como fundamento
da ordenação pedagógico-didática, o estatuto de componente de formação
geral em parceria com a língua materna. Foi uma decisão histórica da
legislação portuguesa, na qual resplandece a sábia compreensão da
natureza do saber filosófico e da sua íntima e originária ligação à língua
materna, na medida em que é através desta que o homem recebe e assimila
o património cultural e a memória existencial da comunidade a que
pertence.
É através da língua que o homem tem discurso da sua própria consciência e do mundo e é através das estruturas linguísticas que os discursos
ganham a virtuosidade conceptiva e expressiva dos actos cônscios e do
que neles e por meio deles o homem percebe e entende. Mas nenhum
discurso carece tanto da língua materna como o filosófico. Pois é só
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Leitura Integral : Porquê? Como?
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através dela que o filósofo alcança o mais alto acume da reflexão
interpretativa e analítica do próprio pensamento e da diferença mundividencial que ela mesma comporta como o acréscimo de realidade que é
pertença e identificação da personalidade de um povo. Por sua vez, em
virtude desta dependência, a Introdução à Filosofia deve ser, de entre as
disciplinas não linguísticas, aquela que mais criativamente contribua para
que o português se torne a disciplina mais atraente e mais formativa das
competências e da personalidade dos alunos.
Uma outra característica do programa é ordenar o processo didático
da Introdução à Filosofia a partir da consciencialização de vivências
filosóficas, organizadas tematicamente por unidades programáticas em
correspondência às tradicionais partes da Filosofia. Oferece-se, assim, a
perspectiva englobante do saber filosófico. Por outro lado, como as
vivências filosóficas nascem em todos os domínios das ciências e das artes
e algumas são dimensões filosóficas de vivências científicas e artísticas,
abre-se também o horizonte transdisciplinar. Destarte, o processo didático
da Introdução à Filosofia pode e deve assumir a função integradora na
mentalização das competências discursivas induzidas pelas outras
disciplinas. A exigência de tal função vem virtualmente formulada na
consignação dos objectivos notavelmente exarada no artigo 9° da Lei de
Bases do Sistema Educativo. Entenderam-no assim os planificadores das
escolas profissionais que para o exercício de tal função idearam
precisamente a "disciplina de integração". Em comparação com o seu
plano, nos casos que me foram dados a conhecer, o novo programa
imprime à Introdução à Filosofia uma superior virtuosidade funcional.
Tanto mais que a própria integração pedagógica e didática dos diversos
temas, que os respectivos programas incluem, implica funções noéticas de
natureza filosófica. Por isso mesmo, a leccionação de tal disciplina tem
sido, com muito acerto, confiada de preferência a professores de filosofia.
A prossecução de tais objectivos e o exercício de tais funções farão
da Introdução à Filosofia a disciplina mais motivadora e formativa,
principal responsável pelo sucesso da aprendizagem, pelo desenvolvimento
do raciocínio, da reflexão e da curiosidade científica, pela descoberta e
assimilação dos valores éticos e estéticos e pela indução das atitudes de
abertura de espírito e de adaptação à mudança.
O ensino da Filosofia do 12° ano deverá, não só tomar em consideração estes resultados em ordem à sua programação, senão também dar-lhes continuidade e aperfeiçoamento, não com os mesmos meios e
finalidades, mas através de um processo didático específico ordenado para
um objectivo imediato diferente. Diferença esta que é determinada pelo
estatuto de componente de formação específica do ano terminal dos cursos
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do ensino secundário . Como tais cursos conferem habilitações específicas
quer para o ingresso na vida activa quer, o que é a opção mais generalizada , para o acesso a cursos do ensino superior , neles se enceta a
formação profissional nas áreas científicas que os denominam . Por esta
razão , as competências adquiridas em tais áreas nos dois anos devem
alcançar , através do processo didático do terceiro , o nível formalmente
científico , exigido pela frequência dos cursos do ensino superior.
Na verdade, ao preparar- se para o acesso a um curso de graduação em
Filosofia na universidade , o aluno do 12° ano começa a proceder como
um profissional de Filosofia. A fase inicial deste comportamento consiste,
precisamente , na acquisição do saber fazer filosofia, ou seja, elaborar, com
a cientificidade que lhe é própria , o discurso filosófico . Neste objectivo
didático reside o fundamento para a disciplina filosófica do 12° ano se
denominar Filosofia , enquanto que à dos dois anteriores se deu o nome
de Introdução à Filosofia.
Este contraste, porém , não se há de entender como se o ensino da
Introdução à Filosofia não induzisse competências de nível científico.
Nenhum conhecimento seria filosófico se não fosse dotado de cientificidade filosófica . A introdução do novo Programa , sob o título de
orientações pedagógico -didáticas , salientando a importância do trabalho
didático sobre o texto escrito , regista o seguinte aviso : Se é através do
discurso escrito que a Filosofia acede à sua cientificidade própria, em
consequência, os objectivos propostos no Programa só poderão ser cabalmente conseguidos mediante o contacto directo dos alunos com textos a
seleccionar em níveis de especialização e complexidade crescentes:
aforismos e sentenças , textos curtos extraídos com pertinência e rigor de
obras filosóficas, excertos mais largos e complexos, criteriosamente
escolhidos das obras fundamentais do pensamento filosófico, podem
representar o escalonamento da especialização e exigência referidas 2.
E, após admitir que o que mais importa não é tanto a leitura do texto
filosófico, mas sim a leitura filosófica do texto, concede em consequência
que o leque de escolhas possíveis de textos não filosóficos , desde a ficção,
à poesia , ao jornalismo , à divulgação científica é praticamente inesgotável.
E logo de seguida adverte que se não há-de ignorar que a apropriação
do discurso filosófico , na aula, apresenta dificuldades e comporta requisitos a que o professor saberá responder, e afirma não parecer demais
salientar que, ao participar activamente na análise, exploração e comen-
2 Programa de INTRODUÇÃO À FILOSOFIA (10%11 ° ANOS), ENSINO SECUNDÁRIO, /Programas aprovados pelo Despacho n.° 124/ME/91, de 31 de Julho, publicado
no Diário da República, 2.' série, n .° 188, de 17 de Agosto/, p. 8.
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tário do texto filosófico, o aluno mergulha no processo originador do
pensamento e aí colhe os dados e adquire as performatividades necessárias para a elaboração do seu próprio discurso 3. E por fim formula as
competências a induzir : enriquecer o capital linguístico pessoal, dominar
o vocabulário especializado da Filosofia, exprimir com coerência e
precisão o seu pensamento, apreciar criticamente os pontos de vista e as
razões expressas num texto, fruir o prazer intelectual de uma leitura
filosófica serão aptidões que, pouco a pouco, o aluno irá desenvolver 4.
Estes procedimentos e resultados didáticos perspectivam a decisão
nuclear do programa de Filosofia como disciplina específica do 12° ano.
Com o da Introdução à Filosofia, ambos constituem um único projecto de
ensino pré - universitário da Filosofia . Em ambas as disciplinas , o objectivo
didático específico é a cientificidade do discurso filosófico.. Só a configuração e o nível das competências e performatividades diferem, como
vimos, em função do estatuto curricular de cada uma. Em ambas, o
processo didático fundamental é a leitura do texto filosófico. Só que o
género e a estrutura dos textos, os graus de complexidade e de perfeição
que os caracterizam , o método da leitura e a combinação com outros meios
e procedimentos dependerão outrossim da configuração e do nível da
cientificidade a adquirir.
Ao esboçar a caracterização das competências e aptidões a adquirir
através do processo didático da Filosofia do 12° ano, afirmei que o aluno
ao matricular-se no curso denominado por esta disciplina enceta a sua
formação como profissional de Filosofia , na medida em que a habilitação
por este conferida é a competência legal de ingresso num curso superior
de filosofia . Este é o caso paradigmático em relação ao qual se há de
ordenar o programa e os métodos . Consequentemente , os conhecimentos,
competências e habilidades a adquirir no curso secundário são precisamente aqueles exigidos pela universidade aos candidatos à matrícula num
curso superior de filosofia ; os quais no sistema de ensino vigente em
Portugal são avaliados mediante as provas específicas. A definição de tais
habilitações científicas é, pois, competência das universidades que já as
avaliaram mediante os exames de admissão . Por conseguinte , na situação
actual o processo didático da filosofia do 12° ano deve dar continuidade
ao da Introdução à Filosofia de tal modo que a eficácia didática dos três
anos corresponda à de um curso vestibular ou propedêutico ao ingresso
num curso universitário.
3 O.c., p.9.
' Ibidem.
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Partindo da definição do objectivo global, formulada em 3.1, e recolhendo as competências, aptidões e habilidades, conceptivas e discursivas,
designadas na textualização do método e da sua aplicação, nos parágrafos
4.5.1 a 4.5.4, podemos caracterizar a formação filosófica que os alunos
do 12° ano devem receber do ensino da Filosofia, dizendo que ela os há
de investir no poder de elaborar criticamente o discurso filosófico, e de
o identificar e situar no universo do saber. Aquele poder situar-se e
orientar-se discursivamente no universo filosófico não se compõe somente
da competência interpretativa dos discursos: ele jamais será possuido sem
o entendimento das matrizes filosóficas e das razões históricas que determinam e configuram o acontecer do pensamento. Ora tal entendimento só
nasce na intimidade dos grandes momentos da história da filosofia.
Reportando-nos, agora, à orientação didática, que antes referi, do
seleccionamento, por níveis de especialização e complexidade crescentes,
de textos para os alunos dos 10° e 11° anos, vemos que é precisamentre
no escalão mais alto, onde termina a leitura da Introdução à Filosofia, que
principia a leitura integral da Filosofia do 12° ano, ou seja, na meditação
das obras fundamentais do pensamento filosófico. Tomar como ponto de
partida, no processo de aprendizagem da elaboração científica do discurso
filosófico, não já excertos progressivamente mais largos e complexos de
obras fundamentais, isolados ou organizados em antologias, mas a própria
obra filosófica em si mesma na sua perfeita inteireza.
Na verdade, como se formula no Programa, sendo a obra o texto
organizado numa totalidade discursiva, na qual o saber filosófico se
consuma e concretiza, entendê-la no dinamismo discursivo que a estrutura
e lhe dá sentido, outra coisa não é senão ter a experiência interpretativa
da experiência discursiva que a elaborou . A obra filosófica constitui,
assim, o modelo, dotado de vida permanente, das capacidades e competências, para cuja aquisição o ensino-aprendizagem de Filosofia há de
conduzir o aluno. (4.1) Fazer da obra filosófica o texto de base a ler,
interpretar e comentar foi a alternativa que se ofereceu, tanto perante a
falta de idoneidade dos programas anteriores em ordem quer à complementaridade do programa da Introdução à Filosofia quer à nova
formulação do objectivo global para o processo didático da Filosofia do
12° ano, como tomando em consideração a escassez de tempo de um só
ano lectivo. Seriam três obras, com dimensões adequadas ao tempo lectivo,
pertencentes a épocas diferentes, a escolher de uma lista estabelecida
no Programa.
São estas as razões que determinaram a decisão de proposta do novo
programa para a Filosofia do 12° ano. São razões intrínsecas à contextura
didática dos dois programas. O desenvolvimento progressivo das capacidades e competências dos alunos dos 10° e 11° anos, através de uma
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aplicação bem sucedida do Programa da Introdução à Filosofia, fará surgir
neles a opção e o gosto de terminar a sua aprendizagem pre-universitária
da Filosofia mediante a leitura de obras, adequadamente escolhidas, dos
grandes filósofos. A análise despreconceituada e crítica dos objectivos e
do articulado programático verificará a estruturação funcional desta
resultância . A experiência a confirmará.
2. O método da leitura " integral"
Na primeira sessão de trabalho para a elaboração do novo programa
da Filosofia do 12° ano, ouvi com surpresa emocionada a proposta da
"obra filosófica como texto lectivo", apresentada em termos sucintos por
uma colega da Comissão. De momento não percebi a continuidade
complementar entre os dois programas que depois descobri através da
minha participação nos trabalhos da elaboração do programa. A emoção
da minha surpresa tinha outra origem: é que a proposta continha a retoma
de um método a cuja aplicação sustentada se ficou a dever alguns dos
períodos mais criativos e esplendorosos da história da filosofia europeia
e, em particular , da filosofia portuguesa.
A organização escolar do ensino da filosofia mediante a leitura da obra
filosófica era teorizada por Hugo de S. Victor no seu Didascalion,
recolhendo já uma longa experiência , nos começos da séc. XII que deram
início a um daqueles períodos no qual a obra de São Tomás de Aquino, o
"comentador" por antonomásia dos escritos de Aristóteles, representa o
apogeu medieval do método, a lectio docentis. Desde jovem tenho sido
um leitor assíduo desta lectio , e conduzido por ela tenho lido as obras de
Aristóteles, tenho feito a minha lectio discentes. E só assim consegui
alcançar o entendimento que hoje possuo do discurso aristotélico. É um
ensino-aprendizagem à distância de sete séculos, que mantém a sua
eficácia através da vida de pensamento que a obra conserva e transmite
no seu discurso escrito.
Há, porém, um outro momento cuja evocação vem mais a propósito
quer do tema que nos ocupa , quer do lugar em que nos reunimos . Refiro-me ao ensino da filosofia no Colégio das Artes durante a segunda metade
do séc. XVI. Condiz mais com o objecto da nossa questionação porque o
Colégio foi criado, em 1547, com a finalidade de preparar, nos domínios
da latinidade e da filosofia, candidatos para a admissão à Universidade
de Coimbra. Era, portanto, uma instituição de ensino médio, correspondente ao nível do curso trienal do nosso ensino secundário . Tanto foi assim
que, depois de ter voltado à superintendência disciplinadora e proficiente
dos jesuítas por dois fugidiços anos, em 1836 foi extinto para dar lugar
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ao Liceu Nacional de Coimbra 5. Ora, no Colégio das Artes, o ensino da
filosofia adoptou a organização em vigor nas instituições congéneres
europeias e veio a atingir o alto nível filosófico e didático do Curso
Conimbríncense , editado com o título Commentarii Collegii
Conimbricensis Societatis Jesu seguido do nome das obras de Aristóteles
comentadas em cada um dos seus oito grossos volumes, com excepção do
que contém a ética que em vez de comentarii usa disputationes . De mais
alto e mais amplo prestígio além fronteiras fruíram as obras de Pedro da
Fonseca , as quais foram editadas no estrangeiro não integradas no Curso.
A teorização e as inovações metodológicas destas obras , em sintonia com
as características culturais do Renascimento , prestaram importante
contributo à elaboração e enriquecimento da célebre Ratio Studiorum dos
colégios e universidades da Companhia de Jesus. Ainda hoje, o seu conhecimento e o seu estudo nos poderão prestar uma preciosa ajuda na procura
de soluções para os problemas pedagógicos e didáticos, científicos e
práticos que complicam e enervam o nosso projecto didático da Filosofia
do XII ano. À nossa disposição tem sido postos estudos valiosos por
especialistas , profundos conhecedores da história e da filosofia dos
Conimbricenses . 6 Após o momento mais alto do período renascentista,
atingido na década de 1580 com a publicação do curso conimbricense, o
método da lectio entrou em declínio . Já em 1597 Suarez publica as
Disputationes Metaphysicae cuja organização expositiva sistemática
prefigura o modelo dos cursos filosóficos, como os de Soares Lusitano e
de João de São Tomás, os quais se vão generalizando ao longo da primeira
metade do séc. XVII, se bem que as obras de Pedro da Fonseca tenham
continuado a ter várias edições tanto em Portugal como no estrangeiro.
5 José Esteves Pereira, Colégio das Artes e Ensino da Filosofia no Colégio das Artes,
in Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Verbo, 1, cols. 1042s e 1043-1049.
6 De entre eles quero mencionar , em particular, o Senhor Professor Miguel Baptista
Pereira que, no grandioso plano da sua obra sobre Ser e Pessoa (em) Pedro da Fonseca,
dedicou o primeiro volume a O método da Filosofa. Obra de pensamento profundo e vasta
erudição que interpreta e explana a teoria metodológica e destrinça os procedimentos metódicos , com densa e fecunda discursividade. Frequentemente , aliás, me instruo e deleito com
a leitura discente dos seus escritos. Refiro também o Senhor Professor Amândio Augusto
Coxito, disserto e erudito historiador da filosofia portuguesa renascentista, pelos seus
artigos "Método e ensino em Pedro da Fonseca e nos Conimbricenses " ( Rev. Port.Fil.36,
1980), e "Lógica e metodologia em Francisco de Cristo e seu contexto renascentista",
seguido da edição do manuscrito Methodus, hoc est, docendi ratio, (Biblos, 59, 1983). Nas
pessoas destes ilustres mestres conimbricenses , a quem junto o Doutor António Manuel
Martins por mérito da sua obra sobre Pedro da Fonseca e da sua responsabilidade e
actuação neste encontro, presto homenagem à Universidade de Coimbra , glória e matriz
das universidades portuguesas , e ao seu próvido magistério institucional.
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Do modelo dos cursos filosóficos derivaram os manuais e compêndios do
ensino secundário , que se difundiram na Europa na primeira metade do séc.
XVIII e se introduziram em Portugal na sequência da reforma pombalina. 7
No ensino universitário da filosofia, a lectio tem sido adoptada por
razões metodológicas particulares . Heidegger aplicou - a em cursos semestrais e seminários comentando Aristóteles , Platão, Heraclito, Kant e
Schelling , e o génio exegético, com que fazia dizer coisas novas e inovadoras a textos antigos, foi um dos factores da celebridade do seu
magistério 8.
A leitura integral não é um método tão novo como nos parecia de
início , nem é tão antiquado que não possua virtualidades actuais, determinantes de validade didática na situação presente . Os constituintes desta
validade são, como já referi , a potência discursiva da obra filosófica e a
eficácia actuante do método adoptado.
Penso que o texto programático expõe, com suficiente precisão e
clareza , a essência e os princípios do método e os respectivos procedimentos pedagógicos e didáticos , e os fundamenta com razões teóricas e
pragmáticas . Quanto à organização concreta e às práticas e meios da
leccionação , usa um discurso meramente alvitrante que intende abrir aos
professores e alunos um amplo campo de iniciativas . Atendendo , porém,
ao objectivo proposto a esta exposição há que esclarecer e aprofundar
alguns aspectos nucleares e suprir algumas lacunas.
2.1 O sentido de "leitura integral"
Leitura não assumiu a acepção escolar e o respectivo sentido de
lectio. Por sua vez , a partir deste étimo, as línguas românicas formaram
o nome da actividade essencial da escola . Em português , ficou lição.
O professor dá, o aluno aprende , a lição. Nesta palavra persiste a memória do método escolar do tempo 9 em que era lendo que o professor dava
7 Ferreira - Deusdado , La Philosophie en Portugal, Extrait de Ia Revue Néo-Scolastique,
Institut Supérieur de Philosophie , Louvain, 1898, pp . 27-46; J. Pinharanda Gomes,
A Renovação Escolástica (1879-1967), / Sep. de ITINERARIUM 1, Braga, 1993, pp. 4ss.
" Miguel Baptista Pereira, Tradição e crise no pensamento do jovem Heidegger, Sep.
de BIBLOS, LXV(1989),Coimbra, pp.349-354.
9 Este tempo remonta aos primórdios da escolarização e, por isso mesmo, aos começos
da Civilização Ocidental, quando a escola surge para a formação dos escribas , os primeiros
quadros especializados em ler, escrever e contar. Esta alusão aponta para a função
cientificadora que à leitura e à escrita coube no processo civilizacional . Tem sido o
desenvolvimento sustentado daquela função que ao longo dos milénios vem fazendo
progredir as ciências , a filosofia e as tecnologias mediante a investigação , a invenção e a
formação dos respectivos quadros especializados.
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a lição e o aluno a aprendia , mas perdeu - se a vigência da significação
nominal da acção do verbo ler. O novo Programa da Filosofia do 12° ano,
retomando a leitura da obra filosófica como método de ensino, confere-lhe enquanto nome verbal a acepção e o sentido de lectio . Em tal acepção,
a leitura não se há-de entender como a simples acção de ler. Tal como a
lectio, a leitura integral , entendida como método de ensino da filosofia, há de ser constituida pelos procedimentos interpretativos e analíticos
do texto da obra filosófica , idóneos para a indução da aprendizagem
do aluno.
O adjectivo integral denota uma característica determinante desta
idoneidade . Trata- se de uma qualidade perfectiva daqueles procedimentos,
cada um de per si e no seu conjunto, tanto na dimensão em que por eles
é feita a abordagem da obra filosófica , como na eficácia e no nível do seu
exercício operacional . O sentido de integral, aqui , é avocado a partir da
linguagem hermenêutica do discurso jurídico . íntegra é o contexto
completo da lei ou a sua totalidade contextual . Daí se formou a locução
adverbial na íntegra, ao dizer que a lei se há-de ler na íntegra.
A leitura integral da obra filosófica, como método de ensino, é aquela
que a lê na íntegra , na totalidade do seu contexto ou na sua inteireza contextual . Como está exarado no Programa , " legere é ler em
plenitude , é intelligere , é ler dentro até ao mais íntimo do texto , é penetrar integralmente no seu sentido ."(4.5.1) Uma tal leitura , porém, tão
plena , tão profunda e tão compreensiva não se poderá alcançar, senão
na medida em que os múltiplos procedimentos lectivos , que a constituem,
se integrem também , com reciprocidade interactiva , numa totalidade
operacional , dotada de eficácia didática . O Programa conclui formulando : " Leitura integral da obra filosófica denomina, portanto , a integridade operacional e processual do método que o Programa propõe."
(Ibidem)
2.2 Intencionalidade lectiva da leitura integral
Entendendo intencionalidade como a estrutura cônscia do acto cognitivo, lectiva designa a configuração discursiva que molda e dinamicamente
unifica as operações específicas da leitura. Esta fórmula coloca-nos perante
o momento fulcral da minha exposição. Será na explicitação clara e
completa da intencionalidade da leitura integral que encontraremos a
compreensão da sua funcionalidade metodológica.
O Didaskalion de Hugo de S. Victor oferece-nos uma matriz metodológica, fecunda como ponto de partida para a nossa pesquisa analítica.
Tratando, no cap. VIII do livro III, do aperfeiçoamento da inteligência e
da memória (de ingenio et memoria) começa por afirmar que duas são as
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operações que exercitam o a inteligência ou engenho, a saber, a lectio e
a meditatio. E tomando a lectio lhe divide os géneros:
Trimodum est lectionis genus docentis, discentis, vel per se inspicientis.
Dicimus enim lego libram illi, et lego librum ab illo, et lego librum. 10
"Tríplice é o género da leitura: de quem ensina, de quem aprende, ou
de quem por si mesmo examina. Pois dizemos: leio o livro a ele, leio o
livro a partir dele (aprendendo dele), e leio o livro."
A lectio docentis é a leitura do professor enquanto este a faz ao aluno
com a finalidade de o ensinar a ler. A lectio discentis é a leitura do
discípulo enquanto a faz instruido, inspirado e iluminado pela leitura do
professor, com a finalidade de aprender a ler por si mesmo , e poder vir,
ele próprio , a tornar- se competente para ensinar outros a ler. Ambas estas
leituras dependem uma da outra numa reciprocidade interactiva. A leitura
do professor toda se há de dirigir para a leitura do aluno . O sentido desta
direcção vem vectorizado em docere, verbo causativo que significa o
processo accional de fazer alguém saber algo. Este é o mesmo sentido do
grego didásko, do alemão lehren , do inglês teach e do nosso ensinar. Todos
os procedimentos lectivos, que constituem aquele processo accional,
devem ser ordenados para a produção do saber do aluno . Por seu lado, o
verbo disco significa o processo, ao mesmo tempo passivo e activo, de
recepção e assimilação do saber enquanto resultado da acção docente do
professor , ou seja , do tornar- se douto, ciente, sabedor. Doctus, por isso
mesmo, é particípio passado dos dois verbos . Esta relação de verbo
causativo e verbo passivo dá-se também entre lehren e lernen. Nestes
dois casos , a própria relação de génese linguística expressa a unidade
processual da reciprocidade dinâmica existente entre o ensinar e o
aprender . É esta relação que vigora entre a lectio docentis e a lectio
discentis.
Aplicando estas duas leituras à obra filosófica obtém - se um método,
estrutural e dinamicamente uno, para o ensino-aprendizagem da filosofia.
Para o novo Programa da Filosofia do 12° ano, porém, o objectivo global
não se atinge somente com a aprendizagem da leitura da obra filosófica
adoptada como texto . A aprendizagem da leitura há de ser feita de tal
modo que através dela se aprenda também a escrever filosofia. Por este
motivo o programa reconhece e põem em relevo a íntima relação que
10 Eruditionis Didascalicae Libri Septem , III, 8, in "Patrologia Latina ", CLXXVI,
col.766.
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existe entre ler e escrever. Ler só se dá sobre o que foi ou está sendo
escrito. Escrever implica em si a leitura não apenas como destino mas
também como feitura , pois ninguém escreve senão enquanto lê o que está
escrevendo . É lendo a obra filosófica que se penetra na inteligência
do discurso filosófico, mas só escrevendo se adquire e se manifesta a
capacidade de elaborar cientificamente o discurso filosófico. A importância
da escrita , portanto , duplamente se verifica : na aquisição e na avaliação
das competências. Aprendendo a ler a obra filosófica- texto, e aprendendo,
através desta leitura , a escrever correctamente o discurso filosófico, o
aluno será conduzido à aquisição de um conhecimento da filosofia com a
amplitude e o nível requeridos pelos objectivos escolares do 12° ano do
ensino secundário , como acima expusemos.
A medida daquela amplitude e daquele nível só poderá perspectivar-se a partir da relação de continuidade e de complementaridade com o
programa da Introdução à Filosofia. Nesse sentido, o novo Programa
prescreve : " Na verdade , o ensino-aprendizagem de Filosofia , embora se
oriente, directa e especialmente para a cientificidade do discurso filosófico,
não deve restringir a perspectiva de universalidade, impressa ao horizonte
das unidades temáticas do programa da Introdução à Filosofia . No entanto,
a idoneidade e a eficácia do presente programa requerem que tanto a
informação como a abertura à universalidade se processem através da obra
filosófica ."(4.2)
Na verdade , como já referimos , o conjunto das unidades programáticas
da Introdução à Filosofia abrange todos os domínios do saber filosófico
e, em cada uma delas, a formulação dos temas nucleares abre-se, no
horizonte da contemporaneidade , à totalidade do respectivo domínio
temático . A consideração histórica , por seu lado , na Unidade histórico-problemática - a Filosofia no tempo, rejeitando embora "qualquer leitura
historicizante ", tematiza " as matrizes do pensamento ocidental e a
Filosofia como reflexo, crítica e interpretação do seu tempo ", e propõe "a
exploração de um tema , através de autores diversamente situados no
tempo" a fim de que os alunos possam " adquirir os marcos de referência
histórico - cultural , que se considerem pertinentes ". 11 A formação filosófica
recebida no 12° ano deve completar e aprofundar esta perspectivação
histórica , aquela informação temática e a consideração teórica dos
discursos e sistemas filosóficos . A obrigatoriedade de utilização de três
obras, cada uma delas pertencente a uma época histórica diferente, teve
em vista tal objectivo.
11 Programa cit. na nota 2, p.17s.
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A argumentação , que objecta a impossibilidade de o alcançar através
da leitura integral da obra filosófica , resulta de uma dupla incompreensão.
A primeira diz respeito à própria essência discursiva da obra filosófica
enquanto não toma em consideração o nível e a densidade de pensamento
e a importância histórica , exigidos como fundamento para a sua escolha
como texto de leccionação . Somente a obras, que possuam tais características, se aplica a justificação formulada nos seguintes termos do Programa:
Em si mesma , por virtude da natureza do seu discurso filosófico, a obra
possui uma potencialidade de informação temática e de abertura à
universalidade do saber filosófico, a qual ultrapassa os limites formais
do seu texto . Com efeito, a obra situa - se na plúrima contextualidade do
conjunto das obras do seu autor e das obras tanto da sua como de outras
épocas, que nela se reflectem ou dela apresentam reflexos, mediante
múltiplas formas de transmissão discursiva . A interpretação hermenêutica
explorará as dimensões relacionais de tais contextualidades , ao mesmo
tempo que coopera com a análise dialética na revelação da estrutura
lógica , linguística e argumentativa da escrita do discurso filosófico.
(Ibidem ) A segunda incompreensão reporta - se à essência do método
denominado por leitura integral . Será, por conseguinte , este o momento
de pormenorizar e ordenar a exposição dos procedimentos lectivos que a
estruturam.
Vou continuar a servir- me da teoria e pragmática de Hugo de S. Victor
precisamente pela vantagem que a sua primitiva simplicidade oferece
como ponto de partida . Segundo a sua doutrina , a lectio como processo
didascálico tem a estrutura da expositio . Ler é pôr, diante do olhar do
outro leitor e a partir do texto lido, o que nele está escrito, é ex -pôr. Mas
esta configuração operacional explicitamente exprime a prolação expositiva ao olhar e ao ouvido inquiridores do leitor- aprendiz . O tratamento
lectivo do próprio texto , o qual tira de dentro dele o que nele está escrito,
possui outra estrutura : é a interpretatio . Estamos perante uma metáfora
noética de matriz comercial : interpres era o intermediário entre comprador e vendedor para o estabelecimento negocial do pretium - preço.
O procedimento interpretativo é o trato dialogal entre dois interlocutores
mediatizado por um terceiro cuja função é estabelecer o entendimento
entre eles . Falando ao vendedor, o intérprete faz as vezes do comprador
e defende a pretensão dele; falando ao comprador, representa o vendedor
e valoriza os interesses dele. A sua estratégia negociai será proceder por
aproximações sucessivas até conseguir o acordo entre os dois. Nesta dupla
representação surge o fundamento da transferência para a linguagem
teatral , interpretar uma personagem ou um papel. O intérprete de línguas
exerce a função na situação mais simples que entretanto as circunstâncias
podem diversamente complicar.
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No caso da leitura da obra escrita, a interpretatio é, por natureza,
complexa. A obra escrita não é um interlocutor, nem mesmo no caso em
que o autor participasse na conversação sobre ela. Depois da obra escrita,
o seu autor, ao pronunciar-se a respeito dela, não assume senão o papel
de leitor ou de intérprete. Nem se pode dizer que o intérprete de uma obra
escrita a represente ou faça as vezes dela. Em sentido impróprio se diz
que a leitura da obra é uma interpretação dela; no sentido próprio, só o é
quando feita a outrem para o ensinar a ler, ou seja, enquanto lectio
docentis. Ora esta leitura, que ensina a ler, é um discurso expositivo do
que a obra tem para ser lido e de como deve ser lido, é a expositio, no
grego exégesis. É, portanto, um metadiscurso ou uma metalinguagem do
discurso e da linguagem da obra.
Segundo o Disdakalikon de Hugo de S. Victor, a exposição contém três
procedimentos: litteram, sensum, sententiam. Littera, a letra, é uma
sinédoque derivada de uma metonímia. Primeiro designou a tabuinha, em
que se escrevia, depois os caracteres da escrita, as letras do alfabeto,
finalmente a própria escrita, a composição literária, a obra escrita e o
conjunto de todas as obras escritas, as letras, daí o literato, a literatura.
Na linguagem rectórica denomina a fase inicial da "exposição" que
descreve e analisa as partes da obra escrita de modo a fazer ressaltar a
conexão discursiva que lhes dá sentido, a cada uma delas e ao seu
conjunto. Hugo de S. Victor define-a como congrua ordinatio dictionum,
quam etiam constructionem vocamus - a côngrua ordenação das dicções (palavras e proposições), à qual chamamos também construcção.
A segunda fase é a explanação do sentido daquela fácil e aberta
significação, que a littera traz à superfície - prima fronte praefert.
A terceira e a terminal chama-se sententia que é a inteligência mais
profunda e se não encontra senão mediante a exposição e a interpretação,
ou seja, através da inquirição hermenêutica, referenciando as contextualidades, confrontando as intrepretações contrastantes e decidindo argumentativamente as questões. "Aqui a ordem é que primeiro se investigue a
letra, em seguida o sentido, por fim a sentença: o que feito, perfeita está
a exposição." - In his ordo est, ut primum littera, deinde sensus, deinde
sententia inquiratur: quo facto, perfecta est expositio. 12
Como acima aludi, este modelo de lectio atingiu o nível mais alto de
discursividade interpretativa em São Tomás de Aquino, que por isso
mesmo era também chamado o expositor. Na verdade, a excelência da
leitura tomista consistia tanto na erudição e perícia com que restituia aos
textos aristotélicos, traduzidos para latim, a legibilidade do seu sentido
12 O.c., co1.771 s.
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original, como também na poderosa e criativa inteligência com que através
do seu discurso expositivo desenvolvia e actualizava, no enquadramento
cultural da Idade Média, as virtualidades de inteligibilização do discurso
aristotélico.
É bem de ver que sendo a exposição dirigida ao aluno, como metalinguagem didática, a fim de o orientar na aprendizagem ou aquisição de
competência idêntica, cada passo dado pelo mestre, na elaboração de cada
uma das três fases, é um convite a fazer o mesmo. Assim se esboça a
participação activa do aluno através de práticas de leitura e de escrita, de
aconselhamento e cooperação com o professor e colegas.
A leitura integral, também, se desenvolve através de duas "exposições", a do professor e a do aluno. Todavia, os procedimentos que as
compõem não podem ser totalmente iguais àqueles utilizados, na Idade
Média, pela lectio docentis e pela lectio discentis. As razões desta desigualdade derivam, em primeira instância, da diferença estrutural dos
sistemas de ensino em que respectivamante se enquadram. Na Idade Média
a lectio era usada a todos os níveis do ensino e em todas as disciplinas,
cujos respectivos números eram muito inferiores aos de agora. É impensável que hoje se ensinasse Física aos alunos do 12° ano através do
comentário de uma obra de Bohr, ou de Heisenberg ou de Einstein, como
era possível fazê-lo, no séc. XIII, comentando obras de Aristóteles; nem
se pode leccionar gramática por um livro de Chomsky, como então se fazia
com as Institutiones de Prisciano. Ocorre a mesma impossibilidade
didática em relação à Introdução à Filosofia dos 10° e 11° anos. E a última
instância em que se funda esta discrepância é a diferença estrutural da
nossa sociedade em relação à medieval, a qual também fundamentalmente
resulta do estádio, em que nos encontramos, na evolução das ciências, das
artes e das tecnologias. A multiplicação e o aprofundamento das especialidades, a aceleração do ritmo de inovação e de crescimento em todos os
domínios do saber exigem o aumento da duração da escolaridade e da
multiplicidade disciplinar dos planos de estudo, forçando assim o recurso
aos manuais e compêndios e ao aperfeiçoamento científico e tecnológico
das didáticas.
O mesmo se passa em relação à leitura integral. Desde os princípios
do séc. XIX, a linguística e a hermenêutica tanto se desenvolveram que
se dividiram em especialidades, algumas das quais se transformaram em
disciplinas filosóficas, como a filosofia da linguagem e a hermenêutica
filosófica. Ressurgiram, mais recentemente, as retóricas seja como teorias
da obra literária, ou como teorias da argumentação. A grandiosa tradição
aristotélica e escolástica da lógica formal recebeu um inovador acréscimo
de virtuosismo analítico e discursivo, sobretudo através da matematização
operada por Frege e Russell e da analítica de Quine. Esta evolução criou
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novas competências de penetração cognoscitiva na estrutura e no funcionamento das línguas, dos discursos e das obras escritas nos mais variados
domínios do saber, mas em especial nas obras literárias e filosóficas.
Os planos de estudo das licenciaturas têm incluido a hermenêutica
filosófica, e outras disciplinas, como a Introdução à Filosofia, a Ontologia
e a História da Filosofia Contemporânea, a compreendem nos seus programas, e a Filosofia da Linguagem é também apresentada como opção
com frequência escolhida. Nos estágios, os futuros professores de Filosofia
no secundário, de há anos, vêm recebendo a formação teórica e prática
nos métodos e técnicas do ensino, numa didática por objectivos, pela
participação activa dos alunos, pela utilização de textos para desenvolver
neles a capacidade de interpretação e de elaboração do discurso escrito.
Nos cursos de licenciatura em Filosofia é prática corrente a leitura e o
comentário a obras e a textos na leccionação de quase todas as cadeiras.
Prática esta que mais se intensifica e metodicamente se orienta para a
cientificação das competências nos mestrados de Filosofia, cuja frequência
felizmente, desde os começos, tem sido procurada e mantida por numerosos professores do ensino secundário. As dissertações para a obtenção do
grau são programaticamente elaboradas mediante a interpretação e a
questionação de obras de filósofos. Um número significativo de professores do secundário se tem distinguido pela autoria de manuais e de outros
textos didáticos, uma notável actividade editorial a que a entrada em vigor
do novo Programa de Introdução à Filosofia proporcionou a manifestação
de uma impressionante produtividade. Em face deste conjunto de índices
de formação e cultura filosóficas não deixarão de ter valor positivo as
numerosas publicações de obras filosóficas, em grande parte traduzidas,
a que os editores portugueses se vêm dedicando, uma vez que para a quase
totalidade delas os possíveis compradores só poderão ser professores e
estudantes de filosofia.
Se atendermos, ainda, ao costume escolar de os professores, antes de
acederem à leccionação da Filosofia do 12° ano, leccionarem os programas
dos dois anos anteriores, prática esta que exercita e completa as
competências, adquiridas pela formação universitária, e funciona como
preparação para as tarefas lectivas do último ano do curso secundário,
ficamos perante um conspecto conjuntural positivamente favorável ao
sucesso da aplicação da leitura integral como método de ensino para a
Filosofia do 12° ano. As experiências de experimentação do Programa, já
cumpridas, confirmam tal previsão.
Com efeito, há indícios suficientes para se pensar que os actuais
professores de Filosofia, na sua generalidade, possuem a competência
requerida pelo novo Programa. Em relação aos procedimentos lectivos,
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formulados nos cap. 5 e 6 como integrantes da leitura integral, penso que
as seguintes considerações podem contribuir para um esclarecimento útil.
O princípio fundamental é que o professor organize e oriente as
actividades, com que ele e os alunos participam na elaboração da leitura
da obra, de tal arte que estes sejam conduzidos à compreensão do
pensamento filosófico e à apreciação da expressividade discursiva da
linguagem.
Cumpre ao professor introduzir os alunos no conhecimento do
conjunto das obras filosóficas do autor, da sua importância na história da
filosofia, e do lugar e papel que naquele conjunto cabem à obra-texto.
É evidente que esta introdução pode ser também participada pelos alunos
com pequenos estudos escritos usando bibliografia adequada. É didática
e pedagogicamente importante que os alunos adquiram admiração pelo
filósofo e pela sua obra.
As competências de análise textual, linguística, lógica e argumentativa,
de interpretação dos sentidos do discurso, de questionação crítica e de
descoberta das vivências filosóficas, formal e virtualmente expressas na
obra, deverão ser procuradas e desenvolvidas através de frequentes
exercícios escritos e orais, individuais e de grupo, de tal modo orientados
que através deles, também, se cultivem as virtudes hermenêuticas do
respeito pela integridade textual e da valorização da riqueza polissémica
do discurso. Um cuidado que se há de sempre ter, tratando-se de obras
traduzidas para português, é verificar a fidelidade ao sentido do original.
O resultado final, que satisfatoriamente corresponderia à expectativa
programática, seria a composição, pela junção ordenada dos trabalhos
escritos, de uma "exposição" colectiva de cada uma das três obras.
A participação dos alunos na elaboração de cada uma delas teria permitido
a avaliação contínua individual; e as três exposições formariam um
documento de grande importância para o professor, que poderia, através
dele, avaliar e aperfeiçoar progressivamente a sua docência.
3. Algumas limitações
O texto do Programa apresenta formulações não suficientemente
amadurecidas e é omisso de aspectos didaticamente impreteríveis. Por
causa da sua particular importância, darei o meu parecer apenas sobre dois
casos.
O primeiro diz respeito à seguinte norma, exarada no cap. da Organização Lectiva, em 6.1: O professor não deverá encetar a leitura integral
da obra sem se certificar de que os alunos possuem e dominam no
essencial as técnicas de leitura e de interpretação, a um nível que dê
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garantia de sucesso no ensino-aprendizagem. O professor utilizará os
meios adequados a suprir as lacunas verificadas, nomeadamente através
de algumas lições ou pequenos cursos. Julgo estas prescrições erradas.
As deficiências categoriais, teóricas e práticas, que os alunos manifestem,
irão sendo supridas nas ocorrências oportunas ao longo do exercício das
actividades lectivas. É este mesmo exercício, orientado e corrigido, o
processo mais eficaz de aprendizagem.
No segundo trata-se de uma omissão, cometida no capítulo dos
Princípios Programáticos, tio parágrafo 4.4 que expõe os critérios para a
selecção das obras. O processo selectivo não tomou em consideração a
idoneidade de obras em ordem à integração da Filosofia como componente curricular dos cursos que dão acesso ao ensino superior de outras
disciplinas. Consequentemente, o articulado programático também a não
mencionou. E destas omissões pode resultar a diminuição do número dos
cursos que têm integrado nos seus currículos a Filosofia, numa altura em
que o interesse recíproco postulava, antes, o seu aumento. Para a filosofia,
que desta cooperação receberia a intensificação e o alargamento do
seu estudo e para as outras ciências cuja aprendizagem se tornaria
mais proficiente, na presente conjuntura cultural que exige a inter- e a
transdisciplinaridade na investigação e na formação dos quadros.
Mesmo com respeito à própria formação filosófica, no enquadramento
da situação actual, outras obras, quer dos autores contemplados quer de
outros, poderiam apresentar maior idoneidade pedagógica e didática.
A escolha feita foi grandemente condicionada pela falta de obras filosóficas em língua portuguesa, adequadas aos objectivos do método e à
organização escolar programada. Este problema foi consciencializado e
discutido durante os tabalhos de elaboração do programa e alguns passos
se deram para encontrar uma solução, mas foram esforços baldados. 13
13 A Comissão, criada para a elaboração das propostas dos dois programas, teve uma
actuação, em relação ao da Filosofia do 12° ano, assaz diversa daquela que usou com o
primeiro programa. Os trabalhos da Comissão foram suspensos sem que a proposta do
Programa da Filosofia do 12° ano houvesse sido apresentada às escolas a fim de receber
a crítica e as sugestões dos professores, como havia sido feito com o programa da
Introdução à Filosofia, em relação ao qual a Comissão pode ainda apreciar os resultados
da experimentação do Programa nas escolas que a fizeram. Fui encarregado de elaborar
propostas de redacção do texto programático, a fim de serem apreciadas e corrigidas pela
Comissão. Aceitei ainda o encargo de preparar a tradução das obras de S. Tomás de Aquino
e de M. Heidegger, seleccionadas para servirem de texto escolar. As doenças e os trabalhos,
que imprevistamente me afligiram durante os dois anos seguintes, não me consentiram a
execução dessas tarefas. Nunca recebi um exemplar da proposta de programa entregue
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A leccionação da Filosofia no ensino secundário , tanto em Portugal
como em outros países europeus , é profundamente afectada por factores
de diversa ordem e natureza . Na verdade , a nossa experiência do ensino
testifica o efeito inibitório de certos complexos e atitudes comportamentais
dos estudantes , os quais resultam das características culturais, sociais e
económicas dos grupos populacionais a que eles pertencem. As ideologias
e os interesses políticos das forças , que influenciam a actuação governamental , têm-se reflectido no ensino da Filosofia nas escolas, por medidas
que ou o favorecem ou o prejudicam ou, até, o proibem . Por exemplo, a
via de acesso , só pelas humanidades , a cursos universitários de Filosofia
prejudica , de diversos modos, o seu ensino quer secundário quer superior.
Aquela exclusividade legal não é de todo alheia ao complexo inibitivo
da abertura às hodiernas ciências e tecnologias , o qual é inerente aos
discursos das chamadas filosofias da subjectividade.
São problemas que interessam ao tema do meu discurso , mas excedem
os seus limites. Espero que ele tenha correspondido aos objectivos e às
expectativas de quem me conferiu a honra de o haver proferido.
ao Ministério da Educação pelo Instituto de Inovação Educacional que teve a seu cargo o
apoio logístico à Comissão. Fiquei, apenas , com a última versão de texto que apresentei
e foi assumida na generalidade . No essencial , corresponderá ao texto programático
aprovado pelo Ministério.
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Colóquio: A filosofia no ensino secundário