IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. SOCIO-HISTÓRIA DO PORTUGUÊS AFRO -BRASILEIRO: UMA HISTÓRIA A CONTAR Jorge Augusto Alves da Silva Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) E-mail: [email protected] Palavras-chave: Português afro-brasileiro. Quilombos. História Lingüística. História Social. Sociolingüística. As línguas são produtos históricos ligados às sociedades que as usam como veículo de comunicação. Falar, portanto, da histó ria de uma língua é falar da história da sociedade em que ela emergiu. Como sistema de comunicação eficiente, uma lí ngua histórica reflete os níveis ou estratos de que se compõe a comunidade de ute ntes; destarte, pode -se dizer que a heterogeneidade de uma língua está relacionada à heterogeneidade de seus usuários que, distribuídos em teias de relação, usam do código lingüístico não apenas para se comunicarem, mas também para se fazerem r epresentar na sociedade, ocupando papéis, vendo aos outros e a si mesmos. A língua é, eminentemente, um fato social e histórico. 1 Africanos e seus descendentes na formação da língua portuguesa do Brasil O mais antigo texto conhecido que suscita a diferenciação observável no Português do Brasil em relação ao de Portugal remonta o século XIX, por volta de 1824 -1825, da autoria de Adrien Balbi que, ao redigir a Introdução ao Atlas Etnográfico do Globo , sob a égide determinista e evolucionista da época, afirma que [...] mais cette langue, transportée au Brésil, se ressent de la douceur du climat et du caractere de sés habitants. Elle a gagné pour l’emploi et pour les expressions des sentiments tendres, et, tout en conservant son energie, elle a plus aménité. Para ilustrar com exemplos termos usados no Brasil estranhos a Portugal e que possuem a “doçura do clima e das características de seus habitantes”, Balbi cita 49 palavras (entre tais palavras temos de observar que uma é cognata da outra como “muquem” que deu origem ao verbo “muquear” e outra na verdade é uma oração “ me deixa”, grafada pelo autor “mideixe”) entre elas 17 são de origem africana, como podemos constatar no cotejo com Yeda Castro Pessoa (2001), sendo 14 de origem banto e 3 de origem ki mbundo. Nota-se, 2 plenamente, a marca do elemento africano e de suas cult uras naquilo que caracteriza a língua portuguesa do Brasil e a distingue de Portugal. No entanto, a atuação dos africanos sobre a variedade da língua portuguesa falada no Brasil nem sempre contou com a bonomia dos pesquisadores dos fatos lingüísticos no Brasil. Renato Mendonça (1933) queixa -se, por exemplo, da pouca atenção dada à i nfluência dos negros no português do Brasil e imputa esse descaso ao romantismo que elegeu o índio como ideal de nacionalidade. Leite de Vasconcelos, outro exemplo, chega a afi rmar que em terras brasileiras e africanas a língua de Camões travou uma “luta moral” contra as línguas autóctones. No entanto, a melhor explicação para esses fatos históricos dá -se no resumo feito por Antonio Houaiss quando afirma as lutas travadas contra e pelo colonizador levaram a genocídios e glotocídios em terras brasileiras. A vinda oficial de negros para o Brasil ocorre em 1549 quando Dom João III autoriza a importação de 120 peças anuais por agricultor para o trabalho na lavoura de cana -de-açúcar e nos engenhos. Supõe -se, contudo, que a presença negra em terras brasile iras já se verificava na primeira expedição colonizadora. A política contra a escrav idão dos índios favorecia a investida em direção da importação de negros. O historiador Luís He nrique Dias Tavares ( 1959) afirma que para a Bahia vieram negros de diferentes nações identificáveis pelos fal ares iorubas, ewes, jejes, fulas, tapas, aussás, ardas e calabares. Os aussás (malês), segundo o historiador, falavam e escreviam árabe, podendo, por isso, ler o Corão. Levantar questões sobre o contingente africano no Brasil e sobre a representatividade do elemento africano e de seus descendentes na realidade sócio -histórica brasileira tem dois objetivos centrais: primeiro discutir os motivos da não sedimentação de uma língua crioula em terras brasileiras, salvaguardando casos especiais de comunidades isoladas, e discutir a emergência do português popular do Brasil tendo como base um processo de transmissão lingüística irregular que teria começado na base da pirâmide social do Brasil. Assim, a não emergência de um falar crioulo típico justif ica-se pelo percentual representativo dos falantes da língua alvo no Brasil. O acesso à língua alvo foi precário, mas não tão precário a ponto de produzir um crioulo típico. Além disso, o português popular do Brasil surge na base da pirâmide social, sendo essa constituída, em grande parte, por afro -descendentes. 3 2 Características linguí sticas do português afro -brasileiro Quais seriam do ponto de vista das e struturas lingüísticas as marcas feitas pelos africanos e seus descendentes no português do Brasil? Para responder a essa instigante pergunta, preferimos apresentar por ordem cronológica de publicação as principais obras de referência sobre o assunto, nem sempre disponíveis ao público. Em 1933, Jacques Raimundo publica o livro O Elemento Afro -negro na Língua Portuguesa. O autor aponta algumas mudanças na pronúncia da variedade bras ileira do português que teriam sido iniciadas pelos africanos, especialmente os do grupo banto. Além da contribuição na prosódia, Raimundo observa alterações nos processos mórficos e no arranjo da frase. Segundo autor, os escravos africanos que vieram para o Brasil constituíram uma linguagem própria, uma mistura de seus li nguajares com o português. Essa “linguagem própria” enriqueceu -se com a contribu ição indígena. Embora lhe falte um aparato teórico, Raimundo (1933, p. 74) aponta para um processo de transmissão lingüística irregular, visto que reconhece a ocorrência de “mescla do idioma natal [dos escravos africanos] e do português, um e outro vic iado [sic]”. O livro A influência africana no português do Brasil é outra obra de 1933, versando sobre a influência dos falares africanos no Português do Brasil. Escrito por Renato Mend onça, o livro está dividido em oito capítulos, além de um Vocabulário elaborado a partir de termos africanos usados no Brasil ou empregados por escritores brasile iros. Ele vê grande importância a comparação entre os crioulos de base portuguesa surgidos na África com a língua portuguesa do Brasil. Segundo ele, “e stes dialetos [os crioulos guineense e caboverdiano] constituem um elemento de comparação indispensável para discriminarmos o papel do negro na fonética brasileira” (MENDONÇA, 1973, p. 59). O autor q ueixa-se da pouca atenção dada à i nfluência dos negros no português do Brasil e imputa esse descaso ao romantismo que elegeu o índio como ideal de nacionalidade. Mendonça aponta algumas “alterações fonéticas de origem africana”, utilizando a metalinguagem da lingüística histórico-comparativa; no entanto, e m relação à morfologia, Mendonça observa que foram deixados apenas a lguns vestígios e atribui a esse fato a grande diferença que há entre as línguas afric anas e as européias. O vestígio mais sensível ser ia a ausência de plural no substant ivo, quando ocorre a pluralização do determinante. Tais fenômenos iriam se repetir no adjetivo na função predicativa. A morfologia verbal, também, teria sido afetada. Argumenta que ocorreu mudança na pronúncia da terceira pessoa “am” na pronúncia “dos pretos e gente de sua classe” (MENDONÇA, 1973, p. 68). Na sintaxe, 4 segundo Mendonça, “a influência africana é ainda menos sens ível”, pois seriam apenas traduções do modo africano de os negros falarem, mas “não persistiram nem deixaram de si vestígios” (MENDONÇA, 1973, p. 69). A diferença entre a colocação dos pronomes no Brasil e em Portugal seria um processo de infl uência dos africanos no Brasil. Fundamenta sua hipótese em observações de Leite de Vasconc elos e Gonçalves Viana . A grande contribuição de Mendonça para a discussão da origem do português popular do Brasil está no fato de ele relacionar a influência africana às classes m enos privilegiadas, identificando-a com os dialetos populares ou caipiras. Ele afirma que os matu tos e caipiras conservaram a inva riabilidade na flexão nominal. Em 1946, Gladstone Chaves de Melo publica A língua portuguesa do Brasil . Melo considera que o português popular do Brasil “é substancialmente o português arcaico, deformado, ou se quiserem, transformado em certo aspecto da morfologia e alguns da fonética pela atuação dos índios e dos negros” (MELO, 1971 , p.91). O autor afirma que a influência dos africanos no português popular do Brasil “foi mais profunda que a do tupi” (MELO, 1971 , p. 74). As explicações que o autor dá são irrefutáveis do ponto de vista histórico, visto que os negros viveram longamente em contato com o branco, aprendendo o português, inicialmente, como segunda língua. As alterações que os aloglotas africanos operaram no por tuguês do Brasil são vistas por Melo como deturpações, desfigurações, simplificações e reduções. O autor observa que, embora exista uma tendência românica para a simplificação, as feitas p elos africanos são indubitavelmente “extra românicas”. Melo pressupõe que entre os africanos trazidos para o Brasil tenham surgido dois dialetos crioulos: um do tipo iorubá e outro do tipo banto os quais foram grad ativamente desaparecendo graças à ação de ondas relusitanizantes, da urbanização e da normatização escolar. No entanto, observa que a base para a língua popular do Brasil estaria num crioulo de base tupi-quimbundo que teria “deformado” o port uguês arcaico, como procura demonstrar ao longo do capítulo V de seu livro, já que muitas das características ditas brasile iras já se encontravam no português arcaico. Melo (1971, p. 76) observa que o português popular do Brasil, originado do crioulo tupi-quimbundo, tende a se aproximar da norma lusitana, mas que “algumas deformações iniciais persistiram e constituem, no meu entender, o mais importante fundo dialetal da nossa fala popular”. Os africanos imprimiram no português do Brasil hábitos lingüísticos de suas línguas nativas, especialmente, no que se refere à simplificação da morfologia flexional, fato 5 considerado de gr ande abrangência no Brasil. Os africanos teriam constituído uma “força de resistência” às ondas nivelad oras lusitanas. Melo esmera-se por demonstrar que alguns fenômenos lingüísticos enum erados por Jacques Raimundo e Renato Mendonça não podem ser atribuí dos à influência dos africanos, já que se encontram atestadas em outras línguas e no próprio português europeu na sua fase arcaica, possuindo, nesse caso, foro de vernaculidade. Como podemos ver, o autor reconhece o papel dos africanos e o dos índios bra sileiros na formação da vertente popular ainda falada no Brasil, mas vê tal verte nte em fase de mudança já que as condições que fizerem emergir o português popular, agora, são outras. Não cremos que seja necessária a ascensão cultural e social para que se altere o comportamento lingüístico de uma comunidade, é necessário apenas que essa comunidade passe a ter um novo modelo de vida, que aspire a uma nova realidade para que a alteração do comportamento se efetive. Dessa mesma opinião, comportinha a pesquisad ora Mary do Careno, ao analisar mudanças no dialeto da comunidade afro -brasileira do Vale da Ribeira –SP. Segundo ela, a cultura oficial vem sendo transmitida pelos meios de comunicação, especialmente, a televisão e o rádio, levando os afro -descentes a manterem contato com a cultura urbana ( CARENO, 2000, p. 1). Ao publicar, em 1951, o livro Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil , Serafim da Silva Neto recolhe numerosa bibliografia sobre o assunto como forma de fomentação para estudos sobre a va riedade do português brasileiro. Seis anos depois, em 1957, vem à tona a História da Língua Portuguesa , obra de erudição. Silva Neto, não podendo fugir das evidências históricas, reconhece que os al oglotas africanos, ao aprenderem o português de forma defe ctiva, operaram simplif icações tanto fonéticas quanto morfológicas. Essa língua surgida da necessidade e aprendida de “oitiva”, sem a normatização da escola, seria transmitida às gerações seguintes. Da costa para o interior, a expansão foi um fato e essa língua resultante de um crioulo estaria na base das variedades rurais e populares em nosso país. No entanto, Silva Neto (1988, p. 595) atribui aos aloglotas africanos apenas o papel de “realizar de imediato o que, em condições normais, levaria talvez século s para completar-se”. Nesse sentido, o autor e sposa a teoria de Edward Sapir a respeito da deriva ( drift), isto é, uma direção “que já encerra uma série de probabi lidades” (p. 594). Silva Neto crê que a maior ou menor lentidão da deriva deva -se a fatos histórico-sociais. Como explicar à luz da deriva as diferenças entre o português culto e o pop ular do Brasil? O autor opta por duas derivas: “uma bastante conservadora” e outra “a que as condições sociais próprias imprimiram velocidade inesperada” (SILVA N ETO, 1988, p. 595). 6 Os lusofalantes provenientes de diversos lugares de Port ugal teriam “elaborado um denominador comum” (p. 595); entretanto, essa forma, por estar longe das influências inovadoras que ocorr iam além mar, apresentaria fortes traços conservad ores. Por outro lado, a grande massa de aloglotas africanos era obrigada a aprender o português de modo rápido e de “oitiva”, resultando, assim, numa aquisição imperfeita. A deriva, então, teria ag ido em dois sentidos: uma na conservação de traços e outra na alteração de traços. Duas características são apontadas por Silva Neto como ponto de intersecção ente as línguas crioulas e o português popular do Brasil. Uma delas é a redução morfológica geral nos crioulos. Caminhando na trilha da deriva, ele explic a que essa já era a tendência presente nas línguas românicas, mas que os aloglotas africanos fizeram apenas acelerar tal tendência, “de improviso”. A segunda caract erística refere-se ao conservadorismo que está presente nos falares crioulos e no po rtuguês popular (“rural” nas palavras do autor) do Brasil. Com explicar, então, que ambas as variedades, culta e popular, apresentem traços conservadores se na sua constituição viveram realidades distintas? Silva Neto afirma que o conservadorismo, também, é uma re alidade nas línguas transplantadas e que a “passividade receptiva” do crioulo veio a coincidir com o sentimento de purismo da classe média, tor nando a ambos conservadores. Silva Neto aponta para a importância do processo de aquisição do português “de oitiva” como formador do português popular do Brasil. Além da sócio -história, o autor lança mão de sua intuição no processo de aquisição de uma língua por fala ntes aloglotas adultos. O conceito de deriva tomado por Silva Neto não possui cam inho único, mas está sujeito a fatores extralingüísticos. Além disso, o fato de ele a ssumir o termo semi -crioulo, mostra que o conceito de crioulo que se tinha até então era insuficiente para descrever a realidade do Brasil, já que em nosso caso não ho uve a reestruturação gra matical no mesmo nível em que ocorreu nos crioulos típicos. Em 1963, Révah vai se opor a toda e qualquer influência do contato entre lí nguas na formação do português do Brasil. Apóia -se o autor no fato de fenômenos lingüísticos encontrados em duas língua s poderem ser fruto do acaso e não do cont ato entre elas. Apenas grandes semelhanças entre os dois sistemas podem afastar a fortuidade. Numa visão imanentista, Révah propõe que só se deva buscar explicações advindas do contato entre línguas quando esgotada s as possibilidades de comprov ações internas. Assim, por não encontrar no português popular do Brasil “decalques” de estruturas das línguas africanas, em especial do banto, nega -lhe que tenha havido influência dos aloglotas na língua popular do Brasil. Révah postula que os portugu eses, ao chegarem ao Brasil, transmitiram aos índios e 7 depois aos negros a rústica língua que empregavam em Portugal. Como os aloglotas não podiam corrigir os e rros dos rudes lusitanos apenas os perpetuavam, afastando -se do ideal das classes letradas. Assim sendo, podemos encontrar em Portugal situações semelhantes às vistas no Brasil. Podemos observar, ainda, no pensamento de Révah, que existe uma supervalorização do superstrato a ponto de afirmar que os índios e os africanos que conviviam com os portugueses eram incapazes de corrigir os desvios da norma que lhes eram transmitidos pelos brancos. Isso pressupõe que tais brancos falassem um português rústico já que rústica era sua condição. Nesse ponto, Révah concorda inteiramente c om Silva Neto quando afirma que em muitos pontos coincidiram os í ndios e os negros. Aprendendo, ambos, o português, não a fina estilização dos mais famosos textos, senão o trivial e rasteiro da boca dos mais rudes colonizadores, haveriam de, por força, chegar a resultados mais ou menos idênticos ( SILVA NETO, 1951, p. 164 apud REVAH, 1964, p. 29). O que nos surpreende é que a variação na concordância verbal no português popular do Brasil é massiva, estrutural e geral e sem precedente na história do portu guês. Ao virem para o Brasil, os portugueses que entraram em contato com negros e índios apresentariam variação na concordância como hoje encontramos em comunidades rurais afro -descendentes? E se tal variedade de português lusitano existiu, por que os dial etólogos a ela não fazem referência? O que sabemos do português rural europeu é que, em relação à concordância, assemelha-se muito ao português culto. A esse respeito, é oportuno lembrar o depoime nto dado por Gladstone Chaves de Melo (1946) sobre o uso das flexões por um grupo de portugueses remanescentes no Rio de Janeiro. Portanto, como, à luz do pens amento de Révah e Silva Neto, explicar que aqueles pescadores, logicamente, oriu ndos de parcela menos favorecida da população portuguesa, aplicavam a regra d e concordância a despeito de seus antepassados não a aplicarem e ensinarem aos í ndios e negros os “erros” que consigo trouxeram de Portugal? Cremos, pois, que não tem fundamento apoiar a variação na flexão verbal e nominal no português do Brasil em uma sem ente portuguesa que aqui germinou e floresceu mais do que na língua de origem. Gregory Guy (1981) vai assumir a posição de que o português popular do Brasil tem uma origem certamente crioula. Após resumir a situação social do Brasil, reconhecendo que as diferenças lingüísticas não são de raça, mas de classe social, Guy (1981 e 1989) começa a refletir sobre a situação histórica dos africanos e seus descendentes, já que “hoje os 8 descendentes daqueles escravos formam uma maioria, e em algumas áreas, uma maio ria esmagadora, de falantes do PPB, a ampla popul ação negra ou mulata do Brasil”. Guy crê que os dialetos rurais brasileiros apresentam fortes vestígios desse crioulo e que a urbanização é fato crucial para sua extinção. Com isso, o autor ass ume não só a crioulização como formadora do português popular, mas a descriouliz ação como a formadora de um português que se aproxime mais da variante do port uguês urbano. No curso da mudança, fatores sociais seriam os desencadeadores do processo de aquisição, no noss o caso, das marcas de concordância. É o que podemos ver quando os falantes mais novos da zona rural realizam mais concordâncias do que os falantes mais velhos, mas, mesmo assim, estão distantes do índice de concordâ ncia dos falantes cultos urbanos. Em relação à concordância nominal, Guy acredita que a marcação do prime iro elemento seja um forte indício da influência das línguas africanas no português popular do Brasil e que essa tendência estaria presente nos crioulos de base portuguesa. Por outro lado, Lucchesi (2000, p. 38) demonstra que a marcação predom inantemente nos determinantes é condicionada por restrições estruturais ou de caráter contingencial, visto que a marcação do plural no primeiro elemento não está nece ssariamente ligada ao contato entre línguas nem à influência do substrato africano. O crioulo português de Guiné -Bissau é sintomático porque lá houve crioulização, mais próxima das línguas do substrato, mas a marcação não se dá no primeiro elemento. 3 O português afro -brasileiro de Cinzen to: uma abordagem sociolingüística A comunidade de Cinzento, próxima à cidade de Planalto -BA, é um exemplo de comunidade formada por negros fugidos e que se manteve isolada das outras comunidades rurais vizinhas e, até mesmo, do município -sede por muitos anos. Se o contato entre brancos europeus e negros africanos produziu, em situação de sujeição, uma variedade de língua pidgin e crioulo, acreditamos que no Brasil tenham surgido crioulos em regiões isoladas, mas que foram, aos poucos, perdendo suas carac terísticas pela influência da língua do dominador. Dessa forma, podemos encontrar, em comunidades isoladas, vestígios, traços de crioulos que ali se desenvolveram. No caso de Cinzento, não cremos que ali tenha surgido um crioulo típico, mas uma var iedade de língua em que houve alteração sensível da língua alvo, o português, e que esses traços vêm se perdendo com a influência do contato com outros grupos sociais e da influência dos meios de comunicação. 9 Segundo Graziele de Lourdes Novato Ferreira “a vinda dos primeiros negros para o Cinzento está associada às comunidades estabelecidas à margem do Rio Gavião” por volta de 1810 e 1860. Segundo relatos dos antigos moradores, os fundad ores de Cinzento são da região da Chapada Diamantina, mais precisamente do an tigo “Arraial dos Crioulos” e o sobrenome Pereira Nunes, predominante em Cinzento, é o mesmo de um antigo proprietário de escravos da região de Rio de Contas. Ana Isidora (107 anos) afirma que os primeiros moradores vieram “currido”, sugerindo que a chegad a deu-se de forma clandestina, pois a vinda se deu “à meia noite, terça-noite”. Curiosa é a origem do nome que, por si, descreve o estado de pobreza dos moradores. Conta Ana Isidora que o nome provém de um boi gordo, “de tão gordo parecia cinza”, que apareceu milagrosamente para alimentar os primeiros moradores. O que levaria os primeiros moradores a abandonarem o local onde viviam e se deslocarem para uma terra com tantas adversidades como a de Cinzento? Certamente, fugiam da escravidão e bu scavam no local a formação de uma irmandade com base primeiro na cor e depois no parentesco, já que a endogamia é uma prática comum até hoje. Segundo o informante Saviano Pereira Nunes, foi o Lourenço Pereira Nunes que desmatou as primeiras terras de Cinzento e delas tomou posse. Outro informa nte, Tercílio, afirmou-nos que os primeiros desbravadores foram o já citado Lourenço Pereira Nunes e Sérgio Pinheiro dos Santos. A valorização da terra não é apenas uma forma de sobrevivência particular, mas de todo o grupo; pois, da unidade terr itorial depende a unidade da coletividade. Esse aspecto explicaria a endogamia como forma de manutenção das terras na família em caso de divisão. Os mais velhos afirmam que seus pais contavam ter a obrigação de se ajoelharem “em frente dos donos”. Ana Isidora vai mais além e conta que sua bisavó era “caboca do mato e minha avó Mar ia foi pegada no mato” . A comunidade de Cinzento apresenta uma história um pouco dif erenciada da comunidade de Helvécia e se assemelha à de Rio de Contas. Cinzento foi fundada por negros fugidos que se lançaram por um terra desconhecida, de difícil acesso, com poucas oportunidades de bem estar, distante do centro comercial, care nte de infra-estrutura. A endogamia foi utilizada como mecanismo de manutenção da posse d a terra e princípio básico de coesão do grupo. Além disso, a energia elétrica foi chegar tardiamente em Cinzento (1999). A ação da Igreja Católica, a Pastoral do Negro, esforçou -se por apagar os traços da religião africana, precariamente, pratic ada por uma de seus moradores. Além disso, os jovens da comunidade estão cada vez mais tendentes a não seguirem o modelo de vida agrária dos pais e avós. 10 Por outro lado, a comunidade de Rio de Contas conta com uma estrutura t urística, graças às belezas naturais da região. As comunidades afro -brasileiras ali l ocalizadas apresentam uma história de isolamento, mas não tão acentuada como a comunidade de Cinzento. O turismo fez com que os falantes das duas comunidades entrassem em contato com um maior contingente de aces so da língua alvo, favor ecendo, cremos nós, à aplicação da regra de concordância. Rio de Contas estaria, po rtanto, mais sujeitas à influência externa do que a comunidade de Cinzento que, ant igamente, via na presença do forasteiro uma ameaça à paz estabelecida na região. A comunidade de Helvécia, atualmente, vem passando por transformações relativas ao deslocamento da atividade de subsistência para o plantio do eucalipto ou do abandono da atividade agrícola com a venda das terras para o plantio do eucalipto como fonte de produção de celulose. A mudança econômica ou, pelo menos, da r elação econômica poderia ser fator de modificação da estrutura social e, portanto, lingüística. O contato com padrões lingüísticos prestigiados poderia influenciar a mudança da co ncordância segundo os padrões da língua alvo. Comunidades Comunidades Ocorrências Freqüência Peso Relativo Cinzento 117/927 13% .43 Helvécia 58/374 16% .47 Rio de Contas 98/405 24% .67 Como podemos ver, a hipótese inicial levantada por nós, com ba se no contato dos falantes das comunidades analisadas com falantes da língua alvo, foi comprov ada com base nos dados. As atividades turísticas de Rio de Contas influenciam a fala dos habitantes das comunidades afro -brasileiras de Rio de Contas, oferecendo aos moradores daqueles povoados modelos da língua alvo com mais profusão do que os moradores de Cinzento. No curso de aquisição da regra de concordância, as comunidades espelham as atuais relações em que vivem, mas demonstram o passado em que o acesso à língua alvo era reduzido. A urbanização, como temos repetido, é para as comunidades r urais isoladas um fator fundamental de mudança no comportamento lingüístico. Referências BAXTER, Alan; LUCCHESI, Dante. A relevância dos processos de pidginização e crioulização na formação da língua portuguesa no Brasil. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, n. 19, mar. 1997. 11 BUENO, Silveira. Estudos de filologia portuguesa . 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1967. CASTRO, Yeda Pessoa de. Os falares africanos na intera ção social dos primeiros séculos. In: MELLO, Linalda Arruda (Org.). 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