IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA
HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.
29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
SOCIO-HISTÓRIA DO PORTUGUÊS AFRO -BRASILEIRO:
UMA HISTÓRIA A CONTAR
Jorge Augusto Alves da Silva
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
E-mail: [email protected]
Palavras-chave: Português afro-brasileiro. Quilombos. História Lingüística. História Social.
Sociolingüística.
As línguas são produtos históricos ligados às sociedades que as usam como veículo de
comunicação. Falar, portanto, da histó ria de uma língua é falar da história da sociedade em
que ela emergiu. Como sistema de comunicação eficiente, uma lí ngua histórica reflete os
níveis ou estratos de que se compõe a comunidade de ute ntes; destarte, pode -se dizer que a
heterogeneidade de uma língua está relacionada à heterogeneidade de seus usuários que,
distribuídos em teias de relação, usam do código lingüístico não apenas para se comunicarem,
mas também para se fazerem r epresentar na sociedade, ocupando papéis, vendo aos outros e a
si mesmos. A língua é, eminentemente, um fato social e histórico.
1 Africanos e seus descendentes na formação da língua portuguesa do Brasil
O mais antigo texto conhecido que suscita a diferenciação observável no Português do
Brasil em relação ao de Portugal remonta o século XIX, por volta de 1824 -1825, da autoria de
Adrien Balbi que, ao redigir a Introdução ao Atlas Etnográfico do Globo , sob a égide
determinista e evolucionista da época, afirma que
[...] mais cette langue, transportée au Brésil, se ressent de la douceur du
climat et du caractere de sés habitants. Elle a gagné pour l’emploi et pour les
expressions des sentiments tendres, et, tout en conservant son energie, elle a
plus aménité.
Para ilustrar com exemplos termos usados no Brasil estranhos a Portugal e que
possuem a “doçura do clima e das características de seus habitantes”, Balbi cita 49 palavras
(entre tais palavras temos de observar que uma é cognata da outra como “muquem” que deu
origem ao verbo “muquear” e outra na verdade é uma oração “ me deixa”, grafada pelo autor
“mideixe”) entre elas 17 são de origem africana, como podemos constatar no cotejo com Yeda
Castro Pessoa (2001), sendo 14 de origem banto e 3 de origem ki mbundo. Nota-se,
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plenamente, a marca do elemento africano e de suas cult uras naquilo que caracteriza a língua
portuguesa do Brasil e a distingue de Portugal.
No entanto, a atuação dos africanos sobre a variedade da língua portuguesa falada no
Brasil nem sempre contou com a bonomia dos pesquisadores dos fatos lingüísticos no Brasil.
Renato Mendonça (1933) queixa -se, por exemplo, da pouca atenção dada à i nfluência dos
negros no português do Brasil e imputa esse descaso ao romantismo que elegeu o índio como
ideal de nacionalidade. Leite de Vasconcelos, outro exemplo, chega a afi rmar que em terras
brasileiras e africanas a língua de Camões travou uma “luta moral” contra as línguas
autóctones. No entanto, a melhor explicação para esses fatos históricos dá -se no resumo feito
por Antonio Houaiss quando afirma as lutas travadas contra e pelo colonizador levaram a
genocídios e glotocídios em terras brasileiras.
A vinda oficial de negros para o Brasil ocorre em 1549 quando Dom João III autoriza
a importação de 120 peças anuais por agricultor para o trabalho na lavoura de cana -de-açúcar
e nos engenhos. Supõe -se, contudo, que a presença negra em terras brasile iras já se verificava
na primeira expedição colonizadora. A política contra a escrav idão dos índios favorecia a
investida em direção da importação de negros.
O historiador Luís He nrique Dias Tavares ( 1959) afirma que para a Bahia vieram
negros de diferentes nações identificáveis pelos fal ares iorubas, ewes, jejes, fulas, tapas,
aussás, ardas e calabares. Os aussás (malês), segundo o historiador, falavam e escreviam
árabe, podendo, por isso, ler o Corão.
Levantar questões sobre o contingente africano no Brasil e sobre a representatividade
do elemento africano e de seus descendentes na realidade sócio -histórica brasileira tem dois
objetivos centrais: primeiro discutir os motivos da não sedimentação de uma língua crioula
em terras brasileiras, salvaguardando casos especiais de comunidades isoladas, e discutir a
emergência do português popular do Brasil tendo como base um processo de transmissão
lingüística irregular que teria começado na base da pirâmide social do Brasil. Assim, a não emergência de um falar crioulo típico justif ica-se pelo percentual representativo dos falantes
da língua alvo no Brasil. O acesso à língua alvo foi precário, mas não tão precário a ponto de
produzir um crioulo típico. Além disso, o português popular do Brasil surge na base da
pirâmide social, sendo essa constituída, em grande parte, por afro -descendentes.
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2 Características linguí sticas do português afro -brasileiro
Quais seriam do ponto de vista das e struturas lingüísticas as marcas feitas pelos
africanos e seus descendentes no português do Brasil? Para responder a essa instigante
pergunta, preferimos apresentar por ordem cronológica de publicação as principais obras de
referência sobre o assunto, nem sempre disponíveis ao público.
Em 1933, Jacques Raimundo publica o livro O Elemento Afro -negro na Língua
Portuguesa. O autor aponta algumas mudanças na pronúncia da variedade bras ileira do
português que teriam sido iniciadas pelos africanos, especialmente os do grupo banto. Além
da contribuição na prosódia, Raimundo observa alterações nos processos mórficos e no
arranjo da frase. Segundo autor, os escravos africanos que vieram para o Brasil constituíram
uma linguagem própria, uma mistura de seus li nguajares com o português. Essa “linguagem
própria” enriqueceu -se com a contribu ição indígena. Embora lhe falte um aparato teórico,
Raimundo (1933, p. 74) aponta para um processo de transmissão lingüística irregular, visto
que reconhece a ocorrência de “mescla do idioma natal [dos escravos africanos] e do
português, um e outro vic iado [sic]”.
O livro A influência africana no português do Brasil é outra obra de 1933, versando
sobre a influência dos falares africanos no Português do Brasil. Escrito por Renato Mend onça,
o livro está dividido em oito capítulos, além de um Vocabulário elaborado a partir de termos
africanos usados no Brasil ou empregados por escritores brasile iros. Ele vê grande
importância a comparação entre os crioulos de base portuguesa surgidos na África com a
língua portuguesa do Brasil. Segundo ele, “e stes dialetos [os crioulos guineense e
caboverdiano] constituem um elemento de comparação indispensável para discriminarmos o
papel do negro na fonética brasileira” (MENDONÇA, 1973, p. 59). O autor q ueixa-se da
pouca atenção dada à i nfluência dos negros no português do Brasil e imputa esse descaso ao
romantismo que elegeu o índio como ideal de nacionalidade.
Mendonça aponta algumas “alterações fonéticas de origem africana”, utilizando a
metalinguagem da lingüística histórico-comparativa; no entanto, e m relação à morfologia,
Mendonça observa que foram deixados apenas a lguns vestígios e atribui a esse fato a grande
diferença que há entre as línguas afric anas e as européias. O vestígio mais sensível ser ia a
ausência de plural no substant ivo, quando ocorre a pluralização do determinante. Tais
fenômenos iriam se repetir no adjetivo na função predicativa. A morfologia verbal, também,
teria sido afetada. Argumenta que ocorreu mudança na pronúncia da terceira pessoa “am” na
pronúncia “dos pretos e gente de sua classe” (MENDONÇA, 1973, p. 68). Na sintaxe,
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segundo Mendonça, “a influência africana é ainda menos sens ível”, pois seriam apenas
traduções do modo africano de os negros falarem, mas “não persistiram nem deixaram de si
vestígios” (MENDONÇA, 1973, p. 69). A diferença entre a colocação dos pronomes no
Brasil e em Portugal seria um processo de infl uência dos africanos no Brasil. Fundamenta sua
hipótese em observações de Leite de Vasconc elos e Gonçalves Viana .
A grande contribuição de Mendonça para a discussão da origem do português popular
do Brasil está no fato de ele relacionar a influência africana às classes m enos privilegiadas,
identificando-a com os dialetos populares ou caipiras. Ele afirma que os matu tos e caipiras
conservaram a inva riabilidade na flexão nominal.
Em 1946, Gladstone Chaves de Melo publica A língua portuguesa do Brasil . Melo
considera que o português popular do Brasil “é substancialmente o português arcaico,
deformado, ou se quiserem, transformado em certo aspecto da morfologia e alguns da fonética
pela atuação dos índios e dos negros” (MELO, 1971 , p.91).
O autor afirma que a influência dos africanos no português popular do Brasil “foi mais
profunda que a do tupi” (MELO, 1971 , p. 74). As explicações que o autor dá são irrefutáveis
do ponto de vista histórico, visto que os negros viveram longamente em contato com o
branco, aprendendo o português, inicialmente, como segunda língua. As alterações que os
aloglotas africanos operaram no por tuguês do Brasil são vistas por Melo como deturpações,
desfigurações, simplificações e reduções. O autor observa que, embora exista uma tendência
românica para a simplificação, as feitas p elos africanos são indubitavelmente “extra românicas”.
Melo pressupõe que entre os africanos trazidos para o Brasil tenham surgido dois
dialetos crioulos: um do tipo iorubá e outro do tipo banto os quais foram grad ativamente
desaparecendo graças à ação de ondas relusitanizantes, da urbanização e da normatização
escolar. No entanto, observa que a base para a língua popular do Brasil estaria num crioulo de
base tupi-quimbundo que teria “deformado” o port uguês arcaico, como procura demonstrar ao
longo do capítulo V de seu livro, já que muitas das características ditas brasile iras já se
encontravam no português arcaico.
Melo (1971, p. 76) observa que o português popular do Brasil, originado do crioulo
tupi-quimbundo, tende a se aproximar da norma lusitana, mas que “algumas deformações
iniciais persistiram e constituem, no meu entender, o mais importante fundo dialetal da nossa
fala popular”. Os africanos imprimiram no português do Brasil hábitos lingüísticos de suas
línguas nativas, especialmente, no que se refere à simplificação da morfologia flexional, fato
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considerado de gr ande abrangência no Brasil. Os africanos teriam constituído uma “força de
resistência” às ondas nivelad oras lusitanas.
Melo esmera-se por demonstrar que alguns fenômenos lingüísticos enum erados por
Jacques Raimundo e Renato Mendonça não podem ser atribuí dos à influência dos africanos,
já que se encontram atestadas em outras línguas e no próprio português europeu na sua fase
arcaica, possuindo, nesse caso, foro de vernaculidade.
Como podemos ver, o autor reconhece o papel dos africanos e o dos índios bra sileiros
na formação da vertente popular ainda falada no Brasil, mas vê tal verte nte em fase de
mudança já que as condições que fizerem emergir o português popular, agora, são outras. Não
cremos que seja necessária a ascensão cultural e social para que se altere o comportamento
lingüístico de uma comunidade, é necessário apenas que essa comunidade passe a ter um novo
modelo de vida, que aspire a uma nova realidade para que a alteração do comportamento se
efetive. Dessa mesma opinião, comportinha a pesquisad ora Mary do Careno, ao analisar
mudanças no dialeto da comunidade afro -brasileira do Vale da Ribeira –SP. Segundo ela, a
cultura oficial vem sendo transmitida pelos meios de comunicação, especialmente, a televisão
e o rádio, levando os afro -descentes a manterem contato com a cultura urbana ( CARENO,
2000, p. 1).
Ao publicar, em 1951, o livro Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil ,
Serafim da Silva Neto recolhe numerosa bibliografia sobre o assunto como forma de
fomentação para estudos sobre a va riedade do português brasileiro. Seis anos depois, em
1957, vem à tona a História da Língua Portuguesa , obra de erudição. Silva Neto, não
podendo fugir das evidências históricas, reconhece que os al oglotas africanos, ao aprenderem
o português de forma defe ctiva, operaram simplif icações tanto fonéticas quanto morfológicas.
Essa língua surgida da necessidade e aprendida de “oitiva”, sem a normatização da escola,
seria transmitida às gerações seguintes. Da costa para o interior, a expansão foi um fato e essa
língua resultante de um crioulo estaria na base das variedades rurais e populares em nosso
país. No entanto, Silva Neto (1988, p. 595) atribui aos aloglotas africanos apenas o papel de
“realizar de imediato o que, em condições normais, levaria talvez século s para completar-se”.
Nesse sentido, o autor e sposa a teoria de Edward Sapir a respeito da deriva ( drift), isto é, uma
direção “que já encerra uma série de probabi lidades” (p. 594). Silva Neto crê que a maior ou
menor lentidão da deriva deva -se a fatos histórico-sociais.
Como explicar à luz da deriva as diferenças entre o português culto e o pop ular do
Brasil? O autor opta por duas derivas: “uma bastante conservadora” e outra “a que as
condições sociais próprias imprimiram velocidade inesperada” (SILVA N ETO, 1988, p. 595).
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Os lusofalantes provenientes de diversos lugares de Port ugal teriam “elaborado um
denominador comum” (p. 595); entretanto, essa forma, por estar longe das influências
inovadoras que ocorr iam além mar, apresentaria fortes traços conservad ores. Por outro lado, a
grande massa de aloglotas africanos era obrigada a aprender o português de modo rápido e de
“oitiva”, resultando, assim, numa aquisição imperfeita. A deriva, então, teria ag ido em dois
sentidos: uma na conservação de traços e outra na alteração de traços.
Duas características são apontadas por Silva Neto como ponto de intersecção ente as
línguas crioulas e o português popular do Brasil. Uma delas é a redução morfológica geral nos
crioulos. Caminhando na trilha da deriva, ele explic a que essa já era a tendência presente nas
línguas românicas, mas que os aloglotas africanos fizeram apenas acelerar tal tendência, “de
improviso”. A segunda caract erística refere-se ao conservadorismo que está presente nos
falares crioulos e no po rtuguês popular (“rural” nas palavras do autor) do Brasil. Com
explicar, então, que ambas as variedades, culta e popular, apresentem traços conservadores se
na sua constituição viveram realidades distintas? Silva Neto afirma que o conservadorismo,
também, é uma re alidade nas línguas transplantadas e que a “passividade receptiva” do
crioulo veio a coincidir com o sentimento de purismo da classe média, tor nando a ambos
conservadores.
Silva Neto aponta para a importância do processo de aquisição do português “de
oitiva” como formador do português popular do Brasil. Além da sócio -história, o autor lança
mão de sua intuição no processo de aquisição de uma língua por fala ntes aloglotas adultos. O
conceito de deriva tomado por Silva Neto não possui cam inho único, mas está sujeito a
fatores extralingüísticos. Além disso, o fato de ele a ssumir o termo semi -crioulo, mostra que o
conceito de crioulo que se tinha até então era insuficiente para descrever a realidade do Brasil,
já que em nosso caso não ho uve a reestruturação gra matical no mesmo nível em que ocorreu
nos crioulos típicos.
Em 1963, Révah vai se opor a toda e qualquer influência do contato entre lí nguas na
formação do português do Brasil. Apóia -se o autor no fato de fenômenos lingüísticos
encontrados em duas língua s poderem ser fruto do acaso e não do cont ato entre elas. Apenas
grandes semelhanças entre os dois sistemas podem afastar a fortuidade. Numa visão
imanentista, Révah propõe que só se deva buscar explicações advindas do contato entre
línguas quando esgotada s as possibilidades de comprov ações internas. Assim, por não
encontrar no português popular do Brasil “decalques” de estruturas das línguas africanas, em
especial do banto, nega -lhe que tenha havido influência dos aloglotas na língua popular do
Brasil. Révah postula que os portugu eses, ao chegarem ao Brasil, transmitiram aos índios e
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depois aos negros a rústica língua que empregavam em Portugal. Como os aloglotas não
podiam corrigir os e rros dos rudes lusitanos apenas os perpetuavam, afastando -se do ideal das
classes letradas. Assim sendo, podemos encontrar em Portugal situações semelhantes às vistas
no Brasil.
Podemos observar, ainda, no pensamento de Révah, que existe uma supervalorização
do superstrato a ponto de afirmar que os índios e os africanos que conviviam com os
portugueses eram incapazes de corrigir os desvios da norma que lhes eram transmitidos pelos
brancos. Isso pressupõe que tais brancos falassem um português rústico já que rústica era sua
condição. Nesse ponto, Révah concorda inteiramente c om Silva Neto quando afirma que
em muitos pontos coincidiram os í ndios e os negros. Aprendendo, ambos, o
português, não a fina estilização dos mais famosos textos, senão o trivial e
rasteiro da boca dos mais rudes colonizadores, haveriam de, por força,
chegar a resultados mais ou menos idênticos ( SILVA NETO, 1951, p. 164
apud REVAH, 1964, p. 29).
O que nos surpreende é que a variação na concordância verbal no português popular
do Brasil é massiva, estrutural e geral e sem precedente na história do portu guês. Ao virem
para o Brasil, os portugueses que entraram em contato com negros e índios apresentariam
variação na concordância como hoje encontramos em comunidades rurais afro -descendentes?
E se tal variedade de português lusitano existiu, por que os dial etólogos a ela não fazem
referência? O que sabemos do português rural europeu é que, em relação à concordância,
assemelha-se muito ao português culto. A esse respeito, é oportuno lembrar o depoime nto
dado por Gladstone Chaves de Melo (1946) sobre o uso das flexões por um grupo de
portugueses remanescentes no Rio de Janeiro. Portanto, como, à luz do pens amento de Révah
e Silva Neto, explicar que aqueles pescadores, logicamente, oriu ndos de parcela menos
favorecida da população portuguesa, aplicavam a regra d e concordância a despeito de seus
antepassados não a aplicarem e ensinarem aos í ndios e negros os “erros” que consigo
trouxeram de Portugal? Cremos, pois, que não tem fundamento apoiar a variação na flexão
verbal e nominal no português do Brasil em uma sem ente portuguesa que aqui germinou e
floresceu mais do que na língua de origem.
Gregory Guy (1981) vai assumir a posição de que o português popular do Brasil tem
uma origem certamente crioula. Após resumir a situação social do Brasil, reconhecendo que
as diferenças lingüísticas não são de raça, mas de classe social, Guy (1981 e 1989) começa a
refletir sobre a situação histórica dos africanos e seus descendentes, já que “hoje os
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descendentes daqueles escravos formam uma maioria, e em algumas áreas, uma maio ria
esmagadora, de falantes do PPB, a ampla popul ação negra ou mulata do Brasil”.
Guy crê que os dialetos rurais brasileiros apresentam fortes vestígios desse crioulo e
que a urbanização é fato crucial para sua extinção. Com isso, o autor ass ume não só a
crioulização como formadora do português popular, mas a descriouliz ação como a formadora
de um português que se aproxime mais da variante do port uguês urbano. No curso da
mudança, fatores sociais seriam os desencadeadores do processo de aquisição, no noss o caso,
das marcas de concordância. É o que podemos ver quando os falantes mais novos da zona
rural realizam mais concordâncias do que os falantes mais velhos, mas, mesmo assim, estão
distantes do índice de concordâ ncia dos falantes cultos urbanos.
Em relação à concordância nominal, Guy acredita que a marcação do prime iro
elemento seja um forte indício da influência das línguas africanas no português popular do
Brasil e que essa tendência estaria presente nos crioulos de base portuguesa. Por outro lado,
Lucchesi (2000, p. 38) demonstra que a marcação predom inantemente nos determinantes é
condicionada por restrições estruturais ou de caráter contingencial, visto que a marcação do
plural no primeiro elemento não está nece ssariamente ligada ao contato entre línguas nem à
influência do substrato africano. O crioulo português de Guiné -Bissau é sintomático porque lá
houve crioulização, mais próxima das línguas do substrato, mas a marcação não se dá no
primeiro elemento.
3 O português afro -brasileiro de Cinzen to: uma abordagem sociolingüística
A comunidade de Cinzento, próxima à cidade de Planalto -BA, é um exemplo de
comunidade formada por negros fugidos e que se manteve isolada das outras comunidades
rurais vizinhas e, até mesmo, do município -sede por muitos anos. Se o contato entre brancos
europeus e negros africanos produziu, em situação de sujeição, uma variedade de língua
pidgin e crioulo, acreditamos que no Brasil tenham surgido crioulos em regiões isoladas, mas
que foram, aos poucos, perdendo suas carac terísticas pela influência da língua do dominador.
Dessa forma, podemos encontrar, em comunidades isoladas, vestígios, traços de crioulos que
ali se desenvolveram. No caso de Cinzento, não cremos que ali tenha surgido um crioulo
típico, mas uma var iedade de língua em que houve alteração sensível da língua alvo, o
português, e que esses traços vêm se perdendo com a influência do contato com outros grupos
sociais e da influência dos meios de comunicação.
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Segundo Graziele de Lourdes Novato Ferreira “a vinda dos primeiros negros para o
Cinzento está associada às comunidades estabelecidas à margem do Rio Gavião” por volta de
1810 e 1860. Segundo relatos dos antigos moradores, os fundad ores de Cinzento são da região
da Chapada Diamantina, mais precisamente do an tigo “Arraial dos Crioulos” e o sobrenome
Pereira Nunes, predominante em Cinzento, é o mesmo de um antigo proprietário de escravos
da região de Rio de Contas. Ana Isidora (107 anos) afirma que os primeiros moradores vieram
“currido”, sugerindo que a chegad a deu-se de forma clandestina, pois a vinda se deu “à meia noite, terça-noite”.
Curiosa é a origem do nome que, por si, descreve o estado de pobreza dos moradores.
Conta Ana Isidora que o nome provém de um boi gordo, “de tão gordo parecia cinza”, que
apareceu milagrosamente para alimentar os primeiros moradores. O que levaria os primeiros
moradores a abandonarem o local onde viviam e se deslocarem para uma terra com tantas
adversidades como a de Cinzento? Certamente, fugiam da escravidão e bu scavam no local a
formação de uma irmandade com base primeiro na cor e depois no parentesco, já que a
endogamia é uma prática comum até hoje.
Segundo o informante Saviano Pereira Nunes, foi o Lourenço Pereira Nunes que
desmatou as primeiras terras de Cinzento e delas tomou posse. Outro informa nte, Tercílio,
afirmou-nos que os primeiros desbravadores foram o já citado Lourenço Pereira Nunes e
Sérgio Pinheiro dos Santos. A valorização da terra não é apenas uma forma de sobrevivência
particular, mas de todo o grupo; pois, da unidade terr itorial depende a unidade da
coletividade. Esse aspecto explicaria a endogamia como forma de manutenção das terras na
família em caso de divisão. Os mais velhos afirmam que seus pais contavam ter a obrigação
de se ajoelharem “em frente dos donos”. Ana Isidora vai mais além e conta que sua bisavó era
“caboca do mato e minha avó Mar ia foi pegada no mato” .
A comunidade de Cinzento apresenta uma história um pouco dif erenciada da
comunidade de Helvécia e se assemelha à de Rio de Contas. Cinzento foi fundada por negros
fugidos que se lançaram por um terra desconhecida, de difícil acesso, com poucas
oportunidades de bem estar, distante do centro comercial, care nte de infra-estrutura. A
endogamia foi utilizada como mecanismo de manutenção da posse d a terra e princípio básico
de coesão do grupo. Além disso, a energia elétrica foi chegar tardiamente em Cinzento
(1999). A ação da Igreja Católica, a Pastoral do Negro, esforçou -se por apagar os traços da
religião africana, precariamente, pratic ada por uma de seus moradores. Além disso, os jovens
da comunidade estão cada vez mais tendentes a não seguirem o modelo de vida agrária dos
pais e avós.
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Por outro lado, a comunidade de Rio de Contas conta com uma estrutura t urística,
graças às belezas naturais da região. As comunidades afro -brasileiras ali l ocalizadas
apresentam uma história de isolamento, mas não tão acentuada como a comunidade de
Cinzento. O turismo fez com que os falantes das duas comunidades entrassem em contato
com um maior contingente de aces so da língua alvo, favor ecendo, cremos nós, à aplicação da
regra de concordância. Rio de Contas estaria, po rtanto, mais sujeitas à influência externa do
que a comunidade de Cinzento que, ant igamente, via na presença do forasteiro uma ameaça à
paz estabelecida na região.
A comunidade de Helvécia, atualmente, vem passando por transformações relativas ao
deslocamento da atividade de subsistência para o plantio do eucalipto ou do abandono da
atividade agrícola com a venda das terras para o plantio do eucalipto como fonte de produção
de celulose. A mudança econômica ou, pelo menos, da r elação econômica poderia ser fator de
modificação da estrutura social e, portanto, lingüística. O contato com padrões lingüísticos
prestigiados poderia influenciar a mudança da co ncordância segundo os padrões da língua
alvo.
Comunidades
Comunidades
Ocorrências
Freqüência
Peso Relativo
Cinzento
117/927
13%
.43
Helvécia
58/374
16%
.47
Rio de Contas
98/405
24%
.67
Como podemos ver, a hipótese inicial levantada por nós, com ba se no contato dos
falantes das comunidades analisadas com falantes da língua alvo, foi comprov ada com base
nos dados. As atividades turísticas de Rio de Contas influenciam a fala dos habitantes das
comunidades afro -brasileiras de Rio de Contas, oferecendo aos moradores daqueles povoados
modelos da língua alvo com mais profusão do que os moradores de Cinzento.
No curso de aquisição da regra de concordância, as comunidades espelham as atuais
relações em que vivem, mas demonstram o passado em que o acesso à língua alvo era
reduzido. A urbanização, como temos repetido, é para as comunidades r urais isoladas um
fator fundamental de mudança no comportamento lingüístico.
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Jorge Augusto Alves da Silva