COOPERATIVISMO DE CRÉDITO Reflexões a partir da experiência do Sistema Cre$ol *Arni Deonildo Hall 1. Retrospectiva histórica – origem do cooperativismo O cooperativismo, como conhecemos hoje, tem suas raízes no continente europeu, na primeira metade do século XIX. O contexto sócio-político-econômico da época, onde campos e cidades estavam empobrecidos por conta da Revolução Industrial, constituiu o espaço de surgimento das primeiras experiências cooperativas1. Três grandes correntes de pensamento pautavam o debate da época. De um lado, os “liberais clássicos”2, empenhados em melhorar a gestão do capitalismo incipiente, sobrevalorizando o Mercado; de outro, os “socialistas” , preocupados em fortalecer o Estado 3 (socialista); e num terceiro grupo, aqueles que vieram a ser denominados de “cooperativistas” , divergindo dos primeiros por entenderem o Homem acima do Mercado; e 4 dos segundos por entenderem o Homem acima do Estado. Assim, o cooperativismo, desde seu nascedouro, busca autonomia em relação ao Mercado e ao Estado, o que não significa estar ausente do mercado ou afastado do estado. Ao contrário, como instrumento de intervenção em determinado contexto social, atua no mercado e está condicionado às normas do estado. A autonomia está na gênese do cooperativismo, sendo impensável uma organização cooperativa que abdique dessa condição. 2. O marco legal do cooperativismo A construção de marcos legais, em geral, resulta; ou da consolidação de estruturas de organização da sociedade elevadas a padrões de Estado (construção democrática), ou da formatação da sociedade a partir do próprio Estado (construção autoritária). No curso do tempo, o cooperativismo vem intercalando períodos de formatação de seu marco legal, ora pela via democrática, ora pela via autoritária, a depender dos contextos sociais específicos. No Brasil, até o advento do Decreto 22.239/1932, a legislação é esparsa e resulta de processos sociais específicos, sendo ausente uma legislação geral sobre as sociedades cooperativas. A partir desse momento o cooperativismo passa a ter uma formatação legal, orientada e conduzida a partir do Estado, mesmo nos períodos considerados democráticos. Esse viés de construção legal autoritária, avança até a lei 5764/71, que embora parcialmente 1 Em 21 de dezembro de 1844, no bairro de Rochdale, Manchester, Inglaterra, 27 tecelões e uma tecelã fundaram a “Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale”, reconhecida como a primeira cooperativa. 2 Adam Smith entre outros. 3 Karl Marx e Frederich Engels publicam o Manifesto Comunista em 1848. 4 Robert Ownen, entre outros. derrogada pela Constituição Federal de 1988, continua orientando a organização do cooperativismo brasileiro até os dias atuais. 3. O marco legal do cooperativismo de crédito A partir de 1964 o Sistema Financeiro Nacional passa por uma reestruturação. São desse período várias leis sobre a matéria5, cabendo destacar a Lei 4595/1964, que reforma o Sistema Financeiro Nacional, vindo a tratar as cooperativas de crédito como instituições financeiras, pelo que passam a ser reguladas, do ponto de vista de sua organização e funcionamento pelos normativos do Banco Central do Brasil - BACEN. De ora em diante, cabe ao BACEN, não só autorizar o funcionamento das cooperativas de crédito, mas principalmente manter o controle sobre estas, via de regra de forma mais rigorosa do que em relação as demais instituições financeiras, se consideradas do ponto de vista de sua grandeza financeira. Como sociedades de pessoas, que operam para um público restrito, ou seja, para seu quadro social, as cooperativas, e em especial as de crédito, tem como exigência, a definição de seu público-alvo, como condição para autorização de funcionamento e de sua manutenção. Assim, é possível dizer que concorrem para constituição de uma cooperativa de crédito, vários fatores, a saber: definição de público-alvo, área de atuação, viabilidade social e econômica, entre outros. A Constituição Federal de 1988, que é reconhecida por seu caráter democrático, como resultado do acúmulo de forças da sociedade civil, durante a após os governos militares (1964/1985), consolidou conquistas da sociedade, entre estas o reconhecimento à importância do cooperativismo6. 4. Os desafios do Sistema Cre$ol A experiência do Fundo de Crédito Rotativo, construída por diversas organizações sociais no final dos anos oitenta, no Sudoeste do Paraná7, e em especial seus limites, obrigaram as organizações envolvidas a refletir sobre a necessidade de construir novos arranjos institucionais para responder à ausência de crédito a esse segmento social. Além do pouco crédito disponível, havia ainda a dificuldade de acesso. A construção de um sistema de crédito rural cooperativo e solidário nasce em resposta a essa demanda. 4.1. a ruptura com alguns preconceitos e a definição do público-alvo 5 São desse mesmo ano a Lei da Correção Monetária (4357/1964), a Lei do Plano Nacional de Habitação (4380/1964), e do ano seguinte a Lei do Mercado de Capitais (4728/1965). 6 Art. 174, Parágrafo Segundo. A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. 7 O Fundo Rotativo de Crédito foi constituído em 1989, tendo à frente a Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural (responsável legal pela gestão dos recursos), oriundos da Katholische Zentralstelle für Entwicklungshilfe – MISEREOR. Atuaram também como gestores dos recursos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Central Única dos Trabalhadores, a Comissão Pastoral da Terra, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Associações de Cooperação Agrícola. Quando o Fundo Rotativo de Crédito deixou de atuar, o saldo dos recursos foi repassado às Cooperativas de Crédito do Sistema Cre$ol. De início as novas cooperativas são obrigadas a enfrentar o descrédito do cooperativismo, em especial pelo fracasso na região, de algumas experiências cooperativas na área da produção, as quais, à época, passavam por processos de liquidação8, consumindo não só patrimônio dos agricultores cooperados, mas acima de tudo a esperança e a confiança no instrumento cooperativo. Uma segunda ruptura estava em romper com a crença (equivocada), inclusive em pequenos agricultores, de que seriam incapazes para construção, organização e gestão de cooperativas, que fossem, não só sérias, mas democráticas e eficientes, principalmente tratando-se do crédito, uma área tida como de manuseio específico por parte de quem tinha algum “saber bancário”. Um terceiro desafio constitui-se na definição do público-alvo; esse implicou num processo de conhecimento e reconhecimento da própria identidade. As primeiras cooperativas constituídas não tinham ainda a caracterização do público-alvo como sendo os “agricultores familiares”9. A definição do público-alvo passou por um processo de formatação, sendo a categoria “agricultores familiares” definitivamente incorporada a partir da constituição da Cooperativa Central Base de Serviços Ltda10, ainda que já fosse presente na caracterização definida pelo BACEN para autorizar o funcionamento da primeira cooperativa do Sistema, e também já estivesse presente em programas governamentais como o PROVAP e o PRONAF11. 4.2. O marco legal “externo” – a “mão” do BACEN A subordinação às determinações do BACEN, se por um lado dá ares de respeitabilidade e credibilidade às nascentes instituições de crédito dos agricultores familiares, fazendo chegar até estes os serviços financeiros dos quais estavam excluídos pelo sistema bancário, por outro condicionam a formatação das novas cooperativas, trazendo para o cotidiano de dirigentes e cooperados a necessidade de passar a atuar dentro de novos padrões organizacionais, os quais muito diferem daqueles exigidos nas organizações onde estavam envolvidos (ONGs, sindicatos, associações). A opção política pela construção de um sistema de cooperativas solidárias, específico dos agricultores familiares, em rede, integrando pequenas cooperativas com atuação municipal, fazendo do local o espaço privilegiado para a organização da poupança e do investimento, levou a um enfrentamento com uma visão corrente da época, de que o 8 A Cooperativa Mista Francisco Beltrão Ltda – COMFRABEL, com sede em Francisco Beltrão e atuação em várias municípios da região, entrou em processo de liquidação no final dos anos oitenta. 9 A primeira cooperativa constituída, hoje Cooperativa de Crédito Rural com Interação Solidária de Dois Vizinhos, dirigiu sua convocação aos “trabalhadores rurais”; já a segunda cooperativa constituída – Cre$ol Marmeleiro, convocou “mini e pequenos trabalhadores rurais; a quarta cooperativa constituída – Cre$ol Laranjeiras do Sul, convocou “pequenos agricultores”. 10 A Cooperativa Central Base de Serviços Ltda – Cre$ol/BASER foi constituída em 22 de junho de 1996, com sede em Francisco Beltrão e a partir desse momento, passa a ser corrente o uso da expressão SISTEMA Cre$ol. 11 O PROVAP (1994), tem nova versão em 1995, transformado-se no atual PRONAF – Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar. cooperativismo só seria viável a partir de grandes cooperativas. Quando tudo orientava para processos de fusão das organizações cooperativas menores/locais em organizações regionais, o Sistema Cre$ol veio afirmar em sentido contrário, apostando num processo organizacional descentralizado e descentralizador. A afirmação maior vem no sentido de que o controle social é indispensável para a viabilidade de um sistema de crédito cooperativo, e esse só pode ser exercido em organizações democráticas e com amplo conhecimento entre o quadro social. Não bastam os controles técnicos, ainda que indispensáveis. A experiência tem demonstrado que a eficiência do sistema está diretamente relacionada a compreensão do quadro social em relação à sua cooperativa. Quanto mais qualificado o quadro social, maior e eficiência na gestão social do crédito. 4.3. O marco legal “interno” – a formatação de normativos internos As particularidades definidas pelos agricultores familiares na formatação do sistema: autonomia, organização em rede, público específico, mecanismos de controle para além dos controles técnicos, entre outros, demandaram de dirigentes e assessores a construção de normativos internos específicos, tendo como limites; de um lado, os normativos do BACEN, de outro as necessidades de formatação das novas condutas na administração do crédito cooperativo solidário. A síntese desse processo, vem sendo escrita na forma de Regimentos Internos, Resoluções, Circulares, orientadas a partir da realidade específica onde atuam as cooperativas. Trata-se de um processo de “aprender-fazendo” a partir dos próprios erros e acertos. Dirigentes, assessores e quadro social em geral, são desafiados a responder por diversas demandas específicas e concomitantes, cabendo destacar a necessidade de adequarse minimamente aos normativos do BACEN (condição para o funcionamento), mas sem submeter-se cegamente a estes, de forma a manter um questionamento constante, pois sempre se teve clareza de que os normativos da forma como estavam construídos não contemplavam por inteiro a realidade em que se estava atuando. Esse questionamento sério e constante, tem levado a que as autoridades monetárias, acolham determinadas demandas, flexibilizando ou modificando exigências, por conta de uma maior compreensão das necessidades do novo cooperativismo de crédito rural, não só do Sistema Cre$ol, mas das demais nascentes organizações do cooperativismo de crédito12. 5. Os desafios presentes O atual contexto do cooperativismo, e em especial do cooperativismo de crédito rural, em muito se difere daquele da constituição das primeiras cooperativas. Se naquela época o 12 Exemplo disso pode ser visto na Resolução 3321 do BACEN, de 30 de setembro de 2005, que dispondo sobre a constituição, a autorização para o funcionamento, o funcionamento, alterações estatutárias e demais exigências as Cooperativas de Crédito, incorporou parte das demandas construídas ao longo dos últimos anos, pelas Cooperativas de Crédito Rural. acesso ao crédito e aos serviços bancários constavam como prioridades, hoje se faz necessário ir além. É indagar da qualidade do crédito e dos serviços bancários, do desenvolvimento que o crédito possibilita em seus diferentes níveis, da relação do crédito com a produção 13, da melhoria da qualidade de vida do quadro de cooperados, entre outras questões. É preciso fazer com que as experiências produzidas, constituam-se em novas políticas públicas ou da sociedade, o que implica dizer, em novas formatações, em novos arranjos institucionais, que venham a permitir um tratamento diferenciado às organizações cooperativas. É preciso reconhecer que o cooperativismo, mesmo o de crédito, é o resultado de diversas experiências locais e regionais, pelo que a padronização, seja na constituição de cooperativas, seja nas exigências para o seu funcionamento, não pode ocorrer de forma linear em todo o país. Para além de um conjunto de requisitos mínimos, há de se ter assegurada a possibilidade de formatar normativos que contemplem as especificidades locais e regionais. Se faz necessário fazer compreender ao Estado, de que o cooperativismo de crédito, especialmente o rural solidário, não opera só crédito. Como instrumentos de desenvolvimento, local e sustentado, as organizações cooperativas, operam oportunidades, operam políticas de desenvolvimento, com menor custo e maior eficácia. 5.1 Na formatação do marco legal geral O atual marco legal geral do cooperativismo está orientado por três grandes fontes: uma matriz histórica, a Lei 5764 71, com suas limitações, já que decididamente não dá conta da diversidade de experiências cooperativas produzidas nos últimos anos; uma matriz principiológica, a Constituição de 1988, que como fonte de maior perenidade, deve orientar as mudanças em curso; e por fim o novo Código Civil, que passou a regular algumas questões específicas relativas às sociedades cooperativas14. Nesse contexto é que se inserem os esforços para a formatação de uma nova lei cooperativa, que possa contemplar a matriz principiológica inscrita na Constituição, sem desprezar o acúmulo histórico, mas aberta para acolher as novas realidades e experiências que vêm sendo construídas. As recentes organizações cooperativas, ligadas ao cooperativismo de crédito da agricultura familiar e economia solidária, vêm gestionando a formatação de um novo marco legal geral para o cooperativismo15. 6.2. Na formatação do marco legal do cooperativismo de crédito Para além das fontes legais acima citadas, o cooperativismo de crédito está vinculado ainda a outras duas fontes: a Lei 4595/1964, como norma geral regulatória de todo o sistema 13 Como resposta a esses desafios, o Sistema Cre$ol mantém estreita relação com a organização do cooperativismo de produção, com destaque para a cadeia produtiva do leite, organizada no Sistema SISCLAF. 14 O Código Civil – Lei 10.406/2002, trata da “Sociedade Cooperativa” em seus artigos 1093 a 1096. 15 Nesse sentido os esforços da ANCOSOL – Associação Nacional do Cooperativismo de Crédito da Economia Familiar e Solidária (constituída em 2004), e da UNICAFES – União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (constituída em junho de 2005). financeiro; e o poder normativo do BACEN, que na forma de Resoluções e outros instrumentos, atua de forma direta sobre as organizações do cooperativismo de crédito. Esse espaço de regulação que pode ser situado entre o marco legal geral e o marco legal interno de cada cooperativa ou sistema, historicamente teve domínio quase que absoluto do BACEN. Experiências como a do Sistema Cre$ol, tanto em seus aspectos positivos quanto negativos, têm permitido que esse espaço de construção normativa intermediária passe a comportar, de forma sistematizada, as respostas construídas aos desafios criados pelos novos atores sociais que demandam e operam crédito, para além de seu aspecto financeiro. As recentes regulações do BACEN sobre cooperativas de crédito, já vêm contemplando parte das demandas específicas construídas pelos Sistemas, mas isso ainda é pouco em relação ao horizonte que se abre. O marco legal do cooperativismo de crédito precisa permitir que as próprias organizações, na medida que atendam critérios gerais, possam formatar seu próprio marco legal, que dadas as realidades específicas, vai além do crédito. O crédito, é apenas uma das faces do cooperativismo de crédito; tendo como outras, o desenvolvimento local e sustentado, a melhoria da qualidade de vida dos cooperados, a contribuição para a criação de outros atores sociais, entre outras. Essa “matriz aberta” é que permite fazer do crédito um meio e não um fim em si mesmo. Esse marco legal precisa ser construído, a fim de permitir o efetivo crescimento do cooperativismo de crédito no Brasil. 5.3. Nos aspectos internos das organizações cooperativas O cotidiano da construção do cooperativismo de crédito demanda diuturnamente por novos normativos, que só têm razão de ser se construídos a partir dos erros e acertos diários. Esse processo de construção democrática é permanente. A mera sistematização de procedimentos, ajuda, mas não é suficiente, pois enquanto sociedades de pessoas que atuam a partir de determinado contexto, que tem um acúmulo de capital social próprio, as sociedades cooperativas sintetizam essas realidades. A matriz principiológica e o capital social daquele contexto determinado, é que responderão às demandas específicas. Assim, a construção do marco legal interno das organizações cooperativas, especialmente das cooperativas de crédito rural com interação solidária, é hoje o maior desafio, pois implica em transformar em norma de conduta da organização, as experiências do quadro social. Tudo, sem perder de vista o caráter solidário do cooperativismo, sua autonomia, e sua razão maior de ser, o homem em seu contexto. 6. Conclusão A experiência das cooperativas de crédito rural com interação solidária do Sistema Cre$ol, constitui um marco no cooperativismo de crédito no Brasil, por sua história, por seus desafios, mas principalmente pela capacidade de construir respostas, que vão além do quadro social, além do poder público, além do próprio cooperativismo. Desafios existem e são muitos, mas não são maiores do que a capacidade de construir respostas, de forma a fazer desse instrumento, um efetivo instrumento de transformação social. Esse é o legado, que hoje, em seus primeiros dez anos, já confere o Sistema Cre$ol de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária, ao COOPERATIVISMO. Francisco Beltrão, outubro de 2005. ********************************* Arni Deonildo Hall, advogado Assessor Jurídico do Sistema Cre$ol