Entrevista: Mercedes Carvalho
Matemática na Educação Infantil: é possível
A educadora avalia a formação de nossos professores para o ensino da Matemática e os
caminhos para trabalhar a disciplina na Educação Infantil.
“Nas avaliações oficiais a Matemática é a disciplina que apresenta os mais baixos indicadores
de aproveitamento pelos alunos, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio.
Entretanto, pesquisas em Educação e Educação Matemática têm sinalizado que as crianças
pequenas têm condições de desenvolver diferentes processos do pensamento matemático.
Elas realizam processos de contagem interessantes, fazem inferências, buscam resolver
problemas com base em estratégias não convencionais, observam e descrevem formas,
estabelecem formas de comunicação das mais variadas, dentre outros processos.” O trecho
faz parte da apresentação do livro Matemática e Educação Infantil – Investigações e
possibilidade de práticas pedagógicas
, lançamento da
Editora Vozes, organizado por Mercedes Carvalho e Marcelo Almeida Bairral.
Mercedes é doutora em Educação Matemática e mestra em Educação: Currículo pela PUC-SP,
além de professora-adjunta II da Universidade Federal de Alagoas e líder do Grupo de
Pesquisa em Educação Matemática (Gpem). Nesta entrevista à Direcional Educador, ela
avalia justamente o trabalho matemático com crianças pequenas e a necessária formação dos
professores que atuam nesse segmento da educação.
A educadora frisa que alguns professores demonstram resistência em trabalhar com problemas
matemáticos com crianças da Educação Infantil por elas não estarem ainda alfabetizadas e
não conseguirem ler os enunciados dos problemas. “Propor problemas matemáticos favorece o
processo de contagem e o desenvolvimento do raciocínio matemático. Não há motivos para
que as crianças primeiro aprendam a ler, a escrever e as operações aritméticas, para depois
resolverem problemas matemáticos. Quanto mais problemas elas resolverem, maior será a
possibilidade de compreensão dos conceitos matemáticos”, afirma Mercedes no livro.
Acompanhe a seguir as ideias de Mercedes Carvalho.
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Entrevista: Mercedes Carvalho
DIRECIONAL EDUCADOR - Como professora universitária, como a senhora percebe as
principais carências na formação de professores em relação ao ensino da Matemática,
especialmente para a Educação Infantil?
MERCEDES CARVALHO - O que venho percebendo é que os alunos que ingressam no curso
de Pedagogia, mesmo que durante o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio tenham
estudado matemática com um professor licenciado em Matemática, apresentam fragilidade em
seus conhecimentos elementares acerca dos conteúdos matemáticos. Um exemplo: quando
desenvolvo o conceito de multiplicação nas minhas aulas do curso de Pedagogia, apresento
atividades acerca do pensamento combinatório (combinar roupinhas, brinquedos, calcular
quantas combinações diferentes podem fazer, etc.) trabalhados na Educação Infantil pois a
combinação é uma das ideias da multiplicação. Entretanto, a maioria dos alunos, futuros
pedagogos, não relaciona o conteúdo matemático combinação com o conteúdo probabilidades,
tal como eles estudaram no Ensino Médio.
Há relação entre alfabetização e ensino da Matemática?
Sim, inclusive há estudos sobre a alfabetização matemática, porém não são muitos. Há
pesquisadores que utilizam o termo “numeramento” e outros “alfabetização matemática”,
pessoalmente prefiro alfabetização matemática porque considero mais abrangente. Entendo
alfabetização matemática como um processo em que vamos nos apropriando dos conceitos
aritméticos, geométricos, algébricos ao longo de nossa escolarização básica e o termo
numeramento nos dá a ideia de se trabalhar apenas com os números. Como é possível
perceber essa questão é uma discussão que também permeia as pesquisas sobre
alfabetização e letramento. Entretanto, aprender sobre os números é mais complexo porque
para as crianças ao se apropriarem dos números deverão entender a regularidade do Sistema
de Numeração Decimal, mesmo que trabalhem somente com 10 símbolos enquanto que com o
alfabeto trabalham com 27 símbolos. Vejamos: o primeiro conjunto numérico com o qual as
crianças irão trabalhar é o conjunto dos Números Naturais, que são positivos e só resolvem os
problemas que envolvem contagem de objetos discretos. O SND tem implícita a operação de
adição “+1” (1 + 1 = 2, 2 + 1 = 3, 3 + 1 = 4....) e a operação de multiplicação (1 unidade x 10
unidades = 10 unidades que é igual a 1 dezena, 10 unidades x 10 unidades = 100 unidades
que é igual a 10 dezenas ou 1 centena) o que implica nos valores absolutos e relativos dos
números naturais, ou seja, 123 é diferente de 312, que é diferente de 132, 231, 213. Já o
alfabeto tem 27 letras que compõem as sílabas, as palavras, as frases, os textos, mas o som
da vogal a, por exemplo, é sempre o mesmo, independente da consoante que compõe a
sílaba. Porém, as crianças podem se apropriar do código numérico e alfabético,
concomitantemente, inclusive a resolução de problemas favorece aos alunos desenvolverem a
leitura, a escrita e o pensamento matemático, já que os enunciados de problemas são um tipo
de texto e é comum as crianças durante seu processo de alfabetização misturarem números e
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Entrevista: Mercedes Carvalho
letras em seus registros.
A senhora considera que há uma prevalência da preocupação com a alfabetização,
muitas vezes precoce, e do trabalho com a linguagem escrita em detrimento do ensino
da Matemática, na Educação Infantil?
Considero que há prevalência na alfabetização. Porém, não considero que seja precoce pois
as crianças de hoje pertencem a uma realidade muito diferente da época dos seus pais e de
seus professores. Elas estão expostas a inúmeras situações em que decifram certos códigos
com mais facilidade. Ainda há no imaginário dos professores que se o aluno não estiver
alfabetizado, não saberá resolver problemas ou trabalhar com a localização, com a linha do
tempo ou fazer uma experiência. Em outras palavras, primeiro alfabetizar e depois trabalhar
outras áreas do conhecimento. Infelizmente ainda há prevalência da alfabetização em
detrimento de outras áreas do conhecimento e assim a alfabetização se torna cansativa e
pouco desafiante para as crianças. Sabemos que há diferentes tipos de textos, como:
enunciados de problemas, informações de localização, receita de um bolo, contidos em
diferentes portadores textuais com os quais as crianças podem entrar em contato e,
consequentemente, favorecer seu processo de leitura e escrita.
Por que para os professores da Educação Infantil é difícil trabalhar com problemas com
suas crianças pequenas?
Justamente porque os professores pensam que se a criança não souber ler não vai entender o
enunciado e se não entender enunciado não vai saber resolver o problema. Devemos
considerar que o enunciado do problema é um tipo de texto e para tanto deve ser interpretado.
Em meus livros trabalho várias estratégias de resolução de problemas e em uma delas o
enunciado do problema é um recurso para a construção de um texto que propicia os processos
de leitura, escrita e interpretação dos enunciados dos problemas matemáticos.
Em crianças não alfabetizadas como é feito o trabalho de registro da resolução de
problemas?
É feito por meio dos desenhos, o que chamamos de registros iconográficos. É a forma como as
crianças elaboram os registros de suas soluções para os problemas que lhes são
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Entrevista: Mercedes Carvalho
apresentados. No meu livro Números – conceitos e atividades, explico o trabalho de Hughes
(1986) sobre os registros de crianças de 3 a 7 anos sobre as quantidades entre 1 e 9
elementos que ele classificou em quatro fases. Esse trabalho ajuda a entender os registros das
crianças para os problemas matemáticos. Crianças muito pequenas tendem a fazer rabiscos
para resolver o problema e geralmente somente elas entendem a solução. O professor
costuma perguntar como a criança resolveu o problema e escrevem a solução dada por ela.
Em uma segunda fase, o desenho da criança vai ficando mais sofisticado e ela costuma
representar com bolinhas e/ou quadradinhos as quantidades presentes no enunciado e, via de
regra, consegue escrever a quantidade correspondente. Quando seu processo de leitura e
escrita dos números está mais elaborado, ela muitas vezes utiliza símbolos como risquinhos
para representar as quantidades, porém, já está registrando operações simples até que
abandone os desenhos e consiga registrar as soluções por meio dos algoritmos.
A partir de que idade as crianças podem e devem aprender a contar?
Penso que não há uma idade definida em que se aprende a contar, porém alguns professores
entendem que se seus alunos falam a sequência numérica corretamente eles sabem contar, o
que pode não ser verdadeiro. O processo de contagem implica em adicionar 1, “+1” (iteração
de um) e fazer a correspondência termo a termo, cada objeto contado corresponde a uma
palavra número. É uma aprendizagem que demanda tempo para a criança compreender. Via
de regra, são privilegiadas atividades em que se desenvolve a função ordinal do número em
detrimento da função cardinal. Em consequência elas aprendem a recitar a sequência
numérica, criando-se a ilusão que elas sabem contar. Aprender a contar é importante para a
criança compreender o conceito de adição, favorecer a compreensão da iteração de 1 (+ 1),
das ordens numéricas (centena , dezena, unidade) e das classes numéricas (simples, milhar,
milhão...). Compreender essas regularidades é fundamental para que as crianças realizem as
operações aritméticas nos anos posteriores.
Como utilizar os jogos e as brincadeiras no ensino da Matemática na Educação Infantil?
Pode dar alguns exemplos?
Jogos e brincadeiras podem ser usados para desenvolver qualquer área do conhecimento. Há
uma corrente de pesquisadores que advogam que as brincadeiras e os jogos devem acontecer
na escola sem a preocupação de ensinar outra área do conhecimento. Penso que há
momentos em que as crianças devem se reunir para brincar e jogar simplesmente pelo prazer
de brincar e jogar e há outros momentos em que as brincadeiras e jogos podem favorecer o
conhecimento matemático. Um exemplo: se o professor está desenvolvendo conteúdo
numérico, ele pode propor às crianças jogos que envolvam a contagem dos pontos (quantos
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Entrevista: Mercedes Carvalho
pontos cada um fez, quem fez mais ou menos, qual a diferença...), se estiver trabalhando
geometria, ele pode trabalhar com movimento e sombras (como é a forma da sombra? Muda o
seu tamanho?...). Neste exemplo essa brincadeira trabalha com conceitos como: posição,
tempo, forma, referencial, projeção (Bairral, 2012). São muitas as possibilidades existentes e
por isso o professor precisa planejar suas aulas para ter claro quais são seus objetivos com
determinados jogos e brincadeiras.
Da mesma forma, a literatura infantil pode ser utilizada com objetivos matemáticos?
A literatura infantil pode contribuir para o trabalho de resolução de problemas, porém se deve
tomar cuidado para não matematizar a literatura infantil. Regina Grando e Kátia Moreira
apresentam no livro Matemática e Educação Infantil um capítulo em que desenvolveram uma
pesquisa trabalhando com literatura infantil e gibis. Por meio da leitura das histórias infantis
elas criaram um ambiente propício para que as crianças possam resolver os problemas
presentes nas histórias narradas. Num primeiro momento, as crianças conversaram sobre as
várias possibilidades de resolver o problema e ao término da atividade elas fazem o registro da
solução que apresentaram para o problema. Esse diálogo é importante para que as crianças
observem que um mesmo problema pode ter várias soluções, porém, nem todas são
adequadas. Nesse tipo de atividade, as crianças desenvolvem a linguagem e, também, o
raciocínio matemático.
É possível trabalhar com o pensamento geométrico na Educação Infantil?
Sim, podemos trabalhar o pensamento geométrico nesse segmento educacional. Marcelo
Bairral, em seu texto “O desenvolvimento do pensamento geométrico na Educação Infantil –
algumas perspectivas curriculares”, comenta que o estudo sobre geometria no currículo
brasileiro enfatiza a geometria espacial com atividades que privilegiam três tipos de espaço: o
topológico (noções de interior/exterior), o projetivo (no qual as propriedades e os elementos
variantes são considerados) e o euclidiano (atenção à métrica). Segundo o autor, tais
atividades contemplam um espaço manuseado e controlável e, atualmente, há uma corrente
que defende o trabalho com geometria com noções de orientação e localização, que favorece,
entre outros aspectos, o desenvolvimento da orientação no espaço em três dimensões: 1) a
possibilidade de estabelecer e comunicar as relações espaciais entre os objetos, 2) realizar
explorações qualitativas entre formas variadas de objetos, 3) aprimorar o senso da medida.
Para o pesquisador trabalhar a geometria nessa perspectiva oferece para a criança a
possibilidade de trabalhar a matemática escolar em conjunto com o mundo real.
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Entrevista: Mercedes Carvalho
Por Luiza Oliva
Contatos com Mercedes Carvalho: [email protected]
LEGENDAS:
“A resolução de problemas favorece aos alunos desenvolverem a leitura, a escrita e o
pensamento matemático, já que os enunciados são um tipo de texto.”
“A literatura infantil pode contribuir para o trabalho de resolução de problemas, porém
se deve tomar cuidado para não matematizar a literatura infantil.”
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