Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul
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Nota Técnica da Assessoria Jurídica do CREMERS n.º 03/2014
(Aprovado pela Diretoria em 13 de agosto de 2014)
Assunto: Direito dos médicos de atenderem e internarem seus pacientes nas cidades em que
haja um único hospital, mesmo que esse se destine ao atendimento exclusivo de pacientes
pelo Sistema Único de Saúde.
O Dr. Fernando Weber Matos, Presidente do CREMERS, consulta a
Assessoria Jurídica sobre o que vem ocorrendo no interior do Estado do Rio Grande
do Sul, nas cidades em que há um único hospital destinado ao atendimento
exclusivo de pacientes pelo Sistema Único de Saúde. Pergunta se essa medida não
representa
uma
inconstitucionalidade
e
ilegalidade.
Fundamenta
seu
questionamento no direito dos médicos de atender de forma particular ou por
convênios; mas, sobretudo, nos riscos a que estariam expostos os pacientes: seja
porque impõe a esses a necessidade de se deslocarem para outros municípios para
receber atendimento médico que considerem adequado; seja em razão do indevido
embaraço ao direito de escolha do médico de sua confiança.
O Código de Ética Médica vigente – Resolução CFM n.º 1.931/2009 –
disciplina como DIREITO FUNDAMENTAL dos médicos “Internar e assistir seus
pacientes em hospitais privados e públicos com caráter filantrópico ou não, ainda
que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas aprovadas
pelo Conselho Regional de Medicina da pertinente jurisdição”, previsão normativa
que já constava na Resolução CFM n.º 1.231/86.
Este princípio fundamental na esfera ética possui sede constitucional,
por dois fundamentos básicos: primeiramente, o de proteção à saúde e à vida dos
pacientes, como consequência do fundamento da dignidade da pessoa humana;
secundariamente, como garantia à autonomia profissional.
O direito à saúde, pressuposto indispensável dos igualmente direitos
fundamentais à vida e à existência digna, representa um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, sendo considerado pela legislação, jurisprudência e
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doutrina, uma obrigação do Estado e uma garantia de todo o cidadão. O
ordenamento constitucional é claro ao enfatizar o direito à vida e à saúde como
valores primordiais, sendo exemplos as seguintes normas:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de
iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao
Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e,
também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais;
A esse respeito, chama-se atenção a um julgado do Supremo Tribunal
Federal, no qual o ilustre Ministro Celso de Mello sintetizou a importância do direito
público subjetivo à saúde:
“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica
indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição
da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja
integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe
formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a
garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência
farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como
direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência
constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a
esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa
brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da
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população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave
comportamento inconstitucional. (...)” (RE 393175 AgR / RS)
Portanto, sob este enfoque constitucional, como corolário lógico do
dever inerente ao exercício da profissão médica que é a saúde do ser humano, é
que o Código de Ética Médica assegura aos médicos o direito de internar e assistir
seus pacientes em hospitais privados e públicos com caráter filantrópico ou não,
ainda que não façam parte do seu corpo clínico. Se assim não fosse, se estaria
desrespeitando os três primeiros princípios fundamentais do Código de Ética
Médica:
I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e
da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma
natureza.
II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano,
em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de
sua capacidade profissional.
III - Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico
necessita ter boas condições de trabalho e ser remunerado de
forma justa.
É importante não perder de vista que os serviços de saúde são
considerados constitucionalmente como de RELEVÂNCIA PÚBLICA; portanto, não
importa que os serviços sejam prestados em hospitais públicos ou privados. O alvo
de toda atenção do médico é a saúde do paciente e o Estado deve empreender
ações e serviços para sua integral promoção, proteção e recuperação, daí
decorrendo o direito do paciente de ser atendido em qualquer hospital, mesmo que
o médico que lhe preste assistência não integre o Corpo Clínico da respectiva
instituição.
Como segundo fundamento do direito fundamental dos médicos de
internar e assistir seus pacientes em hospitais privados ou públicos está a
autonomia do profissional médico, princípio este com origem no próprio direito do
paciente de receber adequado serviço de saúde por parte do Estado, como também
no direito constitucional disposto no art. 5º, inciso XIII, que disciplina ser “livre o
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exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer”.
Estabelecidas essas premissas, volta-se à situação objeto da presente
Nota Técnica, qual seja: hospitais localizados no interior do Estado, nos quais há
apenas um único estabelecimento, destinado ao atendimento exclusivo de pacientes
pelo Sistema Único de Saúde.
Nesses casos - em vertiginosa expansão nos municípios gaúchos – é
mais do que evidente que o direito dos médicos da respectiva cidade e região de
assistir e internar seus pacientes deve ser garantido, sob pena de não apenas violar
a autonomia profissional e o direito de exercício à profissão de relevância pública;
mas, sobretudo, de colocar em iminente risco a saúde e a vida dos pacientes.
E este direito deve ser assegurado principalmente no caso de
hospitais que, por opção política – muitas vezes sem qualquer consulta aos médicos
que atuam na região, e, sobretudo, à comunidade atendida –, sejam destinados ao
atendimento exclusivo do Sistema Único de Saúde.
É intuitivo que há pacientes no respectivo município e região que
preferem não ser atendidos pelo SUS, mas através de convênios ou mesmo de
forma particular, pelos mais diversos motivos, como ser atendido pelo médico de
sua confiança, para citar apenas um. Nesta hipótese, é uma afronta constitucional
exigir que este paciente se desloque para uma cidade localizada em um centro
maior para receber o atendimento que julgue adequado.
E esta medida, se levada a efeito, põe em claro risco a saúde destes
pacientes, pelo simples fato de impor-lhes a necessidade de deslocamento para
receber atendimento, aumentando o tempo da intervenção médica. E ninguém há
de discutir que o tempo na Medicina é fator fundamental.
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Entendemos como inconstitucional vetar atendimentos particulares ou
por convênios em cidades que disponham de apenas um único hospital, porque tal
medida representa o aniquilamento do direito à vida e à saúde, assim como do
fundamento da dignidade da pessoa humana. Representa a violação de todo
sistema constitucional protetivo da saúde, caracterizando-se o que o insigne
ministro Celso de Mello chamou de “comportamento inconstitucional” do Estado.
Importantíssimo salientar que a Constituição Federal, em seu art. 199,
garante que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, assegurando o direito
de participação complementar das instituições privadas e das entidades de Saúde
Suplementar no Sistema Único de Saúde.
Por estes motivos, resta claro que a medida de obstaculizar o
atendimento médico pela via particular ou por convênios nas situações em que há
um único hospital na cidade destinado ao atendimento exclusivo do SUS,
encontrará reações dos profissionais médicos destes municípios frente à conduta
inconstitucional do Poder Público de exigir o seu credenciamento ou sua
contratação pelo hospital para atenderem exclusivamente pelo SUS; ou, a diáspora
destes profissionais, à procura de outros locais para iniciar uma nova vida
profissional, o que parece até surreal nos dias atuais, quando a tecnologia e o
acesso a cada vez mais avançados recursos diagnósticos e terapêuticos vem se
descentralizando exponencialmente. Tal situação, sem sombra de dúvidas, constitui
afronta direta aos direitos fundamentais à autonomia profissional e ao livre exercício
da profissão, valores protegidos ética e constitucionalmente.
A questão, a propósito, não é nova na jurisprudência. Basta ver os
seguintes precedentes do Tribunal de Justiça, nos quais se garantiu aos médicos o
direito de assistirem e internarem seus pacientes, independente de pertencerem ao
Corpo Clínico da instituição. A despeito de a situação não ser exatamente a tratada
nesta Nota Técnica, a lógica é absolutamente a mesma:
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APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO MANEJADO
PELO PREFEITO MUNICIPAL. FIGURANDO NA AÇÃO DE SEGURANÇA O
CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL, COMO AUTORIDADE
IMPETRADA, DETÉM LEGITIMIDADE RECURSAL, PORQUE TAMBÉM É O
REPRESENTANTE LEGAL DO MUNICÍPIO (ART. 12, II, DO CPC). MÉDICO
QUE NÃO INTEGRA O CORPO CLÍNICO IMPEDIDO DE INTERNAR SEUS
PACIENTES. ÚNICO HOSPITAL DO MUNICÍPIO. LIBERDADE DE GESTÃO
ADMINISTRATIVA NÃO SE SOBREPÕE AO DIREITO DO PACIENTE DE
ACESSO À SAÚDE E AO DIREITO AO TRABALHO. DISPOSIÇÃO DO
ARTIGO 25 DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E ARTIGO 196 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CONHECERAM DO RECURSO DE
APELAÇÃO. EM REEXAME NECESSÁRIO, CONFIRMARAM A
SENTENÇA. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70010132579, Vigésima
Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José
Moesch, Julgado em 22/12/2004)
MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR DEFERIDA. MÉDICO QUE NÃO
INTEGRA O CORPO CLÍNICO IMPEDIDO DE INTERNAR SEUS
PACIENTES. ÚNICO HOSPITAL DO MUNICÍPIO. LIBERDADE DE GESTÃO
ADMINISTRATIVA NÃO SE SOBREPÕE AO DIREITO DO PACIENTE DE
ACESSO À SAÚDE E AO DIREITO AO TRABALHO. DISPOSIÇÃO DO
ARTIGO 25 DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E ARTIGO 196 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AGRAVO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Agravo
de Instrumento Nº 70007923121, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Rubem Duarte, Julgado em 05/05/2004)
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. ESCOLHA DO
MÉDICO. DIREITO À SAÚDE. CORPO CLÍNICO. Aqui prevalece acima de
tudo o interesse coletivo, o direito à saúde, garantido pela Constituição
Federal (art. 196), que se projeta no direito do profissional da medicina de
exercer sua profissão nos estabelecimentos hospitalares disponíveis, quando
necessário e por opção do paciente, independentemente de pertencerem, ou
não, ao seu Corpo Clinico, desde que respeitadas as normas internas da
entidade. Nesse sentido o art. 25 do Código de Ética Médica. Agravo provido.
(Agravo de Instrumento Nº 70002645497, Décima Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Luiz Ary Vessini de Lima, Julgado em 23/08/2001)
Concluímos, portanto, que na situação ora enfrentada, prevalece o
direito à saúde do ser humano e da coletividade garantido pela Constituição Federal
(art. 196), e que se projeta no direito do profissional da medicina de exercer sua
profissão nos estabelecimentos hospitalares disponíveis, quando necessário e por
opção do paciente, independentemente de pertencerem, ou não, ao seu Corpo
Clinico.
Concluímos, também, que a medida de vetar o atendimento particular
ou por convênios por parte de médicos na situação em que haja um único hospital
na cidade, destinado ao atendimento exclusivo do SUS, representa afronta à
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autonomia profissional e ao livre exercício da profissão, valores protegidos ética e
constitucionalmente, além de, sobretudo, pôr em claro risco a saúde de pacientes.
Nas situações em que este embaraço for verificado, sugerimos que
sejam adotadas por parte dos prejudicados (pacientes, familiares e médicos)
medidas judiciais tendentes a reparar a ilegalidade verificada, podendo as razões
jurídicas ora expostas ser adotadas como fundamento da ação a ser proposta. A
propósito, a legitimidade maior – sem prejuízo do direito dos médicos – para acionar
o Poder Judiciário é dos próprios pacientes, eis que os principais bens jurídicos a
serem tutelados são a vida e a saúde.
Ressalta-se, ainda, que não só os médicos estão submetidos à
fiscalização dos Conselhos Regionais de Medicina, e, por conseqüência, às
prescrições do Código de Ética Médica. O artigo 12 do Decreto nº 44.045, de 19 de
julho de 1958, que regulamenta a Lei nº 3.268 de 30 de setembro de 1957, deixa
claro que as unidades de saúde, públicas ou particulares, estão sob a ação
disciplinar dos Conselhos Regionais de Medicina. Nessa linha, o encaminhamento
das demandas judiciais não exclui que os casos concretos sejam noticiados a esta
Autarquia pelos médicos, com observância ao inciso IV do Preâmbulo do Código de
Ética Médica, ou seja, com discrição e fundamento, bem como pelos pacientes ou
familiares destes, a fim de possibilitar, no uso das atribuições conferidas pela
Resolução CFM nº 2.056/2013, a fiscalização do CREMERS às pessoas jurídicas de
prestação de assistência médica, cuja regularidade perante esta Autarquia
pressupõe a observância das normas e princípios éticos.
Porto Alegre, 11 de agosto de 2014.
Guilherme Brust Brun
Michele Souza Milanesi
Juliano Lauer
Advogado do CREMERS
OAB/RS 47.120
Advogada do CREMERS
OAB/RS 92.965
Advogado do CREMERS
OAB/RS 090479A
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