Olhar De Professor UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA REITOR VICE-REITOR CHEFE DO DEPARTAMENTO DE MÉTODOS E TÉCNICAS DE ENSINO COORDENAÇÃO EDITORIAL REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA REVISÃO DE LÍNGUA INGLESA NORMALIZAÇÃO EDITORAÇÃO ELETRÔNICA CRIAÇÃO DA CAPA COLABORAÇÃO João Carlos Gomes Carlos Luciano Sant’ana Vargas Hermínia Regina Bugeste Marinho Beatriz Gomes Nadal Clícia Bührer Martins Hein Leonard Bowles Thaisa de Andrade Maria Luzia Fernandes Bertholino Cláudia Gomes Fonseca Álvaro Fonseca Jr. Hermínia Regina Bugeste Marinho CONSELHO EDITORIAL Amauri Ap. B. de Oliveira (UEM) Antônio Chizzotti (PUC-SP) Berenice Corsetti (UNISINOS) Carlos Roberto Jamil Cury (PUC-MG) Célia Finck Brandt (UEPG) Dionísio Burak (UNICENTRO) Elisabete Maria Garbin (UFRGS) Elisabete M. A. Pereira (UNICAMP) Emília Freitas de Lima (UFSCar) Georfrávia Montoza Alvarenga (UEL) Ilma Passos Alencastro Veiga (UnB) Ivani Catarina Arantes Fazenda (PUC-SP) Jaime Giolo (UPF) Jefferson Mainardes (UEPG) José Carlos Libâneo (UCG) José Luis Sanfelice (UNICAMP) Júlio Emílio Diniz Pereira (UFMG) Leide Mara Schmidt (UEPG) Lucinea Aparecida de Rezende (UEL) Maria Antônia de Souza (UEPG) Maria da Graça N. Mizukami (UFsCar) Maria Eulina Pessoa de Carvalho (UFPB) Maria Isabel Moura Nascimento (UEPG) Maria José Dozza Subtil (UEPG) Mariná Holzmann Ribas (UEPG) Marlene Araujo de Carvalho (FSA/UFPI) Myrtes Alonso (PUC-SP) Nídia Nacib Pontuschka (USP) Núria Hanglei Cacete (USP) Oswaldo Alonso Rays (UPF) Pura Lúcia Oliver Martins (PUC-PR) Rejane Aurora Mion (UEPG) Rosilda Baron Martins (CESCAGE) Silvia Christina Madrid Finck (UEPG) Teresa Jussara Luporini (UNICS) Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) Vera M. Nigro Souza Placco (PUC-SP) Wanda Pacheco Santos (UNICENTRO) Yoshie Ussami Ferrari Leite (UNESP) CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL Angel I. Pérez-Gómez (Universidad de Málaga) Glória Ladson-Billings (University of Madison) Idália Sá-Chaves (Universidade de Aveiro) Ingrid Lunt (University of London) Kenneth Zeichner (University of Madison) Michael Reiss (University of London) CONSULTORES AD HOC NESTA EDIÇÃO Aline Cacilda Koteski Emílio (UEPG) Anete Abramowicz (UFSCAR) Marina Graziela Feldmann (PUC-SP) Neusi Ap. Navas Berbel (UEL) SP) ISSN 1518-5648 Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Olhar De Professor Ficha catalográfica elaborada na UEPG/BICEN Olhar de professor. Universidade Estadual de Ponta Grossa. Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino. Ponta Grossa, Pr., v.1, n.1, jan./jul. (1998-). Semestral Anual de 1998-2003; Semestral 2004ISSN 1518-5648 1.Educação – periódicos.I.Universidade Estadual de Ponta Grossa. Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino. CDD 370 Os textos publicados na revista são de inteira responsabilidade de seus autores. Tiragem 700 exemplares REVISTA INDEXADA EM CIBEC (Centro de Informação e Biblioteca em Educação), do INEP EDUBASE (Base Nacional de Artigos de Periódicos, Eventos e Relatórios da Área da Educação), da UNICAMP CLASE (Base de Datos Bibliográfica de Revistas de Ciencias Sociales y Humanidades), da Universidad Nacional Autônoma de México INFORMAÇÕES / DISTRIBUIÇÃO / PERMUTAS Revista Olhar de Professor Universidade Estadual de Ponta Grossa Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Praça Santos Andrade, no 1 Bloco B, Sala 104 84010-919 – Ponta Grossa – Paraná Fone/fax: (42) 3220-3344 Email: [email protected] http://www.uepg.br/olhardeprofessor Email permutas: intercâ[email protected] VENDAS Editora e Livrarias UEPG Fone/fax: (42) 3220-3744 Email: [email protected] http://www.uepg.br/editora Pede-se permuta Exchanged Requested 2007 SUMÁRIO Apresentação................................................................. 09 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo José Carlos Libâneo...................................................... 11 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia: uma expressão da epistemologia da prática Marli de Fátima Rodrigues e Acácia Zeneida Kuenzer......... 35 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información: avances y temas pendientes Carlos Marcelo Garcia...................................................... 63 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores Maria Elizabete Souza Couto e Emília Freitas de Lima......... 91 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações no processo de desenvolvimento profissional Ademar da Silva e Denise M. Margonari ........................ 113 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental (terceiro e quarto ciclos): análise do cotidiano do professor e perspectivas de mudanças no ensino Silvia Christina Madrid Finck........................................ 127 Informática na educação: vantagens e empecilhos Cristine Isabel Simão e Mariná Holzmann Ribas.................. 147 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente e o ofício do aluno no contexto atual Wanderson Ferreira Alvez.............................................. 159 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente Celia Maria Haas.......................................................... 179 A família do educando com dificuldade de aprendizagem: um estudo de representações sociais Fátima Aparecida Maglio Colus e Rita de Cássia Pereira Lima ........................................................................... 195 Competência para fazer face à violência: definindo a competência inter-relacional do(a) educador(a) no manejo da violência na escola Fernando Cézar Bezerra de Andrade.................................. 209 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto Thomas Massao Fairchild............................................... 231 SUMMARY Presentation................................................................. 09 Pedagogy course in question: interview with José Carlos Libâneo José Carlos Libâneo...................................................... 11 Curricular guidelines for the Pedagogy Course: an expression of practice epistemology Marli de Fátima Rodrigues and Acácia Zeneida Kuenzer....... 35 Teacher education in the knowledge and information society: advancements and pending themes Carlos Marcelo Garcia...................................................... 63 Learning to teach in a distance course: Teacher´s opinions Maria Elizabete Souza Couto and Emília Freitas de Lima...... 91 Beginning in service English Language Teachers: conflicts and restructuring in the process of professional development Ademar da Silva and Denise M. Margonari ........................ 113 Physical Education and Sports in Public Schools in the third and fourth cycles of basic education: analysis of teacher’s routine and perspectives for changes in teaching Silvia Christina Madrid Finck........................................ 127 Computer science in education: advantages and difficulties Cristine Isabel Simão and Mariná Holzmann Ribas............. 147 When teaching is not the most important: reflections about teachers´ work and students’ role in the current context Wanderson Ferreira Alvez.............................................. 159 Interdisciplinarity: a new teaching approach Celia Maria Haas.......................................................... 179 The family of the student with learning difficulties: a study of social representations Fátima Aparecida Maglio Colus e Rita de Cássia Pereira Lima ........................................................................... 195 Competence to face violence: a definition of the educator’s interrelational competence in dealing with violence in schools Fernando Cézar Bezerra de Andrade.................................. 209 Two-step evaluation in a text-centered class Thomas Massao Fairchild............................................... 231 APRESENTAÇÃO A Olhar de Professor vem conquistando muitos avanços e se constituindo num veículo de produção de conhecimento na medida em que publica artigos, muitos deles resultados de pesquisas que abordam temáticas emergentes na educação. Neste número a revista publica trabalhos que estimulam o debate sobre questões pontuais da educação brasileira em que se destaca uma entrevista com o Prof. José Carlos Libâneo na qual ele discorre sobre o atual movimento de reformulação dos Cursos de Pedagogia, defendendo seu posicionamento de que a centralidade da formação de pedagogos docentes e pedagogos não-docentes deve ser a pedagogia entendida como campo teórico que congrega as demais ciências da educação, tendo as práticas educativas como objeto de estudo. Destaque também para o artigo das Profs. Acácia Zeneida Kuenzer e Marli de Fátima Rodrigues, que analisam as atuais políticas de formação de professores e pedagogos, criticando sua conotação pragmática e tecnicista, pela ênfase que colocam na dimensão instrumentalizadora do conhecimento, atendendo a uma concepção que privilegia a prática em detrimento da teoria: a epistemologia da prática. Segundo a análise das autoras, essa base epistemológica tem fornecido o suporte para a defesa da centralidade na docência, resultando na redução do campo epistemológico da Pedagogia segundo as atuais diretrizes. As contribuições destes autores recebem um comentário especial neste editorial em razão do momento de reformulação curricular por que passam os Cursos de Pedagogia em todo o país e, principalmente, pelo fato de que as idéias defendidas pelo Prof. José Carlos Libâneo e pela Prof. Acácia Zeneida Kuenzer, entre outros, vêm servindo como importante fonte de fundamentação para estudos e discussões, suscitando, provavelmente, divergências de concepções e posicionamentos entre os professores que lecionam nos Cursos de Pedagogia e que, neste momento histórico, têm a responsabilidade de decidir sobre os rumos do Curso em suas Instituições. Olhar de Professor representa hoje no espaço acadêmico um veículo que contém um referencial de maturidade intelectual, envolvendo professores e pesquisadores de instituições do Estado do Paraná, Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 9-10, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 9 do Brasil e de outros países. Vale destacar que, na avaliação da ANPED realizada em fevereiro deste ano, a revista foi incluída na tabela Qualis como periódico nacional, o que indica o aperfeiçoamento do periódico tendo em vista os critérios pelos quais foi avaliado: tradição do periódico e sua inserção na área, política editorial que apresenta o foco claramente direcionado para questões educacionais, demonstrado na tematização de questões contemporâneas, trazendo contribuições inovadoras à pesquisa educacional por meio de artigos de interesse amplo, e constituindo-se, assim, em referência na área. Também foram considerados outros indicadores, tais como a diversificação e qualificação dos autores, dos editores, dos pareceristas e dos conselheiros. Esta avaliação tão positiva da Olhar de Professor se dá em paralelo ao fechamento do primeiro triênio de trabalho desta coordenação editorial, com o apoio sempre presente do Conselho Editorial e a confiança da comunidade acadêmica, bem como com a estrutura e o apoio oferecidos pelo DEMET e pela Editora da UEPG. Coordenação Editorial 10 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 9-10, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo A PEDAGOGIA EM QUESTÃO: ENTREVISTA COM JOSÉ CARLOS LIBÂNEO* PEDAGOGY COURSE IN QUESTION: INTERVIEW WITH JOSÉ CARLOS LIBÂNEO** José Carlos LIBÂNEO*** Marli: O curso de Pedagogia foi criado para formar técnicos da educação e o professor para a Escola Normal, e passou a conceder o direito ao magistério primário e a formar o especialista em educação a partir de 1969. Como o senhor vê a mudança de concepção e de estrutura do curso deste período e os argumentos teóricos que levaram a uma proposta de redução do curso de Pedagogia à formação de professores para as séries iniciais, defendida pelo Movimento de Reformulação dos Cursos de Pedagogia, atualmente ANFOPE (Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação)? Libâneo: O que sabemos disso, pela história da educação, é que em 1939 o curso de Pedagogia foi criado para formar técnicos de educação e licenciados em Pedagogia em nível superior, enquanto os professores para o antigo Ensino Primário eram formados em Curso Normal. É nos anos 1960 que surge a aspiração de certos setores do campo da * Entrevista realizada em abril de 2005, em Goiânia, por Marli de Fátima Rodrigues, por ocasião do desenvolvimento da tese de doutorado intitulada: “Da Racionalidade Técnica à ‘Nova’ Epistemologia da Prática: a proposta de formação de professores e pedagogos nas políticas oficiais atuais”, defendida em julho de 2005, na Universidade Federal do Paraná sob a orientação da Professora Doutora Acácia Zeneida Kuenzer. O propósito, ao entrevistar intelectuais que participaram da construção da trajetória dos cursos de formação de professores e pedagogos e que estão ativamente envolvidos com essa discussão, foi o de identificar como eles se colocam em relação às propostas atuais de políticas de formação. ** Interview conducted in April 2005 in Goiânia, by Marli de Fátima Rodrigues, during the development of her doctoral thesis entitled: “From Technical Rationality to the ‘ New ‘ Epistemology of Practice: the proposal of teacher education in current official politics”, defended in July 2005 at the Paraná Federal University under the supervision of Doctor Acácia Zeneida Kuenzer. The purpose of interviewing intellectuals that participated in the construction of teacher education courses and teachers who are actively involved in this discussion was to identify their opinions about current politics of teacher education. *** Graduado em Filosofia. Mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP. Doutor em Filosofia e História da Educação pela PUC -SP. Professor da Universidade Católica de Goiás. Email:[email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 11 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo educação de defender a formação dos professores das séries iniciais do Ensino Fundamental no curso de Pedagogia em nível superior. Pela minha lembrança, a primeira menção explícita a esse assunto na legislação está no Parecer anexo à Res. 251/62, do conselheiro Valnir Chagas. Essa resolução estabelecia para o curso de Pedagogia a função de formar especialistas e os professores para os Cursos Normais, e o parecer anexo à Resolução previa a possibilidade de formar o professor primário em nível superior. Nesse mesmo ano, são fixadas também, através de parecer, as matérias pedagógicas para os cursos de licenciatura para a formação de professores para o antigo Ginásio e o Ensino Médio. Depois veio o Parecer 252, de 1969, definindo a estrutura curricular para o curso de Pedagogia, reforçando sua função de formar professores para o Ensino Normal e formar especialistas para as funções de orientação educacional, administração escolar, supervisão etc. Aqui aparece a célebre orientação do parecer, “quem pode o mais pode o menos”, pela qual o licenciado na habilitação para o magistério no Ensino Normal poderia lecionar nas séries iniciais. Outro fato importante foi a elaboração de Valnir Chagas de indicações encaminhadas ao Conselho Federal de Educação em 1976, que tinham a ver com a implantação da LDB 5692/71. Inclusive, havia uma indicação que tratava da formação do professor das séries iniciais em nível superior. Essas indicações, caso fossem homologadas, teriam provocado uma mexida muito grande no sistema de formação de professores e especialistas, mas não foram aprovadas, e Valnir Chagas se aposentou do CFE. Mas penso que houve um período bem pontual, o final dos anos 1970 e início da década de 1980, que marca o início da campanha pela transformação do curso de Pedagogia num curso de formação de professores. O arrefecimento do controle político e da censura pelos militares, junto com resistências dos setores de esquerda organizados, favoreceu a produção de pesquisas e publicações no campo da educação contra práticas autoritárias e ideológicas no regime militar. Disso resultou a realização, em São Paulo, na PUC, da I Conferência Brasileira de Educação (CBE), quando já existia o chamado Comitê Pró-Participação na formação do educador, com a participação de nomes expressivos das faculdades de Educação. O que movia esse comitê eram as críticas ao Parecer 252/69 e às indicações de Valnir Chagas, tidos como tecnicistas, destinados a consolidar a educação tecnicista baseada na racionalidade técnica, na busca de eficiência e produtivi- 12 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo dade, contra uma educação crítica e transformadora. Havia um alvo paralelo das críticas, que era a Lei 5.540, que regulava todo o ensino superior na perspectiva tecnicista. Refiro-me a esses fatos para situar melhor a resposta à sua pergunta. O que quero acentuar, no movimento pela reformulação dos cursos de formação de educador iniciado por volta dos anos 1980, é que por detrás desses fatos havia um forte peso da discussão política e ideológica no meio educacional. Não foi casual que a base de sustentação teórica das críticas era o marxismo, em alta no meio educacional à época, e, especialmente, a tese da divisão social do trabalho na sociedade capitalista, que se reproduzia na escola na forma de divisão técnica do trabalho na escola, portanto, separação entre teoria e prática, fragmentação da formação do pedagogo (especialista versus professor), enfim, a separação entre o pedagogo especialista e o trabalho docente. Eu acho que aí está o ponto básico da minha resposta, a meu ver está aí a origem das mudanças na natureza e concepção do curso de Pedagogia. Nessa época, parte significativa dos participantes do movimento pró-reformulação dos cursos de Pedagogia propugnava a eliminação das habilitações e a manutenção, nas faculdades de Educação, apenas do curso de formação de professores para as séries iniciais do que se chamava, à época, ensino de 1º grau. Essa história é bastante conhecida. Algumas universidades adotaram essa mudança, outras mantiveram o modelo curricular da Resolução 252/69, outras adotaram um sistema híbrido. O que eu acho importante destacar são os argumentos teóricos que levaram a essa proposta de redução do curso de Pedagogia à formação de professores para as séries iniciais, bandeira assumida pelo movimento pela reformulação dos cursos de Pedagogia, mais tarde denominado de ANFOPE. O raciocínio é bastante simples. Na sociedade capitalista há a divisão social do trabalho, em que os lugares na produção são ocupados por duas classes sociais antagônicas, uma que se ocupa do trabalho intelectual, outra do trabalho manual, uma classe social que pensa, outra que faz o trabalho físico. A conseqüência concreta disso é a cisão entre o trabalhador e os meios ou instrumentos de trabalho, em que esses meios são providos pelos gestores do processo de produção. Essa oposição fundada na divisão do trabalho, constituindo a explicação primeira e mais abrangente da desigualdade social. Essa divisão social do trabalho, expressão das relações capitalistas de produOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 13 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo ção, e que se manifesta na organização do processo de trabalho, se reproduz em todas as instâncias da sociedade, inclusive nas escolas, onde haveria dois segmentos de trabalhadores opostos entre si, os especialistas (diretor, coordenador pedagógico) e os professores. Ou seja, tal como na fábrica, também na escola ocorre a divisão técnica do trabalho, levando à fragmentação do trabalho pedagógico, isto é, dividindo as tarefas escolares entre os que pensam e os que fazem, entre os que controlam e os que executam, instaurando a desigualdade na escola e promovendo a desqualificação do trabalho dos professores. E como se elimina essa fragmentação? Eliminando a divisão de tarefas que está na base da fragmentação do trabalho pedagógico e transformando todos os profissionais da escola em professores. Foi natural, daí, chegar à tese da docência como base do currículo de formação dos educadores. Este mote difundiu-se amplamente no meio da intelectualidade do campo da educação, até virar senso comum. Com isso, veio junto a supressão das habilitações do curso de Pedagogia. Há uma série de decorrências desta tese, mas uma delas, e que explica muita coisa desse debate sobre formação do educador, é a afirmação de que a função da escola é a de produzir trabalhadores por meio de uma determinada forma de organização do processo de trabalho, inteiramente igual ao processo de trabalho capitalista. Ou seja, por ser um local de trabalho capitalista, a escola incorpora as características do processo de trabalho capitalista na fábrica. Da minha parte, nunca estive à vontade em relação a essa afirmação. É claro que há ligação entre o sistema de produção capitalista e as funções das escolas, e que nas escolas e outras instituições sociais há elementos do processo capitalista de organização do trabalho. Mas, não se pode deduzir disso que a escola seja, ipso facto, local de trabalho capitalista. Se isto fosse possível, a escola seria considerada como um lugar de produção de mercadorias, valendo aí o raciocínio segundo o qual a produção de trabalhadores (o que faz a escola) seria idêntica ao processo de produção de mercadorias. Em verdade, os professores e pedagogos especialistas que atuam na escola não são agentes diretos do capital, e nem os alunos, mercadorias a serem produzidas. E é absurdo acreditar, por exemplo, que um coordenador pedagógico seja na escola o representante das classes dominantes para explorar o professor. A meu ver, no raciocínio que explica as desigualdades sociais básicas pela divisão do trabalho, professores e pedagogos especialistas se encontram no mesmo lugar social. 14 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo Além do mais, é verdade que divisão do trabalho produz a desigualdade social, mas há outras desigualdades geradas no interior da escola, como a exclusão de crianças que não conseguem aprender, o insucesso na aprendizagem por causa de uma professora despreparada, formas de discriminação social, etc. Penso que nas atuais condições de funcionamento da escola, a divisão técnica do trabalho expressa na suposta fragmentação entre o trabalho de especialistas e professores não constitui o problema central, ao contrário, pode ser uma necessidade, pois um especialista profissionalmente preparado poderá fazer justiça no enfrentamento das desigualdades promovidas pela escola, como são as práticas de exclusão social, de exclusão pedagógica, de marginalização cultural, de discriminação racial, de produção do fracasso escolar, etc. Eu pergunto o que é pior: a escola ter uma coordenadora pedagógica com formação específica, capaz de prestar um auxílio efetivo às professoras e garantir melhores condições de êxito escolar dos alunos ou deixar que um aluno fracasse na aprendizagem porque não há ninguém na escola capacitado e com formação específica para ajudar a professora a melhorar seu trabalho, repercutindo assim na ampliação das chances de inclusão dos alunos? Uma visão um pouco diferente, ainda no campo da esquerda, começou a ser formada quando um grupo de educadores criou a ANDE, Associação Nacional de Educação. Esse grupo tinha um pensamento que insistia no caráter mecanicista daquela tese e afirmava a necessidade de se pensar por contradição, ou seja, a escola serve ao capital, mas ela pode servir também aos trabalhadores. Foi daí que surgiu um outro posicionamento, que dizia que a escola cumpre, sim, papéis efetivos no funcionamento do capitalismo e que sua organização interna poderia conter elementos do processo capitalista de organização do trabalho. Entretanto, não se poderia deduzir disso que a escola seria um local de trabalho capitalista. Se isto fosse possível, a escola seria considerada como um lugar de produção de mercadorias, valendo aí o raciocínio segundo o qual a produção de trabalhadores (o que faz a escola) seria idêntica ao processo de produção de mercadorias. Há que se considerar que os professores, como também os especialistas que atuam na escola, não são agentes diretos do capital, e nem os alunos, mercadorias a serem produzidas. Isso leva a distinguir produção de coisas e produção de seres humanos como processos não idênticos, ainda que estruturas Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 15 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo organizacionais planejadas para que uma possa estar a serviço de outra. Além do mais, se convém ao capitalista produzir trabalhadores assalariados automatizados, isso não significa que a subjetividade do trabalhador seja sempre subjugada em função do capital. O que ocorre, pois, é que o trabalho escolar tem sua especificidade, ainda que não descolada dos seus vínculos com a organização social e econômica da sociedade. O trabalho pedagógico escolar tem uma natureza não-material, não se aplicando a ele, de modo pleno, o modo de produção capitalista, ou seja, o conhecimento enquanto objeto de trabalho na escola é inseparável no ato de produção, e esta capacidade potencial ninguém retira da pessoa que conhece. Isso significa que os resultados do processo de trabalho escolar, bem como as formas de organização interna, não estão pré-ordenados pelo capital. Ou seja, se há uma especificidade do trabalho pedagógico escolar, há também uma especificidade das formas de organização do trabalho pedagógico, por mais que estas possam ser permeadas por influxos da organização geral do funcionamento do capitalismo. Essas posições estiveram presentes no debate nestes últimos 20 anos; defensores de um lado mudaram para outro, mas é certo que a posição da ANFOPE prevaleceu, ou seja, contra a suposta fragmentação do trabalho pedagógico na escola e a favor da tese da docência como base da formação dos educadores. Essa foi a tese que ficou, embora eu continue acreditando que boa parte dos adeptos da posição da ANFOPE desconhece as premissas teóricas que estão por detrás dela. Marli: Como o senhor vê isso hoje? Libâneo: Continuo me opondo a esse modo de ver as coisas e lamento que o mote da ANFOPE tenha virado quase consenso na cabeça dos colegas das faculdades de Educação, de que o curso de Pedagogia é o curso de formar professores das séries iniciais. Conforme tenho argumentado, a Pedagogia, antes de ser um curso, é um campo de conhecimento. Não se trata de insistir se ela é ou não uma ciência, mas que ela tem um corpo teórico, um conjunto de conceitos que, mesmo não sendo precisos e claros, formam uma base teórica para lidar com a prática educacional. Ou seja, o conhecimento pedagógico se define 16 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo pelo campo empírico que é a realidade educativa, tem métodos de investigação que permitem a elaboração sistemática de resultados válidos, a explicação e compreensão dessa realidade para a transformação da prática. Nesse sentido, a Pedagogia tem uma tradição epistemológica, tem uma história, tem uma longa produção que começa na antiguidade, é sistematizada no catolicismo e no protestantismo, temos no século XVI Comenius, mais tarde Rousseau, Herbart, Pestalozzi. Na segunda metade do século XIX, surge na Europa o movimento da educação nova, com repercussões no mundo todo, e que teve um representante norte-americano brilhante, que foi John Dewey. Desenvolvi este percurso da ciência pedagógica na minha tese de doutorado e há quase 20 anos leciono em cursos de pós-graduação a disciplina Teorias da Educação. Nas primeiras décadas do século XX, os pioneiros da educação nova trouxeram as idéias de Dewey para o Brasil, interrompendo a hegemonia da pedagogia católica e herbartiana. Eu penso que o enfraquecimento da ciência pedagógica no pensamento brasileiro, o enfraquecimento do campo teórico da pedagogia, começa ai. O poder de influência dos pioneiros na legislação educacional, desde a década de 1920, foi muito forte, numa direção cientificista. Uma visão cientificista tem a ver com o caráter objetivo das coisas, com o mensurável, com o que é científico. Como a pedagogia, na visão católica ou herbartiana, tem a ver com finalidades, objetivos, valores, ela não teria cientificidade; esses elementos não seriam passíveis de serem considerados pela ciência. Privilegia-se, daí por diante, a ciência da educação, não a pedagogia. O campo científico passa a ser a educação, não a pedagogia. Não é casual que as faculdades foram denominadas “faculdades de educação”, não faculdades de pedagogia. A perspectiva do marxismo, que é também humanista, de certa forma se encontra com a posição católica herbartiana, no sentido de que a prática educativa é sempre intencional, ela implica finalidades, formas organizativas, expectativas definidas de formação dos indivíduos. Então, eu defendo que a pedagogia é a teoria e a prática da educação, a pedagogia é o campo cientifico que faz uma reflexão sistemática sobre a prática educativa, a educação, que é o objeto de estudo da pedagogia. Para mim, o movimento pela reformulação dos cursos de formação de educadores, depois transformado em ANFOPE, a despeito de fazer questão de declarar sua afiliação ao marxismo, na verdade segue a tradição iniciada pelos pioneiros da educação nova. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 17 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo Marli: Foi esta a posição adotada pelo conselheiro Valnir Chagas, e me parece que a tradição da ANFOPE é a mesma. O senhor concorda que a ANFOPE, muitas vezes vai na linha do que critica? Libâneo: Claro, eu já afirmei muitas vezes isso. Os documentos da ANFOPE começam com uma abordagem totalizante da educação na perspectiva marxista, com uma visão ampliada do educativo, mas aí esse campo vai reduzindo, reduzindo, e chega na tese da identificação de pedagogia com docência. De uma perspectiva marxista, acaba adotando a perspectiva cientificista dos pioneiros. Marli: E qual seria a contribuição da ANFOPE nesses vinte e poucos anos de atuação, até mesmo no sentido de definir uma identidade para o curso de Pedagogia? Libâneo: A ANFOPE começou como movimento democrático, agregando várias posições, mas foi se tornando cada vez mais fechada, e eu suspeito que isso ocorreu por uma mistura de posições ideológicas com posições acadêmicas, de forma que ela transformou-se mais num movimento político do que num movimento de reflexão teórica, hoje empenhada muito mais em sustentar a mística de uma militância do que em sustentar teses teóricas. Todos sabemos que há na esquerda múltiplas posições, múltiplas interpretações, e a ANFOPE tomou uma dessas posições e quer fazer valer que esse lado é o único certo. Se ela tem um mérito, foi exatamente este: conseguir criar em torno de uma idéia, uma mística, para alimentar motivações da militância, e esse projeto foi bem-sucedido. A gente sabe, pela experiência dos partidos políticos de esquerda, que fazer luta política com base na militância é altamente eficaz, por causa da mística do coletivo. Há uma assembléia, a militância está lá, tem a maioria, e vence a votação. Então, eu afirmo que a força da ANFOPE é a militância, mas eu não sei dizer se suas posições são realmente hegemônicas, porque há muito patrulhamento. Quem é contra a tese, por exemplo, da identificação do trabalho pedagógico com o trabalho docente não tem movimento organizado, não tem militância organizada, então fica parecendo que as posições da ANFOPE são hegemônicas no meio educacional. Resumindo, o papel efetivo da ANFOPE foi fazer a cabeça das 18 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo pessoas, mas no lado operacional ela não fez acontecer nada. Nunca vi a ANFOPE formular uma resolução, definindo o que quer e como quer, para se transformar em norma legal. As experiências que existem, criadas com base no ideário da ANFOPE, foram feitas por concessão do CNE em resolução que autorizava experiências alternativas em relação ao parecer 252/69. A ANFOPE não contribuiu para definir identidade ao curso de Pedagogia, ao contrário, contribuiu para que o curso de pedagogia perdesse sua identidade. Ao firmar-se na premissa da reprodução na escola da divisão social e técnica do trabalho, passou a combater as habilitações, supostamente por provocarem a fragmentação do trabalho pedagógico, e inventou a idéia da docência como base da formação de todos os educadores. Minha opinião sobre isso é conhecida. Sou contrário a essas duas idéias, porque elas não têm suporte nem empírico nem teórico. Fui diretor de escola, coordenador pedagógico, e minha experiência é muito positiva e por isso valorizo muito a coordenação pedagógica de escola, acho que a organização e a gestão de uma escola são muito importantes para o seu funcionamento. Os pedagogos da minha geração também valorizavam muito a atuação pedagógica na escola por meio do diretor e da coordenação pedagógica. Havia a Associação Nacional de Supervisores, Associação Nacional de Orientadores, Associação Nacional de Administração Escolar, eram associações que reuniam mil a mil e quinhentas pessoas nos congressos. E ai veio a contestação das habilitações como expressão da divisão técnica do trabalho, do uso da técnica como exploração do trabalhador, você teria na escola o diretor e o coordenador, que pensam, e o professor, que executa. Eu sempre achei isso um grande equívoco, que é a aplicação mecânica das relações capitalistas de produção no âmbito da empresa nas práticas escolares. É a mesma coisa que você dizer que coordenador pedagógico é classe dominante e o professor, classe dominada, professor é classe dominante e aluno, classe dominada. As coisas não são assim. Como já falei, compreendo muito bem o papel da escola enquanto reprodução do capital, que o sistema dominante funcionaliza a escola a seu serviço, mas não podemos deduzir disso que a escola seja um local de trabalho capitalista. No entanto, é isso que a ANFOPE defende, ou seja, a divisão social do trabalho se materializa na divisão técnica do trabalho, resultando na fragmentação do trabalho pedagógico. Foi em nome disso que se deu a eliminação das habilitações, a transformação do curso de Pedagogia Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 19 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo em uma licenciatura e a orientação curricular baseada na docência, interferindo, a meu ver, de forma negativa, nos currículos de formação tanto de especialistas quanto de professores. Convém registrar que essa orientação prevaleceu principalmente em cursos mais novos, sem maior expressão em âmbito nacional. Por exemplo, a FEUSP não acabou com as habilitações, nem a Federal do Paraná, nem a UNICAMP, ou seja, em muitas instituições com mais tradição chegou-se a caracterizar o curso de Pedagogia como formação para a docência, mas não cortaram-se as habilitações. Mas, sem dúvida, continua havendo um peso forte do discurso da ANFOPE, que, como eu disse, se transformou logo em um discurso político de defesa de espaço político e de conquistas que seus militantes chamam de “conquistas históricas”. Esse discurso afetou os currículos de formação num primeiro momento, num segundo momento isso descaracterizou os estudos sistemáticos da pedagogia, do ponto de vista institucional levou as secretarias de educação a eliminar o cargo de coordenador pedagógico nas escolas, como ocorreu, por exemplo, em Goiás, e logo se percebeu que as secretarias de educação fizeram isso não por uma adesão ao discurso da ANFOPE, mas porque tirar o especialista da escola representava barateamento do custo da estrutura do sistema por ser muito mais barato continuar pagando um professor que se candidatava e exercia essa função. Enfim, as associações de diretores, de supervisores, foram destruídas, apenas a dos diretores funciona hoje, com outra denominação e com outras finalidades, a ANPAE. Tudo isso sabemos que está recheado de conotações políticas, de interesses de grupos, interesses hegemônicos. De qualquer forma, o prejuízo desse discurso para as escolas públicas é enorme, porque por um lado tivemos uma grande expansão das matrículas, houve uma modificação da clientela escolar, democratização do acesso, por outro lado, em pleno momento dessa democratização, as crianças encontraram uma estrutura de gestão extremamente frágil, em que foi desmontada uma estrutura de atendimento ao professor e aos alunos e que favorecia a qualidade da aprendizagem escolar, sem que tivesse sido colocado nada no lugar. Ao invés disso, instituiu-se um sistema de organização pedagógica e de avaliação inteiramente fluido, em que diretores e coordenadores pedagógicos são pressionados a abdicar de suas tarefas para não serem taxados de autoritários, de controladores do trabalho dos professores. Enfim, eu acho que houve uma confusão ideológica muito gran- 20 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo de nisso tudo. É claro que essas coisas têm que ser compreendidas num contexto social e econômico e político, no início dos anos 1980 começávamos a sair de uma ditadura militar. Eu compreendo isso muito bem, nós saímos de um regime autoritário militar, então a sociedade e o setor de educação, especialmente, precisavam denunciar esse autoritarismo, havia de fato uma estrutura de gestão um tanto pesada, mas aí a vara curvou-se demasiado para o outro lado. Tudo isso pode ser explicado por um contexto peculiar da vida brasileira, mas isso não justifica uma explicação teórica do funcionamento da escola distanciada da realidade empírica, uma análise determinista e simplista dos processos de gestão, que é bem mais uma tendência a ajustar a realidade a uma teoria do que o contrário. Marli: Diante da criação do Curso Normal Superior, na LDBEN 9.394/ 96, como fica o curso de Pedagogia que forma também para a docência na educação infantil e nas séries inicias do Ensino Fundamental? Não haveria a superposição de funções? Como o senhor vê essa questão? Libâneo: Acho que essa pergunta tem duas respostas, uma do lado da legislação oficial, outra do lado das associações de educadores. A legislação oficial foi coerente com a LDB ao criar o Curso Normal Superior, os ISE e as Diretrizes Curriculares para a Educação Básica. Faltavam as diretrizes curriculares para a pedagogia, a pedagogia tal qual aparece no art. 64 da LDB, e é isso que teria que ser feito no projeto de Resolução das Diretrizes. Embora sejam admissíveis críticas a essa legislação, o fato é que definem a formação de professores de educação infantil e da 1a. a 4a. como licenciatura, o que acho correto, e define a formação de professores para 5a a 8a e Ensino Médio como licenciaturas específicas independentes do bacharelado. O que faz o Instituto Superior de Educação? Ele põe em prática o quê? Aquilo que muitos de nós defendemos há muitos anos, que é uma estrutura curricular única e específica para a formação de professores, algo que Selma Pimenta e eu já denominamos de Centro de Formação de Professores. Formar um professor de química no instituto de química é difícil porque ninguém lá está a fim de formar professor de química. Então, vamos montar uma estrutura própria para formar professores, essa é a idéia dos ISE. Não é que eu esteja a defender os ISE separados da Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 21 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo via universitária, mas a questão tem outros complicadores, envolve interesses políticos, corporativos, etc. Conforme já falei, a proposta das associações, como a ANFOPE e o Forumdir, parte a meu ver de uma premissa errada, que é a identificação entre pedagogia e licenciatura. A proposta da ANFOPE tem a ver com uma noção de pedagogia já alimentada entre os pioneiros da educação nova, que tem a ver com o seguinte raciocínio: pedagogia é ensinar crianças, portanto, quem faz pedagogia é aquele que ensina crianças, pedagogo é aquele que ensina crianças. É essa a lógica que está incrustada na cabeça das pessoas. Mas há aí um problema: se a pedagogia é a formação de licenciados para a educação infantil e séries iniciais, então ele é um curso normal superior. Por quê, então, a ANFOPE recusa o ensino normal superior? De pouco adianta argumentar que o normal superior é da política neoliberal, porque a estrutura curricular acaba sendo a mesma daquela que querem chamar “curso de pedagogia”. Outra coisa a se pensar é a seguinte: se curso de Pedagogia é para formar professores, por que professores de 5a. a 8a. séries e do Ensino Médio também não são do curso de Pedagogia? Mas se a ANFOPE aceitar isso, ela teria que assumir uma estrutura de formação de professores muito parecida com os ISE. Em outras palavras, se entendermos que a licenciatura de 1ª a 4ª e licenciatura de 5ª a 8ª e Ensino Médio compõem um sistema de formação de professores da Educação Básica, então a argumentação que tem sido feita contra os Institutos Superiores de Educação não procede. Outra confusão: há dois documentos mais ou menos recentes, um que são as Diretrizes Curriculares da Formação de Professores da Educação Básica, e outro que é a resolução sobre duração e carga horária dos cursos de formação de professores da Educação Básica. Ora, eles abrangem a formação de professores da Educação infantil até o Ensino Médio. Então as diretrizes curriculares para a licenciatura de Educação Infantil e séries iniciais já existem. Nesse caso, a Resolução das Diretrizes para o curso de Pedagogia, do jeito que está, gera uma duplicação da legislação, quer dizer, não está resolvendo o problema, ela está criando um outro. Meu entendimento é de que, se é retirada a característica da Pedagogia enquanto um curso de estudos sistemáticos de educação, de formação teórica e de formação específica para os pedagogos especialistas, o curso de Pedagogia se transforma em licenciatura, e nesse caso não há necessidade de se manter uma Faculdade de Educação, 22 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo não há necessidade de ela existir, a não ser que as licenciaturas voltassem todas para a Faculdade de Educação, ainda que neste caso ela tivesse que montar uma estrutura curricular muito parecida com o que consta da Resolução do Instituto Superior de Educação. Marli: O senhor acha que a formação de profissionais docentes e nãodocentes deve ser feita em percursos curriculares diferentes ou integrados? Libâneo: É uma pergunta que está no centro da polêmica, devido a toda a força hegemônica do grupo da ANFOPE, que é contra a formação em separado do especialista. Primeiro, estou absolutamente convencido de que as escolas necessitam de uma estrutura de organização e de gestão de escola, basicamente o diretor e o coordenador pedagógico, que desempenham funções necessárias e importantíssimas, as quais requerem um nível de aprofundamento de estudos de maior complexidade. A segunda coisa é que sou realmente favorável à formação específica do especialista. Não vejo como formar no mesmo curso, em 2800 horas no mínimo, o professor, o pesquisador e o gestor para usar o linguajar do pessoal da ANFOPE. Acho isso uma falta de senso de realidade. Terceira questão: como é que você vai formar coordenador pedagógico que não tenha experiência de escola, conforme o art. 67? Eu não acho necessária experiência prévia para alguém ser diretor de escola ou coordenador pedagógico. A minha defesa do percurso de projeto pedagógico próprio, currículo próprio para a coordenação pedagógica e direção de escola é de que você pode suprir o conhecimento de escola mediante as práticas de estágio, de maneira que você pode colocar esse supervisor e esse coordenador pedagógico em escolas para acompanhar, da mesma maneira que são feitos os estágios para professores. Veja bem, um aluno que faz Administração de Empresas será um administrador de empresas. Ele precisa de experiência prévia em empresa para administrar empresa? Um aluno que faz Enfermagem, pode-se exigir dele, para se formar, que tenha tido experiência prévia de enfermagem? Marli: O senhor defende que esta formação seja feita no bacharelado? Essa formação no bacharelado supõe uma formação anterior na licenciatura? Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 23 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo Libâneo: A resposta foi dada na pergunta anterior. Na minha concepção, a formação do bacharel não supõe formação prévia na licenciatura nem experiência prévia de magistério. A experiência, a parte prática dessa formação, deve ser resolvida no âmbito do currículo, por meio de disciplinas e do estágio. Eu sei que a experiência prévia está legalmente exigida na LDB, mas acho isso uma coisa meio forçada. Do que adianta um sujeito ter dois anos de experiência para ser coordenador pedagógico? Em que isso garantirá melhor formação? É uma posição um tanto antiga, atrelada àquela idéia da oposição entre o pensar e o fazer, ou de que você aprende coisas fazendo. Entendo, portanto, que a formação desse pedagogo para desempenhar atividades na pesquisa educacional, esse pedagogo que poderá atuar na direção de escola, coordenação, planejamento e avaliação educacional, informática educativa, comunicação e produção de mídias, materiais didáticos, gestão de educação especial, pedagogia empresarial, animação cultural, psicopedagogia, etc., quer dizer, isso caracteriza o pedagogo stricto sensu, o especialista deve ser formado num curso específico, tendo no final as habilitações. Marli: Essa proposta não é bastante pretensiosa, como garantir subsídios teóricos para a formação/atuação deste profissional? Libâneo: Eu trabalho com essa idéia de que a especificidade do pedagógico está no processo de transmissão ou comunicação e internalização de saberes e modos de ação. Isso é o genérico. O que é o peculiar da pedagogia: saberes e modos de ação. Esses saberes e modos de ação não estão só na escola, mas eles contêm elementos que são comuns, então a partir de um bloco de estudos teóricos comuns nós teríamos que partir para as habilitações. A palavra “habilitações” é cheia de complicações semânticas e ideológicas. O pessoal das associações condenou a palavra “habilitação”, como já condenou outras. Outro dia um colega me censurou porque uso a palavra “tarefa”, e tarefa é uma palavra tecnicista. Acho isso de um primarismo sem tamanho, mesmo porque, lá pelas tantas, esse pessoal se descuida e fala em habilitações. Ora, todas as profissões trabalham com habilitações, como fariam a Medicina ou a Engenharia, não fossem as habilitações? Porque na pedagogia não podem existir habilitações? 24 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo Marli: Na sua opinião, o curso de Pedagogia deve manter a centralidade na docência ou nas ciências da educação? Libâneo: É claro que a centralidade da formação de pedagogos docentes e pedagogos não-docentes deve ser a pedagogia. Não gosto de falar em ciências da educação, falo em pedagogia como campo teórico que congrega as demais ciências da educação. Não que não existam as ciências da educação, claro que existe a sociologia da educação, a psicologia da educação, a economia da educação, etc. Meu raciocínio é o seguinte: o campo de estudos, o campo científico da problemática educacional, este campo científico chama-se pedagogia. E o objeto de estudo da pedagogia são as práticas educativas. As práticas educativas são múltiplas na sociedade; uma delas é a educação escolar e, portanto, a docência é uma modalidade de trabalho pedagógico, então uso e abuso de uma frase que é a seguinte: “todo trabalho docente é trabalho pedagógico, nem todo trabalho pedagógico é trabalho docente”. Por conseqüência, a docência é uma modalidade peculiar de trabalho pedagógico; portanto, conceitualmente, o pedagógico é mais amplo, é um conceito de mais extensão do que o conceito de docência. Eu nego inteiramente o mote da ANFOPE, por isso eu o inverto: a base da formação de todo profissional da educação é a formação pedagógica. Se a formação de professores deve ser feita integralmente numa faculdade de Pedagogia, então temos no curso de Pedagogia o bacharelado com habilitações e um Centro de Formação de Professores da Educação Básica, ou seja, as licenciaturas, com percursos curriculares distintos. Enfim, não há como assegurar a pedagogia enquanto campo específico se você não fizer um percurso curricular paralelo. Marli: Ao colocar a formação do bacharel e do licenciado não se mantém a dicotomia entre formação específica e formação pedagógica? Libâneo: O bacharelado e a licenciatura são dois cursos, com percursos paralelos; se dicotomia são duas coisas distintas, então há dicotomia mesmo. É claro que o que há de comum é a atividade educativa e podemos até falar, a escola, mas há o currículo de formação específica do especialista e a formação específica do professor, assim como a formação pedagógica para o especialista e a formação Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 25 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo pedagógica para o professor. Não vejo problema nisso. E insisto mais uma vez: não há nenhuma teoria sólida que justifique a idéia corrente de que ter especialista e professor na escola representa fragmentação do trabalho pedagógico. A divisão técnica do trabalho é requisito de qualquer instituição, a começar pela família. Ela não é, por si mesma, geradora de desigualdade. A escola é uma instituição que possui administradores, técnicos, escriturários, professores, cada um com papéis na divisão do trabalho. Refiro-me, portanto, a distintas especialidades profissionais, habilitações profissionais. Um diretor de escola, um reitor de universidade, um diretor de faculdade, a rigor, não precisam ser professores. Alguém pode fazer um curso para ser diretor de escola porque deseja exercer profissionalmente a atividade de administrar escolas. Alguém quer ser professor, faz um curso para ser professor. Não vejo nenhum absurdo nisso. Outra coisa é dizer que um diretor de escola tem funções pedagógicas. Claro que tem, é claro que um diretor de escola é um educador, assim como o secretário é educador, o servente é educador, a merendeira é educadora. Ou seja, todos realizam tarefas eminentemente pedagógicas, mas não necessariamente docentes. Com formação específica, é possível formar o especialista para trabalhar na Educação Básica. Não é possível para formar o especialista (o gestor, como quer a ANFOPE) para a Educação Básica num curso cuja característica é formar licenciados para lecionar em classes de educação infantil e séries iniciais. Como é que esse pedagogo especialista irá trabalhar com 5ª a 8ª se a formação básica dele é só para a 1ª a 4ª? Vamos tomar uma situação fictícia: chega na escola um coordenador pedagógico que formou-se como professor ou fez pós-graduação lato sensu depois da licenciatura de 1ª a 4ª; aí o professor de Química vai dizer o seguinte: você vai trabalhar comigo química, mas a base de sua formação é o quê? Qual é a competência que você tem para trabalhar comigo? Minha resposta é a seguinte: esse profissional pedagogo, o especialista, vai se especializar num âmbito da escola que é o âmbito da organização e gestão curricular e pedagógica. Ele é um especialista nisso, assim como o professor é especialista em Química. São dois tipos de especialistas, o especialista docente e o especialista da coordenação pedagógica. O professor de Química, por pressuposto, 26 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo conhece o conteúdo da Química, o processo investigativo da Química e como ensinar Química. E o pedagogo conhece as teorias da aprendizagem, o processo do conhecimento, entende das características da criança que aprende, características psicológicas, as teorias da didática. O que nós vamos fazer no dia-a-dia da escola é uma troca de especialidades. O confronto ou o compartilhamento das especialidades vai se dar no âmbito da prática. E como é que ele vai obter a prática? Ele vai obter a prática no estudo das disciplinas específicas, no estágio e, depois, no exercício profissional. Todo mundo aprende efetivamente a profissão no exercício profissional. Marli: As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores para a Educação Básica fundamentam-se numa concepção de professor como prático-reflexivo e no desenvolvimento de competências. Quais as implicações para os cursos de formação de professores diante de políticas que defendem a supervalorização de saberes da experiência e na formação por competências como determinantes na trajetória profissional do professor? Libâneo: A minha resposta a essa questão vai além dos discursos em vigor na nossa área. No início da onda reflexiva me entusiasmei com o discurso do professor reflexivo, mas eu logo vi que era um caminho que não combinava com a lógica dos meus estudos anteriores. Aqui faço um parênteses para fazer uma crítica à nossa área, que é essa tendência incontida para os modismos. Embarcamos com muita facilidade em discursos muito atraentes, em discursos novos e não vamos fundo na crítica, não vamos fundo em saber qual é a origem desses discursos, onde é que eles estão assentados, qual é a base epistemológica desse discurso. A metáfora do professor reflexivo gerou um discurso muito atraente, porque ele pegava precisamente numa chave que combinava ao mesmo tempo com Paulo Freire e o marxismo, por conta do mote ação-reflexão-ação, que tanto combinava com um pensamento mais espiritualista como com um pensamento de base marxista. Só que indo mais fundo, verifica-se que ele surgiu num contexto claramente do pensamento neoliberal. Lendo de uma maneira mais aprofundada depois a gente vai descobrir que ele está assentado em Dewey, que é um pensamento pragmático, uma filosofia pragmátiOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 27 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo ca, que acaba sendo reduzido ao refrão ação-reflexão-ação, que também está na pedagogia jesuítica, na pedagogia de Freire, em propostas marxistas, etc. Tudo isso forma um sentido na cabeça das pessoas, do professorado, e se o pesquisador não é muito atento, ele acaba embarcando nisso sem saber qual é a origem teórica. Então, em algum momento eu me perguntava, eu quero ser pragmático ou quero continuar na tradição marxista? Porque toda a fundamentação teórica do professor reflexivo está no pragmatismo de Dewey. Bem, eu estou escapando um pouco da sua pergunta, então vou dizer o seguinte, eu trabalho hoje com uma corrente chamada teoria histórico-cultural da atividade, que é uma teoria formulada por Leontiev, com base em Vigotsky, depois desenvolvida por Davídov, que trabalha especificamente a atividade de aprendizagem. E a Teoria da Atividade tem uma fundamentação fortemente marxista, e isso leva a entender que a base da definição de uma profissão está na atividade. Atividade humana no geral e depois nas atividades que vão se desdobrando. É a atividade de aprendizagem, atividade artística, atividade científica, atividade esportiva, etc. Mas a idéia é de que a profissão se define melhor quanto mais você definir o que é a sua atividade. Você analisa a atividade enquanto tal, situada num sistema de atividades mais global da sociedade, implicando as exigências econômicas, culturais que são postas, e você pode chegar a partir daí na definição daquilo que caracteriza uma atividade, ou vamos dizer daquilo que se pode chamar de competências. E aí entra todo um mundo de confusões, quer dizer, o Perrenoud, aqui no Brasil, a Guiomar Namo de Melo e outros, também partem do perfil profissional, da identidade profissional do professor, mas por um outro caminho, que foi o caminho exatamente do profissional reflexivo, da epistemologia da prática, etc. O meu caminho também fala de competências, mas como sinônimo de formação omnilateral, formação politécnica, visando uma unidade na ação humana entre capacidades intelectuais e práticas, num sistema de atividades que envolve a subjetividade, o contexto e a intervenção participativa das pessoas. Voltando à sua pergunta, acho difícil responder em poucas palavras, mas a visão economicista e empresarial de competências com toda a certeza contribui para o aligeiramento e o esvaziamento da 28 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo formação, e aí que é difícil a gente lidar com esses problemas, porque eu posso pensar em competências na perspectiva da teoria históricocultural da atividade, mas quando chega no operacional, freqüentemente as perspectivas se confundem. Bom, mas admitindo essa procedência das críticas que são feitas a essa concepção economicista de competências, por outro lado eu gostaria de estar afirmando a necessidade de, primeiro, termos um rol de características que definem a profissionalidade do professor, e podemos chamar isso de competências, desde que a entendamos numa dimensão mais ampliada, numa dimensão mais humanista, mais dialética. Segundo: entre as competências profissionais de professor teríamos necessariamente de situar o que se poderia chamar de capacidades e habilidades do professor, de procedimentos. Então eu hoje estou defendendo que a formação de professor necessita que se tenha explicitado aquelas práticas e aquelas ações e operações para usar o linguajar da teoria da atividade que são requeridas no exercício profissional. Em terceiro lugar: o que precisa estar muito claro na minha concepção é que a atividade de aprendizagem é a atividade dominante no Ensino Fundamental. A atividade de aprendizagem é a principal tarefa do professor, quer dizer, o que o professor faz é orientar as atividades de aprendizagem. O que é ensino? São as condições e formas pelos quais você ajuda, orienta, assessora a aprendizagem do aluno. O que é essencial na atividade da aprendizagem? O conhecimento teórico-científico. Para ir mais além da pergunta que você faz, que é o tema das competências e da superação do professor reflexivo, o tipo de linha que eu venho trabalhando está me levando a considerar três aspectos cruciais na formação de professores: primeiramente, a formação teórica, depois o “saber fazer”, pois o trabalho do professor é uma atividade eminentemente prática, não técnica, e ele precisa ter instrumentos de trabalho, ele precisa ser instrumentalizado para trabalhar. E, finalmente, a formação para considerar as questões do marco sociocultural e institucional em que se dá o exercício da profissão, tanto o sociocultural mais global quanto o sociocultural incrustado na escola, que é o entendimento de que as práticas socioculturais e institucionais também educam, elas influenciam as aprendizagens que envolvem um tipo de aprendizagem participativa. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 29 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo ADENDO DE JOSÉ CARLOS LIBÂNEO À ENTREVISTA, APÓS A HOMOLOGAÇAO DAS DIRETRIZES Libâneo: As diretrizes aprovadas em 2006 apenas confirmam a análise que pretendi fazer nessa entrevista. Obviamente mantenho as mesmas críticas, porque nada mudou. Conforme me manifestei nos últimos artigos publicados nas revistas Educação e Sociedade do CEDES e Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, a resolução mantém as posições tradicionalmente defendidas pela ANFOPE, que sacrificam a pedagogia como campo cientifico e campo profissional. A resolução do CNE dispõe em seus artigos 2º e 4º que o curso de Pedagogia é um curso de formação inicial de professores para exercer funções de magistério. Portanto, mantém o entendimento estreito de que pedagogo é o profissional que ensina na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Além disso, estabelece, absurdamente, que são também professores todos os profissionais que atuam na gestão e organização de sistemas de ensino, na coordenação, na elaboração e execução de projetos, na avaliação de sistemas, na pesquisa e difusão científica. Em relação a essas duas questões, minha posição é amplamente conhecida. Primeiro: por razões lógico-conceituais, o curso de Pedagogia pode incluir o curso de formação de professores de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, mas não ser reduzido a ele. Segundo: não tem nenhuma sustentação teórica, nem pela epistemologia nem pela tradição da teoria pedagógica, a afirmação de que a base da formação do pedagogo é a docência. O raciocínio mais límpido diz que o campo da pedagogia é a reflexão sobre as práticas educativas, em sua diversidade, uma delas o ensino, ou seja, a docência. É simplesmente absurdo dizer que um coordenador pedagógico exerce, nessa função, o magistério; que o planejador da educação exerce magistério; que o especialista em avaliação está exercendo o magistério; que o pesquisador exerce o magistério. Podemos dizer que esses profissionais são pedagogos, mas docentes, não. Resulta, portanto, num imenso empobrecimento do campo cientifico e profissional da pedagogia atribuir a denominação “pedagogo” apenas aos professores que exercem o magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Conforme já tive oportunidade de escrever, basta uma breve análise do conteúdo da resolução para se constatar sua inconsistência teórica. Começa pela falta de uma conceituação clara de pedago30 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo gia. O texto estabelece a que se destina o curso, as modalidades de formação, as competências do egresso, mas não explicita a natureza e o objeto do campo do conhecimento pedagógico. Sem definir pedagogia e docência, logo no artigo 2º introduz a conceituação de docência nos seguintes termos: Compreende-se docência como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído (sic) em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos e objetivos da Pedagogia [...] Esse artigo é o único momento da resolução em que se dá uma definição de termos. Mas é fácil observar que essa definição é logicamente insustentável, pois define o termo principal pelo secundário, ou seja, a pedagogia aparece como um conceito subordinado à docência ou, no mínimo, docência sendo identificada com a pedagogia. Ao postularem essa identificação, os legisladores desconheceram toda a tradição teórica e a estrutura lógico-conceitual da ciência pedagógica. Dessa insuficiência conceitual decorre a confusão elementar entre o campo científico e seu objeto, entre pedagogia e docência, entre ação educativa e ação docente e, afinal, a redução do curso de Pedagogia ao curso de formação de professores. Há mais imprecisões conceituais. Por exemplo, no mesmo artigo 2º afirma-se que “o curso de Pedagogia [...] propiciará o planejamento, execução e avaliação de atividades educativas”. A pedagogia, nessa frase, já não tem mais como objeto a docência, mas as atividades educativas. Afinal, qual o conceito de pedagogia da resolução? Logo à frente, no artigo 4º, são definidas como atividades docentes. A insuficiência conceitual leva a definições operacionais muito pouco convincentes do ponto de vista teórico, e o exemplo mais patente é a definição de atividades docentes, tal como consta no parágrafo único do artigo 4º: o planejamento, a execução, a coordenação de projetos e experiências educativas e a produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico do campo educacional. Ou seja, quaisquer atividades profissionais realizadas no campo da educação, ligadas à escola ou extra-escolares, são atividades docentes. Ou seja, o planejador da educação, o especialista em avaliação, o animador Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 31 A Pedagogia em questão: entrevista com José Carlos Libâneo cultural, o pesquisador, o editor de livros, todos eles estariam nessas atividades exercendo docência (são docentes). Em suma, é patente a confusão que o texto provoca ao não diferenciar campos científicos, setores profissionais, áreas de atuação, ou seja, uma mínima divisão técnica do trabalho necessária em qualquer âmbito científico ou profissional, sem o que a prática profissional pode tornar-se inconsistente e sem qualidade. Em boa parte decorrentes dessas insuficiências de base, são verificadas outras: a) O art. 5º descreve as competências necessárias aos egressos do curso de Pedagogia como dezesseis atribuições do docente. São descrições em que se misturam objetivos, conteúdos, recomendações morais, gerando superposições e imprecisões quanto ao perfil do egresso. b) O art. 2º, § 2º, e o art. 3º apresentam orientações desconexas sobre a formação, distintas ou sobrepostas às competências do pedagogo mencionadas do art. 5. c) Nos artigos 2º e 4º, que estão repetidos, são criadas cinco modalidades de magistério, a saber: Educação Infantil, Anos Iniciais do Ensino Fundamental, Cursos de Ensino Médio na modalidade Normal, Cursos de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar, outras áreas que requerem conhecimentos pedagógicos. São cinco as modalidades formativas, mas em todo o texto há referência apenas a duas, Educação Infantil e Anos Iniciais. Faltam orientações quanto ao percurso curricular e às modalidades de diplomação. Não se esclarece se são percursos curriculares separados ou se há uma base comum que depois se ramifica em habilitações (o texto não menciona o termo “habilitações”, nem outro equivalente). Do mesmo modo, o artigo que trata da formação dos profissionais da educação para administração, planejamento, supervisão, etc. (art. 64 da Lei n. 9.394/ 96) em nível de pós-graduação está inteiramente desconectado dos demais artigos, deixando dúvidas aos dirigentes de cursos de formação. Além disso, a resolução ignora a prescrição legal da LDBEN de que essa formação deve ser feita também em cursos de graduação em Pedagogia. d) O artigo 6º define a estrutura curricular em três blocos: núcleo de estudos básicos, núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos, núcleo de estudos integradores, onde supostamente se incluem disciplinas e atividades curriculares, mas isto não está suficientemente claro devido à redação confusa e à imprecisão. 32 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> José Carlos Libâneo e) O art. 9º exclui toda e qualquer outra modalidade de formação inicial que não sejam as estabelecidas na Resolução. O art. 10 determina a extinção de todas as habilitações existentes; o art. 14 estabelece a formação de especialistas em cursos de pós-graduação; o art. 11 mantém o Curso Normal Superior. Em conclusão, a Resolução do CNE expressa uma concepção simplista, reducionista, da pedagogia e do exercício profissional do pedagogo, decorrente de precária fundamentação teórica, de imprecisões conceituais, de desconsideração dos vários âmbitos de atuação científica e profissional do campo educacional. A resolução, aliás, não fez mais do que seguir a tradição do discurso da ANFOPE. Após quinze anos de discussões e polêmicas, ela não contribui para a unidade do sistema de formação, não avança no formato da formação de educadores necessários para a escola de hoje, não ajuda na elevação da qualidade dessa formação e, assim, afeta aspirações de elevação do nível científico e cultural dos alunos das escolas de Ensino Fundamental. Encaminhado em: jun/07 Aceito em: jun/07 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 11-33, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 33 Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer AS DIRETRIZES CURRICULARES PARA O CURSO DE PEDAGOGIA: UMA EXPRESSÃO DA EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA CURRICULAR GUIDELINES FOR THE PEDAGOGY COURSE: AN EXPRESSION OF PRACTICE EPISTEMOLOGY Marli de Fátima RODRIGUES* Acácia Zeneida KUENZER** Resumo: O presente artigo apresenta reflexão desenvolvida acerca das concepções e debates que permearam a aprovação do Parecer 05/2005, em 13 de dezembro, pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia, Licenciatura. Nesta análise foi possível constatar que as políticas atuais de formação de professores e pedagogos estão assentadas numa visão pragmática e tecnicista de formação do educador, pela ênfase que colocam na dimensão instrumentalizadora do conhecimento, atendendo a uma concepção que privilegia a prática em detrimento da teoria: a epistemologia da prática. Essa base epistemológica tem fornecido o suporte para a defesa da centralidade na docência, resultando na redução do campo epistemológico da Pedagogia segundo as atuais diretrizes. Palavras-Chave: Reformas educacionais. Curso de Pedagogia. Epistemologia da Prática. Relação Teoria e Prática. Práxis. * Pedagoga. Mestre em Educação pela UFRJ. Doutora em Educação pela UFPR. E-mail: [email protected] ** Pedagoga. Mestre em Educação pela PUC-RS. Doutora em Educação: História, Política e Sociedade pela PUC-SP. Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 35 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... Abstract: The present article presents a reflection about the conceptions and debates that involved the approval of the bill 05/2005 on December 13th, by the special council of the National Education Council that is responsible for the National Curricular Guidelines for the Pedagogy Course, Teacher Education Degree. The analysis allowed us to notice that the current politics for teacher education are based on a pragmatic and technicist view of teacher education as they give emphasis to the instrumental dimension of knowledge, which privileges practice over theory: the practice epistemology. This epistemological basis has been providing support to the centrality in teaching, which results in the reduction of the epistemological field of Pedagogy according to the current guidelines. Keywords: Educational reforms. Pedagogy Course. Practice Epistemology. Relation Theory and Practice. Práxis. À GUISA DE INTRODUÇÃO: É O FIM DO DEBATE? O Parecer 05/2005, aprovado por unanimidade pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação em 13 de dezembro, ao propor as Diretrizes Curriculares Nacionais Nacionais para o Curso de Pedagogia, apresenta uma solução, mesmo que provisória, para uma controvérsia que vem se arrastando nos últimos 25 anos, sem perspectiva de negociação e muito menos de consenso. Ao exercer sua função reguladora, na impossibilidade da construção de uma solução negociada, o CNE decide-se por uma das posições controversas, com o que naturalmente reacende o debate, sempre salutar e necessário em uma sociedade que se pretende democrática. Embora não estejam explícitos, o texto e o contexto levam a crer que dois critérios, dentre outros, orientaram a decisão: o da maioria, o que nem sempre é sinônimo de verdade, e o da racionalização burocrática, uma vez que cada vez mais se avolumam processos de criação de cursos nos mais diversos formatos e se replicam os pedidos de 36 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer apostilamento de habilitações por aqueles que cursaram uma especialidade e argumentam sobre sua capacidade para a docência ou cursaram apenas uma das habilitações relativas à licenciatura em Educação Infantil ou nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Da mesma forma que o critério anteriormente citado, o da racionalidade burocrática também não é garantia de adequação política, uma vez que nem sempre a simplificação dos procedimentos responde às demandas sociais, particularmente nos momentos em que a dinamicidade das relações sociais e produtivas exige a formulação, no plano coletivo, de novas propostas de formação humana, para cuja construção a liberdade para experimentar a diversidade é condição necessária. É importante observar que, não obstante a pretensão de encerrar, pelo menos por um tempo, a discussão, não há garantia de que tal ocorra, posto que nos dias em que escrevemos este texto, na primeira dezena de fevereiro, a resolução proposta, aprovada por unanimidade, ainda não foi homologada. Uma das causas prováveis – neste país, quando se trata de leis, nunca se sabe ao certo por que as coisas acontecem ou não acontecem – pode ser a declaração de voto apresentada por dois conselheiros, que apontam contradições entre o texto aprovado e o Art. 64 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Trata-se da Resolução 02/02, que estabelece a duração dos cursos de licenciatura, incluindo Educação Infantil e séries iniciais com 2800 horas, sendo 800 horas de práticas, incluindo os estágios, e 200 horas de atividades complementares. O novo Parecer, diferentemente, estabelece 3200 horas, sendo 300 para estágios e 100 horas de atividades complementares. Embora muitos de nós consideremos esta mudança uma adequação necessária, há que se registrar a manifesta incompatibilidade entre os dois documentos. Há, ainda, um terceiro voto em separado, no qual o conselheiro destaca a importância da manutenção dos pareceres e da resolução que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores para a Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, graduação plena com o que, não revogada a Resolução 01/99, que dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação, passam a conviver três alternativas de formação para a mesma finalidade, as quais, embora guardem pontos comuns, apresentam divergências. Dentre elas, destacamos a duração, já apontada, e por incrível que isto possa parecer, uma maior flexibilização na organização das Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 37 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... propostas, uma vez que tanto a Resolução 01/99 quanto a Resolução 01/02 admitem a possibilidade de uma única habilitação, de Educação Infantil ou séries iniciais, que poderão ser complementadas, atendendo ao espírito das Diretrizes Curriculares Nacionais no tocante à oferta de percursos mais curtos que permitam uma inserção mais rápida no mercado de trabalho. É evidente que esta posição precisa ser criticamente considerada, em face do risco do aligeiramento da formação, a favorecer a sua mercantilização. Contudo, em face da nova proposta, que apresenta como única alternativa a dupla habilitação, acrescida da qualificação para docência no Ensino Médio, na área de educação, é preciso que se analise se este problema foi adequadamente equacionado. A nós parece que o aligeiramento continua, provavelmente mais acentuado, dada a ampliação das competências constantes do perfil do licenciado nos termos do Parecer 05/05. A Resolução 01/99 contempla, ainda, no Art. 6 § 1º, a possibilidade da oferta, a critério da instituição, da preparação específica em áreas de atuação profissional, tais como educação para portadores de necessidades especiais, educação de jovens e adultos e de comunidades indígenas, entre outras. Na mesma linha, a Resolução 01/02, resguardada a especificidade da licenciatura com percurso próprio, enfatiza, no Art. 14, a flexibilidade necessária para que cada instituição construa projetos inovadores e próprios, desde que sejam observados os eixos integradores. E, embora não se refira a ênfases, apontando antes a necessidade de que o professor tenha conhecimentos mais amplos que abranjam as diferentes culturas, fases de desenvolvimento e níveis de escolaridade, não as veda. Observe-se que os objetos das Resoluções 01/99 e 02/02 são distintos, referindo-se a primeira à organização e natureza dos espaços formativos e a segunda, às diretrizes curriculares. Em conseqüência, procedidos os ajustes sobre a duração já levados a efeito, estas resoluções têm caráter complementar. O que se reitera com a análise do contido nestas resoluções é que elas não vedam a habilitação única ou mesmo a possibilidade de construir percursos mais específicos a partir de uma base comum, dependendo das opções da instituição, complementadas por escolhas do aluno por meio da flexibilização curricular, sempre lembrando o princípio fundante das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em geral: a diferenciação dos percursos curriculares. Não se trata aqui de discutir o mérito destas resoluções no que tange 38 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer à flexibilização, mas apenas apontar que há contradições de fundo entre estas e o novo parecer. Há que se observar, no entanto, que a contradição mais evidente a ser enfrentada é a que diz respeito à duração. Note-se que a Resolução 01/99, tão duramente criticada por induzir, entre outras questões, o aligeiramento da formação, propunha 3200 horas de formação, permitindo uma única habilitação, no que teve artigos revogados para adequar-se às 2800 horas propostas pela Resolução 02/02. Agora, a proposta de resolução recém-aprovada volta às 3200 horas, com significativas mudanças (no nosso entender necessárias) na carga horária destinada às práticas e aos estágios, que passa de 800 para 300 horas, e também nas atividades complementares, que passam a ter 100 horas. Observe-se, contudo, que a Resolução 01/99, no seu Art. 9, em vigor, propõe, tal como a 02/02, 800 horas de prática. Em resumo, três mudanças relativas à duração no curto período de cinco anos, sendo que duas continuarão a ter efeitos legais caso seja aprovada a nova resolução tal como está. Isto significa duas alternativas de curso, com duração e formas de organização (Curso Normal Superior ou Pedagogia) distintas, para a mesma finalidade, à escolha do administrador, segundo suas conveniências. Nada impediria, e o voto em separado do conselheiro Francisco Aparecido Cordão ressaltando a importância da manutenção da Resolução 01/02 reforça esta possibilidade, que permanecessem todas as modalidades, em nome da flexibilização, podendo as instituições optar pelas ofertas mais convenientes. Estas são geralmente determinadas pelo mercado, e as propostas mais curtas, mais práticas e mais flexíveis podem ser planejadas de modo a reduzir o custo, sendo mais atrativas para o setor privado. É bom lembrar que foi exatamente isto o que aconteceu por ocasião da negociação ocorrida durante a elaboração do Decreto 5154/ 04, que regulamenta a educação profissional, quando foi decisiva a participação do mesmo conselheiro. A proposta inicial, de revogação do Decreto 2208/97, foi substituída pela revogação apenas do artigo que vedava a oferta do curso médio integrado à educação profissional, com o que permaneceram todas as modalidades propostas pelo decreto anterior, acrescidas da nova possibilidade. Assim, o novo decreto, ao revogar o anterior, o fez incorporando-o, de modo a assegurar a continuidade das ofertas que vinham sendo feitas pelo setor privado de educação profissional. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 39 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... Outra questão a apontar, ainda, do ponto de vista da coerência das normas, é a contida no voto em separado do conselheiro Paulo Monteiro Vieira Braga Barone, quando aponta o que chama de contradição intrínseca no que se refere à definição do pedagogo, através da especificação de apenas uma modalidade de formação: Essa definição, que afirma inicialmente ser o Pedagogo o professor de Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, reveste em seguida este profissional de atributos adicionais que deformam consideravelmente o seu perfil. Talvez a solução para esta contradição lógica fosse a admissão de um espectro mais amplo de modalidades de formação, como o bacharelado, não previsto no Parecer (Conselheiro Paulo Monteiro Vieira Braga Barone, Parecer 5/2005 – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia de 13 de dezembro de 2005). Com relação a esta contradição intrínseca apontada pelo conselheiro, há pelo menos duas dimensões a discutir: o disposto pelo MEC nas orientações dadas às comissões de especialistas responsáveis pela elaboração das propostas de diretrizes curriculares para os cursos de graduação e a definição de ação docente apresentada pelo Parecer 05/05. Sobre o primeiro ponto, há que se observar que o Edital 04/97 da Secretaria de Ensino Superior do MEC apresentou, entre outras categorias, a flexibilização dos percursos pedagógicos como a razão de ser da substituição dos currículos mínimos pelas diretrizes curriculares, para, ao superar o engessamento, melhor responder à dinamicidade das mudanças no mundo do trabalho. Neste edital o MEC chegou a defender, no limite, a possibilidade de “cada curso ser um percurso”, ou seja, nenhuma uniformidade. Exageros e equívocos à parte, a concepção que orientou as comissões de especialistas, que fizeram valer sua experiência, foi a de admitir múltiplas possibilidades de organização curricular, de modo a atender, principalmente, às novas necessidades que as mudanças ocorridas na vida social e produtiva têm trazido. No campo da Pedagogia, estas mudanças abriram novas possibilidades de atuação dos profissionais da educação, docentes e não docentes, no trabalho, nas organizações não governamentais, nos meios de comunicação, nos sindicatos, nos partidos, nos movimentos sociais e nos vários espaços que têm sido abertos no setor de serviços para atender às demandas sociais. 40 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer Com o reconhecimento da especificidade do campo de atuação do pedagogo, veio também a indicação dos seus limites, instando os cursos a construírem percursos interdisciplinares que articulassem os conhecimentos relativos ao trabalho pedagógico aos campos de outras ciências, de modo a formar profissionais de educação com novos perfis, capazes, por exemplo, de atuar com as novas tecnologias, com as diferentes mídias e linguagens, com a participação social, com o lazer, com programas de inclusão dos culturalmente diversos, dos portadores de necessidades especiais, e outras inúmeras possibilidades formativas que a vida social e produtiva tem demandado em decorrência do regime de acumulação flexível. Essa gama de possibilidades abertas pela prática social e produtiva foi simplesmente fechada pela nova proposta, que reduz o pedagogo ao professor de Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, modalidade Normal, e Educação Profissional para os técnico-administrativos das escolas e sistemas de ensino. Ao invés de flexibilidade para experimentar novas possibilidades, a redução pelo enrijecimento. Define-se exclusivamente o pedagogo como professor, limitado as qualificações profissionais já citadas. Fecha-se a possibilidade para a formação, em outros percursos na graduação, do pedagogo unitário, por exemplo, como faz a Universidade Federal do Paraná, competente para atuar tanto na docência quanto na gestão da escola e do sistema de ensino, cuja inserção no mercado de trabalho tem sido considerável. Ou do pedagogo do trabalho, ou do pedagogo social, ou do pedagogo capacitado para atuar em projetos de inclusão social, quer dos culturalmente diferentes, quer dos portadores de necessidades especiais. Sobre o segundo ponto, o Parecer 05/05 amplia demasiadamente a concepção de ação docente, provavelmente para rebater as críticas que vinham sendo feitas à redução do campo epistemológico da Pedagogia que a centralidade nesta categoria determinava e, ao mesmo tempo, produzir uma formulação que, pela abrangência, fosse mais consensual. Como resultado deste esforço, a concepção de ação docente passou a abranger também a participação na organização e gestão de sistemas e instituições de ensino e a produção e difusão do conhecimento científico-tecnológico do campo educacional em contextos escolares e não escolares, assumindo tal amplitude, que resultou descaracterizada. A gestão e a investigação demandam ações que não podem ser Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 41 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... reduzidas à de docência, que se caracteriza por suas especificidades; ensinar não é gerir ou pesquisar, embora sejam ações relacionadas. Em decorrência desta imprecisão conceitual, o perfil e as competências são de tal modo abrangentes, que lembram as de um “novo salvador da pátria”, para cuja formação o currículo proposto é insuficiente, principalmente ao se considerar que as competências elencadas, além de muito ampliadas, dizem respeito predominantemente a dimensões práticas da ação educativa, evidenciando-se o caráter instrumental da formação. Ademais, para além do estudo dos fundamentos, dos conteúdos e das práticas pedagógicas para as áreas de competência listadas, Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental, Curso Normal e outros cursos técnicos de nível médio, todas com seus estágios, não é possível visualizar espaço no percurso curricular para uma formação teórico-metodológica que qualifique para a gestão e para pesquisa em instituições escolares e não escolares; ou contemplar, nos diferentes componentes curriculares ou nas 100 horas de atividades complementares, a qualificação para atuar, mesmo que opcionalmente, em apenas mais uma área, na educação de jovens e adultos, dos trabalhadores, dos portadores de necessidade especiais, dos indígenas, dos remanescentes dos quilombolas e componentes de outros grupos étnicos. Daí o espanto do conselheiro com a intrínseca contradição: no afã do atendimento a todas as vozes dissonantes da opção escolhida, ao tempo que o Parecer define um foco restrito a uma única possibilidade de qualificação, representativa de uma forma específica de concepção do que seja a pedagogia, amplia demasiadamente o perfil, do que resulta a ineficácia práxica da proposta, pois o que está em tudo não está em lugar nenhum, constituindo-se desta forma uma aberração categorial: uma totalidade vazia. Os resultados práticos desta contradição é que as instituições formadoras, mais uma vez, vão propor percursos para atender às suas conveniências, principalmente as mercantis, o que contribui, contrariamente ao professado, para uma maior desqualificação da educação básica, ampliada pela desqualificação dos formadores. Decorre desta análise introdutória que talvez o debate, por impropriedade jurídica ou por impertinência práxica, ainda não tenha chegado ao fim... 42 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer VALNIR CHAGAS VINTE ANOS DEPOIS: FINALMENTE, A REDUÇÃO DA PEDAGOGIA AO CURSO NORMAL SUPERIOR Administrar, supervisionar e orientar são ações transitivas que supõem um objeto representado, no caso pelo conhecimento e pela vivência de escola, de ensino e de aluno; daí por que todo especialista em Educação tem que ser primeira e basicamente educador. A especialidade – são ainda palavras de Anísio Teixeira – “é uma opção posterior que faz o professor ou o educador já formado e com razoável experiência de trabalho”. (CHAGAS, 1980, p. 320). A análise do Parecer 05/05 permite concluir que a proposta de Curso de Pedagogia apresentada, ao mesmo tempo em que propõe a revogação da Resolução 02/69, reedita, em larga medida, as propostas apresentadas na década de 1970 pelo Conselho Federal de Educação, através dos Pareceres 67 e 68/75 e 70 e 71/76, cujo relator foi o professor Valnir Chagas. Tais indicações propunham a formação de especialistas e do professor para o ensino pedagógico do Curso Normal, assim como do pedagogo em geral, a ser realizada em habilitações acrescidas a cursos de licenciatura. Esses pareceres, como sabemos, não foram homologadas na época. O modelo pretendido por Chagas é assim caracterizado: A formação de especialistas em Educação e de professores para o ensino pedagógico de 2º grau, tanto quanto do pedagogo em geral, será feita como habilitações acrescentadas a cursos de licenciaturas e, em caráter transitório ditado pelas peculiaridades locais, como curso aberto a docentes que tenham preparo de 2º grau, exigindo-se em qualquer hipótese a prévia experiência profissional de magistério. (CHAGAS, 1976, p. 76 – grifos nossos). Esse relator propunha cursos de licenciatura para formação de professores, sendo que as habilitações seriam acrescentadas a esses cursos. Ao Curso de Pedagogia caberia a formação do professor para atuar nas séries iniciais, sendo subseqüente a formação do especialista. Esta proposição, não homologada à época, agora é reeditada, considerado o especialista em educação um prolongamento do professor. Passamos, então, a uma análise comparativa dos pareceres reOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 43 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... latados por Chagas, em 1970, com o atual projeto de resolução. Esse documento define um profissional cujo percurso inicial é o de docente, feito no Curso de Licenciatura em Pedagogia. Esse docente poderá verticalizar sua qualificação, acrescentando à sua formação inicial a de especialista, por meio de curso de pós-graduação. Em síntese, o que se pretende é habilitar o especialista no professor, da mesma forma proposta por Chagas na década de 1970. Esta concepção foi objeto de severas críticas à época, pelos que defendiam a formação do especialista no Curso de Pedagogia, uma vez que a formação do professor para a educação infantil e para as séries iniciais era feita por meio dos cursos de formação para o magistério em nível médio. Chagas, justificando sua proposta pela ampliação e complexificação das organizações escolares, reconhecia, já nos anos 70, a necessidade da formação do professor para todos os níveis em cursos superiores de graduação, com o que se deslocava naturalmente a formação do especialista para o nível de pós-graduação, sempre tomando a formação para a docência e a experiência no magistério como pré-requisitos para esta formação. Assim, o próprio Chagas propunha-se a superar os limites impostos ao Parecer 252/69 e respectiva resolução pelo próprio desenvolvimento da sociedade: O Especialista em Educação é também um prolongamento do professor, resultante do crescimento das escolas e da sua organização como e em sistemas cada vez mais complexos. Surgiu com o diretor clássico, já descrito, que se desdobrou e se desdobrou, gradualmente, em dezenas de profissionais ora necessários em determinadas circunstâncias, ora simplesmente pedantes e inúteis, que no fundo se prendem aos componentes básicos da educação formal: a escola, o professor e o aluno. Daí as três especialidades fundamentais % administração, supervisão e orientação % que se forma com o tempo delineando seja quanto às suas funções, seja quanto às próprias designações. (CHAGAS, 1980, p. 317). Esta mesma justificativa, o desenvolvimento das forças produtivas com suas conseqüências sobre a educação, serviu à retomada da defesa da formação do professor da educação básica em cursos de graduação pelos profissionais da educação e pela sociedade civil, desde o processo constituinte. Sobre o que não se construiu consenso nas discussões que se iniciaram a partir de 1980 com a criação do Movimento de Reformulação dos Cursos de Formação de Educadores e seus 44 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer desdobramentos foi a identidade, e em decorrência, as funções, do Curso de Pedagogia. Sem a intenção de repetir uma discussão sobre a qual há vasto material publicado, registramos, para fins desta análise, as três concepções que se confrontaram nestes vinte e cinco anos: a pedagogia centrada na docência, enquanto licenciatura; a pedagogia centrada na ciência da educação, como espaço de formação dos especialistas, enquanto bacharelato; e a pedagogia que integrava as duas dimensões, formando o professor e o pedagogo unitário em um mesmo percurso, uma vez que a defesa da formação de especialistas na graduação foi se fragilizando ao longo do tempo, embora a LDBEN, intempestivamente, as resgatasse, com o que se ampliaram as divergências e as dificuldades. Considerando apenas parte deste tão longo debate, e sem levar em conta a totalidade e riqueza de experiências que se desenvolveram ao longo do tempo, inclusive avaliadas, o Conselho Nacional de Educação decidiu por um formato que confere exclusividade à licenciatura, e especificamente de Educação Infantil e séries iniciais, acrescida da qualificação para ensino profissionalizante de nível médio nas modalidades Magistério e Serviços de Apoio, tudo em um único percurso, vedadas as ênfases ou habilitações. E ainda, tomando por base a formação de um profissional polivalente, rejeita a possibilidade da formação por disciplina facultada pela Resolução 01/99, no seu Art. 7, § 10. Esta é outra contradição que permanece, a refletir as divergências que persistem. É bom que se lembre que esta redução à educação até o limite das séries iniciais também se deveu ao fato de que as universidades não foram competentes para, neste período, resolver as históricas divergências entre as Faculdades de Educação e os Institutos responsáveis pela formação de professores para as áreas de conteúdo, em decorrência do que esta formação tem suas diretrizes dispostas em outra resolução (01/02). O resultado das decisões contidas no Parecer 05/05 foi a redução do campo epistemológico da Pedagogia, com seu vasto elenco de possibilidades formativas, que superam de muito as tradicionais habilitações, à docência para crianças. As demais possibilidades passam para o nível subseqüente, em cursos de pós-graduação, lato ou stricto sensu, abertos a todos os licenciados, e em muito casos, dadas as condições de interdisciplinaridade, aos bacharéis, como já ocorre Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 45 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... com freqüência. A Pedagogia, enquanto graduação, restringe-se ao Curso Normal Superior, aprovando-se 20 anos depois a proposta de Chagas, contida nos pareceres não homologados e veementemente rejeitados na década de 1970. Nosso entendimento é o de que essa equivalência, proposta no Parecer 05/05, além de referenciar uma determinada concepção, também apresenta uma solução para a pouca aceitação do Curso Normal Superior. O Curso Normal Superior, como sabemos, foi adotado especialmente por instituições não universitárias que criaram Institutos Superiores de Educação, visando qualificar o mais rapidamente possível os professores em exercício e adequá-los à exigência de formação em nível superior proposta pela nova LDBEN, o que configurava um mercado promissor. Apesar de legalmente constituído, esse curso não ganhou legitimidade na comunidade acadêmica e fora dela. A nova proposta de resolução, no Art. 11, permite a transformação dos Cursos Normais Superiores em Cursos de Pedagogia, por intermédio da elaboração e apresentação de um novo projeto pedagógico no prazo de um ano a contar da data da publicação. Com a nova legislação, os Cursos Normais Superiores, ofertados por instituições não universitárias e, portanto, sem o compromisso com a pesquisa e sem a relação interdisciplinar com os Institutos responsáveis pela formação nas áreas de conteúdo, ganham o status de Curso de Pedagogia. A conseqüência desta equivalência é a formação de profissionais com diferentes níveis de qualidade que farão jus à mesma certificação, cabendo ao mercado proceder à seleção segundo seus interesses e suas necessidades, o que certamente fragilizará a profissionalização docente. Mas, no nosso entendimento, há uma segunda e muito forte determinação para esta redução da Pedagogia à docência para crianças: uma concepção que toma a prática docente como pré-requisito para a formação do pedagogo, enquanto gestor, especialista ou pesquisador, já presente em Chagas, que por sua vez se apóia em Teixeira, como evidencia a citação que abre este item. E não qualquer prática docente: especificamente, a formação e a prática em educação de crianças, admitida também como pré-requisito à prática dos licenciados com as séries finais do Ensino Fundamental e com o Ensino Médio. Esta compreensão, que determina que os estudos em educação se iniciem, necessariamente, pela formação e prática na docência da educação básica, no nosso entendimento, ao engessar a formação dos 46 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer profissionais da educação, contradiz as novas demandas do mundo do trabalho, que abrem inúmeras possibilidades de atuação nos processos ampla e especificamente pedagógicos de formação humana na perspectiva da emancipação, como já se demonstrou anteriormente. E, levando em conta a diversidade destas possibilidades, não há como sustentar tal pré-requisito; embora se possa concordar que a licenciatura preceda a formação especializada, consideramos mais adequado defender uma sólida formação nos fundamentos, teorias e práticas pedagógicas que são comuns às diferentes possibilidades de atuação do profissional da educação, sobre a qual se desenvolvam as especificidades das diferentes áreas de atuação através de percursos diferenciados. Não há como concordar que a formação em Magistério de Educação Básica seja pré-requisito para a formação de profissionais de educação que atuam nas áreas de pedagogia social ou do trabalho, por exemplo, uma vez que essas áreas exigem formação teóricometodológica a partir de categorias que lhe são próprias, embora a partir de uma fundamentação comum. Se a formação inicial em docência em educação básica não é prérequisito para outras modalidades de licenciatura no campo da pedagogia, também não se pode afirmar que seja pré-requisito para a formação de pesquisadores, o que vai depender das linhas e objetos de pesquisa e das bases epistemológicas, teóricas e metodológicas que as fundamentam. O percurso curricular que qualifica para a docência em educação básica não resulta em qualificação para a pesquisa em um campo tão vasto como é a educação, e tão pouco é requisito para tal, como as experiências de iniciação científica bem têm demonstrado; ao contrário, dependendo do recorte do objeto, o aluno de IC terá que se apropriar de fundamentação diferente da oferecida pelo curso centrado na docência. No caso da qualificação para a gestão, embora se admita que o conhecimento do objeto a ser gerenciado integra a formação do gestor, ainda assim a qualificação em docência em educação básica não se justifica como pré-requisito exclusivo, a não ser para a gestão neste nível de ensino. Em que, por exemplo, esta formação impactaria, senão remotamente, a qualificação de um gestor de projetos de educação inclusiva, do ponto de vista das diferenças étnicas? Ou de projetos de educação nos movimentos sociais? Ou de educação profissional? Ou de educação para idosos? De novo se argumenta que são necessários fundamentos teóricos e metodológicos específicos, sempre considerada uma fundamentação comum, que não se esgota na proOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 47 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... posta pelo parecer, em face da particularidade de seu foco. Do ponto de vista teórico-metodológico, podemos afirmar que esta tomada refere-se à decisão de centrar o percurso formativo em uma parte que não encaminha suficientemente à apreensão da rica e complexa totalidade dos processos de formação humana, em suas múltiplas e dinâmicas relações com as dimensões sociais, econômicas e culturais que configuram a prática social. A PRÁTICA: A BASE EPISTEMOLÓGICA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A EDUCAÇÃO BÁSICA, SEGUNDO AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS Discutida a impropriedade da proposta apresentada pelo parecer do ponto de vista do seu conteúdo – a exclusividade da formação em Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental –, há que discuti-la do ponto de vista epistemológico. Neste item, buscaremos mostrar que a opção por um modelo de formação de professores que eleja a prática em docência em educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental como pré-requisito para o desenvolvimento de estudos avançados em educação, reduzindo-se o campo da Pedagogia, atende a uma concepção que privilegia a prática em detrimento da teoria: a epistemologia da prática. Esta concepção, ao invés de articular teoria e prática, acentua a desarticulação, na medida em que condiciona os estudos teóricos mais avançados à prática, e o que é mais grave, a uma prática específica: a docência para crianças de 0 a 10 anos. As propostas de extinção da Pedagogia, desde as apresentadas por Chagas na década de 1970, mostra Brzezinski, justificam-se sobretudo pela tendência brasileira de centrá-la na vertente profissionalizante, como campo prático, que mantém pouca relação com os estudos epistemológicos (1996, p. 82). Justificava-se, ainda, destaca a mesma autora, pela ausência de estudos teóricos que tratassem da Pedagogia como ciência unitária, uma vez que a preocupação com a base epistemológica da Pedagogia, embora surja nos anos 1980, só vai se consolidar na década de 1990, destacando-se, entre outros, os trabalhos de Libâneo (1998, 2000, 2002), Pimenta (1991, 1992, 1998, 2001, 2002), Bissoli (1999), Brzezinski (1996) e Franco (2003). É esta preocupação com o caráter prático da formação que vai 48 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer orientar os pareceres e resoluções que são exarados a partir de 1999, até o presente momento. A justificativa apresentada para o privilegiamento da prática é a recorrente observação de que a produção intelectual e os avanços teóricos têm afetado muito pouco a prática dos professores, e quando chegam à escola e à sala de aula, sua apropriação é precária ou equivocada, uma vez que os professores não compreendem o conhecimento abstrato e o discurso complexo produzido e divulgado pela academia. Outras explicações decorrem das constantes críticas à ineficiência dos modelos de formação que se tornaram convencionais, destacando especialmente o elevado academicismo das propostas, em razão do que se torna necessário elaborar novos modelos de formação, com base na epistemologia da prática (SCHÖN, 2000; TARDIF, 2002; ZEICHNER, 1993; PERRENOUD, 1993). A emergência do paradigma da prática no Brasil pode ser situada no final da década de 1980 e início de 1990, coincidindo com o movimento das reformas educacionais. É nesse contexto que aparece, em todo país, uma literatura pedagógica nacional e internacional que privilegia a formação reflexiva do professor e a construção de competências profissionais, além de fazer crítica ao modelo da racionalidade técnica tradicionalmente adotado nos programas de formação de professores. A concepção de formação, assentada na formação reflexiva de professores e na construção de competências profissionais, sob o enfoque da nova epistemologia da prática, localiza-se originariamente nos estudos sobre educação profissional realizados por Donald Schön, que desenvolve o conceito de formação de profissionais reflexivos a partir da crítica ao modelo de racionalidade técnica de tradição positivista adotado nos currículos das escolas profissionais de seu país (SCHÖN, 2000). No prefácio do seu livro “Educando o Profissional Reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem”, Schön (2000) afirma que desde 1983 vem propondo uma nova epistemologia, que advém do conhecimento que os profissionais constroem a partir da reflexão sobre as suas práticas, “pensar o que fazem, enquanto fazem”, em situações de incerteza, singularidade e conflito. Schön (2000) parte do pressuposto de que há um dilema entre rigor e relevância na formação profissional e que os educadores estão cada vez mais cientes da existência de “zonas indeterminadas na práOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 49 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... tica”, as quais, segundo ele, demandam um talento artístico que é obstaculizado, impedido de se manifestar, por causa da adoção, nas escolas profissionais, de currículos normativos. Ao afirmar “que os problemas da prática do mundo real não se apresentam aos profissionais com estruturas bem-delineadas” e que “na verdade, eles tendem a não se apresentar como problemas, mas na forma de estruturas caóticas e indeterminadas” (2000, p. 16), Schön, destaca as “zonas indeterminadas da prática”, que envolvem situações em que não há respostas certas ou procedimentos-padrão, que fogem das estratégias convencionais de explicação. Propõe, então, um ensino prático reflexivo, baseado numa epistemologia da prática que abra espaço para o talento artístico, apresentando outros dois conceitos: conhecimento-na-ação e reflexão-na-ação. Ao desenvolver o ensino prático reflexivo, Schön esclarece que é “um ensino prático voltado para ajudar os estudantes a adquirirem os tipos de talento artístico essenciais para atuarem em zonas indeterminadas da prática”. (2000, p. 25). As principais características do ensino prático-reflexivo são o aprender fazendo, a instrução e o diálogo de reflexão-na-ação entre instrutor e estudante. O autor utiliza a expressão “talento artístico profissional” para referir-se “aos tipos de competências que os profissionais demonstram em certas situações da prática que são únicas, incertas e conflituosas”. (SCHÖN, 2000, p. 29, grifos no original). Conhecer-na-ação revela-se, para Schön, por um tipo de inteligência tática e espontânea que somos incapazes de tornar verbalmente explícita. Já a reflexão-na-ação agrega uma função crítica, questionando a estrutura dos pressupostos do ato de conhecer-na-ação. Para ele, ao pensarmos criticamente na ação, podemos reestruturar as estratégias de ação. (SCHÖN, 2000, p. 33). Na epistemologia da prática sugerida por Schön, “o talento artístico profissional é entendido em termos de reflexão-na-ação e cumpre um papel central na descrição da competência profissional” (SCHÖN, 2000, p. 38). Revela que na base dessa visão da reflexão-naação está uma visão construcionista da realidade, na qual novas visões, apreciações e crenças estão enraizadas em mundos construídos por nós mesmos, contrapondo-se à racionalidade técnica, que se baseia numa visão objetivista da relação do profissional com a realidade que ele conhece. (SCHÖN, 2000). Embora já nos pareceres da autoria de Chagas a supremacia da prática sobre a teoria aparecesse enfaticamente, justificando a neces50 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer sidade de praticar a docência como requisito para os estudos teoricamente mais avançados de educação, a epistemologia da prática vai se fazer presente de forma mais marcante nos pareceres e resoluções que foram exarados pelo CNE a partir de 1999, evidenciando a forte incorporação desta proposta nos debates e nas práticas e formação de professores desde então. O Parecer CP 115/99, que antecede a Resolução 01/99, ao centrar a formação do professor no desenvolvimento de competências, aponta para a necessidade de qualificá-lo para uma nova prática, que não se restrinja à sala de aula, mas se amplie para contemplar as articulações com as famílias e com a comunidade em geral, como o objetivo central da formação inicial e continuada dos docentes. Dentre os problemas identificados, destaca o legislador a dissociação entre a teoria e a prática, que se apresenta em duas vertentes: na separação entre as teorias e métodos das atividades concretas de ensino na sala de aula e na organização escolar; e na separação entre o domínio das áreas específicas de conhecimento e as necessidades e capacidades dos alunos das diferentes faixas etárias e fases do percurso escolar. Em decorrência, o Parecer 115/99 apresenta a prática como elemento articulador do processo de formação de professores. Neste documento, a incorporação das categorias apresentadas por Schön é bastante evidente; embora o parecer se refira à integração entre teoria e prática, a dimensão instrumental da teoria se faz presente em textos como: [...] é a prática de ensino desenvolvida na escola que pode desvelar ao aluno docente problemas pedagógicos concretos, que precisam ser resolvidos no cotidiano do processo de ensino e aprendizagem desenvolvido no ensino fundamental. O seu enfrentamento [...] estimulará o futuro professor a desenvolver a reflexão crítica sobre os conteúdos curriculares que ministra e sobre as teorias a que vem se expondo, ao mesmo tempo em que suscitará redirecionamentos ou reorganização da atividade pedagógica que vem efetivando. Neste processo de aprender fazendo, o aluno docente aprimora e reelabora seus conhecimentos. Ou seja, é a prática o critério de reformulação da prática a partir da reflexão crítica, como afirma Schön, acima referenciado. E, em decorrência desta concepção, a prática de ensino deve perpassar toda a formação profissional. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 51 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... A mesma concepção está presente nos Pareceres 09/01, 27/01 e na Resolução 01/02, onde, no parágrafo único do Art. 6, pode-se ler que “a aprendizagem deverá ser orientada pelo princípio metodológico geral, que pode ser traduzido pela ação-reflexão-ação e que aponta a resolução de situações-problema como uma das estratégias didáticas privilegiadas”. Esta concepção que privilegia a prática como espaço formativo vai ser o fundamento para a definição da duração dos componentes curriculares na Resolução 02/02, estabelecendo-se 800 horas de práticas, incluindo o estágio, e 200 horas de atividades complementares, com o que se restringe a 1800 horas a formação teórica sobre educação e sobre a área do conhecimento a ser ensinada. Desnecessário repetir aqui as críticas, por demais anunciadas, feitas ao caráter reducionista da formação assim proposta, restrita ao domínio dos conhecimentos escolares, com o que certamente se fragiliza ainda mais a formação docente. Nestes documentos, afirma-se a prática como componente curricular, “uma dimensão do conhecimento que tanto está presente nos cursos de afirmação nos momentos em que se trabalha na reflexão sobre a atividade profissional, como durante o estágio nos momentos em que se exercita a atividade profissional”. Na nova proposta, apresentada pelo Parecer 05/05, a questão da relação entre teoria e prática é tratada enquanto “problemática do equilíbrio entre formação e exercício profissional”, criticando o intelectualismo que revestia cursos cujos professores, “com pouca ou nenhuma experiência de magistério nos anos iniciais de escolarização e responsáveis por disciplinas fundamentais, entendiam que a prática teria menor valor”. Sem referir-se aos que faziam o contrário, bastante freqüentes, conferindo uma dimensão praticista à formação, o documento aponta para os que articulavam estas duas dimensões através da concepção da Pedagogia como práxis. A partir destas considerações, o documento incorpora a compreensão de que a Pedagogia trata do campo teórico-investigativo da educação, do ensino e do trabalho pedagógico que se realiza na práxis social, sem elucidar o significado que dá a estas categorias ou mesmo como se relacionam, se aproximam ou se diferenciam. A leitura do texto, contudo, mostra que, ao eleger a ação docente como categoria estruturante da formação, compreendida na acepção ampliada já analisada, o parecer define os objetos, os conhecimentos, o perfil do pedagogo e os núcleos curriculares com base na prática. 52 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer São escassas as referências ao trabalho intelectual, e quando aparecem, é sob a forma de “estudos de didática, de teorias, e metodologias pedagógicas, de processos de organização do trabalho docente; das relações entre educação e trabalho, diversidade cultural, cidadania, sustentabilidade; ou sob a forma de atenção às questões atinentes à ética, à estética e à ludicidade”. (Art. 6 da proposta de resolução ainda não homologada). Não há referência ao desenvolvimento das competências complexas do trabalho intelectual, em particular as que se referem ao exercício da crítica, da participação política ou ao desenvolvimento de conhecimentos científico-tecnológicos para enfrentar os desafios de uma sociedade cada vez mais excludente, para o que o domínio de conhecimentos científicos, tecnológicos, e sócio-históricos com vistas à formação de um profissional com autonomia intelectual e ética são fundamentais. Ao contrário, as referências dominantes são aos modos de fazer: aplicar, planejar, implementar, avaliar, realizar, com o que se reforça a dimensão instrumental que determina as relações com o conhecimento. Como afirma Contreras (2002), a idéia básica deste modelo é que a prática profissional consiste na solução instrumental de problemas mediante a aplicação de um conhecimento teórico e técnico, previamente disponível, que procede da pesquisa científica. É instrumental porque supõe a aplicação de técnicas e procedimentos que se justificam por sua capacidade para conseguir os efeitos ou resultados desejados. O aspecto fundamental da prática profissional é definido, por conseguinte, pela disponibilidade de uma ciência aplicada que permita o desenvolvimento de procedimentos técnicos para a análise e diagnóstico dos problemas e para o tratamento e solução. A prática suporia a aplicação inteligente desse conhecimento, aos problemas enfrentados por um profissional, com o objetivo de encontrar uma solução satisfatória (p.90-91) A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA: O NÓ DA QUESTÃO A análise levada a efeito permite concluir que as divergências de fundo permanecem se derivando da concepção de relação entre teoria e prática que dá suporte às diferentes propostas em debate: a que confere primazia ao trabalho intelectual, a que confere primazia à prática e a que adota a práxis como categoria fundante. Antes que se Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 53 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... prossiga com a análise, é importante reiterar que os textos analisados, embora em algum momento se refiram à necessária relação entre teoria e prática e mesmo à práxis, o fazem como mero discurso a desabar em uma concepção instrumentalizadora da teoria, na dimensão da epistemologia da prática. A questão em tela, portanto, continua sendo: de que prática estamos falando. Em primeiro lugar, os documentos analisados, com base na concepção de um professor reflexivo que reflete sobre a prática a partir da própria prática, reduz a formação ao conhecimento tácito, que é resultante da experiência no trabalho e, portanto, restrito a formas de fazer; em decorrência, é destituído de sistematização teórica, em virtude do que não pode ser transmitido. O conhecimento tácito, como afirmam Jones e Wood (1984), se insere no âmbito das dimensões subjetivas do trabalho, formas inconscientes e geralmente não reconhecidas através das quais os trabalhadores, mesmo desqualificados, utilizam o saber da experiência para resolver situações novas ou não previstas nos processos de trabalho procedimentados, o que Schön chama de zonas indeterminadas da prática. Desta concepção deriva-se uma pedagogia presente nas diretrizes curriculares para a formação dos professores para a educação básica, nos diferentes pareceres que estão sendo analisados: o aluno docente aprende com a prática, em virtude do que esta deve acompanhálo desde o início do curso e ter carga horária substancial . Esta concepção também corresponde ao que Dejours (1993) chama de inteligência prática, mais vinculada à obtenção de resultados do que ao conhecimento dos princípios e processos que servem de caminho ao pensamento; a questão posta é resolver rapidamente o problema, com economia de esforço e de sofrimento do corpo. O que não significa, como mostra o autor, que a inteligência prática não seja criativa, fazendo surgir novas respostas, materiais, ferramentas, processos. Contudo, tem limites. Kuenzer, ao analisar as novas demandas de educação profissional derivada das mudanças na base técnica com a crescente utilização da microeletrônica, que requerem cada vez mais domínio das categorias referentes ao trabalho intelectual em contraposição à centralidade do conhecimento tácito típica do taylorismo/fordismo, afirma o seguinte: Causa espanto, portanto, ao tempo em que as pesquisas levem a estas constatações, que as políticas públicas em vigor para 54 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer todos os níveis de ensino proponham como tarefa à escola o desenvolvimento de competências entendidas como capacidades de realizar tarefas práticas, desvalorizando, e mesmo declarando desnecessário, o conhecimento científico. Assim é que se traduzem as competências no ensino médio, na educação profissional e nos cursos de graduação, onde os percursos curriculares tendem a ser encurtados, à luz do princípio pósmoderno que nega a objetividade da ciência e o caráter histórico da produção do conhecimento, ao mesmo tempo que ampliam os espaços da prática, na esperança que a mera inserção do aluno no processo de trabalho seja suficiente para a sua formação. (KUENZER, 2003a, p.67). Retrocede-se, afirma a autora, ao princípio educativo do taylorismo/fordismo, onde o melhor instrutor era o “Tonicão”, que embora não conhecesse a ciência do seu trabalho, tinha virtuosidade nas práticas laborais, desenvolvida ao longo do tempo através de sua experiência. Ele também não sabia ensinar, porque conhecimento tácito não se sistematiza e, portanto, não se explica; mas tinha imensa boa vontade em se deixar observar e em mostrar como fazer, pois ele “sabia na prática”. (KUENZER, 2003b). A pedagogia, assim compreendida, se resume a observar e repetir até memorizar as “boas práticas” dos trabalhadores mais experientes, bastando inserir desde logo o futuro docente na situação concreta de trabalho, mesmo antes que ele se aproprie de categorias teóricometodológicas que lhe permitam analisá-la e compreendê-la para poder intervir com competência. A prática, mostra a autora, não é suficiente; ou seja, [...] é preciso considerar que a prática não fala por si mesma; os fatos práticos, ou fenômenos, têm que ser identificados, contados, analisados, interpretados, já que a realidade não se deixa revelar através da observação imediata; é preciso ver além da imediaticidade para compreender as relações, as conexões, as estruturas internas, as formas de organização, as relações entre parte e totalidade, as finalidades, que não se deixam conhecer no primeiro momento, quando se percebem apenas os fatos superficiais, aparentes, que ainda não se constituem em conhecimento. (KUENZER, 2003b, p.14). Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 55 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... A realidade, as coisas, os processos, são conhecidos somente na medida em que são “criados”, reproduzidos no pensamento e adquirem significado; esta re-criação da realidade no pensamento é um dos muitos modos de relação sujeito/objeto, cuja dimensão mais essencial é a compreensão da realidade enquanto relação humano/social. Ou seja, o ato de conhecer não prescinde do trabalho intelectual, que é um movimento do pensamento que não se desenvolve espontaneamente, precisando ser aprendido. [...] o ato de conhecer não prescinde do trabalho intelectual, teórico, que se dá no pensamento que se debruça sobre a realidade a ser conhecida; é neste movimento do pensamento que parte das primeiras e imprecisas percepções para relacionar-se com a dimensão empírica da realidade que se deixa parcialmente perceber, que, por aproximações sucessivas, cada vez mais específicas e ao mesmo tempo mais amplas, são construídos os significados. (KUENZER, 2003b, p.14). A partir desta compreensão, rejeita-se ao mesmo tempo a possibilidade de conhecer pela contemplação ou pela mera ação do pensamento, pois “conhecer é conhecer objetos que se integram na relação entre o homem e o mundo, ou entre o homem e a natureza, relação esta que se estabelece graças à atividade prática humana”. (VÁZQUEZ, 1968, p.53). Se não se trata de reproduzir a realidade como ela se apresenta ao ser humano e tampouco apenas pensar sobre ela, o que está em jogo é a sua transformação a partir da atividade crítico-prática, sustentada na categoria práxis, que integra a teoria, que se mantém no plano da reflexão, e a prática, que se mantém no plano dos fazeres, integração esta que é determinante nos processos de formação humana. Ao discutir os conceitos de atividade e de práxis, Vázquez afirma que “toda a práxis é atividade, mas nem já toda atividade é práxis”. (VÁZQUEZ, 1968, p.185). O que é, então, atividade? Atividade, entendida como sinônimo de ação, é o ato ou conjunto de atos através dos quais o sujeito modifica uma matéria-prima, independente de qual seja a sua natureza, seja pelo trabalho material, seja pelo trabalho não-material. Este ato, ou conjunto de atos, traduz-se em resultados ou produtos, materiais ou não materiais; portanto, são orientados por finalidades e culminam com resultados que em princípio se pretendia alcançar, desde que as ações sejam eficientes e eficazes. O que caracteriza a atividade é seu caráter real, 56 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer sua materialidade. Não há, contudo, atividade humana que não esteja respaldada por algum tipo de atividade cognitiva e, portanto, em alguma atividade teórica. A atividade teórica, com suas dimensões ideológicas ou científicas, só existe a partir de e em relação com a prática; não há pensamento fora da práxis humana, pois a consciência e as concepções se formulam através do movimento do pensamento que se debruça sobre o mundo das ações e das relações que elas geram. No entanto, por se configurar como um movimento no pensamento, por mais que a atividade teórica se aproxime da prática, com ela não se confunde, guardando especificidades que se resumem na produção de idéias, representações e conceitos, atendo-se ao plano do conhecimento. E, em decorrência de ser um processo de apropriação da realidade pelo pensamento, não transforma a realidade, não podendo ser confundida com a práxis. Ainda que a atividade teórica mude concepções, transforme representações e produza teorias, em nenhum destes casos ela transforma, de per si, a realidade. O que não significa dizer que não seja fundamental a atividade teórica para a transformação da realidade; contudo, somente a posse da teoria e só o pensamento sobre as transformações não asseguram a sua efetivação, ou seja, a transformação da realidade. A respeito da contraposição de contemplação e práxis, Kuenzer afirma: [...] não se admite a teoria como uma forma de práxis, distinguindo claramente o conceito real do conceito pensado, apresentando a atividade cognitiva como um processo que ocorre no pensamento, que ascende do abstrato ao concreto, passando pelo empírico. Este processo, que consiste na reprodução espiritual do objeto real sob a forma do concreto pensado, se trata de uma atividade que não produz nada diretamente, não podendo ser identificado com o conceito de práxis por lhe faltar a transformação objetiva de uma matéria através do sujeito, cujos resultados subsistem independentemente de sua atividade. Interpretar não é transformar; a teoria em si, ou os discursos, não transformam o mundo a não ser que passem do plano das idéias e se façam materialidade. (2002, p.10). Sobre esta forma de compreender, Vázquez mostra que “uma teoria é prática na medida em que materializa, através de uma série de Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 57 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... mediações, o que antes só existia idealmente como conhecimento da realidade ou antecipação ideal de sua transformação”. (1968, p.203). “O pensamento nasce de necessidades práticas para satisfazer necessidades da prática”, afirma Kopnin (1978, p.170); é um processo dirigido por finalidades; é a prática que determina ao homem o que é necessário e o que ele deve conhecer para atender a estas finalidades, bem como quais são as suas prioridades no processo de conhecer. Embora o pensamento esteja vinculado às necessidades práticas, é necessário reconhecer sua relativa autonomia, o que significa que pode afastar-se da prática. Há que diferenciar, contudo, o afastamento necessário para a reflexão sobre a prática daquele que autonomiza o pensamento, sobrepondo-o à prática, encerrando-se em si mesmo e perdendo a sua vinculação com o movimento do real. A epistemologia da prática, contrapondo-se à concepção de práxis, desvincula a prática da teoria, que passa a supor-se suficiente; a prática, tomada em seu sentido utilitário, contrapõe-se à teoria, que se faz desnecessária ou até nociva. Neste caso, a teoria passa a ser substituída pelo [...] senso comum, que é o sentido da prática, e a ela não se opõe. Em decorrência, justifica-se uma formação que parte do pressuposto que não há inadequação entre o conhecimento do senso comum e a prática, o que confere uma certa tranqüilidade ao profissional, posto que nada o ameaça; o contrário ocorre com relação à teoria, cuja intromissão parece ser perturbadora. (KUENZER, 2003, p.9). Do ponto de vista do pensamento filosófico, a epistemologia da prática corresponde ao pragmatismo, que, ao reconhecer que o conhecimento está vinculado a necessidades práticas, infere que o verdadeiro se reduz ao útil. O que se põe para a discussão da concepção de formação do profissional da educação é a possibilidade efetiva de articulação entre o teórico e o prático. Estes dois pólos, que se relacionam dialeticamente, constituindo a práxis, embora se unifiquem através do pensamento, guardam especificidades. E aqui reside a riqueza dos processos pedagógicos, os quais, pelo seu caráter mediador, promovem a articulação entre teoria e prática, remetendo a discussão para o plano do método. De fato, o processo que faz a mediação entre teoria e prática é o trabalho educativo; é através dele que a prática se faz presente no 58 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer pensamento e se transforma em teoria; do mesmo modo, é através do trabalho educativo que a teoria se faz prática, que se dá a interação entre consciências e circunstâncias, entre pensamento e bases materiais de produção, configurando-se a possibilidade de transformação da realidade. A partir da práxis, entende-se a prática sempre como ponto de partida e ponto de chegada do trabalho intelectual, através do trabalho educativo, que integra estas duas dimensões. Diferentemente da concepção de prática que fundamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais em suas distintas versões, esta compreensão assume significado no processo de formação de professores, não apenas na perspectiva do desenvolvimento de competências para um exercício profissional que permita uma intervenção crítica e criativa nos processos de formação humana (e não apenas tarefeiro e reiterativo), mas também porque esta relação se constitui na própria natureza dos processos educativos. E, na perspectiva da simetria invertida, a objetivação desta relação no percurso formativo melhor capacitará o futuro professor para exercê-la em sua prática laboral. Ensinar a conhecer, enquanto capacidade de agir teoricamente e pensar praticamente, é a função da escola; e este aprendizado não se dá espontaneamente através do contato com a realidade, mas demanda o domínio das categorias teóricas e metodológicas através do aprendizado do trabalho intelectual. Ou seja, a prática, por si não ensina, a não ser através da mediação da ação pedagógica. São os processos pedagógicos intencionais e sistematizados, portanto, que, mediando as relações entre teoria e prática, ensinarão a conhecer. Não basta, portanto, inserir o trabalhador na prática para que ele espontaneamente aprenda. Restaria perguntar, portanto, a quem interessa reduzir a formação ao conhecimento tácito através de uma epistemologia na qual a prática se constrói por meio de uma reflexão sobre si mesma, sem a mediação da teoria, desqualificando-se o único espaço em que os futuros professores poderiam ter acesso ao conhecimento científico, tecnológico e sócio-histórico, enquanto produto do pensamento humano, mas também enquanto método para aprender a conhecer? Ademais, que sentido teria uma formação prolongada em nível de graduação, a ser complementada por diferentes estratégias de educação continuada, incluindo a pós-graduação, se o espaço laboral é por excelência o espaço formativo? É importante que se afirme, mais uma vez, que não se trata de Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 59 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... retroceder a práticas pedagógicas teoricistas, de longa data questionadas, mas também não há como sustentar o pragmatismo utilitarista, que tem se traduzido em práticas pedagógicas espontaneístas com freqüência cada vez maior, e ainda mais justificadas pela legislação, contrariando os avanços que a pesquisa e o debate acerca da Pedagogia e seu estatuto epistemológico alcançaram nos últimos anos, principalmente considerando a relevância do seu papel social na construção de uma sociedade pautada na justiça social, na solidariedade, no respeito à diversidade, na liberdade e na igualdade de direitos. Referências BISSOLI DA SILVA, C. Curso de pedagogia no Brasil: história e identidade. Campinas, SP: Autores Associados, 1999. BRASIL, Ministério da Educação. Lei 9.394, de 24 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. ________. Ministério da Educação. 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Estos cambios tienen un reflejo visible en la escuela como institución encargada de formar a los nuevos ciudadanos. ¿En qué afectan estos cambios a los profesores? ¿Cómo debemos repensar el trabajo del profesor en estas nuevas circunstancias? ¿Cómo deberían formarse los nuevos profesores? ¿Cómo adecuamos los conocimientos y las actitudes del profesorado para dar respuesta y aprovechar las nuevas oportunidades que la sociedad de la información nos ofrece? En este artículo revisamos algunos avances y temas pendientes que la formación tiene para enfrentarse con eficiencia a las necesidades de la sociedad del conocimiento: universidad y escuela: la laguna de los dos mundos; formadores de profesores universitarios y profesores supervisores de aula; conocimiento disciplinar y conocimiento pedagógico; teoría y práctica: desvalorización de la teoría y adoración de la práctica; tradición e innovación; homogeneidad y * Ponencia presentada al IV Encuentro Internacional de KIPUS. Políticas públicas y formación docente, Isla Margarita (Venezuela, 4-6 de octubre, 2006). ** Paper presented at the IV International Meeting - KIPUS. Public policies and teacher education, Isla Margarita, (Venezuela, 4-6th October 2006). *** Professor da Universidad de Sevilla. E-mail: [email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 63 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información diversidad: profesores homogéneos para un alumnado diverso; enseñanza y aprendizaje; formación inicial y formación continua; aprendizaje formal y informal; aislamiento en el aula y la sociedad en red. Palabras claves: Formación docente. Sociedad del Conocimiento. Aprender a Enseñar Abstract: Our societies are involved in a complex transformation process. An unplanned transformation that is affecting the way we organize ourselves, how we work, how we relate to others and how we learn. These changes have a clear impact on schools as they are the institutions responsible for educating the new citizens. How do these changes affect teachers? How should we rethink teachers´ work under these new circumstances? How should the new teachers be educated? How do we adapt teachers´ knowledge and attitudes so that they take advantage of the new opportunities that the information society offers them? In this article we consider some of the advancements and other pending themes that teacher education has in order to face with efficiency the information society needs: university and school, the gap between the two worlds, educators of university professors and teachers who supervise classes. Content knowledge and pedagogical knowledge. Theory and practice: depreciation of theory and an excessive valorization of practice. Tradition and innovation. Homogeneity and diversity: homogeneous teachers for heterogeneous groups of students. Keywords: Teacher education. knowledge society. learning to teach. INTRODUCCIÓN: LOS PROFESORES CUENTAN Nuestras sociedades están envueltas en un complicado proceso de transformación. Una transformación no planificada que está afectando a la forma como nos organizamos, cómo trabajamos, cómo 64 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia nos relacionamos, y cómo aprendemos. Estos cambios tienen un reflejo visible en la escuela como institución encargada de formar a los nuevos ciudadanos. Por poner un ejemplo, nuestros alumnos disponen hoy en día de muchas más fuentes de información que lo que ocurría no hace ni diez años. Fuentes de información que, aportadas por las nuevas tecnologías de la información y comunicación, están haciendo necesario un replanteo de las funciones que tradicionalmente se han venido asignando a las escuelas y a los profesionales que en ella trabajan: los profesores y profesoras. Una de las características de la sociedad en la que vivimos tiene que ver con que el conocimiento es uno de los principales valores de sus ciudadanos. El valor de las sociedades actuales está directamente relacionado con el nivel de formación de sus ciudadanos, y de la capacidad de innovación y emprendimiento que estos posean. Pero los conocimientos, en nuestros días, tienen fecha de caducidad y ello nos obliga ahora más que nunca a establecer garantías formales e informales para que los ciudadanos y profesionales actualicen constantemente su competencia. Hemos entrado en una sociedad que exige de los profesionales una permanente actividad de formación y aprendizaje. ¿En qué afectan estos cambios a los profesores? ¿Cómo debemos repensar el trabajo del profesor en estas nuevas circunstancias? ¿Cómo deberían formarse los nuevos profesores? ¿Cómo adecuamos los conocimientos y las actitudes del profesorado para dar respuesta y aprovechar las nuevas oportunidades que la sociedad de la información nos ofrece? Las preguntas anteriores configuran todo un programa de preocupaciones que está llevando a muchos académicos, profesionales, investigadores, docentes, etc. a pensar en que la escuela tiene que dar respuesta pronta a los desafíos que se le avecinan. Respuestas que van directamente relacionadas con la capacidad de ofrecer la mejor educación para todos los alumnos. Y para ello volvemos la vista hacia el profesorado que trabaja codo a codo con nuestros estudiantes. ¿Cómo se han formado? ¿Qué cambios hay que introducir en su formación para que sean de nuevo los líderes de un cambio que la sociedad está demandando? (MARCELO, 2002a). Recientes informes internacionales han venido a centrarse y a destacar el importante papel que el profesorado juega en relación con las posibilidades de aprendizaje de los alumnos. Ya el mismo título de informe que la OCDE ha publicado recientemente nos llama la atención: Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 65 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información “Teachers matter: attracting, developing and retaining effective teachers” (OCDE, 2005). Se afirma en el título que los profesores cuentan, importan para ayudar a mejorar la calidad de la enseñanza que reciben los alumnos. Se afirma en este informe que: Existe actualmente un volumen considerable de investigación que indica que la calidad de los profesores y de su enseñanza es el factor más importante para explicar los resultados de los alumnos. Existen también considerables evidencias de que los profesores varían en su eficacia. Las diferencias entre los resultados de los alumnos a veces son mayores dentro de la propia escuela que entre escuelas. La enseñanza es un trabajo exigente, y no es posible para cualquiera ser un profesor eficaz y mantener esta eficacia a lo largo del tiempo (p. 12). Este informe viene a mostrar la preocupación internacional en relación con el profesorado, con las formas de hacer de la docencia una profesión atractiva, con cómo mantener en la enseñanza a los mejores profesores y cómo conseguir que los profesores sigan aprendiendo a lo largo de su carrera. Este informe de la OCDE viene a mostrar que el profesorado cuenta. Cuenta para influir en el aprendizaje de los alumnos. Cuenta para mejorar la calidad de la educación que las escuelas e institutos llevan a cabo día a día. Cuenta en definitiva como una profesión necesaria e imprescindible para la sociedad del conocimiento. Y puesto que el profesorado cuenta, necesitamos que nuestros sistemas educativos sean capaces de atraer a los mejores candidatos para convertirse en docentes. Necesitamos buenas políticas para que la formación inicial de estos profesores les asegure las competencias que van a requerir a lo largo de su extensa, flexible y variada trayectoria profesional. Y la sociedad necesita buenos profesores cuya práctica profesional cumpla los estándares profesionales de calidad que asegure el compromiso de respetar el derecho que los alumnos tienen de aprender. Paralelamente al estudio de la OCDE, la prestigiosa Asociación Americana de Investigación Educativa (A.E.R.A.) ha hecho público el informe que intenta resumir los resultados de la investigación sobre la formación del profesorado, así como hacer propuestas de política educativa acordes con estos resultados. Se afirma que: “en toda la nación existe un consenso emergente acerca de que el profesorado influye de 66 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia manera significativa en el aprendizaje de los alumnos y en la eficacia de la escuela” (COCHRAN-SMITH; FRIES, 2005, p. 40). En la misma línea, Daling-Hammond (2000) venía afirmar que el aprendizaje de los alumnos “depende principalmente de lo que los profesores conocen y de lo que pueden hacer”. LA DOCENCIA ANTE LOS CAMBIOS A la tarea de enseñar los profesores se enfrentan generalmente en solitario. Sólo los alumnos son testigos de la actuación profesional de los profesores. Pocas profesiones se caracterizan por una mayor soledad y aislamiento. A diferencia de otras profesiones u oficios, la enseñanza es una actividad que se desarrolla en solitario. Como de forma acertada afirmara Bullough (1998), la clase es el santuario de los profesores.El santuario de la clase es un elemento central de la cultura de la enseñanza, que se preserva y protege mediante el aislamiento, y que padres, directores y otros profesores dudan en violar. Cuando hoy en día estamos asistiendo a propuestas que evidentemente plantean la necesidad de que los profesores colaboren, trabajen conjuntamente, etc., nos encontramos con la pertinaz realidad de profesores que se refugian en la soledad de sus clases. Ya resulta clásico el estudio llevado a cabo por Lortie en 1975, en el que mediante entrevistas estableció algunas características de la profesión docente en Estados Unidos, que no sólo son de gran actualidad, sino que son perfectamente aplicables a nuestro país. Una característica identificada por Lortie fue el Individualismo. Este individualismo se produce en opinión del autor por la ausencia de ocasiones en las que los profesores puedan observarse unos a otros, y ello se produce desde los primeros años de formación como profesor y posteriormente durante el proceso de socialización. El aislamiento de los profesores está favorecido evidentemente por la arquitectura escolar, que organiza la escuela en módulos estándar, así como por la distribución del tiempo y el espacio, y la existencia de normas de independencia y privacidad entre los profesores. El aislamiento, como norma y cultura profesional tiene ciertas ventajas y algunos evidentes inconvenientes para los profesores. El aislamiento representa una barrera real frente a las posibilidades de formación y de mejora. Los cambios que se están produciendo en la sociedad inciden en la demanda de una “redefinición del trabajo del profesor” y seguramente de la Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 67 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información profesión docente, de su formación y de su desarrollo profesional. Los roles que tradicionalmente han asumido los docentes enseñando de manera conservadora un curriculum caracterizado por contenidos académicos hoy en día resultan a todas luces inadecuados. A los alumnos les llega la información por múltiples vías: la televisión, radio, ordenadores, Internet, recursos culturales de las ciudades, etc. Y los profesores no pueden hacer como si nada de esto fuera con ellos. Salomon (1992) nos ofrecía su metáfora respecto a que se está modificando el rol del profesor desde transmisor de información, el solista de una flauta al frente de una audiencia poco respetuosa, al de un diseñador, un guía turístico, un director de orquesta. Así, el papel del profesor debería de cambiar desde una autoridad que distribuye conocimientos hacia un sujeto que crea y orquesta ambientes de aprendizaje complejos, implicando a los alumnos en actividades apropiadas, de manera que los alumnos puedan construir su propia comprensión del material a estudiar, trabajando con los alumnos como compañeros en el proceso de aprendizaje. Cuando estamos viendo día a día las nuevas exigencias que las escuelas y el profesorado están recibiendo por parte de la sociedad, asistimos a una situación en la observamos que la profesión docente puede que no esté asumiendo la responsabilidad que le corresponde como profesión del conocimiento. La creciente presión por una escuela de mayor calidad, motivada en parte por los resultados de los informes internacionales, no está teniendo su contrapartida en una profesión docente que lidere y canalice los cambios que tanto dentro de las aulas como en la escuela y en la formación del profesorado se necesitan para que las escuelas sigan siendo espacios privilegiados de socialización de las nuevas generaciones. ¿Qué hay del profesorado y de su formación? ¿Qué cambios observamos en la dirección correcta? ¿Podemos hablar de que la formación esté girando hacia las necesidades de la sociedad del conocimiento y la información? Veamos algunas ideas al respecto. LA FORMACIÓN DEL PROFESORADO EN LA SOCIEDAD DEL CONOCIMIENTO: AVANCES Los informes internacionales anteriormente referidos ponen de manifiesto de nuevo que la influencia del profesorado es determinante. Y si esto es así, hoy en día más que nunca debemos de atender a las 68 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia estrategias y procesos que permiten que el profesorado alcance y mantenga niveles de competencia y eficacia elevados. Y ello no es posible si no disponemos de un sistema de formación que ayude a reclutar, formar, insertar y desarrollar al profesorado a lo largo de toda su carrera docente. Hemos dicho que en las sociedades actuales el conocimiento y la formación configuran elementos estratégicos para el desarrollo de las personas y de los países. Ello es así ahora más que nunca. Poco a poco ha venido haciéndose familiar la idea de que el aprendizaje es para toda la vida. Hoy en día ya es una realidad para todo el profesorado. Necesitamos formación pero no cualquier formación. Estos cambios nos están dirigiendo a pensar que la formación no puede mantenerse en los estándares pasados ni actuales. Carl Bereiter (2002) decía que para educar en la era del conocimiento necesitamos una nueva idea de la mente. Una idea o concepción que se aleje de entender la mente como un contenedor y que la entienda más bien como un sistema que se autorregula y organiza a partir de múltiples conexiones. Pues bien, creo que también debemos de pensar en la formación de una forma más abierta y flexible que se adapte a las necesidades de los individuos y que permita no sólo aprender a enseñar sino generar conocimiento e innovación sobre la enseñanza que pueda ser validado y compartido. Para avanzar en este objetivo no empezamos de cero. Para responder a estas preguntas no partimos de cero. Cómo se aprender a enseñar ha sido una constante en la preocupación de los investigadores educativos en las últimas décadas. Cientos de investigaciones y decenas de revisiones se han llevado a cabo para intentar comprender este proceso. Tanto en el tercer como en el cuarto “Handbook of Research on Teaching” (RICHARDSON, 2001) encontramos capítulos en los que se revisa y sintetiza el conocimiento sobre los profesores, su formación y desarrollo. Igualmente en los “Handbook of Research on Teacher Education”, pasando por el “International Handbook of Teachers and Teaching”, el “International Handbook of Educational Change”, o el “Handbook of Educational Psychology” se aborda de manera más o menos amplia la investigación sobre el aprendizaje de los profesores. Estos libros, así como revisiones aparecidas en revistas especializadas, como la de Wilson y Berne (1999), Feiman (2001), Putnam y Borko (1998), Wideen, Mayer-Smith y Moon (1998) o Zeichner (1999) y Cochran-Smith y Zeichner (2005) nos permiten configurar un panorama bastante actualizado respecto al conocimiento Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 69 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información acumulado sobre el proceso de aprender a enseñar, así como de sus luces y sombras. A partir de estas amplias revisiones uno puede situarse y encontrar conocimiento acumulado suficiente para poder empezar a dar respuesta a la pregunta ¿cómo se aprende a enseñar? Dado que no puede ser intención de éste que escribe, resumir lo que en centenares de páginas, otros investigadores ya han revisado, y debido a la concreción necesaria de esta escrito, vamos a hacer un recorrido acerca de los aspectos básicos que dan respuesta a la intención del título. Convertirse en profesor es un largo proceso. A las instituciones de formación inicial del profesorado llegan candidatos que no son “vasos vacíos”. Como ya investigara Lortie (1975), las miles de horas de observación como estudiantes contribuyen a configurar un sistema de creencias hacia la enseñanza que los aspirantes a profesores tienen y que les ayudan a interpretar sus experiencias en la formación. Estas creencias a veces están tan arraigadas que la formación inicial no consigue el más mínimo cambio profundo en ellas (PAJARES, 1992; RICHARDSON; PLACIER, 2001). La formación inicial del profesorado ha sido objetivo de múltiples estudios e investigaciones (COCHRAN-SMITH; FRIES, 2005). En general se observa una gran insatisfacción tanto de las instancias políticas como del profesorado en ejercicio o de los propios formadores respecto a la capacidad de las actuales instituciones de formación para dar respuesta a las necesidades actuales de la profesión docente. Las críticas hacia su organización burocratizada, el divorcio entre la teoría y la práctica, la excesiva fragmentación del conocimiento que se enseña, la escasa vinculación con las escuelas (FEIMAN-NEMSER, 2001) están haciendo que ciertas voces críticas propongan reducir la extensión de la formación inicial para incrementar la atención al periodo de inserción del profesorado en la enseñanza. Es el caso del reciente informe de la OCDE al que ya hemos hecho referencia anteriormente. En concreto, se afirma que Las etapas de formación inicial, inserción y desarrollo profesional deberían de estar mucho más interrelacionadas para crear un aprendizaje coherente y un sistema de desarrollo para los profesores…Una perspectiva de aprendizaje a lo largo de la vida para los profesores implica para la mayoría de los países una atención más destacada a ofrecer apoyo a los profesores en sus primeros años de enseñanza, y en proporcionarles incentivos y recursos para su desarrollo profesional continuo. En general, sería más adecuado mejorar la inserción y el desarrollo profesional de 70 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia los profesores a lo largo de su carrera en lugar de incrementar la duración de la formación inicial. (OCDE, 2005, p. 13). Frente a estas propuestas, viene bien recordar el excelente artículo escrito por David Berliner (2000) en el que refuta una docena de críticas que habitualmente se hacen a la formación inicial del profesorado (que para enseñar basta con saber la materia, que enseñar es fácil, que los formadores de profesores viven en una torre de marfil, que los cursos de metodología y didáctica son asignaturas blandas, que en la enseñanza no hay principios generales válidos, etc. Críticas, desde el punto de vista del autor, interesadas y con una visión bastante estrecha de la contribución que la formación inicial tiene en la calidad del profesorado. Dice Berliner: “creo que se ha prestado poca atención al desarrollo de aspectos evolutivos del proceso de aprende a enseñar, desde la formación inicial, la inserción a la formación continua” (p. 370). En este proceso la formación inicial juega un papel importante y no baladí o sustituible como algunos grupos o instituciones están sugiriendo. Los profesores, en su proceso de aprendizaje, pasan por diferentes etapas momentos. Bransford, Darling-Hammond, & LePag (2005) han planteado que para dar respuesta a las nuevas y complejas situaciones con las que se encuentran los docentes es conveniente pensar en los profesores como “expertos adaptativos” es decir personas preparadas para un aprendizaje eficiente a lo largo de toda la vida. Esto es así porque las condiciones de la sociedad son cambiantes y cada más se requiere personas que sepan combinar la competencia con la capacidad de innovación. Los profesores principiantes necesitan poseer un conjunto de ideas y habilidades críticas así como la capacidad de reflexionar, evaluar y aprender sobre su enseñanza de tal forma que mejoren continuamente como docentes. Ello es posible si el conocimiento esencial para los profesores principiantes se pudiera organizar, representar y comunicar de forma que les permita a los alumnos una comprensión más profunda del contenido que aprenden (VAILLANT; MARCELO, 2001). En relación a este aspecto, las investigaciones han buscado establecer diferencias entre profesores en función de la edad, así como de lo que se ha denominado “expertise”. Y esta evolución, salvo en casos excepcionales, se ha comenzado a analizar a partir del primer año de experiencia docente. Por una parte tenemos aquellos estudios que intentan comprender el proceso de convertirse en experto, y por Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 71 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información otro aquellos estudios que analizan qué hacen y qué caracteriza a los profesores expertos. Dentro de estos estudios ha sido clásico el contraste entre los profesores expertos y principiantes. Hay que señalar que cuando hablamos del profesor experto nos referimos no sólo a un profesor con, al menos, cinco años de experiencia docente, sino sobre todo a una persona con un “elevado nivel de conocimiento y destreza, cosa que no se adquiere de forma natural, sino que requiere una dedicación especial y constante” (Bereiter & Scardamalia, 1986, p. 10). Así, la competencia profesional del profesor experto no se consigue a través del mero transcurrir de los años. No es totalmente cierto, como señala Berliner, que la simple experiencia sea el mejor profesor. Si no se reflexiona sobre la conducta no se llegará a conseguir un pensamiento y conducta experta (BERLINER, 1986). Según Bereiter y Scardamalia (1986), los sujetos expertos -en cualquiera de las áreas- tienen en común las siguientes características: complejidad de las destrezas, es decir, el experto realiza sus acciones apoyándose en una estructura diferente y más compleja que la del principiante, ejerciendo un control voluntario y estratégico sobre las partes del proceso, que se desarrolla más automáticamente en el caso del principiante. En segundo lugar, figura la cantidad de conocimiento que el experto posee en relación al principiante, que posee menos conocimientos. En tercer lugar señalan la estructura del conocimiento. Para Bereiter y Scardamalia, los principiantes tienden a tener lo que podemos describir como una estructura de conocimiento ‘superficial’, unas pocas ideas generales y un conjunto de detalles conectados con la idea general, pero no entre sí. Los expertos, por otra parte, tienen una estructura de conocimiento profunda y multinivel, con muchas conexiones inter e intranivel. (1986, p. 12). La última característica que diferencia a expertos de principiantes es la representación de los problemas: el sujeto experto atiende a la estructura abstracta del problema y utiliza una variedad de tipos de problemas almacenados en su memoria. Los principiantes, por el contrario están influidos por el contenido concreto del problema y, por tanto, tienen dificultades para representarlo de forma abstracta (MARCELO, 1999b). Conocemos por lo tanto que los profesores expertos notan e identifican las características de problemas y situaciones que pueden 72 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia escapar la atención de los principiantes. El conocimiento experto consiste en mucho más que un listado de hechos desconectados acerca de determinada disciplina. Por el contrario, su conocimiento está conectado y organizado en torno a ideas importantes acerca de sus disciplinas. Esta organización del conocimiento ayuda a los expertos a saber cuándo, porqué, y cómo utilizar el vasto conocimiento que poseen en una situación particular. Bransford, Derry, Berliner, & Hammersness (2005) han planteado la necesidad de establecer una diferencia entre el “experto rutinario” y el “experto adaptativo” Ambos son expertos que siguen aprendiendo a lo largo de sus vidas. El experto rutinario desarrolla un conjunto de competencias que aplica a lo largo de su vida cada vez con mayor eficiencia. Por el contrario, el experto adaptativo tiene mayor disposición a cambiar sus competencias para profundizarlas y ampliarlas continuamente. Estos autores plantean una idea que desde mi punto de vista es bien interesante de cara a entender el proceso de inserción profesional y como consecuencia programar acciones formativas para los profesores principiantes. EL CONOCIMIENTO Y LAS CREENCIAS SE CONSTRUYEN Hemos constatado tanto por las investigaciones desarrolladas como por la experiencia práctica que los profesores, al igual que otras personas orientan su conducta a partir del conocimiento y creencias que poseen. Y este conocimiento y creencias se empieza a construir mucho antes que el profesor en formación decida dedicarse profesionalmente a la enseñanza. Estos conocimientos y creencias que los profesores en formación traen consigo cuando inician su formación inicial afectan de una manera directa a la interpretación y valoración que los profesores hacen de las experiencias de formación del profesorado. Esta modalidad de “aprender a enseñar” se produce a través de lo que se ha denominado “aprendizaje por la observación”. Aprendizaje que en muchas ocasiones no se produce de manera intencionada, sino que se va adentrando en las estructuras de cognitivas -y emocionales- de los futuros profesores de manera inconsciente, llegando a crear expectativas y creencias difíciles de remover. Pero al igual que desarrollamos conocimientos y creencias generales acerca de la enseñanza, de los alumnos, la escuela o el profesor, Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 73 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información la materia que enseñamos o pretendemos enseñar no se queda al margen de nuestras concepciones. La forma como conocemos una determinada disciplina o área curricular afecta a cómo la enseñamos. Existen múltiples evidencias que nos muestran ciertos “arquetipos” que los profesores en formación tienen sobre la disciplina que estudian, ya sea ésta matemáticas, lengua o educación física. Preguntas como ¿qué son y para qué sirven las matemáticas, lengua, educación física, etc.? Son necesarias de plantear cuando pretendemos “partir de lo que el alumno ya sabe”. Tomando el contenido que se enseña y se aprende como argumento de la indagación, podemos encontrar diferencias en el comportamiento observable de profesores en función del dominio que posean del contenido que enseñan. Existen múltiples ejemplos de investigaciones que muestran que poseer un dominio profundo de una disciplina lleva a una actividad docente más centrada en problemas, con mayor participación de los alumnos, menores digresiones y preguntas de alto orden cognitivo. Junto al conocimiento del contenido, aprender a enseñar supone adquirir conocimiento sobre cómo se enseña la materia. Es lo que Shulman denominó “Conocimiento Didáctico del Contenido”. El “Conocimiento Didáctico del Contenido” aparece como un elemento central del conocimiento del profesor. Representa la combinación adecuada entre el conocimiento de la materia a enseñar y el conocimiento pedagógico y didáctico referido a cómo enseñarla. En los últimos años, se ha venido trabajando en diferentes contextos educativos para ir clarificando cuáles son los componentes y elementos de este tipo de conocimiento profesional de la enseñanza (MARCELO, 2002a). El “Conocimiento Didáctico del Contenido” nos dirige a un debate con relación a la forma de organización, de representación, del conocimiento a través de analogías y metáforas. Plantea la necesidad de que los profesores en formación adquieran un conocimiento experto del contenido a enseñar, para que puedan desarrollar una enseñanza que propicie la comprensión de los alumnos. La preocupación por el conocimiento como objeto de trabajo e indagación en la formación inicial del profesorado nos está conduciendo a cuestionarnos qué conocimiento es más relevante para aprender a enseñar, así como la manera en que organizamos los procesos de aprender a enseñar. Fernstermacher (1994) se preguntaba acerca de la calidad y validez epistémica del conocimiento pedagógico y didáctico, práctico y personal, que se ha venido generando en torno a la investigación sobre aprender a enseñar. No vamos a incidir en sus argumentos. Sin 74 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia embargo, un hallazgo importante -aunque pueda resultar nimio- es que los profesores, ya sean experimentados o en formación interpretan las situaciones de enseñanza a través de las lentes que les proporcionan sus conocimientos e ideas previas. A la luz de esta afirmación, Putnam y Borko llegan a afirmar que “para la formación inicial ello significa la necesidad de atender adecuadamente al conocimiento y creencias que los profesores en formación traen consigo, creencias y conocimientos adquiridos a lo largo de su propia experiencia como estudiantes”. (1998, p. 1236). A este respecto, uno de los dilemas aun no resueltos en la formación inicial del profesorado es el que se establece entre considerar que el conocimiento que los profesores necesitan básicamente es disciplinar y aquellos que optan por la necesidad de dar mayor énfasis al conocimiento pedagógico y práctico. Bereiter (2002) plantea que en el debate sobre el currículo de la formación del profesorado, hoy en día cobra mucho más sentido recoger las propuestas que se han venido haciendo desde el movimiento que se ha denominado como “Enseñanza para la comprensión” (STONE WISKE, 1999). Este movimiento entronca con la línea de investigación sobre conocimiento didáctico del contenido y merecería una mirada más atenta en la formación del profesorado. EL CONOCIMIENTO SE CONSTRUYE EN INTERACCIÓN SOCIAL Por otra parte, se ha venido entendiendo que la formación y el aprendizaje del profesor pueden producirse, como hasta ahora hemos comentado, de forma relativamente autónoma y personal. Pero poco a poco ha ido ganando terreno las teorías que entienden la formación como un proceso que ocurre no de forma aislada sino dentro de un espacio intersubjetivo y social. Así, ha ido avanzando la idea de que aprender a enseñar no debería entenderse sólo como un fenómeno aislado, sino básicamente como una experiencia que ocurre en interacción con un contexto o ambiente con el que el individuo interacciona. Es la tesis del enfoque sociocultural del aprendizaje que establece que la actividad cognitiva del individuo no puede estudiarse sin tener en cuenta los contextos relacionales, sociales y culturales en que se lleva a cabo. Está resultando de gran interés y proyección este enfoque, puesto que pone de manifiesto que la unidad de análisis del proceso de aprenOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 75 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información der a enseñar son los procesos de interacción social, llamando la atención al análisis conversacional. Así, los grupos sociales crean lo que se ha venido en llamar “comunidades discursivas” que comparten formas de pensar y de comunicarse. Comunidades que establecen redes y que sirven para compartir, intercambiar, situarse en el mundo, recibir apoyo, etc. Las comunidades de aprendizaje organizadas en torno a redes presenciales o virtuales están configurando una alternativa muy interesante a los programas tradicionales de formación. EL CONOCIMIENTO TIENE UN CARÁCTER SITUADO Completando la idea anterior, se ha venido avanzando en entender que el conocimiento en general y el pedagógico en particular no puede comprenderse al margen del contexto en el que surge y al que se aplica. McLellan (1996) afirma que “el modelo de conocimiento situado se basa en el principio de que el conocimiento está situado contextualmente, y está influido fundamentalmente por la actividad, el contexto y la cultura en la que se utiliza” (1996, p. 6). No cabe, por tanto, diferenciar de manera radical el conocimiento que se adquiere y el contexto en el que ese conocimiento se utiliza, de forma que el conocimiento sobre la enseñanza no puede aprenderse de forma independiente de las situaciones en las que éste se utiliza. Como consecuencia de entender el conocimiento de manera contextualizada se nos plantea con dureza la pregunta de ¿qué utilidad tiene para la formación inicial del profesorado un conocimiento expresado de forma proposicional, sin vínculos con la situación o contexto donde pueda contrastarse o aplicarse? Hablamos por tanto de la capacidad de transferencia de aprendizaje que nuestros profesores en formación tienen de los conocimientos que la institución de formación considera básicos para aprender a enseñar. También nos plantea la necesidad de revisar la forma como se presenta, comunica y construye ese conocimiento. En este sentido hemos avanzado en incorporar en nuestros programas de formación de profesorado múltiples ocasiones a través de las cuales los profesores o futuros profesores pueden reflexionar sobre la enseñanza a partir del análisis de situaciones reales o simuladas. Por otra parte, la incorporación de la metodología del caso ha supuesto todo un esfuerzo por traer a las aulas de formación segmentos de la realidad de la enseñanza para que puedan ser analizados y valorados. 76 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia EL CONOCIMIENTO ESTÁ DISTRIBUIDO Una última característica del conocimiento que caracteriza el aprender a enseñar, es que no reside en una sola persona, sino que está distribuido, entre individuos, grupos y ambientes simbólicos y físicos (PUTNAM; BORKO, 1998). Se asume la idea de que para el desarrollo de tareas complejas, y aprender a enseñar evidentemente lo es, ninguna persona posee la totalidad de conocimientos y habilidades de forma individual. Admitir este principio nos lleva a entender que es el trabajo en equipo lo que conduce a un mejor uso del conocimiento, lo que lleva a mejorar la capacidad de resolución de problemas. Como Senge plantea en su sugerente libro titulado “La Quinta Disciplina”: Ya no basta con tener una persona que aprenda para la organización... Ya no es posible “otear el panorama” y ordenar a los demás que sigan las órdenes del “gran estratega”. Las organizaciones que cobrarán relevancia en el futuro serán las que descubran cómo aprovechar el entusiasmo y la capacidad de aprendizaje de la gente en todos los niveles de la organización. (SENGE, 1992). La idea del conocimiento distribuido se ha visto impulsada por el impacto de las Nuevas Tecnologías, principalmente Internet. La posibilidad de que los profesores puedan acceder a conocimientos y contactos personales con profesores distantes geográficamente, la posibilidad de pertenencia a “comunidades virtuales” está ampliando las posibilidades de lo que se entiende por aprender a enseñar. LA FORMACIÓN DEL PROFESORADO EN LA SOCIEDAD DEL CONOCIMIENTO: TEMAS PENDIENTES A pesar de los avances que hemos intentado destacar en el epígrafe anterior, quedan pendientes algunos “temas” que parecen estar marcados a sangre y fuego en la realidad y práctica de la formación del profesorado. Vamos a comentar brevemente cuáles son estos temas que desde mi punto de vista necesitan un esfuerzo adicional. Y presento estos temas pendientes en la necesidad de superar un cierto número de yuxtaposiciones o dicotomías: Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 77 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información Universidad y escuela: la laguna de los dos mundos Ya Feiman y Buchman (1988) llamaron la atención en relación con esta yuxtaposición. Se referían al divorcio que existe en la formación inicial según la cual, suele ocurrir que los estudiantes perciben que tanto los conocimientos, como las normas de actuación en la Institución de Formación, tienen poco que ver con los conocimientos y prácticas profesionales. En este caso los estudiantes suelen deslumbrarse por la realidad, y cuando se reincorporan de nuevo a la actividad académica, comienzan a desechar, por considerarla menos importante, la necesidad de ciertos conocimientos que fundamenten el trabajo práctico. Formadores de profesores universitarios y profesores supervisores de aula Derivada de la laguna de los dos mundos sigue constatándose una enorme distancia y falta de diálogo y compromiso compartido entre los principales formadores que influyen en los profesores en formación: los formadores universitarios y los profesores de aula (supervisores, colaboradores, tutores o mentores). Como mostramos en otro trabajo (Marcelo & Estebaranz, 1998), las relaciones entre formadores universitarios y escolares pueden ser variadas pero predominan los modelos que podríamos denominar “cada cual en lo suyo”. Si queremos mejorar la formación inicial del profesorado debemos hacer que haya una mayor coincidencia entre los modelos y prácticas docentes que se les presentan a los profesores en formación. Conocimiento disciplinar y conocimiento pedagógico Esta yuxtaposición es también tradicional. La respuesta a la pregunta ¿cuál es el conocimiento que los profesores deben de poseer? no ha tenido ni tiene una única respuesta. Para muchos sistemas educativos lo importante es que los profesores conozcan la materia que enseñan. Esta afirmación con la que difícilmente podríamos estar en desacuerdo tiene sus puntos oscuros. ¿Hablamos de almacenar información o de comprender en profundidad? Una línea de investigación y práctica ha venido a ofrecer algunos puentes significativos entre ambos elementos: me refiero a los trabajos sobre “Conocimiento Didáctico del Contenido” al que me he referido an- 78 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia teriormente. El Conocimiento del Contenido incluye diferentes componentes, de los cuales dos son los más representativos: conocimiento sintáctico y sustantivo. El Conocimiento Sustantivo se constituye con la información, las ideas y los tópicos a conocer, es decir, el cuerpo de conocimientos generales de una materia, los conceptos específicos, definiciones, convenciones, y procedimientos. Este conocimiento es importante en la medida en que determina lo que los profesores van a enseñar y desde qué perspectiva lo harán. El Conocimiento Didáctico del Contenido aparece como un elemento central de los saberes del formador. Representa la combinación adecuada entre el conocimiento de la materia a enseñar y el conocimiento pedagógico y didáctico referido a cómo enseñarla. En los últimos años, se ha venido trabajando en diferentes contextos educativos para clarificar cuáles son los componentes de este tipo de conocimiento profesional de la enseñanza. El Conocimiento Didáctico del Contenido, como línea de investigación, representa la confluencia de esfuerzos de investigadores didácticos con investigadores de materias específicas preocupados por la formación del profesorado. El Conocimiento Didáctico del Contenido nos dirige a un debate en relación con la forma de organización y de representación del conocimiento, a través de analogías y metáforas. Plantea la necesidad de que los profesores en formación adquieran un conocimiento experto del contenido a enseñar, para que puedan desarrollar una enseñanza que propicie la comprensión de los alumnos. Teoría y práctica: desvalorización de la teoría y adoración de la práctica Quizás como resultado de un movimiento pendular, se ha producido en la formación del profesorado una inclinación, desde mi punto de vista excesiva, hacia lo que se ha considerado como “la práctica”, asumiendo que es el contacto con la práctica el que hace al profesor. De esta forma, cualquier aproximación que pretenda ayudar a conceptuar y comprender al profesorado las experiencias y la complejidad del acto de enseñar se rechaza como “teórico”. Decía Perkins que “comprender es la habilidad de pensar y actuar con flexibilidad a partir de lo que uno ya sabe”. (1999, p. 70). Para ayudar a los profesores a comprender qué ocurre en el aula y las razones de la conducta de los alumnos y de los formadores se requieren marcos conceptuales necesarios para que cada profesor Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 79 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información desarrolle su propia identidad. Otra cosa es asumir la práctica como un valor en sí mismo, algo que creo no ayuda a mejorar la formación del profesorado. Cochran-Smith y Lytle (1999), han reflexionado sobre las relaciones entre conocimiento y práctica en la formación del profesorado y nos plantean que las cosas pueden tener diferentes puntos de vista. Así, diferencian entre: Conocimiento para la práctica: Esta primera concepción entiende en que la relación entre conocimiento y práctica es aquella en que el conocimiento sirve para organizar la práctica, y por ello, conocer más (contenidos, teorías educativas, estrategias instruccionales) conduce de forma más o menos directa a una práctica más eficaz. El conocimiento para enseñar es un conocimiento formal, que se deriva de la investigación universitaria, y es al que se refieren los teóricos cuando se habla de que la enseñanza ha generado un cuerpo de conocimiento diferente al conocimiento común. La práctica, desde esta perspectiva, tiene mucho que ver con la aplicación del conocimiento formal a las situaciones prácticas. Por otra parte, el Conocimiento en la práctica pone el énfasis de la investigación sobre aprender a enseñar ha sido la búsqueda del conocimiento en la acción. Se ha estimado que lo que los profesores conocen está implícito en la práctica, en la reflexión sobre la práctica, en la indagación práctica y en la narrativa de esa práctica. Un supuesto de esta tendencia es que la enseñanza es una actividad incierta y espontánea, contextualizada y construido en respuesta a las particularidades de la vida diaria en las escuelas y las clases. El conocimiento está situado en la acción, en las decisiones y juicios que toman los profesores. Este conocimiento se adquiere mediante la experiencia y la deliberación y los profesores aprenden cuando tienen oportunidad de reflexionar sobre lo que hacen. Por último, el Conocimiento de la práctica se incluye dentro de la línea de investigación cualitativa, pero cercana al movimiento denominado del profesor como investigador. La idea de la que parte es que en la enseñanza no tiene sentido hablar de un conocimiento formal y otro conocimiento práctico, sino que el conocimiento se construye colectivamente dentro de comunidades locales, formadas por profesores trabajando en proyectos de desarrollo de la escuela, de formación o de indagación colaborativa (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999). 80 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia Tradición e innovación ¿Mantener las esencias o cambiar? Un buen dilema que observamos siempre que analizamos una reforma en los planes y programas de formación del profesorado. Podemos decir que gran parte de las reformas que se han ido introduciendo en la formación inicial del profesorado se han movido más en el terreno de la tradición que de la innovación. Las experiencias innovadoras en formación de profesores, especialmente en formación inicial suelen ser ocasionales y su duración en el tiempo está limitada a la persistencia de los recursos o las personas que la han puesto en marcha. Si como decía Bereiter (2002) la innovación la fuerza que impulsa a la sociedad del conocimiento, ésta debería de estar presente en unas instituciones llamadas a formar a los profesionales del conocimiento que son los docentes. Homogeneidad y diversidad: profesores homogéneos para un alumnado diverso Uno de los grandes cambios que se están produciendo en nuestras sociedades es el aumento de la movilidad e inmigración. Los países europeos están recibiendo una gran cantidad de personas procedentes de otros continentes. Estos cambios demográficos están teniendo ya una presencia evidente en nuestras escuelas. Hay clases en las que es fácil encontrar alumnos de diez países diferentes. Es ésta una nueva realidad para la que el profesorado no se encuentra preparado. Una de las críticas a los programas de formación del profesorado es su escasa adaptación a los cambios que se producen en relación con la diversidad de los estudiantes en las aulas. De manera gráfica, Ladson-Billing afirmaba que “se sigue formando a los profesores para enseñar en escuelas ideales con niños blancos, monolingües, de clase media y de familias con dos padres” (1998, p. 87). A esta crítica se unen Grant y Wieczorek (2000) al destacar la ausencia de un análisis crítico sobre los aspectos y condicionamientos sociales del conocimiento, que pueden encontrarse en temas como la raza, clase social, género y poder, así como los elementos históricos y políticos ligados a la producción de conocimiento. La diversidad es una realidad que debe entrar en la formación del profesorado para ayudar a los docentes en formación, así como en ejercicio a enfrentar su tarea de una forma más positiva. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 81 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información Enseñanza y aprendizaje “Yo enseño pero los alumnos no aprenden”. Éste vendría a ser el resumen de la situación por la que atraviesan muchos profesores. Quizás la formación del profesorado, así como la investigación, se ha centrado tradicionalmente en la figura del profesor en interacción con un grupo más o menos numeroso de alumnos intentando transmitirles conocimiento de manera oral. Ya sé que ésta es una imagen demasiado radical pero me sirve para plantear que “en la sociedad del conocimiento” debemos de prestar atención no sólo a lo que los profesores hacen, sino a lo que los alumnos aprenden. La apuesta por una enseñanza centrada en la actividad de aprendizaje de los alumnos tiene sus fundamentos científicos. Duffy, Dueber y Hawley (1998, p. 51) afirmaban que Existe actualmente un movimiento muy fuerte en educación que se aleja del modelo didáctico predominante y que se encamina hacia un modelo centrado en el que aprende, donde las actividades de aprendizaje implican a los alumnos en la indagación y resolución de problemas, normalmente en un espacio colaborativo”. Estamos avanzando rápidamente modelos de aprendizaje alternativos que desde un punto de vista genérico se denominan como constructivistas en los que el énfasis se sitúa en la orientación y apoyo a los estudiantes en la medida en que éstos aprenden a construir su conocimiento y comprensión de la cultura y la comunidad a la que pertenecen (BONK; CUNNINGHAM, 1998). El concepto de ambientes de aprendizaje constructivistas ha ido ganando terreno entre las personas que nos dedicamos al diseño de acciones de enseñanza y formación a través de Internet. Wilson (1996, p. 3) decía que Un ambiente de aprendizaje es un lugar donde las personas pueden utilizar recursos para dar sentido a cosas y a soluciones significativas a problemas. Al añadir el término constructivista al final se pone énfasis en la importancia de lo significativo, de actividades auténticas que ayuden a los alumnos a construir conocimiento y desarrollar destrezas relevantes para resolver problema. 82 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia De esta manera, pensar y utilizar el concepto de “Ambiente de Aprendizaje” como metáfora supone en un espacio donde ocurre el aprendizaje. Un espacio que puede ser real o virtual, pero en cualquiera de las situaciones debería atender de manera especial a la persona que aprende, la situación o espacio donde actúa, interacciona y aprende el alumno, y la utilización de herramientas y medios que faciliten el aprendizaje. Otra forma de definirlo sería: “un lugar donde los alumnos pueden trabajar juntos y apoyarse unos a otros en la medida en que utilizan una variedad de herramientas y recursos de información en su búsqueda de objetivos de aprendizaje y en la realización de actividades de resolución de problemas”. (WILSON, 1996). Formación inicial y formación continua ¿Qué decir del divorcio entre la formación inicial y la formación continua? ¿Qué hay de ese eslabón perdido que representan los programas de inserción profesional (inducción) para los profesores principiantes? La inserción profesional en la enseñanza, es el periodo de tiempo que abarca los primeros años, en los cuales los profesores han de realizar la transición desde estudiantes a profesores. Es un periodo de tensiones y aprendizajes intensivos en contextos generalmente desconocidos y durante el cual los profesores principiantes deben adquirir conocimiento profesional además de conseguir mantener un cierto equilibrio personal. Es éste el concepto de inserción que asume Vonk, autor holandés con una década de investigaciones centradas en éste ámbito: “definimos la inserción como la transición desde profesor en formación hasta llegar a ser un profesional autónomo. La inserción se puede entender mejor como una parte de un continuo en el proceso de desarrollo profesional de los profesores” (1996, p. 115). Conviene insistir en esta idea de que el periodo de inserción es un periodo diferenciado en el camino de convertirse en profesor. No es un salto en el vacío entre la formación inicial y la formación continua sino que tiene un carácter distintivo y determinante para conseguir un desarrollo profesional coherente y evolutivo (BRITTON, PAINE, PIMM; RAIZEN, 2002). El periodo de inserción y las actividades propias que le acompañan varían mucho entre los países. En algunos casos se reducen a actividades burocráticas y formales. En otros casos, como veremos más adelante configuran toda una propuesta de programa de formación cuya intención es asegurar que los profesores Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 83 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información entren en la enseñanza acompañados por otros que pueden ayudarle. Los profesores principiantes tienen, según Feiman (2001) dos tareas que cumplir: deben enseñar y deben aprender a enseñar. Independientemente de la calidad del programa de formación inicial que hayan cursado, hay algunas cosas que sólo se aprenden en la práctica y ello repercute en que este primer año sea un año de supervivencia, descubrimiento, adaptación, aprendizaje y transición. Las principales tareas con que se enfrentan los profesores principiantes son: adquirir conocimientos sobre los estudiantes, el currículo y el contexto escolar; diseñar adecuadamente el currículo y la enseñanza; comenzar a desarrollar un repertorio docente que les permita sobrevivir como profesor; crear una comunidad de aprendizaje en el aula, y continuar desarrollando una identidad profesional. Y el problema es que esto deben hacerlo en general cargados con las mismas responsabilidades que los profesores más experimentados (MARCELO, 1999a). El periodo de inserción profesional se configura como un momento importante en la trayectoria del futuro profesor. Un periodo importante porque los profesores deben realizar la transición de estudiantes a profesores, por ello surgen dudas, tensiones, debiendo adquirir un adecuado conocimiento y competencia profesional en un breve período de tiempo. En este primer año los profesores son principiantes, y en muchos casos, incluso en su segundo y tercer año pueden todavía estar luchando para establecer su propia identidad personal y profesional. Atender a los profesores principiantes resulta fundamental para poder tener la esperanza de que el profesorado asume el aprendizaje a lo largo de la vida como un compromiso profesional. Aprendizaje formal e informal Si algo caracteriza a la sociedad del conocimiento es la accesibilidad de éste a todos los ciudadanos. Pero el conocimiento no tiene igual reconocimiento por la sociedad dependiendo de donde éste proceda. Antes hablábamos de la dicotomía entre teoría y práctica y ahora podemos hablar de aprendizaje formal e informal. El aprendizaje informal es un tipo de aprendizaje que contrasta con el aprendizaje formal. Hager (2001) establece las diferencias en los siguientes términos: El formador controla el aprendizaje formal mientras que es el alumno el que controla el aprendizaje informal: el aprendizaje formal 84 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia se planifica mientras que el informal no. El aprendizaje formal se desarrolla en instituciones educativas, en el trabajo y es ampliamente predecible. El aprendizaje informal no es predecible y no posee un currículo formal. Tanto en las instituciones educativas como en la formación, el aprendizaje es explícito: se espera que el que ha asistido a formación sea capaz de demostrarlo mediante exámenes escritos, respuestas orales, etc. El aprendizaje informal generalmente es implícito, y en general el aprendiz no es consciente de lo que sabe, aunque sea consciente de los resultados de ese aprendizaje. En el aprendizaje formal se pone énfasis en la enseñanza, en el contenido y la estructura de lo que va a ser enseñado, mientras que en el aprendizaje informal el énfasis es en el que aprende. En el aprendizaje informal el énfasis recae en los alumnos como individuos o en el aprendizaje individual, mientras que el aprendizaje informal a menudo es colaborativo. El aprendizaje formal es descontextualizado, mientras que el aprendizaje informal es de naturaleza contextualizada El aprendizaje formal toma forma en términos de teoría (o conocimiento) y después práctica (aplicación de la teoría), mientras que el aprendizaje informal tiene que ver más con conocer cómo se hacen las cosas. Nos ha llamando la atención a partir de la lectura del sugerente libro que sobre la Ética del Hacker ha publicado el filósofo finlandés Pekka Himanen (2001). Para este autor, el paradigma del aprendizaje en la sociedad del conocimiento tiene mucho que ver con la forma como los hackers aprenden. Recordemos que nos referimos al hacker como una persona con conocimientos informáticos y que desarrolla por sí mismo y en colaboración con otros, alternativas y desarrollos informáticos que desafían claramente a las grandes firmas comerciales de este sector. Pues bien, plantea Himanen, tomando como ejemplo a Linus Torval, autor del sistema operativo Linux, que el aprendizaje, en la sociedad del conocimiento, tiene que estar asociado con la pasión, con el interés por lo desconocido, por las preguntas más que por las respuestas, por el apoyo de otros que conocen, por la resolución de problemas de manera colaborativa. Ese modelo de aprendizaje en el que lo que agrupa a las personas que aprenden no es la edad sino el problema a resolver, algo parecido a la Academia de Platón. Pero, Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 85 La formación docente en la sociedad del conocimiento y la información como comenta Himanen, “La ironía es que la actual academia tiende a reproducir la estructura de aprendizaje emisor-receptor propia de los monasterios. La ironía generalmente se amplía cuando la academia construye una ‘universidad virtual’: el resultado es una escuela monacal computerizada”. (2001, p. 76). Aislamiento en el aula y la sociedad en red Hoy día convivimos con un nuevo dilema: si por una parte gran parte del profesorado tiene la oportunidad de acceder a fuentes de conocimiento, materiales, experiencias, así como implicarse en redes de profesores (Marcelo, 2002b), se sigue manteniendo en las aulas un de los principios de la cultura profesional docente: el aislamiento. El desarrollo y generalización de redes de profesores, la posibilidad de aprender con otros a la distancia, la creación de escenarios abiertos y distribuidos que actualmente están siendo posibles gracias a las nuevas tecnologías de la información y la comunicación, están facilitando la visibilidad de esa forma de aprendizaje que hemos llamando informal. Y este hecho está removiendo los tranquilos cimientos de las instituciones formales de acreditación. 9 PARA CONCLUIR ¿Vemos el vaso medio lleno o medio vacío? Hay razones a favor de cualquiera de las opciones. Podemos tener la sensación de que vamos avanzando en el conocimiento sobre el aprender a enseñar, pero si miramos a nuestro alrededor vemos que muchas de las prácticas más tradicionales permanecen. Me llamó mucho la atención un artículo de Labaree (1998, p. 9) en el que, después de analizar el tipo de conocimiento sobre el que trabajamos los investigadores educativos, concluía con una frase que me permito reproducir. Decía que Un problema que el conocimiento educativo plantea a aquellos que buscan producirlo es que a menudo les deja con la sensación de estar perpetuamente luchando por avanzar hacia ninguna parte. Si Sísifo fuera universitario, su campo sería la educación. Al final de una larga y distinguida carrera, muchos investigadores en edad de jubilación suelen encontrar que aún se 86 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 63-90, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Carlos Marcelo Garcia encuentran trabajando en los mismos problemas que abordaban al comienzo de su carrera. No es que uno se encuentre ya al final de su carrera, pero sí que cuenta con el tiempo suficiente como para comprobar que muchos de los temas que configuran la agenda de la reforma de la formación del profesorado siguen estando presentes, como si el tiempo, las investigaciones o la práctica no hubiera permitido generar avances sustanciales. Esos temas nos siguen resultando familiares. ¿Será que tiene que ser así? REFERÊNCIAS BEREITER, C. Education and mind in the knowledge age. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 2002. BEREITER, C.; Scardamalia, M. Educational relevance of the study of expertise. Interchange, v. 17, n. 2, p. 10-19, 1986. BERLINER, D. In pursuit of the expert pedagogue. Educational Researcher, v. 15, n. 7, p. 5-13, 1986. BERLINER, D. C. A personal response to those who bash teacher education. Journal of Teacher Education, v. 51, n. 5, p. 358-371, 2000. BONK, C.; CUNNINGHAM, D. Searching for learner-centered, constructivism, and sociocultural components of collaborative educational learning tools. In: BONK, C.; KING, K. (Ed.). Electronic Collaborators. New Jersey: Lawrence Erlbaum Ass, 1998. p. 25-50. BRANSFORD, J.; DARLING-HAMMOND, L.; LEPAGE, P. Introduction. In: DARLING-HAMMOND, L.; BRANSFORD, J. (Ed.). Preparing teachers for a changing world.. S. Francisco: Jossey Bass, 2005. p.1-39. BRANSFORD, J. et al. 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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima APRENDIZAGEM DA DOCÊNCIA EM CURSO A DISTÂNCIA: A VERSÃO DOS PROFESSORES* LEARNING TO TEACH IN A DISTANCE COURSE: TEACHER’S OPINIONS Maria Elizabete Souza COUTO** Emília Freitas de LIMA*** Resumo: Este trabalho analisa as aprendizagens da docência possibilitadas por experiências de formação continuada na modalidade a distância em uma pesquisa já realizada. Utilizamos como instrumento de coleta de dados entrevistas semi-estruturadas para captar as aprendizagens docentes. Os sujeitos da pesquisa foram dez professores da Educação Básica na rede pública de ensino que concluíram a 1ª. turma do curso TV na Escola e os Desafios de Hoje, nos municípios de Ilhéus e Itabuna-Ba. Os materiais de estudo no curso (três módulos impressos e os vídeos veiculados pela TV Escola) foram distribuídos pela Secretaria de Educação a Distância/SEED/MEC. Os dados demonstraram que as aprendizagens dos professores cursistas transitam entre o aprender utilizar as tecnologias em sala de aula, enfocando o caráter técnico e operacional, e a retomada com os saberes da formação profissional, das disciplinas de ensino e da experiência, os quais proporcionaram um saber-ver, saberler, saber-ensinar, saber-aprender e saber-fazer referentes ao processo formativo. A sala de aula foi enfatizada como local de aprendizagem da docência a partir dos saberes da experiência, da disciplina e o saber lidar com as tecnologias em sala de aula para fazer a mediação entre os conteúdos aprendidos e ensinados. * Este artigo é parte da tese de doutorado, defendida em março de 2005, orientada pela profa. Dra. Emília Freitas de Lima. Apoio Financeiro CAPES/PICDT. ** Pedagoga. Mestre em Educação pela UESC. Doutora em Educação pela UFSCar. Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC. E-mail: [email protected] ** Pedagoga. Mestre em Educação pela PUC-RJ. Doutora em Educação pela UFSCar. Professora da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 91 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores Palavras-chave: Formação de professores. Aprendizagem da docência. Educação a distância. Abstract: This work analyzes the learning that took place through the experiences of continuing education in the modality of distance education. The instruments used for data collection included semi-structured interviews. The subjects of the research were 10 teachers of Basic Education that completed the course ‘TV na Escola e os Desafios de Hoje’ in the towns of Ilhéus and Itabuna-Ba. The study materials in the course (3 printed modules and the videos transmitted by TV Escola) were distributed by the Secretaria de Educação a Distância/SEED/MEC. The data demonstrated that teachers´ learning included the use of technologies in classroom, focusing the technical and operational aspects, and the articulation with the knowledge about the professional formation, of the teaching disciplines and of the experience, which provided a way of seeing, of reading, of teaching, of learning and a way of doing regarding the formative process. The classroom was emphasized as place of learning to teach starting from teachers´ experiential knowledge, the discipline and knowing to work with the technologies in classroom to mediate the contents learned and taught. Keywords: Teacher education. Learning to teach. Distance education. INTRODUÇÃO […] os saberes profissionais são saberes da ação Ou ainda, usando uma expressão que preferimos, Saberes do trabalho, saberes no trabalho [...] Tardif, 2000 Este trabalho faz parte de uma pesquisa realizada anteriormente com o objetivo de analisar as aprendizagens da docência possibilitadas por experiências de formação continuada na modalidade a distância. A relevância do estudo é marcada pela escassez de trabalhos 92 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima que estudam a aprendizagem da docência em cursos de formação continuada que fazem parte do conjunto das políticas públicas, via educação a distância. Alguns pesquisadores já estudaram os referidos cursos, coordenados pela Secretaria da Educação a Distância/SEED/MEC; entretanto, o objeto de estudo pautava-se em analisá-los como “peças” das políticas públicas de formação de professores, sendo a aprendizagem e trajetória docente dos professores ainda uma “zona de sombra”. A docência põe em evidência uma diversidade de saberes, os quais envolvem os conhecimentos da matéria de ensino, as competências, as habilidades, o saber-fazer, o conhecimento pedagógico do conteúdo, o conhecimento da formação docente e a sabedoria da prática em um contexto mais amplo. Este trabalho pretende discutir quais são as aprendizagens da docência possibilitadas pelo curso de formação continuada por meio da EAD, intitulado TV na Escola e os Desafios de Hoje, na tentativa de apreender as aprendizagens da docência dos professores que concluíram a 1ª. turma. APRENDIZAGEM E SABERES DOCENTES: UM CONTINUUM A trajetória docente é o momento de construção de saberes, momento de vivenciar aprendizagens relacionadas aos saberes da formação, da disciplina de ensino, do currículo e da experiência, para descobrir formas de articular saberes acadêmicos, sociais e os bens culturais dos alunos. Em relação à aprendizagem e aos saberes docentes, ainda há “zonas de sombra que precisam ser desvendadas, se considerarmos os desafios de uma escola de massa e o lugar que nela desempenha o trabalho do professor”. (LELIS, 2001, p.43). Para elucidar a temática, lançamos mão, na literatura internacional, das contribuições e estudos realizados por Tardif et al. (1991), Tardif & Lessard (1999) e Tardif (2000, 2002). Na formação continuada, a articulação dos saberes dos professores, dos alunos, da comunidade e as informações veiculadas pelos meios de comunicação fortalecem a docência nas situações simples e complexas que ocorrem em sala de aula, “caracterizada por uma multidimensionalidade, simultaneidade de eventos, imprevisibilidade, imediaticidade e unicidade. [...]. Eventos inesperados e interrupções variadas podem, por sua vez, mudar igualmente a condução do processo instrucional”. (MIZUKAMI, 1996, p.64). Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 93 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores A trajetória docente é marcada por saberes que os professores mobilizam e constroem no seu trabalho cotidiano para desempenhar suas tarefas. Para Tardif e Lessard (1999), o saber docente é plural (oriundo de fontes diversas, reunindo saberes diferentes e heterogêneos). É também temporal (inscreve-se no tempo, está vinculado às etapas de carreira docente, mesmo antes da formação inicial, nas diferentes fases da vida e prática dos professores, implicando uma socialização e uma aprendizagem da profissão), composto (de diferentes naturezas que, por um lado, integram objetividade e precisão (as regras, conteúdos, avaliação), e por outro, implicam subjetividade e imprecisão (a interpretação e o julgamento dessas regras, avaliação e conteúdos no cotidiano da sala de aula), heterogêneo (de fontes diversificadas) e social (construído em interação com diversas fontes sociais de conhecimentos, de competências, de saber ensinar, da cultura do meio, da organização escolar, das universidades etc.). Saberes que estão relacionados a uma “situação de trabalho com outros (alunos, colegas, pais, etc), um saber ancorado numa tarefa complexa (ensinar), situado num espaço de trabalho (a sala de aula, a escola), enraizado numa instituição e numa sociedade” (TARDIF, 2002, p. 15), apoiando-se em diversas competências ao longo da docência. Para Tardif et al (1991), podem ser classificados como saberes da formação profissional, das disciplinas, curriculares e da experiência, e se originam na prática cotidiana da docência em sala de aula. Não são construídos de forma linear, como uma caixa fechada, separados uns dos outros e do seu contexto. Fazem parte de um mesmo invólucro dos saberes da docência, numa dimensão totalizante. Os saberes da formação profissional (das ciências da educação e da ideologia pedagógica) são transmitidos nos cursos de formação inicial e transformados em saberes destinados à formação científica dos professores (TARDIF, 2000). Fornecem uma base de informações a respeito de várias facetas dos saberes da profissão e do sistema escolar, que, na maioria das vezes, não são conhecidas pela comunidade escolar. “É um saber profissional específico que não está diretamente relacionado com a ação pedagógica, mas serve de pano de fundo tanto para ele quanto para os outros membros de sua categoria socializados da mesma maneira” (GAUTHIER et al., 1998, p.31). Os saberes das disciplinas correspondem às diversas áreas de conhecimento. Saberes de que dispõe a sociedade, que emergem da tradição cultural dos grupos sociais, e integrados nas universidades, fa- 94 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima culdades e cursos de formação de professores sob a forma de disciplinas nos cursos de formação (inicial e continuada) (TARDIF, 2001). A docência requer os saberes da disciplina, considerando que “ensinar exige conhecimento do conteúdo da matéria a ser transmitido, visto que, evidentemente, não se pode ensinar algo cujo conteúdo não se domina”. (GAUTHIER et al., 1998, p. 29). Há nas diversas estruturas da formação a presença dos saberes curriculares, que correspondem aos conteúdos, métodos, objetivos, a partir dos quais a instituição escolar apresenta e organiza os saberes sociais que selecionou para a formação acadêmica (TARDIF et al., 1991). São apresentados sob a forma de programas escolares, que os professores aprendem e utilizam na sua prática cotidiana. Os saberes da experiência são desenvolvidos e construídos pelo professor no exercício da profissão, na prática, baseados no trabalho cotidiano e no conhecimento adquirido na formação inicial. Saberes produzidos na experiência, por ela validados, e incorporados à vivência individual e coletiva sob a forma de competências e habilidades (TARDIFF, 2002). Na experiência, os saberes são amalgamados. Eles fundamentam a prática docente e só por meio dela se revelam. Um saber que pode ser definido como um conjunto de conhecimentos atualizados e adquiridos na prática, em um contexto constituído de múltiplas interações, no qual a docência aparece como um processo de aprendizagem, a partir do qual os professores retraduzem sua formação anterior e vão ajustando às condições da profissão (TARDIF et al., 1991; TARDIFF & LESSARD, 1999). Os saberes da experiência começam desde a sua vida escolar, quando aluno, com diferentes professores, e passam a integrar a identidade do professor, constituindo-se como elemento fundamental nas práticas e decisões pedagógicas. A diversidade de saberes que envolve os saberes da experiência é o centro da competência profissional, e ela surge no dia-a-dia do professor. “Essa experiência torna-se então ‘a regra’ e, ao ser repetida, assume muitas vezes a forma de uma atividade de rotina”. (GAUTHIER et al., 1998, p.33). Os saberes da experiência não provêm diretamente das instituições formadoras ou dos programas curriculares. São saberes plurais e compostos, fazem parte constituinte da prática, produzidos no contexto interativo em que são desenvolvidos, atribuindo à experiência uma função particular na produção e legitimação da competência profissional nos vários saberes: o saber da ação, o saber da prática e o saber refletir (TARDIF & LESSARD, 1999). Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 95 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores Entretanto, apenas os saberes da experiência não bastam, e o professor não atua sozinho. A aprendizagem da docência reside na capacidade de revelar e validar o saber da experiência dos professores para não ficar limitado à sua prática individual, sendo a experiência uma fonte de conhecimento e de aprendizagens. O seu valor está em poder ser criticado, analisado, melhorado e refeito, para torná-lo mais eficaz. As experiências do professor são baseadas em teorias e práticas, muitas delas aprendidas como alunos e outras, com colegas de trabalho, com leituras e discussões etc. Conscientes ou não das teorias, aprendem a tomar decisões instrucionais, a direcionar a aula, a escolher estratégias de ensino, a avaliar, a impor um ritmo de aprendizagem, a manter a disciplina, a planejar e replanejar as aulas etc., baseando-se em experiências diretas com as situações escolares. A ação do professor é pessoal e particular para determinadas situações. “Sob essa perspectiva, pode-se dizer que as teorias práticas de ensino constituem o conhecimento profissional”. (MIZUKAMI et al., 2002, p.50). Por mais que façamos um esforço para classificar e definir os processos de aprendizagem da docência, os limites da docência “aparecem relacionados a situações concretas que não são passíveis de definições acabadas, e que exigem uma cota de improvisação e de habilidade pessoal, bem como capacidade de enfrentar situações mais ou menos transitórias e variáveis” (TARDIF et al., 1991, p.228). O conhecimento da prática aparece como um processo de aprendizagem da docência, quando os professores [...] retraduzem sua formação e a adaptam à profissão, eliminando o que lhes parece inutilmente abstrato ou sem relação com a realidade vivida, e conservando o que pode lhes servir de uma maneira ou de outra. A experiência provoca assim um efeito de retorno crítico (feed-back) aos saberes adquiridos antes ou fora da prática profissional (id, p. 231). A docência caracteriza-se como um continuum, uma aprendizagem plural, formada no amálgama de vários saberes, contextos e situações escolares, bem como na experiência pessoal e profissional, nos saberes das disciplinas, curriculares, da formação e da experiência. Estão presentes em qualquer modalidade de ensino (presencial ou a distância) no momento em que os professores conseguem partilhá-los com seus colegas a partir das informações, dos modos de fazer, organizar as 96 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima aulas e selecionar o material – livros, jogos, histórias, filmes etc. Os professores possuem um conhecimento prático e são sujeitos do trabalho que desenvolvem; eles percebem que também estão aprendendo novas formas de ensinar em situações formais e não-formais de aprendizagem. Os saberes que constituem a docência estão presentes na trajetória do professor desde a formação inicial, momento em que o estudante está aprendendo a profissão com as experiências e saberes dos seus professores, e na formação continuada, quando, imerso na docência, busca estratégias de ensino, administra a gestão da matéria de ensino e a da classe nas diferentes situações e ocorrências de sala de aula. É um continuum, ou seja, a base de conhecimento não está dissociada do trabalho docente. Ao contrário, deve estar articulada e “costurada” para romper com o paradigma disciplinar de apropriação de conhecimento e com a idéia de que dominar o conhecimento da disciplina é suficiente para o professor garantir o ensino aos alunos. O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA Este trabalho é oriundo de uma pesquisa de caráter qualitativo que analisou as aprendizagens da docência possibilitadas por uma experiência de formação continuada por meio da Educação a Distância – o curso de aperfeiçoamento TV na Escola e os Desafios de Hoje. Para Bogdan e Biklen, em uma pesquisa qualitativa devem-se “recolher dados descritos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma idéia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo” (1994, p.134). Nesse caso, temos como objeto de estudo as aprendizagens da docência proporcionadas pelo referido curso, levando em conta que a realidade das escolas não é igual, estática nem fixa, em decorrência das diferenças, contradições e tensões existentes na sociedade. Os sujeitos da pesquisa foram dez professores da Educação Básica que concluíram a 1ª. turma do curso nos municípios de Ilhéus e Itabuna/Ba. E que trabalhavam na rede pública de ensino (estadual e municipal). Destes, três lecionavam no Ensino Fundamental/1ª a 4ª. série, quatro lecionavam as disciplinas Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Matemática e Educação Física (5ª a 8ª. série), e três trabalhavam no Núcleo de Tecnologia Educacional/ NTE. Os professores tinham formação acadêmica diferenciada. PosOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 97 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores suíam uma trajetória profissional considerável, de cinco a 25 anos de experiência na docência, na educação básica nas redes pública e particular de ensino. De forma não linear, o tempo na docência, a formação, a idade e as situações familiares e econômicas dos professores marcavam essa trajetória. Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram entrevistas semi-estruturadas e notas de campo da pesquisadora, “com a idéia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para construir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora de nosso objeto de estudo” (BOGDAN & BIKLEN, 1994, p.49). A entrevista tinha o objetivo de captar as aprendizagens que o curso possibilitou aos professores. No momento, o foco de análise é a aprendizagem da docência dos professores em um curso de formação continuada na modalidade a distância. A partir deste momento, chamaremos de professores cursistas os professores que fizeram parte do estudo. INFORMAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O CURSO TV NA ESCOLA E OS DESAFIOS DE HOJE O curso foi lançado em outubro de 2000, fazendo parte do conjunto das políticas públicas de formação continuada de professores, na modalidade a distância, com o objetivo de “capacitar profissionais de instituições públicas de ensino fundamental e médio para melhor uso no cotidiano escolar dos recursos proporcionados pelas tecnologias da informação e comunicação, com ênfase na comunicação audiovisual (TV Escola)”. (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2000, p.17). Um curso de aperfeiçoamento que contou com parceira da SEED/ MEC e a Universidade Virtual Pública do Brasil/UniRede 1. O objeto de estudo do curso era preparar professores para explorar as tecnologias para desempenhar o papel de integrar e modernizar as práticas pedagógicas. Foi organizado para permitir que os “profissionais possam qualificar-se sem ter que se ausentar ou se deslocar do ambiente onde trabalham, minimizando a influência das dificuldades profissionais, econômicas e as barreiras geográficas”. (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2000, p.15). A UniRede foi criada em 6 de janeiro de 2000, com a idéia de uma universidade em rede, com o lema “Nasce uma nova Universidade no Brasil”. A logomarca tem apoio do Ministério da Educação, Ministério da Ciência e Tecnologia e FINEP. Não teria campus e estrutura física, mas estaria nas Universidades públicas (federais, estaduais e CEFET). 1 98 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima Na Bahia, a universidade núcleo do curso era a Universidade Estadual de Santa Cruz/UESC, que recebeu a matrícula de 2.781 professores/alunos, de 137 municípios. Na Universidade, as atividades começaram em novembro de 2000, com duração prevista para sete meses, contando com uma estrutura administrativa e pedagógica formada por um coordenador geral, dois coordenadores-adjuntos, uma secretária e 27 tutores (os formadores dos professores/alunos). Os tutores tinham como atribuições: Capacitar-se para o desempenho de sua função; avaliar e comentar o desempenho do cursista em todas as atividades de avaliação que lhe forem enviadas, utilizando o Memorial como referência de conjunto para compreender o estágio alcançado pelo cursista; procurar encaminhar os cursistas à resolução de suas dúvidas e questionamentos; fornecer dados à Coordenação do Curso, sempre que solicitados; auxiliar na solução de problemas que surjam nas escolas, levando em consideração a realidade específica de cada município. (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2001, p.8). Antes do início do curso houve momentos de capacitação e estudos com os tutores, para que compreendessem a dinâmica, o objetivo e o objeto de estudo do curso, e, principalmente, a formação continuada de professores na modalidade a distância, bem como a sua formação para lidar com a modalidade de ensino e aprendizagem a distância. A organização do curso era modular, com uma carga horária de 180 horas. A SEED/MEC distribuiu o material de estudo, composto de três módulos impressos, e os vídeos eram transmitidos pelo Programa TV Escola, em dias e horários previamente definidos (5ª. e 6ª.-feira, às 21 horas, e no sábado, às 9 horas, horário de Brasília). Não houve encontros presenciais. O contato dos professores cursistas com a universidade, sede do curso, era feita via telefone (fixo e três linhas 0800), fax e e-mail. AS APRENDIZAGENS DOCENTES: DISCUTINDO A VERSÃO DOS PROFESSORES CURSISTAS Ensinar é uma tarefa que exige vários saberes e aprendizagens ao longo da trajetória docente, bem como o domínio de conteúdos da matéria de ensino, dos conteúdos pedagógicos e dos recursos didáticos e tecnológicos. Saberes não escritos nos programas curriculares escolaOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 99 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores res, embora relacionados entre si. São aprendizagens indizíveis (MALGLAIVE, 1997). As aprendizagens dos professores cursistas fazem parte de um conjunto formado e ampliado pelo repertório de conhecimentos que eles possuem. Na prática estavam presentes aspectos e saberes de naturezas diversas, um intimamente interligado ao outro, formando o amálgama dos saberes e das aprendizagens docentes, dando corpo ao desenvolvimento profissional do professor no processo de formação. Com referência ao conjunto dos saberes acadêmicos, disciplinares e pedagógicos que contribuem para a compreensão do conteúdo da matéria de ensino e o conhecimento da técnica no trabalho docente, os professores cursistas disseram que os conteúdos estudados no curso ajudaram nos seguintes aspectos: – A produção do vídeo (P.3). – a aliar a linguagem do vídeo com a nossa linguagem, uma coisa não está distanciada da outra. [...] os módulos lhes dão segurança, porque o trabalho com o vídeo quando a gente começou era um trabalho mais cego. É você assistir e a partir daí traçar a sua aula, o que vai trabalhar com aquele material (P.2). – eu acho que a questão da necessidade de não ficar só naquela história, ah! Eu preciso, eu tenho que estar mesmo informatizada. Eu tenho que trabalhar como isso [...]. Se você tiver acesso ao vídeo, comece a trabalhar com ele, veja em casa uma propaganda, um outdoor que ele [o aluno] viu na rua (P.9). – [a aprendizagem] mais técnica mesmo. Eu tenho a parte teórica da Matemática. O curso em si me ajudou a ver uma coisa diferente, como motivar, como usar outros recursos e não só o quadro de giz. As leituras e as sugestões de uso dos audiovisuais ajudaram a dinamizar a parte teórica. Porque a gente sai da faculdade e você não vê nada disso, sai com conhecimento na sua área, na prática é outra coisa. É no viver que a gente vai aprendendo. Então foi no curso que tive nova visão de como usar os recursos que estão disponíveis, que são a televisão, o vídeo, o som. Esta visão que o curso me deu vai além do prático, porque ajudou a pensar o teórico também. E não é uma coisa que ficar pra mim, eles [alunos] que estão construindo. Tanto desenvolve o lado artístico como o próprio conteúdo de Matemática é desenvolvido naquele trabalho ali (P.10). Os professores cursistas fizeram referência às aprendizagens que 100 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima se somaram aos conhecimentos adquiridos na formação inicial e ao longo da docência. As tecnologias começaram a fazer parte da vida da escola, do ensino e da aprendizagem, como um elemento carregado de conteúdos, representando uma nova forma de pensar, ensinar, aprender e refletir (PRETTO, 1996). Todavia, os professores cursistas estavam vivendo o momento de começar a perceber essas questões, que transitavam entre os aspectos conceituais e procedimentais, principalmente no momento em que enfatizavam mais a razão operativa que a construção de um saber que envolve várias áreas de conhecimento. A trajetória docente, da formação inicial à docência, foi mencionada por P.10, que já participou de outros cursos de formação continuada que enfatizam o uso das tecnologias na educação. Para ele, este foi o curso que mais lhe proporcionou oportunidades de rever conceitos, mediar e estabelecer interlocução entre o conteúdo da matéria de ensino, o conteúdo pedagógico da matéria e o conhecimento dos recursos das tecnologias na educação, fazendo a relação entre teoria e prática. No que se refere às aprendizagens, retomaram os conteúdos presentes nos módulos – as linguagens: a visual e a impressa; analisar os programas de TV – e os aspectos metodológicos – como usar os vídeos em sala de aula. Foram considerados os saberes acadêmicos e as possibilidades de criar estratégias para torná-los ensinados e aprendidos. Eis mais alguns depoimentos: – [aprendi] a diferenciar o que é um vídeo, o que é o educativo, o que não é. A organização das fitas. A fundamentação de como trabalhar a TV e o vídeo. (P.3). – a parte de Educação Especial, passei a conhecer essa grade, os programas todos e foi útil. Na época sempre passava documentário falando sobre as deficiências visuais, programas também sobre a deficiência auditiva e a pluralidade cultural (P.7). – a questão da linguagem da TV e vídeo quando você vai produzir, você vê que muda, tem quer ser a mínima possível, de uma maneira resumida e que as pessoas entendam (P.8). – que acho que foram as técnicas, as várias maneiras que apontam, diretrizes, objetivos, que a gente, às vezes, faz alguma coisa dentro da tecnologia, usando meios tecnológicos e a gente não visualiza esses objetivos. Então isso ajuda a concretizar mais a prática da gente, seja em que disciplina for. Eu aprendi e comecei a arrumar e organizar o acervo de fitas (P.9). Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 101 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores A preocupação em relação à fundamentação teórica, aos objetivos e às diretrizes para realizar um trabalho com as tecnologias em sala de aula e a necessidade de objetivos e diretrizes para direcionar e concretizar mais a prática seja em que disciplina for revelou a importância da compreensão do saber da disciplina de ensino e dos saberes pedagógicos, bem como da iniciativa de começar a organizar o acervo de fitas na escola, favorecendo o trabalho de outros professores. As aprendizagens possibilitadas pelo curso foram fundamentais para ajudá-los a compreender e melhorar o ensino, e, conseqüentemente, a aprendizagem dos alunos. Porém, não basta a aprendizagem adquirida no curso, mas a inter-relação com o saber da disciplina lecionada, as estratégias de ensino, os estilos de aprendizagem dos alunos, o contexto das escolas. (TARDIF et al., 1991). Sobre o conteúdo do curso, os professores cursistas falaram que aprenderam: – como utilizar o vídeo em sala de aula, porque muitas vezes o professor usa simplesmente e deixa os alunos lá assistindo ao vídeo sem ter uma proposta de trabalho. Ele não tem um objetivo, não se fundamenta em nada para desenvolver aquele trabalho. E a TV Escola abre essa idéia, nos ajuda muito (P.3). – eu tenho que ter um pouco da técnica e do conhecimento, porque só a técnica não resolve, porque aí vai ficar uma coisa que não vai ter significado, uma coisa assim fria. Você fez em que contexto? Para quê? (P.4). – [programa de TV e vídeos] incentiva a questão da leitura, a necessidade da gente saber o que está acontecendo fora da escola, porque faz parte do dia-a-dia. Desde as novelas, ela mostra os dois lados e nós, professores, devemos aproveitar de tudo que o aluno tem acesso, mesmo que a gente não tenha condições de realizar na escola, mas que o aluno tem acesso em tecnologia e que a gente aproveite isso para discussão, para direcionar o trabalho (P.9). Nos depoimentos está presente a aprendizagem de procedimentos de utilização do vídeo em sala de aula. As várias possibilidades de transformar o conteúdo da disciplina de maneira pedagogizada, compreensível para os alunos, buscando nos aparatos tecnológicos uma referência para representar, ilustrar, simular, demonstrar e expor o con- 102 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima teúdo das disciplinas que lecionam, mesmo trabalhando com o contexto das fragilidades da escola pública. É necessário aliar o saber da disciplina e o saber da experiência ao conhecimento da técnica para trabalhar com os vídeos em sala de aula. Separar essas três categorias é manter a fragmentação do conhecimento, além de separar a teoria e a prática no contexto do processo de ensino e aprendizagem. O aprender a ensinar, que é um processo dinâmico, aconteceu à medida que tiveram acesso a novos conhecimentos, refletiram sobre aspectos da própria formação, desenvolveram práticas com o uso das tecnologias em sala de aula e centraram atenções em assuntos importantes para a formação e a docência, na familiarização com o uso faz tecnologias e da Programação da TV Escola em sala de aula. Os professores cursistas realizaram atividades propostas nos módulos do curso, como alunos e professores em sala de aula com seus alunos, experimentando novas maneiras de ensinar e aprender que envolvessem a discussão sobre a tecnologia nos dias de hoje, a programação da TV: desenho animado, novelas etc; a produção da filmagem e da dramatização, a partir de histórias e textos construídos pelos alunos. Os conteúdos e as sugestões metodológicas ajudaram a desenvolver atividades de natureza prática. Das reflexões emergiram saberes diversos: a utilização do vídeo em sala de aula, a relação teoria, prática e técnica, a valorização dos conhecimentos dos alunos, a relação dos conhecimentos dos alunos versus conhecimentos curriculares, bem como novas possibilidades de trabalhar com as tecnologias em sala de aula a partir das condições da escola. Nas entrevistas foram reveladas, como aprendizagens, situações referentes aos seguintes conteúdos presentes nos vídeos indicados para estudo – a ecologia, estados do Brasil (mapas e estatísticas), violência, jogos, formas geométricas, a Matemática na vida das pessoas etc. Seguem alguns depoimentos: – aquele vídeo que passou sobre o menino que mora em São Paulo ficou marcado – Aqui e Lá. Ele morava no estado do Ceará, vem para Diadema. Eu trabalhei Matemática. Aí passei toda estrutura da Matemática, usamos mapas que fazem aquela comparação, escala, gráficos, você vê população e também eu tirei aquele contexto da sensibilidade, aquela sensibilidade de reação, como aquele menino se adaptou, aquela sensibilidade que ele teve de sentir falta da natureza que não tinha, da Ecologia que não tinha naquela Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 103 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores cidade e também levando a questão da violência, entendeu?(P.4). – eu aprendi mesmo na Educação Física foi a questão dos jogos. Muita coisa que a gente já aprende dentro da área e também aprendi que você tem um ponto e vai criar mais. Como se fossem ramificações, gera muita coisa (P.8). – assisti a alguns [filmes] e outros eu gravei da TV Escola, da Matemática, que fala das formas geométricas, que a menina fala assim: - Eu sou Norma e eu me ligo nas formas. Então a gente usa o teorema de Pitágoras, consulta e depois eles dividem e agora constroem tanto manualmente, como no computador aquela seqüência do teorema de Pitágoras. [...] Aprendi a questão do fazer diferente. [...] Foi essa mensagem, a Matemática está lá, parada, estática, como você pode movimentá-la, como você pode mexer nesse conteúdo para que todo mundo absorva isso? Então os filmes me deram essa visão (P.10). Para trabalhar com vídeos, muitas vezes é preciso ter sensibilidade para que não seja apenas mais um recurso, mais um texto escrito e imagético que está em sala de aula, sendo trabalhado com os alunos sem contextualização em relação aos conteúdos programáticos definidos. Não devemos substituir o texto e a linguagem escrita pela linguagem audiovisual em sala de aula; mas fazer a mediação e estabelecer a relação entre as duas linguagens é o grande desafio, no momento em que nos deparamos com alunos que são audiovisuais e captam rapidamente a mensagem das imagens, ritmos, sons e cores. Os vídeos ajudaram a pensar as disciplinas que lecionam (Matemática, Educação Física, Língua Portuguesa) como movimento, não como estáticas e distanciadas da realidade. Referiram-se às estratégias que as tecnologias oferecem para dinamizar o conteúdo, para que os alunos os compreendam. Muito mais que conhecimentos das disciplinas, os vídeos lhes proporcionaram um saber-ver, saber-buscar, saber-ler, saber-ensinar, saber-aprender e saber-fazer referentes ao seu processo formativo – saber da disciplina, saber da experiência e os saberes da formação profissional. (TARDIF et al., 1991; TARDIF, 2000, 2002). No âmbito do saber da experiência, saber transformar, adaptar textos e imagens e reorganizar o conteúdo da matéria de ensino etc, parece tornar mais acessível aos alunos a aprendizagem dos conteúdos escolares. Para compreender o movimento da disciplina, é indispensável a interseção dos saberes das disciplinas com os saberes da formação e as estratégias e procedimentos didáticos, para facilitar a compreen104 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima são dos conteúdos que estão sendo ensinados e aprendidos. A crença nas possibilidades dos recursos tecnológicos para trabalhar com os alunos foi revelada, bem como o feedback de suas práticas. As aprendizagens da formação profissional aliavam no seu corpo de saberes os saberes da formação, da disciplina que lecionavam, da experiência (a prática) e do conhecimento dos recursos didáticos e tecnológicos disponíveis na escola. – eu passei a trabalhar com projetos e além da gente aprender mais e ter mais conhecimentos, é melhor para a aprendizagem dos alunos. Aí passei a trabalhar com eles levando à sala de vídeo, assistindo e vindo trabalhar na sala de aula o que eles viram no vídeo, fazer produção de texto e daí fazer pesquisa na biblioteca do CSU (Centro Social Urbano) (P.1). – a forma de olhar a televisão. Antes de iniciar esse trabalho, eu me situei onde estaria a televisão na vida deles, para poder eu também me sentir segura. Esses alunos que eu tenho agora, [é que] estou me situando, para ver como é a televisão, a realidade deles, porque alguns não têm nem luz elétrica em casa. Então vai ser uma coisa para eles direcionarem esse olhar, vai ser uma coisa bem assim diferente e também para eu poder tirar questionamento deles, porque eu quero é isso (P.4). Os professores cursistas começaram a ampliar os processos da docência no contexto da sala de aula. Eles se deram conta de que os conhecimentos estudados no curso acrescentavam outras condições e possibilidades para ensinar e aprender, olhar o aluno, o saber da disciplina de ensino, a organização da sala de aula, a estruturação do projeto pedagógico e a presença das tecnologias na escola e também o seu desenvolvimento profissional. Além de trabalhar com vídeos em sala de aula, os professores cursistas buscavam novas possibilidades para o planejamento, trabalhando com projetos, pesquisa em biblioteca, pensar a TV no contexto e realidade de seus alunos, os temas transversais etc., mesmo diante da incerteza, da complexidade e das situações divergentes de ensino não trabalhadas e discutidas nos cursos de formação inicial, retraduzindo e adaptando ao trabalho docente alternativas pedagógicas. A experiência e a vivência com as tecnologias provocaram um efeito crítico aos sabres adquiridos na formação inicial ou fora da prática profissional. (TARDIF et al., 1991; TARDIF, 2002). Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 105 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores Foi um momento de construção, com os alunos, das estratégias para realizar as atividades do curso. A construção do aluno também constrói o professor, que administra a gestão da classe e a gestão da matéria de ensino. (GAUTHIER et al., 1998). As aprendizagens não aconteceram de maneira formal e linear, mas por uma rede de relações que forma os saberes docentes dos professores, as quais se ajustaram para dar lugar à aprendizagem da docência. Rompendo barreiras e lidando com novos limites e condições de fragilidades nas escolas, criaram outras condições para aprender novas maneiras de ensinar, com o suporte das TIC disponíveis nas escolas. Assim, parece não haver um saber predominando na formação docente. São saberes de várias naturezas, que se entrecruzam, estão na base da formação e compõem a aprendizagem profissional da docência. Por um lado, discorreram sobre saberes de natureza prática, operacional, instrumental, técnica, relacionados aos conhecimentos sobre o uso das TIC em sala de aula. De outro, buscaram saberes que fazem parte dos fundamentos da base da profissão na disciplina de ensino e áreas afins. E, por último, os atributos pessoais, afetivos, cognitivos e motivacionais que os ajudam a repensar seus saberes, aprendizagens e práticas os impulsionaram na busca de novas aprendizagens, tendo como foco o desenvolvimento profissional. No conjunto dos saberes, o conhecimento da prática para lidar com as TIC em sala de aula foi valorizado, mas é preciso considerar que, isoladamente, a prática é insuficiente para organizar e estruturar o trabalho docente com o conhecimento da matéria de ensino. Além de familiarizar-se com conceitos teóricos sobre as Tecnologias na Educação, pensavam em novas alternativas para utilizá-las em sala de aula, fazendo a sua integração à proposta de trabalho já existente, adequando esses recursos ao contexto e às condições disponíveis na escola; desenvolvendo experiências e atividades práticas e também lidando com a gestão da matéria de ensino e da classe, de maneira a reorganizar o seu fazer pedagógico, a sua sala de aula, a aprendizagem docente e a aprendizagem dos seus alunos. (GAUTHIER et al., 1998). Pensando nas contribuições, para a docência, de um curso de formação continuada na modalidade a distância, notamos que parece ter havido uma maior transposição de saberes para a prática, em sala de aula, das sugestões metodológicas oferecidas nos módulos do que a construção de conceitos teóricos. Assim, o curso foi importante nos seguintes aspectos: 106 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima – não só de aprendizagem de conhecimento para mim, como para eu passar aos meus alunos. Aprendi muitas coisas, como lidar com a tecnologia (P.1). – conhecer a TV. Eu me tornei espectadora assídua da TV Escola (P.3). – o desafio maior foi quebrar o impacto de você mostrar que pode usar a TV, não só para ensinar coisas erradas, para ensinar coisas que o aluno possa aprender, para que ele tirasse daquele desenho animado, daquele programa que não tinha nada a ver, o contexto de sala de aula que ele iria estudar ali uma Matemática, sem saber que tava estudando Matemática (P.4). – na disciplina de Língua Portuguesa, a questão de trabalhar os conteúdos gramaticais, a Lingüística que a gente, às vezes, tem aquela separação. Então, quando você vai empregar esses elementos lingüísticos dentro do texto associado à imagem das propagandas, torna-se mais fácil. Por exemplo, do modo imperativo, a gente precisa estudar a questão da propaganda, ela trabalha muito com isso. A questão da lingüística acho muito complicado dentro da produção textual (P.9). As aprendizagens ajudaram a melhorar a prática em sala de aula com os alunos, uma oportunidade para conhecer a programação da TV Escola, como forma de dinamizar e enriquecer as aulas, aprender a lidar com os conteúdos dos programas de TV e vídeos, os saberes das disciplinas que lecionam e a prática em sala de aula para tornar esses conteúdos ensinados e aprendidos, e, finalmente, a fazer e pensar na interlocução de diferentes saberes. Para os professores cursistas, o curso ofereceu possibilidades e sugestões para diversificar o trabalho. A sala de aula e espaços nãoescolares, por exemplo, foram utilizados como oportunidade da diversificação dos espaços físicos elaborados para os projetos. A possibilidade de colocarmos a televisão na praça (P.7) para alunos e a comunidade assistir à programação televisiva; a visita ao shopping (P.10) para estudar as formas geométricas presentes no projeto arquitetônico do prédio. No momento, ousaram usar a praça e o shopping, espaços não-escolares (CARTER, 1990), como espaço escolar envolvendo os processos de ensino e aprendizagem. As aprendizagens do curso, além de ajudar a enfrentar alguns desafios da sala de aula, também ajudaram a “mudar” as práticas Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 107 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores pedagógicas em alguns aspectos. O enfoque na prática indica que há uma tendência para aprender novas maneiras de ensinar, quando relacionadas ao “fazer”, às estratégias. CONSIDERAÇÕES FINAIS Retomando o objeto de estudo analisado e os dados coletados, não se pode esperar e querer que aconteça uma mudança rápida e automática do e no trabalho docente. Trata-se de um processo complexo e lento, com muitas variáveis no caminho, que dependem das condições das escolas e das condições oferecidas para que os professores construam novas maneiras de ensinar e aprender. Contudo, os professores cursistas captaram e apreenderam elementos capazes de lhes possibilitar a revisão de pressupostos teóricos e metodológicos com os quais trabalhavam, para desencadear a transposição de conhecimentos recém-adquiridos na docência. Houve uma sensibilização para estudar sobre a educação e tecnologia. Ainda que não as dominem a contento, as aprendizagens adquiridas ajudaram a mudar suas práticas e a construir conhecimentos, além de amadurecer as experiências docentes já construídas, abrindo espaços para outras tantas. A presença das tecnologias na escola e na sala de aula não é um fim, mas um meio que implica em possibilidades, limites, idas e voltas na ação, reflexão na ação e sobre a ação. (SCHÖN, 1992, 2000). Evidenciaram as inúmeras maneiras de utilização de vídeos nas aulas vinculadas aos saberes docentes. As aprendizagens de natureza teórica, disciplinar, prática e pedagógica não são tomadas isoladamente, principalmente quando se trata da utilização do suporte da TIC em sala de aula. Na base da formação docente (inicial e continuada), além dos saberes e aprendizagens aqui discutidos a partir da literatura e dos saberes indicados pelos depoentes, entendemos que outros saberes e aprendizagens precisam ser acrescentados aos saberes docentes. Saberes que constituem um amálgama de saberes compostos, plurais, temporais, heterogêneos, os quais não se distinguem uns dos outros, em caixinhas separadas, a não ser por razão didática e acadêmica. Esse amálgama tem um caráter histórico, temporal e dinâmico (TARDIF et al., 1991; TARDIF & LESSARD, 1999; TARDIF, 2000, 2002), e ele está presente na organização e estruturação dos cursos presenciais 108 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima e a distância de formação de professores. Pensando nos saberes docentes em seu conjunto (TARDIF et al., 1991; TARDIF, 2000), podemos dizer, a partir deste estudo, que algumas “zonas de sombra” surgiram, as quais fazem parte do processo formativo dos professores, donde se conclui que eles precisam: – ter conhecimento das políticas públicas destinadas à educação (origem, fundamentos teóricos, ideológicos e educacionais e financiador); – ter conhecimento das políticas públicas de formação continuada de professores (clientela atendida, fundamentos teóricos e educacionais, objetivos e financiador); – ter conhecimento da organização e estruturação da escola (estrutura curricular, administrativa e pedagógica, projeto pedagógico da escola, espaços, rotinas, tempos, recursos disponíveis e financiamentos); – ter conhecimento de processos relacionais entre colegas, coordenação, direção, alunos, pais e comunidade; – aprofundar os conhecimentos da matéria de ensino em relação ao conhecimento pedagógico do conteúdo e o conhecimento do uso das TIC. Os dados indicaram que a formação de professores precisa ser mais direcionada, objetiva e consistente, preconizando a valorização profissional e os conteúdos face aos saberes acadêmicos, às metodologias e aos suportes tecnológicos. A sala de aula e a escola foram apresentadas como local de aprendizagem da docência a partir dos saberes da experiência, formação, disciplina e do currículo. (TARDIF et al., 1991). Porém, ainda não se constituíram em local de aprendizagem da docência para todos os envolvidos no processo de “aprender sobre como ensinar” e “aprender sobre como ser professor”. (KNOWLES et al., 1994). Foram situações individualizadas de aprendizagens, isto é, os professores cursistas não socializavam a jurisprudência pedagógica (GAUTHIER et al., 1998) por eles construída, aprendizagens que ainda são indizíveis. (MALGLAIVE, 1997). Os professores cursistas tinham disposição para aprender e buscaram oportunidades (como tantos outros que se inscreveram no curso) para desenvolver e aprimorar as aprendizagens da docência. Mas isso não quer dizer que conseguiram aprender os objetivos de uma política de formação de professores na modalidade a distância e que agora fazem parte dos incluídos no mundo dos que sabem trabalhar com as tecnologias em sala de aula. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 91-111, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 109 Aprendizagem da docência em curso a distância: a versão dos professores Para eles, foi um momento de “formar-se” já estando “formados” (concluída a formação inicial). Administrar a formação é um processo no qual a pessoa que se forma assume um papel ativo que o prepara para autogerir seu desenvolvimento profissional em momentos diferentes da trajetória docente. Assim, traduzir as aprendizagens que os professores cursistas construíram com o curso em concepções, conceitos, valores e novas maneiras de ensinar e aprender talvez ainda requeira mais tempo, estudos, oportunidades, condições de trabalho favoráveis e recursos tecnológicos disponíveis para todos. A aprendizagem prática, operacional, o saber-fazer e saber-utilizar as tecnologias nas aulas parece não atender a todas as necessidades e peculiaridades dos saberes do trabalho, ou mesmo dos saberes no trabalho docente, enquanto um continuum. REFERÊNCIAS BOGDAN, R.; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Ed. Porto, 1994. BRASIL. TV na Escola e os Desafios de Hoje: curso de extensão para professores do ensino fundamental da rede pública. UniRede e SEED/MEC. Brasília: Ed. UNB, 2000. (Módulos 1, 2 e 3 e Guia do Curso) ______. Manual de orientação acadêmica (tutoria). 2ª. ed. Brasília: MEC/ SEED, UniRede, 2001. KNOWLES, J. G.; COLE, A. 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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Maria Elizabete Souza Couto & Emília Freitas de Lima MIZUKAMI, M.G.N. et al. Escola e aprendizagem da docência: processos de investigação e formação. São Carlos: EdUFSCar, 2002. PRETTO, N. de L. Uma escola sem/com futuro: educação e multimídia. São Paulo: Papirus, 1996. SCHÖN, D. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, A. Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p.75-91 _____. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Tradução de. Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. TARDIF, M. Saberes profissionais e conhecimentos universitários. Elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas conseqüências em relação à formação para ao magistério. Revista brasileira de educação, São Paulo, nº. 13, p. 5-24, jan./abr. 2000. ________. Saberes docentes & Formação profissional. Tradução de Francisco Pereira. 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MARGONARI** Resumo: Este trabalho é resultado de uma pesquisa na área de formação de professores de Língua Inglesa que visa a acompanhar a trajetória profissional dos professores em início de carreira, egressos, no ano de 2002, de um curso de Licenciatura em Letras de uma instituição pública do interior do Estado de São Paulo. Tendo em vista que muitos aspectos do processo de construção e organização da experiência humana se refletem na linguagem, na investigação desenvolvida, cruzamos a análise de trechos de relatórios e questionários de alunos egressos da disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Língua Inglesa I e II com dados desses alunos já em serviço. O objetivo é demonstrar que a sensação de insegurança e ansiedade quanto à futura atuação profissional, vivenciada durante o curso, ainda se manifesta no início da carreira docente e que, além de ser, muitas vezes, superada, ela varia de acordo com o perfil do aluno-professor, que, numa fase de exploração de possibilidades profissionais, estrutura e reestrutura as diversas opções que a vida lhe oferece. * Professor Assistente Doutor do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail para contato: [email protected] ** Professora Doutora em Educação Escolar, substituta contratada no Departamento de Metodologia de Ensino da UFSCar. E-mail para contato: [email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 113 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... Palavras-chave: Formação de professores. Língua Inglesa. Re/estruturações. Abstract: This paper is the result of a research in the English teacher education field whose goal is to follow the professional development of in-service teachers who studied Modern Languages in an undergraduate program at a public institution in the interior of the São Paulo state in 2002. Having in mind that many aspects of the human experience construction and organization process are reflected on language, in the investigation developed we compared excerpts from Practicum I and II reports and questionnaires with data from these former-students who are now in-service teachers. Our goal was to demonstrate that feelings like insecurity and anxiety related to the future career, felt especially during the undergraduate program, is still shown in the beginning of the in-service career. Besides being most of the times overcome, the feelings vary according to the student-teachers profile who, in a period of exploration of professional possibilities, structure and restructure the diverse options which life offers them. Keywords: Teacher Education. English Language. Restructuring. INTRODUÇÃO Em levantamento realizado na área de Educação durante a década de 90 acerca da pesquisa sobre a formação de professores no Brasil, André (2000) constatou que, nos trabalhos sobre licenciaturas, a maior parte enfatiza o estudo das disciplinas pedagógicas e específicas e o currículo de cada curso. Enquanto a atuação do professor também é razoavelmente estudada, a formação inicial recebe menor ênfase, o que demonstra pouca atenção ao aluno da licenciatura. Além disso, faltam investigações sobre as articulações entre as disciplinas pedagógicas e específicas. O que se observa dessa constatação é uma visão fragmentada dos cursos, pois o todo de cada um deles se perde em particularidades e redundâncias. 114 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Ademar da Silva & Denise M. Margonari Outra revelação do estudo de André (2000) diz respeito à língua estrangeira, nosso objeto de estudo. A distribuição das pesquisas sobre licenciaturas evidenciou apenas cinco trabalhos dedicados ao estudo de línguas, o que demonstra também pouca atenção a esse tema. Já no que diz respeito à formação docente continuada, André (2000) observa que a maioria dos estudos se concentra em propostas governamentais ou da Secretaria de Educação, em programas e cursos de diferentes instituições, em processos de formação em serviço e na prática pedagógica. Assim como na formação inicial, as pesquisas também se relacionam com aspectos específicos, como uma disciplina, um curso ou uma proposta de formação, e as principais questões levantadas nesses trabalhos coincidem com aquelas da formação inicial: o currículo, a estrutura ou o funcionamento do curso. Mais uma vez, temos um quadro fragmentado e parcial também da formação docente. Na área de Lingüística Aplicada ao ensino de línguas, a preocupação com a formação inicial e continuada de professores também vem sendo uma constante em âmbito nacional, a ponto de já ter se tornado objeto de estudo de diferentes pesquisas, como aponta Monteiro (2004). O número crescente de estudos sobre a formação de professores de Língua Inglesa também comprova a inquietação dos pesquisadores em entender como os futuros professores estão sendo preparados e como atuam em serviço. Desde 2002, Silva e Margonari, (2004, 2005) têm pesquisado a formação inicial de professores de Língua Inglesa, o que, de certa forma, vem contribuindo para suprir algumas das lacunas acima apontadas. Essa pesquisa, que está sendo desenvolvida nas disciplinas Prática de Ensino e Estágio Supervisionado de Língua Inglesa I e II em uma universidade federal do Estado de São Paulo, apresenta, até o momento, os seguintes resultados: (1) Os alunos-professores apóiam-se no referencial teórico estudado para fundamentar suas opiniões acerca da experiência vivida ou mesmo se posicionam com desenvoltura frente às questões relativas ao ensino de língua estrangeira, à sala de aula, ao ensino público e privado, discurso esse que não só serve de apoio para lhes conferir maior segurança, como também é utilizado para discorrer sobre questões advindas da prática. De certa forma, isso demonstra que a integração entre teoria e prática proposta pelo curso atingiu seus objetivos. (2) Ao longo da licenciatura, o aluno-professor desenvolve uma concepção de linguagem e uma concepção de ensinar e aprender línguas, passando a se conscientizar das responsabilidades de sua futuOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 115 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... ra profissão e das várias competências que a envolvem, e também a questionar sua capacidade de, como educador, se posicionar frente a uma sala de aula, proporcionando e construindo a formação daqueles que deverão atuar nos processos de transformação social. Tais inquietações e questionamentos tomam corpo durante as aulas de Prática de Ensino. Insegurança e tensão se manifestam quanto a sua atuação em sala de aula, e essas sensações conflitantes aumentam durante e após o estágio de observação e regência, pressionando o filtro afetivo (cf. KRASHEN, 1982) desses alunos, o que os leva a questionar a sua escolha profissional. (3) Dadas as características da licenciatura dupla, é possível identificar três perfis de aluno-professor: (a) o perfil 1 é aquele que, desde o início, se identifica com o curso e tem como objetivo ser professor. Na maioria das vezes, desenvolve projetos de pesquisa na área de ensinoaprendizagem de Língua Inglesa e ministra aulas, em escolas de idiomas, para alunos particulares e empresas. Esse aluno também tem momentos de insegurança, mas dadas as suas experiências, lida com as incertezas de uma maneira branda; (b) o perfil 2 é aquele que, apesar de se identificar com o curso, não se vê como professor de língua estrangeira, preferindo o ensino de língua materna. Isso implica mais tempo dedicado ao estudo das disciplinas relacionadas à Língua Portuguesa, o que faz com que sua competência lingüístico-comunicativa em língua estrangeira não seja tão desenvolvida, gerando assim mais insegurança para ele; (c) o perfil 3 não se interessa pelo ensino de línguas em geral e não se vê como professor. Esse aluno até desenvolve uma competência lingüístico-comunicativa na língua estrangeira, mas opta pelas diversas possibilidades de trabalho que a graduação em Letras lhe propicia, tais como: pesquisa, revisão e tradução. Devido a essas características, cumpre todas as disciplinas pedagógicas sem se envolver muito com as questões advindas da prática. (4) Respostas aos problemas e às inquietações em (2) estão relacionadas aos perfis de cada aluno, ou seja, cada qual responde diferentemente aos questionamentos que emergem durante as atividades da disciplina Prática de Ensino. Os perfis que em (3) atuam como uma força no processo de formação do futuro professor são fatores que influenciam suas ações, decisões e re/elaborações do discurso sobre sua futura atuação profissional. (5) Esse aluno-professor está numa fase de exploração de possibilidades profissionais, por isso estrutura e reestrutura as diversas op- 116 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Ademar da Silva & Denise M. Margonari ções que a vida lhe oferece e que são comuns à faixa etária em que se encontra (21 a 28 anos). (SIKES, 1985). O tempo, as experiências profissionais e a maturidade talvez o ajudem na decisão final e na superação das dificuldades. Assim, tendo em vista as lacunas apontadas no estudo de André (2000) e partindo dos dados expostos, procuramos desenvolver um estudo longitudinal, que tem como objetivo acompanhar a trajetória profissional dos professores em início de carreira, egressos do curso de Licenciatura em Letras de uma instituição pública do interior do Estado de São Paulo, desde o ano 2000 até o ano de 2005. Analisando trechos de questionários e relatórios de estágio da disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Língua Inglesa I e II desses egressos, procuramos cruzá-los com dados desses alunos já em serviço. A pesquisa busca demonstrar que a sensação de insegurança e ansiedade quanto à futura atuação profissional, vivenciada durante o curso, ainda se manifesta no início da carreira docente. Para o desenvolvimento deste artigo, foram selecionados apenas os egressos do ano de 2002 e foram analisados os vários momentos de re/estruturação profissional pelos quais passaram. Pretendemos demonstrar que as inquietações e inseguranças advindas desse processo, além de, muitas vezes, superadas, variam de acordo com o perfil do aluno-professor. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Os dados para esta pesquisa foram extraídos de três fontes: (a) questionários (aplicados no início e ao final da disciplina Prática de Ensino), (b) relatórios de estágio e (c) e-mails enviados a ex-alunos egressos de 2002, em que lhes era solicitado um texto narrativo sobre a sua trajetória de vida profissional, do momento em que tinham deixado a universidade até o ano de 2005, explicitando as experiências e os sentimentos vividos em cada decisão tomada. Entendendo discurso como atividade produtora de efeitos de sentido entre interlocutores, portanto, atividade comunicativa e o processo de sua enunciação, que é regulado por exterioridade sócio-histórica e ideológica, que determina as regularidades lingüísticas e seu uso (TRAVAGLIA, 1991, p. 25; cf também ORLANDI, 1983), na análise, que é de cunho qualitativo, o processo de escrita (dos questionários, Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 117 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... relatórios e narrativas) nos permitiu observar momentos de reflexão e avaliação das experiências vividas pelos sujeitos. O processo de escrita de qualquer texto, seja ele questionário, relatório ou narrativa, é o momento em que o aluno-professor organiza o discurso e dá sentido às suas experiências, ou seja, é a ocasião em que se retomam inquietações necessárias para instaurar a reflexão sobre teoria e prática, sobre a arte de ensinar, estimulando a maturidade e a definição do posicionamento profissional do futuro educador. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS Acreditando que as escolhas lingüísticas constantes dos questionários, relatórios e narrativas revelam o processo de construção e organização das experiências vivenciadas, passamos à apresentação e analise dos dados. Dos 16 ex-alunos contatados, 13 retornaram a solicitação. Veja-se a tabela 1: Lecionando 8 (61,5%) Total Não lecionando 5 (38,5%) 13 (100%) Tabela 1 Desse grupo, 8 (61,5%) estão exercendo alguma atividade docente e 5 (38,5%) estão atuando em outra área. Dos que estão no magistério, 5 (38,5%) lecionam Inglês e 3 (23%), Português. Veja-se a tabela 2 abaixo: Lecionando Inglês 5 (38,5%) Não lecionando Total 5 (38,5%) 13 (100%) Português 3(23%) Tabela 2 118 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Ademar da Silva & Denise M. Margonari As porcentagens indicam que um número razoável de ex-alunos professores egressos de 2002 está seguindo a opção profissional prevista pelo curso de licenciatura. A tabela a seguir1 mostra que, excetuando três casos, essas opções relacionam-se ao perfil dos alunos. Tabela 3 Note-se que na escola de idiomas há um ex-aluno perfil 2 lecionando Inglês e na rede estadual pública há um aluno perfil 1 lecionando Português. Além disso, há uma ex-aluna, (D), cujo perfil é 1, mas que, por conta da necessidade, apropriou-se da facilidade propiciada pela dupla licenciatura e atua também na área Língua Portuguesa. Apesar dessas migrações, a maioria dos ex-alunos segue o perfil inicialmente escolhido. Após o rastreamento e análise das migrações dos alunos já em serviço, apresentamos a análise do cruzamento dos relatórios com os depoimentos enviados por mensagem eletrônica, demonstrando o processo de reestruturações pelas quais todos os perfis passam. Aluno perfil 1 A ex-aluna K, que durante o estágio de regência demonstrava não ter tido grandes problemas na prática, visto ser a Língua Inglesa a sua área de atuação, continuou lecionando em escolas de idiomas após a graduação. Nesse percurso, teve decepções, pois precisou se As letras entre parênteses referem-se às abreviaturas dos nomes dos ex-alunos. As setas ( ) indicam as migrações entre as disciplinas Língua Inglesa e Língua Portuguesa, ou seja, mudança no perfil previamente detectado na disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado. 1 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 119 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... desligar dessa escola para se dedicar ao processo seletivo da pós-graduação. Por dois anos consecutivos, não conseguiu passar na seleção para o Mestrado em Lingüística Aplicada e Educação de duas instituições públicas do interior do Estado de São Paulo, o que a desanimou: [...] tentei incansavelmente por dois anos consecutivos, cada vez que prestava, mais eu me decepcionava e me achava incapaz de passar nessa etapa do meu desenvolvimento profissional. Então, me desanimei [...] Acho que ter passado pelo processo seletivo como professora substituta [...] me fez acordar e voltar a sonhar com meu antigo ideal de seguir a carreira acadêmica [...]. O investimento no processo de formação continuada por meio da opção pela pós-graduação stricto sensu a princípio parecia ser um obstáculo de difícil transposição para K, que só foi superado após seu ingresso como professora de uma instituição de ensino superior. Isso fez com que se animasse, retomando sua disposição para continuar sua trajetória acadêmica. D, outra ex-estagiária perfil 1, com experiência no ensino de Língua Inglesa para crianças, em escolas particulares e de ensino de línguas, afirmava estar “[...] preparada para dar aulas para alunos de escola pública, particular ou em curso de idiomas [...]”. Confirmando o seu perfil, ainda continua com o ensino da Língua Inglesa em escolas de línguas. No entanto, para complementar o salário, atua também no ensino de Língua Portuguesa na rede pública, e a carga horária dessa disciplina excede a de Inglês, que é a área de sua preferência. Dando continuidade a sua formação, entrou no mestrado em uma instituição federal e pesquisa na área de ensino-aprendizagem de Língua Inglesa. Esse caso revela que a dupla licenciatura em Letras atua como um “bem” adquirido pelo aluno-professor, que é utilizado em situações em que precisa se reestruturar econômica e profissionalmente. S era uma aluna que, apesar de inicialmente ter sérios problemas com a Língua Inglesa, sempre manifestou a vontade de ser professora dessa disciplina, mas sentia-se insegura por causa da lacuna lingüística: [...] confesso que no começo do curso, não me via como professora, por achar que não tinha competência lingüística [...]. Com muito esforço, no decorrer do curso conseguiu superar parte do problema lingüístico e firmar sua confiança e posição, vendo-se 120 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Ademar da Silva & Denise M. Margonari como professora dessa língua estrangeira: [...] mas com o tempo vi que um professor de Língua Inglesa não é formado apenas de competência lingüística, se assim o fosse, os “americanos” poderiam vir ao Brasil e fazer com que alunos falassem Inglês em 24 horas, mas um professor de Língua Inglesa é formado de embasamento teórico, de saber como, porque e para que aprender Inglês. Atualmente, S passou no concurso do Estado de São Paulo para professor de Língua Portuguesa e, como até aquele momento não havia escolhido sua vaga, é professora eventual dessa disciplina em uma escola estadual de São Carlos (Ensino Fundamental e Médio). Diz estar feliz e que ainda quer lecionar Inglês, pois continua fazendo curso em escola de idiomas. Essas reestruturações profissionais feitas por S, ou seja, a migração para a área de Português, confirma o papel desempenhado pela dupla licenciatura. Aluno perfil 2 Em 2002, G, que se considerava mais professora de língua materna do que de língua estrangeira, ao avaliar sua atuação na Prática de Língua Inglesa, deixa transparecer que o problema da disciplina na rede pública a afetou de alguma maneira e que: [...] a área de Inglês não seria a minha principal especialização, tendo a necessidade de buscar seus auxílios técnicos quando necessário (de K, sua parceira durante os estágios). Na época, a dúvida, marcada pela forma verbal seria, que, como modal e não temporal, explicitava atitude do falante sobre aquilo que é dito. G não confessa que a área de Inglês não é a sua principal especialização. Mas, ao invés disso, usa o modal seria, que naquele momento expressa dúvida quanto à possibilidade de vir a atuar como professora de língua estrangeira. Atualmente, ela terminou o mestrado em Literatura, na área de Ciências Sociais, e para se manter, dá aulas de Inglês. Já passou por várias escolas e tem estudado bastante para ensinar essa língua: Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 121 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... E também estou dando aulas na Aliança Idiomas. Considerando meu histórico, é um avanço considerável. E esse avanço tem se processado como english speaker and teacher, já que me vi pela primeira vez obrigada a dar aulas todas em Inglês. Isso me deixou de início muito insegura [...] Procuro desde então estudar mais, ler bastante em Inglês, ver mais filmes com legendas em Inglês. Mesmo com todo esse investimento e satisfação pessoal no ensino da Língua Inglesa, ainda não vê a possibilidade de ficar por muito tempo atuando em língua estrangeira: O fato é que para mim, dar aulas de Inglês me interessa, sobretudo pelo fato de estar trabalhando como professora, que definitivamente é uma de minhas paixões. [...] Esse talvez seja um lado bom da minha “ignorância” na língua, tenho prazer em aprender com meus alunos, essa troca, acredito ser muito boa para o aprendizado deles [...] Além disso, o aprendizado do Inglês é muito importante para a carreira acadêmica, a qual pretendo seguir, e emprego como professor de língua estrangeira é “um quebra galho” dos mais antigos [...] Desejo terminar meu Mestrado e trabalhar no que realmente gosto, seja na literatura, seja na Sociais [...] Há tantas coisas que tenho estudado, lido, que merecem ser ensinadas. E então, Inglês, just for fun. Quem sabe? Note-se que, apesar de tudo o que tem feito, G não se sente competente o suficiente para dar aula de língua e reitera a sua vontade de trabalhar com aquilo que gosta: a Literatura. Entretanto, sua consciência acerca do seu menor desenvolvimento com relação à Língua Inglesa mostra-se como um aspecto positivo, que a impulsiona a continuar estudando para melhorar a qualidade de suas aulas. Assim, ao final de seu depoimento, aponta para o seu verdadeiro sonho, sem descartar, mais uma vez, a possibilidade de ensinar Inglês como uma atividade prazerosa. Ao migrar para um outro perfil, o ex-aluno passa a investir na área a que ele não tinha dado tanta atenção. Essas reestruturações preenchem uma lacuna da graduação, complementando a sua formação em duas licenciaturas. A ex-aluna P não se via como professora de Inglês, e a expectativa de reger aulas nessa língua lhe causava grande insegurança. No en122 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Ademar da Silva & Denise M. Margonari tanto, o seu grau de envolvimento com a Prática de Ensino foi tanto que, após o estágio, ela já considerava a hipótese de ensinar essa disciplina. Veja-se o depoimento de H, sua parceira durante os estágios, sobre a mudança de atitude de P: Fiquei satisfeita em perceber, durante as aulas, o interesse e o envolvimento que ela dispensou aos alunos e às atividades desenvolvidas. Porque durante o curso a P dizia que nunca iria dar aula. Após o estágio, já havia mudado de idéia, e passou a considerar essa hipótese. Apesar de considerar essa hipótese, P, ao rever mais uma vez a sua atuação profissional futura, conclui: No momento não pretendo atuar na área de Língua Inglesa. Gosto muito da língua e acredito estar preparada para ministrar tal disciplina, pois tenho facilidade em aprendê-la e paciência para ensinála. De fato, P não está ensinando Inglês. Atualmente está na Itália, fazendo curso de Italiano. Gosta muito dessa língua e quer trabalhar no seu ensino quando aqui retornar, o que significa que continua na área de ensino de língua estrangeira. A ex-aluna R, com algumas características do perfil 2 mescladas com o 3, ao terminar o curso, volta para a casa dos pais e se questiona: Medos, anseios e insegurança que se traduziam na pergunta a latejar dentro da minha cabeça: o que fazer da minha vida? Para dar conta dessa questão, R tentou se preparar para o mestrado em Análise do Discurso, mas perdeu o prazo para inscrição. Enviou o curriculum vitae para algumas instituições de Ensino Fundamental e Médio, na tentativa de dar aulas de Português e Literatura, mas não conseguiu nada. Dizia que: Não arriscaria ensinar Língua Inglesa, uma vez que meu Inglês merecia ser esquartejado [...]. Por isso, matriculou-se na Cultura Inglesa de Ribeirão Preto. Desde então, tem estudado bastante o idioma, já prestou o Cambridge First Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 123 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... Certificate2, conseguiu um trabalho de 10 horas semanais no SAC – Self Access Centre da instituição, onde dá apoio a alunos com dificuldades. Apesar de não explicitar que está investindo na futura profissão, ela diz: Estou estudando agora para prestar o CAE3 em dezembro e ano que vem estou me organizando para ir para Brighton fazer um curso de um ano na escola Saint Giles e tirar o Proficiency4 lá. Se nada disso der certo, começamos de novo com o antigo projeto de vender salgadinhos. Observa-se a mudança no perfil de R, que migra do ensino de língua materna e passa a investir no ensino de língua estrangeira. Assim como G, não considera sua competência lingüística bem desenvolvida no idioma para ensiná-lo, apesar de ter sido aprovada em um exame de nível avançado de Inglês. Sua conscientização a respeito da necessidade de continuar estudando a língua para se aprimorar é muito positiva, principalmente pelo fato de procurar pela formação continuada em um país falante do Inglês como língua materna. Aluno perfil 3 Os alunos perfil 3, apesar de alguma movimentação na direção profissional direcionada pela licenciatura, ainda continuam atuando em outra área. Por exemplo, AM, que trabalha como jornalista, passou no concurso na rede pública para professor de Português, mas não assumiu. Também cursou uma especialização lato sensu em Estudos Literários na UNESP/Araraquara. SA, que trabalha na Nossa Caixa, tentou estrado em Lingüística Aplicada na Unicamp e Lingüística na UFSCar, mas não foi bem sucedido. Já H, que, apesar das tensões, havia feito um bom trabalho de Prática de Ensino, não se sentia preparada para ser professora: [...] Não pretendo atuar na área de LI, pois entendo que não estou preparada suficientemente para assumir essa responsabilidade. Tenho dificuldade com a LI. O curso diminuiu um pouco essa dificuldade, mas não o quanto eu entendo ser necessário para ensinar. Primeiro exame de nível avançado da Universidade de Cambridge. Certificate of Advanced English, exame avançado da Universidade de Cambridge. 4 Exame posterior ao CAE, o último exame de nível avançado da Universidade de Cambridge. 2 3 124 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Ademar da Silva & Denise M. Margonari Logo após o curso, pensou em se preparar para um curso de pósgraduação, mas não teve condições, pois se envolveu nos assuntos domésticos. Atualmente, apesar de dizer que: “[...] sou uma dona-de-casa convicta. Não tive coragem de abandonar meu posto e me dedicar ao magistério [...]”, pensa em preparar um projeto em Lingüística e retornar aos estudos. Os dados acima apresentados evidenciam que os ex-alunos têm um desejo muito forte de se encontrar e de se aprimorar profissionalmente. Todos, de certa forma, estão fazendo ou já fizeram algum movimento em direção a uma mudança futura, e isso acarreta momentos de dúvidas, angústia e tensão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados analisados demonstram que (a) um número razoável de ex-alunos professores egressos de 2002 está seguindo a opção profissional prevista pelo curso de graduação, evidenciando que a licenciatura está cumprindo o seu papel; (b) os ex-alunos algumas vezes migram de perfil e, apesar dessas migrações, a maioria segue a decisão inicialmente tomada; (c) a dupla licenciatura em Letras atua como um “bem” adquirido pelo aluno-professor, que a utiliza em situações em que precisa se reestruturar econômica e profissionalmente; (d) ao migrar para um outro perfil, o ex-aluno passa a refletir sobre a necessidade de um investimento na área a que ele não tinha dado tanta atenção anteriormente. Essas reestruturações, além de preencherem lacunas da graduação, complementam a sua formação em duas licenciaturas e são um avanço em direção à formação continuada. O cruzamento dos relatórios com os depoimentos enviados por mensagem eletrônica mostra que os ex-alunos-professores ainda estão vivenciando situações de mudança. Nesse processo, são movidos pelo seu perfil: uma força que atua nas suas escolhas e experiências feitas durante o curso de Letras, e por isso ainda enfrentam momentos de ansiedade e insegurança com relação à futura atuação profissional. No processo, essas sensações, além de, muitas vezes, revistas e transpostas, correspondem a um período de instabilidade profissional natural (início de carreira) e são recorrentes na faixa etária em que se encontram (21 a 28 anos). Talvez, a maturidade e as experiências profissionais ajudem na decisão final e na superação das dificuldades. Tais resultados apontam para a primazia na continuidade deste Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 125 Professores iniciantes de Língua Inglesa: conflitos e re/estruturações... estudo com dados de alunos egressos de 2003 a 2005 e evidenciam também a necessidade de nos encontrarmos com alguns deles em serviço, ou seja, em situação real de sala de aula. Nossa hipótese é que ainda continuarão sujeitos a inúmeras reestruturações, mas os que seguirem a carreira docente prosseguirão mantendo os níveis de excelência em relação à fundamentação teórico-prática inicialmente recebida no curso de graduação em Letras, bem como persistirão no investimento do processo de formação continuada de professores em serviço. REFERÊNCIAS ANDRÉ, M. E. D. A. A pesquisa sobre formação de professores no Brasil – 1990-1998. In: CANDAU, V. M. (Org.). Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. Rio de Janeiro: DP & A, 2000. p. 83-99. KRASHEN, S. Principles and practice in second language acquisition. New York: Pergamon Press, 1982. MONTEIRO, D. C. Avaliando a produção de pesquisa em lingüística aplicada: foco no ensino-aprendizagem de Inglês como língua estrangeira na UNESP (Araraquara). In: MONTEIRO, D. C. (Org.). Ensino-aprendizagem de língua inglesa em alguns contextos brasileiros. Araraquara: Laboratório Editorial/FCL/ UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Ed., 2004, p. 15-34. ORLANDI, E. L. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Brasiliense, 1983. SIKES, P. The life cycle of the teacher. In: BALL, S. J.; GOODSON, I. F. (Ed.). Teachers’ lives and careers. London: The Falmer Press, 1985. p. 67-70. SILVA, A. da; MARGONARI, D. M. Forças atuantes no processo de formação de professores pré-serviço de Língua Inglesa. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED: 40 anos da Pós-graduação em Educação no Brasil, 28., 2005. Caxambu: ANPED, 2005. p. 1-16. ______. O que revelam os relatórios de estágio supervisionado sobre a formação de professores de Língua Inglesa. Contexturas, v. 7, p. 39-53, 2003/2004. TRAVAGLIA, L. C. Um estudo textual discursivo do verbo no português do Brasil. 1991. Tese (Doutorado). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1991. Encaminhado em: 03/07 Aceito em: 06/07 126 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 113-126, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck A EDUCAÇÃO FÍSICA E O ESPORTE EM ESCOLAS PÚBLICAS DE ENSINO FUNDAMENTAL (TERCEIRO E QUARTO CICLOS): ANÁLISE DO COTIDIANO DO PROFESSOR E PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS NO ENSINO PHYSICAL EDUCATION AND SPORTS IN PUBLIC SCHOOLS IN THE THIRD AND FOURTH CYCLES OF BASIC EDUCATION: ANALYSIS OF TEACHER’S ROUTINE AND PERSPECTIVES FOR CHANGES IN TEACHING Silvia Christina Madrid FINCK* Resumo: O presente artigo refere-se à síntese da Tese de Doutorado elaborada e defendida pela autora na Universidade de Leon, Espanha, no Programa de Ciência da Atividade Física e do Esporte, em março de 2006. O objeto da pesquisa é a análise do cotidiano pedagógico do professor de Educação Física, no Ensino Fundamental, terceiro e quarto ciclos, em algumas escolas públicas estaduais da cidade de Ponta Grossa, no Estado do ParanáBrasil. O objetivo geral da investigação é analisar e discutir algumas das interfaces do cotidiano escolar, com relação ao contexto que envolve o professor de Educação Física e seus alunos no espaço da Escola Pública. A metodologia utilizada é a pesquisa de campo, a abordagem do estudo é qualitativa, de cunho etnográfico, descritiva, confrontada com a experiência vivida da pesquisadora. Através dos estudos empreendidos, pretende-se apontar questões relevantes, objetivando perspectivas de mudanças pedagógicas necessárias na busca de caminhos * Professora Adjunto da Universidade Estadual de Ponta Grossa (DEMET/UEPG), Mestre em Educação (UNIMEP) e Doutora em Ciência da Atividade Física e do Esporte (UNILEON). E-mail: [email protected]. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 127 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... mais significativos e contribuições mais consistentes. A discussão e as conclusões do estudo apontam para a necessidade de reflexão, análise e transformação da prática pedagógica da Educação Física e do Esporte hoje realizada, para o que são apontadas possibilidades teórico-metodológicas no âmbito desse trabalho na escola e do processo de formação inicial e continuada de professores. Palavras-chave: Educação Física. Esporte. Escola Pública. Formação de professor. Abstract: The present article is a synthesis of the doctoral thesis presented at the University of Leon, Spain, in the Program of Science of Physical Activity and Sport, in March 2006. The object of the study is the teaching routine of physical education teachers in public schools. The main goal of the investigation is to analyze and discuss some of the interfaces of the school routine, regarding the context that involves physical education teachers and their students in public schools. The methodology includes field work and is qualitative, ethnographic, and descriptive and is confronted with the researcher’s experience. The study intends to point out relevant and important issues, aiming at necessary pedagogic changes in search for more significant forms and more solid contributions. In the analysis, discussion and conclusions of the study, it is emphasized the need for reflection, analysis and transformation of the pedagogical practice of the physical education and sports teacher. Therefore, some methodological theoretical possibilities are pointed out on how to approach physical education and sports in schools as well as in initial and continuing teacher education. Keywords: Physical Education. Sports. Public School. Teacher Education. 128 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck INTRODUÇÃO Este artigo refere-se à síntese da Tese de Doutorado elaborada e defendida pela autora na Universidade de Leon, Espanha, no programa Ciência da Atividade Física e do Esporte, em março de 2006. O objeto da pesquisa é a análise do cotidiano pedagógico do professor de Educação Física, no Ensino Fundamental, terceiro e quarto ciclos (5ª a 8ª série), em algumas escolas públicas estaduais na cidade de Ponta Grossa, no Estado do Paraná-Brasil. A opção por este objeto se deu em função de preocupações voltadas tanto para as questões pedagógicas da Educação Física e do Esporte, no contexto escolar, como para a formação do profissional que atua nos diversos campos de trabalho, entre eles a Escola. O problema foi delineado por algumas questões centrais que permeiam o desenvolvimento deste trabalho, quais sejam: Qual a concepção pedagógica que fundamenta o fazer pedagógico do professor na Escola? Quais os conhecimentos desenvolvidos nas aulas de Educação Física? Como se apresenta a organização do trabalho pedagógico desenvolvido pelo professor? Qual a concepção e o significado das aulas de Educação Física e do Esporte para os alunos do terceiro e quarto ciclos? Como o Esporte é abordado e vivenciado hoje na Escola? Quais as perspectivas pedagógicas que podem ser apontadas visando a mudanças para a Educação Física e o Esporte, tanto no contexto da escola como no processo de formação, inicial e contínua, do professor? O objetivo geral da investigação é analisar e discutir algumas das interfaces do cotidiano escolar, com relação ao contexto que envolve o professor de Educação Física e seus alunos, no espaço da Escola Pública, no Ensino Fundamental, terceiro e quarto ciclos. O trabalho de pesquisa foi desenvolvido de forma integrada, considerando os “diferentes olhares” sobre esse cotidiano, entre eles: dos acadêmicos do terceiro ano do Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), que têm a vivência do cotidiano através da realização do Estágio Supervisionado; dos professores de Educação Física que atuam nas escolas; dos alunos do Ensino Fundamental, terceiro e quarto ciclos; dos professores da disciplina de Metodologia e Prática de Ensino de Educação Física (MPEEF) da UEPG, responsáveis pela orientação e supervisão do Estágio Supervisionado; e da própria pesquisadora, que, enquanto educadora, pôde contribuir descrevendo parte desse cotidiano, já que participa ativamente desse contexto, atuando na escola e na universidade. Considera-se, no contexto analisado, o que o professor de EduOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 129 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... cação Física realiza em termos pedagógicos, os interesses e expectativas do aluno de hoje em relação às aulas de Educação Física e ao Esporte, no espaço da escola, bem como os aspectos relacionados à formação do profissional da área de Educação Física. São consideradas também as atividades que os acadêmicos desenvolvem na escola, através do Estágio Supervisionado, em que primeiramente observam as aulas do professor e, num segundo momento, atuam por meio da docência nas mesmas turmas, participando e intervindo, dessa forma, no cotidiano escolar. O estudo aponta algumas perspectivas que poderão ser utilizadas como novas hipóteses para o desenvolvimento de outros estudos relacionados às questões que envolvem a Educação Física e o Esporte no contexto escolar e de formação de professores. MATERIAL E MÉTODO O estudo foi desenvolvido na busca do entendimento aprofundado da realidade da Educação Física e do Esporte na escola pública estadual, partindo do cotidiano do professor de Educação Física, realizado nesse contexto. A metodologia utilizada é a pesquisa de campo, a abordagem do estudo é qualitativa, de cunho etnográfico, descritiva, confrontada com a experiência vivida da pesquisadora. A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Ponta Grossa (PG), no Estado do Paraná (PR), no Brasil (BR), em sete escolas públicas estaduais (A, B, C, D, E, F, G) no Ensino Fundamental, terceiro e quarto ciclos, durante o período que compreende os anos letivos de 2001, 2002 e 2003. A pesquisa foi realizada de forma integrada, considerando-se os “diferentes olhares” sobre o cotidiano analisado. Participaram da pesquisa os seguintes grupos: 90 acadêmicos dos terceiros anos do Curso de Licenciatura em Educação Física da UEPG, a fim de aproximá-los da realidade escolar; vinte professores de Educação Física que atuam na escola, considerando suas experiências, realidades e necessidades; 3222 alunos do terceiro e quarto ciclos das escolas envolvidas na pesquisa; e seis professores da disciplina MPEEF do referido curso e instituição, responsáveis pela formação profissional, os quais, também na condição de pesquisadores, são elementos articuladores entre a universidade e a escola. Na coleta dos dados foram utilizados os seguintes instrumentos: ficha específica para as observações das aulas nas escolas, entre130 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck vista semi-estruturada, questionário, diário de pesquisa, relatório e análise de documentos. A ficha de observação e as questões dos questionários e das entrevistas foram elaboradas pela pesquisadora; os demais instrumentos (diário de pesquisa, relatório, análise de documentos) foram selecionados para complementar a coleta de dados, com o objetivo de torná-la a mais completa possível. As questões norteadoras da pesquisa, consideradas e tratadas, foram organizadas tendo em vista as reais necessidades de maiores informações para sua realização. A ficha de observação foi organizada em forma de uma tabela onde constam, em forma de tópicos, os aspectos que se referem à organização da turma, o espaço e material da escola para as aulas de Educação Física, a metodologia utilizada pelo professor e, finalmente, as relações professor/aluno e aluno/aluno estabelecidas nas aulas. A coleta de dados teve início com a observação sistemática das aulas de Educação Física nas escolas, no terceiro e quarto ciclos, realizada pelos acadêmicos por meio do Estágio Supervisionado, com uma carga horária semanal de seis horas-aula. Os dados foram coletados e registrados na ficha de observação. Para enriquecer a coleta de dados, a pesquisadora realizou com cada um dos vinte professores de Educação Física das escolas uma entrevista semi-estruturada; a questão foi única e aberta, para permitir que os professores falassem de forma mais livre sobre seu cotidiano na escola. Foram aplicados também, pelos acadêmicos e pela pesquisadora, dois tipos diferentes de questionários, um para os professores de Educação Física e outro para os alunos do terceiro e quarto ciclos; e um terceiro questionário foi aplicado pela pesquisadora para os professores de MPEEF. Foram considerados também os dados coletados e registrados nos demais instrumentos: os que foram reunidos pelos acadêmicos, constantes no diário de pesquisa e no relatório final de Estágio; os que foram coletados pelos professores de MPEEF, registrados na forma de relatório, referentes, principalmente, às aulas ministradas pelos acadêmicos; e os que foram coletados pela pesquisadora, relativos às aulas ministradas pelos acadêmicos, que foram registrados no diário de pesquisa. Foram considerados ainda os dados obtidos por meio da análise dos documentos utilizados pelos professores de Educação Física nas escolas, como o referencial teórico, o planejamento e os diários de classe das séries. Na análise dos dados, a pesquisadora considerou também as discussões realizadas nas aulas semanais de MPEEF na UEPG. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 131 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... Alguns aspectos foram privilegiados em determinados âmbitos, processo de que resultaram as seguintes categorias: Âmbito Escolar (AE); Âmbito do Ensino e Aprendizagem (AEA); Âmbito das Relações Pessoais (ARP); e Âmbito Profissional (AP). Essas categorias foram estabelecidas pela pesquisadora durante a coleta dos dados, que são apresentados segundo o “olhar” de cada grupo participante da pesquisa, com a descrição e análise de acordo com as categorias estabelecidas. RESULTADOS E DISCUSSÃO O olhar dos acadêmicos O contato inicial dos acadêmicos com a escola foi percebido por eles como um momento de muita apreensão; o principal objetivo foi o de obter as informações mais relevantes, por meio dos professores, em relação às turmas nas quais posteriormente realizariam as atividades de Estágio. De acordo com os registros feitos pelos acadêmicos, a idade dos alunos se apresentou de forma homogênea, o número de alunos por grupo variou de 35 a 45, e todas as turmas eram mistas, com três aulas semanais de Educação Física. O espaço físico para as aulas de Educação Física foi considerado pelos acadêmicos como amplo e suficiente em quatro escolas e insuficiente e precário em três. O material para as aulas de Educação Física foi considerado bom e razoável em três escolas e insuficiente e precário em quatro. Percebe-se que o espaço físico e a quantidade de material muitas vezes chamam mais a atenção dos acadêmicos do que as questões pedagógicas e metodológicas. Com relação à análise dos documentos (referencial teórico), os acadêmicos qualificaram o acervo bibliográfico (livros, apostilas, enciclopédias, textos) encontrado nas bibliotecas das escolas como sendo precário, desatualizado e em pouca quantidade; 16 professores disseram que utilizam material próprio ou emprestado. Havia poucos computadores nas escolas, com uso limitado, e apenas duas escolas (E, F) tinham acesso à Internet. No que tange ao planejamento de Educação Física, apenas nove professores apresentaram cópia aos acadêmicos, tecendo comentários a respeito de seus principais aspectos; os outros 11 não o fizeram, justificando-se de diferentes maneiras. Os diários de classe dos professores retrataram, em parte, a maneira como eles realizam o trabalho pedagó- 132 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck gico: oito professores se mostraram muito organizados; seis registravam o essencial e seis apareceram como extremamente desorganizados. O conteúdo predominante abordado nas aulas em seis escolas foi o Esporte, prevalecendo as modalidades coletivas do basquetebol, futebol, handebol e voleibol. A exceção foi a Escola A, onde uma das professoras trabalha com Atividades Rítmicas todo o primeiro semestre, trabalhando no segundo com as mesmas modalidades esportivas coletivas priorizadas pelos demais professores. Também foram desenvolvidas em quatro escolas, em menor proporção, as modalidades de xadrez e tênis de mesa. Na escola F havia espaço e material específico para essas aulas, e todos os alunos do terceiro e quarto ciclos tinham uma aula semanal de xadrez na forma de projeto, além das três aulas de Educação Física. Os acadêmicos identificaram nas aulas a abordagem dos seguintes conhecimentos: nove professores trabalharam os fundamentos, as técnicas e táticas básicas, as regras e o jogo (habilidades-valores), e 11 abordaram também outros conhecimentos relacionados ao esporte, tais como: aspectos históricos, manutenção e melhoria da saúde, práticas diferenciadas do esporte e jogos recreativos. Os professores desenvolveram os conteúdos da seguinte forma: todos evidenciaram o aspecto dos procedimentos em detrimento de outros (realização dos movimentos) e oito demonstraram ter uma constante preocupação com o aspecto das atitudes. Os aspectos conceituais foram trabalhados mais nas aulas teóricas, ou então como trabalho de pesquisa que os alunos deveriam realizar como atividade de avaliação. Como os acadêmicos tiveram dificuldades para identificar as metodologias utilizadas nas aulas pelos professores – perceberam uma mescla das mesmas –, eles usaram a denominação “metodologia não identificada” (NI) para o registro da maioria das aulas ministradas pelos 20 professores. Alguns acadêmicos identificaram a metodologia utilizada por 11 professores como sendo a dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS)1. A maioria dos acadêmicos também destacou que 16 professores deixavam os alunos escolher o que queriam fazer, no mínimo em uma aula por semana; seriam as “aulas livres”, sendo identificadas e registradas por eles como atividades livres (AL). Nenhum acadêmico identificou nas aulas as Os PCN’S apontam e sugerem encaminhamentos metodológicos para serem utilizados pelos professores no desenvolvimento das aulas de Educação Física, que são fundamentados numa concepção mais crítica da educação. Para os acadêmicos tais encaminhamentos foram, nesse estudo, identificados como sendo uma metodologia. 1 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 133 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... metodologias Sistêmica (S), Crítico-Superadora (CS) e CríticoEmancipatória (CE). Todas as aulas ministradas foram consideradas como sendo fechadas, pois perceberam que tanto as atividades como as decisões eram estipuladas antecipadamente pelo professor. As “aulas livres” foram consideradas como sendo abertas, pois, segundo eles, os alunos decidiam o que iriam fazer. Com relação à metodologia utilizada pelos professores nas aulas livres, os acadêmicos registraram que cinco professores as desenvolviam numa concepção de “ensino aberto” (EA) e que 11 professores não utilizavam nenhum encaminhamento metodológico específico, caracterizando “aulas com metodologia não identificada” (NI). Nas Escolas A e D, quatro professores não permitiam as aulas livres, isto é, eram eles que ministravam todas as aulas e dirigiam todas as atividades. Os aspectos predominantes referentes à presença da competição e do lúdico nas aulas apareceram no relato dos acadêmicos da seguinte forma: a competição foi predominante nas aulas para 11 professores e existiu em algumas atividades para nove; os acadêmicos identificaram a predominância dos aspectos lúdicos em algumas aulas de cinco professores, de acordo com os seguintes procedimentos: adaptações nos jogos, permuta das equipes e motivação dos alunos. Os outros 15 professores adotaram apenas procedimentos relacionados com as adaptações nos jogos, em algumas aulas. Os acadêmicos registraram o interesse e a participação dos alunos, destacando que no terceiro ciclo (10 a 14 anos) eles foram altos, já que os alunos só deixavam de participar da aula se ocorresse algum impedimento por motivo de saúde ou ordem médica, e que no quarto ciclo (13 a 16 anos) a maioria se interessou e participou das aulas, embora uma pequena minoria, especificamente do sexo feminino, não tivesse feito todas as aulas, alegando, principalmente, indisposição e o fato de não gostarem de algumas atividades. Mesmo assim, a participação foi considerada como sendo alta. A relação entre professor e aluno foi observada como sendo excelente e democrática para 11 professores; boa e democrática para cinco; razoável e autoritária para três; e péssima e autoritária para um. A maioria dos acadêmicos observou que a relação entre os alunos, nas aulas, foi excelente ou boa; afirmaram que houve alguns conflitos, mas que foram passageiros, geralmente devido a alguma discordância que ocorria quando jogavam. Por outro lado, destacaram que o vocabulário utilizado pelos alunos, entre eles mesmos, às vezes era pejorativo e ofensivo, embora afirmassem que eram amigos. 134 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck A formação dos grupos nas aulas foi variada; os alunos gostam muito de ficar juntos, conversar, dar risada e jogar. Quando o professor trabalhava o jogo como conteúdo da aula, a maioria queria estar na mesma equipe dos amigos; escolhiam os companheiros para jogar, utilizando o critério da amizade. Depois é que contava o fato de saber jogar bem. Esse comportamento prevaleceu no terceiro ciclo, mas também ocorreu entre os alunos do quarto. A formação profissional dos professores é diferente com relação ao ano em que concluíram a graduação, bem como no que respeita à obtenção do título em nível do pósgraduação. A maioria dos professores tinha concluído a graduação há mais tempo, entre 15 e mais de 20 anos, dois não tinham especialização e um tinha também pós-graduação, em nível de mestrado, na área de Educação. O olhar dos professores das escolas Todos os professores trabalhavam nas escolas há mais de cinco anos. Dezoito eram efetivos e dois, contratados. A carga de trabalho (hora/aula) semanal dos professores nas escolas se apresentou de forma diferenciada. Alguns aspectos referentes às instalações e aos materiais existentes nas escolas foram destacados pelos professores como deficitários. Com relação às instalações, os problemas mais evidenciados foram: falta de espaço, má conservação das quadras e pátios e a ocorrência de depredações. Em relação à quantidade de material para as aulas, 40% dos professores disseram ser suficiente e 60% afirmaram ser insuficiente. A maioria considera que a escassez de material não seria obstáculo para o professor fazer um bom trabalho na escola, embora acreditem que uma maior quantidade e qualidade seria fator determinante no desenvolvimento de um trabalho mais atrativo para os alunos. Os professores apresentaram significados diferentes para a Educação Física, ainda que próximos, relacionando-a com objetos específicos, como corpo, saúde, movimento, esporte, jogo, motricidade, disciplina, corpo e mente, atividades físico-esportivas, atividades de ócio, qualidade de vida e conhecimentos sobre o corpo. Na formulação dos principais objetivos para a Educação Física na escola, os professores utilizaram verbos como adquirir, conhecer, organizar, apontar, evidenciar, procurar, reconhecer, modificar, organizar, executar, participar, abordar e refletir. Nas entrevistas foram identificados outros objetivos priorizados pelos professores, que evidenciam alguns aspectos didátiOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 135 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... co-metodológicos das aulas. São eles: os educativos (aprendizagem, valores, aprender a conviver com os outros); os relacionados à saúde como manutenção e melhoria (aptidão física, condicionamento físico); os recreativos (prazer, diversão, jogo); os preventivos (desenvolvimento de hábitos saudáveis de vida); e os competitivos (superar obstáculos e a si mesmo, aprender a obedecer às regras e relacionar-se, saber ganhar e perder, desenvolver o espírito competitivo de forma saudável). Com relação à elaboração do planejamento, os professores evidenciaram que trocam idéias com os colegas, mas cada qual faz e segue seu planejamento. A preferência dos professores com relação à faixa etária dos alunos para ministrar aulas assim se apresenta: 30% preferem dar aulas para os alunos de 10 a 12 anos; 35% afirmaram preferir dar aulas para alunos de 13 a 15 anos; e 35% afirmaram que não têm preferência. Quanto aos aspectos percebidos pelos professores, relacionados aos alunos, como a participação nas aulas, as preferências ao tipo de aula e as dificuldades que os alunos têm, as respostas foram: a) Afirmaram que, quanto menor a idade, maior o nível de participação dos alunos; b) Destacaram que a participação dos alunos diminui significativamente, em específico entre as meninas, no quarto ciclo, na 8ª série; c) Afirmaram que a preferência dos alunos do terceiro e quarto ciclos com relação ao conteúdo é o Esporte, variando apenas a modalidade esportiva. Os professores apontaram as seguintes dificuldades apresentadas por alguns alunos: a) do terceiro ciclo, (principalmente na 5ª série): lateralidade, coordenação, realizar atividades em grupo, saber ganhar, saber perder, respeitar a vez dos colegas na realização das atividades, dividir o material e esperar para jogar; b) e do quarto ciclo: lateralidade, coordenação, insegurança, falta de interesse para aprender, indisciplina, saber ganhar, saber perder, respeitar as limitações dos colegas. Com relação ao tipo de aulas que os alunos preferem, os professores responderam o seguinte: a) os do terceiro ciclo (5ª e 6ª série) gostam mais de aulas animadas, com muitos jogos e atividades lúdicas, mas participam de todo tipo de aula; o interesse e a curiosidade são constantes e eles gostam de aprender coisas novas; b) os do quarto ciclo (7ª e 8ª série) se interessam mais pelo jogo realizado de acordo com as regras oficiais próximas ao Esporte rendimento e não apreciam quando o professor faz adaptações das regras, afirmando que é aula para criança. Os conteúdos mais trabalhados nas aulas de Educação Física pelos professores são: a) no terceiro ciclo (5ª e 6ª séries), atividades 136 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck lúdicas, jogos e o Esporte (é mais desenvolvido); b) no quarto ciclo (7ª e 8ª séries), o Esporte. Para todos os professores existem diferenças e semelhanças entre Educação Física e Esporte. A maior diferença seria em relação à especificidade de cada um, e a maior semelhança seria em relação ao movimento e o prazer. Quanto ao aspecto da relação entre professor e aluno, 55% dos docentes disseram ser boa, 43% afirmaram que poderia ser melhor e 2% disseram que é péssima. A parcela correspondente aos 45% que não estão satisfeitos afirmou que os alunos não têm educação e limites, sabem exigir os direitos, mas não sabem seus deveres, são agitados, não têm paciência para realizar muitas vezes o mesmo exercício ou atividade, demonstram interesse por atividades e exercícios novos, mas perdem logo a motivação. Além disso, apesar de se dizerem amigos, são grosseiros uns com os outros e o vocabulário que utilizam para se comunicar muitas vezes é ofensivo. Com relação à escolha da profissão, 80% respondeu que foi devido à ligação com o Esporte, 12% queriam ser professores e optaram pela Educação Física, pensando que seria mais agradável e fácil o exercício da docência, e 8% tentaram o ingresso em outros cursos, sem obter êxito. Finalmente, os professores também manifestaram o que pensam a respeito de sua profissão através dos seguintes aspectos evidenciados: remuneração salarial baixa, insuficiente valorização da sociedade pelo trabalho do professor, insuficiente valorização da disciplina na escola, falta de condições na escola para o desenvolvimento do trabalho e falta de comunicação adequada com a direção e a equipe pedagógica da escola. O olhar dos alunos do terceiro e quarto ciclos Devido ao grande número de alunos participantes (3222) e, conseqüentemente, de respostas, para uma melhor apresentação dos dados obtidos foram estabelecidos cinco termos/motivos2, como categorias, para agrupar as respostas dos alunos, conforme as semelhanças entre elas. São elas: convívio social, aprender, saúde-corpo, prazerdesprazer, jogo-esporte. As respostas foram organizadas de acordo com a relação predominante com cada uma das categorias, e foram identificadas pela palavra indicativa apresentada, independentemente Os mesmos foram selecionados de acordo com os aspectos centrais de cada uma das perguntas do questionário aplicado para os alunos. 2 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 137 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... da valoração do aluno com relação à sua resposta. As respostas que não se encaixaram em nenhuma das categorias aparecem no item “outras respostas”. Assim, olhar dos alunos, de forma resumida, assim se apresenta: gostam muito das aulas de Educação Física; gostam de estar com os amigos; sentem muito prazer nas aulas Educação Física; gostam de realizar atividades agradáveis, de se movimentar, sair da rotina de sala de aula; gostam e preferem aprender sobre Esportes; a maioria gosta e prefere jogar nas aulas; relacionam o conhecimento das aulas com aspectos do movimento, da saúde e da aparência física (beleza); não gostam de discussões, brigas, rejeição e críticas (colegas). O olhar dos professores de MPEEF Dos seis professores que participaram da pesquisa, três são efetivos e três são colaboradores. As respostas dos professores se apresentam de acordo com as mesmas categorias. Com relação à participação do professor da escola no Estágio: a maioria fornece as informações básicas, cumprem com o trabalho burocrático e ficam alheios ao processo. Uma minoria participa realmente, orientando e acompanhando todo o Estágio. As aulas ministradas pela maioria dos professores são vistas pelos professores de MPEEF como sendo um trabalho sem compromisso com as questões educacionais, desorganizado e sem relação com o contexto. Por outro lado, evidenciam o trabalho desenvolvido por uma minoria de professores como sendo responsável, organizado e relacionado com o contexto. Todos os professores afirmaram que o conteúdo predominante desenvolvido nas aulas pelos professores é o Esporte (basquetebol, futsal, voleibol e handebol). Uma minoria de professores desenvolve outras modalidades esportivas e conhecimentos (tênis de mesa, atletismo, xadrez, atividades rítmicas, saúde, qualidade de vida). As dificuldades enfrentadas pelos professores foram assim identificadas: a transposição didática dos próprios conhecimentos relativos à área e em relação a outros saberes pedagógicos; alguns parecem não saber mais como trabalhar; os alunos fazem o que querem, sabem e gostam; quem ministra as aulas tem dificuldades com relação a manter a disciplina dos alunos e administrar o tempo para organizar melhor o trabalho; faltam tempo e condições financeiras para a capacitação, e; finalmente, faltam condições adequadas na escola. A concepção dos professores de MPEEF com relação aos princi138 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck pais objetivos da Educação Física na escola seria: subsidiar os alunos com conhecimentos teóricos, práticos, relacionados à cultura corporal de movimento, bem como com experiências significativas que possibilitem seu desempenho em situações cotidianas, para que possam usufruí-los em benefício de sua saúde e qualidade de vida. Com relação à elaboração do planejamento da disciplina de MPEEF, os professores destacaram que ele é realizado pelo coletivo de docentes da disciplina, apoiado em critérios de atualização, especialmente na teoria relacionada à Educação Física Escolar e ao olhar atento sobre as transformações no cotidiano escolar, particularmente da rede pública de ensino. Com relação aos princípios que norteiam as orientações referentes ao Estágio Supervisionado, os professores evidenciaram o seguinte: vivência entre a teoria e a prática, favorecendo a reflexão; avaliação e possível interferência na realidade educacional; elaboração de projetos e propostas alternativas para o trabalho de docência na Educação Física. Os professores percebem que o acadêmico visualiza a disciplina de MPEEF da seguinte forma: algo obrigatório que poucos consideram como um momento especial da formação acadêmica; a disciplina é vista no inicio do ano como sem importância e necessidade, e no decorrer do processo essa concepção passa a prevalecer entre a maioria. As principais dificuldades enfrentadas pelos acadêmicos, destacadas pelos professores de MPEEF, foram: a falta de conhecimento teórico relativo aos conteúdos propostos pela escola; a maioria não sabe organizar os conhecimentos que adquiriram até então na graduação para serem desenvolvidos na escola; alguns não se relacionam bem com os alunos; cobram a execução correta daquilo que estão ensinando; a maioria quer trabalhar nas aulas com as modalidades esportivas de que tem melhor domínio e conhecimento. Os professores apresentaram tempo diferenciado com relação à atuação no ensino superior, bem como na escola. Todos têm o título de pós-graduação em Educação e três atuavam também na escola. Dos seis professores de MPEEF, cinco escolheram a profissão por terem tido vínculo significativo com o Esporte e apenas um disse ter escolhido a profissão por não gostar das aulas de Educação Física que tinha na escola. Os professores manifestaram suas concepções sobre Educação Física e Esporte, entre outras, da seguinte forma: 1) Educação Física: são todas as manifestações da cultura corporal (ou do movimento) tratadas pedagogicamente na instituição escolar; 2) Esporte: uma das Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 139 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... principais manifestações históricas da sociedade, é uma das áreas de conhecimento da Educação Física que chamam muito a atenção das pessoas por sua veiculação em vários meios de comunicação, e seus objetivos se diferenciam conforme o contexto e os praticantes. Com relação ao envolvimento dos professores em projetos que contemplem os dois contextos (escolar e universitário), cinco professores de MPEEF disseram que participam e apenas um disse nunca ter participado. CONCLUSÕES Os acadêmicos Os acadêmicos fazem a leitura do cotidiano pedagógico realizado pelos professores tendo como parâmetro principal sua formação, que é predominantemente técnica. Na graduação há predominância do desenvolvimento do Esporte, o que reflete posteriormente na realização das atividades do Estágio Supervisionado nas escolas. No curso de Licenciatura em Educação Física da UEPG, o saber técnico é priorizado, em detrimento do saber pedagógico, sendo estes desenvolvidos de forma desarticulada, o que contribui para uma visão fragmentada do acadêmico com relação à sua formação. O Esporte continua sendo o conteúdo predominante no currículo, e o enfoque priorizado pela maioria dos docentes tem abordagem técnica. No curso há uma formação mais técnica do que pedagógica, com excelentes condições em relação a espaço e material. Os acadêmicos utilizam então esses parâmetros para avaliar aqueles que são oferecidos pelas escolas, considerando-os como sendo fundamentais para o professor realizar seu trabalho de forma significativa. Os conhecimentos relacionados às questões pedagógicas são tratados de forma superficial até o terceiro ano da graduação. Os acadêmicos, apesar das críticas, reproduzem no Estágio o trabalho desenvolvido pela maioria dos professores. Os encaminhamentos metodológicos priorizados pela maioria dos acadêmicos mostram que as atividades com enfoque lúdico no curso de graduação são secundárias e pouco vividas por eles; portanto, parecem ter menos valor pedagógico que os exercícios técnicos. Uma minoria dos acadêmicos desenvolveu aulas diferenciadas no Estágio Supervisionado, com relação aos conhecimentos e conteúdos abordados, evidenciando indicadores de um ensino mais aberto, crítico e reflexivo. 140 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck O professor da escola As concepções do professor em relação à importância de seu papel de educador, bem como de seu comprometimento profissional, prevalecem em relação a outros aspectos para o desenvolvimento de sua prática pedagógica; muitas vezes o discurso do professor é diferente daquilo que ele realiza em sua prática pedagógica cotidiana. Os professores têm dificuldades para desenvolver o trabalho pedagógico em grupo, com seus pares. O ambiente escolar não propicia as condições necessárias para que eles se reúnam, troquem experiências e reflitam sobre a sua prática, e isso contribui para o isolamento pedagógico dos docentes. A maioria dos professores tem dificuldades na organização de seu trabalho pedagógico, devidas, principalmente, à falta de conhecimentos teórico-científicos. No desenvolvimento do planejamento, os aspectos técnicos são os mais valorizados pela maioria dos professores, seguidos daqueles relacionados à competição, à saúde, à prevenção e à recreação. O conteúdo mais desenvolvido nas aulas é o Esporte, com abordagem dos seguintes conhecimentos: os fundamentos das modalidades esportivas, as regras, as técnicas, as táticas e o jogo. Como valores, são desenvolvidos principalmente: disciplina, respeito, saber ganhar, saber perder, superação dos próprios limites e trabalho em grupo. Os conteúdos considerados por 16 professores como pouco importantes são: as ginásticas, as lutas, as atividades rítmicas e expressivas, os conhecimentos sobre o corpo e os temas transversais. O tratamento pedagógico dos conteúdos é realizado de forma limitada, repetitiva e pouco relacionada com o contexto. Os professores dirigem totalmente o desenvolvimento das aulas, não permitindo a participação dos alunos. Os exercícios físicos e técnicos realizados durante as aulas prevaleceram, em detrimento das atividades lúdicas, do jogo e da competição. Os professores poderiam explorar mais os conteúdos e utilizar outras estratégias, tornando as aulas mais motivadoras e significativas. Os professores valorizam mais os aspectos técnicos do Esporte no desenvolvimento das aulas, desvalorizando as atividades lúdicas. As atividades desenvolvidas, em sua maioria, apresentam alto grau de ênfase na técnica. Quatro dos professores desenvolvem os conteúdos de acordo com objetivos mais amplos, demonstram preocupação com uma abordagem mais significativa e procuram relacioná-los com o contexto e utilizar estratégias diversificadas. Apenas três professores valorizam primeiro os aspectos lúdicos no desenvolvimento do Esporte e, num segundo momento, os aspectos técnicos. As atividaOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 141 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... des desenvolvidas apresentam alto grau de ênfase na participação e no prazer dos alunos, propiciam encaminhamentos diferenciados que revelam indicadores de um ensino mais aberto, crítico e reflexivo. Faltam aos professores conhecimentos teórico-científicos para subsidiar o desenvolvimento de um trabalho pedagógico diferenciado e atualizado. Há uma valorização nas aulas, por parte de 15 professores, da participação e disciplina dos alunos. Os professores que apresentam objetivos no desenvolvimento das aulas livres possibilitam aos alunos: o poder de decisão e de escolha; realizar o que mais gostam; aprender a organizar-se e ceder em nome do grupo; aprender a se relacionar com outros colegas na Escola, aqueles que não fazem parte do grupo de amigos. Os indicadores de um ensino mais aberto, reflexivo e crítico, como, por exemplo, formular questionamentos, participar das atividades junto com os alunos e delegar a liderança a eles tiveram baixa incidência nas aulas. As intervenções da maioria dos professores foram mais evidenciadas com relação à correção dos movimentos executados pelos alunos e às questões referentes a comportamento e disciplina. Percebe-se que a atuação do professor é de fundamental importância, tanto para incentivar como para inibir, e influencia na participação dos alunos nas aulas. A Secretaria de Educação do Estado de Paraná não oferece condições para os professores desenvolverem um trabalho sistemático com relação aos treinamentos esportivos, visando à participação dos alunos em competições escolares. A remuneração do professor da escola pública da Rede de Ensino do Estado de Paraná é baixa, e a carga do trabalho é grande. Assim, faltam recursos financeiros e tempo para o professor investir em sua capacitação profissional. A Secretaria de Educação do Estado de Paraná investe pouco na capacitação dos professores de Educação Física. Os alunos do terceiro e quarto ciclos A maioria dos alunos gosta das aulas de Educação Física e as atividades lhes proporcionam prazer. Os alunos gostam de estar com os amigos nas aulas, assim como realizar juntos as atividades físicas e esportivas. O Esporte é o conteúdo preferido dos alunos nas aulas, e ele é o mais vivido em suas horas livres. Os alunos querem aprender mais sobre o jogar, pois desejam jogar melhor. Uma parcela significativa dos alunos deseja aprender mais sobre o Esporte, para participar de competições escolares. A falta de diversidade de exercícios e atividades e a 142 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck forma como os conteúdos são desenvolvidos pelo professor diminuem a motivação dos alunos, levando-os a uma menor participação. A falta de orientação pedagógica (não aprender a jogar) e a ausência do professor durante o processo de aprendizagem também é considerado como fator que diminui a motivação dos alunos. Os alunos, principalmente do terceiro ciclo, gostam muito e participam com entusiasmo das aulas com enfoque nas atividades lúdicas. Os alunos se referem ao corpo, relacionando-o com o aspecto biológico, mas também à beleza, com o sentir e o perceber. Alguns fatores contribuem para que o aluno não participe das aulas: a falta de espaço e material, a falta de organização nas aulas, a divisão inadequada dos grupos de alunos em equipes e o número elevado de alunos por turma. Alguns aspectos referentes ao professor influenciam a motivação dos alunos em participar das aulas, tais como: o tipo de relação que estabelece com os alunos, sua participação menos ou mais ativa, os castigos que aplica aos alunos e a forma como organiza as aulas e seus conteúdos. Os professores de MPEEF A preferência da maioria dos professores pela profissão foi influenciada pela ligação que tiveram com o Esporte como atletas. Os professores desenvolvem na disciplina de MPEEF um trabalho articulado, cooperativo e compromissado com as questões educacionais. Os professores fazem uma leitura crítica do trabalho desenvolvido pelos professores nas escolas, identificando suas dificuldades e limitações, mas também reconhecem que uma minoria realiza sua prática pedagógica de forma diferenciada. Os professores percebem a fragmentação no processo de formação dos acadêmicos, através das dificuldades que apresentam no desenvolvimento do Estágio Supervisionado, e também reconhecem que são necessárias mudanças no Curso de Licenciatura em Educação Física da UEPG, a fim de favorecer uma formação mais sólida, em que os saberes técnicos e pedagógicos sejam desenvolvidos de forma articulada. Depois do entendimento das conclusões a que se chegou, são apontadas algumas perspectivas que poderão ser utilizadas como novas hipóteses para o desenvolvimento de outros estudos, relacionados às questões que envolvem a Educação Física e o Esporte, no contexto escolar e de formação de professores. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 143 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... Perspectivas do processo de formação É necessário que os acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Física da UEPG tenham: um contato com o contexto escolar desde o início da graduação, uma maior carga horária para o desenvolvimento de atividades supervisionadas no contexto escolar. É necessário também desenvolver projetos envolvendo a escola e a universidade, visando à formação inicial do acadêmico e a formação continuada do professor que atua na escola. Perspectivas da abordagem da Educação Física e do Esporte A escola pública estadual deve oferecer espaço para a aprendizagem do Esporte em nível de treinamento esportivo, pois uma parcela significativa dos alunos deseja aprender sobre o Esporte para participar de competições escolares. O professor deve propiciar nas aulas de Educação Física oportunidades de vivência de situações de ensinoaprendizagem que levem os alunos ao desenvolvimento da autonomia e a maneiras de conviver socialmente, pois as aulas são vistas pelos alunos como ótimos momentos de consolidação das relações de amizade. Nas aulas de Educação Física devem ser permitidas práticas alternativas, opções de movimentos, variabilidade de atividades, oportunidades para os alunos se desenvolverem, se expressarem, participarem efetivamente, construindo também a prática. Os conteúdos devem ser tratados, nas aulas, de forma mais ampla, flexível e relacionada com o contexto, pois assim estarão sendo abordados culturalmente, tendo um significado para o aluno, ao mesmo tempo em que poderão lhes proporcionar prazer, despertando também seu interesse, mantendo-os motivados intrinsecamente para a realização das atividades propostas. Alguns temas podem ser tratados pedagogicamente, devendo ser incluídos, entre outros, conhecimentos tais como: a complexidade do funcionamento do corpo, as inúmeras possibilidades de realização de atividades físicas e esportivas, as drogas e a alimentação. Numa perspectiva mais ampla em relação aos objetivos da Educação Física e o papel da escola, acredita-se que ela deva ser um espaço onde os alunos possam se desenvolver e realizar o que gostam e preferem. Seu principal objetivo seria propiciar o descobrimento da identidade de cada um, e com ela, o descobrimento da vocação, reali- 144 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Silvia Christina Madrid Finck zando aprendizagens do tipo intrínseco, capazes de gerar o crescimento dos alunos como pessoas, através, também, do desenvolvimento de um conjunto de valores. Nas aulas de Educação Física devem ser propiciadas situações em que os alunos se sintam competentes, importantes, capazes de auxiliar outros, sendo de fundamental importância também o estímulo da criatividade. A escola deve auxiliar os alunos a se observarem e se conhecerem. Acredita-se que a Educação Física na escola não pode limitar-se apenas ao ensino de movimentos e gestos técnicos; a abordagem do conhecimento deve se dar de forma ampla e significativa. Acredita-se que este estudo, através das conclusões e perspectivas apontadas, seja uma contribuição inicial para que se busquem novos caminhos, podendo de alguma forma despertar a preocupação com os referidos contextos, visando a uma educação por meio das atividades físicas esportivas que são parte de uma cultura corporal de movimento. REFERÊNCIAS ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995. BORGES, C. M. F. O professor de educação física e a construção do saber. Campinas: Papirus, 1998. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Educação Física. Brasília: MEC/SEF, 1998. FINCK, S. C. M.. Educação física e esporte: uma visão na Escola Pública. 1995. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação – UNIMEP, Piracicaba, 1995. HILDEBRANDT, R; LAGING, R. Concepções abertas no ensino da educação física. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1986. PÁDUA, E. M. M. de. Metodologia da pesquisa: abordagem teórico-prática. 9. ed. , Campinas: Papirus, 2003. PICONEZ, S. C. B. (Org.). A prática de ensino e o estágio supervisionado. 2. ed. Campinas: Papirus, 1994. SHIGUNOV NETO, A; SHIGUNOV, V. (Org.). Educação física: conhecimento teórico X prática pedagógica. Porto Alegre: Mediação, 2002. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 145 A Educação Física e o Esporte em escolas públicas de ensino fundamental... SOARES, C. L. et al. Metodologia do ensino de educação física: coletivo de autores. São Paulo: Cortez, 1992. Encaminhado em: 11/07/06 Aceito em: 05/03/07 146 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 127-146, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Cristine Isabel Simão & Mariná Holzmann Ribas INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: VANTAGENS E EMPECILHOS COMPUTER SCIENCE IN EDUCATION: ADVANTAGES AND DIFFICULTIES Cristine Isabel SIMÃO* Mariná Holzmann RIBAS** Resumo: Adentramos o século XXI com a certeza de que o conhecimento será a principal fonte de riqueza do homem, cercada pelas altas tecnologias de informação e comunicação. Não poderíamos deixar de dizer que as tecnologias, dentre elas o computador, chegaram à educação, mesmo que ainda de forma suave. O presente trabalho relata uma investigação sobre as vantagens e os empecilhos do uso do computador na educação, verificando que, apesar de a jornada da informática na educação não ser insipiente, há muito que fazer. O trabalho nos aponta outro viés pelo qual a informática na educação deverá ter suas atenções redobradas, que é a formação do professor, uma formação que precisa despontar para novos caminhos de uso pedagógico do computador, num processo de mudanças de paradigmas, rompendo barreiras. As experiências realizadas e relatadas pelos professores neste trabalho nos dão a esperança de que os diferentes usos do computador na educação possam vir a ser uma ferramenta poderosa à disposição dos professores, porque as vantagens do seu uso são imensas. As experiências se mostram favoráveis, mesmo diante de inúmeras dificuldades, e o desejo de mudar está dentro de cada um desses profissionais, que buscam incansavelmente novas formas de ensinar e também de aprender, dando vida à educação. Diante da realidade Pedagoga. Mestre em Educação pela UEPG. Professora da Faculdade de Telêmaco Borba. E-mail: [email protected] ** Pedagoga. Mestre e Doutora em Educação (Supervisão; Currículo) pela PUC-SP. E-mail: [email protected] * Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 147 Informática na educação: vantagens e empecilhos relatada, alguns caminhos podem ser apontados como possíveis mudanças, com a finalidade de contribuir para que a informática na educação tenha um lugar de destaque dentro das nossas escolas públicas. Palavras-chave: Formação de professores. Tecnologia. Informática na educação. Abstract: We start the 21st century aware that knowledge will be the main source of wealth for men surrounded by high technologies of information and communication. It is necessary to mention that technology, including computers, is part of education nowadays even though still in a superficial form. The present paper reports an investigation about the advantages and difficulties of using computers in education; the paper also points out that there is still a lot to do concerning the use of computers in education. The investigation demonstrates that in order to use information technology in a useful way in education teacher education needs to change paradigms and break barriers and prepare teachers for the use of computers in their teaching practice. The experiences developed as well as teachers´ reports demonstrate that the different uses of computers in education can become a powerful tool for teachers as there are numerous advantages. Despite the various difficulties the experiences show that teachers are willing to incorporate the new technologies in their teaching as they look for news forms of teaching and learning in order to give education a new impetus. The reality reported points out paths that can lead to change that can contribute so that information technology in education has a central role in public schools. Keywords: Teacher education. Technology. Computer science in education. A tecnologia vem provocando diversas mudanças no mundo, influenciando cada vez mais nossa vida e nossa maneira de pensar e de agir. Vivemos hoje em uma sociedade marcada pelo desenvolvimento 148 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Cristine Isabel Simão & Mariná Holzmann Ribas da informação e da comunicação, viabilizada por altas tecnologias. No centro dessa revolução, encontramos o computador, utilizado nas mais diversas áreas, inclusive na educação, não apenas para processar informações, mas, sobretudo como meio de comunicação. O computador chega à educação lançando novos desafios, exigindo novas funções. Ele representa uma transformação ampla, que vai além do processo de ensino e aprendizagem, preparando os cidadãos de forma plena para viver no novo milênio, comunicando-se com o mundo e assumindo o comando de suas vidas. Enfim, participando de forma ativa e efetiva na sociedade. Desde a chegada da informática na educação brasileira, muitas barreiras foram vencidas, alguns anos de experiências, pesquisas e projetos reuniram boa bagagem, permitindo o suporte necessário para que os computadores se integrassem ao cotidiano das escolas do sistema público de ensino. Cremos, porém, que outras batalhas precisam ser vencidas. Alguns mitos precisam ser desfeitos, principalmente aquele que insiste em anunciar a substituição do professor pela máquina, e algumas meias verdades acerca do uso do computador precisam ser esclarecidas. Isso porque elas podem servir de instrumento de dominação. É necessária uma atualização constante das formas de utilização do computador como ferramenta pedagógica, explorando sua real contribuição para a construção do conhecimento. Essa atualização só ocorrerá quando houver práticas suficientes, isto é, quando os professores se aliarem ao computador (perderem seus medos) e acreditarem nas possibilidades e contribuições que essa ferramenta pode fornecer para a educação. As tecnologias disponibilizadas pelo computador já estão presentes no cotidiano de nossas escolas, através de nossos alunos. Fazem parte do seu conjunto de atividades. Nossos alunos já nasceram acostumados com essa cultura tecnológica, cercada pelos vídeos, pela televisão, computadores e outros equipamentos eletrônicos. Não sentem qualquer dificuldade com os inúmeros termos técnicos e botões. Muito menos nesse contexto de rapidez da informação e de mudanças. Eles não têm medo de arriscar. É preciso, portanto, estimular os professores a repensarem suas práticas. Sabemos que toda mudança é caracterizada por duas atitudes: de um lado, os que são favoráveis, e de outro, aqueles que resistem. Estes têm total aversão ao desconhecido. Não gostam nem de falar em alterações curriculares. Render-se à multimídia e a telemática, nem pensar. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 149 Informática na educação: vantagens e empecilhos FORMAÇÃO DE PROFESSORES O contexto histórico atual exige que o professor esteja aberto a mudanças, dispondo-se a modificar sua prática. Ele precisa acompanhar atentamente o surgimento de recursos inovadores. No entanto, é difícil convencê-lo sobre a necessidade da utilização desses recursos quando não há capacitação adequada. Não dá simplesmente para exigir que os professores utilizem esses recursos apenas para justificar sua prática em sintonia com a modernidade, sem a adequação a necessidades reais. Essa tarefa não é fácil. A formação dos professores é ainda fortemente alicerçada no paradigma positivista, em que há a fragmentação do conhecimento e a dicotomia entre teoria e prática. Muitas mudanças precisam ocorrer nos cursos de formação. Enquanto as instituições formadoras insistirem neste paradigma, a atuação do professor continuará prejudicada, pois ele enfrenta situações problemáticas e complexas em seu campo de trabalho. A formação profissional persistirá sustentada por um modelo inadequado, que não considera as competências práticas e dificulta o desenvolvimento de capacidades dirigidas para aspectos mais humanizantes e criativos das pessoas. Para consolidar a educação nos dias atuais, se realmente queremos uma escola competente para um ensino crítico, criativo, de qualidade, que desenvolva o cidadão, precisamos adotar outros parâmetros para permitir que o professor desenvolva habilidades de formador e estimulador do pensamento e da inteligência do aluno. Segundo Demo (1992, p. 36), é urgente desenvolver habilidades como: [...] a capacidade propedêutica, definida como competência em construir condições adequadas do aprender a aprender, do saber pensar, de pesquisar, de teorizar a prática, de atualizar-se constantemente. Trata-se de habilidade tipicamente metodológicoinstrumental, de domínio de meios e métodos, para ele poder produzir conhecimento com a devida destreza, capacitando-se, assim a construir com a criança o mesmo ambiente produtivo, construtivo, participativo. Apesar de exigir muito, apenas a capacidade propedêutica não é suficiente. Segundo o mesmo autor, urge “dominar conteúdos”. É preciso saber “filosofia, matemática e conhecer muito a própria língua”. É 150 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Cristine Isabel Simão & Mariná Holzmann Ribas necessária também a “instrumentalização eletrônica”, cada vez mais importante na construção e socialização do conhecimento. A informática é relevante porque propicia condições para melhor produzir e manejar o conhecimento. Por fim, tendo em vista um princípio científico e educativo, o professor deve dedicar-se à pesquisa, para conseguir uma atitude crítica e criativa no trabalho, capaz de fazer convergir os verbos “saber” e mudar”. O ideal seria que o educador aprendesse a lidar com as tecnologias durante sua formação inicial, nos cursos de Licenciatura e de Pedagogia, porque isso facilitaria a sua ação na prática, no uso desse novo referencial pedagógico, nas atividades práticas. Atitude importante para o educador é “saber integrar conscientemente o uso do computador na prática pedagógica, transformá-la e torná-la transformadora do processo de ensino e aprendizagem”. (MEC, 1998, p. 10). Todavia, é importante que o professor se conscientize de que não se muda de paradigma educacional apenas colocando uma nova roupagem, camuflando velhas teorias, pintando fachada da escola, colocando telas e telões na sala de aula, se o aluno continua na posição de mero expectador, de simples receptor, presenciador e copiador, e se os recursos tecnológicos pouco fazem para ampliar a cognição humana. (MORAES, 1997, p. 17). A palavra de ordem é mudar. Mas mudar o quê? A educação encontra-se num período de transição, vivenciando crises e buscando possíveis soluções, para transpor obstáculos e alcançar o mínimo exigido por uma sociedade em constante mudança. Sendo assim, cabem alguns questionamentos: Como ensinar na era da informação? Quais as vantagens que as tecnologias, principalmente o computador, têm a oferecer à educação? Como fica o papel da escola, do professor, do aluno nessa sociedade caracterizada pela informação e pelo conhecimento extramuros da escola? Ao analisar historicamente os caminhos da educação, percebemos que as mudanças na área sempre foram morosas. A tecnologia está nesse ambiente apesar de não ter sido produzida exclusivamente para o educacional. Esse fato contribuiu para ela fosse desacreditada em sua real contribuição para a educação. Torna-se necessário salientar tais trajetórias morosas deixaram algumas marcas, o que resultou na existência, entre muitos educadores, de um sentiOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 151 Informática na educação: vantagens e empecilhos mento de descrédito em relação ao uso de artefatos tecnológicos no processo de ensino. Esta “repulsa” só pode ser compreendida e superada à medida que, além de conhecermos sua origem, apontemos para uma nova compreensão da importância do uso da tecnologia educacional no processo ensino-aprendizagem. (OLIVEIRA, 1997, p. 9). O assunto tecnologia não se esgota quando se trata de sua aplicabilidade na educação. É algo que vem sendo discutido há muito tempo, gerando posicionamentos a favor e contra a sua utilização, mas Belloni (1999, p. 53) lembra que toda tecnologia, em qualquer situação do processo ensino-aprendizagem, deve vir acompanhada da reflexão sobre o que realmente existe por trás dela; não devemos esquecer que ela é o meio e não um fim em si mesma, nosso fim é a educação, o desenvolvimento de nossos alunos, e é isso que não podemos perder de vista. DIFERENTES USOS DO COMPUTADOR NO ENSINO A chegada do computador na sala de aula gerou e ainda gera nos professores muitas inquietações, dúvidas e ansiedades. Cremos que, antes do uso dessa tecnologia, é necessário quebrar barreiras, destruir as muralhas da resistência às mudanças exigidas, principalmente vencer a mitificação em relação ao computador, tido como algo mágico, capaz de trazer soluções milagrosas para a educação, uma supermáquina, diabólica, que faz tudo, uma presença de destaque no ensino, podendo até substituir o professor. É importante ressaltar que as tecnologias da informação e comunicação permitem um reencantamento na escola. Portanto, não há mais como negar a importância desses recursos na educação, vislumbrando um futuro na sociedade do conhecimento. A presença plena da informática na educação é inevitável. As tecnologias na educação não trazem soluções imediatas, mas viabilizam novas formas de apreensão do conhecimento, e elas “permitem ampliar o conceito de aula, de espaço e tempo, de comunicação audiovisual, e estabelecer pontes novas entre o presencial e o virtual, entre o estar juntos e o estarmos conectados a distância”. (MORAN, 2000, p. 12). Promovem mudanças significativas na maneira como enxergamos o mundo, de como agimos sobre ele. As tecnologias precisam ser vistas como mais do que circulações 152 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Cristine Isabel Simão & Mariná Holzmann Ribas de informações. Precisam ser consideradas como ferramentas pedagógicas, entendidas como algo a mais a serviço dos objetivos educacionais, contribuindo para a melhoria do processo ensino-aprendizagem. Por outro lado, de nada adiantarão recursos dos mais modernos e sofisticados se eles não passarem de meros entulhos em algum canto da escola, ou até mesmo se eles permanecerem fechados em suas embalagens, à espera de instalações que nunca são realizadas. As tecnologias trazem desafios e promovem novas interações, sejam elas aluno-professor, aluno-aluno, aluno-máquina, professormáquina ou professor-professor. Essas relações criam situações jamais vividas, modificando, portanto, todos os papéis na escola. Novos conhecimentos e novas linguagens vão surgindo no cotidiano dos nossos alunos. São novidades atrás de novidades. O contato com o mundo, com a atualidade praticamente imediata é sem dúvida o grande fascínio dessas tecnologias, que já fazem parte de todas as áreas, do cotidiano de muitas pessoas, e agora, mais conscientemente, da educação. Por isso, é preciso que nos cursos de formação não seja ensinado apenas o domínio do computador, mas sim, que ocorra uma integração entre as teorias educacionais que darão suporte às suas aplicações pedagógicas, às habilidades e à tecnologia, dando condições para o professor desenvolver atitudes críticas e reflexivas acerca dos aplicativos dos programas, dos softwares a serem usados. Os professores precisam conhecê-los a fundo, analisá-los, dimensionando a sua real importância e verificando se eles propiciam uma mudança efetiva, contribuindo para a construção do conhecimento do aluno. Que os professores se apropriem do computador de uma forma que permita que eles possam incorporá-lo na sua prática, com seus alunos, sempre levando a refletir sobre o seu papel. INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: EXPERIÊNCIAS VIVIDAS Foi partindo dessas questões que nos propusemos a realizar este trabalho. O primeiro interesse na pesquisa era analisar como os softwares educacionais poderiam ajudar as crianças com dificuldades de aprendizagem. A idéia inicial foi abandonada quando percebemos que outras questões estavam implícitas nessa primeira proposta. Propusemo-nos então a investigar quais as vantagens, os empecilhos e as dificuldades enfrentadas no uso do computador, para que pudéssemos colaborar com dados reais para reorientação do próprio Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 153 Informática na educação: vantagens e empecilhos núcleo de tecnologia, colaborando também para a desmistificação do uso da informática, principalmente quanto aos empecilhos. Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de questionários e entrevistas com professores da rede pública estadual de Ponta Grossa com o seguinte perfil: a) professores que participaram de cursos realizados pelo Núcleo de Tecnologia Educacional em 2001 e 2002; b) professores que realizaram ou que estivessem realizando um projeto na sua escola envolvendo os recursos da informática. Os questionários trouxeram informações importantes a respeito de como os sujeitos da pesquisa vêm utilizando a informática. As perguntas foram quase todas abertas, para que os professores pudessem relatar as experiências ocorridas nas suas escolas. Os questionários foram entregues em mãos a cada professor. Foi marcada uma data para a devolução, mas nem todos os professores fizeram a devolução. Desta forma, foram distribuídos 28 questionários, em 10 escolas, 18 dos quais foram respondidos. Ressaltamos que seis das dez escolas têm laboratório de informática com dez computadores, em média, e quatro delas não contam com nenhum computador à disposição dos professores e alunos. As entrevistas foram realizadas com seis professores, em quatro escolas públicas estaduais. Três professores tinham respondido o questionário e três não. O objetivo da entrevista foi de complementar os dados obtidos com o questionário, visto que os professores entrevistados realizaram ou estão realizando algum projeto nas suas respectivas escolas. Eles têm grandes contribuições no sentido de mostrar o que é possível fazer, mesmo com um número pequeno de computadores. Todas as entrevistas foram realizadas em datas e locais marcados pelos próprios professores. Elas se desenvolveram naturalmente e foram todas gravadas e transcritas fielmente. Os questionários e as entrevistas se complementam entre si. Ambos tiveram suas respectivas relevâncias. Baseando-nos no depoimento dos professores, pudemos ressaltar os seguintes pontos: a aceitação do computador em geral é boa por parte dos professores e existe uma expectativa muito grande, gerando um verdadeiro caso de amor e ódio ao mesmo tempo, pois ao mesmo tempo em que gostam, sentemse receosos. Eis alguns depoimentos: A aceitação é boa por parte dos professores, que pensam em utili- 154 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Cristine Isabel Simão & Mariná Holzmann Ribas zar o computador como uma ferramenta de apoio em suas aulas. Foi com satisfação a chegada dos computadores na escola. No início, os professores ficavam se perguntando como que deveria ser trabalhado com os alunos. Alguns professores logo foram manipulando o microcomputador, mas a maioria sentiu dificuldade. Logo não dominavam este equipamento. Eu, particularmente, gostei muito. Minha disciplina tinha a ver com o microcomputador, haja vista que na grade curricular da escola consta a disciplina de informática (optativa) no ensino médio e no ensino fundamental. A rejeição: a própria palavra já diz do receio do novo, do medo de estragar, com muitas cobranças, e o mito em relação à máquina: Ficam contentes por saber que haverá mais esta ferramenta didática. Mas logo ficam receosos se haverá cobrança ou obrigatoriedade de utilizá-lo, pois a maior parte dos professores não tem conhecimento ou então, sentem-se inseguros para levar seus alunos até o laboratório de informática. Isto também se deve ao fato de que os professores não teriam o que rodar nos micros. A utilização: muito poucos professores utilizam o computador, ainda que de forma rara, em alguns projetos. Utilizo os computadores esporadicamente porque o número de micros é muito reduzido, as turmas são aproximadamente de 40 alunos por turma e há outros professores que também os usam, o nosso colégio tem um número muito grande de professores e alunos. Apenas em um projeto interdisciplinar, por algumas vezes. Não teria também o que passar dentro de minha matéria. Eu poderia passar alguns assuntos, mas precisaria de uma pessoa para auxiliar no funcionamento das máquinas e da rede, para que daí como professor da disciplina, pudesse acompanhá-los no aprendizado. Quanto às dificuldades apresentadas por eles, a principal está em não saber o que fazer com o computador, além da falta de um laboratorista, do número insuficiente de máquinas em relação ao número de alunos, mas a maior de todas é a falta de laboratórios em muitas escolas: Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 155 Informática na educação: vantagens e empecilhos A maior dificuldade é sem dúvida a falta de equilíbrio entre o número de alunos e o número de computadores. As turmas têm em média 40 alunos, e os laboratórios dez máquinas. Fica praticamente impossível desenvolver um trabalho com boa qualidade e sem desperdício de tempo. Além de ser muito desgastante para o professor, que precisa dividir a turma, deixando uma atividade para os que ficam em sala de aula, e trabalhando com os que vão ao laboratório, sendo ainda necessário que dê conta de atender de todos, os que ficam e os que vão. Já quanto às vantagens, eles percebem que o uso do computador provoca nos alunos maior motivação, os alunos gostam, muda a rotina de sala de aula, tanto de alunos quanto dos próprios professores: A informática está presente em nosso cotidiano. É impossível não inserir na educação, sob o risco de a escola ficar cada vez mais distante dos avanços tecnológicos. As vantagens são tornar as aulas mais interessantes, atrativas aos alunos, que, ao mesmo tempo em que aprendem o conteúdo, também se familiarizam com a máquina. O computador funciona como um apoio no desenvolvimento das aulas. São muitas as vantagens, como posso citar a seguir: Alunos motivados, professor motivado. O campo da interatividade se expande e não fica só em sala de aula. Vontade de aprender, vontade de ensinar. Aluno procura pelo conteúdo, aluno questiona o professor. Existe sempre um desafio, conversa entre aluno com aluno, conversa professor com professor e, principalmente, aluno com professor. A captação de informação conectado na internet é fabulosa você sabe, o aluno quer ver, quer conhecer, quer ir até aonde seu clic possa chegar, ele não quer parar, é um desafio a toda prova. Os empecilhos por eles levantados: não ter os computadores na escola, a disciplina de informática, já existente, o apoio do Governo Estadual e Federal para dar maiores condições às escolas, e uma quebra de paradigmas de cada professor: A capacitação dos professores é algo de relevada importância no momento. Os professores precisam se atualizar, fazer cursos. O 156 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Cristine Isabel Simão & Mariná Holzmann Ribas professor, neste caso, eu acredito não ser falta de vontade, mas sim de tempo, pois os professores têm a grande maioria uma carga horária de 40 horas em sala de aula e ainda toda atividade de preparo e correção de atividades em casa. Seria necessária uma dispensa, pelo menos em um turno para fazer os cursos. Mas acho sinceramente muito difícil acontecer isso na atualidade, pelas dificuldades encontradas nas escolas. Por não possuir laboratório de informática na minha escola e pela dificuldade de locomoção de alunos para outro laboratório em período normal de aula, que dirá em período contrário. CONSIDERAÇÕES FINAIS Cremos que mais difícil do que equipar a escola com computadores é a tarefa de mudar concepções do ensinar e do aprender, da organização escolar com horários e currículos mais flexíveis, para que as tecnologias como os computadores se tornem mais eficazes na escola. Formar profissionais aptos e dispostos a estar em constante aprendizagem é algo realmente importante em nossas instituições de ensino. Muito mais, ainda, quando falamos em formação de professores, visto que estes são formadores de novos cidadãos. Quando os alunos são motivados, desafiados, constantemente na busca de novas aprendizagens, as práticas dos professores também são diferenciadas, com isso, os profissionais terão uma probabilidade muito grande de se tornar profissionais reflexivos. Eles estarão sempre na busca de melhorar cada vez mais a sua prática. As considerações aqui apresentadas dizem respeito aos cursos de capacitação, que servem para incentivar os professores a desmistificar o uso do computador na escola; também ressaltamos a importância de o Estado mudar a sua forma de ver os cursos de capacitação, dando apoio maior para que estes não se reduzam a treinamentos; enfatizamos que a formação para o uso das tecnologias seja algo presente na formação inicial e continuada de cada professor, mas sabemos que os cursos não são garantia de mudança, isso dependerá de todo um contexto maior em que a escola está inserida. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 147-158, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 157 Informática na educação: vantagens e empecilhos REFERÊNCIAS BELLONI, M. L. Educação a distância. Campinas: Autores Associados, 1999. DEMO, P. Formação de formadores básicos. Em Aberto. Brasília, v. 11, n. 54, abr./jun. 1992. MORAES, M. C. 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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves QUANDO ENSINAR NÃO É O MAIS IMPORTANTE: REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO DOCENTE E O OFÍCIO DO ALUNO NO CONTEXTO ATUAL WHEN TEACHING IS NOT THE MOST IMPORTANT: REFLECTIONS ABOUT TEACHERS’ WORK AND STUDENTS’ ROLE IN THE CURRENT CONTEXT Wanderson Ferreira ALVES* Resumo: O objetivo do presente texto é analisar alguns aspectos do trabalho do professor e do ofício do aluno no contexto das profundas transformações contemporâneas. O trabalho foi constituído a partir do apoio teórico em autores que discutem o tema e em estudos recentes que abordam as questões aqui levantadas. Sempre que possível ilustro com alguns aspectos da política educacional adotada em dois estados brasileiros, nomeadamente o estado de Goiás e o estado de São Paulo. A análise enfoca três dimensões. A primeira delas se refere às mudanças no papel do Estado e suas repercussões sobre o campo educativo, enfocando o movimento de ‘responsabilização’ e ‘desresponsabilização’ e a gestão. A segunda diz respeito ao trabalho do professor, destacando a formação, as condições de trabalho e o sentido de ensinar na atualidade. A terceira trata especificamente do aluno e das novas situações com que este vem se defrontando, particularmente na sua conversão em cliente ou consumidor, bem como ao universo de exigências do mercado de trabalho e sua repercussão na escola. Finalizando, levanto a hipótese de que o conjunto dos processos a que a educação escolar vem sendo submetida em uma sociedade crescentemente * Mestre em Educação. Doutorando pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Formação do Educador (GEPEFE-USP). Email:[email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 159 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... regida pelo lucro pode levar a mudanças significativas nos sentidos da docência e na ética que orienta o trabalho do professor. Palavras-chave: Trabalho docente. Políticas Educacionais. Neoliberalismo. Abstract: The purpose of the present article is to analyze some of the aspects of teachers´ work and students’ role in the context of deep contemporary changes. The work was developed through theoretical support in authors who discuss in recent studies the issue raised in this article. Whenever possible examples are given about some aspects of the educational policy employed in two Brazilian states, the state of Goiás and the state of São Paulo. The analysis focuses three dimensions. The first dimension is related to the changes in the state’s role and their impact on the educational field, focusing the movement of ‘responsibilization’ and ‘deresponsabilization’ and management. The second dimension refers to teachers’ work, pointing out the education, working conditions and the meaning teaching nowadays have. The third and last one refers specifically to students and the new situations that students have been facing, especially the change from being a client or a consumer, as well as the great array of work market demands and its impact on school. At the end of the article, I raise the hypothesis that the process, in which education has gone through in a society moved by profit, can lead to meaningful changes in the teaching process and in the ethics that guide teachers´ work. Keywords: Teachers´ work. Educational politics. Neoliberalism. INTRODUÇÃO Na realidade brasileira, em especial desde os anos 90, a educação tem passado por diversas mudanças que parecem afetar tanto a organização interna da escola como todo o sistema. Isto pode ser per160 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves cebido na implementação de medidas relativas à gestão, avaliação, diretrizes curriculares, formação de professores, financiamento e, até mesmo, em relação ao sentido do oferecimento da Educação Básica. Alguns dos fenômenos apontados como de maior importância para a compreensão desse quadro são a globalização e as mutações no mundo do trabalho. O primeiro por apresentar um mundo crescentemente interligado. O segundo pelas novas estratégias de produção e gestão, bem como também em relação à própria configuração da disposição das oportunidades de trabalho nos setores primário, secundário e terciário. É desnecessário dizer que existe muito de retórica nisso tudo. Todavia, se não nos comprazermos com essa simples constatação, é preciso compreender melhor o que ocorre. Este é o objetiovo das reflexões e análises aqui apresentadas. O presente texto busca refletir sobre três dimensões das várias possíveis nesse contexto. A primeira delas se refere às mudanças no papel do Estado e suas repercussões sobre o campo educativo, enfocando o movimento de responsabilização e desresponsabilização e a gestão. A segunda diz respeito ao trabalho do professor, destacando a formação, as condições de trabalho e o sentido de ensinar na atualidade. E a terceira trata especificamente do aluno e das novas situações com que este vem se defrontando, particularmente na sua conversão em cliente ou consumidor, bem como ao universo de exigências do mercado de trabalho e sua repercussão na escola. Estas três dimensões formam, então, os eixos articuladores do trabalho. O texto foi elaborado a partir do apoio na literatura e em estudos recentes que abordam as questões aqui levantadas. Para possibilitar uma maior substância à argumentação, sempre que possível ilustrarei com aspectos da política educacional adotada em dois estados brasileiros, nomeadamente o Estado de Goiás e o Estado de São Paulo. Finalizando, levanto a hipótese de que o conjunto dos processos a que a educação escolar vem sendo submetida em uma sociedade crescentemente regida pelo lucro pode levar a mudanças significativas nos sentidos da docência e na ética que orienta o trabalho do professor. AS MUDANÇAS NA FIGURA DO ESTADO Embora o Brasil não tenha, como no caso da Europa, gozado da prosperidade do Estado de Bem-Estar, curiosamente não ficou livre da lógica político-econômica que sobre ele se abateu. A questão é que Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 161 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... o Brasil não está desligado do que ocorre em outros países, e desse modo determinadas tendências mundiais, em maior ou menor medida, também repercutem por aqui. Assim, um arremedo de socialdemocracia surgido no Brasil, “ainda que de cabeça para baixo” (OLIVEIRA, 1998, p.25), trouxe frustração à população majoritária e acabou por reforçar a negatividade da figura do Estado, que já vinha sendo dilapidado desde os Governos Militares. Mas, e hoje, tendo ultrapassado as décadas finais do último século, como está a relação entre Estado e sociedade? Qual tem sido a orientação do Estado frente às demandas sociais? É importante compreender a lógica que rege o Estado na contemporaneidade e suas implicações sociais. As reflexões desenvolvidas por Ball (2004) podem ajudar a compreender essas questões. O autor chama a atenção para quatro aspectos que considera importantes no atual contexto. O primeiro, central, diz respeito a uma mudança no setor público, que se verifica na passagem do Estado como provedor para o Estado como regulador. O Estado passa a operar como um auditor, dirigindo o setor público ‘de fora’ e governando a distância. O segundo se refere à própria lógica da acumulação capitalista, que, na busca da expansão e do incessante lucro, agora considera os serviços sociais uma área de oportunidades de investimentos, ocorrendo, assim, uma mercantilização de diversas áreas e ações, como gestão, financiamento e avaliação no setor público. O terceiro trata de uma nova ética instalada pela cultura da performatividade no setor público, em que a combinação de descentralização, alvos e incentivos forja novos perfis profissionais e constrói relações de competição por meio de recompensas e sanções baseadas em seus desempenhos. O quarto e último aspecto diz respeito a uma mudança na relação do cidadão com o Estado, a partir do fato de que o cidadão deixa de ser considerado como dependente do Estado e passa a ser visto como consumidor ativo. Na Inglaterra, diz o autor, está em curso uma política de livre-escolha dos serviços de ensino, num contexto em que as escolas são incentivadas à performatividade, de modo que o sistema educacional é transformado em empresa. Segundo Ball (2004), dois mecanismos ou tecnologias são fundamentais para os processos descritos acima: a performatividade e a privatização. A performatividade é o elemento que permite a instauração de uma nova subjetividade, promovendo, com isso, as mudanças indicadas e expressas em “níveis desempenho”, “formas de qualidade” e “resultados”, tudo isso circundado pelo discurso da responsabilidade (accountability). A privatização é a face da desobrigação da prestação 162 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves de serviços públicos pelo Estado e sua delegação à iniciativa privada, sendo esta compreendida, necessariamente, como mais eficiente. Essas questões não têm somente implicações de ordem estrutural ou física no âmbito das instituições. São mesmo mudanças mais profundas, que atingem os ‘antigos’ modos de fazer e de pensar e que repercutem na dimensão ética. É isso que apontam Cribbs & Ball (2005) em um estudo recente. Para Cribbs & Ball, as políticas de privatização colocam em curso uma “re-moralização” das normas que orientam as instituições e os sujeitos. Novas virtudes, propósitos e motivações chegam, deslocando outras, em um cenário em que o mundo dos negócios é visto como o futuro e as burocracias e as formas tradicionais de profissionalismo representam o passado. Tudo isso traz repercussões na ética que orienta os sujeitos e instituições: aí se forjam novas sensibilidades e modos de apreciação em que não se vê como problemática a aproximação entre a escola e o mercado. Os referidos autores entendem que três elementos ou mecanismos são fundamentais para isso: (1) adoção de objetivos de competitividade, com a conseqüente ênfase na busca de resultados expressos em rendimentos, ganhos e indicadores de qualidade, como constitutivo das instituições; (2) novo direcionamento das obrigações institucionais, o que se apresenta como novos compromissos/obrigações com patrocinadores e parceiros e, até mesmo, por novos vínculos entre estudantes, pais e comunidade local – o que gera contradição entre a retórica da colaboração/participação e a realidade orientada para o mercado; (3) cultivo e valorização de novas disposições, como a competição, os valores empresariais e os saberes a eles relacionados, freqüentemente resultando em orientações para a conduta pessoal ou institucional de sucesso, bem como de sobrevivência institucional. Enfim, estes três aspectos constituem uma forma de ‘re-engenharia’ na educação, que age de diversos modos, em particular pela enfática busca de resultados e um estreito discurso instrumental. O conjunto de aspectos aqui apontados revela um pouco do quem vem ocorrendo nos países de capitalismo avançado e, ao mesmo tempo, permite uma aproximação inicial à compreensão da lógica e do sentido de algumas iniciativas dos governos brasileiros, seja em âmbito federal ou estadual. A lógica mercantilizadora da esfera pública pode ser vista na Inglaterra e, com suas especificidades, também no Brasil. Não é outro o significado do conceito de “instituições públicas de direito privado”, proposto pelo ex-ministro Bresser Pereira, e tampouco o do projeto aprovado no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 163 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... cria a Parceria Público- Privada”, o conhecido P.P.P. Este último já foi instituído na Inglaterra, e seu nome não deixa dúvidas da natureza similar da proposta: do outro lado do Oceano Atlântico o nome é Public Private Partnerships. Vejamos a seguir como ficam os professores e seu trabalho nesse contexto aqui esboçado. O TRABALHO DOCENTE: DA RETÓRICA ÀS CONTRADIÇÕES DA PRÁTICA No contexto das reformas dos anos 90 os professores foram alçados a figuras centrais, seja na retórica oficial ou nos escritos dos especialistas da área. Essa preocupação com os professores diante de uma situação em que se desejam mudanças não é nova; ela já estava presente no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, e também, em certo sentido, no campo educativo brasileiro da década de 70. Na atualidade, no entanto, diferentemente da pedagogia tecnicista dos anos 70, os professores são chamados a serem sujeitos ativos no processo de implantação das mudanças. Clama-se por um “professor-reflexivo”, por um “professor-pesquisador” ou um professor “agente social”, em contraposição ao professor “tecnólogo do ensino”. (VEIGA, 2002). Contudo, em que pese o esforço e a seriedade de inúmeros pesquisadores e entidades ligadas à educação no Brasil, a luta pelo ensino público de qualidade em nosso país tem sido uma empreitada difícil. Tivemos avanços, é claro. Como aponta Veiga (2002), o contingente de crianças na escola aumentou nos anos 90 e hoje quase a totalidade delas pode se matricular nas escolas; foram realizadas experiências inovadoras importantes em Brasília (Escola Candanga), em Porto Alegre (Escola Cidadã), em Belém (Escola Cabana), e em Belo Horizonte (Escola Plural); os educadores se organizaram em sindicatos e em instituições representativas; e além disso, a produção teórica e editorial avançou. No entanto, a situação da educação no quadro geral é ainda muito precária. No campo da política educacional, os vetos a diversos pontos do Plano Nacional de Educação (PNE) na gestão Fernando Henrique Cardoso, particularmente no que se refere ao financiamento, trouxeram grandes prejuízos para a educação brasileira. No curso da atual gestão federal, é preciso ser realista: as mudanças foram tímidas e o que se teve foi uma reforma sem projeto, e até o Plano Plurianual de 20042007 foi profundamente modificado, com a alteração de 347 dos seus 164 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves 382 programas. (LEHER, 2005). Embora sejam iniciativas muito recentes e, por isso, de conseqüências ainda pouco nítidas, algumas políticas em curso, como a criação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) e a indicação da criação de um piso salarial para o magistério, parecem promissoras. Contudo, será necessário ver seus desdobramentos para uma análise mais abrangente e ponderada de sua efetividade. Quando, em retrospectiva, se observa o quadro histórico da educação brasileira, chega a ser curioso o discurso da valorização da educação. Em termos percentuais, o que se destina a ela é o equivalente a cerca de 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB)1 do país, enquanto no PNE da Sociedade Brasileira (PL; 4.155/98)2 já se apontava que seriam necessários pelo menos 7%. Outros países em muito melhor situação que a nossa em relação ao sistema educacional investem proporcionalmente mais na educação, como é o caso da maioria dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto o Brasil investe cerca de 225 dólares americanos ao ano por aluno matriculado, a média dos países da OCDE é de US$ 3.320,00 para os alunos do primário e US$ 4.730,00 para os alunos do secundário3. A situação não é apenas contrastante, mas evidencia o lugar da educação pública nas prioridades dos países. No que tange à formação dos professores, particularmente a formação contínua e em exercício, algumas iniciativas vêm sendo implementadas. Com nomes diferentes, em diversos Estados (Horário Coletivo de Trabalho Pedagógico; Horas-atividade; etc.), os professores vêm conseguindo obter tempo remunerado em sua jornada de trabalho para pensar sua prática e planejar coletivamente. A efetividade desses espaços, contudo, está na dependência não apenas de sua existência formal, mas da política que rege os sistemas de ensino e do modo como esta se articula com as escolas, mas também das condições de trabalho que de fato oferecem ao professorado. Como aponta Pinto (2002), é preciso ter cautela com esses números no Brasil, pois eles podem sofrer variações e ser superestimados de acordo com o interesse meramente político-partidário. 2 O PNE da Sociedade Brasileira foi elaborado pelos educadores brasileiros e suas entidades representativas em atendimento ao artigo 87 da LDBEN 9394/96, que determina a elaboração de um plano nacional para a educação brasileira. O referido plano sofreu significativos vetos do então presidente Fernando Henrique Cardoso, destacadamente no aspecto do financiamento. Um aprofundamento dessa questão pode ser vista em Pinto (2002). 3 Dados provenientes de informações do MEC/INEP e OCDE, que podem ser encontrados em um amplo estudo do trabalho docente elaborado por Tardif & Lessard (2005). 1 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 165 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... Um exemplo é a rede estadual de Goiás, em que os professores cumprem uma carga semanal de trabalho variável de 40, 30, ou 20 horas semanais, tendo parte desta carga horária para o planejamento. No entanto, as horas semanais de trabalho não são cumpridas necessariamente no mesmo turno, e existe um número diferente de aulas para cada disciplina. Ademais, os professores, diante disto, são comumente empurrados a percorrer outras escolas para completar sua carga horária, em especial os professores que lecionam disciplinas com número menor de aulas semanais, como são os casos de Arte e Língua Estrangeira, geralmente com duas aulas semanais para cada turma. O resultado de tudo isso é um planejamento individual. Não existirão momentos capazes de integrar o coletivo da escola sistematicamente, porque os horários dos professores ficam dispersos em vários dias, turnos e escolas. Assim, diante dessas circunstâncias, a idéia de fortalecimento do coletivo de professores da escola se esfacela e os professores seguem em uma caminhada solitária. Outra medida relativa à formação de professores que vem sendo largamente posta em prática desde a promulgação da Lei 9394/96 é o oferecimento da Educação Superior aos docentes que não tiveram acesso a ela e que atuam nas redes estaduais e municipais. As redes de ensino estão para isso utilizando diversos meios e convênios com instituições de ensino superior. Em Goiás, criou-se a Licenciatura Plena Parcelada da Universidade Estadual de Goiás, e no Estado de São Paulo, o Programa de Educação Contínua Para Professores em Exercício. São iniciativas importantes para a qualidade da educação e para o desenvolvimento profissional dos professores, mas que precisam ainda de ter sua qualidade melhor avaliada. A desqualificação da escola começa muitas vezes na própria formação do professor, como apontaram Marin, Giovanni e Guarnieri. (2004, p.178). As referidas autoras comentam o caso de uma professora que utilizava com seus alunos uma brincadeira de adivinha (“adivinhe, adivinhe, por cima de uma linha, qual peixe do mar que não tem espinha?”), colhida no material de cursos para docentes em exercício de que ela havia participado e cuja resposta esperada dos alunos era “baleia”! Ainda no que tange à formação em exercício, é importante observar a emergência de um novo tecnicismo, veiculado através de programas de capacitação de docentes. Esse neotecnicismo encontra sua expressão mais transparente nos programas destinados a interferir rápida e pontualmente em determinada realidade. Um exemplo pode 166 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves ser visto na preparação dos professores para atuar no Projeto de Aceleração da Aprendizagem no Estado de Goiás. Tomando para exame a disciplina Educação Física, Alves (2003) constatou que a desconsideração pelos saberes dos professores atuantes no projeto foi tão grande que, embora eles tivessem toda uma formação inicial orientada numa vertente crítica da Educação Física, e, conseqüentemente, em uma concepção crítica de educação, o curso de formação para o trabalho no projeto de aceleração trazia uma formação orientada nas ciências biológicas, algo muito diferente da tradição de formação de professores de Educação Física no Estado de Goiás desde a década de 90. Desse modo, os professores foram literalmente tratados como executores das idéias concebidas por outros. Recipientes dos quais se insere ou se retira um conteúdo. As estatísticas, contudo, não deixam dúvidas sobre a positividade do projeto, ao apontar que mais de 90% dos alunos do programa são aprovados, um índice superior ao do ensino regular4. Aqui entra um aspecto importante: a criação de mecanismos sutis de exclusão em que os alunos são mantidos no interior da escola, diferentemente do passado, quando as camadas populares eram simplesmente expulsas. No Estado de São Paulo a implantação abrupta da progressão continuada e a lógica que a rege, como vem insistindo Freitas (2003), constitui um perverso mecanismo de criação de formas brandas de exclusão. É preciso examinar até que ponto esta espécie de iniciativa, cujo exemplo é a progressão continuada, altera de fato o metabolismo da instituição escolar. No entanto, para os fins deste texto, cabe destacar que as experiências desta natureza, ao interferir diretamente no fluxo do aluno ao longo dos anos de escolarização, tocam em coisas muito delicadas. Refiro-me aos elementos que criam motivadores para o trabalho do professor e do aluno na escola hoje, como é a avaliação e seu poder de sancionar o êxito ou o fracasso (obviamente um processo eivado de contradições), e a própria cultura escolar. É claro que mudanças são possíveis, mas elas não se fazem abruptamente e nem por decreto. Ora, tanto no caso do Estado de São Paulo como no do Estado de Goiás, vemos significativa preocupação dos governos com a melhoria dos índices de aprovação e com a correção da defasagem idade-série. 4 Dados disponíveis no sítio na internet da Secretaria de Educação do Estado de Goiás: www.goias.gov.br. Acesso em 23 de fevereiro de 2006. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 167 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... Essas preocupações podem mesmo ser sinal de procura (o desejo) de melhorias para a educação pública, mas é preciso questionar a forma e o conteúdo dessas supostas melhorias, principalmente em um contexto em que o Estado adquiriu novos contornos. O Estado auditor e performativo orienta as práticas no interior da escola a seguirem a direção indicada por projetos externos a ela. O cumprimento de acordos internacionais e a ingerência de agências internacionais (Banco Mundial, FMI, UNESCO) têm chegado às escolas. Eles são o pano de fundo da estipulação de metas expressas em índices de aprovação, desempenho dos alunos em testes cognitivos (como no caso do ENEM5 ou do SARESP6), com a conseqüente bonificação ou sanção das escolas, que pode ir da recompensa ao bloqueio de verbas e até mesmo ao ranqueamento, com a exposição pública das escolas. Nesse ponto é emblemático o caso do Estado de São Paulo, onde a secretária de educação, professora Rose Neubauer, ainda na primeira gestão do governo Alkimim, assinalou as escolas por cores (verde, azul e vermelho), de acordo com seus desempenhos no SARESP (o que causou à senhora secretária sérias dificuldades com os professores e sindicatos, sendo logo demovida da idéia). Tudo isso não deixa dúvidas da racionalidade em curso. Os professores são responsabilizados pela implantação das mudanças no ensino, pela sua qualidade e pelo seu fracasso. O discurso da responsabilidade (accountability) parece estar penetrando os espaços escolares e atingindo em cheio os professores. Performatividade e responsabilização talvez estejam se combinando na realidade brasileira, num quadro em que os docentes são estimulados a contribuir na confecção de estatísticas, tendo seu trabalho moldado e intensificado por elas. Outro aspecto importante a ser destacado diz respeito à lógica da desobrigação do Estado em relação a certas dimensões do trabalho docente. Tem sido freqüente o emprego de instituições privadas na formulação de programas ou estratégias de intervenção na área escolar. O caso citado anteriormente, do Programa de Aceleração da Aprendizagem de Goiás, é um exemplo. Nesse caso, a concepção do projeto para a formação dos professores foi deixada a cargo de uma instituição paulista que presta serviços educacionais, chamada CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitá5 6 168 Exame Nacional do Ensino Médio. Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves ria). Uma iniciativa que revela uma clara separação entre planejamento e execução no trabalho pedagógico escolar. Em relação ao Estado de São Paulo, o problema também existe. As escolas experimentais e os centros de planejamento curricular que no passado tinham papel de destaque na formulação de políticas orgânicas de formação docente foram desativados. O Estado se desobriga de possuir centros avançados no pensamento pedagógico e recorre a programas de formação obtidos em concorrência pública, por meio de licitações, e a instituições como o CENPEC. No âmbito dos municípios paulistas, a situação é mais grave. Cerca de 129 prefeituras, número que equivale a um quinto do total, estenderam a terceirização dos serviços públicos para além das áreas de coleta de lixo, pavimentação asfáltica, etc. e atingiram também o serviço educacional. Essas prefeituras pagam a sistemas particulares de ensino, como o COC, o Objetivo e o Anglo, pela formação dos professores, por apostilas e planejamento do ensino. (TÓFOLI, 2006). A precarização apontada aqui incide diretamente no trabalho do professor e no próprio sentido de ensinar. Sampaio & Marin (2004), a partir de dados de pesquisas da UNESCO, comentam que, questionados a respeito das finalidades mais importantes da educação escolar, 72% dos professores afirmaram que o mais importante é formar cidadãos conscientes, 60% disseram que é desenvolver a criticidade, e 8,9% apontaram que o mais importante é proporcionar aos alunos conhecimentos básicos. A transmissão de conhecimentos básicos é vista como o aspecto menos importante por mais de 20% dos professores! Diante disso, é preciso perguntar: Qual o sentido da instituição escolar? Qual a tarefa fundamental do professor? Na verdade, tudo indica que os professores estão repercutindo a pauperização da escola e parecem perceber que, diante da política educacional atual, ensinar talvez não seja o mais importante. Por último, cabe salientar que, se a precarização do ensino é preocupante, a ênfase na busca de resultados e a tomada do modelo de gestão das empresas como referência para a organização das escolas são dois de seus ingredientes que não podem ser esquecidos. O problema que resulta de se pensar o ensino a partir da busca de resultados e da adoção da lógica de gestão do mundo dos negócios é que as decisões e práticas educativas, intrinsecamente ligadas a valores humanos e eminentemente políticas, são reduzidas a decisões e práticas de natureza técnica. Assim se apresenta a concepção de gestão escolar Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 169 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... adotada nas escolas goianas conhecida por PDE7. O DIFÍCIL OFÍCIO DE ALUNO As mudanças aqui apontadas, no sentido de ser aluno na instituição escolar, não se relacionam tão somente a fenômenos endógenos à escola, mas também em mudanças que gravitam em torno da reconfiguração do Estado e das profundas transformações contemporâneas, especialmente as que ocorreram no mundo do trabalho. Diversos autores, como Hargreaves (1999), Ball (2004) e Smyth (1992), fornecem pistas do que vem ocorrendo em países como os Estados Unidos da América, o Canadá e a Austrália. É possível perceber aí um movimento de transformação na relação entre o Estado e o cidadão. O aluno e, conseqüentemente, os pais têm sido vistos muitas vezes não como sujeitos portadores de direitos, mas como clientes ou consumidores de serviços educacionais. A realidade brasileira, com todas as suas singularidades, não parece estar desconectada dessa nova agenda de questões posta à educação. A idéia da livre-escolha patrocinada pelo sistema de ranqueamento de escolas e a adoção de cores indicadoras de qualidade, como no Estado de São Paulo até recentemente, são algumas das iniciativas que, no nível da Educação Básica, trazem indícios de uma mudança de relação entre Estado e cidadão. Em relação às transformações no mundo trabalho, o quadro perverso criado por uma sociedade que nega o direito ao trabalho e, por derivação, a existência social dos indivíduos, tem sido um forte ingrediente das contradições contemporâneas. Neoliberalismo e novos arranjos no modo de produção se combinam para a formação de um quadro sombrio. Esse é o solo sobre o qual as crianças hoje crescem, experimentam a passagem pela adolescência e se tornam adulNo âmbito da gestão escolar, o projeto político-pedagógico que se orienta pelo modelo empresarial, o conhecido Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE), é um indutor da adoção do referido modelo de gestão da empresa no âmbito escolar. Esse modelo de gestão foi implementado em determinadas regiões do país (Norte, Nordeste e Centro-Oeste) e logrou forte penetração no Estado de Goiás. Separando, no âmbito da instituição escolar, grupos de planejamento e implementação, concepção e execução, fragmentando ações e estruturando um processo de racionalização das práticas, o PDE tecniciza o trabalho docente e aproxima a gestão da escola da gestão empresarial. O significado de tudo isto, contudo, pode ir além do que foi apontado aqui. Suas implicações na subjetividade do professor e na relação que este mantém com o trabalho precisam ainda ser melhor investigadas. É possível, como apontam, que aí estejam sendo moldados novos perfis profissionais, mais condizentes com os valores requeridos pelo mercado. 7 170 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves tas. É também, por extensão, o solo em que nossos alunos se tornam trabalhadores ou, não muito raramente, ‘procuradores de trabalho’. Nas paisagens que formamos em nossas mentes quando imaginamos uma grande indústria, a idéia de uma massa de pessoas e de fumaça saindo das chaminés é recorrente. Ora, não percebemos que teimamos em observar um mundo onde isso se torna cada vez mais raro. A grandeza de uma fábrica no passado estava no volume de sua produção e na quantidade dos operários que possuía; atualmente, ela está no volume da produção e na quantidade decrescente de operários utilizados. O trabalho é um dos elementos fundantes da humanidade e um importante meio através do qual a sociedade se organizou e se desenvolveu. Esse trabalho está hoje desfigurado. Vivemos em tempos de “Horror econômico”, para lembrar o título do belo livro de Viviane Forrester. Não se trata de eliminação e de não necessidade do trabalho humano para o processo de reprodução social, volto a enfatizar. O que está em curso é a redução dos postos de trabalho, com a precarização do trabalho, aspectos que remetem ao trabalho economicamente enquadrado e não à atividade humana em geral. Em síntese, diante das questões levantadas anteriormente, os alunos parecem estar hoje frente a uma situação nada confortável. Por um lado, eles se defrontam com a escassez do trabalho e sua precariedade, e por outro, são pressionados pelas novas exigências de qualificação. A gravidade disso aflora ao examinarmos o contexto de sua ocorrência, pois o mercado é particularmente perverso para os mais jovens. Dados da Organização Internacional do Trabalho (ILO, 2006) mostram que o desemprego no mundo voltou a aumentar em 2005 e que ele incide desigualmente sobre os jovens trabalhadores, com idades entre 15 e 24 anos, fazendo com que estes tenham proporcionalmente mais que duplicadas suas chances de não encontrar emprego8. Diante disto, as políticas públicas parecem pensar novas funções para a educação Especificamente sobre a situação dos trabalhadores no Brasil, pesquisas recentes (CARDOSO; COMIN; GUIMARÃES, 2006) revelam uma dramática situação: no setor petroquímico e automobilístico, no contexto de alta rotatividade dos contratados, o destino mais comum (por volta de 50%) dos trabalhadores demitidos é a informalidade. Daí podem ser retiradas pelo menos duas conseqüências: a primeira é que a exclusão em direção à informalidade degrada a qualificação do trabalhador: dez , quinze anos de empresa e agora esse saber acumulado pelo trabalhador não encontra quem o acolha, ou seja, sem a contrapartida de uma ocupação remunerada, o saber deixa de ser útil para o trabalhador em si e para a sociedade como um todo; a segunda se refere ao fato de que entrar no trabalho informal representa o ingresso em um mundo sem direitos sociais fundamentais provenientes do trabalho formal, como o amparo da legislação do trabalho, previdência, seguro e o pertencimento a um sindicato. 8 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 171 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... escolar. O estudo desenvolvido por Oliveira (2000) traz importantes elementos para a compreensão desta questão. Após uma ampla análise que envolveu a investigação da especificidade do contexto mineiro e o estudo das transformações contemporâneas e de iniciativas internacionais em favor da educação, Oliveira (2000) aponta a emergência de novas atribuições para a escola diante das enormes contradições sociais da atualidade. Para a referida autora, o movimento da política educacional no contexto do capitalismo contemporâneo para os países da América Latina vem sendo um modo de gerir o trabalho e a pobreza. A oferta de níveis básicos de escolaridade, mais precisamente, o Ensino Fundamental, vem sendo um meio de produzir uma mão de obra explorável ao capital e, ao mesmo tempo, propiciar empregabilidade aos trabalhadores. Para o aluno, adquirir níveis básicos escolaridade tornou-se uma espécie de passaporte para a vida. Esse conjunto de aspectos levantados permite sinalizar que as atribuições do aluno já não são as mesmas que no passado. Dele se espera muito mais que o ‘antigo’ êxito escolar. A aparente crescente imbricação entre as demandas do mercado e o que a escola faz parece corroborar isso. Tal fato fica claro quando, na seção interna de um jornal de grande circulação no país, o título da matéria diz: “Nota do ENEM, que acontece neste domingo, além de contribuir no processo seletivo de cerca de 400 instituições, pode ajudar na hora de obter emprego”; e na capa, o desenho de um jovem sorridente que, em uma das mãos, segura um diploma, e em outra, uma carteira de trabalho. (CADERNO FOVEST, 2005, p.1). Tudo isso em alusão à proposta do Ministério da Educação de constituir um banco de talentos, com base no desempenho do aluno no ENEM, para que as empresas possam selecionar seus empregados de acordo com as competências que elas requerem. Em verdade, trata-se da subordinação explícita da instituição escolar à lógica do mercado. A subordinação da educação escolar aos interesses do mundo dos negócios pode assumir diferentes formas. O exemplo citado aludido anteriormente é uma delas e o incentivo ao voluntariado é a outra. A promíscua relação entre educação e mercado parece estar em franca expansão, e até mesmo os corpos dos alunos não ficaram livres dela. Estou me referindo à recente iniciativa da prefeitura de São Paulo de buscar autorizar e incentivar que empresas patrocinem os uniformes escolares dos alunos da rede municipal de educação, colocando nos 172 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves uniformes o logotipo e o nome da empresa. Ora, a procura da iniciativa privada como patrocinadora da rede pública de ensino e a transformação da multidão de alunos e, dentro dela, de cada um deles, em ‘garoto propaganda oficial’ não é pouca coisa. Estamos assistindo à dissolução das fronteiras entre o espaço público e o mercado. A privatização nesses termos deixa de ser velada e se torna clara. Sem dúvida, esses são tempos difíceis de ser aluno. UMA SÍNTESE PROVISÓRIA Procurei apontar ao longo do texto aspectos da política educacional na atualidade, enfocando algumas de suas repercussões sobre o trabalho do professor e o ofício de aluno. Em relação ao professor, a idéia foi demonstrar a fragilidade do discurso de sua valorização, evidenciando as perspectivas que vêm orientando sua formação, em exercício e contínua, e também suas condições de trabalho. O quadro aqui se mostrou particularmente grave, o que torna difícil endossar a retórica da valorização dos profissionais do magistério. Como é possível dizer que a educação é uma das prioridades das políticas de governo quando existem professores submetidos aos extremos da indignidade profissional? Neste aspecto, o caso dos “professores eventuais” em São Paulo é paradigmático?9. No que se refere às mudanças no ofício de aluno, essas não são menos dramáticas. Frente à nova lógica do Estado e a privatização crescente do setor público, os alunos cada vez mais são vistos como clientes ou consumidores, o que já vem ocorrendo francamente em países do Norte, como a Inglaterra e os Estados Unidos. No caso brasileiro, a situação é também preocupante. Antes a questão estava circunscrita, pelo menos em sua face mais aparente, ao incentivo à participação de empresas e pais de alunos na manutenção da escola. Agora, no entanto, a amplitude e a profundidade da questão parecem ter aumentado, e Esses professores são como “trabalhadores casuais”; eles são chamados, eventualmente, para suprir a ausência de algum professor efetivo da escola e não entram, inclusive, na categoria de professores com contrato temporário de trabalho que lecionam anual ou semestralmente nas escolas. Os “professores eventuais” podem trabalhar em uma semana e em outra não, lecionar por alguns dias e em outros amargar a espera. Eles não possuem direitos trabalhistas, recebem pagamento por hora-aula e o aceno de que no próximo concurso público suas horas de trabalho somarão pontos no processo seletivo. Isto no Estado mais rico do país. 9 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 173 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... até o próprio corpo dos alunos se tornou objeto de disputa, o que transparece na discussão sobre a permissão de empresas estamparem seus logotipos e nomes nos uniformes escolares dos alunos da rede municipal da cidade de São Paulo10. Isto representa não somente uma ação do aparelho público em busca de conter gastos, como se poderia imaginar à primeira vista, mas também o assédio do mercado por sua incessante ampliação. Diante desse quadro, a educação adquire um sentido puramente instrumental e a qualidade social do ensino é posta em segundo plano. Estranhamente, opera-se a secundarização do trabalho educativo do professor. Mas por que essa incipiência? Qual o motivo da falta de substância da política educacional brasileira? Entre inúmeras variáveis intervenientes, Leher (2005) aponta algo que pode ajudar a entender o quadro que enfrentamos: “O projeto de nação ancorado no agronegócio, no setor financeiro e na exportação de commodities não requer um sistema de ensino de qualidade”. (LEHER, 2005, p. 54). Portanto, sendo esta a proposta para o Brasil, não é necessária muita coisa. Um arremedo de escola basta. As questões enfocadas nesse texto revelam o quanto ainda precisamos caminhar no sentido de termos uma educação pública de qualidade em nosso país. A distância entre os objetivos proclamados e os objetivos reais não é pequena, e ela fica patente na pauperização da escola e no deslocamento de sua função precípua: o ensino, o trabalho com o conhecimento. A qualidade do ensino realizado não parece ser uma preocupação real em considerável parte da política educacional brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizando, chamo a atenção para o fato de que o quadro delineado ao longo do texto, ao apresentar a imbricação entre as esferas pública e privada no contexto de algumas mutações na figura do Esta10 Inúmeros outros exemplos podem ser dados em relação à privatização da escola pública. O que importa aqui, todavia, é assinalar o processo pelo qual a privatização do espaço público chega e já não incomoda mais, tornando-se uma espécie de paisagem natural: em Goiânia, capital do Estado de Goiás, as pessoas que transitam pelas áreas centrais da cidade podem ver as escolas públicas da rede estadual de ensino ostentar em suas fachadas inúmeros outdoors com as mais diversas propagandas publicitárias. Em algumas dessas escolas a quantidade de outdoors é tão grande que é difícil perceber à primeira vista que ali existe um estabelecimento público, cuja atividade fundamental é o ensino. 174 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves do, traz indícios de um processo de mudança, ou pelo menos de uma tensão nessa direção, nos pilares que erigiram a profissão docente, especialmente em sua dimensão ética. Talvez estejamos frente à erosão desses pilares. A crença em sua atividade de ensino e a crença na escola são, como aponta Silva (2004), marcas que acompanham historicamente a profissão docente. No estudo desenvolvido pela referida autora, ao focalizar a educação escolar em Santa Catarina, São Paulo e Portugal ao final do século XIX e início do século XX, fica clara a percepção que os professores tinham a respeito da relevância social, valor, autonomia e dignidade de sua profissão. Os professores buscavam a melhor conduta possível, a atitude socialmente mais adequada frente ao cumprimento de sua tarefa educativa. Mesmo com o arsenal de dispositivos de controle dos corpos, do comportamento moral e da conduta política, os professores cunharam para si próprios uma autonomia que os dignificava e, embora sem desconsiderar o peso das políticas públicas, reivindicavam e declaravam como fundamental nesse processo sua própria atuação e a dignidade no desempenhar desta para eles sempre nobre tarefa, independente das condições em que a exerciam. Parece possível até que os professores seriam capazes de tolerar que o ensino continuasse atrasado e imperfeito, como chegou a afirma um deles, desde que isso não resultasse do trabalho da categoria, cuja conduta irrepreensível serviria de escudo a toda sorte de críticas. A conduta social daria legitimidade à profissão docente. (SILVA, 2004, p. 242). (grifos da autora). A hipótese que levanto aqui é que justamente essa relação do professor com seu trabalho, que constituiu um dos importantes sentidos da profissão docente, vem sendo abalada. O compromisso do professor com o cumprimento de sua “nobre tarefa” e seu compromisso com a tarefa formativa que lhe cabe frente aos alunos parecem estar sendo substituídos pela corrida para a melhoria de índices e dados estatísticos. O discurso da responsabilização (accountability) e a performatividade cobram aqui seus mais perversos efeitos. O desenrolar disso tem sérias conseqüências e implica, particularmente, em uma reorientação da ética que preside a prática educativa do professor. Ora, se o que rege as escolas é uma obcecada busca por resultados, a racionalização das práticas em nome da eficiência, o cumprimento de níveis Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 175 Quando ensinar não é o mais importante: reflexões sobre o trabalho docente... de desempenho e padrões e, se agregado a tudo isso, as escolas e seus agentes são incentivados por mecanismos diversos (modelos de gestão, esquemas de punição e recompensa, discursos) a perseguirem o modelo advindo do mercado, é possível que um dos pilares que formam o sentido histórico da profissão docente esteja ruindo. O trabalho docente com valor socialmente referido deforma-se por dentro e leva consigo laços e sentidos longamente constituídos. Laços e sentidos estes que no processo de socialização profissional permitiam um encontro comum entre os professores, mas que agora parecem se enfraquecer11. Nesse contexto, dizem Cribbs & Ball (2005), em que a racionalidade instrumental penetra fortemente no âmbito escolar, afetando diretamente a relação do professor com seu trabalho, uma questão precisa ser colocada: como é possível alguém criticar um professor que negligencia as necessidades particulares de alguns de seus alunos para se ater mais detidamente aos aspectos que contam nos índices e nas estatísticas indicadoras de desempenho? Esse professor está conscientemente agindo da melhor maneira possível, mas ele obedece à nova lógica imposta pela “re-engenharia” do sistema educacional. Enfim, temos aí sinais de profundas transformações na dimensão ética do trabalho docente. O aprofundamento dessa questão é tarefa para estudos posteriores. No entanto, cabe aqui o alerta para o fato de que a submissão da educação ao mercado e a privatização envolvem mais do que técnicas. Estas são tão somente a faceta mais visível de um processo em que novos perfis profissionais, disposições e determinadas condutas éticas também são forjadas e desejadas. REFERÊNCIAS ALVES, W. F. A formação continuada para os professores de educação física no contexto do projeto de aceleração da aprendizagem em Goiás. Inter-Ação, Revista da Faculdade de Educação da UFG, Goiás, v. 28, n.2, p. 205-217, jul./dez. 2003. O impacto disso é mais grave do que comumente se imagina. A atividade humana no trabalho, mesmo nas práticas tayloristas, é sempre espaço de arbitragens, de tomadas de decisão, tendo em vista articular o trabalho prescrito ao trabalho real. É lugar onde se faz escolhas, inclusive em relação ao investimento pessoal na atividade. O trabalho, como aponta Schwartz (1996), envolve relações e valores, e é por isso que insisto nos riscos de uma desfiguração da dimensão ética, principalmente pela especificidade das relações estabelecidas entre professores e alunos no trabalho educativo escolar. 11 176 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Wanderson Ferreira Alves BALL, S. J. Performatividade, privatização e o pós-Estado do Bem-Estar. Educação & Sociedade, v. 25, n. 89, p.1105-1126, set./dez. 2004. CARDOSO, A. M; COMIN, A, A; GUIMARÃES, N. A. Os deserdados da indústria: reestruturação produtiva e trajetórias intersetoriais de trabalhadores demitidos na indústria brasileira. In: HIRATA, H.; GUIMARÃES, N. A. (Org.). Desemprego: trajetórias, identidades e mobilizações. São Paulo: Editora Senac, 2006. p.85-102. CRIBBS, A.; BALL, S. J. Towards an ethical audit of the privatization of education. 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Encaminhado em: 16/03/07 Aceito em: 15/05/07 178 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 159-178, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas INTERDISCIPLINARIDADE: UMA NOVA ATITUDE DOCENTE INTERDISCIPLINARITY: A NEW TEACHING APPROACH Celia Maria HAAS* Resumo: Este estudo tem como proposição tentar compreender a interdisciplinaridade na prática docente a partir da experiência e dos embates cotidianos vividos na docência e gestão acadêmica da Educação Superior. Os procedimentos metodológicos que nortearam a investigação podem ser definidos como qualitativos, pois perscrutam uma realidade que não pode ser quantificada e responde a questões muito particulares, na tentativa de compreender em pormenor os significados e características situacionais apresentados pelo cotidiano da sala de aula, espaço que nem sempre se submete a medidas quantitativas e que, neste caso, não aceita reduzir-se à operacionalização de variáveis. A interdisciplinaridade aponta para um caminho de ação, do fazer, em que é possível integrar diferentes áreas, contribuindo para a leitura do mundo e de uma nova maneira de produzir conhecimento. Nesse sentido, o texto propõe discutir as seguintes questões: a) O que é interdisciplinaridade? b) existe uma teoria interdisciplinar? c) Quais as possibilidades da interdisciplinaridade na prática? Algumas categorias consideradas fundamentais para a prática interdisciplinar fornecem referências à questão e, partindo do significado da palavra, ampliam a interpretação do seu sentido. Por fim, conclui-se pela possibilidade de vivenciar a interdisciplinaridade, importando falar em * Pedagoga. Mestre em Educação: História, Política e Sociedade pela PUC-SP. Doutora em Educação: Currículo pela PUC-SP. Professora do Programa de Pós Graduação da Universidade Cidade de São Paulo. E-mail: [email protected] Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 179 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente práticas, não mais em prática. Desse modo, cumpre destacar o reconhecimento de que a prática interdisciplinar contribui para a docência comprometida com a qualidade do ensino. Portanto, o objetivo é mostrar que a interdisciplinaridade pode questionar não só as práticas tradicionais, mas também as inovadoras. Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Docência. Gestão Acadêmica. Prática Pedagógica. Educação Superior. Abstract: The aim of this study is to understand interdisciplinarity in teaching practice taking as a starting point the experience of teachers and classroom routines, as “lived” in schools and in academic management in higher education. The methodological procedures that guided the investigation can be defined as qualitative as they refer to a reality that can not be quantified and also as it answers very specific questions in an attempt to understand the detailed meanings and situational features present in classroom routine, a structure which not always can be measured, and that, in the present case, would not be a feasible object of study in terms of the operationalization of variables. Interdisciplinarity points to action, to integrating different intellectual fields that contribute to a view of the world and to a new form of producing knowledge. In this sense, the article aims to discuss the following questions: a) what is interdisciplinarity? b) is there an interdisciplinarity theory? c) in practice what are the possibilities for interdisciplinarity? Some categories are considered essential for an interdisciplinary practice as they provide reference to vital questions and, by drawing on different fields, improve the quality of educational practice. Finally, it is concluded that it is possible to experience interdisciplinarity in schools, which would result in a diversity of practices rather than a singular approach. Thus, it is important to highlight that an interdisciplinary practice contributes to teaching which is related to the quality of teaching. Therefore, this article aims to 180 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas demonstrate that interdisciplinarity can question not only the traditional practices but also innovative ones. Keywords: Interdisciplinarity. Teaching. Academic Management. Pedagogical Practice. Higher Education. INTRODUÇÃO Este texto é parte integrante do projeto de pesquisa Políticas Públicas de Educação: uma análise interdisciplinar das Instituições de Educação Superior, cujo objetivo é descrever e compreender a construção dos projetos pedagógicos institucionais das universidades particulares, resultado de intensas discussões internas entre as exigências das políticas públicas de educação, cultura organizacional, desejos e expectativas do mantenedor e os propósitos e compromissos dos gestores acadêmicos que administram a universidade. Ao dar andamento a esta investigação, constatamos a queixa recorrente dos gestores de uma grande universidade de não haver comprometimento do corpo docente na preparação das aulas, o que explicaria a pouca qualidade da atuação desses professores. Ao voltar nosso olhar para a atuação docente, consideramos importante adentrar o espaço da sala de aula e, ao fazê-lo, resgatar – pela memória de nossa história pessoal – as etapas percorridas para elaborar o que chamamos de docência interdisciplinar. Assim, as questões propostas surgem do enfrentamento, cada vez mais freqüente, das expectativas dos “novos” alunos, hoje muito pouco preparados para o ensino superior, a que se somam a tentativa de dar conta de classes com dissonâncias evidentes, a necessidade de os professores reconhecerem o cenário político educacional e mais a contínua pressão de “sucesso” a que as instituições universitárias os submetem. A descrição da sala de aula permitiu contextualizar o problema de pesquisa para identificar aí mesmo as possibilidades de uma docência interdisciplinar, razão por que nos detivemos na descrição da prática docente e aceitamos o desafio das perplexidades do cotidiano. Para avançar na reflexão sobre o que fazer e de que forma fazêlo, procurando ao mesmo tempo compreender as atitudes docentes permeadas pelo pensamento interdisciplinar, recorremos à teoria dos Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 181 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente autores que mais se debruçaram sobre a questão: Fazenda, Lenoir e Haas. Os procedimentos metodológicos que nortearam esta investigação podem ser definidos como qualitativos, pois que perscrutam uma realidade não possível de qualificação e respondem a questões muito particulares para compreender em pormenor os significados e características situacionais apresentados pelo cotidiano da sala de aula – espaço que nem sempre se submete a medidas quantitativas e que, para o nosso caso, não pode reduzir-se à operacionalização de variáveis. O estudo propõe, portanto, compreender a interdisciplinaridade na prática docente a partir da experiência dos embates cotidianos vividos na docência e gestão acadêmica da Educação Superior. Acreditamos que a interdisciplinaridade pode colaborar na construção de novas ações pedagógicas e compartilhamos com satisfação e esperança as reflexões que elaboramos no percurso de nossas investigações.. Começaremos por mostrar a abordagem de interdisciplinaridade que adotamos. Em virtude de estarmos comprometidos com a gestão de Instituições de Educação Superior Particular, ou seja, com a ação gestora, nossa atenção se concentra sobretudo no atendimento às exigências do dia-a-dia e, ao mesmo tempo, em dar espaço para realizar os propósitos que nos mantêm motivados, as propostas pedagógicas institucionais. Dessa óptica, nossa abordagem privilegia o exame das possibilidades das práticas do fazer interdisciplinar na docência, além de tentar responder às seguintes questões: a) O que é interdisciplinaridade? b) Existe uma teoria interdisciplinar? c) Quais as possibilidades da interdisciplinaridade na prática? REFLEXÕES A RESPEITO DE INTERDISCIPLINARIDADE E DOCÊNCIA Gostaríamos de começar com algumas palavras de caráter mais geral acerca da condição do professor e das dificuldades que consideramos relevantes no exercício dessa atividade. Como é ser professor? Há uma dimensão da docência que certamente gera grande satisfação: nossa responsabilidade pelo nosso crescimento e o dos alunos; a descoberta do conhecimento; nosso reconhecimento coletivo e a concomitante criação da possibilidade de apropriar-nos do que é socialmente produzido, além da descoberta de que somos os produtores desse conhecimento e de que entramos em contato 182 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas com o inesgotável saber humano. Na dinâmica do ato de conhecer, de apropriar-nos de conhecimentos ou de adquiri-los, deparamo-nos com a possibilidade de identificar a universalidade do saber. Dessa forma, conhecer e reconhecer a caminhada da humanidade e perceber parte dela aumenta a possibilidade de agirmos conscientemente no mundo e nos torna responsáveis pelo fazer e pelo não-fazer. É apaixonante transmitir aos alunos em sala de aula a importância de aprender e conhecer, sentindo que somos plenamente capazes disso. No entanto, os obstáculos do percurso são freqüentes e difíceis de transpor. Eles envolvem regras estabelecidas para o controle do que é ensinado e para o modo como é ensinado, sendo tão variados que, por vezes, comprometem o andamento das pesquisas, embora o superá-los nos autorize a abandonar pontos de vista convencionais e a mera reprodução do já sabido. Os conteúdos específicos das disciplinas são mais ou menos os mesmos em todos os programas. Existem diversas publicações e, para qualquer aluno interessado, há farto material bibliográfico à disposição. Dentro desse universo, contudo, ainda constitui um desafio saber o que privilegiar em sala de aula no pouco tempo de que se dispõe. A carga horária de cada disciplina varia de escola para escola, sendo a média de duas a quatro horas-aulas semanais, em um ou dois anos, nas diferentes combinações que a definição das grades curriculares permite. Esse tempo, disciplinarmente organizado, é quase nada diante do que há para assimilar em cada área de conhecimento. Importa ainda considerar que todo o planejamento é feito por disciplina, cada qual dentro do conteúdo que supõe estudar. A essas dificuldades se acresce o desconhecimento total dos professores a respeito do projeto pedagógico do curso em questão. Cada curso tem o objetivo de formar o quê?, quem?, para quê? Por meio de que crenças, filosofias e pressupostos cada proposta se sustenta? Evidentemente, são questões que envolvem um grau significativo de dificuldade e, como se não bastasse, cumpre ainda levar em conta o fato de que os professores das diferentes disciplinas que compõem o currículo do curso desconhecem o objeto de estudo das outras disciplinas, o que amiúde gera a falsa idéia de que é impossível alcançar unidade de conhecimento, de que a fragmentação disciplinar é uma realidade insuperável. Será que todas as dificuldades já foram rastreadas? É claro que Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 183 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente não, sobretudo no que concerne às apresentadas pelas instituições, centro para o qual convergem nossas argüições. Talvez a dificuldade que mais causa empecilhos seja não haver reuniões programadas e regulares com os professores. Não há remuneração para trabalhos de pesquisa, tampouco para atividades fora da restrita hora-aula, o que invariavelmente significa que o professor recebe apenas pela hora especificamente ocupada em sala de aula. Exige-se ainda a aplicação de provas, estabelecidas pelo calendário escolar, sem possibilidade de pensar no processo avaliativo em conjunto com outros docentes e com os alunos. Além disso, o diário de classe, documento em que se registram as aulas ministradas e os conteúdos tratados, precisa estar sempre em ordem, e na maioria das instituições até hoje o preenchimento é manuscrito, o que consome um tempo precioso numa atividade que nada tem de pedagógico. Além disso, não podemos deixar de mencionar, pela falta de sistemas informatizados adequados, a contínua necessidade de acertos das notas dos alunos, outra responsabilidade exclusiva dos professores. Uma outra dificuldade vivida pelos professores diz respeito às bibliotecas, que muitas vezes se encontram desfalcadas dos livros necessários para a leitura e complementação dos assuntos e conteúdos tratados nas diferentes disciplinas da grade curricular; outra, ainda, envolve salas de aula sem condições de trabalho – quentes, com carteiras quebradas, lousas inadequadas, sem equipamentos de multimídia – vídeo, retroprojetor, microcomputador e outros – que facilitem, ampliem e melhorem as condições de aula. Isso para não falar de dificuldades cotidianas de caráter pedagógico, que levam o profissional às seguintes indagações: Como trabalhar o conhecimento sistematizado? O que devo privilegiar? Qual a necessidade do grupo? Para que serve o que vamos escolher? A que propósitos atende? Por outro lado, importa ter presente que os alunos sabem sobre muitas coisas e têm, na maioria das vezes, experiência de trabalho e de vida. Não trabalhamos, portanto, com tábulas rasas, nem mesmo no que se refere às disciplinas propostas nas matrizes curriculares dos cursos da educação superior. As dúvidas, porém, persistem: O que significa transmissão de conhecimento? E produção de conhecimento? Se os conteúdos já estão escritos, então basta divulgá-los? Se assim é, por que a disciplina consta da matriz curricular e exige professor? Não seria mais fácil distribuir 184 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas uma lista de leitura aos alunos e exigir depois, em prova escrita, o que foi aprendido? Então, o caminho parece o da produção de conhecimento. Por outro lado, produzir o quê, se trabalhamos a partir do já escrito? A produção do conhecimento em sala de aula parece materializar-se quando o conjunto dos alunos estabelece uma relação de diálogo com o professor, e na maioria das vezes essa interação depende de como age o professor. Assim, para produzir conhecimento, precisamos contar com o coletivo da sala de aula (todos os alunos), porque é só com o trabalho de todos que podemos avançar. Ademais, a atuação docente exige que o professor conheça o conteúdo, que saiba, a cada etapa de trabalho, garantir seu fechamento, fazendo a revisão do que foi levantado, apontando lacunas, integrando conceitos, organizando pensamentos e preparando novas etapas de trabalho. É, então, inviável qualquer iniciativa que procure mudar essa situação e crie um trabalho interdisciplinar? Sim e não. Sim, se partirmos do pressuposto de que a interdisciplinaridade é uma atitude do professor, uma atitude de responsabilidade, de compromisso com a formação de seus alunos; não, se entendermos que mudar esse estado geral exige bem mais do que a atuação do professor em sala de aula, por melhor que este seja. É o momento certo de retomar a primeira questão: O que é interdisciplinaridade? O primeiro passo será entender o significado do termo interdisciplinaridade ou, segundo Assumpção (1991), tentar compreender o fenômeno a que se relaciona. Interdisciplinaridade é palavra de origem latina, formada pela composição do prefixo inter, do substantivo disciplina e do sufixo -(i)dade. Inter, prefixo latino, indica posição ou ação intermediária, reciprocidade, interação. Entende-se, pois, interação como a ação realizada a partir de duas ou mais pessoas, mostrando-se, portanto, na relação sujeito-objeto e, principalmente, na relação entre sujeitos. A interação diz respeito ao trabalho compartilhado, em que existem trocas e influências recíprocas. -Dade (ou - idade), sufixo latino, tem a função de substantivar alguns adjetivos, atribuindo-lhes noção de qualidade, estado ou, ainda, modo de ser. Disciplina corresponde a epistemé – o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas – e Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 185 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance dos objetivos dessas ciências, embora também possa caracterizar-se como a ordem que convém ao funcionamento de uma organização ou o regime de ordem imposta ou livremente consentida. Assim, são dois os sentidos fundamentais da disciplina: um que se refere a uma área de conhecimento, com estatuto próprio e fronteiras bem delimitadas; e outro que diz respeito a um comportamento, uma atitude, um modo de agir, quer no plano particular ou coletivo. Para Assumpção (1991), a interdisciplinaridade nomeia um encontro que pode ocorrer entre seres – inter –, em um certo fazer – dade –, a partir da direcionalidade da consciência, pretendendo compreender o objeto, com ele relacionar-se e comunicar-se. Ferreira (1986) ensina que a prática pode ser um saber provindo da experiência, uma técnica, por exemplo, mas que também é a aplicação da teoria manifestada no discurso, na conversação, isto é, no ato de manter a comunicação. Portanto, estamos aqui definindo prática como comunicação; trata-se tão-só de estabelecer contato, trocar, colaborar, construir. Com isso, podemos verificar que tanto a prática como a interdisciplinaridade tem em comum a comunicação, indicação importante para quem quiser aventurar-se no mundo conceitual e prático da interdisciplinaridade. Cumpre considerar, na prática docente interdisciplinar, a importância da comunicação, da fala, da troca de conhecimentos e de experiências. Compreendemos então que a prática interdisciplinar é aquela que passa da ação exercida à elaboração teórica, sempre realizada, praticada e proferida. Logo, a concepção interdisciplinar que sustenta a ação educativa traz em si uma intencionalidade: propiciar os exercícios investigativo, reflexivo e comunicativo do ato pedagógico, do ato de ser professor. Merece menção um primeiro conceito de interdisciplinaridade, elaborado em 1985 para um colóquio internacional organizado pela UNESCO, com o tema “La interdisciplinaried en la enseñanza general, segundo o qual, […] dado que el concepto de interdisciplinariedad se sitúa en el plano espistemológico, puede considerarse que se refiere a la cooperación de las disciplinas diversas, que contribuyen a una realización común y que, mediante su asociación, contribuyen a hacer surgir y progresar nuevos conocimentos. (UNESCO, 1986, p. 5). 186 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas Reconhecemos que o princípio de uma ação interdisciplinar exige um propósito, um objetivo, um projeto. A interdisciplinaridade pede uma opção e uma escolha, com vistas à cooperação, à associação e comunicação entre as disciplinas e as pessoas. Com isso em mente, vem à baila a segunda questão: b) Existe uma teoria interdisciplinar? Sabemos que são muitas as teorias que sustentam as práticas pedagógicas e temos também o conceito de interdisciplinaridade, definida por ações realizadas, experiências vividas. Desse ângulo, interdisciplinaridade é, segundo Pereira (1998, p. 14), “uma estratégia de trabalho que recupera ao sujeito a possibilidade de assumir a gestão de si mesmo, de auto-referenciar-se, como forma de produzir, a cada vez, o novo, o outro, o diferente, o nunca sido de si mesmo”. Assim, não podemos falar em uma teoria interdisciplinar, mas em práticas do trabalho interdisciplinar. Isso remete à nossa terceira questão: c) Quais as possibilidades da interdisciplinaridade na prática? As possibilidades na prática são inúmeras, pois que são infinitas as possibilidades do homem quanto a criar alternativas para viver, para aprender e ensinar. Nas investigações que conduzimos para reconhecer as práticas interdisciplinares, identificamos as principais categorias indicativas de caminhos para a sua realização. Necessário se faz que retornemos à sala de aula. Nela estão presentes dois momentos: o da transmissão e o da produção do conhecimento. A transmissão se caracteriza pela leitura do escrito, para reconhecer como o conhecimento está registrado, no tempo, e como se deu sua constituição. O momento seguinte é a produção, quando alunos e professores partem do conhecido para escrever um novo saber. Podemos assegurar que tal reconstrução é a produção de conhecimento possível no espaço da sala de aula: são os alunos apropriando-se do conhecimento e reelaborando-o na prática. Descobrimos, assim, que, para transformar o momento da transmissão em construção de conhecimento, é necessário sermos sujeitos da nossa aprendizagem, aqueles que querem conhecer e que têm em comum uma atitude de comprometimento com a elaboração do saber vivenciado em sala de aula. Para tanto, precisamos recorrer às qualidades da ação, do fazer, da reflexão crítica, da curiosidade, da dúvida, da angústia do desconhecer, do rigor na busca de informações, da hesitação do descobrir novos espaços, para colocarmos nossos novos saberes em ação. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 187 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente Importa também considerar que a prática docente interdisciplinar mobiliza o professor no que concerne a preocupar-se com a produção do conhecimento e enseja uma atitude comprometida com o debate, com hipóteses divergentes, com a dúvida, com o confronto de idéias, de informações discordantes, de oposição, de ambigüidades, da paixão pela busca de informações novas e mais exatas. A prática pedagógica interdisciplinar se constrói a partir do enfrentamento das contradições apresentadas diariamente pelas exigências reais e concretas dos alunos e do embate disso com nossos valores, crenças e cultura. Por isso, a identidade é uma categoria de fundamental importância para as construções de projetos interdisciplinares, o que explica e reafirma a importância da história de vida para o nosso trabalho. As nossas histórias de vida são sempre ótimo ponto de partida para a construção da docência interdisciplinar, uma vez que nelas encontramos nossos valores e compromissos. Reconhecer quem somos, de que lugar falamos e por que falamos faz com que, ao recuperar cada trajetória, ampliemos a consciência de nossas escolhas e dos caminhos percorridos para sermos quem somos. Entrar em contato com nossas histórias nos dá um sentido de inteireza e de consistência e, sem dúvida, as transformações muitas vezes ultrapassam as dimensões cognitivas e chegam, na maior parte dos casos, à dimensão existencial. A comunicação é diferente das categorias indispensáveis da interdisciplinaridade, visto que, ao estabelecer claramente as regras do bem-viver em sala de aula, por exemplo, e confirmá-las continuamente com a prática docente, entendemos sua importância. Outra categoria indispensável à prática interdisciplinar é a coerência. Japiassu (apud Fazenda, 1991, p.36) afirma que “seus alunos a perdoarão [Ivani Fazenda] facilmente por ser às vezes demasiado utópica. O que não lhe perdoarão é a contradição entre o pensamento, a palavra e os atos”. A coerência do professor é demonstrada na unidade entre discurso e ação. Não é possível ser professor se a fala e as ações se negam mutuamente. A coerência deve manifestar-se na unidade do discurso e confirmar-se nas atitudes. O professor com uma prática interdisciplinar explicita cotidianamente na ação pedagógica pelo exemplo da coerência, na unidade da fala e do ato, no comprometimento com o conhecimento a ser produzido em sala de aula e com a apropriação deste pelos 188 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas alunos, objetivando formar o cidadão e prepará-lo para uma ação consciente no mundo. A categoria maior é a humildade, difícil de compreender e ainda mais difícil de exercitar. Por isso, Fazenda reafirma inúmeras vezes que “a interdisciplinaridade não se ensina, nem se aprende, apenas vive-se, exerce-se e, por isso, exige uma nova Pedagogia, a da comunicação”. (1979, p. 8). Já afirmamos, entretanto, em diversas ocasiões, o oposto disso, dado que, a partir de nossos trabalhos e investigações, entendemos que a interdisciplinaridade é uma escolha, uma opção, um projeto e, por isso, tentamos ensiná-la. Nesse sentido, ela precisa de um líder, de um proponente. Acreditamos que ela pode ser aprendida, mas, por sua própria característica, deve ser vivida na prática, e sempre com um sentido coletivo. Como a interdisciplinaridade se dá na construção coletiva, é preciso, principalmente a quem lidera este projeto, ter paciência e reconhecer qual o tempo necessário para o florescimento da consciência interdisciplinar. Além das condições já mencionadas para a prática interdisciplinar, acrescentamos algumas outras. A espera – condição necessária para os projetos interdisciplinares – exige do professor a atitude de dar, aos alunos e a si próprio, o tempo necessário para a aprendizagem significativa. Uma espera ativa e criativa, que oferece alternativas para os alunos acreditarem que são capazes de assumir o esforço necessário nessa caminhada. Vale destacar que os projetos interdisciplinares se concretizam coletivamente, mas podem e têm sido, muitas vezes, desencadeados por proposições pessoais de um professor que opta por fazer de sua sala de aula um universo interdisciplinar. Apontamos também a erudição como característica da interdisciplinaridade, pois é preciso saber muito, ter gosto pela leitura, pela pesquisa e pela busca de mais e melhores conhecimentos, o que conduz forçosamente a outra exigência interdisciplinar: a dúvida. Experimentar a dúvida ensina-nos a reconhecer que as certezas impedem a escuta sensível da interdisciplinaridade. Temos experimentado freqüentemente e recomendamos com insistência que, quando se sentir plenamente certo de algo, o professor deve “desconfiar” dessa certeza e procurar outra resposta, outro caminho possível de resolução. Duvidar não é desconhecer, mas explorar novas possibilidades do saber. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 189 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente Podemos, pois, falar em interdisciplinaridade como uma integração de disciplinas, mas sem nos limitarmos a ela. Após a integração, precisamos do movimento seguinte, a interação, na qual vivemos a prática dialógica, atitude interdisciplinar que cria zonas de interseção entre as disciplinas, entre as pessoas, entre o que se sabe de si mesmo e o que não se sabe. A partir daí, ampliamos as fronteiras e nos tornamos capazes de produzir conhecimentos, resultado inexeqüível se nos limitarmos a uma única disciplina. É preciso compreender que a interdisciplinaridade parte da disciplina e reconhece, em cada uma, um olhar ao mundo, em perspectiva particular. Identificamos a especificidade das diferentes áreas de conhecimento e verificamos que cada uma delas, sozinha, não consegue explicar o homem e o mundo. A interdisciplinaridade, no entanto, aponta um caminho de ação, do fazer, em que a integração das áreas se torna possível na leitura do mundo e na produção do conhecimento. Assim, nossas necessidades atuais e o desafio apresentado pela sala de aula conduzem à seleção dos conteúdos das disciplinas, mostrando, a nós e a nossos alunos, que estamos fazendo um recorte proposital daquela área de conhecimento. É indispensável indicar a complexidade e a dimensão do conhecimento, instigando o aluno e a nós mesmos a um pensamento e a uma atitude interdisciplinar, ou seja, uma compreensão das possibilidades da unidade do conhecimento. Nesse exercício, experimentamos intensamente um dos fundamentos da atitude interdisciplinar: vivenciar a formação a partir da revisão do velho, a fim de torná-lo novo. O professor comprometido com a prática interdisciplinar prepara os alunos contra os perigos da cultura fragmentada, ampliando a compreensão dos problemas, contextualizando-os na sociedade de modo a revelar a conexão entre fenômenos aparentemente desvinculados. Superar a fragmentação da disciplina escolar amplia as possibilidades de construir uma identidade mais integrada e assegura uma formação de maior qualidade. Finalmente, para responder à terceira questão proposta, a respeito de quais são as possibilidades da interdisciplinaridade na prática, declaramos ter experimentado, em diferentes espaços e tempos, a construção de práticas interdisciplinares e nelas identificamos as possibilidades de transformação da ação docente. 190 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Celia Maria Haas CONCLUSÃO A prática docente interdisciplinar permite questionar as práticas tradicionais e, ao mesmo tempo, questionar também as consideradas inovadoras. Assim, a tensão entre o velho e o novo pode ser o espaço para que as práticas interdisciplinares contribuam com a redefinição do conceito de disciplina e ampliem o diálogo entre si. Por outro lado, é necessária atenção constante para não sucumbir à tentação de acreditar que a interdisciplinaridade assegura ao professor lugar de destaque, elevando-o acima da organização disciplinar na educação escolar, atitude que negaria as possibilidades de uma ação pedagógica interdisciplinar – resultado do diálogo entre as diferentes disciplinas escolares – e inviabilizaria, portanto, a construção do conhecimento nessa perspectiva. Acreditamos que uma das possibilidades para as práticas pedagógicas interdisciplinares nessas ações consiste em rever o velho e, tornando-o novo, contribuir com a interação entre disciplinas, pessoas e instituições. Para Lenoir (2005, p.6), [...] a interdisciplinaridade encontrará terreno na interação entre as disciplinas, na relação entre produção, existência e difusão do “saber disciplinar”, ao mesmo tempo em que ocorre um questionamento interdisciplinar e faz ressurgir o elo indissociável entre a produção do saber e a formação de membros sociais. Reconhecemos, enfim, que há possibilidades de vivenciar na prática a interdisciplinaridade, mas reconhecemos também que é preciso falar em práticas e nunca em uma prática, pois a interdisciplinaridade se mostra de diferentes maneiras e em inúmeras possibilidades de atuação docente. Ora integramos conteúdos, ora integramos espaços, tempos ou integramos a construção de conhecimento, ampliando, assim, nossa visão sobre a escola, sobre a docência, sobre nossos alunos e até sobre a comunidade na qual a instituição escolar se insere. Consideramos, por conseguinte, fundamental entender que, pelos muitos sentidos que interdisciplinaridade engloba, resultam igualmente outras tantas práticas construídas em nossas ações educativas elaboradas a cada dia. É igualmente importante acrescentar que acreditamos em um trabalho docente interdisciplinar como estratégia para assegurar a Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 191 Interdisciplinaridade: uma nova atitude docente qualidade de ensino com vistas à tão sonhada educação cidadã. A importância da atitude interdisciplinar pode ser constatada pela ousadia na busca de novas soluções, da transformação das práticas docentes, da pesquisa e da construção dos projetos fundamentados na participação de todos, que levem o grupo a rever suas crenças a respeito da educação, da escola, do papel do professor e do papel dos alunos: [...] a interdisciplinaridade impõe um novo relacionamento entre professor e aluno. O professor não é mais aquele que transmite conhecimento ao aluno, mas é aquele que auxilia o aluno a descobrir, a construir e a se apropriar dos conhecimentos necessários para uma ação consciente no mundo. (HAAS, 1996, p.57). REFERÊNCIAS ASSUMPÇÃO, I. Interdisciplinaridade: uma tentativa de compreensão do fenômeno. In: FAZENDA, I. (Org). Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1991. DUARTE, R. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o campo de trabalho. FCC: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 115, p. 139-154, mar. 2002. BOGDAN, R.; BIKLEN, S. 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Revista E-Currículum, São Paulo, v.1, n.1, 2005, Disponível em: http://www.pucsp.br/ecurriculum. Acesso em: 23 nov. 2005. (23 nov. 2005). Encaminhado em: 03/07 Aceito em: 05/07 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 179-193, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 193 Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima A FAMÍLIA DO EDUCANDO COM DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM: UM ESTUDO DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS1 THE FAMILY OF THE STUDENT WITH LEARNING DIFFICULTIES: A STUDY OF SOCIAL REPRESENTATIONS2 Fátima Aparecida Maglio COLUS* Rita de Cássia Pereira LIMA ** Resumo: A idéia de desenvolver este trabalho surgiu em decorrência da necessidade de se compreender como e por que a família vem sendo apontada nos últimos anos como responsável pelo desempenho insatisfatório de alunos com dificuldades de aprendizagem no âmbito escolar. Supõe-se que estudar a família neste ângulo, apreender as interações sociais, conflitivas ou harmoniosas, entre a instituição escolar e a familiar, é relevante, pois ambas coexistem numa relação de interdependência que interferirá, mesmo indiretamente, na aprendizagem do educando. Realiza-se o presente estudo com o objetivo de analisar as representações sociais de professores sobre a família de alunos com dificuldades de aprendizagem. A pesquisa fundamentou-se no referencial da Teoria da Representação Social (TRS), inaugurada por Serge Moscovici, em 1961. Os participantes foram 13 professores de Ribeirão Preto (SP) do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série), cursistas do Programa Letra e Vida, curso de formação Em sua forma original, parte deste trabalho foi apresentado no Congresso Internacional em Educação Escolar da FCL/AR UNESP, na Categoria Comunicação Oral, 14 a 17 de Agosto de 2006. 2 Part of these study was presented in its original form in the International Congress in Pertaining to school Education of FCL/AR UNESP, in the Category Verbal communication, 14 the 17 of August of 2006. * Graduada em Letras. Mestre em Educação pelo Centro Universitário Moura Lacerda. Professora do Ensino Fundamental na Rede Pública do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected] ** Doutora em Educação pela Université René Descartes - Paris V, Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)-Mestrado e do Curso de Pedagogia do Centro Universitário Moura Lacerda (CUML). E-mail: [email protected] 1 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor> 195 A família do educando com dificuldade de aprendizagem... de professores alfabetizadores promovido pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEE/SP). Para a coleta de dados utilizaram-se questionários e entrevistas semiestruturadas, que foram transcritas e submetidas a análise de conteúdo. Os resultados apontaram uma representação da família “ideal”, não condizente com a “real”, aquela que interage com o cotidiano escolar. Para os participantes, a família “real” não tem condições de dar apoio, atenção e afeto a esses educandos. As representações sociais dos professores sobre a família de alunos com dificuldades de aprendizagem revelam que o desempenho escolar insatisfatório do educando é causado pela família, que não acompanha as tarefas escolares. A escola é eximida da responsabilidade. Palavras-chave: Família. Dificuldades de aprendizagem. Representação social. Abstract: The idea of developing this paper arose from the need to understand how and why the family is acknowledged as responsible for the unsatisfactory performance of students with learning difficulties at school in the last few years. It is important to study the family from this angle, and it is relevant to understand the harmonious or conflictive social interactions between the school and family, because both coexist in a relationship of interdependence which will interfere even indirectly in students´ learning experience. Therefore, the aim of this paper is to analyze the social representation of teachers about the family of students with learning difficulties. This research was based on the Social Representation Theory developed by Serge Moscovici in 1961. Thirteen public school teachers from Ribeirao Preto participated in this study, all of which took part at the “Programa Letra e Vida”, a program promoted by Secretaria Estadual de Educação de Sao Paulo (SEE/SP) that prepares teachers to teach reading and writing. The data was collected by means of a questionnaire and a semi-structured interview that was transcribed and submitted to content analysis. The results showed an “ideal” family representation not corresponding 196 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima to the “real” one, which interacts with the school daily routine. For the participants, the “real” family is not able to support and give attention to the students. The social representation of the teachers about the students’ families shows that the unsatisfactory performance of the students at school is caused by the family that does not keep up with the school tasks. The school is, therefore, exempt from any responsibility. Keywords: Family. Learning difficulties. Social representation. A INSTITUIÇÃO FAMILIAR: COMPLEXIDADE E DESAFIOS Através deste estudo, pretende-se verificar as representações construídas pelos professores sobre a família de educandos com dificuldade de aprendizagem no âmbito escolar. Estudar a família é algo complexo, pois não só envolve valores e atitudes, como também um modelo normativo construído por cada indivíduo. Este modelo elaborado pelo homem é histórico e preso às perspectivas diferentes das classes sociais. (MELLO, 2005). A família recebe a influência do tempo presente, sendo marcada pelas transformações sociais, econômicas e políticas. É na convivência familiar que valores, atitudes e concepções são forjadas. Atualmente, há diversos modelos de núcleos familiares presentes no cotidiano escolar, com algumas mudanças sociais, como o aumento do número de pais e mães solteiros e/ou separados, casais morando sob o mesmo teto sem a oficialização do casamento, adoções individuais e famílias homossexuais, com reflexos na estrutura e no modelo de família até então considerado na sociedade como “normal”. Para Silva (2005, p.101): “A família atual se organiza de forma a renunciar o individualismo patriarcal para contextualizar outros padrões e comportamentos que são sentidos como legítimos e verdadeiros”. Paralelamente, outras mudanças sociais desencadearam uma reestruturação familiar, por causa da alteração dos papéis desempenhados pelos indivíduos na sociedade. Exemplos desta colocação foram a inserção da mulher no mercado de trabalho e o desempenho, pelo homem, de atividades que eram prioritárias da mulher como leOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor> 197 A família do educando com dificuldade de aprendizagem... var a criança à escola, dialogar com os filhos e com o professor quando solicitado, entre outras. Em face disso, pode-se dizer que a família reflete a cultura na qual está inserida, não podendo ser apontada como uma entidade isolada. Tanto a família como a escola são vistas como instituições marcantes, com peculiaridades distintas na sociedade. O elo de semelhança entre elas é que as duas não são estáticas e definidas, ou seja, são instituições que evoluem e se transformam de acordo com as conjunturas socioeconômicas e culturais. Segundo Bourdieu (2004), a família é quem delega ao indivíduo o patrimônio cultural e econômico que é reforçado pela escola: “É, enfim, a lógica própria de um sistema que tem como função objetiva conservar os valores que fundamentam a ordem social”. (BOURDIEU, 2004, p.56). Carvalho (2000) chama atenção ao fato de que a cobrança dos pais na gestão da escola pública brasileira é conseqüência da política educacional recente, de caráter neoliberal. Ela considera que este tipo de política desencadeia dois efeitos perversos: converte as diferenças de capital (social, econômico e cultural) em resultados educacionais desiguais e penaliza a família, principalmente a mãe, pelo fracasso escolar do filho. O número de alunos com dificuldades de aprendizagem vem aumentando consideravelmente nos últimos anos. E quando adentra o fator “causa”, a família aparece como um dos indicativos principais, pois é freqüente o discurso no cotidiano escolar, especialmente em instituições educacionais que atendem às famílias de baixa renda, do professor desamparado e frustrado com o desempenho insatisfatório dos educandos e que protesta contra a falta de cooperação e ausência dos pais. Assim, diante desta complexa situação educacional, questionase: Quais são os motivos que permeiam esta questão? Quais são as representações formuladas sobre a família desse educando pelos professores? São estas questões que este trabalho tentará desvendar. Parte-se do pressuposto de que estudar a família por este ângulo, verificando as interações sociais, conflitivas ou harmoniosas, entre a instituição escolar e familiar, é um fator importante, pois se considera que elas coexistem numa relação de interdependência e que a relação destas instituições sociais interferirá, mesmo indiretamente, na aprendizagem do educando. Buscar as concepções formadas por professores sobre a instituição familiar foi a maneira encontrada para verificar como estas instâncias sociais se relacionam cotidianamente, tendo como fundamentação 198 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima a Teoria das Representações Sociais (TRS). Refletir sobre os fenômenos educacionais a partir da teoria moscoviciana é considerado importante, pois essa permite uma aproximação do cotidiano escolar compreendendo não só as relações intra e intergrupos dos indivíduos com seu ambiente social, como também o entendimento dos determinantes dos comportamentos e das práticas sociais. (MOSCOVICI, 1978). A Teoria das Representações Sociais foi elaborada por Serge Moscovici, em seu livro La Psychanalyse, son image, son public, publicado na França, em 1961. Nesta obra, o autor teve como problemática entender o processo de apropriação da teoria psicanalítica por diferentes grupos sociais na França. A questão central do trabalho circulava em torno de como era consumida, transferida e utilizada uma teoria científica pelo grande público. Sua pesquisa marcou uma mudança significativa dentro dos campos da sociologia e da psicologia no se refere às análises teóricas dos determinantes do comportamento social do homem. Assim, a Teoria das Representações Sociais foi desenvolvida no âmbito de Psicologia Social. A representação social consegue ligar o real, o psicológico e o social, estabelecendo conexões entre as crenças, a vida abstrata do saber e a vida concreta do sujeito em seus processos de interação com o outro. Esta teoria possibilita a compreensão não somente do que os indivíduos pensam de um objeto, cujo conteúdo carrega valor socialmente relevante e evidente, mas também como e por que eles pensam daquela forma. (ROAZZI; FEDERICCI; WILSON, 2001). Serge Moscovici apontou as representações como sendo “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos”. (MOSCOVICI, 1978, p.26). Nesse sentido, pode-se dizer que não é qualquer conhecimento que pode ser visto como representação social, mas somente aquele elaborado na vida cotidiana dos indivíduos, pelo senso comum, construído socialmente, e com a capacidade de ação e reflexão sobre a realidade. Dois processos básicos foram designados na elaboração das representações sociais, que são a ancoragem e a objetivação. Esses processos são imprescindíveis, segudo Moscovici: “Não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em palavras usuais, próximas e atuais”. (MOSCOVICI, 2004, p.60). A ancoragem é o processo pelo qual se traz para categorias e imagens conhecidas o que ainda não está classificado, encaixado e rotulado. O “estranho”, o “desconhecido” muitas vezes ameaça o hoOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor> 199 A família do educando com dificuldade de aprendizagem... mem, e é nessa circunstância que o movimento da ancoragem o auxilia, pois é ela que permite transformar o estranho em algo familiar, conhecido, ou seja, ancora o “diferente” em representações já existentes. Oliveira e Werba (1999, p.109) afirmam que, na ancoragem, está implícito um juízo de valor, porque, quando o indivíduo ancora, classifica uma idéia, objeto ou pessoa, situa-o em alguma categoria que historicamente adquiriu esta dimensão valorativa. E ainda: “Quando algo não se encaixa exatamente ao modelo conhecido, nós o forçamos assumir determinada forma, ou entrar em determinada categoria, sob pena de não poder ser decodificado.” O outro processo, a objetivação, corresponde à fase figurativa, cujo resultado é a materialização do conceito abstrato; ou seja, “a objetivação consiste em materializar as abstrações, corporificar os pensamentos, tornar físico e visível o impalpável, enfim transformar em objeto que é representado”. (NÓBREGA, 2001, p.73). A partir destas considerações, este estudo verificará as representações sociais de professores sobre a família por meio desses dois processos, possibilitando, assim, apreender os valores, as práticas, as atitudes ocorridas no universo escolar. METODOLOGIA: O CAMINHO PERCORRIDO Participaram deste estudo 13 professoras do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série) na rede pública do estado de São Paulo. Todas são cursistas do Programa Letra e Vida3 em Ribeirão Preto (SP). Para a seleção dos participantes, a pesquisadora primeiramente procurou a coordenadora geral do curso. Logo em seguida, após a explicação do trabalho de pesquisa, foi feito o agendamento de horário com as professoras interessadas em participar. A entrevista semi-estruturada foi o instrumento de coleta de dados junto às professoras participantes. Foi passado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assegurando-lhes o anonimato na publicaLetra e Vida é um programa de formação de professores alfabetizadores, cujo propósito é desenvolver competências profissionais necessárias, incluindo a reflexão sobre a prática educativa. A prioridade da política educacional da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, estabelecida pelo secretário, professor Gabriel Chalita, é a melhoria da competência leitora dos alunos. O referido programa inserese num grande programa de formação continuada, destinado a professores que ensinam crianças, jovens e adultos a ler e a escrever, e ainda a assistentes técnico-pedagógicos e professores-coordenadores que orientam professores alfabetizadores da rede pública. 3 200 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima ção do trabalho. Depois, as entrevistas foram transcritas literalmente pela pesquisadora. É na prática que são definidos os processos de análise (BARDIN, 1995). A necessidade de analisar o material coletado, ou seja, as entrevistas transcritas e validadas pelos sujeitos participantes, exigiu uma definição básica dos procedimentos. Inicialmente a pesquisadora procurou os modelos de análise disponíveis na literatura sobre o tema. Entre as existentes, a opção deu-se pela Análise de Conteúdo (BARDIN, 1995)4 e, dentre as várias técnicas da análise de conteúdo, optou-se pela Análise Temática. Segundo Bardin (1995, p.15), “tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura”. Em um primeiro momento, foi feita a leitura flutuante das questões, mediante um contato extenuante com o material coletado, processo de que surgiram pressupostos, palavras-chave e recortes capazes de proporcionar a categorização do material, para ser possível realizar uma análise mais concisa. A escolha deste tipo de análise deve-se ao fato de a pesquisa ser orientada pela abordagem qualitativa. Dos conteúdos analisados surgiram três temas: “família”, “escola” e “aluno”. Apesar de estes temas estarem articulados, no presente texto apenas o primeiro será abordado. FAMÍLIA REAL OU IDEAL? Imersa em um contexto repleto de mudanças econômicas, políticas e, sobretudo, sociais, a escola se depara com uma instituição familiar estruturada de maneira diferente da de anos anteriores. Esta situação desencadeia conflitos entre estas duas instituições sociais. Alguns relatos dos participantes mostraram esses aspectos conflitivos: “O envolvimento com os pais está muito complicado [...]”. “[...] não é isso que o profissional da educação hoje encontra. Essa parceria família e escola tá muito difícil nos dias de hoje, [...]”. Posteriormente, o material coletado foi submetido à análise lexical e de conteúdo mediante o software ALCESTE (Analyse Lexicale par Contexte d’un Ensemble de Segments de Texte). Contudo, as autoras reservaram esta análise para outro artigo. 4 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor> 201 A família do educando com dificuldade de aprendizagem... “Então é um relacionamento muito difícil até com os pais”. Percebe-se que as interações sociais entre estas duas entidades, escola e família, não estão conectadas satisfatoriamente do ponto de vista das professoras, necessitando, portanto, de uma reflexão maior, para que se estabeleçam vínculos mais produtivos para todos os envolvidos. Outro tópico destacado com predominância nos discursos analisados foi a questão de a família não participar conjuntamente com o professor na aprendizagem do educando que apresenta dificuldades. As falas abaixo são bem representativas disso: “A gente pede [..] apoio, mas os pais hoje em dia [...]”. “Mas você percebe que a maioria deles não tem um acompanhamento dos pais e é isso que falta. Se a criança tem dificuldade, os pais teriam que ajudar mais, estar mais presentes e o que [...] se percebe que é o que menos ocorre”. “[...] na maioria das vezes, nós não temos apoio dos familiares, então isso gera uma dificuldade”. Entende-se explicitamente nestes relatos que a família não dá apoio aos filhos e não se envolve com suas atividades escolares, causando, assim, um obstáculo para o trabalho do professor. Quando os alunos demonstram um desempenho escolar insatisfatório, os professores se referem à ausência dos pais: “[...] principalmente as crianças que têm mais dificuldades os pais são mais distantes da escola, [...]”. “Se você falar que vai ter uma festa na escola, tudo de graça, aí eles vão e vai papagaio, periquito, cachorro, vai todo mundo. Mas do contrário, se você chamar pra falar diretamente da criança aí eles não aparecem, não aparecem mesmo”. Este problema acentua-se mais nas famílias que têm uma situação socioeconômica mais distante da cultura escolar, pois os pais não dispõem da linguagem e dos costumes da instituição, não tendo também a mesma concepção das classes mais favorecidas a respeito da escola. Abramovay (2003, p.460) destaca fato: “Verifica-se, assim, que a escola contribui para reproduzir a hierarquia das posições sociais, 202 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima pois aqueles mais familiarizados com os códigos da cultura escolar e da cultura dominante acabam sendo favorecidos.” Em alguns discursos, os professores enfatizaram os problemas socioeconômicos da família com estas características como justificativa da ausência familiar no âmbito escolar. “[...] nem sempre por culpa deles, mas a preocupação maior deles hoje em dia é trazer o pão pra dentro de casa, [...]”. “E tudo interfere, a própria situação financeira, os pais por este motivo [...]”. Observando os dados, verificou-se que não só a causa das dificuldades de aprendizagem advém principalmente da questão familiar, mas também que a solução delas se centrou ao redor do núcleo familiar deste educando. Neste sentido, os participantes, apesar de se sentirem responsáveis pelos alunos, ainda delegam à família a função de oferecer as condições para que eles superem suas dificuldades escolares. Romanelli (2005, p.77), ao comentar as mudanças ocorridas na estrutura familiar, sublinhao seguinte: “Uma das transformações mais significativas na vida doméstica e que redunda em mudanças na dinâmica familiar é a crescente participação do sexo feminino na força de trabalho, em conseqüência das dificuldades enfrentadas pelas famílias.” Este fato foi destacado em algumas falas das professoras. Aqui se reportaram à época de sua infância, onde a família, em especial a mãe, era mais presente. “[...] a gente vê que são pais ausentes, que essas crianças ficam sozinhas ou com uma outra pessoa que não seja os pais [...]”. “Na minha época eu tinha uma mãe que tava sempre presente, [...] ela queria resultados, então a gente tinha a família mais próxima, [...] e hoje você vê que não tem isso, a maioria dos pais trabalham fora e eles ficam a Deus dará”. Ao longo de todas as entrevistas, evidenciou-se também que a família do aluno com dificuldades de aprendizagem foi apontada como “desestruturada”, sendo vista como “diferente” nas relações afetivorelacionais em comparação com aquelas que, implicitamente, são consideradas “estruturadas”: Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor> 203 A família do educando com dificuldade de aprendizagem... “[...] a maioria deles não tem o afeto e o carinho que tem uma família normal, são famílias desestruturadas [...]”. “[...] então, eu penso que essas crianças emocionalmente elas são de famílias desestruturadas”. “[...] são problemas familiares mesmo de má estrutura familiar. Normalmente os problemas de aprendizagem são com essas famílias”. “[...] pelas famílias que são desestruturadas e não valorizam a escola”. Szymanski (2005, p.21) sustenta que, desde Freud, a família passou a ser vista como “lócus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento.” (grifo nosso). Diante disso, pode-se dizer que, no entender desse grupo pesquisado, as famílias destes alunos focados pertencem ao segundo caso citado por Szymanski (2005). No que tange ao aspecto afetivorelacional destas famílias, em algumas descrições, notaram-se conotações preconceituosas e negativas, reforçando a idéia da “falta” e da “incompletude”. Segundo esta autora, todo grupo familiar tem um modo particular de relacionar-se, desencadeando “uma ‘cultura’ familiar própria, com seus códigos, com uma sintaxe própria para comunicar-se e interpretar comunicações, com suas regras, ritos e jogos”. (SZYMANSKI, 2005, p.25). Os depoimentos revelaram tacitamente que, para estes professores, a família ideal, visualizada como “normal”, é composta por pai, mãe e filhos, vivendo em um local acolhedor, sem conflitos. “Fora deste contexto, as famílias são consideradas ‘incompletas’ e ‘desestruturadas’. Essas são as mais responsabilizadas por problemas emocionais, desvios de comportamento [...] e fracasso escolar”. (SZYMANSKI, 2005, p.24). Desta forma, pode-se supor que a representação de família para estes docentes está vinculada ao modelo de família burguesa, como regra, com a aceitação implícita de seus valores, crenças e modelos emocionais. Para Szymanski (2005, p.25): “Supõe-se ou aceita-se irrefletidamente um modelo imposto pelo discurso das instituições, da 204 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima mídia e até mesmo de profissionais, que é apresentado, não só como o jeito ‘certo’ de se viver em família, mas também como um valor”. Como conseqüência, o relacionamento com a família destes educandos gera a sensação de “diferença”, de “ausência”, de “inadequação” e de “desinteresse”. Percebeu-se nos relatos que a representação elaborada por este grupo sobre a família ideal não condiz com a família concreta, com a família real de seu aluno. Quando se perguntou a uma professora sobre o relacionamento do aluno com dificuldades de aprendizagem com sua família, obteve-se o seguinte depoimento: “É uma coisa assim que você percebe que não tem... afinidades é pai ausente, mãe ausente que trabalham e não têm tempo. Têm um monte de filhos e sempre o pai está preso ou é a mãe que está presa, [...]”. Com isso, como afirma Szymanski: “A família que se construiu, a vivida, apareceu como um caminho indesejado, com um caráter de ‘não escolhido’, mas de imposto pelas vicissitudes da vida”. (SZYMANSKI, 2005, p.26). Esta família, basicamente, apareceu tão fragilizada que em muitos discursos foi colocada a necessidade de a escola exercer o seu papel social no sentido de auxiliá-la, orientando-a, como se os seus valores, costumes e atitudes fossem diferentes do contexto escolar no qual a criança está inserida. O relato seguinte é um exemplo: “Então você vê assim que é conscientização mesmo, é dos pais, porque como a gente vai exigir da criança uma postura se o pai e a mãe não têm dentro de casa? [...] tem que começar é dos pais, senão os filhos não vão virar nada, infelizmente”. Uma professora até sugere que deveria existir uma escola para a família: “A questão de valores que desestrutura a família, a falta de limites, isso eu não vejo como resolver hoje, a não ser que a gente monte uma escola pra família. Isso seria o ideal, escola pra família”. Todos estes dados levantados referentes à família confirmam o que Tomasini diz: “As influências do estigma não se limitam só ao indivíduo considerado diferente, elas se estendem para aqueles inOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor> 205 A família do educando com dificuldade de aprendizagem... divíduos que se relacionam com ele na estrutura social”. (TOMASINI, 2001, p.117). Neste contexto, não só o aluno com dificuldades de aprendizagem tem um atributo diferenciado, mas a sua família também compartilha um pouco deste descrédito, “uma relação que leva a sociedade mais ampla a considerar ambos como uma só pessoa”. (GOFFMAN, 1988, p.39). No que concerne aos processos formadores de representação social, os discursos demonstraram que várias imagens (processo de objetivação) circulam entre os professores sobre a instituição familiar: “desestruturada”, “irresponsável”, “desatenta”. Os relatos dos participantes mostram indícios de que estas imagens estão arraigadas em concepções de tendência ambientalista, que ressaltam a deficiência sociocultural do ambiente familiar (processo de ancoragem). Ou seja, as representações sociais dos professores sobre a família de alunos com dificuldades de aprendizagem revelam que o desempenho escolar insatisfatório do educando é causado pela família, que não acompanha as tarefas escolares e que não se interessa pelo cotidiano escolar de seus filhos. Com isto, a escola se exime de suas responsabilidades sociais e delega o fracasso destes alunos a sua família “desestruturada”. À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, buscou-se verificar as representações sociais elaboradas por professores sobre a família do aluno que apresenta dificuldades de aprendizagem. Para se compreender esta realidade, foram consideradas as formas como os professores vivem determinadas conjunturas, explicam, reconhecem e elaboram estas situações no cotidiano escolar junto da família dos seus alunos. Diante dos dados levantados, foi possível constatar que há um conflito oculto entre o professor e a família deste educando, pois há uma representação da família “ideal”, que não condiz com a “real”. Para os participantes, a família “real” não tem condições de dar apoio, atenção e carinho aos educandos. Desta forma, cabe ao professor não só escolarizar, mas também oferecer o suporte afetivo e relacional (ensinar a ser “bem comportado”, respeitar os colegas, entre outros) considerado adequado. Assim, a representação social que se constrói sobre este educando é a do “desamparo”, do “abandono”. 206 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fátima Aparecida Maglio Colus & Rita de Cássia Pereira Lima A respeito dessas representações, Moscovici afirma o seguinte: “Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e da cooperação. Representações, obviamente, não são criadas por um indivíduo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria, circulam, encontram-se.” Por ser compartilhada por um grupo e ser reforçada pelas crenças, valores, imagens e pela tradição, ela constitui, enquanto representação, uma realidade social sui generis. (MOSCOVICI, 2004, p.41). Diante da heterogeneidade da estrutura familiar, não se pode apontar os novos arranjos familiares como núcleos sociais errados, tampouco considerá-los como “desestruturados”. Deve-se, sim, compreendê-los em suas relações afetivas, pelos valores, crenças e costumes que estão impregnados nesta família, como também, pelos aspectos sociais e históricos e contextuais que a permeiam. Embora investigações mais amplas sejam necessárias, é possível afirmar que esta imagem idealizada sobre a família não só se torna um obstáculo como também tem dificultado a interação social e pedagógica do professor com seus alunos. Essa situação demanda tanto propostas políticas mais amplas quanto mudança de valores pessoais e sociais no âmbito do cotidiano escolar. REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M. Aprendizagem e insucesso escolar. In: ABRAMOVAY, M.; CASTRO M. G. (Org.). Ensino médio: múltiplas vozes. Brasília, DF: Unesco, MEC, 2003. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995. BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Escritos da educação. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. CARTER, E.; McGOLDRICK, M. The expanded family life cycle: individual, family and social perspectives. Boston: Allyn and Bacon, 1999. CARVALHO, M. E. P. Relações entre família e escola e suas implicações de gênero. Cadernos de pesquisa, São Paulo, v.30, n.110, p. 45-56, jul. 2000. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deterio- Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 195-208, 2007. 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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade COMPETÊNCIA PARA FAZER FACE À VIOLÊNCIA: DEFININDO A COMPETÊNCIA INTERRELACIONAL DO(A)EDUCADOR(A) NO MANEJO DA VIOLÊNCIA NA ESCOLA COMPETENCE TO FACE VIOLENCE: A DEFINITION OF THE EDUCATOR’S INTERRELATIONAL COMPETENCE IN DEALING WITH VIOLENCE IN SCHOOLS Fernando Cézar Bezerra de ANDRADE* Resumo: Após apresentar o cenário dos estudos sobre a violência na escola e sumarizar o debate sobre competência em educação, define-se o conceito de competência inter-relacional do(a) educador(a) escolar, reconhecida como condição necessária à intervenção eficaz desse(a) profissional nos processos de gestão de conflitos e de superação ou prevenção à violência na escola. Em seguida, para demonstrá-la, apresentam-se elementos indicativos da formação e da aplicação dessa competência, tais como coletados em depoimento obtido durante entrevista concedida por uma diretora de escola da rede pública de ensino fundamental e médio em João Pessoa – Paraíba, e analisados a partir da teoria winnicottiana. Palavras-chave: Competência inter-relacional. Educador(a) escolar. Violência na escola. Abstract: After presenting the scenario of the studies about violence in schools and summarizing the debate about competence in education, this article defines school educators´ interrelational competence as a necessary condition to efficiently manage conflicts and prevent or Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Professor do Departamento de Fundamentação da Educação da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]. * Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 209 Competência para fazer face à violência... overcome violence in schools. Next, to demonstrate that competence, some elements of its development and application are presented as they have been collected in an interview given by a principal of a public school in João Pessoa – Paraíba. The data is analyzed from the perspective of the psychoanalytical theory developed by D. Winnicott. Keywords: Interrelational competence. School educator. Violence in school. INTRODUÇÃO Há educadores e educadoras que põem em ação um saber especialmente útil para a intervenção pedagógica em situações de conflito e de violência na escola: a competência inter-relacional. Quem não conhece alguém assim? Pessoas que contribuem para uma convivência pacífica na escola, a grande maioria delas sem uma preparação especializada para essa tarefa, pois os conflitos conviviais e a violência na escola ainda não são objetos de estudo na maioria dos cursos de formação de profissionais da educação no Brasil. Não obstante, eles e elas desenvolveram essa competência a partir de suas histórias pessoais e profissionais. Neste trabalho, objetiva-se ilustrar e analisar, à luz da teoria winnicottiana (WINNICOTT, 1975, 1995), a competência inter-relacional de Socorro1, uma diretora de escola da rede pública de ensino em João Pessoa – Paraíba, no manejo de situações de conflito e de violência na escola. Para tanto, após apresentar o cenário dos estudos sobre a violência na escola e sumarizar o debate sobre competência em educação, define-se o conceito de competência inter-relacional do(a) educador(a) escolar, reconhecida como condição necessária à intervenção eficaz desse(a) profissional nos processos de gestão de conflitos e de superação ou prevenção da violência na escola. Em seguida, analisar-se-ão fragmentos de uma entrevista concedida por Socorro, transcrita literalmente e analisada conforme a técnica da análise de conteúdo. (BARDIN, 1979). Supõe-se que as relações familiares e as experiências profissionais funcionam, na história de vida de educadores e educadoras, como 1 210 Pseudônimo atribuído à educadora, por razões éticas. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade redes intersubjetivas de estruturação dos fundamentos psicossociais da competência inter-relacional. A VIOLÊNCIA COMO CONTEXTO DA COMPETÊNCIA Historicamente, como mostra Sposito (2001), o aumento do interesse pela violência na escola nasce no contexto da redemocratização brasileira. Se nos anos 1980 a preocupação maior consistia em proteger as escolas de invasores e em geri-las mais democraticamente, nos anos 1990 “a violência escolar passa a ser observada nas interações dos grupos de alunos, caracterizando um tipo de sociabilidade entre os pares ou de jovens com o mundo adulto” (p.91), tornando mais complexa sua análise. Exemplos do crescente interesse pelo problema são a inclusão da ética como temática transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997a, 1997b) – os quais já fazem menção ao problema da violência na escola – e o aumento de publicações especializadas surgidas em português nos últimos anos, sobretudo com a iniciativa da UNESCO. Pesquisas de abrangência nacional e local foram desenvolvidas, principalmente como investigações acadêmicas de pós-graduação, de abrangência nacional ou local, enfocando fatores externos e internos à escola que contribuem para as manifestações da violência (ABRAMOVAY, 2002, 2003; ABRAMOVAY; RUA, 2002; BATISTA; EL-MOOR, 1999; BRASIL, 2003; CANDAU, 2001; CASTRO, 2001; DEBARBIEU; BLAYA, 2002a, 2002b; GUIMARÃES, 1988, 1992, 1996a, 1996b; LUCINDA; NASCIMENTO; CANDAU, 2001; NOLETO, 2004; OLIVEIRA, 2000; ORTEGA; DEL REY, 2002; RISTUM, 2001; SANTOS, 2002; SPOSITO, 2001; WAISELFISZ; MACIEL, 2003). Análises sociológicas explicam esse problema como resultado de fracassos da escola em garantir qualidade na socializante (PERALVA, 1997; SPOSITO, 2001), ou no ensino (MELLO, 1996, 2004). Articulados, esses aspectos apontam, pari passu, para a importância e a ineficácia da escola, que não facilita a inclusão das novas gerações à sociedade, deixando de transmitir-lhes valores, de facilitar-lhes o desenvolvimento de habilidades cognitivas e de instruir-lhes nos conhecimentos necessários à vida pessoal e coletiva. Com isso, a escola perde sentido e se torna alvo de depredações e palco de violências físicas e verbais, deixando de ser respeitada e cuidada pelos que a fazem. As análises de enfoque psicológico, estudando as relações Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 211 Competência para fazer face à violência... interpessoais, o comportamento agressivo e, em alguns casos, persistentemente abusivo de alguns alunos, bem como os fatores individuais precipitantes da violência – tais como a existência de modelos parentais, grupais e escolares agressivos, punitivos e inconsistentes, a ausência de modelos pró-sociais, as expectativas escolares baixas ou imprecisas e o fracasso escolar – revelam a importância de não se desconsiderar um plano microscópico desse fenômeno, inclusive na preparação de educadores e educadoras, que ainda se sentem, por exemplo, inaptos para lidar com o comportamento agressivo do alunado (FANTE, 2005; ROYER, 2002, 2003, 2005). Ainda nesse plano microscópico, a teoria psicanalítica traz aportes para o entendimento da violência, associada a processos inconscientes e intersubjetivos: entre eles, neste trabalho, recorre-se à idéia da dissolução do espaço potencial, definido por Winnicott (1975) como aquele constituído pela separação gradual entre mãe e bebê (à medida que este vai ganhando autonomia), transformando qualitativamente a relação de objeto. É, portanto, o espaço inicialmente criado pela ilusão, “o lugar em que a experiência cultural se localiza” (WINNICOTT, 1975, p.139), uma interseção entre as realidades externa e interna que, delimitando ambas, faz a transição entre elas e funciona como terceira realidade (ABRAM, 2000, p.253), caracterizada como intersubjetividade e responsável pela modulação da experiência de conhecimento do mundo objetivo2. Nessa perspectiva, a violência é derivada de uma falta de suprimento ambiental de segurança e bem-estar, e interpretada como um esforço para sentir-se vivo, existente, já que só em função da reação a uma invasão da identidade é que o agente de violência se percebe distinto do ambiente que o cerca. Nesse sentido, ela paradoxalmente comunica uma esperança de provisão satisfatória e deve ser entendida como um apelo à contenção e cuidados, subentendido nos comportamentos delinqüentes. (WINNICOTT, 1995). Na escola, então, explica o processo de aproximação e crítica do conhecimento, através da inserção do conhecimento na cadeia de derivações desenvolvida a partir da experiência fundadora com o objeto transicional, definido por Winnicott (1975, p.13) como “primeira possessão que seja não-eu”. O objeto transicional, tomando a forma de um objeto real (ou de uma parte dele), indica a experiência de conjugar separação da mãe com constituição primária do eu através do controle (imaginário) do objeto e de sua substituição por um objeto secundário, novo (já que inventado pelo bebê) e necessário contributo para a definição do psiquismo do bebê. Assim, o objeto transicional “constitui-se no símbolo da passagem que o bebê faz da experiência de adaptação da mãe as suas necessidades durante o período de dependência absoluta, para a dependência relativa, quando passa a ver a mãe como não sendo parte dele mesmo” (ABRAM, 2000, p.255). A escola deve, pois, oferecer-se como espaço interrelacional que, organizado em torno do conhecimento, permite a reconstrução do mundo pelo alunado, que sublimará tratando o conhecimento à semelhança do que tratou, um dia, os objetos transicionais. 2 212 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade Articulando vários desses planos micro e macroscópicos, as análises da perspectiva ecológica consideram, ao mesmo tempo e de modo integrado, tanto fatores externos quanto internos à escola, para entender a violência e intervir mais eficazmente, como mostram os trabalhos de Ortega e Del Rey (2002) e de Tilmant (2004). É este último, por exemplo, quem propõe o conhecimento de cinco planos concêntricos de abrangência da violência na escola: o microssistema (turma), o endossistema (escola), o mesossistema (bairro e cercanias), o exossistema (sociedade) e o macrossistema (sistemas e ideologias). Ainda segundo esse autor, a aplicação inteligente das estratégias de gestão de conflitos e de contenção da violência confere ao educador a respeitabilidade, a confiabilidade e a liderança necessárias à construção de uma relação em que ele sirva como exemplo e objeto de transferências. Isso permite que o alunado se identifique e sublime sua agressividade, o que contribui para uma socialização bem-sucedida. Essas perspectivas e interpretações ajudam a entender, no cenário de várias experiências (ABRAMOVAY; ANDRADE; FARAH NETO; MACEDO E CASTRO, 2003; ABRAMOVAY et al., 2003; CASTRO, 2001; LUCINDA; NASCIMENTO; CANDAU, 2001; NOLETO, 2004; WAISELFISZ; MACIEL, 2003), a importância da intervenção do(a) educador(a) escolar no processo de superação e prevenção à violência na escola: é dele(a) a responsabilidade de estabelecer as condições para o desenvolvimento da sociabilidade do alunado. Para tanto, são decisivas suas competências profissionais e, no caso dos conflitos e da violência, a competência inter-relacional, a seguir definida, no contexto dos debates sobre competência em educação. COMPETÊNCIA INTER-RELACIONAL DO EDUCADOR: CONSTRUINDO UMA DEFINIÇÃO A literatura sobre competência revela vários debates acerca dessa definição: ela não é consensual nem facilmente formulável, só recentemente ganhou espaço nos discursos sobre a escola e é alvo de críticas a respeito de seus pressupostos ideológicos. Logo, para pensar criticamente a competência inter-relacional, é mister reconhecer alguns dos problemas apontados na literatura sobre competência em educação. A etimologia indica uma mesma raiz para o verbo competir e o substantivo competência: em latim, pedir com (CUNHA, 1982; FARIA, 1962). O verbo, além de comportar a significação de caber a por compeOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 213 Competência para fazer face à violência... tência, ganhou outro significado, hoje o mais evocado – disputar, rivalizar (MACHADO, 2002; PINTE, 2004). O substantivo, por sua vez, é sinônimo de faculdade, capacidade, aptidão, idoneidade. Assim, competente é quem tem a “qualidade de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa”. (FERREIRA, 1986, p.440). Há, então, uma ambigüidade semântica entre solidarizar-se e rivalizar, que fala de um poder em relação a algo ou alguém. A história da definição contribui para o entendimento dessa ambigüidade. A noção divulgou-se no discurso científico, a partir dos trabalhos lingüísticos de Chomsky, e no discurso educacional, a partir das demandas feitas à educação profissionalizante por um trabalhador mais engenhoso, especializado e autônomo, criativo e flexível em seu trabalho, segundo pressupostos do cognitivismo – outra das fontes teóricas das teorias da competência (DOLZ; OLLAGNIER, 2004; JOBERT, 2003; MACHADO, 2002; PINTE, 2004). As críticas feitas ao conceito mostram os perigos de seu uso acrítico: a competência pode tornar-se sinônimo de eficiência e operacionalidade profissional, que disfarçam, numa linguagem econômica neoliberal, o interesse pelo lucro (DOLZ; OLLAGNIER, 2004). Heslon (2004) também vê na competência a possibilidade de uma “adultificação” da infância, caso se resuma a educação infantil a uma propedêutica do trabalho eficaz – e lucrativo. Outro perigo é a redução das causas do sucesso profissional à exclusiva responsabilidade individual. “Cada um é doravante encarregado de desenvolver e manter suas próprias competências, sob pena de cair em fracasso – inicialmente profissional e depois social”. (PINTE, 2004, p.231). Ao criar-se uma elite de competentes que se especializariam através de algum tipo de saber (BREYNER, 2006), surge a idéia da competição, expressa no verbo “competir”: pertencerá àquela elite quem for mais competente. Assim, o termo carrega a contradição das sociedades modernas, em que a escola é instituída para igualar e elitizar, como mostram as teorias da reprodução social pela escola (BOURDIEU; PASSÉRON, 1982; OURY; PAIN, 1998; PERRENOUD, 2005). Não obstante todas essas questões, o conceito motiva a investigação, sobretudo porque a sua pesquisa produz teorias explicativas do sucesso em situações nas quais o planejamento é insuficiente ou inadequado – quando é necessário criar novas e eficazes soluções para os problemas enfrentados (REY, 2002). A revisão da literatura sobre competência permitiu identificar quatro dimensões fundamentais, indissociavelmente ligadas entre si 214 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade para explicar a eficácia de uma intervenção: a comportamental, a cognitiva, a social e a afetiva, às quais aqui se junta uma quinta, a desiderativa – da ordem dos desejos que, conscientes ou inconscientes, motivam a conduta e interferem na cognição, nos afetos e nas relações intersubjetivas. A dimensão comportamental diz respeito, em termos comportamentalistas, à exterioridade observável da conduta e de seus efeitos na contingência específica em que ela é emitida. Trata da adequação do comportamento a seu contexto e da previsão do desempenho eficaz: nessa dimensão, portanto, a competência é um saber-fazer (DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2001, 2004, 2006; PERRENOUD, 2002; REY, 2002; ROYER, 2005). No caso dos conflitos e da violência, isso significa saber combinar reações coerentes com as características específicas da situação, de modo a tornar a intervenção pedagógica uma “prevenção reativa” ou uma “reação preventiva” (CASANOVA, 2004, p.83). Aqui, o conhecimento técnico revela-se essencial. A dimensão cognitiva compreende os processos mentais não diretamente observáveis. A competência é então definida como uma metacognição, situada, responsável pela mobilização e pela integração das habilidades, da inteligência e dos habitus necessários à aprendizagem na ocasião em que ela se dá – o que resulta na criação de esquemas mentais e habilidades. Logo, a competência é um saber-pensar o próprio pensamento aplicado ao aprender, ou, mais simplesmente, um pensar os modos de aprender, a fim de modificá-los, se for o caso (DOLZ; OLLAGNIER, 2004; FABRE, 2004; GATÉ, 2004; JOBERT, 2003; LAFORTUNE; PONS, 2004; MACHADO, 2002; PERRENOUD, 1999, 2001, 2002, 2005; PERRENOUD; ALTET; CHARLIER; PAQUAY, 2001; REY, 2002; SORIN, 2004; TOUSSAINT; XYPAS, 2004). Essa dimensão explica a possibilidade de previsão, avaliação e adaptação das intervenções, no momento em que ocorrem as situações de violência e conflito. A dimensão afetiva, por sua vez, diz da capacidade de identificar, experimentar e expressar adequadamente emoções e sentimentos relacionados a situações de interação do indivíduo com o mundo e com os semelhantes – especialmente se tais situações criam problemas para o indivíduo (LAFORTUNE; DOUDIN; PONS; HANCOCK, 2004; MORAIS; OTTA; SCALA, 2001; RIBEIRO; JUTRAS, 2006). Essa dimensão aponta para a necessidade de reconhecer-se a determinação afetiva nos processos de tomada de decisão e de resolução de problemas, pois, ao contrário da tradicional avaliação, sentimentos e emoções, ao indicarem o estado psicofisiológico do indivíduo e as operações mentais de Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 215 Competência para fazer face à violência... que este se vale para avaliar a realidade externa, são indicadores importantes a serem levados em conta (DAMÁSIO, 2005) – como no caso de conflitos. Daí ser a competência um sinônimo, nesse caso, de saber reconhecer, valorizar, expressar e coordenar os afetos, particularmente em situações-problema, geradoras de estresse, como é, para o educador, o caso da violência na escola. Já a dimensão social aponta para o fato de que toda competência tem significados e valores culturais que são comunicados em razão de papéis socialmente atribuídos, a partir da utilidade social da ação competente. Em outras palavras, ela é situada num contexto interativo, produzida em redes sociais e avaliada segundo o lugar ocupado pela pessoa competente. Assim, essa dimensão contempla o caráter intersubjetivo e comunicativo das relações humanas, no que a competência servir de critério para o reconhecimento social e as trocas simbólico-culturais dos indivíduos. Do mesmo modo, essa dimensão considera condições sociais e institucionais que são garantidas para o desenvolvimento e a aplicação de uma competência (JOBERT, 2003; REY, 2002). Nessa perspectiva, a competência atesta uma inserção social e, em coerência com ela, um saber relacionar-se e um saber comunicar-se – o que é essencial para o restabelecimento da qualidade das relações pedagógicas, no caso da violência na escola. Assinalar uma dimensão desiderativa da competência é uma decorrência de entender as dimensões anteriores sob uma perspectiva psicanalítica, convergindo para o que afirmam autores ligados à pedagogia institucional, como Casanova (2004), Imbert (1996), Oury e Vasquez (1998) e Pain (1993). Entende-se ser necessário levar em conta que o(a) educador(a) não consegue sentir, relacionar-se, comunicar-se, aprender e pensar sobre suas estratégias para aprender sem que, em contextos intersubjetivos, seus desejos3 interfiram, consciente e inconscientemente. Em razão do encontro (nem sempre fácil ou pacífico) com o desejo do outro, competência é equivalente, de um lado, a saber reconhecer, valorizar, expressar ou conter os próprios desejos, em função do contexto; e, de outro, a saber motivar o alunado, de modo a despertar nele o desejo de aprender. Isto significa admitir processos inconscientes, originados na intersubjetividade, implícitos na competência, como a transferência e a contratransferência, de cujo conteúdo o(a) educador(a) Dentre eles, os sexuais recalcados infantis, cuja natureza escapa à lógica, ao planejamento ou à previsibilidade conscientes, mas que, como motivos psicodinâmicos do comportamento e do afeto, fundamentam o desejo de educar. 3 216 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade atento(a) pode extrair elementos importantes para a estruturação das relações de ensino-aprendizagem na escola. (KUPFER, 1989). Disso tudo, pode-se agora, para este trabalho, definir competência como um saber complexo, aberto, situado e pessoal, resultante da mobilização, articulação e criação de desejos e de habilidades intelectivas, afetivas, sociais e comportamentais com vistas à resolução de problemas por meio de procedimentos observáveis, eficientes, socialmente relevantes e intersubjetivamente valorizados. No campo educacional mais geral e da perspectiva do educador, por conseguinte, competência implica em saber educar – o que supõe saber intervir no processo de aprendizagem de conteúdos formais, sem a isso se limitar, já que o trabalho pedagógico supõe saber como favorecer o processo de aprendizagem, de modo a garantir a gradual autonomia de seus alunos. Por seu turno, a competência inter-relacional do educador consiste, de uma parte, em um saber conviver, gerindo relações intersubjetivas e organizando as condições e atividades de ensino aprendizagem na escola; e, de outra, em um saber ensinar a conviver, resolvendo pacificamente conflitos e prevenindo a violência com intervenções de natureza técnico-comportamental, comunicacional, afetiva, relacional e pedagógica que têm repercussões no plano intersubjetivo e, em se tratando da subjetividade, no plano inconsciente. Essa competência é responsável pela mobilização e pela integração de várias habilidades, melhor compreendidas na relação entre o arranjo individual que caracteriza o perfil inter-relacional do(a) educador(a) e as características da situação de conflito e violência. Dentre elas, serão mencionadas neste trabalho apenas aquelas que importarão à análise dos elementos contidos na entrevista concedida por Socorro: o exercício da liderança e da autoridade; a promoção da qualidade das relações escolares; a identificação e aplicação adequada de técnicas para a gestão do conflito e da violência; a flexibilização e a abertura do próprio pensamento diante de situações novas e desafiadoras; a reflexão sobre sua aprendizagem e seu trabalho; e a capacidade de fazer projetos e valores. A COMPETÊNCIA INTER-RELACIONAL DE SOCORRO: ELEMENTOS DE ANÁLISE Licenciada em Pedagogia, trabalhando nos três turnos de uma única escola pública de ensino infantil, fundamental e médio como Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 217 Competência para fazer face à violência... diretora, Socorro tinha, à época da realização da entrevista, 41 anos, dos quais 23 como educadora, os 17 últimos trabalhados na mesma unidade de ensino, situada num bairro de classe média-baixa em João Pessoa, onde o tráfico de drogas e a ação de galeras se fazem presentes, deixando marcas no prédio e na organização da unidade de ensino, sobretudo no passado. Marcas do desejo materno na formação da competência interrelacional O início da carreira profissional de Socorro foi marcado pela divisão entre resistir e atender aos desejos da mãe, que a queria freira e professora. Aos 18 anos já trabalhava como professora, mas começava, pouco depois, um bacharelado que a tornaria comunicóloga: não se reconheceu, porém, nesse trabalho e retomou a docência, no que parece ter sido uma formação de compromisso: recusou a carreira religiosa, mas se consagrou, a seu modo, ao serviço dos outros, numa fusão entre profissão e vocação: Eu disse: “Não, se eu fizer pedagogia, eu to afirmando pra minha mãe que eu tenho que ser professora” [ri]. Aquela coisa de adolescente, eu também comecei muito nova... Mas eu já tinha uma tendência, gostava muito de ajudar, de aglomerar as pessoas, já percebia meu poder de liderança com as pessoas. Então: “Não, eu vou partir, vou pra outra área. Educação, não”. Já com medo de que a área de educação me pegasse, né? Lutando contra isso... Só que era uma realidade da minha vida que não teve jeito de não pegar. Sem dar-se conta, Socorro utilizou uma linguagem cheia de metáforas sobre forças maiores que ela, que a teriam conduzido, como numa verdadeira paixão, à profissão docente: “tendência”, “medo de ser pega”, “lutar contra isso”, “não teve jeito de não pegar”. E, pouco mais adiante: “eu sou muito apaixonada [por sala de aula]” “Eu sou assim duma paixão doentia, né? [...] Ainda vou ver se eu me preparo, se eu me preparo ainda pra cortar esse cordão porque é paixão demais e paixão demais adoece.” Ora, o que o discurso de Socorro fez ver é que essa paixão não foi nem natural nem facilmente definida em sua vida. Ao contrário, ao menos no início, ela não via escolhas: teria que ceder a um poder maior que ela. E não é difícil ver nesse poder, mais uma vez, a referên218 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade cia às vontades maternas: “Eu lutei muito pra não ser educadora. [...] Foi assim, uma imposição de minha mãe, né?” Tanto é assim que, mesmo não fazendo outra menção à mãe, a entrevistada lança mão de uma significativa metáfora materna: ao falar da escola em que trabalhava, usou a imagem do cordão umbilical que dá vida, mas mantém um vínculo de dependência que precisa ser cortado. Socorro falava, assim, das marcas impressas pela relação com a mãe em sua escolha profissional, bem como do significado que a profissão passou a ter: uma paixão tão forte que beira a doença. Na verdade, a partir daquela metáfora, pode-se supor que, como um cordão que une e separa ao mesmo tempo, a escola tornou-se espaço intermediário nas relações entre Socorro e sua mãe, servindo, desse modo, como espaço potencial para a constituição de sua individualidade, às voltas com o signo materno, que imprimiu na entrevistada uma convicção sobre a necessidade de servir. Até o prenome é indicativo: Eu às vezes até comento a questão do próprio nome: minha mãe já sabia que meu nome [ri], Socorro, era forte! Eu digo, assim, pelo próprio significado dele. Eu tenho muito apego a meu nome: é Socorro, Socorro, Socorro e acho que quanto mais fala nisso mais acende em mim essa vontade de colaborar, de somar, de estar sempre junto, sabe? De ir buscando, buscando. E a minha formação em casa também foi sempre isso, meus pais sempre foram voltados pra o que a gente teria que ter, sempre ajudando um e o outro, né? A escolha materna do nome inseriu a entrevistada em sua família, por meio da evocação de um valor compartilhado, fazendo derivar da imposição uma paixão em cujos fundamentos encontram-se, possivelmente, os desejos inconscientes de dar conta das expectativas maternas e de escapar a elas: essa paixão ambivalente impelia Socorro a manter-se como educadora e prevenir a violência em sua escola. É provável que a imposição materna tenha provocado não só uma resistência inicial ao ensino, mas também tenha imprimido no perfil da professora Socorro uma busca constante pela mudança, pela “revolução na escola”, freqüentemente subvertendo o poder da direção vigente, até conseguir eleger seus candidatos ou ser, ela mesma, eleita dirigente do estabelecimento de ensino. Entende-se que a qualidade dessa relação originária também favoreceu o desenvolvimento da empatia e da identificação com as vítimas de violência, compelindo-a a trabaOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 219 Competência para fazer face à violência... lhar voluntariamente como educadora social junto a crianças em situação de rua, presidiários e movimentos sociais. Um elemento da sua história atual ajuda a compreender um aspecto essencial dessa habilidade relacional de Socorro: mesmo sendo capaz de intervir com sucesso em situações em que outras pessoas fossem vítimas de violência (até mesmo as mais duras), essa disposição, resultante da identificação com as vítimas, não funcionava quando ela, na posição de diretora (representante máxima da autoridade estatal na escola), era a vítima e necessitava de mediação externa. Foi o que revelou o conflito que então se estabelecera entre ela e o caseiro da escola: ele, que não cooperava com a administração escolar, recusou-se a deixar a casa em que morava, nas dependências da escola, de propriedade do Estado, e passou a ameaçá-la de morte. Por conta disso, após remeter o caso à Justiça, Socorro decidiu deixar a direção e a escola. “O aviãozinho está passando” Em seu relato, Socorro apresentou várias habilidades interrelacionais, algumas delas identificadas em situações que indicam claramente sua mobilização e integração. Narrando sua história, Socorro mencionou o estado de abandono em que se encontrava sua escola quando lá chegou, num trecho que ilustra essas habilidades: A nossa escola tinha um adjetivo terrível, ninguém queria estudar lá! Era chamada de [baixa a voz] “cabaré”! Porque era assim, era horrível! Não tinha administração! Era sem cuidado mesmo! Era um aspecto que pra gente era até deprimente ir trabalhar: as pessoas invadiam, fumavam maconha dentro da escola, sabe? Pulavam o muro direto, era pedrada na cabeça de professor. Uma coisa terrível! O professor, às vezes, era quem tinha de juntar cinco, seis colegas, dar os braços e enfrentar as galeras que invadiam a escola, né? Então a gente viu que era necessário fazer um trabalho de mobilização com a comunidade, para criar um sentimento de pertença mesmo. Então conseguimos fazer com que a comunidade visse a escola não só como um prédio, mas que ela faz parte da vida da gente. Socorro liderou o esforço de modificação da imagem da escola, conseguindo reverter esse quadro tão difícil ao organizar o ambiente escolar de modo a garantir um clima mais motivador da aprendizagem. Externamente, uma das iniciativas adotadas foi abrir a escola para que 220 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade lá adultos das vizinhanças pudessem ser alfabetizados. Internamente, diante do alto índice de brigas e discussões durante o recreio, investiuse dinheiro na aquisição de jogos e de um sistema de som com os quais o alunado passou a divertir-se, com regras, e criou-se uma rádio escolar. “A gente fazia isso no horário de recreio. Aí ficavam todos na expectativa de escutar a rádio, as notícias. Eles passavam o final de semana fazendo pesquisa de matérias pra jogar no jornalzinho da rádio. E a gente não escutava nada de confusão.” Socorro mostrou-se, assim, capaz de exercer liderança e autoridade, sobretudo através da valorização das relações escolares, em correspondência com uma das funções subjetivas e inconscientes atribuídas à administração: o exercício da função reguladora, que garante o respeito a normas e leis – como o respeito ao lugar comum de recreio –, mas sem autoritarismo. Foi capaz de selecionar e aplicar técnicas de gestão do conflito e da violência (como o envolvimento direto do alunado na produção da rádio na escola). Revelou-se pronta a flexibilizar e abrir seu pensamento, no que dizia respeito, por exemplo, à escolha da profissão, além de refletir constantemente sobre seu trabalho, fazendo projetos – dentre os quais transformar, fazer de um “cabaré” uma escola. Os cuidados com o interior e o exterior da escola, manifestos em todas essas habilidades, resultaram, intersubjetivamente, na constituição de um verdadeiro espaço potencial na escola, a começar pela garantia de regras mínimas para o funcionamento e a circulação: o “cabaré”, metáfora da falta de limites, resultara também de uma gestão anterior ausente e descuidada. Ainda que a direção não resuma toda a escola, o exercício da liderança e da autoridade encontram na figura do(a) diretor(a) um representante simbólico bastante significativo para os ritmos e a qualidade de vida da escola: como figura maior da autoridade na escola, ele(a) é o adulto a quem mais se atribui a responsabilidade de ser suficientemente bom em relação à escola. Isto significa gerir as condições ambientais e relacionais necessárias ao espaço intersubjetivo que garante o ensino e a aprendizagem, que tem suas origens no espaço potencial. Ao referir-se àquele momento de sua escola, Socorro insistiu, implicitamente, no seu empenho em intervir para a reconstituição do espaço potencial necessário às inter-relações educacionais. Esse investimento pessoal resultou, depois, em sua própria eleição para a direção, oficializando uma liderança já manifesta. Além disso, a introdução dos jogos e da rádio (e, com ela, do jornal falado) na escola trouxe para o alunado a possibilidade de dois outros movimentos igualmente Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 221 Competência para fazer face à violência... importantes no que diz respeito aos fundamentos psíquicos da aprendizagem: de um lado, a fusão entre agressividade e libido, e, de outro, a sublimação desse material inconsciente em atividades ao mesmo tempo prazerosas e propícias às inter-relações (como a comunicação). Esse movimento dialético da regulação – ligado à contenção e à permissão, próprio da liderança e autoridade de quem dirige – se fundamenta na auto-regulação: o discurso de Socorro revela um bom nível de auto-estima, de autoconsciência e de autocontrole emocionais. Elementos que atestam a aquisição dessas habilidades são sua história pessoal (às voltas com a tensão entre o desejo materno e o seu mesmo); sua capacidade de liderar sem autoritarismo (“‘Diretora calma, tranqüila existe?’ Existe, né?”); e sua aptidão para empregar sua afetividade em favor da auto-estima de um aluno que concluía o ensino médio, incentivando-o a continuar estudando (“se você passar [no vestibular] eu vou alugar um carro de som e vamos ser eu e você gritando, bairro abaixo, bairro acima, que você passou”). Afinal, para transformar um “cabaré” em uma escola que faça parte da vida de todos é necessária, em suas palavras, “paixão demais”. Foi exatamente essa auto-regulação que permitiu a Socorro intervir para eliminar o tráfico de drogas do interior da escola, descoberto “de uma forma bem delicada”, já que “tinha pessoas matriculadas na escola só com intuito de passar a droga”. A forma pela qual Socorro relata sua descoberta também indica a atenção dedicada ao cotidiano da escola e o uso da própria sensibilidade como guia de sua intervenção: A partir de uma frase que ele [o traficante] dizia todos os dias: “o aviãozinho está passando”. Isso me incomodou, escutei três, quatro, cinco vezes, sempre à mesma hora. Eu pesquisei, liguei pra o pessoal da Polícia Federal e falei o que tava havendo. Lá eles já tinham umas fichas de quem estavam procurando, né? E era justamente esse grupo de alunos. Eles permaneceram sob vigilância, até que a Polícia pegou esse do avião. Os outros se assustaram e por si sós desistiram da escola. Descobri e agi na calada, numa semana estava resolvida a questão do tráfico. Socorro soube recorrer a uma medida extrema e adequada diante de uma grave ameaça à escola: quando o tráfico de drogas vale-se da estrutura escolar para lá se instalar e a conduta de alguém se torna criminosa, o alcance de medidas pedagógicas no que concerne aos traficantes é ultrapassado e só resta apelar para a segurança pública. Não obstante, sabe-se que essa segurança não é de todo eficaz. 222 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Fernando Cézar Bezerra de Andrade Por essa razão, para permitir a entrada da polícia sem que os alunos traficantes notassem que eram observados, ela precisou, ao mesmo tempo, ser discreta e corajosa, coordenando um trabalho de equipe em que a supervisora e a vice-diretora (as duas únicas que, além dela, estavam a par do que se passava) estavam bastante assustadas: caso fossem identificadas, haveria o risco de sofrerem ameaças, inclusive de morte. “Eu sou muito ousada, confiei que ia conseguir fazer da forma correta e assim foi feito. As duas outras ficaram morrendo de medo, eu não tive tanto medo de morrer”. Esse medo só apareceu quando ela foi vítima das ameaças do caseiro que residia na escola. A diferença que explica sua inibição em face dessa situação é que, nesse caso, ela foi pessoal e intencionalmente ameaçada: ela se mostrou capaz de controlar sua angústia e seu medo, mas ao custo da posição que ocupava. Diante da violência psicológica de que se tornou objeto, não sabia como reagir: por que uma diretora que já tinha transformado a escola toda se inibia naquela circunstância? Para além do medo plausível, esse recuo pode ser explicado também pelo surgimento, no contexto intersubjetivo, de um ódio não contrabalançado pelo amor nem pelo investimento narcisista que caracterizaram a força do desejo materno e contribuíram para fazê-la educadora: o caseiro, que nada queria com o projeto da escola, tampouco demonstrava reconhecer em Socorro a autoridade própria à função diretiva, mas a tratava simplesmente como um estorvo de que se livrar, com ameaças, para manter-se morando na escola. CONCLUSÃO A competência inter-relacional é um conceito que explica o saber conviver e ensinar a conviver, característicos de educadores e educadoras que lidam eficaz e pedagogicamente com situações de conflito e de violência na escola. No plano intersubjetivo, atravessado pelos efeitos do inconsciente, esse conceito explica a reconstituição do espaço potencial escolar. Esse saber complexo mobiliza habilidades técnicocomportamentais, afetivas, desiderativas, cognitivas, sociais, comunicacionais e relacionais, das quais neste trabalho foram mencionadas apenas aquelas identificadas no relato feito por Socorro, uma diretora de escola da rede pública de ensino em João Pessoa – Paraíba. Verificou-se que elementos da história de vida e das experiências Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 209-229, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 223 Competência para fazer face à violência... do(a) educador(a) no enfrentamento da violência são fundamentais para explicar o desenvolvimento daquela competência e sua aplicação eficaz na escola. No caso que serviu para demonstração, Socorro soube analisar e intervir adequadamente em situações de violência distintas em natureza e gravidade, ambas ameaçando a qualidade e o funcionamento das atividades escolares (uma causada pelas características do próprio estabelecimento, e outra pelo entorno social), na direção do que apontam as pesquisas – intervenções no âmbito institucional, melhoramento do clima escolar etc. Sua história, seu perfil e sua função explicam essa capacidade de agir em diferentes circunstâncias, mobilizando e integrando várias habilidades inter-relacionais, ajudando a reconstituir o espaço potencial de uma escola que havia se transformado em um “cabaré”. É-se levado, portanto, à pergunta: como garantir, na formação inicial e continuada de educadores e educadores, oportunidades para que eles e elas desenvolvam, de modo mais sistemático e intencional, suas competências inter-relacionais? A qualificação do(a) educador(a) aparece como um dos determinantes decisivos para o desenvolvimento dessa competência: sua formação profissional deve atentar, portanto, para a transmissão de conhecimentos científicos de caráter teórico e técnico que permitam a análise da situação conflituosa ou violenta e a escolha do procedimento pedagógico correspondente, sem descuidar do desenvolvimento do saber metacognitivo que mobiliza e integra habilidades nem da sensibilidade às determinações do inconsciente sobre as relações intersubjetivas que se constituem no cotidiano escolar. Ela, porém, será desenvolvida em investigações posteriores. REFERÊNCIAS ABRAM, J. A linguagem de Winnicott: dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. São Paulo: Revinter, 2000. ABRAMOVAY, M. (Org.). Enfrentando a violência nas escolas: um informe do Brasil. In: FILMUS, D. et al. Violência na escola: América Latina e Caribe. Brasília: UNESCO, 2003. p. 89-152. ______. Escola e violência. 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Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 229 Thomas Massao Fairchild AVALIAÇÃO EM DOIS TEMPOS NO TRABALHO COM O TEXTO TWO -STEP EVALUATION CENTERED CLASS IN A TEXT- Thomas Massao FAIRCHILD* Resumo: Se o ensino de Língua Portuguesa vem acolhendo diversas formas de trabalho pautadas na unidade do texto, a continuidade de um modelo de análise lingüística preponderantemente voltado para o âmbito intra-oracional não tem fornecido critérios claros de avaliação nesse nível. Este artigo apresenta dois exemplos de exercícios com base nos quais se discute uma forma de avaliar a leitura e escrita no âmbito do texto, lançando mão, para tanto, de elementos da Lingüística Textual. O tipo de avaliação que se propõe dá-se em dois tempos: um momento “prognóstico”, em que, a partir da produção do aluno, procura-se levantar questões específicas a serem ensinadas; e um momento “diagnóstico”, em que se elaboram instrumentos para verificar os efeitos do trabalho em classe sobre as questões específicas levantadas inicialmente. Palavras-chave: Texto. Leitura. Escrita. Lingüística textual. Coesão. Abstract: Whereas the teaching of Portuguese in Brazilian schools incorporates several forms of study based on textual units, a continuing model of language analysis focused on the phrase has yet to reveal clear parameters for evaluation at this same level. This paper discusses two examples of exercises designed to evaluate students’ writing and reading skills at the text level based on Graduado em Letras. Mestre em Educação. Professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO). E-mail: [email protected] * Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 231 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto elements of Textual Linguistics. This evaluation process involves two steps: a “prognostic” phase in which the teacher chooses specific aspects of reading and writing raised by the students’ work and makes them the focus of the next exercises; and a “diagnostic” phase in which the teacher checks the feedback of such exercises on the very aspects of reading and writing raised previously. Keywords: Text. Reading. Writing. Textual Linguistics. Cohesion. Uma das dificuldades com que nos deparamos ao conduzir o ensino de Língua Portuguesa a partir do texto é que a produção dos alunos normalmente compõe uma amostra muito heteróclita, testemunha de distintas maneiras de conceber a escrita, viver a escrita, trabalhar a escrita. Tendo em mãos um conjunto assim díspar de textos, é difícil estabelecer um único parâmetro com o qual abarcar todas as questões que daí relevam, bem como seria inviável lidar ponto a ponto com todos os aspectos do texto. Essa situação parece decorrer do fato de que a escola incorporou a noção um ensino de língua baseado na unidade do texto, mas não incorporou elementos de teorias lingüísticas suficientes para estabelecer uma postura clara sobre o que seja “avaliar” no registro do texto. A fim de construir algumas estratégias para tanto, podemos tirar um primeiro apontamento: não é possível trabalhar simultaneamente com todos os aspectos textuais e discursivos envolvidos na produção de um texto a cada vez que se trabalhe com o texto. Sendo assim, pelo menos em alguns momentos é necessário que o trabalho se paute no ensino de aspectos específicos de leitura e escrita, ao custo de deixar de lado, momentaneamente, outras questões que também poderiam ser tematizadas em aula. Voltar a avaliação para aspectos específicos do texto deve ter, aliás, um efeito didático: avaliando o aluno dessa maneira, ao mesmo tempo o levamos a perceber e regular aspectos específicos da sua leitura e escrita e, de alguma maneira, a constituir uma postura analítica em relação ao seu trato com a língua. Desse modo estamos buscando criar, aos poucos, um repertório de recursos e estratégias que podem ser mobilizados pelo aluno de maneira mais ou menos consciente para lidar com seus impasses linguageiros. 232 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild Um segundo apontamento é que a avaliação, num trabalho centrado com o texto, não pode visar unicamente à atribuição de nota. Embora na maior parte das vezes tenhamos que atribuir notas, e a atenção a aspectos específicos do texto permita construir critérios explícitos e localizados para tanto, o trabalho com o texto precisa supor que avaliar envolva, também, conhecer a maneira como o aluno lida com o texto. Tendo isso em vista, podemos pensar num processo avaliativo que se dê em dois tempos: um deles consistiria numa avaliação “prognóstica”, e o outro, por analogia, seria uma avaliação “diagnóstica”. Ao longo do trabalho docente passaríamos alternadamente por esses estágios diversas vezes. Uma “avaliação prognóstica” consistiria em efetuar descrições da leitura e escrita do aluno e, a partir dessas descrições, identificar um conjunto de elementos específicos que podem orientar a elaboração de atividades de língua para serem realizadas na seqüência. Uma “avaliação diagnóstica” consistiria, correlatamente, em elaborar estratégias para intervir e averiguar os efeitos dessas atividades de língua sobre aspectos específicos da leitura e escrita do aluno. Como estas não são idéias em si mesmas originais, me preocuparei menos em conceitualizar ou definir essa forma de avaliação do que em demonstrá-la através de dois exemplos concretos que retiro de meu trabalho com o Estágio Supervisionado na graduação em Letras. Os exemplos são de atividades similares, que obedecem a um modelo já incorporado ao ensino de língua, mas, ao que parece, não utilizado com os fins para os quais o invocaremos aqui. As atividades são daquele tipo em que se apresenta ao aluno o fragmento inicial de um texto e pede-se a ele que escreva uma conclusão. Esse exercício tem a vantagem de permitir-nos a um só tempo vislumbrar a leitura do aluno e colher uma amostra de sua escrita. Além disso, a despeito da ênfase que atualmente se dá aos estudos relacionados com os “gêneros do discurso” (derivando a noção esboçada por Bakhtin, 1997), me parece que as operações envolvidas nesse tipo de atividade podem ser extrapoladas para uma série de outras situações de leitura e escrita envolvendo “gêneros” os mais diversos, porque dizem respeito a um problema que é, por assim dizer, supragenérico: a relação que o sujeito estabelece entre as suas palavras e as palavras do outro. Esse ponto será ilustrado à medida que os exemplos forem desenvolvidos. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 233 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto UM EXEMPLO DE AVALIAÇÃO “PROGNÓSTICA” O exercício abaixo foi realizado por um estudante de Letras com alunos de 6ª série de uma escola pública do interior do Paraná. A atividade se inicia com a leitura do fragmento inicial de um conto: Texto 1 A LUVA Tatiana Belinky Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria. Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram duas enormes panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachadas e aumentando a tensão do ambiente. Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos o pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos... E neste momento, como sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou: – Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva. Terminada a leitura e as discussões sobre este segmento inicial, os alunos são reunidos em grupos e pede-se para que escrevam um 234 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild final para a história. Cada grupo recebe uma orientação específica: conforme a divisão, devem produzir finais “tristes”, “alegres”, “engraçados”, “absurdos” ou “trágicos”. Cada aluno deve escrever o seu próprio texto conforme a orientação dada ao seu grupo. Finalmente, as conclusões elaboradas pelos alunos são comparadas com o desfecho original do conto. Seguem abaixo dois textos produzidos por alunos durante essa atividade. Texto A Final triste 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 Num castelo muito bonito que vivia a princesa muito triste, que emcontrou um lindo cavaliro. Que enconvidou ele para dar um passeio no sologico Eles foram chegaram lá. Ela deceu da carosa e falou: – Eu quero ver as onça e tigres, e eles foram direto os animais derepente sua luva caiu no onde os animais estão. e o cavaliero falou: – Eu vou matar esse animais. e quando ela vio os animais mataram o cavaliro e a princesa chorrou e gritou. fim Triste Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 235 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto Texto B Final absurdo 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 O cavaleiro por amor a Donzela deceu para enfrentar os animais e pegar a sua luva. O leão nem ligou, nem as duas panteras, mas o tigre-de-bengala, foi até a sua jaula pegou uma bengala e saiu correndo atrás do outro pissando ensima do leão e das panteras que não estavam nem aí. Então o tigre cansou e o cavaleiro também. O tigre foi até ele e lhe deu uma bengalada nas mãos, poucos minutos depois uma de suas unhas caíram ele pegou a luva da donzela e saiu pulando e gritando de dor. Subiu a escada e entregou a luva pra Donzela, que gostou da unha caida. Deu-lhe um beijo e quis cazar-se com o pobre cavaleiro que estava chorando pela sua unha caída. A realização de uma avaliação “prognóstica” pede que suspendamos por ora algumas preocupações sobre o destino a ser dado a esses textos e nos empenhemos unicamente em descrevê-los a partir das categorias de análise de que dispomos no nosso ofício. Texto A. Uma das primeiras coisas a nos chamar a atenção deve ser o fato de que este texto responde ao enunciado do exercício de uma 236 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild maneira muito peculiar: pediu-se que os alunos escrevessem um fim para a história e este aluno recontou a história inteira, acrescentando um desfecho. Podemos extrair dessa observação um primeiro “prognóstico”: o ensino de língua não pode ser insensível à diferença entre escrever uma parte específica de um texto a partir de fragmentos já dados (título, início, conclusão) e parafrasear um texto. Embora não possamos dizer que o aluno deixou de realizar o que se lhe propunha (escrever um fim “triste”), se quisermos algum dia trabalhar sobre aspectos específicos de sua leitura e escrita é preciso em primeiro lugar mostrar-lhe a necessidade de reconhecer a especificidade das demandas de diferentes exercícios. Uma orientação mínima para a reescrita desse texto seria, portanto, que o aluno cumprisse o pedido da atividade e produzisse um texto que fosse de fato continuação do texto 1. A partir de apontamentos da Lingüística Textual, podemos descrever algumas operações do trabalho lingüístico desse aluno. No primeiro parágrafo, ele se vale de artigos indefinidos para reintroduzir certos elementos presentes no texto 1 (“num castelo”, L1; “um lindo cavaleiro”, L3-4), o que é condizente com sua proposta de enunciar por uma segunda vez o texto conhecido, reapresentando, por assim dizer, os elementos de seu enredo. Conforme Brown e Yule (apud Fávero, 1991: 16), “a informação nova é caracteristicamente introduzida por expressões indefinidas e subseqüentemente referida por expressões definidas”. Não obstante, em L2 surge “a princesa”, um elemento que pertence à mesma série dos já-dados reintroduzidos com o artigo indefinido e que, no entanto, surge aqui numa aparente retomada anafórica. A remissão é, por um lado, a um elemento textual presente no texto 1, de modo que a operação é semelhante àquela que se vê no primeiro parágrafo do texto B. No entanto, no caso do texto A essa remissão rompe com a orientação parafrástica já anunciada naqueles outros elementos. Por outro lado, a remissão é também a um elemento inscrito na enunciação desse texto, isto é, a um elemento “princesa” que, na situação em que o texto foi escrito, podia ser reputado ao interlocutor desse texto, o professor, como uma referência presente. Isso de certo modo nos faz repensar a idéia outrora muito propalada de que a escrita escolar “não tem um interlocutor”, ou que ela não põe em jogo uma subjetividade, como aponta Britto (in Geraldi, 2004: 119): É curioso, nesse sentido, que a maioria dos trabalhos sobre redação escolar ou não toquem na questão de interlocução ou Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 237 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto falem na ausência de interlocutor, identificando aí uma das dificuldades maiores do estudante: falar para ninguém ou, mais exatamente, não saber a quem se fala. Não é a ausência de interlocução o que está em jogo, portanto, mas o papel do professor enquanto interlocutor-mor na sala de aula: como tal, cabe a ele intervir sobre o texto de forma a organizar a alteridade disponível ao aluno no seu trabalho lingüístico. Neste caso, sobretudo pela dissociação entre o professor como “outro” imediato, presente, enlaçado pelos vínculos da oralidade, e o “outro” que se impõe por meio do escrito. Também deve nos chamar a atenção no texto A o uso da palavra “princesa”, que não está presente no texto 1. Lá encontraremos somente o epíteto “donzela”. Caberia então indagar: trata-se de uma interpretação autorizada pelo texto-base? Poderíamos aceitá-la como uma extrapolação possível? Parece que, no contexto de uma história infantil de capa-e-espada, a diferença entre “princesa” e “donzela” é irrelevante. Mas a ocorrência de “princesa” pode se tornar mais significativa se atentarmos também às ocorrências da palavra “cavaleiro”. O aluno grafa a palavra de duas maneiras diferentes, e ambas ortograficamente incorretas (“cavaliro”, L4, L19; “cavaliero”, L14-15). Nesse impasse é preciso reconhecer a presença de algum conhecimento sobre a escrita: parece que o aluno sabe que “cavaleiro” é uma palavra grafada de maneira levemente diferente do modo como se a pronuncia ([kava’leru]). A existência de uma letra “i” inaudível da forma oral do vocábulo parece orientar suas hipóteses ortográficas, mas aqui devemos atentar para duas coisas: primeiro, o aluno expõe em sua escrita duas hipóteses distintas, sem optar por nenhuma; e segundo, a palavra “cavaleiro” aparece escrita diversas vezes no texto de base que o aluno tem em mãos enquanto escreve. As ocorrências dessas duas palavras, “princesa” e “cavaleiro”, dessa maneira, começam a nos dar índices de uma forma de contato específica com as palavras do outro. Nesse ponto talvez caiba indagar: afinal, este aluno de fato leu o texto 1? Podemos chamar de leitura a maneira como esse sujeito pressupõe as palavras do outro? Em sua paráfrase, o aluno retém alguns elementos importantes do texto original – as personagens principais, o castelo, os animais, a luva. Entretanto, ao mesmo tempo desloca e introduz outros elementos de maneira aparentemente aleatória: o convite da princesa (L5), a localização do enredo num zoológico (L6), a viagem de carroça (L7-9), os animais (L10238 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild 11), a queda acidental da luva (L13). Teremos de nos perguntar, como fizemos em relação ao deslocamento “donzela”-”princesa”, se essas interpretações são cabíveis em face do texto 1, ou mesmo se se trata, de fato, de uma tentativa de paráfrase do texto 1. Deslocamentos como a idéia de que a história se passa num zoológico, a mudança do número e espécie dos animais, ou mesmo a transformação do episódio da luva, centro do enredo, num acidente, sugerem que a escrita deste aluno está ligada a certos sentidos já constituídos para o sujeito – certas “hipóteses”, “scripts” ou estereótipos – de uma tal maneira que a presença de elementos dissonantes no texto não basta para demover o sujeito de sua posição. O aluno precisa ser levado a desenvolver formas de leitura capazes de operar fora do registro dessas imagens prévias, sob pena de a leitura jamais romper com o que é já-sabido para o aluno. Temos então um retrato de uma certa modalidade de escuta da alteridade, uma maneira particular de reconhecer as palavras do outro nas palavras do eu. Essa forma de escuta parece captar do outro somente aqueles fragmentos capazes de corroborar uma hipótese sobre o outro prévia à enunciação, de modo que esse outro se mantém como um totem de cujo enigma o observador recolhe apenas aquilo que já traz em sua própria maneira de olhar. A interpretação extrapolante que o aluno faz do texto 1 é similar à interpretação extrapolante que ele faz do próprio enunciado do exercício: uma escuta parcial, que conduz ao constante retorno de um mesmo – uma mesma expectativa do que o professor deseja quando entrega um fragmento textual e pede uma peça escrita, uma mesma expectativa do que se diz quando se conta uma história de capa-e-espada. É de responsabilidade do ensino de língua levantar resistência a essa escuta parcial, na forma da não-aceitação de respostas do aluno que respondam à suposição do aluno mais do que àquilo que se lhes pediu. Para isso, no entanto, é preciso que saibamos exatamente o que estamos pedindo. Texto B. Em contrapartida, este texto é de fato uma continuação do texto 1, conforme a atividade pedia, e nesse sentido dá mais ouvidos ao outro do que o autor do texto B. O uso dos artigos definidos no primeiro parágrafo mostra o manuseio de estratégias de referenciação que pressupõem a existência das palavras alheias de uma maneira diferente: enquanto o aluno do texto A condensa em um só alocutário a figura totêmica do professor e a alteridade presentificada na narrativa do texto 1, dirigindo-se aos dois num único ato de enunciação, o autor do texto B vincula-se ao seu interlocutor professoral justamente Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 239 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto ali onde institui, para o texto 1, o território de uma alteridade exemplar. Embora essa manobra possa roçar as raízes do “artificialismo”1 que outrora se apontou no trabalho em sala de aula, pelo qual todo texto acabaria se reduzindo a moeda de troca na relação constante e monológica do aluno com um único interlocutor, parece que é aí mesmo, nessa escansão dos “outros” disponíveis, que o aluno tem a chance de erigir para si, por assim dizer, o texto em interlocutor. A fim de cumprir com a necessidade de elaborar um “final absurdo”, a sacada do estudante é um trocadilho com a expressão “tigre-debengala”, que surge em L5 com a anteposição de um artigo definido. Se comparado ao texto A, veremos que enquanto ali se modificavam o número, a espécie e a localização dos animais, aqui eles são recuperados um por um enquanto elementos de texto – tanto que o último ressurge explicitamente tomado enquanto significante para a elaboração do deslize de sentido que será a chave do texto. Diremos que o outro comparece à escrita deste aluno numa imagem mais íntegra. Deveremos notar, de toda forma, que a expressão presente no texto 1 que o uso do artigo definido retoma é apenas “tigre”, de modo que ao mesmo tempo em que se efetua uma anáfora acrescenta-se alguma coisa ao alvo da remissão anafórica. Neste ponto, seria possível orientar o aluno para que reformulasse essa parte do texto com um intuito específico. O resultado deveria ser algo como: “o tigre, que aliás era (um tigre) de bengala, foi até a jaula e pegou a sua bengala”. A oração adjetiva neste caso não cumpre apenas uma função estilística: é ela o que marca, para o sujeito, o ponto em que se passa da palavra do outro para a palavra-própria. A princípio, penso que para pesquisar as palavras chamadas de “minhas” é preciso estabelecer uma investigação também sobre o que seriam as palavras do outro. Ainda que Paulo Leminsky tenha razão em seu verso “Nada tão meu que não possa ser chamado nosso”, é preciso, em primeiro lugar, perguntar se sabemos quem é o outro, de quem eu, com as “minhas” palavras, deveria me diferenciar; e em segundo lugar, quais são as palavras deste outro, para que eu possa saber quais serão as minhas. (Barzotto, 1999: 13) “Na prática escolar, institui-se uma atividade lingüística artificial: assumem-se papéis de locutor/ interlocutor durante o processo, mas não se é locutor/interlocutor efetivamente. Essa aritificialidade torna a relação intersubjetiva ineficaz, porque a simula”. (Geraldi, 2004: 89). 1 240 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild Seguindo por esse caminho, seria igualmente cabível apresentar a bengala em L7 com uma expressão determinada, já que ela retoma parte do que é apresentado no antecedente “tigre-de-bengala”, operando o trocadilho: “foi até a sua jaula e pegou a sua bengala”. Este ajuste, no entanto, parece menos importante que o anterior. Textos A e B. Vimos até agora lidando com questões referentes à “coesão textual”. Sem sair desse terreno, uma característica comum aos dois textos é o fato de que neles os nomes das personagens não aparecem. Isto talvez se deva ao fato de que são nomes incomuns – o que é, já, um marcador de uma modalidade de relação com o outro. Essa “evitação” dos nomes parece ter algo a ver com o fato de que o sujeito, recebendo do outro essas incógnitas, atribui a ele um discurso no qual essas palavras têm um lugar, uma família de relações, mas não conseguem se colocar como enunciadores desse mesmo discurso e, por perceberem o seu próprio dizer como um “outro” dizer, necessariamente apagam dele essas palavras (um caminho semelhante seria seguido por toda palavra desconhecida, de modo que o que segue também poderia embasar a elaboração de estratégias de ensino de vocabulário2). São palavras que, por se apresentarem como nonsense, nomes fantásticos ou estrangeiros, rompem a cadeia familiar da língua (seu funcionamento imaginário) e requerem, para poderem ser ditas, sua apreensão como significantes (isto é, como elementos visíveis de uma ordem que não é visível a não ser através das relações que determina entre esses elementos visíveis) e o reingresso do sujeito no simbólico. A partir daí poderíamos estabelecer como meta “empurrar” o aluno na direção disso que no outro o ultrapassa, levando-o a perceber quais são os elementos presentes no discurso alheio que causam esse efeito particular e, pelas portas da imitação, levá-lo a apropriar-se dessa discursividade, criando para si qualquer coisa como uma “voz de autor”. Podemos estabelecer, como objetivo decorrente desse prognóstico, levar os alunos a perceber os recursos de “coesão lexical” mobilizados em um texto e dar continuidade a eles em seu próprio texto. A coesão lexical é obtida por meio de dois mecanismos: a reiteração e a colocação. A reiteração se faz por repetição do mesmo item lexical ou através de sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos [...]. 2 Sobre esse ponto, vale a pena consultar “Aspectos do ensino do vocabulário” (ILARI, 1997: 45-67). Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 241 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto A colocação ou contigüidade, por sua vez, consiste no uso de termos pertencentes a um mesmo campo significativo. (Koch, 2004: 22) Uma forma de chegar a essa meta é levar os alunos a notar, durante as primeiras leituras do fragmento inicial, as expressões lexicais utilizadas para se referir aos personagens do texto. Para isso é permissível incluir nos recursos elencados por Koch também expressões perifrásticas que tenham valor remissivo e que se podem pautar, por exemplo, na metáfora ou na metonímia. Essas expressões podem ser colocadas na lousa à medida que sejam localizadas pelos alunos. Neste caso, teríamos alguma coisa assim: z Cunegundes: donzela Cunegundes, o belo rosto da dama cruel e orgulhosa (metonímia). z Delorges: (seu) apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, (seu) cavaleiro adorador. z Animais: feras selvagens, feroz leão africano/terrível tigre/duas enormes panteras, quatro monstros felinos. A partir desse levantamento, é possível ainda elaborar outras expressões que pudessem se referir a essas personagens e que poderiam ser utilizadas nos textos que os alunos escreverão. Por exemplo: z Cunegundes: a dama altiva, a dona do coração do cavaleiro, a magnífica donzela, (seu) coração de gelo (metonímia, metáfora) etc. z Delorges: o bravo/destemido/corajoso/intrépido cavaleiro, o valoroso/enamorado jovem, o vigoroso mancebo etc. z Animais: as bestas selvagens/felinas, as quatro feras temíveis/ ferozes/famintas etc. Feito isso, teríamos como direcionamento básico da avaliação dos textos dos alunos a incorporação desses recursos coesivos à sua escrita – o que não nos impediria, ainda assim, de avaliar subsidiariamente outros aspectos dos textos. Outra questão sobre a qual poderíamos nos deter, dependendo de nosso interesse, reside na constituição das “vozes” das personagens no interior do texto. Notaremos que entre a fala da donzela Cunegundes no texto 1 (“Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetin242 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild do, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva”) e sua fala no texto A (“Eu quero ver as onça e tigres”, L10-11) há um distanciamento de caráter diacrônico ou diafásico. Noutras palavras, o modo como a “triste princesa” fala no texto A não “combina” com a maneira como ela fala no texto 1. Um bom trabalho nesta atividade requereria que os alunos mantivessem minimamente alguma consistência no modo de falar das personagens. O fragmento fornecido no texto 1 nos permitiria, dentre outras coisas, introduzir o estudo das formas de segunda pessoa do singular e plural (tu e vós) – aqueles excessos do paradigma que, se desapareceram das ruas e causam polêmica em relação ao seu estudo, sobrevivem fora de nossos contextos litúrgicos (seu reputado gueto) e se operam como traço relevante no discurso em contextos como este, em que a caracterização de uma linguagem “arcaica” e “pomposa” tem lá sua razão de ser. A avaliação dos resultados do exercício também neste caso teria um alvo razoavelmente definido. 2 UM EXEMPLO DE “AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA” Supondo que o “prognóstico” da avaliação da leitura e escrita dos meus alunos apontou o que foi discutido acima, seria preciso elaborar exercícios que os conduzissem a realizar as operações específicas que deixaram de ser realizadas na leitura do texto 1 e na produção de textos como A e B e que, pelas razões debatidas acima, considero importantes dentro de uma concepção de linguagem cuja bússola é o pólo do outro. A atividade seguinte tem como objetivo precisamente levar os alunos a reconhecer o uso de elementos de “coesão lexical” e a constituição de “vozes” no interior da narrativa. Como o exercício precedente, o trabalho inicia-se com a leitura do fragmento inicial de um texto. Texto 2 A JANELA ABERTA (adaptação) Saki (H. H. Munro) – Minha tia vai descer logo, sr. Nuttel. – disse com muita firmeza a mocinha de 15 anos. – Enquanto isso, o senhor terá de me aturar. Framton Nuttel procurava as palavras certas que pudessem agradar em cheio à sobrinha ali presente sem desagradar à tia que estava por vir. No fundo, duvidava cada vez mais que essas visitas Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 243 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto formais a uma sucessão de pessoas estranhas pudessem ser de alguma ajuda no tratamento para os nervos que deveria estar fazendo. – O senhor conhece muita gente por aqui? – Ninguém. – respondeu Framton. – Minha irmã passou uma temporada aqui, na reitoria, há mais ou menos quatro anos, e me deu cartas de apresentação para algumas pessoas. – Então o senhor não sabe praticamente nada sobre a minha tia? – continuou a mocinha, muito segura de si. – Só seu nome e endereço – admitiu o visitante. Ele se perguntava se a sra. Sappleton, para quem daria uma de suas cartas de apresentação, seria casada ou viúva. Havia na sala qualquer coisa indefinível que sugeria presença masculina. – A tragédia aconteceu há exatamente três anos. – disse a menina. – Então, foi depois da temporada de sua irmã. – Tragédia? – perguntou Framton. – Talvez o senhor se pergunte por que razão mantemos aberta aquela janela numa tarde de outubro. – disse a moça, apontando para uma janela francesa, aberta para um gramado. – Está quente para essa época do outono... – Foi através daquela janela que, no dia de hoje, há exatamente três anos, o marido e os dois irmãos mais novos de minha tia saíram para caçar. Nunca mais voltaram. Ao atravessar a charneca, em busca do melhor local para a caça da narceja, eles ficaram presos no pântano. Havia chovido muito no verão e trechos que em outras épocas eram seguros de repente ficaram traiçoeiros. Os corpos jamais foram encontrados. O pior de tudo foi isso. Nesse ponto a voz da menina perdeu o tom seguro e tornou-se humanamente vacilante. – Titia continua acreditando que eles um dia voltarão, junto com o cãozinho spaniel marrom que se perdeu com eles, e vão entrar em casa através do janelão aberto, como sempre faziam. Pobre titia, quantas vezes me contou como foi que eles saíram naquele dia, o marido levando no braço o impermeável branco, Ronnie, o irmão caçula, cantando Bertie, por que tu pulas?, para mexer com ela, porque titia dizia que a canção lhe dava nos nervos... A menina calou-se com um soluço. Foi um alívio para Framton quando a tia entrou na sala, dando uma série de desculpas por ter se demorado tanto. – Espero que Vera tenha distraído o senhor. – disse. 244 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild – Ela... foi muito interessante. – respondeu Framton. – Espero que o senhor não se incomode com a janela aberta. – disse a sra. Sappleton de repente. – Meu marido e meus irmãos vão voltar da caçada e é por aí que entram. Hoje eles estão no pântano, na caça à narceja, e vão sujar todo o meu tapete. Como vocês, rapazes, costumam fazer, não é mesmo? E, num tom alegre, continuou... Antes que os alunos se entreguem à escrita de um final para este conto, procederemos da maneira sugerida no item anterior, pedindo que a classe localize quais as personagens da narrativa e, em seguida, anotem as expressões utilizadas no texto para referir-se a elas. Eis o esquema resultante desse levantamento: Personagens Framton Nuttel Expressões Sr. Nuttel, Framton Nuttel, Framton, o visitante, o senhor Sra. Sappleton A sra. Sappleton, tia, titia Vera Vera, a mocinha (de 15 anos), a menina, a sobrinha podemos Marido (da sra. S.) Em seguida, (Meu) marido expandir esse leque de expressões, incitando os alunos a pensarem outras formas pelas quais poderiam se Dois irmãos (do marido) Dois irmãos; em Ronnie, o caçula referir a essas personagens no seu texto. Cachorro Cãozinho spaniel marrom Por ex.: (Sr. Nuttel) o recémchegado, o hóspede, o homem Irmã (de Framton Nuttel) (Minha/sua) irmãadoentado dos nervos; (sra. Sappleton) a anfitriã, a dona da casa; (Vera) a adolescente, a garota, a jovem. Enfim, teremos de chamar a atenção dos alunos para um detalhe: é que a distribuição dessas expressões no texto não é homogênea, de forma que, por exemplo, o contexto em que surge a expressão “Framton” não permitiria que ela co-ocorresse com “sr. Nuttel”. Os alunos devem ser levados a notar que as expressões utilizadas pelo narrador não são as mesmas que ocorrem nos diálogos em discurso direto, e que precisam manter a consistência desse padrão distribucional em seu próprio texto. Pode-se, então, organizar numa tabela semelhante à anterior, agrupando as expressões conforme seu contexto de ocorrência: Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 245 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto Narrador Framton Nuttel, o visitante, o recémchegado, o hóspede, o homem adoentado dos nervos A sra. Sappleton, a tia, a anfitriã, a dona da casa Vera, a mocinha, a menina, a sobrinha, a garota, a jovem, a adolescente Personagens Sr. Nuttel, o senhor Sra. Sappleton, a senhora (Framton), tia, titia (Vera) Vera, (minha) sobrinha (sra. Sappleton) Os textos analisados a seguir foram escritos por alunos do primeiro ano do curso de Pedagogia noturno de uma faculdade do interior paranaense. A montagem dessas duas atividades em seqüência, pautadas em textos cujo nível de complexidade é um tanto distinto e acompanhadas da produção de alunos em etapas diferentes da escolarização, é até certo ponto proposital, já que o intuito desta exposição é sobretudo o de ilustrar uma maneira de montar exercícios de língua a partir de elementos de teoria lingüística e lidar com os seus resultados. Nossa apreciação desses textos deverá se pautar especificamente naqueles aspectos que foram trabalhados anteriormente à escrita, e o objetivo da avaliação de caráter “diagnóstico” é simplesmente o de, em relação a esses aspectos pelo menos, verificar se houve alguma modificação sensível na escrita dos alunos. Eis o primeiro texto: Texto C E num tom alegre, continuou a converçar com Framtom: – Desculpe minha sobrinha Vera, pois ela deve ter aterrorizado um pouco o senhor. disse sra. Sappleton. – Não, não disse sr. Framtom. ela foi sim, muito simpática. Más deixou algumas idéias em minha cabeça. respondeu Framtom. – Más não seja indiscreto sr. Framtom e conte algumas das travessuras que minha sobrinha gosta de fazer. disse sra. Sappleton. Nesse momento sra. Sappleton estava auterada. Sr. Framtom tenta explicar-se: – Há ela tentou me assustar responde Framtom. Mesmo assim a Sra. Sappleton parecia um pouco perplexá, imóvel demonstrava estar insegurá até mesmo com as palavras, suspirava um uco profundo (...) 246 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild As expressões sublinhadas indicam os elementos de coesão lexical utilizados pelo aluno. Um ponto a se notar, em comparação com os textos A e B, que foram escritos sem nenhuma orientação específica do professor, é que os nomes das personagens aqui aparecem. Embora não se trate da escrita dos mesmos alunos (não é o que está em questão), a passagem de um texto com aquela característica para um texto com esta pode ser sinal de um ganho. De toda forma, o aluno não acrescenta nenhuma expressão ao rol elencado anteriormente, nem se utiliza das expressões novas levantadas pela turma. A incorporação dos nomes das personagens, da mesma forma, se dá com algumas alterações em relação aos elementos levantados no texto original: Framtom (Framton), sr. Framtom (sr. Nuttel), sra. Sappleton (a sra. Sappleton). Podemos compreender que a troca do –n final por um –m no nome da protagonista se deva ao fato de tratarse, mais uma vez, de um nome inusual, e que o estudante aproxima ao padrão ortográfico do português. Do mesmo modo, por não ser imediatamente evidente a um brasileiro entre “Framton” e “Nuttel” qual dos dois é um prenome e qual é um sobrenome, bem como por ser entre nós menos comum o uso do sobrenome como forma de tratamento, poderíamos compreender o deslizamento entre “sr. Nuttel” e “sr. Framtom”. De toda forma, o que de fato nos interessa é que esses pequenos deslocamentos, à maneira do que se viu sobre o texto A, indicam um afastamento semelhante do sujeito em relação às palavras do outro. Outro indício desse afastamento está em que, além das alterações em algumas expressões lexicais presentes no fragmento original, o texto deste aluno não observa a lógica de sua distribuição e indiferencia as “vozes” constituídas no interior da narrativa, de modo que “sr. Framtom”, por exemplo, ocorre tanto no narrador quanto no discurso direto. Com base nessa avaliação, seria viável orientar o aluno a reentregar o texto adequando ao menos esse aspecto de sua escrita para que o considerássemos minimamente satisfatório. Como contraponto, vejamos o texto a seguir: Texto D A JANELA ABERTA – Homens, não adianta reclamar. Sempre sujam e não sabem como nós, mulheres, sofremos para deixar tudo em ordem, impecável. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 247 Avaliação em dois tempos no trabalho com o texto Bem, não quero me tornar chata. Aceita um chá, sr. Nuttel? – Por favor, obrigado. A sobrinha encaminhou-se para a cozinha para providenciar o chá. Enquanto isso, Nuttel remexia-se no sofá a procura do que falar. Por sorte, a sra. Sappleton indagou: – Já esteve aqui antes? Sabe das histórias que contam a respeito de nosso vilarejo, sr. Nuttel? Ah! Como sou indiscreta, não quero aborrec(ê)-lo com bobagens. Nuttel notou um olhar estranho na sra. Sappleton. Um calafrio percorreu seu corpo. tentou pensar em outras coisas. Começou a olhar pela janela aberta, e não acreditou no que seus olhos viam... um cão Spaniel marrom passou correndo na grama verde. Não podia ser, Vera dissera que o caozinho havia desaparecido junto com os demais. Então, só podia estar vendo coisas, seus nervos o traíam. Afinal, estava ali para descansar e após ouvir a história contada pela garota, seu incon(s)ciente criara aquele vulto. Só podia ser. Desviou o olhar para a mulher, que não parava de falar; mas ele não ouviu uma palavra sequer. Seus pensamentos estavam na história que ouvira a pouco. (...) Neste caso, embora o conjunto de expressões utilizadas pelo estudante não seja mais variado que o do texto anterior, é já um indício relevante sua fidelidade à forma original dos nomes e das expressões dadas no fragmento inicial. O texto também obedece à distribuição das expressões conforme as “vozes” das personagens, embora modifique o modo como o narrador se refere à personagem principal (“Framton” > “Nuttel”); ainda assim mantém a distinção em relação ao discurso direto (“Nuttel” vs. “sr. Nuttel”). O aluno aqui também se vale de expressões anafóricas novas, como “a garota” (Vera), “os demais” (marido da sra. Sappleton e irmãos) e “aquele vulto” (cãozinho spaniel), o que sugere a possibilidade, para este caso, de colocar o ensino de elementos de “coesão lexical” em segundo plano e daí por diante passar a outras formas de trabalho. O fato de focalizarmos o estudo do texto sobre caracteres localizados, portanto, não nos impede de considerar outros aspectos que a produção dos alunos torne relevante. Uma avaliação “diagnóstica”, ao mesmo tempo em que verifica os resultados de um trabalho anterior, também se converte imediatamente em avaliação de cunho “prognóstico” quando encontra novas questões a serem abordadas em aula. Encerremos este ensaio com um último texto em que os pontos inicial248 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> Thomas Massao Fairchild mente almejados pela atividade se tornam, ao que me parece, menos relevantes do que um outro aspecto até então inesperado. Não há nenhuma razão para deixar os critérios iniciais de lado se a própria escrita do aluno impõe outros caminhos para a leitura e o trabalho do professor. Mas vejamos do que se trata. Texto E JANELA ABERTA E, num tom alegre, continuou: – O senhor aceita um chá ou café? Já mandei arrumar a mesa com bolos e biscoitos. – Não, não precisa se incomodar, senhora Sappleton. – Por favor, faço questão, já está tudo pronto, respondeu ela. Framton, muito sem jeito a acompanhou até a sala de chá. Por onde passava achava tudo muito interessante mas com um ar muito misterioso; mas logo se distraiu no embalo da conversa que se tornara agradável. Muito tempo depois quando já nem se lembrava do que Vera havia lhe contado ouviu vozes e latidos de cachorro. – Oh! Exclamou senhora Sappleton, deve ser meu marido e meus irmãos que chegaram da caçada. Vamos até a sala ver se trouxeram muitas narcejas. Framton sentiu um arrepio muito estranho e logo se levantou e a seguiu até a sala, onde se deparou com três homens altos, magros e com os rostos muito pálidos. – Acho que já está na minha hora, disse Framton. Preciso voltar logo para casa. – O senhor não gostaria de nos acompanhar no jantar? As narcejas ficam sempre muito deliciosas. – Oh não! Eu realmente preciso ir, já tomei demais o tempo de vocês, quem sabe em uma próxima vez. Após se despedir Framton ia saindo quando se lembrou de Vera, e logo a viu parada em frente a janela aberta com um olhar estranho e muito assustador. Ao chegar em casa Framton desejara nunca ter entrado naquela casa assombrosa. Sentando-se no sofá pegou um jornal já amarelado pelo tempo e passando os olhos pelas notícias ficou estarrecido com uma manchete dizia: Os corpos da senhora Sappleton e sua sobrinha Vera são encontrados em casa, deitados na cama. Nada se sabe sobre o que ocasionou as mortes, e também não foram encontraOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 231-251, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor > 249 As diretrizes curriculares para o Curso de Pedagogia... dos seu marido e irmãos que a vários dias saíram para caçar. Como se pode ver, não há grandes problemas aqui em relação aos elementos de “coesão lexical”. Temos um único deslocamento semelhante ao do texto C (“senhora Sappleton” < “a sra. Sappleton”), mas diferentemente dali este texto preserva sua distribuição de acordo com as “vozes” da narrativa. Afora isso, problemas de ordem “gramatical” também são poucos e insignificantes: “desejara” > desejou; “(...) ficou estarrecido com uma manchete dizia (...)” > (...) uma manchete que dizia (...); “a vários dias” > há vários dias. Há ainda alguns problemas de pontuação e sinalização das falas das personagens em discurso direto. Destacar esses pontos, de toda forma, seria insuficiente para orientar uma reescrita que modificasse o texto de maneira relevante, e o trabalho que o aluno realizaria substituindo esses elementos localizados seria de importância duvidosa senão como copydesk. Ainda assim, resta a impressão de que o texto é uma versão preliminar e necessitaria ser reelaborado em alguns aspectos para chegar a uma forma definitiva. Um caminho possível seria orientar a avaliação pelo levantamento das positividades do texto – aquilo que está lá – e não pelas suas negatividades – o que está ausente, o que lhe falta. Construir uma imagem do aluno a partir do que ele sabe talvez possa abrir novas perspectivas de ensino. Notemos, portanto, quais são os recursos que este aluno efetivamente mobiliza. Primeiramente, o estudante percebe que pode parafrasear elementos pontuais do início do texto para reapresentar as personagens, por metonímia, causando um efeito de suspense: “vozes” para retomar “o marido e seus irmãos”; “latidos de cachorro” para retomar “cãozinho spaniel marrom”. Poderia valer-se de outros elementos ainda mais específicos, e que não são dados no fragmento original à toa, como “impermeável branco”, “Bertie, por que tu pulas?” etc. Em seguida, notemos que há uma gradual caracterização atmosférica que antecipa o desfecho fantasmagórico do enredo: o aluno insere expressões como “um ar muito misterioso”, “um arrepio muito estranho”, “um olhar estranho e muito assustador”, “casa assombrosa”. Note-se que há aí uma progressão que aponta para a constituição de um ponto climático: misterioso < assustador < assombroso. Noutro momento, descreve os homens recém-chegados como “altos, magros e com os rostos muito pálidos”, o que é de certa forma uma descrição de valor catafórico e aponta para a “revelação” final do conto (são cadáve250 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor Marli de Fátima Rodrigues & Acácia Zeneida Kuenzer res, fantasmas). Seria possível trabalhar sobre esse tipo de recurso de forma a superar a seleção de expressões genéricas e um pouco repetitivas. Se pedimos para que nossos alunos escrevam um conto de suspense, é recomendável ler o seu texto também como leitores de contos de suspense. Neste caso, pelo menos este ponto causa algum estranhamento: há um “jornal já amarelado pelo tempo” sobre a mesa de Framton Nuttel. Por que o jornal está em cima da mesa se é um jornal de anos atrás? Esta parte do enredo, de importância crucial para o desenlace do segredo que vincula as palavras do aluno às palavras do seu outro, precisaria ser modificada de maneira a se tornar mais crível. Parece então que uma avaliação “diagnóstica” direcionada para as operações de “coesão lexical” pode ceder espaço a um novo “prognóstico” que nos leva, mais uma vez, a buscar uma descrição da escrita do aluno a partir do que ela nos presentifica muito mais do que a partir do que ela deixa de mostrar. Para isso, como vimos em diversos momentos, um instrumento de especial valia são os modelos teóricos da linguagem que constituem o cabedal do nosso ofício e garantem a possibilidade de que o professor possa se erigir, de fato, como um leitor nãoordinário do texto do aluno. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARZOTTO, V. H. Prefácio. In: BARZOTTO, V. H. (org.). Estado de leitura. Campinas, UNICAMP, 1999. FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1991. GERALDI, J. W. (org.). O texto na sala de aula. 3. edição. São Paulo: Ática, 2004. ILARI, R.. A Lingüística e o ensino da Língua Portuguesa. 4. edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997. KOCH, I. G. V. A coesão textual. 19. edição. São Paulo: Contexto, 2004. Encaminhado em: 19/03/07 Aceito em: 20/04/07 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 35-62, 2007. Disponível em <http:// www.uepg.br/olhardeprofessor 251 NORMAS PARA COLABORAÇÃO A Revista Olhar de Professor é um periódico acadêmico semestral proposto pelo Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Publica artigos, relatos de práticas docentes, experiências pedagógicas significativas, relatórios de projetos de pesquisa e extensão, resenhas, entrevistas e textos de palestras proferidas, produções de pesquisadores ligados à docência, extensão universitária e pesquisa na área da educação. Normas para apresentação de colaborações 1-NORMAS GERAIS 1.1- Os trabalhos enviados para publicação devem ser inéditos, não sendo permitida a sua apresentação simultânea em outro periódico. A Revista Olhar de Professor reserva todos os direitos autorais do trabalho publicado e não se obriga a devolver os originais das colaborações enviadas. 1.2- A Revista Olhar de Professor receberá para publicação trabalhos redigidos em português, inglês ou espanhol, já devidamente revisados. Os trabalhos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo obrigatoriamente a opinião do Corpo de Consultores. 1.3- Os trabalhos encaminhados para publicação não deverão conter nenhum tipo de dado de identificação do autor e instituição a qual pertença, bem como de demais pessoas e instituições envolvidas, salvo nome do autor junto ao título e suas credenciais em nota de rodapé (conforme letra a, item 2.4). 1.4- Os trabalhos deverão ser enviados em disquete ou CD, acompanhados de três cópias impressas, digitadas em programa Word for Windows 6.0 ou mais recente. Duas cópias deverão vir apenas com título, sem nenhuma identificação dos autores. 1.5- Deverão constar, no final da cópia identificada, endereço completo, telefone e e-mail e/ou fax dos autores, para contato e encaminhamento de correspondência. 1.6- Os trabalhos deverão vir acompanhados de uma declaração do(s) autor(es), autorizando sua publicação na revista e, se aprovados, serão divulgados na forma impressa e disponibilizados eletronicamente no site www.uepg.br/ olhardeprofessor. 1.7- A Revista Olhar de Professor reserva o direito de submeter todos os originais à apreciação do Corpo de Consultores, que dispõe de plena autoridaOlhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 253-256, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 253 de para decidir sobre a conveniência ou não da publicação, podendo, inclusive, reapresentá-los aos autores, com sugestões para que sejam feitas alterações necessárias no texto e/ou para que se adaptem às normas editoriais da revista. Nesse caso, o referido trabalho será reavaliado pelos consultores. 1.8- Caberá a cada autor de artigo, dois exemplares da Revista como única indenização por direitos autorais. 2. NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DO ORIGINAL 2.1- Os originais deverão ser redigidos na ortografia oficial e digitados em folhas de papel tamanho A4 (210 mm X 297 mm com espaço duplo e margem de 3cm de cada um dos lados, perfazendo um total de no máximo 30 páginas, incluindo as ilustrações - gráficos, tabelas, fotografias etc.). Utilizar fonte Times New Roman, tamanho 12, exceto para notas de rodapé e título que deverão apresentar corpo 9 e 14 respectivamente. 2.2- As ilustrações devem ser de boa qualidade; estar em separado do texto; numeradas em algarismos arábicos, com indicação do número no verso. Os gráficos devem ser apresentados no programa Excel ou no Word, formatados para impressão em preto e branco. 2.3- As notas devem ser reduzidas ao mínimo e digitadas em pé de página, numeradas a partir de 1. Se houver nota no título, ela receberá asterisco e não numeração. As notas não devem ser utilizadas para referência bibliográfica. Estas devem ser feitas no corpo do trabalho. 2.4- No preparo do original, deverá ser observada a seguinte estrutura: a) Cabeçalho . Título do artigo e subtítulo centralizados (quando os artigos forem em PORTUGUÊS, colocar título e subtítulo em português e inglês; quando os artigos forem em INGLÊS, colocar título e subtítulo em inglês e português). . Nome do(s) autor(es) alinhados à esquerda. Através de nota de rodapé, indicada através de asterisco, apresentar as credenciais: titulação, instituição de origem e e-mail para contato. Considerar apenas a maior titulação concluída. b) Resumo Consiste na apresentação concisa dos pontos relevantes do texto, com as principais conclusões, em no máximo 250 palavras. c) Palavras-chave Correspondem às palavras ou expressões que identificam o conteúdo do artigo. No máximo 5. Sugere-se utilizar termos presentes na estrutura do Thesaurus Brasileiro da Educação (BRASED), disponível em: www.inep.gov.br/pesquisa/ 254 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 253-256, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> thesaurus/estrutura.htm d) Abstract Consiste na apresentação concisa, em inglês, dos pontos relevantes do texto, com as principais conclusões, e deve conter, no máximo, 250 palavras. e) Keywords Correspondem às palavras ou expressões em inglês que identificam o conteúdo do artigo. No máximo 5. f) Texto Introdução, material e método, resultados, discussão, conclusões, agradecimentos (quando houver). g) Referências bibliográficas Devem ser dispostas em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). Incluir somente as obras mencionadas no trabalho. Alguns modelos de referências bibliográficas: Livro (um autor) VIEIRA, L. Os argonautas da cidadania. Rio de Janeiro: Record, 2001. Livro (dois autores) BABIN, P.; KOULOUMDJIAN, M. Os novos modelos de compreender: a geração do audiovisual e do computador. São Paulo: Paulinas, 1989. Capítulo de livro OLIVEIRA, F. Neoliberalismo à brasileira. In: GENTILI, P. (Org.). Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1995. p. 29-34. Artigo de periódico HERNÁNDEZ, F. O projeto político-pedagógico vinculado à melhoria das escolas. Pátio, Porto Alegre, n. 25, p. 8-11, fev./abr. 2003. Tese MARTINS, R. B. Escola cidadã do Paraná: análise de seus avanços e retrocessos. Campinas, 1997. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação – Universidade Estadual de Campinas. Artigo de jornal assinado DIMENSTEIN, G. Escola da vida. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 jul. 2002. Folha Campinas, p.2. Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 253-256, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor> 255 Trabalho publicado em Anais de Congresso PARO, V. H. Administração escolar e qualidade do ensino: o que os pais ou responsáveis têm a ver com isso? In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO, 18., 1997, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre, Edipucrs, 1997. p. 303-314. Páginas consultadas na internet –www WEB SITE CORNELIUS CASTORIADIS. Disponível em: <http:// www.charlespennaforte.pro.br/castoriadis/ >. Acesso em: 05/12/04. Livros, periódicos, anais de eventos e outros documentos extraídos da internet Seguir a descrição usual acrescida da indicação do endereço e da data de acesso. PELAEZ, N. C. M. Aprender a aprender através da música. Pátio, Porto Alegre, n. 25, p. 60-62, fev./abr. 2003. Disponível em: http:// www.artmed.com.br/patioonline/patio.htm. Acesso em: 10/03/05. Obs.: Demais referências aqui não exemplificadas deverão atender a norma NBR 6023/2002. A exatidão das referências constantes na listagem e a correta citação no texto são de responsabilidade dos autores. Comunicações pessoais, trabalhos em andamento e os não publicados não devem ser incluídos na lista de referências, mas citados em notas de rodapé. Os trabalhos deverão ser enviados para Revista Olhar de Professor Universidade Estadual de Ponta Grossa Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino Pça. Santos Andrade, n. 1 Bloco B – Sala 104 84010-919 – Ponta Grossa – Paraná Maiores informações: Fone: (42) 3220-3344 E-mail: [email protected] Estas informações também estão contidas na página da UEPG, Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino: www.uepg.br/olhardeprofessor 256 Olhar de professor, Ponta Grossa, 10(1): 253-256, 2007. Disponível em <http://www.uepg.br/olhardeprofessor>