Nead Especial 2 Memória Incra 35 anos MemOria Incra A l b e r to M a r q u e s A n to n i o F e r n a n d o M at t z a A n to n i o P r a n c u t t i Ca r lo s A l b e r to S c h wa r z F r a n c i s c o J o s é Na s c i m e n to J o s é d e R i b ama r Ca r d o s o J o s i ma r La n d i m J ú l i o L i z a r r a g a Ram i r e z Pau lo C é s a r Ra b e l lo M e n d e s d e O l i v e i r a Pau lo R o b e r to F o n t e s Ba r q u e t e Ra i m u n d o J o s é A l m e i d a Bat i s ta 35 anos A l i n i o R o s a S o a r e s e S i lva A n d r é Lu i z Ba n h o s e S o u z a C l a r o Lu i z d e F r e i ta s E l i n e y P e d r o s o Fau l s t i c h E loy A lv e s F i l h o G e r a l d i n o G u s tav o d e Q u e i r o z T e i x e i r a G i l b e r to Bamp i J o s e ly A pa r e c i d a T r e v i s a n M a s s u q u e t to Lu c a s M i l h o m e n s F o n s e c a M a r i a Au x i l i a d o r a G u i ma r ã e s d e Ca s t i l h o NatÁ l i o B e l m i r o H e r l e i n O r i va l P r a z e r e s R o s a n e R o d r i g u e s d a S i lva m d a / i n c r a , b r a s í l i a - d f, 2 0 0 6 Lu i z I n á c i o Lu l a d a S i lva N e a d ES P ECI A L 2 Presidente da República Copyright 2 0 0 6 by M D A G u i l h e r m e Ca s s e l Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário M a r c e lo Ca r d o n a R o c h a Secretário-Executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário R o l f Ha c k b a r t Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Va lt e r B i a n c h i n i Secretário de Agricultura Familiar E u g ê n i o P e i xoto Secretário de Reordenamento Agrário J o s é H u m b e r to O l i v e i r a Secretário de Desenvolvimento Territorial Ca i o Ga lvã o d e F r a n ç a Coordenador-Geral do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural A d r i a n a L . Lo p e s Coordenadora-Executiva do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural P r o j e to g r áf i c o, c apa e d i a g r ama ç ã o Márcio Duarte – m 1 0 Design Gráfico R e v i s ã o e p r e pa r a ç ã o d e o r i g i n a i s Ana Maria Costa Ministério do Desenvolvimento Agrário (m d a ) www.mda.gov.br Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) www.incra.gov.br Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (n e a d ) s c n , Quadra 1, Bloco C, Ed. Trade Center, 5o andar, sala 501 c e p 70711-902 Brasília/DF Telefone: (61) 3328 8661 www.nead.org.br pc t mda/iica – Apoio às Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável B823m Brasil. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Memória Incra 35 anos / Alberto Marques. Antônio Fernando Mattza. Antonio Francutti … [et. al.]. -Brasília : MDA : Incra, 2006. 296 p. ; 15,5 x 22,5 cm. -- (Nead Especial ; 2) Vários autores 1. Incra – história – Brasil. 2. Reforma agrária – Brasil. familiar. I. Título. II. Marques, Alberto. III. Mattza. Antônio Fernando. IV. Francutti, Antônio. V. Série. CDD 333.3192081 Grupo de Trabalho Projeto Memória Incra 35 Anos (Criado pela Portaria Incra/P/nº372, de 3 de agosto de 2005) 1.Kátia Maria da Silva Vasco (Coordenadora) 2.Elizabeth Ribeiro e Fonseca 3. Maria Lucia Muniz de Almeida 4.Geraldo Francisco Coelho 5. José Vaz Parente 6. Abdias Vilar de Carvalho 7. Antonio Rubens Pompeu Braga Representantes do MDA: 8.Caio Galvão de França 9. Adriana L. Lopes Comissão Julgadora Dos Trabalhos: 1. Antonio Rubens Pompeu Braga, sociólogo, aposentado INCRA, ex-superintendente da SR 02 2. Marcos Antonio Vieira de Castro, economista, aposentado do Ministério do Planejamento 3.Elias Pessoa de Carvalho, técnico em educação; aposentado do INCRA 4.Leonilde Medeiros, socióloga; professora da UFFRJ, membro do CPDA 5.Raimundo Nonato Pinheiro Alves, técnico em educação, aposentado do Incra Sumário Apresentação 14 Introdução 15 Artigos Premiados 1 35 anos em vida com os pés na terra 19 A n to n i o P r a n c u t t i Terra 19 Incra 19 2Extrativismo: ainda bem que chegou tarde 34 Ra i m u n d o J o s é A l m e i d a Bat i s ta 3Histórias dos meus 33 anos de Incra 39 J o s é d e R i b ama r Ca r d o s o 4Incra, 35 anos em vida 49 A n to n i o F e r n a n d o M at t z a O começo (uma entrevista simples) 49 Dentre os motivos, o prédio da SR-07 50 Dramas 52 Alegrias 53 Os antecedentes e os antepassados do Incra 53 Nead Especial 2 Os ideais da reforma agrária 56 Os movimentos sociais 57 Sangue no campo 58 Servidores 59 5Lembrando casos do Incra 62 J ú l i o L i z a r r a g a Ram i r e z Relato da implantação de um projeto de assentamento 62 Registro da produção de um documento orientador 72 Depoimento sobre o gerenciamento de uma diretoria do Incra 74 6 Memórias e fragmentos: o sonho da reforma agrária e o Incra 79 Pau lo R o b e r to F o n t e s Ba r q u e t e Referências 86 7 Missão cumprida 87 A l b e r to M a r q u e s 8 O Incra na região do Alto-Purus,Sena Madureira – Acre 91 Pau lo C é s a r Ra b e l lo M e n d e s d e O l i v e i r a Apresentação 91 “E Deus criou o céu, a terra e… o Acre” 92 Introdução 93 PAD Boa Esperança 94 A inauguração da sede administrativa do PAD Boa Esperança 98 O Projeto Fundiário Alto Purus 99 Trabalhos do Incra: Sessão nostalgia, ou, você se lembra? 100 “Causos,” curiosidades ou acredite se quiser 103 Chico Mal-estar 103 Sebastião Preto 104 João Grande 105 Serviço de recados prestado pela Rádio Difusora e pela Rádio Nacional da Amazônia 105 Parceleiro chegando na sede do Boa Esperança 105 Placa afixada na entrada de um ramal construído pelo Incra no PAD Esperança 106 Diálogo no avião 106 Memória Incra 35 anos O Boca de Ferro 106 Aniversário do Incra 106 O Incra e a cidadania 107 Assincra de Sena Madureira 108 Depoimentos sobre a ação da autarquia na região do Alto Purus 109 Siglas 111 Glossário 112 Referências 113 9O projeto Zé Juquira e o Incra 114 Ca r lo s A l b e r to S c h wa r Z Apresentação 114 Projeto Zé Juquira 114 Nascimento do Projeto Zé Juquira 115 A primeira palestra do Projeto Zé Juquira 116 Peça teatral: A história de Zé Juquira 116 A grande lição que Paulo Freire ensinou e que aprendi no Trairão com os agricultores 117 Previdência social para a área rural 118 A questão ambiental nos projetos de assentamento 119 Rádio Roraima – Programa Roraima rural 120 Dia da cidadania no Incra em Boa Vista 120 Campanha da declaração do ITR 120 Calendário da reforma agrária 121 Escola Móvel de Educação Ambiental e Cidadania 121 Distribuição de sementes das espécies da Amazônia para assentados: Projeto Aposentadoria Verde 122 Projeto Kit captação de água da chuva e puxador de água 122 Buraco da produção – compostagem 124 A fé que vem do campo 124 Conclusão 131 10Os plantadores de sonho 132 F r a n c i s c o J o s é Na s c i m e n to Introdução 132 10 Nead Especial 2 O convite 134 A missão 135 Casa nova 136 Separar o joio do trigo 137 A colonização dirigida e o Acre 138 Os burros do Incra 141 Chico Mal-estar 142 A Gata 142 As mãos 143 Uma morte anunciada 143 Conclusão 145 Anexo I – Depoimentos de servidores e migrantes 146 Depoimento 1 146 Depoimento 2 146 Depoimento 3 146 Depoimento 4 147 Anexo II – Fotos da colonização no Acre 147 Anexo III – Saiu na imprensa acreana 150 Referências 153 11Um novo olhar do Incra para a realização da reforma agrária 154 J o s i ma r La n d i m Menção honrosa 12Um telefonema inesperado 164 J o s e ly A pa r e c i d a T r e v i s a n M a s s u q u e t to 13Incra: gênero e número 170 M a r i a Au x i l i a d o r a G u i ma r ã e s d e Ca s t i l h o 14 A saga e as glórias do Incra nos seus 31 anos 176 NatÁ l i o B e l m i r o H e r l e i n Incra (I) 177 Memória Incra 35 anos Incra (ΙΙ) 179 A odisséia 2001 179 Lento entrave 179 Crime e castigos 180 Incra (ΙΙΙ) 180 Cinqüenta lotes no Distrito Federal há 30 anos 180 Os fatos do affair 181 Enigmas indecifráveis 181 Incra (ΙV ) 182 Mais de 500 porteiros 182 Detalhes meritórios 182 Enigmas persistentes 182 Incra (V) final 183 Sempre transitórios 183 Mudará a regra 184 15Sobre o meio ambiente e a reforma agrária 185 A n d r é Lu i z Ba n h o s e S o u z a Um pouco de nossa história 188 16Uma contribuição para o desenvolvimento sustentável da reforma agrária no Rio Grande do Sul: a experiência pioneira de cooperação entre o Incra e a Embrapa 191 C l a r o Lu i z d e F r e i ta s Regiões abrangidas pelas ações do convênio Incra/Embrapa 193 Resultados alcançados 194 Resultado 1 – Banco de dados de sistemas de produção e infra-estrutura dos PA’s. 194 Utilização da terra, produção e produtividade nos assentamentos no RS. 195 Resultado 2 –Rede de referência 200 Resultado 3 – Capacitação de técnicos e de agricultores 201 Resultado 4 – Banco de dados da malha fundiária 202 Outros resultados – Foros de desenvolvimento da agricultura camponesa nas metades norte e sul do estado. 203 Conclusões 204 11 12 Nead Especial 2 17Semear sonhos 206 Lu c a s M i l h o m e n s F o n s e c a 18Nós fazemos a reforma agrária 210 E l i n e y P e d r o s o Fau l s t i c h Ocupação territorial 211 O despertar dos camponeses 214 Estatuto da Terra 215 A reforma agrária 216 O Incra 217 A ação do Incra 221 Assentamento de famílias de trabalhadores rurais 221 Discriminação de terras 221 Titulação de terras 222 Desapropriação de terras 222 Criação de Projetos de Assentamento 222 19 Além da reforma agrária 226 G e r a l d i n o G u s tav o d e Q u e i r o z T e i x e i r a 20Reforma agrária como exercício de liberdade 228 G i l b e r to Bamp i A periodização da existência do Incra 228 Reforma agrária e democracia 230 Reforma agrária como exercício da liberdade – novos desafios 235 21 Fragmentos históricos do Incra e da reforma agrária no Brasil 239 O r i va l p r a z e r e s A criação do Incra: avanço ou retrocesso da reforma agrária 239 O livro fundiário do Incra 247 Referências 251 R o s a n e R o d r i g u e s d a S i lva 22Educação no campo: perspectiva de uma educação rural diferenciada 252 R o s a n e R o d r i g u e s d a s i lva Memória Incra 35 anos A história da educação do campo 254 A identidade dos sujeitos do campo 255 Alfabetização de jovens e adultos em Rondônia 256 Pedagogia da terra 258 Conclusão 259 Referências 260 23O Incra e as ações de reforma agrária brasileira surpreendem e impressionam o mundo 261 E loy A lv e s F i l h o 24Nossa parcela de contribuição para auxiliar no resgate de sua memória 271 A l i n i o R o s a S o a r e s e S i lva Revolução do campo 273 O fazendeiro e o sem-terra 274 Dilema de um sem-terra 276 Lamentos de um ex-assentado 279 Chicos de assentamentos 281 Canção dos assentamentos do RN 283 Sua Majestade, o bode! 285 Vida de cachorro de assentamento 287 A criação do programa empreendedores sociais pelo Incra em 2000 e a nossa participação. 288 Hino dos empreendedores sociais 289 Monumento rosado 290 Eixos articuladores 294 Projeto editorial 294 Publicações 294 Portal 295 Boletim 295 13 Apresentação A edição deste livro a rigor concretiza o compromisso com os participantes selecionados no Concurso Incra 35 anos. Para o MDA e o Incra, entretanto, a recuperação da memória do Incra, seja pelos relatos dos servidores, seja através da recuperação documental que tem o papel de revelar a memória da instituição Incra e da ação Reforma Agrária que engrandece a missão desta autarquia, tão necessária ao desenvolvimento rural sustentável. Estão de parabéns os que participaram do concurso. Estão de parabéns todos os que defendem a reforma agrária como política pública estruturante e essencial ao Estado brasileiro. Rolf Hackbart Presidente do Incra Guilherme Cassel Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário Introdução No ensejo das comemorações dos 35 anos de criação do Incra, foram instituídos por meio da Portaria Incra/P no 372 de 03.08.05, o projeto Memória Incra-PMI, e o concurso Memória Incra 35 anos, em parceria com o MDA/Nead. No tocante ao concurso Memória Incra 35 Anos, seu objetivo principal foi estimular os seus servidores e servidoras da ativa, aposentados e ex-servidores, a participarem do resgate da memória do órgão, por meio do relato de suas experiências e vivências profissionais e funcionais, como atores privilegiados da sua história. Foram inscritos 81 trabalhos sobre a temática a partir do olhar dos servidores, com seus conhecimentos, práticas e motivações à época da ocorrência dos mesmos, e como hoje à luz de novos dados e informações, foram relacionados com a conjuntura atual, como cada um vê e explica os mesmos fatos e acontecimentos. No final foram premiados 12 trabalhos, objetos desta publicação, cujos autores receberam uma medalha comemorativa e um prêmio em dinheiro. E, também, 13 agraciados com Menção Honrosa. A categoria foi criada pela Comissão Julgadora em razão da qualidade dos trabalhos. Todos os inscritos receberam um certificado de participação. O livro ora entregue contém recortes de vários tempos e momentos da história do Incra, onde os servidores e servidoras por meio de seus relatos, nos levam a conhecer outras pessoas e aos seu lugares de trabalho, desconhecidos por muitos, por exemplo, ao extremo da Amazônia, e, principalmente, desvendando pequenos e grandes “segredos,” conhecidos por poucos, de sagas de 16 Nead Especial 2 histórias reais, verdadeiras, fidedignas, por eles testemunhadas e agora colocada à disposição do grande público. Os textos são recheados pelos sentimentos e emoções por eles vivenciados em momentos de suas vidas a serviço do órgão, num verdadeiro e consciente ato de doação como cidadãos e cidadãs participantes da construção de um grande projeto de desenvolvimento do nosso país, mais justo, mais humano, com mais oportunidade para muitos, em especial o acesso à terra para milhões de famílias de trabalhadores rurais. Este é o pano de fundo desses depoimentos. São, portanto, histórias acontecidas em vários momentos da trajetória histórica da instituição e em lugares onde os servidores do Incra, e dos seus antecessores, foram os desbravadores e plantaram sementes de trabalho e esperança, em especial na região amazônica. Histórias de descobertas e crescimento pessoal e profissional dentro da instituição, de encontro de pessoas, de cultivo de novas amizades, de casamentos e criação dos filhos e da formação de uma grande família. Muitos assim consideram o Incra como uma escola de vida formadora de muitos jovens de várias categorias profissionais que foram ao longo de 35 anos se unindo a outros já existentes no órgão, criando uma identidade, uma cultura, uma linguagem e muitos sentimentos que só os servidores do Incra são capazes de entender! Nos relatos não foram esquecidas as fases difíceis atravessadas pelo órgão e as feridas abertas na vida dos servidores, em particular no período do regime militar, onde aconteceram perseguições, demissões, e outros desencantos posteriores, como a extinção do Incra, a luta pela sua recriação, a colocação de servidores em disponibilidade. Em todos os momentos os servidores souberam resistir e manter-se unidos para continuar a luta. Ainda, encontramos referências especiais aos servidores cujas vidas foram ceifadas em plena juventude, quando a serviço do órgão. São eles nossos heróis anônimos, a quem devemos respeito e aos quais rendemos sinceras homenagens por suas atitudes corajosas e destemidas, no enfretamento de situações adversas, às quais foram submetidos, como, infortúnios e a causas naturais e também, nos confrontos com indivíduos contrários à atuação do órgão na defesa do interesse público e dos trabalhadores. O objetivo do concurso foi plenamente atingido, deixando uma grande lição e um desafio para que as histórias não fiquem guardadas nas gavetas, mas sejam lidas por todos os servidores da ativa e aposentados, pelos seus familiares, pelos amigos, enfim sejam conhecidas pela sociedade. Que os servidores continuem Memória Incra 35 anos registrando suas experiências e que as divulguem pelos meios existentes no órgão, ou seja, não precisam esperar novo concurso. Isto foi o concurso. No tocante ao projeto Memória do Incra, do qual o concurso constituiu uma parte importante, este deve ser entendido como um trabalho de resgate da história do órgão responsável constitucional pela execução da política fundiária brasileira. É uma parte importante do resgate da memória nacional ao lado da história da educação, da saúde, do trabalho no campo – memória camponesa – e outras de alto significado no processo de formação e construção da nação brasileira. É objetivo do projeto conhecer a história do órgão em toda sua extensão, por meio de dois eixos: o resgate da história oral e da história documental. Dentro das atividades da memória oral, até o momento, foram entrevistadas 44 pessoas, entre servidores da ativa, aposentados, ex-dirigentes. Os depoimentos serão, ao final dos trabalhos, colocados à disposição da sociedade. A parte da memória documental vem sendo desenvolvida; foram recebidos acervos de ex-servidores e de outras fontes. Para área de documentação o Incra conta com o valioso apoio do Arquivo Nacional. Os documentos resultantes do projeto Memória Incra, constituem matéria-prima especial para o processo de formação de outros profissionais que venham a trabalhar diretamente na reforma agrária ou em atividades ligadas ao desenvolvimento rural, a programas de capacitação na perspectiva da educação popular, ou a outros processos organizativos no meio rural. Também, poderão ser utilizados como material didático nos cursos de capacitação para servidores Incra em sala de aula, oficinas, encontros, objetivando que os servidores e outros agentes da reforma agrária passem a incorporar essas contribuições, como uma referência para suas vidas profissionais, funcionais e pessoais como cidadãos. Compartilhamos com todos os servidores e servidoras desta gloriosa instituição o alerta e o chamamento feito por um dos participantes do concurso em suas palavras: “para os servidores do Incra a palavra rotina não existe, porque a cada dia enfrentamos novos desafios e que temos de dar resposta.” Antonio Rubens Pompeu Braga 17 Memória Incra 35 anos Artigos premiados 1 35 anos em vida com os pés na terra A n to n i o P r a n c u t t i Terra O estudo de certas radioatividades naturais permitiu fixar aproximadamente a idade da Terra em 4,5 bilhões de anos. A Terra é o terceiro dos planetas principais do sistema solar, em ordem crescente das distâncias do Sol. Situa-se entre Vênus e Marte. Gira sobre si própria, com movimento quase uniforme, em torno de um eixo que passa por seu centro de gravidade, enquanto circula em redor do Sol e determina a duração do ano; e a rotação sobre si mesma, a do dia. A Terra tem a forma de um elipsóide de revolução, achatado. Seu diâmetro equatorial é de 12.756 quilômetros aproximadamente e seu diâmetro polar de 12.713 quilômetros. Graças ao Grande Criador por tudo que existe, depois de fixá-la, Deus fez o homem para nela habitar, procriar e seguir formando o grande canteiro para abrigar a humanidade na perene tarefa de continuar sua obra. E hoje, protegidos pelas leis naturais e seguindo as determinações criadas pela inteligência humana, o homem, senhor dos mares, dos desertos e da terra, afina-se com seus semelhantes, criadores e descobridores das máquinas e equipamentos que fizeram e fazem o desenvolvimento, mas tendo como célula-mãe a terra que precisa ser cuidada e protegida, como se fosse um ser vivo, nosso, semelhante a nós. Incra Pelo Decreto-Lei número 1.110 de 9 de julho de 1970, o presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici criou o Instituto Nacional de Colonização e 20 Nead Especial 2 Reforma Agrária (Incra), entidade autárquica vinculada ao Ministério da Agricultura, hoje Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com sede na capital da República, passando-lhe todos os direitos, competências, atribuições e responsabilidades do Instituto Brasileiro de Reforma agrária (Ibra), do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) e do Grupo Executivo da Reforma Agrária (Gera), que foram extintos. O instituto passou a ser dirigido por um presidente, indicado pelo ministro da Agricultura e quatro diretores; os funcionários das entidades extinguidas passaram para a nova autarquia. Iniciou-se assim, no Brasil, um procedimento mais compacto para cuidar da terra, da propriedade e da segurança dos proprietários rurais. Sempre foi um orgulho para mim, pertencer aos quadros funcionais do Incra e sempre alimentei o desejo de escrever sobre o que passei e presenciei, nos 24 anos que sirvo com vontade, lealdade e emoção ao instituto. Agora vejo essa condição mais privilegiada, quando posso, por deferência de uma parceria do Incra com o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), do MDA, participar do concurso Memória Incra 35 Anos. Nasci no interior do Rio Grande do Sul, na pequena e hospitaleira Garibaldi. Desde criança aprendi lidar com a terra. Meu pai trabalhou em forma de condomínio com seu irmão, em uma área de 11 hectares, herdada de seu pai que veio da Itália. Quando os filhos do casal foram crescendo, a família passou a explorar, de forma familiar, os 5,5 hectares que coube a cada um dos herdeiros. Meu pai além da vitivinicultura, principal atividade agrícola desenvolvida na região, ampliou também a atividade leiteira, visto que o rendimento com a venda do leite se fazia mensal ao passo que o rendimento pela venda da uva era anual. O ganho obtido com a venda do leite não era suficiente, mas era indispensável para o complemento da renda familiar. Minha irmã e meu irmão mais velhos foram trabalhar na cidade e sendo de oito membros a nossa família, coube a mim, o terceiro filho, a tarefa de ajudar meu pai nas atividades agrícolas. Ele, no entanto, sempre incentivou para que eu estudasse e assim pude conciliar trabalhar na roça durante o dia e estudar à noite. Durante as atividades que desenvolvíamos, conversávamos a respeito do meu futuro. Devido ao manejo com o gado de leite ser bastante árduo e exigir muitos cuidados sanitários, meu pai sempre nutriu o desejo para que eu fosse cursar veterinária. No entanto, ao se aproximar a data do vestibular eu lhe disse Memória Incra 35 anos que preferia o curso de direito e, como que prevendo o desiderato me disse: – “Filho é você que vai freqüentar a faculdade e não eu. Você deve fazer o que achar melhor para ti.” Ao tomarmos conhecimento que havia sido aprovado no vestibular de direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS), papai que sempre demonstrou ser uma pessoa forte e pouco emotiva, fruto das dificuldades da vida, simplesmente desmaiou de emoção. A opção pela carreira de advogado nunca me desvinculou da terra. A origem é uma coisa muito especial e nos faz manter raízes muito fortes com o meio de onde viemos. Mais tarde saí em busca de novos horizontes tanto pessoais como profissionais e me mudei para Brasília. Desde os primeiros anos de curso universitário, freqüentado com muitas dificuldades financeiras, meu pensamento sempre esteve voltado para as coisas do campo, da realidade de onde tinha vindo. Parece que tudo estava escrito pela mão do Grande Criador, pois, o destino me reservaria muitas emoções nessa área. A primeira ação que defendi tão logo obtive a tão almejada carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF), foi uma Ação de Reintegração de Posse no município de Cavalcante/GO, Comarca de Formosa na qual trabalhei com muito denodo e cuidando de todos os detalhes o direito de um paupérrimo posseiro frente ao poderio econômico do fazendeiro (esbulhador). Isto foi em 1980. Meu desempenho naquela ação despertou curiosidade por parte de um advogado de Brasília que sempre atuou nas questões agrárias, elogiando a “audácia” do jovem advogado. Com o trabalho reconhecido, mas, em dificuldades para me manter no escritório de advocacia juntamente com mais três sócios, todos com outras atividades, aliado ao gosto pelas causas agrárias, ensejou para que eu fosse contratado pelo Incra, em 25 de junho de 1981, na qualidade de advogado junto à Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) para prestar serviço ao Incra, tendo atuado até 31 de maio de 1983 junto a Divisão de Desapropriação em Brasília. Com enorme desejo de retornar ao sul, após mais de sete anos de muita experiência na capital da República e, aliado a problemas de saúde de minha finada mãe, e para ficar mais próximo dos meus entes queridos, me propus a vir para a cidade de Chapecó. Mas, o que mais me levou a escrever sobre os 35 anos do Incra são as experiências vividas nestas plagas fronteiriças, que, humildemente passo a relatar: 21 22 Nead Especial 2 O Incra tem, ao longo desses 35 anos, dois momentos bem marcantes e distintos. O primeiro vai de sua criação em 1970 até 1985, período em que o órgão cuidou da regularização fundiária e em um segundo momento, com a redemocratização do país, a partir de 1985, seu trabalho foi direcionado para o assentamento de agricultores rurais sem-terra, ou seja, na execução da reforma agrária propriamente dita. Desde a criação do projeto fundiário em Santa Catarina ocorrida em 30 de novembro de 1972 pela Portaria Incra, 2.562, com sede em Chapecó, região limítrofe com o Rio Grande do Sul e Paraná e próxima da Argentina, havia um planejamento que previa a instalação de uma unidade fundiária no município de Xanxerê, que teria como objetivo cuidar da regularização fundiária da ex-colônia militar que havia sido criada naquele município. No início de 1985 foi criada a referida unidade, quando fui designado para chefiá-la. Tão logo iniciei os trabalhos que visavam a regularização de vários minifúndios existentes na microrregião de Xanxerê, minha função dentro da autarquia mudou radicalmente, como se verá adiante. O segundo momento do Incra teve início com a reabertura democrática. Na verdade, o país vivenciou em 1984, uma grande luta em prol da democracia, com a campanha “Diretas já”. Com a reabertura democrática todas aquelas reivindicações sociais, todo aquele acúmulo de demandas passaram a fazer parte do programa do novo governo. Com a eleição de José Sarney a presidente da República, após 21 anos de regime militar, o governo atento às reivindicações dos movimentos sociais incluiu em seu programa a Reforma agrária. Como o atendimento da demanda por terras se acentuou durante o regime militar, o movimento dos sem-terra, que há alguns anos já vinha se organizando, não deu folga ao governo recentemente empossado e numa verdadeira orquestração nacional promoveu uma avalanche de invasões, levadas a efeito no dia 25 de maio de 1985. Esse dia passa a ser um divisor de águas e marca o início da reforma agrária no Brasil e é a partir dessa data que este humilde servidor do Incra começa a viver profundas experiências humanas e profissionais, coincidindo com o deslocamento funcional ao município de Xanxerê, visto que o município de Abelardo Luz, palco de muitas invasões, fica próximo daquele. A bem da verdade, é bom que se diga que o quadro funcional do Incra não estava aparelhado para atender e enfrentar tão delicada questão que sempre foi a Reforma Agrária. O Incra, até então tinha executado a atividade de regula- Memória Incra 35 anos rização fundiária e, de repente, se viu diante de outra realidade fundiária, muito mais dramática e complexa e tendo que atender as pressões de um movimento social muito bem organizado e programático. Com as invasões ocorridas em maio de 1985, o Incra pressionado pelo MST firmou um termo de compromisso, tendo ainda como avalistas os Sindicatos de Trabalhadores Rurais e outras entidades ligadas ao setor, o qual estipulava um prazo de 90 dias para que o governo Federal, através do órgão executor da reforma agrária, desapropriasse 20 mil hectares de terras para o assentamento de duas mil famílias de agricultores, notadamente, na região oeste de Santa Catarina. Assim que o superintendente estadual assumiu o cargo, se viu diante de enormes dificuldades para tentar cumprir o termo dentro do prazo estabelecido e na quantidade de área pretendida. Ouvi o superintendente falar de como poderia encaminhar aquela delicada situação e eu de pronto lhe disse que tinha iniciado minha atividade no Incra exatamente na Divisão de Desapropriação em Brasília e por isso poderia contar comigo caso necessário, que eu conhecia o pessoal que trabalhava nessa área e que poderia agilizar o andamento dos processos. Eu não tinha noção exata de quantos e nem quais processos haviam sido constituídos, visto que foram formalizados no âmbito da Superintendência, porém, não me importava a demanda, se chamado eu iria executar uma missão muito especial e por certo encontraria respaldo tanto da Superintendência quanto dos meus colegas de Brasília para a execução de referida tarefa. Um pouco antes de embarcar para Brasília, os meios de comunicação regionais noticiaram que estava se deslocando para a capital federal um procurador do Incra para agilizar os processos de desapropriação com objetivo de assentar duas mil famílias de agricultores, fazendo parte do compromisso assinado. Não demonstrei qualquer preocupação com as notícias, pois,iria cumprir uma missão e pretendia fazê-la da melhor forma possível. Pensava que quanto mais ficasse no anonimato melhor seria, para dar andamento aos trabalhos. Logo após as invasões, por determinação do instituto e devido à própria demanda, eu visitava pelo menos três vezes por semana os acampamentos dos sem-terra. O maior deles ficava localizado na denominada Sede Roseira, no município de Fachinal dos Guedes. Eram centenas de famílias aglomeradas numa área que pertencia à empresa Santa Úrsula Florestal, que recebeu incentivos fiscais para a execução de um projeto de plantio de noz pecã, que não vingou e então a área estava arrendada para uma família de Xanxerê. 23 24 Nead Especial 2 Bem me lembro, em uma ocasião, juntamente com o superintendente e um representante do governo do Estado, lotado na Secretaria de Agricultura de Santa Catarina em visita àquele acampamento, a enorme população acampada nos recebeu com cânticos e palavras de ordem em prol da reforma agrária, sabendo da importância dos cargos ocupados pelos “visitantes da capital”. Na ocasião o representante do Estado me disse: “-Eu gostaria de estar no teu lugar. Daqui a alguns meses irei fazer um curso de mestrado na Espanha e por certo já teria a minha tese baseada nessa atividade que desenvolves em meio a toda essa situação.” Refleti sobre a conversa, mas as reivindicações e problemas eram tantos que não tinha muito tempo para pensar a respeito. No entanto, a observação me deixou bastante lisonjeado. O acampamento que eu atendia com mais freqüência ficava no município de Abelardo Luz, também numa área pertencente à Santa Úrsula Florestal que tinha obtido incentivo fiscal para executar um projeto de plantio de macieiras, todavia, a exemplo do que ocorreu com o outro imóvel, também esse projeto não prosperou, de sorte que a área estava arrendada para uma família de agricultores daquele município. Naquele local se concentravam também centenas de famílias sem-terra, com quem, desde o início mantive um bom relacionamento. Essa aglomeração se deveu ao fato da proprietária do imóvel Papuan I, Anair Motta dos Santos Pereira, ter ingressado com ação de reintegração de posse e com isso grande parte daquelas famílias que lá se encontravam se deslocaram para a área da Santa Úrsula Florestal, que ficava próxima daquela, enquanto outras permaneceram na beira de uma estrada perto da área que foi desocupada por ordem judicial. No novo acampamento na área da Santa Úrsula Florestal não seriam molestadas, pelo menos por algum tempo, visto que tinha sido decretada a falência da empresa; sendo que o Banco do Estado de Santa Catarina arrematou o imóvel e o governo do Estado não tinha interesse em aumentar o conflito social. Os problemas surgiram depois com os arrendatários, e isso, mereceu muita negociação. Nesse período, até a efetivação das desapropriações, conforme se verá adiante eu me dirigia tanto a esse acampamento quanto ao daquelas famílias que permaneciam à beira da estrada. As reivindicações eram tantas que parecia que eu passava num “corredor polonês.” Com muita calma e escutando mais do que falando eu permanecia junto com os sem-terra e quando retornava a Memória Incra 35 anos Abelardo Luz, distante cerca de 32 quilômetros, visitava a prefeitura e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, quando as pessoas daquele meio,ansiosas, queriam saber como estava a situação. A imprensa dava ampla cobertura porque era inédita a situação que estava ocorrendo. No país inteiro os meios de comunicação davam destaque à questão da reforma agrária. Aliás, com repercussão mundial e, por incrível que pareça eu nunca me defrontei com os órgãos de imprensa. Nutria meus superiores com todas as informações possíveis, cabendo a eles a tarefa de repassar para a imprensa. No âmbito mais local junto à Prefeitura Municipal e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais eu informava o andamento das ações levadas a efeito pelo Incra em Abelardo Luz. Após essa digressão, retorno sobre a minha missão em Brasília na instrução dos processos de desapropriação de interesse da SR-10, marco significativo na minha atividade dento do Incra. Todo final de tarde eu fazia um relato ao superintendente sobre o andamento dos 14 processos que tinham ficado sob minha responsabilidade. Feito o relato retornava a rotina de trabalho, analisava as peças dos autos por diversas vezes, me dirigia ao encontro de diretores para explicar qual era minha missão ou tratar dos processos em cada área específica. Bem recordo que com o procurador-geral discuti sobre um processo, do imóvel Putinga, localizado nos municípios de Caçador e Matos Costa, onde estava presente uma questão florestal, muito comum naquela região, onde há muitos reflorestamentos. O procurador-geral tinha grande preocupação com a questão florestal, de sorte que o processo necessitava de um estudo mais aprofundado. Com o diretor de Recursos Fundiários debati sobre grande parte dos processos, objetos de minha análise. Sentia-me bem à vontade porque tinha uma boa bagagem na área fundiária. Toda diretoria do Incra havia tomado posse alguns meses antes e não estava ainda suficientemente habituada com os trâmites dos processos, além de que os mesmos enfrentavam uma agenda sempre lotada durante o expediente normal e após esse era um momento apropriado para tratar dos assuntos pendentes. Nesses encontros, um foi muito especial. Fui ao diretor de Cadastro e expliquei a razão da minha ousadia em interrompê-lo, visto que eu estava atrás de dois processos que haviam sido distribuídos àquela diretoria, por coincidência ambos do município de Anchieta referentes aos imóveis Sanga Azul e Aparecida. Os 25 26 Nead Especial 2 dois processos estavam com problemas semelhantes. Expliquei-lhe de como eu achava que deveriam ser encaminhados. Então ele calmamente, como se fosse de pai para filho me disse: -“Filho, se o que você está me dizendo é o correto, é o que verdadeiramente precisa ser feito, pode fazer o despacho que eu assino.” O despacho era para tomar providências no aspecto cadastral dos imóveis. Não me fiz de rogado. Redigi os despachos, ele leu e aprovou. No dia seguinte os processos foram remetidos para a adoção das providências recomendadas. Aquele rápido e importante encontro me deixou bastante comovido e não raras vezes o recordo com emoção. Permaneci 15 dias em Brasília trabalhando nos processos para que o presidente da República os assinasse. Foi uma tarefa árdua, pois em cada processo havia a necessidade de providenciar a minuta do decreto, fazer uma informação jurídica, elaborava uma ficha com resumo dos valores envolvidos na proposta, fazer a exposição de motivos do ministro da Reforma agrária ao presidente da República e o ofício de encaminhamento do presidente do Incra para o ministro. Retornei a Xanxerê extremamente cansado e naquele final de semana eu só queria descansar. Já era o último dia de agosto, quando expirava o prazo estabelecido no Termo de Compromisso. No entanto, a recompensa estava por vir. No dia 3 de setembro de 1985, o presidente da República declarou de interesse social para fins de reforma agrária os imóveis rurais: Entre Rios (1.030,8000 ha), Jacutinga (390,4236 ha) e Rabo de Galo (405,1169 ha) no município de São Miguel do Oeste; Barra Escondida (490,3000 ha) e Lageado Grande (1.256,9208 ha) no município de São José do Cedro; Papuan I (362,0000 ha) Sandra (1.039,1441 ha) e Santa Rosa I (1.241,0000 ha) no município de Abelardo Luz; Derrubada (601,5717 ha) no município de Ponte Serrada e Parolim (7.219,1642 ha) no município de Itaiópolis, único fora da região oeste do Estado, totalizando 13.005,6400 hectares. As outras três áreas referentes aos imóveis rurais “Sanga Azul e Aparecida”, com áreas respectivas de 218,7773 ha e 280,5000 ha, localizados no município de Anchieta, também no oeste do estado e mais o imóvel “Putinga”com área de 4.412,3683 hectares, localizada nos municípios de Caçador e Matos Costa, no meio oeste, foram desapropriadas no dia 31 de dezembro de 1985, somando mais 4.911.6456 hectares, para atendimento do Termo de Compromisso. Com relação a outra área do imóvel “Fazenda Velha”com área de 515,0000 hectares somente foi desapropriado após algum tempo, pois o IBGE teve que se posicionar quanto a exata localização do imóvel, se num município ou outro, concluindo Memória Incra 35 anos afinal de que parte ficava no município de Irani e outra parte no município de Catanduvas, igualmente localizados nesta região. Depois outros imóveis foram sendo desapropriados, principalmente no município de Abelardo Luz. Só para se ter uma idéia da importância do município na Reforma agrária, o mesmo conta atualmente com 22 assentamentos, totalizando 1.229 famílias assentadas. O período posterior aos decretos de desapropriação foi intenso, um trabalho rico e repleto de experiências, às vezes bem complicadas, mas, com certeza, gratificantes. Discorrer a respeito de cada uma delas é motivo de muita emoção. Foram dias, meses e anos de uma experiência singular. Muitas foram as reuniões, as negociações tanto com assentados quanto com os desapropriados, cada um com suas razões. Creio que até hoje nem o MST nem mesmo os desapropriados sabiam que fui eu quem foi à Brasília para tratar da desapropriação das áreas, não só daquelas que fizeram parte do pacote inicial, mas de muitas outras. Sem forçar nada eu ia vivenciando aquilo de forma espontânea. Tratava com madeireiros que estavam extraindo madeira, cujos acordos foram celebrados tanto com o Incra quanto com os expropriados e com os assentados, pois quando da desapropriação estava em vigência contratos de extração de madeira, devidamente aprovados pelo Ibama, até porque,os madeireiros tinham compromissos assumidos, tinham funcionários e contratos a cumprir com clientes. Foram feitas inúmeras reuniões com os assentados, orientando-os para que não desmatassem as beiras das fontes de água ou em áreas íngremes e que deixassem pelos menos 20% de reserva legal em cada parcela. Grande parte das reuniões era para tratar de assuntos do assentamento, nas quais as lideranças faziam as suas reivindicações, eu anotava e repassava por meio de relatórios à Superintendência. Eu sabia que me encontrava deslocado de minha função, mas naquele momento não havia como modificar asituação. Estava tão envolvido com o dia-a-dia de minhas atividades junto àquelas pessoas necessitadas, que os superiores não cogitavam em delegar as tarefas. Mas posso afirmar que tudo o que fiz foi para o cumprimento do dever assumido quando de minha diplomação, aliando profissionalismo, cautela e muita dedicação, pois estava tratando com seres humanos. Outras experiências merecem destaque: Em um sábado à tarde me reuni num restaurante na cidade de Abelardo Luz juntamente com os ex-proprietários do imóvel Santa Rosa I e com o procura- 27 28 Nead Especial 2 dor dos mesmos para viabilizar um acordo em relação ao preço oferecido pela desapropriação. A reunião começou às 14h e se estendeu até às 20h. Eu tinha um jantar promovido pelo Lions Clube em Xanxerê. Quando cheguei, lá pelas 21h, minha esposa estava pálida e meus amigos apreensivos, pois sabiam que eu vivia envolvido com problemas e que tratava com muitas pessoas, estava sempre só. Fui recebido com palmas, o jantar transcorreu normalmente e tive a oportunidade de expor para alguns presentes como eram as regras estabelecidas pelo Incra para as negociações. Para minha satisfação, após aquele encontro proveitoso, o acordo foi celebrado, não só com os desapropriados do imóvel Santa Rosa I, que residiam na cidade de Guarapuava, no Paraná, mas, também foi celebrado acordo nos mesmos moldes com a ex-proprietária do imóvel Sandra, que veio especialmente do Rio de Janeiro para acompanhar a reunião. Outro episódio que convém destacar é o que diz respeito a uma tentativa de ser amarrado no tronco de uma árvore, por sugestão de uma freira que se encontrava fazendo uma reunião no assentamento Santa Rosa I, que se dirigiu com veemência contra minha pessoa, falando mal da atuação do Incra. No entanto, como eu tinha um bom relacionamento com os assentados, principalmente com as lideranças e fazia só o meu trabalho, o intento da freira não logrou êxito. Um episódio, este extremamente lamentável, foi quando me dirigi, juntamente com o motorista do Incra e o oficial de Justiça de Abelardo Luz a fim de proceder a imissão de posse no imóvel Serra dos Buracos, também em Abelardo Luz. Fomos recebidos por cerca de 12 empregados da fazenda. O clima de animosidade estava no ar. As pessoas estavam fortemente armadas. Tão logo chegamos à casa de um dos expropriados, apareceu o outro expropriado que entrou esbravejando contra o ato de desapropriação. Nós três nos olhamos e, sinceramente, ficamos esperando pelo pior. Minhas palavras não faziam qualquer sentido ao revoltado ex-proprietário. Não fosse a intervenção do oficial de Justiça, que era muito conhecido das pessoas presentes, nossas vidas estariam seriamente ameaçadas. Mais adiante, numa audiência na Justiça Federal referente a uma ação de reintegração de posse movida pelo Incra sobre aquele imóvel, visto que o exproprietário insistia em molestar as pessoas acampadas, o mesmo me ameaçou de morte tão logo o juiz se retirou da audiência. Fui à sala do magistrado e este me aconselhou procurar a polícia para registrar queixa e foi o que fiz. Passado Memória Incra 35 anos algum tempo, o advogado do indignado cidadão, com o qual mantenho um bom relacionamento, me procurou dizendo que o mesmo queria se desculpar. Só que não aceitei o pedido de desculpas, pois sempre respeitei as pessoas e a lei, fui ameaçado e humilhado no cumprimento do dever. No entanto, outras tantas experiências gratificantes são dignas de registro. Estava hierarquicamente vinculado ao executor do projeto fundiário localizado em Chapecó. Entretanto, somente na atividade administrativa me dirigia a Chapecó, mas no aspecto técnico e jurídico na condução das várias facetas no município de Abelardo Luz, eu falava diretamente com a Superintendência, face a urgência na tomada de medidas. Quando me deslocava para Abelardo Luz, era uma avalanche de pessoas e de pedidos, seguia para o sindicato, prefeitura ou qualquer outra repartição era assediado, parecendo que eu era a solução para eles, não imaginando quão é difícil tratar as demandas. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais fica no lado direito da Rua Padre J. Smedt, 1676, centro de Abelardo Luz. No lado esquerdo ficam a prefeitura e o fórum. Para este narrador que tinha morado durante algum tempo em Brasília, dava a impressão que era a Praça dos Três Poderes em miniatura. Caso eu demorasse em visitar um ou outro local, era chamado ou por um funcionário da prefeitura ou do fórum, este em menor escala. No sindicato os pleitos eram para saber quem seria assentado, ou quem deveria ser excluído do recebimento de cestas básicas e uma série de outras demandas. Na prefeitura era tratada a questão do transporte, -visto que há um imóvel que fica a 40 quilômetros da sede do município- da educação, da saúde e do andamento das propostas de desapropriação. Certa vez, por conhecer mais ou menos o funcionamento da máquina pública e saber exatamente os termos a serem colocados, em nome da Prefeitura redigi um ofício para o então Ministério Extraordinário da Reforma Agrária. Sempre tive condições de ajudar na solução dos encaminhamentos. Repetindo-se os fatos quando eu fui cumprir a missão de agilizar os primeiros processos de desapropriação, já conhecia grande parte dos imóveis, sabia quem eram seus proprietários, sabia se estavam em faixa de fronteira ou não, tinha conhecimento da questão ambiental, tendo a dimensão exata do imóvel e da clientela que mais tarde seria assentada. No fórum, várias vezes o juiz queria saber se estavam em andamento novas propostas de desapropriação e se havia a possibilidade de novos assentamentos, 29 30 Nead Especial 2 visto que outros imóveis se encontravam invadidos. O juiz queria evitar a execução de reintegrações de posse e muitas vezes, foram negociados prazos para a desocupação, pois estavam em trâmite outras propostas de desapropriação. Outro aspecto que deve ser enfocado é a atuação do Incra no Conselho Municipal Agrário, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República e que previa a instalação de Conselhos Agrários Estaduais e Municipais, coordenados pelo Incra, com a participação da prefeitura, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Sindicato Rural, cooperativas, um ou dois representantes do MST, representante da Empresa de Assistência Técnica do Estado e outras entidades ligadas ao setor produtivo. As reuniões eram difíceis, porque estava em jogo o futuro dos pretendentes ao assentamento. Por ser funcionário do Incra cabia a mim coordenar os trabalhos. Enquanto a comissão se reunia nas dependências da prefeitura, no lado de fora ficavam centenas de agricultores aguardando o desfecho. Nesses encontros eu levava toda a documentação referente à vida pregressa dos candidatos, e que continha basicamente o seguinte: se tinham passagem pela polícia, se já tinham sido proprietários de imóveis rurais e se já tinham sido condenados pela justiça, e diga-se de passagem, essas providências também eram feitas por mim. O representante da prefeitura, quase sempre o chefe do Executivo Municipal pugnava para que pelo menos 50% das vagas destinadas ao assentamento fossem preenchidas por pessoas oriundas do seu município, condição essencial para que ele pudesse arcar com as despesas, principalmente nos setores da educação e saúde. Às vezes havia divergência quanto a um ou outro nome e aí era solicitado o devido esclarecimento por parte dos representantes do MST. Confesso que nunca tive qualquer problema dessa ordem. A escolha dos parceleiros sempre foi feita de forma respeitosa e transparente. Sem deixar de lado as narrativas acerca das experiências que ora trago a tona, vários foram os momentos em que eu não tinha a tranqüilidade suficiente para me comunicar com meus superiores sobre as medidas que estava tomando ou que precisava tomar, tanto no sindicato quanto na prefeitura que sempre estavam repletos de pessoas, cujas narrativas poderiam interessar-lhes. Então eu me dirigia ao Cartório de Registro de Imóveis que fica um pouco afastado e falava gentilmente ao titular, pedindo-lhe para fazer uso do telefone e me comunicar com meus superiores, dando-lhes as informações necessárias. Até na hora do Memória Incra 35 anos almoço eu tinha que me deslocar para fora do centro da cidade, caso contrário eu não teria tranqüilidade para fazer a refeição, pois as pessoas ao me verem, faziam as cobranças e pedidos de informações. Sorte que Abelardo Luz tem uma natureza privilegiada e me dirigia até o restaurante que fica junto às belezas incomensuráveis das Quedas de Abelardo Luz, um paraíso ecológico e natural, uma verdadeira réplica das Sete Quedas do Iguaçu. Nesse local, além de usufruir da natureza eu aproveitava para me programar para as atividades da tarde que na maioria das vezes consistiam nas visitas aos assentamentos ou acampamentos. Abelardo Luz, como se pode notar, estava sempre em ebulição, parecia um verdadeiro Eldorado da Terra. Hoje a economia do município, não obstante, ser grande produtor de soja, depende muito dos assentamentos. Residi em Xanxerê até maio de 1987, quando retornei ao então Projeto Fundiário de Santa Catarina com sede na cidade de Chapecó, para assumir a chefia do Grupamento Fundiário. Todavia, o remanescente de Abelardo Luz e suas incontáveis histórias ficaram para sempre na memória deste servidor do Incra. Com meu retorno a Chapecó e a instalação da Vara Federal de Chapecó e Joaçaba, em dezembro de 1997, os procuradores passaram a atuar no contencioso, aliás acredito que seja a única Unidade Avançada em que os procuradores atuam no contencioso. Inicialmente a atuação se deu nos executivos Fiscais, tanto na Justiça Federal quanto nas comarcas da região. Após o Grupamento Fundiário, mesmo não descuidando dos remanescentes de regularização fundiária mergulhou fundo nas ações de cunho contencioso, desapropriações propriamente ditas, tanto das provenientes de regularização fundiária quanto das de reforma agrária. Nesse ínterim vale destacar que mais de uma vez fomos chamados pelos magistrados, principalmente pela primeira juíza que tomou posse na Vara Federal de Chapecó, vinda da cidade de Santos-SP, para falar sobre desapropriações e sobre reforma agrária. Um dia a magistrada me confessou : -“Dr. não estou muito convicta do arrazoado feito por um advogado. Estou achando que ele está faltando com a verdade, gostaria de ir juntamente com um oficial de Justiça para verificar in loco que está acontecendo no imóvel Sandra.” A questão envolvia a retirada indevida de madeira de parte de alguns assentados, que ficou retida por determinação do Incra. Utilizamos uma viatura do Incra e nos dirigimos ao local. A magistrada se convenceu de que efetivamente os fatos narrados pela defesa não condiziam com a realidade constatada no imóvel. 31 32 Nead Especial 2 Para encerrar, narro um acontecimento que muito me emocionou da forma como se deu. No dia 30 de dezembro de 1996, eu, um motorista do Incra e um oficial de Justiça de Joaçaba, fomos fazer a imissão na posse do imóvel Fazenda do Confinamento, atual Projeto de Assentamento Zumbi dos Palmares, localizado no município de Coronel Passos Maia, que há pouco tempo havia se desmembrado do município de Ponte Serrada. Aliás, hoje é o segundo município em número de assentamentos. Ao chegarmos no imóvel, tinha inúmeras pessoas em cima de árvores comendo guavirovas (fruta da época com forte produção na região), que desceram rapidamente e foram se aproximando. Quando o oficial de Justiça disse que veio cumprir o mandado de imissão de posse, a alegria transbordou na face daqueles rudes senhores, senhoras e crianças, cuja vibração foi tão forte que nos emocionou. Que belo presente de final de ano. Essa é a verdadeira recepção de uma imissão de posse, não como a que narrei anteriormente. Deixamos o oficial de Justiça em Catanduvas, a 25 quilômetros de Joaçaba. Retornamos a Ponte Serrada para abastecer o veículo, cumprimos a última tarefa, que era passar um fax para a Superintendência, que estava aguardando com inusitado interesse a comunicação da imissão de posse, que visava a complementação da meta estabelecida para aquele exercício. Falei para o motorista que isso merecia uma comemoração. Abrimos uma garrafa de cerveja e brindamos como se fosse um champanha. O momento era próprio porque estava chegando o final de ano e tínhamos acabado de concretizar um sonho não só do Incra, mas principalmente de várias pessoas que estavam aguardando com muita ansiedade por um pedaço de chão para plantar e colher os frutos que as alimentam. O resgate da memória da reforma agrária no Brasil, que tornam a reconstrução e valorização dos 35 anos de história do Incra, sugeridos no concurso Memória Incra 35 Anos, possibilitou a este servidor trazer para o texto, o que a memória guarda com tanto carinho e valorização, dos dias e momentos vividos nos gabinetes diretivos e na terra em meio aos conflitos e os acordos celebrados que hoje resultam em paz e desenvolvimento. Nestes 35 anos, o Incra atenuou os problemas vividos pelo homem do campo promovendo a regularização fundiária. Democratizou o acesso a terra fazendo a inserção social de milhares de famílias que se encontravam à margem do processo produtivo através da execução da reforma agrária. Para os próximos anos creio que a atuação do Incra deverá se voltar pela adoção de políticas públicas que Memória Incra 35 anos viabilizem a permanência dos assentados em suas parcelas permitindo que os mesmos possam se desenvolver social e economicamente. Por certo o quadro funcional da autarquia e seus parceiros não medirão esforços para a consecução de tais políticas sociais. 33 2 Extrativismo: ainda bem que chegou tarde Ra i m u n d o J o s é A l m e i d a Bat i s ta Em 1971, nem lembro em qual mês, cheguei com mais oito irmãos (quatro homens e quatro mulheres) à cidade de Humaitá, vindo perambulando de seus interiores fugindo das mazelas e inúmeras malárias. Todo pai quer para os filhos as oportunidades que não teve. E com a gente também foi assim. Lembro-me vagamente como se tudo fosse um sonho, pois custamos acreditar quando realizamos aquilo que tanto queremos. Humaitá era uma cidade simples, ruas de terra, poucos carros e explicitada divisão de classes sociais pobres e ricos. A cidade vivia ainda, resíduos dos tempos áureos da borracha. Ao chegarmos ao cais do porto, uma escada de concreto que ia até próximo às águas barrentas e caudalosas do rio Madeira, nos permitiram dar nossos primeiros passos na nova terra. Vários curiosos e estivadores ali estavam. Em cidade pequena os barcos de linha (recreios) são as maiores atrações. Acabávamos de fugir da exploração de seringueiros implementada pelos patrões seringalistas, abastados à custa das ignorâncias e necessidades dos homens de inúmeras noites em claro. Não lembro, mas posso imaginar quantas humilhações meu pai e outros seringueiros sofreram, além daqueles que “sumiam” ao final do fabrico porque haviam tirado saldo (que nunca recebiam) sempre havia uma justificativa para aqueles sumiços repentinos A onça era quem levava a culpa. O perigoso felino comia todos que tinham algo a receber, nas constantes versões dos patrões. Fugíamos das pragas, da escravidão branca e da vida quase nômade que levávamos, que todas as terras que habitávamos tinham sempre um proprietário cobrando arrendamentos absurdos e impossíveis de serem pagos. Eram as formas mais claras de manterem seus fregueses sob seus domínios. Memória Incra 35 anos Ao chegarmos à Humaitá passamos a viver normal. Papai trabalhava fazendo bico aqui e ali e meus irmãos mais velhos ajudaram a criar a gente. Na realidade, nós nos viramos. Estudamos, mas Deus me deu o dom de desenhar. Com 18 anos fui contratado pelo Incra, e aí começa toda história: Fui contratado no dia 6 de agosto de 1982. O Brasil acabava de perder para a Itália, na Espanha, a Copa mais fácil de ganhar, naquela inesquecível tragédia de Sarriá, o dia PR (Paulo Rossi). Bom! Aquilo para os brasileiros era o ano de zebra, para mim foi o meu ano de sorte. Estava contratado pelo Incra, o mais benfeitor instituto das questões sociais da Amazônia brasileira. O Incra realizou em 30 anos naquela região, a justiça social, definindo o que era de propriedade particular e de domínio do Estado e posteriormente da União (aquelas que os seringalistas, diziam ser também deles) por meio da arrecadação de glebas. A disciplina foi fundamental para que Pedro Ferreira, seringueiro e morador do beiradão, bradasse em voz alta, dizendo que tinha se libertado da escravidão ao receber seu título definitivo de terra: Até anos atrás, nenhum pobre tinha terra, de um rio a outro tudo tinha dono e a gente se quisesse trabalhar, tinha que aceitar os regulamentos impostos pelo patrão. Pedro Ferreira, falava dos que eu chamo de títulos cometa, de cabeça pequena e cauda enorme, estendendo aos seringalistas o poder de cobrar pela extração de produtos e áreas que nunca lhes pertenceram. Mas, quem ousava em contestar o Estado do Amazonas que expedia o título, sempre para amigos de governadores? Ou a elite comprometida com os coronéis de barranco e às vezes sustentada por eles ou sustentada pela pobreza do povo? Nesses 23 anos de Incra participei de várias viagens e algumas aventuras. Sofri com doenças regionais, principalmente por nove vezes a danada da malária me pegou. Rios, lagos, igarapés, estradas, vicinais foram testemunhas das aventuras cercadas de esperanças de “gente” que regularizamos seus sonhos. Beiradão – à beira de rio. Nota da revisora (NR). 35 36 Nead Especial 2 Por quatro anos fui executor da Unidade Avançada de Humaitá-AM, divulguei o trabalho social de nosso órgão, escrevendo para jornais, rádio e televisão e acho que fiz um bom trabalho. Nada disso me impressionou mais que o que aconteceu há pouco tempo. Ao deixar a executória da Unidade, passei a trabalhar no setor de criação de projetos, e foi aí que tudo aconteceu. Criamos dois projetos de assentamento, o Botos (Humaitá) e Jenipapo (Manicoré). Para os dois, fui sem diárias, devido às dificuldades das unidades, porém valeu a pena, pois foi conhecendo as normas do extrativismo que minha vida mudou. Comecei a ver as coisas com outros olhos e valorizar ainda mais o homem do interior, com suas peculiaridades, amor pelas coisas que Deus criou especialmente para eles, para que pudessem nos ensinar. Conheci várias pessoas, inúmeras histórias e grandes heróis, que por mais que eu tente entender, jamais saberei a dimensão que eles representam para a história de um povo gênese da enganação desde o eldorado prometido e não cumprido pelo próprio regime humano. Onde moravam, onde viviam esses heróis? Moravam, viviam, entre rios, lagos, igarapés abandonados pelo sistema, que só incluía quem podia contribuir de forma satisfatória. Foi aí que o Incra chegou, constatou que a terra que eles habitavam era de domínio da União. Então criamos o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE), reconhecendo as famílias tradicionais, que ali vivem a centenas de anos a contar pelos seus deuteroses. Ali eles viveram, criaram seus filhos, que criaram seus netos e bisnetos, vivendo exclusivamente em parceria com a mãe natureza. Eles deixaram de ter patrões que os exploraram durante dezenas de anos e passaram a vida cuidando para os outros como me disse Júlio Costa, que vive nos Botos há mais de 60 anos, sendo fiel ao patrão até na hora de vender seu produto extrativista Se não o fizesse ele o mandava prender por roubo, mesmo em área que nunca lhe pertenceu. Deuterose – representação ou reprodução de uma coisa. Tradição, descendentes. (NR). Memória Incra 35 anos Aqueles heróis viveram a metade de suas vidas separados de suas famílias pelas seringueiras e castanheiras da vida, que durante suas existências separam em fábricos que eles dividem em seis meses. No verão eles cortavam as estradas com dezenas de seringueiras próximas às suas casas ou nos “centros” quando vinham de mês em mês para visitar sua prole, sempre numerosa e saudosas heroínas que foram mães e pais por todo o tempo ausente desses heróis. No inverno, partiam para os “centros” com seus paneiros novos e enormes para o “fábrico das castanhas”, onde viajam dias e dias para passarem seis meses longe de suas residências, outra vez entregues às suas eternas companheiras que durante sua vida conjugal só eram separados pela distância que se fazia necessária. A lealdade sempre esteve presente naqueles casais que levaram muito a sério “até que a morte os separe” e mesmo depois da morte, poucos foram os que buscaram novas companhias. Ao criamos o PAE, me vi diante daqueles homens e mulheres que na infância eu sabia, mas não conhecia como eles viviam Passei a viver os problemas deles, a lutar por eles, a defendê-los e admirá-los como meus heróis de carne e ossos, às vezes mais ossos do que carne, que o próprio tempo se encarregou de eliminá-las, Deles sobraram a fé no seu padroeiro ou em Nossa Senhora, que não fica sem fogos (foguetes) nas noites de quermesses. Esse povo culturalmente rico preserva os costumes e obediências, e tem dificuldades de se adaptar às evoluções do mundo, mas nos dão lições de dignidade a cada dia que com eles convivemos. Passaram a vida toda extraindo da mãe natureza alimentos para viver, produto para sobreviver e ornato para enfeitar suas vaidades, que digam as belas morenas de pernas grossas que desfilam seus charmes, confundindo os adolescentes, que no beiradão, são adultos antes do tempo. Isso me impressionou tanto que passei a viver para eles (os extrativistas) e a me sentir como um deles e por muitas vezes fui um também… Nada me impressionou mais que no dia que foi pago o crédito-habitação, no PAE Jenipapo. Toda minha história veio à tona, o governo Federal por meio Fabrico, fábrico – de fabricar, fabricação. Na Amazônia, período seco durante o qual é cortada e preparada a borracha.(NR). Paneiro – cesto de vime; bancada à ré de pequenos barcos para passageiros (NR). 37 38 Nead Especial 2 do Incra, estar construindo uma casa para quem sempre viveu morando mal, além de caixa d’água, vaso sanitário, nossa! Isso é um sonho! Nada foi mais forte que isso; pensei em minha família, voltei ao passado quando nem sonhava em ser funcionário público, nem sabia o que era isso, morava no interior em casas extremamente rústicas, cobertas de palha branca, cercadas e assoalhadas de paxiúba e fomos para cidade para fugir do desconforto. É senhores jurados! Meu coração disparou de alegria, só de imaginar, que se em 1971, se já existisse o Incra em Humaitá criando os PAE’s hoje eu não estaria escrevendo esse artigo referente aos 35 anos de memória e nem seria funcionário público, pois meu saudoso pai jamais sairia do interior com as condições que hoje o governo dispõe aos tradicionais moradores. Ufa! Ainda bem que inventaram “esse negócio” (PAE) há pouco tempo, ainda bem… Humaitá, 26 de Outubro de 2005. Paxiúba – palmeira da Amazônia, também chamada de castiçal. (NR). 3 Histórias dos meus 33 anos de Incra J o s é d e R i b ama r Ca r d o s o A condução da política de reforma agrária no país vem se desenvolvendo gradativamente após a década de 1950, com a fusão do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) e do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra). O marco foi a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 20 de julho de 1970, no comando do general Emílio Garrastazu Médici na presidência da República, que comandou o período de maior repressão marcado por prisões, torturas, exílios, mortes e desaparecimentos de centenas de pessoas. Simultaneamente o governo cria a Rodovia Transamazônica cortando as terras das imensas florestas da Amazônia, e naquele mesmo ano é implantado na cidade de Marabá, o Incra com o Projeto Fundiário (PF) e o Projeto Integrado de Colonização (PIC). A prioridade foi dada ao Projeto de Colonização às margens da Transamazônica, com lotes demarcados a 100.000 hectares para cada colono, destinados na época há mais de duas mil famílias, com casas construídas de madeira em agrovilas e estradas vicinais ao longo da Transamazônica, partindo dos municípios de Itupiranga, Ipixunas, Jacundá, Tucuruí e outros. A expansão da colonização na época foi tão eficaz que o Incra se viu obrigado a recrutar colonos de várias regiões do Brasil, dando-lhes transporte gratuito, feira livre, assistência técnica e social e oito meses de salário mínimo. Após presenciar todos esses acontecimentos, em 1971, tive a oportunidade de contribuir com minha parcela para o desenvolvimento desses fatos. Minha participação no Incra começou assim: O Incra criou uma frente de trabalho com a construção da estrada vicinal OP-3, no entroncamento do po- 40 Nead Especial 2 voado de Brejo Grande com a Transamazônica, quando houve a contratação de pessoal para trabalho temporário. Na época, “eu não era filósofo, charlatão ou educador.” Era um simples agricultor, morador daquela região, e estava em busca de melhores condições de subsistência. Resolvi assim me fichar naquele trabalho, pois ali onde morava era uma das entradas e saídas das regiões de conflitos dos terroristas do Araguaia. (Homens procurados pelo regime militar, conhecidos por guerrilheiros ou terroristas). Assim, o local se tornou um dos pontos estratégicos para as tropas do Exército montarem suas emboscadas aos guerrilheiros. O local era considerado um barril de pólvora Havia noites em que ninguém dormia por causa das imensas rajadas de metralhadoras, bastando o vento fazer qualquer barulho na mata para que os tiroteios ficassem intensos. Lembro-me de ocasião que pegava meu filho pequeno e deitava-me com ele no chão para nos proteger dos tiroteios a menos de 50 metros de distância, e com isto, minha mãe enlouqueceu ao presenciar tamanhas agressões. Helicópteros voavam a todo instante transportando soldados para suas bases de acampamentos no centro das matas. Avião monomotor, equipado com altofalante anunciando a rendição do chefe dos terroristas conhecido como Osvaldão, dizendo que o mesmo estava cercado pelos batedores do Exército e não tinha chance de escapar. Os relatos das prisões e execuções eram muitos violentos. Após a minha contratação temporária, participei da equipe do agrimensor Mário Vargas do Incra/Marabá. Começamos os serviços com a guarnição de duas equipes de comando do Exército; uma acompanhava os trabalhos da linha de frente da locação da estrada nos serviços de topografia e a outra ficava na retaguarda juntamente com o engenheiro, chefes de obra e seus maquinários. Todas as noites nossas equipes se uniam num só acampamento, para ficarmos amparados pelo plantão de vigilância do Exército. E mesmo assim, com toda a segurança, o medo dos terroristas era tamanho, havendo até morte entre os próprios soldados na hora da troca de turno. Assim seguimos por mais de 70 quilômetros mata adentro. No percurso encontramos os primeiros vestígios dos terroristas, devido a localização da estrada ser em cima da trilha que dava acesso aos seus esconderijos. Num determinado dia, deparamos com suas moradias e lá encontramos pegadas através de ramos e corte de banana, ainda saindo água do cacho. Nesse dia não deu mais para retomarmos ao acampamento principal, pois estava Memória Incra 35 anos anoitecendo e tivemos de pernoitar ali mesmo, sem mantimento algum. Foi uma noite de tormento. O medo de represália por parte dos terroristas era tão grande, que nem os soldados que nos prestavam segurança não quiseram tirar plantão à noite. Fomos convocados pelo chefe de equipe para substituir os soldados e fazer o plantão da noite, prometendo-nos compensar com hora extra, e assim, passamos a receber instruções de manuseio das armas e enfrentamos a vigilância daquela noite, enquanto eu muito ansioso por substituir um dos soldados. Ali mesmo ficamos posicionados, cada um em seu lugar. De repente surge um grande temporal, com chuva, relâmpagos e trovões. Foi aí que pude entender, que nem sempre armas de fogo nos dão proteção, pois com aqueles relâmpagos e todo o seu clarão a denunciar nossa posição, ficávamos desprotegidos no meio do tempo, e se os terroristas quisessem nos eliminar não haveria como escaparmos por causa da claridade dos relâmpagos. No dia seguinte, partimos com nossos trabalhos de topografia, e ao nos deparar com duas estradas carroçáveis, seguimos o rumo errado, caminhando por mais de 30 quilômetros até sair numa área de posse que diziam ser ocupada pelos terroristas. Lá não encontramos ninguém, apenas uma casa abandonada. Já estávamos há dois dias sem alimentação e pernoitamos ali mesmo. Todos cansados, os soldados jogaram suas armas pelo chão, e t nós caímos no sono até o dia seguinte, quando tivemos de retomar e pegar a estrada certa de são Domingos do Araguaia, ponto final de nossos trabalhos, onde finalmente pudemos descansar um pouco para em seguida, retomamos a Marabá. Em 10 de outubro de 1972, após a construção da estrada vicinal OP-3 fui contratado pelo Projeto Integrado de Colonização Incra, que assinou minha carteira de trabalho no 69266 série 330 DRT/PA, no cargo de Serviço braçal. Continuei trabalhando com o mesmo agrimensor Mário Vargas, no serviço de levantamento topográfico, num trecho de 100 quilômetros, com fechamento de medição ida e volta na Transamazônica, partindo da divisa do município de Jacundá ao Porto da Balsa do Rio Araguaia. Depois do levantamento passei a trabalhar com o agrimensor Ciríaco, dando continuidade aos mesmos serviços, no trecho de Marabá a São João do Araguaia. Nesse serviço ficamos sabendo que o Incra, havia criado um curso em Marabá para o cargo de Identificador, que iria se realizar em um prazo de 90 dias. Então um colega da nossa equipe me convidou para que fizéssemos as inscrições; a 41 42 Nead Especial 2 princípio relutei por não ter muito tempo para estudar, mesmo assim, passei a encarar a realidade e percebi que com aquela atitude estava jogando fora a maior oportunidade de minha vida, pois o meu sonho era ser um funcionário público federal com estabilidade. Tive a convicção que aquela era a única oportunidade que tinha, podendo a sorte jamais bater à minha porta outra vez. Daquele dia em diante, passamos a estudar juntos, todas as noites e feriados. Chegado o dia das provas, meu amigo desistiu e eu fui. Lá, tive de imediato um calafrio ao me deparar com todas aquelas pessoas inscritas para a disputa de apenas cinco vagas. Achei impossível conseguir aprovação, mas ao abrir o caderno de provas, percebi que tinha chances de ser aceito. Após a prova tive duas semanas de licença, aproveitei então para voltar para casa, que se localizava no entroncamento de Brejo Grande. Passada uma semana, quando já estava bem despreocupado, um carro do Incra parou na minha porta; fiquei um pouco assustado sem saber do que se tratava. Foi quando o motorista me entregou um comunicado informando que eu havia sido aprovado no concurso do Incra de Marabá e que o mesmo havia vindo me buscar. A partir de então passei a participar de treinamentos, realizando trabalhos por vezes muito difíceis, como plotagem das áreas de terras vistoriadas com escala adequada aos mapas das áreas de posses vistoriadas, preenchimento de laudos de vistoria rural e ficha de cadastramentos e outros. Após o treinamento foi criado um pequeno escritório em São Domingos da Lata, no município de São João do Araguaia, para facilitar o desempenho de nossas atividades na regularização das áreas de posses que eram requeridas ali mesmo. Assim, conforme o total de processos a serem regularizados eram autorizados nossos deslocamentos para as áreas de posse, sempre trabalhando em duplas. Quando os serviços eram concluídos retornávamos então para realizar outra etapa. Às vezes um grupo vistoriava os trabalhos do outro, elaborando um relatório que era entregue ao chefe que ficava conhecendo o serviço de cada um. O trabalho naquela região durou pouco, pois ali também era considerado um estopim, devido ao fato de estarmos trabalhando na mesma região do Araguaia, onde os terroristas viviam. Era sabido pela população que ali se encontrava esconderijo deles. Por esse motivo as estradas da região eram cercadas pelos postos policiais, onde os terroristas sofriam constantes batidas do Exército. Freqüentemente se ouvia boatos de que nós estávamos jurados de morte, pois nossos Memória Incra 35 anos trabalhos de vistoria rural estavam avançando e invadindo seus territórios. Por motivo de segurança fomos retirados imediatamente de lá. Mas, em 20 de junho de 1973, após o trabalho de 60 dias de experiência, foi assinado meu contrato de trabalho pelo Projeto Fundiário Marabá- Incra, no cargo de Identificador. Logo após fui designado a efetuar vistoria na região de Palestina do Pará, quando ao decorrer da viagem, às 7h da manhã me deparei com uma cena grotesca. Era o posto da polícia daquela região que estava em chamas. Os soldados se encontravam trajando somente cuecas, pois os terroristas, além de atear fogo no posto, roubaram suas fardas e armas. Mesmo presenciando este fato segui em frente. Um mês depois, eu e outro colega, Osmar Parusca, fomos designados para dar continuidade aos trabalhos de vistoria daquela região de conflito do Araguaia. Com dois dias de serviços, chegamos à tarde numa área de posse e não encontramos ninguém na casa. Dentro de alguns minutos chegou um rapaz que disse ser empregado ali. Então o mesmo saiu gritando pelo nome do posseiro e foi embora. E nós que já estávamos desconfiados, pensamos que podia ser uma espécie de armadilha, pois já vivíamos constantes ameaças de morte. Com a saída do rapaz adentramos o interior da casa e vimos sobre a cama farda de soldado do Exército. Ficamos mais desconfiados e decidimos sair dali de imediato, pois temíamos algum tipo de represália. Já era à tardinha quando saímos de lá correndo por mais de 15 quilômetros até chegar a São Domingos da Lata. Lá nos hospedamos em uma pensão e no dia seguinte surge de repente no povoado um grupo de pessoas civis todas armadas, com rifles, espingardas e fuzis. Vestiam roupas esfarrapadas, fingindo serem terroristas da região. Mas, tudo não passava de uma manobra do Exército, para a comprovação dos fornecedores de manutenção dos mesmos, e assim, efetuaram prisões de dezenas de pessoas envolvidas no fornecimento dos terroristas. No mesmo dia retomamos a Marabá e ficou estabelecido que sairíamos daquela área de conflitos. Com a saída do Araguaia passamos a trabalhar numa faixa de terras da jurisdição do Projeto Fundiário Marabá, situada entre o Rio Tocantins, Rio Itacaiúnas, Igarapé Café e Igarapé do Lago Vermelho, com a Transamazônica, ponto final da gleba. Para os primeiros trabalhos dessa área de terras foram designados eu e Manoel Marciano Barreto Filho. Viajamos de barco como passageiros pelo rio Itacaiúnas até a foz do Igarapé Café, mais de 50 quilômetros distante de Marabá, ponto inicial de nossos trabalhos. Lá nos deixaram largados como uns cães sem dono numa casa 43 44 Nead Especial 2 de palha abandonada há muito tempo. Com a enchente do Igarapé, formou-se ali uma pequena ilha. Já era noite e tivemos de pernoitar ali mesmo. No dia seguinte meu colega estava com febre de malária. Saímos por um único caminho que tínhamos encontrado. Caminhamos poucos metros dali, até o caminho sumir dentro de um grande lago à nossa frente. Havia um coqueiral com bastantes talos secos. Então improvisei uma pequena balsa com talos quebrados à mão amarrados com cipó, até a altura que suportasse os pesos das nossas mochilas. Nesse sufoco, o colega disse que não sabia nadar. Então, a única solução foi amarrar as mochilas na balsa e eu sair nadando na frente puxando a balsa e ele se apoiando nela, até atravessar o lago. A nossa sorte na travessia foi que o lago tinha se transformado por dentro da mata, e de vez enquanto descansávamos segurando nas copas das árvores. Assim, nadamos aproximadamente 100 metros, até chegarmos em terra firme, de onde continuamos viajando até o final do caminho que terminou num ponto de extração de castanha. De lá voltamos até chegar à margem do mesmo igarapé. Já era noite quando localizamos outra casa. Lá fomos informados que para sair dali precisávamos de barco ou de uma canoa, pois a área era setor de exploração de castanha e com o escoamento do produto feito pelo rio, não existia caminho terrestre. Nossa sorte de continuarmos com os trabalhos foi termos encontrado alguns índios pernoitando no local. Eles iam para suas aldeias e passavam pelo nosso roteiro de trabalho. Nessas alturas, eu também já estava com febre de malária e o morador nos deu remédio. Continuamos nossos trabalhos por mais de 15 dias. A área era de difícil acesso, coberta por intensa floresta de castanheiras e vegetação diversa, infestada de mosquitos da malária e outros perigos, como, cobras, porco-do-mato e índios, pois a área situava-se nas terras indígenas, mais de 50 quilômetros distante de Marabá. Passamos mais de 15 dias viajando e nos alimentando de caças, peixes e comidas oferecidas pelos posseiros e capatazes dos latifundiários que dominavam várias glebas de castanhais. As terras eram empossadas com documentos de título de ocupação, expedido pelo Estado do Pará, o que fazia deles eram xerifes daquela região. Com os documentos em mãos, de somente uma gleba, acabavam por dominar duas ou mais glebas pela ganância da extração de castanha-do-pará. E com todas dificuldades encontradas, eu e mais três colegas do grupo de identificação, fizemos os levantamentos de regularização fundiária daquela faixa de terras. Memória Incra 35 anos O inverno era intenso, os córregos e os igarapés estavam transbordando os seus leitos. Nas travessias tínhamos que passar improvisando meios de transportar nossas mochilas. Feridas se formaram em minhas costas, de tanto andar com mochila por todos aqueles lugares. Assim, continuei por muito tempo, trabalhando e contraindo malária até o final da regularização fundiária daquela faixa de terra. Após o levantamento da área passamos para os trabalhos de regularização de outras áreas, situadas nos municípios de Itupiranga, localizado entre o rio Tocantins, Igarapé do Lago Vermelho, Rio Cajazeiras e seus afluentes, até a Transamazônica, ponto final desse território. Para o início desse trabalho foi contratado um barqueiro que nos conduzia. Foi também designado um grupo com um técnico agrícola e cinco identificadores. Saímos de Marabá de barco pelo rio Tocantins até a foz do rio Cajazeiras, onde começamos nossos trabalhos pelo rio Cajazeiras e seus afluentes. Ao começarmos fomos logo encontrando imprevistos, pois a região também era infestada de mosquitos da malária. Saímos de lá infectados de malária; para cada uma viagem de trabalho naquela região era um tipo diferente de malária. Com a criação da Coordenadoria Especial do Araguaia e Tocantins (Ceat) foi implantada a Unidade Fundiária de Vila Rondon do Pará, no município de São Domingos do Capim, onde fui designado a participar, desde a construção do prédio até os levantamentos das áreas de regularização fundiária das glebas Rondon-A, Rondon-B, Rondon-C, Rondon-D, Água Azul, Garratão e outras que ainda estavam no comando do Projeto Fundiário Marabá. A região também era de intensos conflitos sociais. A maioria das terras era ocupada pelos latifundiários, donos de milhares de hectares comprovados pelos documentos de títulos definitivos voadores que depois de adquiridos procuravam localizar suas áreas de terras a qualquer preço, sem nenhuma fiscalização topográfica dos órgãos competentes. Os proprietários mandavam elaborar uma planta de medição de suas terras no escritório, através da carta geográfica do Estado e com a planta da área e o título definitivo na mão, compravam uma área de posse e faziam grandes aberturas através de grandes financiamentos. Quando era para tirar os posseiros de dentro de seus domínios, apelavam à justiça e ganhavam todas as questões, comprovando com seus documentos junto à planta da área, proporcional ao tamanho de sua propriedade. Com isto contratavam os serviços de topografia e fechavam os perímetros de suas áreas. 45 46 Nead Especial 2 Daí em diante, continuavam negociando com os posseiros, que ficavam circulados pela medição, sendo então indenizados, pelo proprietário. Aqueles que não aceitavam, depois de algum tempo era eliminados de suas posses. Com isto, surgiam vários boatos sobre sumiço de posseiros na região que desapareciam misteriosamente, e amanheciam mortos há centenas de quilômetros de suas áreas de posse, mortos por tiros, um deles encontrado na BR-010 e outro com pescoço decepado por motosserra encontrado na margem do rio Gurupi. Assim as famílias apavoradas desistiam de seus direitos e os vendiam a qualquer preço. Por causa de grandes conflitos sociais nas regiões do Pará e Tocantins, houve a necessidade de se criar o Grupo Executivo das Terras do Araguaia Tocantins (Getat). A partir daí, foi extinto o Projeto Fundiário Açailândia, e foi criado em seu lugar a Unidade Executiva Açailândia, passando para a administração do Getat, que assumiria a Unidade Fundiária de Rondon do Pará. Foi organizada uma equipe de aproximadamente 15 funcionários nesse órgão, composta por engenheiro agrônomo, técnico agrícola, topógrafo, assistente administrativo, agente de portaria e motorista. Achei por bem pedir que me colocassem na equipe. Fui aceito e posto na função de um técnico agrícola. Porém tudo isto não passara de um grande susto, pois o agrônomo José Luís Vidal, que era o chefe da Unidade, passou a morar na casa no prédio própria Unidade. Como não tínhamos vigia ele passou assumir a responsabilidade da segurança da Unidade e também nos ajudava na parte da limpeza do prédio. Mesmo com todo esse apreço, o mesmo não contou ponto no dia de nossas demissões, pois ele viajou com seu veículo para Açailândia, saindo às 4h da manhã daquele dia. Não tendo com quem deixar as chaves do prédio levou-as, pensando que chegaria na hora do expediente, mas acabou por se atrasar. Nós, nós que chegamos na hora do expediente ficamos do lado de fora até às 8h30. Daí, quando ficamos sabendo de sua viagem fomos embora. Logo após termos saído ele chegou e fomos nos apresentar para o expediente da tarde, pois se alguém chegasse, ele mesmo atenderia. Com essa decisão tomada por ele, causara nossas demissões, pois nessa época éramos governados pela hierarquia militar do comando da Administração do coronel Carneiro Leão, coordenador do Getat de Marabá. Ele fora avisado que a Unidade estava fechada. Duas horas depois que o chefe tinha chegado de viagem às 11h da manhã daquele dia, o coronel Carneiro Leão chegou de helicóptero e foi à casa do chefe Memória Incra 35 anos pedir as chaves da Unidade, e foi logo dizendo que desocupassem a casa do prédio imediatamente, pois todos os servidores que ali trabalhavam estavam demitidos. Com isto, perdi 10 anos de serviço com carteira de trabalho assinada. Fui demitido em 20 de janeiro de 1981 na administração do extinto Getat. Logo após este acontecimento, fui à Coordenadoria de Marabá falar com o mesmo coronel sobre as possibilidades do meu retomo. Por sorte fui bem atendido garantindo assim meu retomo. Pedindo meu nome e endereço na presença do chefe da Unidade Fundiária São Pedro da Água Branca, Demerwal Machão dos Santos e executor da Unidade de Açailândia, José Vivaldo, garantiu me chamar para trabalhar com ele novamente, na frente do coronel, e com esta garantia, me despreocupei. O coronel foi embora da região e José Vivaldo também. Por sorte minha, Demerwal Machão dos Santos assumiu a Executória e Açailândia e mandou um documento oficializando meu retomo para aquela Unidade. Na época eu já estava com 10 meses fora do Incra e estava estagiando na empresa Queiroz Galvão, no cargo de Apontador de máquinas pesadas. Era verão e estava dentro daquela nuvem de poeiras por todos os lados, quando de repente surge na minha frente o meu cunhado com o comunicado na mão que anunciava o meu retomo ao Incra. Naquele momento agradeci muito a Deus, indo então até ao escritório da firma pedir meu afastamento. No dia seguinte me apresentei no Setor Pessoal daquela Unidade. Em 25 de novembro de 1981 fui readmitido pela Unidade Executiva de Açailândia Incra, no cargo de Auxiliar técnico, onde continuei trabalhando nas funções anteriores. Logo após a extinção do Getat houve corte de despesas, onde ficamos sem zelador e vigia por quatro anos. Foi quando o executor me chamou ao gabinete, e disse que daquele dia em diante eu não participaria mais do serviço técnico e nem do escritório. Eu me achando praticamente demitido, me sujeitei a assumir o cargo de vigia pelo durante quatro anos, trabalhando dia e noite para segurar o emprego, até contratarem novas firmas de vigilância. Daí fui trabalhar no Almoxarifado por sete anos, passando depois para a Cartografia até a presente data. Essa é minha história 33 anos de serviço no Incra, com carteira de trabalho assinada desde 10/10/1972 pelo PIC-Marabá, na função de serviço braçal, de onde sai por transferência em 29/05/1973 e fui admitido por meio de concurso no PF Marabá. Dali saí por transferência para o PF Açailândia, 20/04/1977, sendo 47 48 Nead Especial 2 contratado para o cargo de Agente administrativo até 20/01/1981. Tempo em que saí por demissão forçada pela hierarquia militar, em pleno comando do Getat. Depois de 10 meses de minha demissão, foi oficializada minha recontratação pela a Unidade de Açailândia, no cargo de Auxiliar técnico, em 29/11/1981 até a presente data. E esta é a minha história de participação da comemoração dos 35 anos de criação do Incra, que conseguiu com grande êxito o assentamento de 115 mil famílias previsto no II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que destinou mais de 10 mil quilômetros, atendendo 316 mil famílias com serviço de assentamento técnico, social e ambiental. Realizando parcerias que levaram água, luz e saneamento básico, além de avanços políticos de inclusão de gênero, e com isto vem comprovando o acerto do governo Federal em priorizar a reforma agrária com política pública desse vasto país. 4 Incra, 35 anos em vida A n to n i o F e r n a n d o M at t z a O começo (uma entrevista simples) — Jacob, amigo velho, será que podemos conversar um pouco? Quero participar do concurso Memória Incra 35 Anos, e você, com seu cabedal de conhecimento, é a pessoa ideal. — Pô, Almir, agora, no encerrar do expediente? Tu não tá vendo que hoje é sexta feira e que depois das 18h já é sábado? — Ah, eu sei, mas não posso abrir mão de contar com você, e depois o Incra é a nossa vida, né? Estamos aqui há tanto tempo que somos uma família. — Isso é verdade, Almir, uma família numerosa, orgulhosa, que abrange todo o território nacional. Tenho muito orgulho de fazer parte da trajetória da reforma agrária em nosso país, mesmo diante de tantos obstáculos. Pena que em breve terei que me aposentar. — Ora! Por quê? — Tempo de casa, amigo, idade, essas coisas. Mas com um detalhe, vou sair pela expulsória, tal como o Éden e o Manoel Henrique, e outros mais… — Como assim? — Ué. Vou fazer setentinha. — Já? — Sim! — Então, vamos começar. Espere só um instante. Pronto! O gravador está ligado. Serei rápido. Diga-me. Qual é o seu maior motivo de orgulho no Incra? 50 Nead Especial 2 Dentre os motivos, o prédio da SR-07 — Tenho vários motivos de orgulho e algumas decepções, mas o Incra como instituição altamente social, é de fato o meu maior orgulho, principalmente porque, como servidor, faço parte de sua história. Porém, há um outro motivo de orgulho, que é esse prédio maravilhoso que abriga a nossa SR-07. — Realmente. Que coisa linda. — Você conhece a história do prédio? — Não? Qual é? Eu vim da Sunab para o Incra em 1997, quando a sede ainda era no Largo de São Francisco, 34. Acho que foi em 1999 que nos mudamos para cá, não foi? — Sim, creio que sim! E cá estamos nós a falar do Incra dentro deste prédio de três andares, cuja história, o Eduardo, da Divisão Técnica, conhece muito bem. Ele me disse que este solar foi construído nos idos de 1870, e foi residência do Barão do Rio Negro até 1900. Depois foi comprado dos herdeiros do Barão por um empresário italiano de nome Paschoal Segreto, pela quantia, à época, fabulosa, de 100 contos de réis. O empresário, a princípio transformou o prédio num grande teatro, tendo inclusive, na inauguração encenado a peça O Fausto, de Gounod. Depois transformou o teatro em café-concerto e clube elegante. — Tá! Mas o meu objetivo é a memória do Incra, e não do prédio. — Aí você se engana, meu caro. Este prédio reflete a grandeza da SR-07, e merece ser situado na história do Incra como memória concreta, pois foi nele que efetivamente se alicerçou a idéia da reforma agrária. — Como assim? — Bem! O imóvel era freqüentado pela nata da época. Ou seja, grandes latifundiários, belicosos coronéis, políticos influentes, barões do café, senhores de engenho, artistas, intelectuais, etc. Portanto, era muito comum o assunto agrário permear as festas, as conversas e os negócios levados a efeito naquele ambiente altamente social, onde os salões eram luxuosos e os seus jardins e recantos eram deliciosos refúgios para conversas mais íntimas. Ainda, segundo o Eduardo, o empresário gostava de mudar suas atividades constantemente, mas, ao que parece, foi em 1908 que ele teve a idéia de promover um baile de carnaval. A partir daí, graças ao sucesso retumbante do empreendimento carnavalesco do criativo empresário, o prédio foi batizado com o nome de High Life, e se tornou o mais famoso, freqüentado e tradicional clube carnavalesco do Rio de Janeiro, Memória Incra 35 anos cujo brilho durou intensamente até os anos 40, sendo que no meio dos anos 50, a decadência natural do clube começou a acontecer e, em 1957, com o empresário já falido, o prédio foi alugado ao Serviço Social Rural (SSR). — Continue, por favor. — Em 1962, a Superintendência da Reforma Agrária (Supra), passou a ser o novo órgão, o qual, em 1964 foi dividido em dois, a saber: Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), e Instituto Brasileiro da Reforma Agrária (Ibra), hoje Incra, que acabou comprando o casarão. — Já estou começando a gostar da história do prédio. Que mais? — Saiba que este imóvel, durante longos anos, foi sede do Incra nacional. — Quê! — É isso que você ouviu. Quer saber qual foi a grandeza do Incra nacional? — Sim, quero. — Vamos por etapa. Em fevereiro de 1985, em função de abalos em sua estrutura, o imóvel foi desativado, e o Incra, por absoluta necessidade, mudou-se para um conjunto de dez andares no Largo de São Francisco, 34, bem no centro do Rio de Janeiro. Em 1987, a despeito de muitos desejarem sua demolição, algum dirigente afoito solicitou a Prefeitura Municipal do Estado do Rio de Janeiro (era assim que se chamava à época) o tombamento do imóvel, com ênfase na preservação das formas arquitetônicas externas do prédio, e encontrou apoio na ideologia de alguns servidores do Incra que, associados ao interesse de algumas instituições, tais como o Clube de Engenharia, o Instituto de Arquitetos do Brasil, e a Associação dos Moradores e Amigos da Glória, lutaram o bom combate em relação à proteção artística e cultural da arquitetura denominada Bélle Époque. Em conseqüência, ainda em 1987, o imóvel foi tombado como Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro. — Você tem razão, Jacob. A memória concreta da SR-07 se reflete claramente neste imóvel. — Tem mais, Almir. A proposta de restauração do imóvel foi uma longa gestação, que, se não me engano e se a memória não me falha, começou em 5 de agosto de 1986, com Agostinho Guerreiro, à época, superintendente regional do Leste Meridional (SR-07), reportando-se ao então presidente do Incra, Ruben Ilgenfritz, e propondo, graças a sua visão altamente preservativa, a restauração tão idealizada, que mais tarde viria a se concretizar, nos permitindo, desde 1999, 51 52 Nead Especial 2 a usufruir desse patrimônio histórico cultural que encanta a todos, servidores, visitantes e a clientela da reforma agrária no Rio de Janeiro. — Poxa! Tô de fato, encantado. — Bem, creio que já podemos mudar de assunto. Vá em frente. Dramas — Tá! E qual é sua maior decepção como servidor do Incra? — Eu tive duas grandes decepções. A primeira veio em outubro de 1987, quando o governo Sarney, através do Decreto no 2.363, extinguiu o Incra, passando suas atribuições para o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário–Mirad. Mas esta não foi exatamente a pior decepção porque depois, graças a Medida Provisória no 02, de 29 de março de 1989, os termos do malfadado Decreto seriam rejeitados e o Incra seria restabelecido. A Segunda realmente foi bem pior, e se não fosse o apego que eu tenho a ideologia da reforma agrária talvez tivesse saído do serviço público em 1990, quando o Decreto no 99.334 alcançou vários servidores federais, alguns competentes e trabalhadores, colocando–os em disponibilidade remunerada. Tal medida causou impacto profundo em vários colegas, pois a disponibilidade não tinha uma explicação lógica, e, além disso, era uma ameaça de demissão sem justa causa e sem critérios. — A disponibilidade o atingiu? — Claro! Eu fui um dos 2.605 servidores do quadro de pessoal do Incra. Fui atingido pelo desespero e pela revolta. As repercussões negativas da disponibilidade remunerada só teriam um fim em 1992, quando o Decreto no 427/92 possibilitou o retorno às atividades, mas a ferida da disponibilidade, passados tantos anos, ainda sangra. — Como assim? — Porque é uma ferida aberta, pela qual ninguém pediu desculpas. — Entendo. Além de você, quem mais foi atingido pela disponibilidade? — Ah, muitos. Que eu me lembre agora, entre os servidores remanescentes daquela violência arbitrária, Marinho, Guilherme, Russo, Darcy, Petrúcio, Horácio, Asterhugo, Serpa, Zé Fernandes, Orlando, Aurinha, etc. Todos ainda na atividade. E entre os aposentados, Manoel Henrique, Paulão, Ubajara…E outros mais. — E sobre demissões voluntárias e aposentadorias precoces? Memória Incra 35 anos — Os servidores do Incra não foram poupados da política perversa do Ministério de Administração e Reforma do Estado (Maré), em sua ânsia de enxugar a máquina pública, e muitos, por medo ou ignorância, ou aderiram à aposentadoria precoce ou aceitaram a demissão voluntária. Alegrias — Mudando um pouco o foco, qual foi o melhor momento dos servidores do Incra? — Ora! Acho que o melhor momento para os servidores federais, e do Incra em particular, aconteceu em 1990, um ano atípico e paradoxal, cheio de entraves para os servidores e para o Incra, a saber: a) Lei no 8.022, de 12 de abril de 1990, que transferiu para a Secretaria da Receita Federal a competência referente à administração das receitas arrecadas; b) Decreto no 99.334, de 20 de junho de 1990, que trata da disponibilidade remunerada dos servidores do Incra já comentada; c) Portaria / MAARA/no 227/90, que dispensou 550 servidores considerados prescindíveis ao serviço público, e d) a Lei 8.112, de 21 de dezembro de 1990, que trata do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais da União, este sim, o melhor momento para os servidores do Incra, até a presente data. — E sua maior alegria como servidor do Incra? — Tenho lembranças de muitos bons momentos e, sobretudo, muitas pequenas e perenes alegrias profissionais que são, de fato, um rosário para a alegria maior que é ser servidor deste órgão no transcurso de sua trajetória de 35 anos. Os antecedentes e os antepassados do Incra — Como surgiu o Incra? — O Incra surgiu de uma fusão entre o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), e o Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário (Inda). Entretanto, acredito que os primeiros passos institucionais para a reforma agrária no país foram dados nos anos 1950. Quer um exemplo? — Sim! Claro? — Em 5 de janeiro de 1954, a Lei no 2.613/54 criou o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic), cuja atribuição era assistir e encaminhar trabalhadores rurais, migrantes e imigrantes, dentro de um programa nacional de colonização 53 54 Nead Especial 2 que orientasse para os trabalhos agrícolas. O Inic absorveu várias repartições, na época, dentre elas o Conselho de Imigração e Colonização, o Departamento Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e a Divisão de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura. — Poxa Jacob! Você é um verdadeiro sabe-tudo. Que mais? — Ora. Eu gosto dessa trajetória que fez surgir o Incra. Mas, continuando. Depois veio a Lei no 2.613, de 23 de setembro de 1960, que criou o Serviço Social Rural (SSR), autarquia vinculada ao Ministério da Agricultura, com atribuições que visavam exclusivamente o social no meio rural, e com a intenção de fixar o homem à terra e assim evitar o êxodo rural, incrementando a produção agrícola e promovendo atividades sociais com o fito de administrar a produção e a economia das pequenas propriedades. Em seguida, em 11 de outubro de 1962, surgiu a Superintendência de Política Agrária (Supra) (1962-1964), a qual absorveu o SSR, e o Inic. As atribuições da Supra, eram as seguintes: a) colaborar na formulação da política do país; b) planejar, promover e executar a reforma agrária e, em caráter supletivo, a medida complementar de assistência técnica, financeira, educacional e sanitária, entendeu? — Sim! Tudo bem. Mas, e o Incra, como surgiu? — Como já disse de uma fusão entre o Ibra, e o Inda. — Fale mais a respeito, pois quero me integrar totalmente às raízes do Incra. — Muito bem. O Ibra era uma autarquia vinculada à Presidência da República e surgiu com advento da Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e suas atribuições eram as seguintes: zoneamento, cadastro e tributação rural; distribuição de terras em áreas consideradas prioritárias, promoção agrária e assistência financeira. A mesma Lei criou também o Inda, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura e com atribuições voltadas para o desenvolvimento rural através das atividades de colonização, extensão rural e cooperativismo. — Você citou a Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964. Não é a mesma lei que criou o Estatuto da Terra? — Sim. O Estatuto da Terra, eu diria, era a alma do Ibra e do Inda. — Qual era a exata dimensão do Estatuto da Terra? — Para mim, a dimensão do Estatuto da Terra se resume no artigo 16, caput, da Lei no 4.504, que diz o seguinte: estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o Memória Incra 35 anos bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio. — Entendo. Por favor, continue. — Em 9 de julho de 1970, o Decreto da Lei no 1.110, absorvendo o Ibra, e o Inda, criou o Incra, com a finalidade de estruturar a reforma agrária no país, promovendo tanto o desenvolvimento rural quanto coordenando e executando a colonização. — Então, Jacob, para você o Incra teve em sua trajetória a inserção de várias instituições que o precederam? — Sim, evidente. Ou você pensa que a reforma agrária nasceu com o surgimento do Incra? — Não. Mas como te disse antes, vim da Sunab. Sou um sunabiano, e quero conhecer o Incra mais a fundo porque já visto sua camisa há muito tempo. — Gostei dessa definição. Então você é um sunabiano, eu sou um ibraiano, alguns colegas, como o Cortines, da Operacional, por exemplo, é um indaiano, e no final somos todos incraianos. É ou não é assim? (risos). — É (risos). — Mas, continuando. Em 16 de agosto de 1982, o Decreto no 87.457, que trata da instituição do Programa Nacional de Política Fundiária, criou o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, com o qual o Incra se vinculou. Quase dois anos depois, a Lei no 7.231, de 23 de outubro de 1984, transferiu competências do Incra para o Ministério da Agricultura, visando principalmente à área do desenvolvimento rural. A partir daí e com o advento do Decreto no 91.214, de 30 de abril de 1985, que criou o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad), o Incra passou por vários decretos, dentre eles o de no 912.766, de 10 de outubro de 1985, que aprovava o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), cuja meta fundamental era o assentamento de um milhão e quatrocentas mil famílias. Depois veio o Decreto no 94.234, de 15 de abril de 1987, que autorizava o Incra a contratar até 1.250 profissionais. Enquanto isso, o Decreto-Lei de no 2.328, de 5 de maio de 1987, promovia alterações na estrutura organizacional do Incra. Assim, através de vários decretos, a aventura da reforma agrária no país continuava a alimentar ideais e estes não sucumbiam diante das dificuldades institucionais. — Caramba! Dá a impressão que o Incra não é linear. — E não é. Pelo contrário, o Incra sempre foi contraditório, talvez devido a contrapontos de gestões entre as esferas federal, estadual e municipal, ou talvez 55 56 Nead Especial 2 devido às oposições do patronato rural e da bancada ruralista que se articulam politicamente para se manterem em evidência, e dessa forma se oporem sistematicamente à reforma agrária verdadeira justa. — Ou seja, a reforma agrária precisa de um único tutor, o governo federal? — A meu ver, sim. Os ideais da reforma agrária — O que, para você Jacob, representa os ideais da reforma agrária? — O êxodo rural inchou as grandes cidades e daí resultou no que podemos chamar de defasagem no campo. Ou seja, a meu ver, é necessário que o homem do campo volte a ocupar aquelas áreas vazias através de uma verdadeira e eficaz reforma agrária. Também é extremamente necessário que o governo federal, com o aval da sociedade e de novas leis criadas exclusivamente para programas de distribuição de terras, volte-se definitivamente contra aqueles que fazem da terra um meio de negociatas. — Mas, o que é exatamente defasagem no campo? — Defasagem oriunda da falta de verdadeiros trabalhadores rurais. Hoje, o que se vê nos assentamentos e acampamentos, é uma gama de homens e mulheres que estão apenas em busca de um espaço para ocuparem. São, em sua maioria, desempregados urbanos. — Sim. É verdade. Mas não é uma luta legítima? — É uma luta legítima na medida em que os grandes latifundiários pensam e agem em causa própria. O Incra é um órgão social, e o governo Federal precisa despontar suas ações em cima da justiça social. O Incra é a resposta para a enorme dívida social do país para com a população rural. Afinal, meu caro, o governo federal não pode esquecer que o trabalhador rural é o verdadeiro protagonista da reforma agrária. — O que mais? — O incentivo a exploração racional da terra teve um arremedo de ação na Constituição Federal de 1946, cuja redação original em seu artigo 147, sofreria, em 9 de novembro de 1964, algumas modificações importantes, dando a União instrumentos mais avançados para a efetivação de uma justa distribuição de terras. Em 1962, o Brasil subscreveu a Carta de Punta Del Este reconhecendo enfaticamente ser necessário implementar em seu território a reforma agrária. Memória Incra 35 anos Quer dizer, os assuntos agrários, em sua maioria, eram tratados no Rio de Janeiro, e particularmente, em várias ocasiões nos salões deste casarão, desde aquelas épocas românticas do início do século XX, onde vínculos com os sistemas arcaicos dos séculos XVIII e XIX eram na verdade grandes ranços no sistema de controle de terras e dos conflitos que envolviam trabalhadores rurais. — De novo, o prédio? — Sim. Voltei à história do prédio apenas para enfatizar que dentre os imóveis que servem de sede as Regionais do Incra nos Estados, este é o que mais concentra a história da reforma agrária. Os movimentos sociais — Jacob, fale um pouco dos movimentos sociais. — Quem mais entende de movimentos sociais são o Fernando Cabeção, da Operacional, o PC, o Borges, o Teixerinha, o Mineiro e o Selvo, da Técnica, o Almeida e o Guaraci, do programa Fome Zero, e principalmente o Alexandre Sapatinho, da Divisão de Suporte Administrativo. — Ôpa! Essa me espanta. O Sapatinho? — Sim. Ele estudou a respeito. Ele me disse que a base dos movimentos sociais remonta ao século XVII, quando a estrutura fundiária, caracterizada por extrema desigualdade social beneficiava apenas aos mais fortes. Ressalte-se que a organização fundiária surgiu, de fato, em 1822, quando a grilagem de terras substituiu a ferro e a fogo o regime das sesmarias criado em 1530 pela Coroa Portuguesa que, por sua vez, dividiu sua colônia a leste da linha do Tratado de Tordesilhas em 12 capitanias hereditárias e fez nascer o latifúndio que explorava o trabalho escravo, daí provocando revoltas e os primeiros passos de pressão social pela terra. — Mas, para você, qual é sua visão dos movimentos sociais? — O Incra depende de uma política governamental consistente contra o latifúndio, e os Movimentos Sociais pela Terra dependem do aval da sociedade para avançar em sua estratégia de luta. Entretanto, ambas as bandeiras tremulam contra as desigualdades sociais, e ambas incomodam aqueles que se locupletam e se ufanam em privilégios feudais. O Incra e os Movimentos Sociais pela Terra, a meu ver, são as sementes que hão de frutificar vigorosamente se a política da reforma agrária se fizer verdadeiramente eficaz, e se, principalmente, a dinâmica institucional do Incra prevalecer contra a violência no campo. 57 58 Nead Especial 2 — Em nível de memória, os Movimentos Sociais pela Terra, têm algo a ver com o Incra? — Claro Almir. Os trabalhadores rurais são a clientela do Incra e, quando prejudicados em suas expectativas, se unem para reivindicar seus direitos pela terra, inclusive ultrapassando as fronteiras do gabinete da república, e exercendo a filosofia da pressão em ocupações de prédios públicos para chamar a atenção da sociedade. — Isso adianta? — Sim, porque a sociedade, de maneira geral é letárgica, ignora o que se passa no campo, e prefere passar ao largo da luta ideológica pelo bem comum. Ou seja, a sociedade se acha incólume às influências dos conflitos agrários, mas sob suas portas e janelas, o desvalido – vítima do êxodo rural – pede-lhe esmola. — Jacob, os Movimentos Sociais pela Terra se modernizaram e hoje estão aparelhados com equipamentos de informática e utilizam a mídia para se expressarem. Qual é, realmente, a origem dos Movimentos Sociais pela Terra? — Bem! Os trabalhadores rurais sempre encararam a repressão, mas no período de 1964 a 1970, os Movimentos Sociais pela Terra, à época, chamados de Forças Sociais, apesar do pouco fôlego, resistiram bravamente à ditadura militar e conseguiram se organizar pelos ideais da reforma agrária. Conseqüentemente se modernizaram, mas acho que sua origem está colada nas antigas Ligas Camponesas. Sangue no campo — E a violência no campo? — Quem estudou a respeito desse assunto foram os sunabianos Amarilio, da Divisão de Suporte Administrativo, o Adauto, da Procuradoria e a Mariula, do Gabinete. — Fico feliz em saber que os servidores da SR-07 são interessados o suficiente para acompanhar a história da reforma agrária em toda sua extensão. — Sim. É verdade. Eles se interessaram porque os conflitos de terra afligem o homem do campo e enriquecem negativamente a estatística cruel de mortes perpetradas por pistoleiros e jagunços contratados por maus fazendeiros. — O que você sugere para se acabar de vez com os conflitos de terra? — Eu tenho uma sugestão utópica, mas vamos a ela. Se eu fosse governante do Brasil, a minha primeira providência para robustecer os mecanismos da reforma agrária seria criar a Polícia Federal Agrária, que, com poderes específicos para acom- Memória Incra 35 anos panhar os servidores do Incra em missões oficiais, teriam uma delegacia em cada Regional, como ocorre com o MDA em relação a sua Ouvidoria Agrária, por exemplo. — A idéia é boa, mas, será viável? — Viável é. Os conflitos de terra se agravam progressivamente e assinalam uma curva ascendente de registros de mortes impunes que uma Polícia Federal Agrária poderia checar e chegar aos criminosos. É preciso ressaltar que os conflitos agrários também ocorrem entre os trabalhadores rurais, mas estes, em suas querelas, não usam pistolas sofisticadas ou revólveres modernos. Em outras palavras, armas potentes comumentes usadas por jagunços e pistoleiros em suas emboscadas e armadilhas poderiam ser apreendidas. — E as armas dos trabalhadores rurais? — As armas dos trabalhadores rurais são apenas ferramentas agrícolas, e estas raramente são usadas em seus entreveros pessoais. — Que outras coisas a sua utópica polícia poderia fazer? — Promover o desarmamento no campo e combater o crime no meio rural, além de caçar as milícias privadas e os esquadrões de extermínio que defendem os interesses de grandes grupos econômicos que privatizam a terra. — O Incra, hoje, pode fazer algo para impedir a violência no campo? — Nós, servidores, sabemos que os excluídos são capazes de cobrar com seu sangue o seu direito a terra. Mas, apesar de estarmos também expostos a perigos constantes, não abrimos mão de trabalhar de acordo com a lei, que é uma maneira de combater a violência no campo. — E os latifundiários? — Estão cada vez mais poderosos e são adeptos de uma oligarquia rural reacionária e violenta, que não lavra a terra e não permitem que a lavrem. Para eles repito um pensamento do Antônio Feo, servidor da Divisão de Suporte Administrativo da SR-07: os que se supõem donos de vastas áreas de terra esquecem que bastam apenas uma cova de sete palmos para cobrir-lhes o corpo após a morte. Servidores — Jacob, o que você acha dos seus colegas servidores da SR-07? — Acho que são heróis, particularmente, os da Divisão de Suporte Administrativo, com os quais convivo. — Por que heróis? 59 60 Nead Especial 2 — Primeiro pelo dia-a-dia sempre intenso. Depois pela mão-de-obra escassa, e em seguida pelo excesso de trabalho. Para você ter uma pálida idéia, no Setor de RH, trabalham Liana, Cássia, Meire, Mayra, Claudia, Maria do Carmo, Ideal e você. É um setor pesado para os poucos servidores que ali trabalham tendo em vista o fato do Rio de Janeiro já ter sediado o Incra central. — E os demais setores? — Pela pouca mão-de-obra, são todos complicados. — Fale um pouco desses setores. — Na Contabilidade e Finanças, eu, Elza, Celso e Paulinho, fazemos das tripas coração. No Almoxarifado, o Alexandre Sapatinho, que também cuida do Patrimônio, é um estressado faz-tudo. No Protocolo e Arquivo trabalham o Rudney e Aurinha; no Transporte, o Horácio, o Serpa e o Asterhugo; na Licitação, o Baiano e o Luiz Carlos; no SICAF, o Luiz Henrique, e no apoio geral, o Amarilio. — De fato, é um quadro reduzido. — Somos um quadro reduzido, mas somos guerreiros. Mostramos o profissionalismo extraordinário que sempre pautou nossos rumos, porque sabemos que a Divisão de Suporte Administrativo é o coração do Incra em qualquer Regional. — A memória Incra 35 anos — Qual é a filosofia dos servidores da SR-07? — É: “Terra para produzir. Produção para repartir”. — E para encerrarmos, já lhe agradecendo a paciência e o desfile do seu conhecimento, gostaria que você expusesse suas considerações finais. — Pois não! Até que enfim você quer encerrar o nosso papo, né? Mas saiba que o Incra precisa proporcionar aos seus servidores a possibilidade de resgatar valores esquecidos nos arquivos e nas gavetas, e o concurso vai ao seu final, quando forem examinados os textos dos participantes, surpreender muita gente. — Por que você acha isso? — Simples. Pelo fator memória pessoal, pois é o servidor, através das ações implementadas pelo Incra que leva a esperança aos assentados e aos acampados; é o servidor que representa o planejamento social do Incra em suas missões no campo; é o servidor que mostra a sua cara e que representa acima de tudo o respeito às metas da reforma agrária, seja em suas atividades externas ou internas. O Incra, meu caro Almir, através dos seus servidores, é o instrumento institucional que afirma a função social da terra como luz para um Brasil melhor e mais justo. Memória Incra 35 anos — Pô, Jacob! Você é uma pessoa inspirada. Mas acho melhor você tecer logo suas considerações finais porque a fita que está no gravador é de apenas meia hora. — Tá! Tá! Tá! Encerro dizendo que a razão da reforma agrária justa e verdadeira é a razão dos servidores do Incra, e que gente e terra sempre foram a argamassa social que sustenta até os dias de hoje a estrutura firme e forte da nossa instituição em sua trajetória de 35 anos, pois nessas três décadas e meia de atividades, fomos realmente capazes de percorrer a estrada dos anos lutando pelo ideal democrático da reforma agrária. E agora, parabenizando o Incra sob o teto deste solar, nós, servidores da grande família Incra, pelo nosso suor e espírito de luta, também estamos de parabéns. Gostou? — Pô! Se gostei? Obrigado Jacob, voc… Plec! 61 5 Lembrando casos do Incra J ú l i o L i z a r r a g a Ram i r e z Durante minha passagem pela instituição como servidor do quadro, destaco três casos, entre muitos que vivenciei no período entre 1967, ano em que ingressei ainda no Ibra, e 1996, ano em que me aposentei, nos três casos fui “ator principal.” Estive afastado da instituição por “motivos políticos” de 1974 até 1985, neste último período fui aplicar o que aprendi no Incra, nas bandas da África e América Central. O primeiro caso é um relato que vivenciei a partir do segundo ano do meu ingresso na instituição, no segundo faço registro de um período “especial” que participei dentro do órgão, assim que voltei com a anistia e o terceiro é um depoimento, também, vivido por mim, dois anos antes da minha aposentadoria. Esses episódios, foram importantes porque contribuíram para dar uma guinada nas formas de proceder, agir e operar as ações principais do Incra, relacionados com os programas de assentamentos de trabalhadores rurais e a obtenção de recursos fundiários. Relato da implantação de um projeto de assentamento A área inicialmente de 42 mil hectares localizada no município de Iguatemi,do então Estado de Mato Grosso, posteriormente o projeto deu origem aos municípios de Mundo Novo, Japorã e Sete Quedas no atual Mato Grosso do Sul, a área de formato retangular limitava por um lado com o Paraguai; outro com rio Paraná, divisa com o Estado do Paraná; o outro lado com o rio Iguatemi e o último com propriedades particulares e terras devolutas ao longo da fronteira com o Paraguai, Memória Incra 35 anos Posteriormente estas áreas foram incorporadas ao projeto com mais 31 mil hectares, na segunda etapa e depois mais 90 mil hectares. Na chamada terceira etapa, perfazendo um total de 162 mil hectares. A área era muito grande e no meu relato farei referência apenas à primeira etapa. As terras eram devolutas em parte, com ocupações irregulares e outras pertenciam a particulares com documentos regulares que permitiam a ocupação. De alta fertilidade chamada de “terra roxa’’, na época costumávamos dizer que “onde cuspíamos nascia um pé de feijão.” Coberta por florestas virgens, com muita madeira de lei e palmito, bem abastecida de água, tanto nas divisas como dentro da área, com muito peixe de qualidade; clima intermediário entre o tropical e o temperado, nos meses de maio a julho fazia frio a zero grau, as chuvas abundantes e bem distribuídas e topografia plana a suavemente ondulada. Essas características conformavam um cenário natural excelente para o desenvolvimento de atividades agrícolas em regime de exploração familiar, a respeito, comentávamos que “Pero Vaz de Caminha escreveu a famosa carta ao rei de Portugal, de Iguatemi, porque lá em se plantando tudo dava.” O arranjo fundiário ou estrutura fundiária, ou ainda a ocupação territorial da área é que apresentava um quadro completamente desordenado, bagunçado e injusto, por esta razão chamávamos de “Zorra Fundiária”. Veja os gráficos: Área dos imóveis 6% Número de imóveis 1% 1% 32% 32% 61% 55% 12% Latifundiários Minif. Empresários rurais Ausentes 63 64 Nead Especial 2 O pior que este cenário tinha implicações de caráter internacional sérios, de tamanho de um bonde, os mineiros diriam, “ô trem complicado sô!” Além da ocupação na área rural existiam dois núcleos de concentração urbana, ocupando uma área total de 154 hectares. Com um total de 176 famílias residentes, também sem a preocupação de ordenamento territorial ou um mínimo de planejamento urbano. A “zorra fundiária” era simplesmente um cartão de visitas negativo para o Brasil, pois, na inserção das fronteiras do Brasil e o Paraguai se localizavam as famosas “cataratas de Sete Quedas” que, aliás, infelizmente não existem mais, por terem sido cobertas pela represa de Itaipu Este local era visitado por turistas de várias partes do Brasil e do mundo, além do mais, uma faixa de terra da área do projeto era motivo de disputa entre os dois países desde 1750 (Tratado de Tordesilhas). Segundo esse tratado a fronteira entre os dois países era a Serra do Maracajá,-confesso que eu não vi serra nenhuma- em todo o caso o Brasil dizia que a serra estava dentro do território paraguaio e o Paraguai dizia que a serra estava em território brasileiro. Até que era divertido, porque os marcos que fixavam a fronteira entre o Brasil e o Paraguai, em número mais ou menos de 15, eram fixados todos os dias pelas manhãs pelo Exército brasileiro e às tardes o Exército paraguaio os retirava. Isso durou muitos anos, até que graças à ocupação ordenada que o Incra promoveu os marcos nunca mais foram mexidos. Além da desordem fundiária, ocorriam outros problemas com o contrabando de produtos entre os dois países, a extração de madeira ilegal, exploração de palmito e otras cositas más, praticadas por brasileiros e paraguaitos, parecia território sem dono e sem lei. Tal situação motivou para que a Comissão Nacional de Faixa de Fronteiras, subordinada à Presidência da República e o Ibra, na época comandada por generais do Exército, assinassem um convênio para reordenar o território e implantar um projeto de assentamento humano com fins de desenvolver atividades agrícolas em regime de agricultura familiar e acabar de forma definitiva com a bagunça generalizada presente na área. O procedimento metódico para a implantação de projetos de assentamento, foi concebido sob a coordenação e liderança do engenheiro agrônomo Dryden Castro de Arezzo e participação ativa de outros técnicos, como, arquiteto Bención Tiomny, geógrafa Ângela Moraes Neves, professor Osmar Fávero, técnico em educação, Bernardes Martins Lindoso, procurador Mauro Fonseca, pedagoga Memória Incra 35 anos Maria Pelegrini, arquiteto Cleso Gomes de Oliveira, cartógrafo Hugo Carboggini e eu. Agrônomo,“equipe multidisciplinar mesmo.” Essa metodologia ainda em formato preliminar, seria testada justamente no Projeto de Assentamento de Iguatemi e para o teste em campo é que fui convidado em companhia de Bernardes Martins Lindoso. Nossa missão seria testar, adequar, corrigir, complementar e propor a estrutura metodológica em formato final ou definitivo a partir da prática de concepção, implementação e consolidação do assentamento. Essa metodologia recomenda, que nos assentamentos devem ser desenvolvidos 12 atividades bem definidas, que possuem características típicas bem delimitadas ao mesmo tempo se complementam entre si. Existe dependência e precedência entre elas, ou seja, existem atividades que têm de ser executadas para outras serem implementadas. Aconclusão de cada atividade permite sua consolidação, sendo que ao término da implantação de todas as atividades pode o projeto ser declarado consolidado e providenciada sua emancipação. Para cada uma das atividades, chamada de programas, foi prevista a definição ou conceito, as atividades estratégicas que devem ser desenvolvidas e a estratégia de realização de cada atividade, isto é, “uma espécie de receita de bolo.” Em outras palavras, a metodologia era simplesmente um “manual” para implementar um projeto de assentamento em áreas reformadas, de colonização e de arrecadação de terras, utilizando técnicas de programação operacional. O projeto inicialmente estava coordenado pela Diretoria Fundiária e executada pelo Distrito de Terras de Mato Grosso, DFZ-03, com sede em Campo Grande. O presidente do Ibra era o general Moraes; o diretor da DF era o Dryden Castro Arezzo e o chefe da DFZ-03, era o coronel Clovis Rodrigues Barbosa. O responsável pelos trabalhos topográficos era o capitão Freitas, que seguia a orientação do general Araújo, chefe da Cartografia da DF e os trabalhos de discriminação e arrecadação de terras na área era coordenado pelo capitão Chuchu. Pelo time em campo, na maioria militar, as coisas tinham que acontecer, pois, o coronel Clovis sempre lembrava que, “a programação prevista tem que se cumprida sem dúvidas nem murmúrios, custe o que custar e ponto,” e para isso nunca faltaram recursos de nenhum tipo para executar a programação e dentro dos prazos previstos. Quando chegamos na área do projeto as atividades referentes à desapropriação, arrecadação de terras e reconhecimento de posses ou regularização 65 66 Nead Especial 2 fundiária já haviam sido concluídas, bem como, o Departamento da Pedologia do Ministério da Agricultura havia realizado um estudo dos recursos naturais da área, aliás, um excelente estudo. A esse conjunto de atividades a metodologia chamou de Distribuição de terras (Programa 1), que foi realizado com o auxílio de fotografias aéreas, começando com a obtenção de terras e terminando com a titulação. Com base nas informações e ratificação das ocupações, da disponibilidade de terras arrecadadas, dos estudos de solos, a localização de caminhos e estradas e presença da rede hídrica o projeto de organização do território ou plano de parcelamento da área, foi elaborado prevendo todas as áreas destinadas para uso comunitário e reserva florestal em bloco, a este conjunto de atividades a metodologia denominou Organização territorial (Programa 2). O Programa 2 foi realizado com a participação de 18 topógrafos contratados pelo Incra, com a participação dos beneficiários do assentamento como balizeiros e mateiros para a abertura de centenas de quilômetros de picadas com auxílio de um helicóptero. Com o Programa de Organização Territorial definido e as parcelas demarcadas, com a respectiva capacidade de assentamento, havia a necessidade de se estruturar ou compor uma equipe técnica e administrativa mínima, para implementar as diversas atividades necessárias ao assentamento de agricultores ou trabalhadores rurais. Nesse sentido, contando com os 40 servidores que existiam na área, foi organizada uma estrutura operacional. Inicialmente, que depois foi sendo ampliada na medida em que o projeto foi crescendo, como me referi anteriormente, em mais duas etapas, quatriplicando a área do projeto original. O desenho original do organograma para execução do projeto é apresentado a seguir. Após 1974 esse desenho foi ampliado em função das próprias necessidades do projeto e também o conhecido “cabide de empregos” que assolou o Incra e é claro também o projeto, que segundo informações que tive, chegou a ter mais de 200 servidores, na grande maioria contratados pelo regime CLT, sem concurso público e com alto IP (indicação política). Os 40 servidores estavam assim distribuídos: • Um administrador • Um engenheiro agrônomo coordenador do Setor Técnico • Cinco técnicos agrícolas no Grupo de Atividades Agrícolas Memória Incra 35 anos • Oito técnicos em Desenvolvimento Comunitário (topógrafos treinados) no grupo • • • • • • • de Atividades Sociais Um engenheiro civil e 10 topógrafos no Grupo de Infraestrutura Um contador, coordenador do Setor Administrativo Dois auxiliares administrativos no Grupo de Pessoal Dois auxiliares administrativos no Grupo de Material e cinco motoristas Quatro auxiliares administrativos no Grupo de Finanças Pessoal contratado por empreitada(serviços eventuais) Conselho do Projeto formado por representantes dos assentados. A estrutura tinha um regulamento interno que fixava as atribuições de cada unidade, bem como, as responsabilidades de cada membro das unidades operativas. ADMINISTRADOR SETOR TÉCNICO CONSELHO DO PROJETO SETOR ADMINISTRATIVO O conjunto de atividades e procedimentos a metodologia denominou Organização administrativa (Programa 3). A estruturação desse programarepresenta o sucesso ou insucesso do assentamento. A equipe era tão envolvida com o assentamento que tudo era possível, graças à dedicação e criatividade do pessoal. O coronel Clovis fixou nos acessos à área, placas com os seguintes dizeres: “Aqui o impossível é realizado. Milagre demora um pouco.” Uma vez estruturada a Administração com os respectivos papéis definidos e precedido de um treinamento em serviço, passou a se identificar e selecionar as famílias candidatas a mais ou menos 200 parcelas vagas; de um total de 800 parcelas, 350 foram ocupadas pelas agricultoras já localizadas na área;150 parcelas estavam destinadas para agricultores da Annoni/RS e de Santa Fé /SP. As famílias selecionadas eram localizadas nas parcelas e passavam a usufruir os créditos de implantação, construção de moradias, capacitação, organização social, etc. Esse conjunto de atividades se denominou Assentamento (Programa 4). 67 68 Nead Especial 2 Quando realizamos o processo de seleção houve muitos candidatos. A maioria ficou perto da área, realizando trabalhos esporádicos, aguardando a ampliação do projeto; outros entraram no Paraguai e assim nasceram os chamados brasiguaios. A organização social dos assentados foi a chave principal para o sucesso do projeto, chamando a atenção de muitos órgãos, instituições e universidades que realizaram várias pesquisas e estudos. Como foi o caso da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), IPEA, Projeto Rondon, Bolsa de Cereais de São Paulo, SNI, Escola Superior de Guerra, PUC/RJ, entre outras e não posso deixar de dar uma idéia do que foi e como funcionava. A área era muito extensa, para se ter uma idéia, entre um extremo e outro havia uma distância de 60 quilômetros, em estrada de terra. A capacidade de assentamento era de 800 famílias e a equipe técnico-administrativa muito reduzida e a metodologia previa a participação dos assentados. considerando esses aspectos, coube-nos definir como seria a participação dos beneficiários para poder suplantar as dificuldades, considerando que o cenário natural dava condições para implantar um projeto altamente viável. Ocorreu-nos que os assentados poderiam organizar-se em grupos de vizinhança, de modo que cada grupo teria participação junto à administração do Projeto para pleitear, sugerir, cobrar, assumir e obter benefícios nas atividades inerentes a sua implementação. Essa participação se daria mediante representantes e para evitar a concentração de poder em poucas pessoas, poderiam ser vários de cada grupo, sendo que cada representante seria responsável por uma ou duas atividades, de modo que dentro do possível todos teriam funções dentro do grupo. Com a totalidade dos assentados estariam participando do desenvolvimento das atividades dentro do assentamento. A formação dos grupos de vizinhança foram inicialmente previstos por nós a partir dos mapas de loteamento e discutidos com os respectivos grupos, assim como a finalidade dos grupos e as principais funções, as discussões levaram a ajustes da formação do grupos, as definições das funções e a eleição dos responsáveis, aos grupos demos o nome pomposo de Unidades Agrárias de Trabalho e Produção (UATP). Os assentados chamavam simplesmente de unidades e aos responsáveis pelas atividades por cada Unidade eles chamaram de encarregados. Memória Incra 35 anos Cada Unidade tinha de maneira geral os encarregados e respectivos encargos: Comunicação- responsável pela convocação de reuniões, transmitir avisos da Administração para os membros da Unidade e vice-versa (pelo critério de escolha adotado por eles, recaía no assentado que tinha maior número de filhos, segundo os assentados, quem tinha maior número de filhos podia convocar reuniões em menos tempo em caso de urgência); Agricultura- responsável pelos levantamentos de necessidades de insumos agrícolas, áreas de plantio, organização de mutirões para colheitas, etc; Educação – responsável pela freqüência de crianças na escola, realizações de mutirões para conservação das escolas, etc. Assim por diante em outras atividades como, saúde, infra-estrutura,comercialização, crédito,habitação, cooperativa e representante no Conselho. Este ultimo, representava os interesses gerais da Unidade junto ao Conselho de representantes do Projeto, as atividades eram aquelas 12 definidas pela metodologia e que foram denominadas de Programas. Essa organização deu muita dinâmica ao projeto e reduziu os custos administrativos. Para se ter uma idéia, pelo sistema tradicional um levantamento de necessidades de insumos levaria muitos dias, contando com o pessoal reduzido que estava lotado no projeto, além do mais, os custos com combustível e outros materiais, elevaria o custo final da operação. Já com a participação das Unidades, tanto o levantamento de necessidades assim como a distribuição dos insumos se resumia a um dia e a custos mínimos. Os mutirões ou trabalhos solidários realizados nas Unidades contribuíram de forma categórica no desenvolvimento do espírito cooperativo, o que facilitou a constituição de uma cooperativa em bases sólidas Posteriormente foram criadas também as Unidades Agrárias Femininas (UAF), considerando que as UATP eram constituídas na maioria por homens, as UAF’s tiveram grande participação nas ações educativas em vários temas. Com a organização das UATP, a implementação das outras atividades no projeto foram facilitadas tanto é que a organização da estrutura de produção agrícola foi realizada a partir das propostas das Unidades e com o aconselhamento da nossa equipe técnica que era dada junto a cada UATP a partir das necessidades levantadas pelo encarregado de Agricultura. A necessidade previa também o crédito, assistência técnica e capacitação, e a este conjunto de atividades a Metodologia chamou de Unidades Agrícolas (Programa 5). 69 70 Nead Especial 2 Esse Programa, já no primeiro ano agrícola, transformou a área em uma das de maior produção de Mato Grosso. No segundo ano agrícola do projeto o município de Iguatemi passou de 15o lugar em arrecadação de Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) para 2o no Estado. Para facilitar o escoamento da produção agrícola do projeto, foram abertas estradas, melhoradas as já existentes e construídas as pontes com a utilização de materiais locais. Os encarregados de Infra-estrutura assumiram o papel de promover mutirões para a conservação das estradas e a esse conjunto de atividades a metodologia chamou de Infra-estrutura (Programa 6). Em Iguatemi, nos primeiros dois anos, as estradas foram abertas e conservadas na base da enxada, pois, não se contava com tratores ou outros equipamentos. Chegamos a construir um embarcadouro de madeira no rio Paraná para a expedição de produtos em chatas ou chalanas e uma pista de pouso para aviões de pequeno porte. Até aqui, segundo a metodologia, os programas eram de responsabilidade direta do Incra, ou seja de execução determinada. Daqui em diante as atividades foram de caráter promocional. Os assentados e respectivas famílias deveriam ser contemplados com atividades de educação, sejam de alfabetização e ensino fundamental, tanto para crianças, jovens e adultos. Para tanto o Incra deveria participar cedendo locais para a construção das unidades de educação e a própria construção das mesmas. Em casos excepcionais, promovendo a participação dos órgãos municipais e estaduais no desenvolvimento e na manutenção dos programas de educação. A essa atividade a metodologia denominou de Programa de Educação (Programa 7). No projeto foram construídas 32 escolas isoladas e dois grupos escolares, com 12 salas de aula cada uma, com capacidade de atendimento a 400 alunos por grupo. Construídos e mantidos com recursos do Estado de Mato Grosso e do município de Iguatemi, as professoras foram recrutadas na área do projeto. Um outro serviço que os assentados deveriam ser beneficiários é um programa de medicina preventiva, curativa e ambulatorial. A partir de levantamentos realizados pelos encarregados das Unidades e também das UAF’s, esse conjunto de atividades foi denominado Programa de Saúde (Programa 8). Memória Incra 35 anos Foi construído um posto médico no Projeto com recursos do Estado e mantido pela Prefeitura de Iguatemi. Foram treinados atendentes, parteiras leigas e agentes de saúde, todos de origem local. Era fundamental as condições de moradia dos assentados. Para isso a metodologia previu a construção de moradias e seus apêndices tais como, cisterna, latrina, horta, pomar, galinheiro, etc utilizando materiais disponíveis no local e seguindo modelos construtivos adotados na região. Essas atividades constituem o Programa Habitação (Programa 9). Em nosso caso, havendo muita madeira, produto dos desmatamentos, utilizamos a madeira transformada para construção de casa, apesar de o arquiteto do Incra, Cleso Gomes de Oliveira, orientou a construção de casas, em regime de mutirão, com madeira roliça sem beneficiamento, utilizando o mínimo possível de pregos metal. Os tetos eram cobertos por lascas de madeira em forma de telhado, experiência que diminuiu os custos de habitação em até 60 % dos habituais. Tendo em vista que os assentados a partir do Programa 4, estariam organizados em UATP e trabalhando em forma solidária e cooperativa, tornou-se necessária a formalização da organização em uma entidade societária, com personalidade jurídica, para defender os interesses profissionais e econômicos dos associados. As atividades para configuração e reconhecimento legal dessa organização foi denominada de Empresa Cooperativa (Programa 10). A Empresa Cooperativa teve papel importante em dois conjuntos de atividades. Para facilitar a obtenção de financiamentos destinados ao custeio das atividades agrícolas e investimentos produtivos o que vem a ser o Crédito (Programa 11) e o segundo, para viabilizar em condições mais favoráveis, a venda ou distribuição da produção de forma vantajosa, que se denominou Comercialização (Programa 12). Nesse programa foram construídos quatro armazéns com recursos do Estado de Mato Grosso. A partir das UATP, foi criada a Cooperativa Agrícola Mista do Projeto de Assentamento de Iguatemi (Campai), responsável pela captação de créditos e comercialização da produção do projeto; o processo de comercialização do projeto, foi um sucesso absoluto, é digno de um relato à parte, pois, até a Bolsa de Cereais do Estado de São Paulo, visitou o Projeto para conhecer o sistema de comercialização. 71 72 1. 2. 3. 4. 5. 6. Nead Especial 2 Esta metodologia foi utilizada até 1980, daí para frente foram utilizadas as famosas PO, que eram fichas de atividades, metas e custos segundo o “modelito” Delfin Neto. Na minha ótica, as conclusões são as seguintes: O projeto deu certo por que com ele, se corrigiu as distorções de uso e posse da terra, em uma área muito extensa e conflitante, o que é o principal pressuposto da reforma agrária como conceito universal. Os assentados beneficiários do projeto passaram a obter renda suficiente para pagar os compromissos pessoais e os assumidos com o assentamento e melhorar as condições sociais e econômicas do conjunto familiar. O projeto de Iguatemi provocou um impacto muito grande na região, favorecendo a criação de um pólo de desenvolvimento incontestável, dando condições para a criação de três municípios e contribuiu para a criação do Estado de Mato Grosso do Sul. A Metodologia adotada, gerou um documento, que até hoje, passados mais de 30 anos, está em uso em vários países da América Latina e África, menos no Brasil, infelizmente, “aqui se quer inventar”. Esse documento foi traduzido em cinco idiomas pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) de Roma e Banco Mundial (Bird); ainda é usada a metodologia como roteiro para formulação e a análise de projetos de desenvolvimento rural integrado. Lendo a metodologia verifica-se que o conteúdo é atualíssimo e ainda pode ser utilizado com pouquíssimas adequações. Volto a dizer: não adianta querer inventar a roda, a roda já foi inventada há muito tempo e ela é redonda. O uso dessa metodologia me deu oportunidade de prestar consultoria internacional, em cerca de dez países da América Latina e África e com sucesso técnico. Registro da produção de um documento orientador Em 1986, com o lançamento do 1o PNRA, começaram as desapropriações de terras em ritmo acelerado, porque a Nova República se propunha a realizar “a maior reforma agrária de mundo em todos os tempos.” Com isso havia mais de 150 áreas desapropriadas, até mais de 50% com imissão de posse, mas, não se podia promover o assentamento de famílias porque dependia de “criar os projetos de assentamento” e para isto era necessário formular o “projeto técnico”(exigência do Estatuto da Terra). Memória Incra 35 anos O diretor de Assentamento do Incra, Ayrton Empinotti, preocupado com a situação, convocou o agrônomo Dryden Castro Arezzo e a mim, para formular um modelo de projeto técnico que permitisse assentar as famílias, assim que o Incra emitisse na posse da área e ao mesmo tempo evitasse a ocupação de terras pela falta do tal “projeto.” Em poucos dias formulamos uma proposta, mas, esta teria que ser discutida e validada pelos técnicos da área de assentamento de todas as superintendências, claro, que só após validada seria aplicada imediatamente. As discussões foram realizadas em três pólos: Curitiba, Fortaleza e Cuiabá. Participaram cerca de 550 técnicos e assim nasceu o documento que continha as diretrizes para formular os projetos de assentamento e promover o acesso de famílias às áreas reformadas. O documento contendo essas diretrizes foi denominado Política de assentamento, conhecido como livrinho verde. A Política de assentamento resumidamente recomendava: que os projetos tinham de ser desenhados considerando: a) a participação dos assentados, b) a parcimônia de recursos, c) objetividade e d) prevendo a autogestão. Os documentos que conteriam os Projetos seriam os seguintes: 1. Plano Preliminar (PP), documento a ser elaborado ainda na fase de desapropriação, contendo informações preliminares tais como: capacidade de assentamento, necessidades de crédito de implantação, estimativa de recursos para infra-estrutura física etc. Este documento permitiria a criação do projeto, o ingresso das famílias na área, logo após da imissão de posse pelo Incra. 2. Programa de Ação Imediata (PAI), documento a ser produzido junto com os assentados, a partir do pleno conhecimento das condições naturais da área, permitiria decidir sobre a organização territorial, as atividades produtivas, necessidades de créditos e todos os requerimentos necessários ao desenvolvimento do projeto 3. Projeto Técnico Definitivo (PTD). Esse documento seria preparado opcionalmente, após a consolidação do PAI, com a finalidade de registrar os componentes do projeto e que servissem para avaliações futuras. A política de assentamento durou pouco tempo, se não me engano apenas uns quatro anos. Foi substituída por outras formas de se elaborar projetos, até chegar aos tempos atuais em que se utilizam o Programa de Desenvolvimento dos Assentamentos (PDA) e são elaborados por empresas de planejamento. 73 74 Nead Especial 2 O processo de discussão do documento desde a formulação da proposta inicial, as discussões em pólos e a organização final em “Política de Assentamento”, foi sem dúvida, um dos momentos mais ricos que vi dentro da Instituição, pois, a proposta inicial produzida por nós, foi amplamente enriquecida, aprofundada e melhorada a partir das experiências locais vividas pelos técnicos de todas as unidades da Federação e participantes das discussões Em 2002, convidado pelo superintendente do Incra-MS, assessorei, sob forma de consultoria ao governo de Estado de Mato Grosso do Sul, na formulação e implementação do Projeto de Assentamento Itamarati. Na ocasião lancei mão da Política de Assentamento misturada com a velha metodologia relatada no caso anterior. Os resultados estão sendo excelentes, inclusive esse projeto está sendo considerado como ícone da reforma agrária pelos especialistas no assunto. Depoimento sobre o gerenciamento de uma diretoria do Incra Em 1993 eu estava desempenhando a função de chefe de Gabinete adjunto do Ministro da Agricultura, quando o presidente do Incra, O.Russo, me convidou para assumir o Departamento de Desapropriações da Diretoria Fundiária da instituição. Não me neguei a aceitar o convite, mesmo não tendo nunca trabalhado nessa área, por que sempre trabalhei na ação de Assentamento; por outro lado, as minhas funções no Ministério da Agricultura eram totalmente políticas e burocráticas. No Departamento de Desapropriações fiquei pouco tempo, em torno de dois meses, tempo necessário para entender o processo de desapropriações com toda sua complexidade, implicações técnicas, jurídicas, e políticas. Por solicitação do mesmo residente, passei a responder pela Diretoria, tendo em vista que o titular havia pedido demissão ou foi demitido, não sei o que ocorreu, a verdade é que passei a responder provisoriamente. Fui ficando até completar um ano e meio. Nesse período consegui mobilizar os servidores da Diretoria e nossos homólogos nas superintendências regionais e assim desapropriar mais de dois milhões de hectares e montar processos para a desapropriação de mais outros 10 milhões de hectares. Um verdadeiro recorde de desapropriações no Incra, pelo menos até aquela época. Memória Incra 35 anos Não foi fácil, mas, com criatividade, dedicação, muita paciência, comprometimento e claro muita sorte, é possível “tirar água da pedra” me perdoem o exagero, mas, foi possível e sem reza brava ou milagre . Ao assinar as autorizações de viagens e concessão de diárias, percebi que só um grupo seleto de procuradores e agrônomos viajavam e eram justamente os que ocupavam chefias, isto me “grilou”, porque os trabalhos previstos pelos viajantes era orientar a montagem de processos para desapropriação e os processos que chegavam em Brasília estavam de maneira geral mal instruídos, incompletos. Sempre voltavam à origem para correções, complementações e assim por diante e era um tal de ir e vir, um autentico iôiô de processos. Em conversa com alguns superintendentes fui identificando que um dos maiores problemas nos Estados, principalmente nas Unidades Avançadas, era a falta de pessoal administrativo para auxiliar na montagem dos processos, digitar pareceres, desenhar plantas. A partir dessa constatação propus aos chefes de Departamento da Diretoria que após um levantamento das carências de pessoal nas superintendências, elaborassem um plano de viagens de administrativos para auxiliarem preferencialmente às Unidades Avançadas na montagem de processos. Além desse auxilio, eu tinha em mente que a ida dos administrativos à área seria muito importante, porque eles fatalmente teriam de visitar acampamentos, entrar em contacto com os trabalhadores sem-terra. Enfim, teriam a oportunidade de entender qual era o conteúdo e a razão dos processos que chegavam em Brasília e às vezes eles não davam a menor importância àquele monte de papéis e plantas, que continham esses volumosos pacotes, às vezes sujos e gastos pelo longo tempo de tramitação. Meus amigos! Não deu outra, quando o pessoal começou a viajar, a alegria por viajar já era grande, inclusive tinha gente que nunca havia viajado de avião e na volta depois do trabalho de campo, a alegria de voltar e as preocupações que traziam era uma outra história, parecia que as pessoas se transformavam, pois, o ânimo, entusiasmo e vontade de resolver as coisas a curto prazo, pareciam incontroláveis, mudaram de comportamento da “água para o vinho,” ao ponto de me criar até problemas, porque ao ver a realidade dos acampamentos e o trabalho heróico que os colegas de campo realizavam, eles se comprometiam a resolver e advogar por eles, para mudar e melhorar a situação dos sem-terra e as condições de trabalho dos colegas da “linha de frente” o mais rápido possível. 75 76 Nead Especial 2 Haviam entendido o verdadeiro significado e conteúdo que os processos continham nesse monte de papéis que muitas vezes manuseavam sem compromisso algum. O pessoal, além de fazer o relatório burocrático que o órgão exige, de maneira informal e com suas palavras, contava com naturalidade aos colegas de sala, tudo o que havia visto e ouvido sobre os problemas dos colegas da instituição e dos sem-terra A isto chamo de relatório humano porque é cheio de detalhes, carregado de emoção, de riqueza de observações e até de conclusões. A cada publicação dos atos declaratórios de desapropriação no Diário Oficial era uma festa dos servidores, principalmente daqueles que haviam ajudado a montar os processos, parecia a comemoração de um gol da seleção de futebol contra a Argentina, tal era a euforia. A enxurrada de processos para Brasília, criou um problema sério, porque nós não estávamos preparados para analisar e dar prosseguimento à quantidade de processos que se amontoavam nas diversas diretorias do Incra. E aumentava a cada dia a pressão dos sem-terra, reforçada pelos novos embaixadores que eram os colegas da Diretoria Fundiária. Para dar vazão ao andamento dos processos é que nos ocorreu requisitar procuradores e agrônomos das superintendências estaduais para auxiliarem na análise dos mesmos. Essa estratégia ajudou, mas não resolveu, pois os documentos tinham de ser checados e analisados pelas diretorias de Cadastro, Fundiária, Assentamento e a Procuradoria Jurídica, nessa seqüência. Essa documentação ia de uma a outra Diretoria via protocolo e às vezes via malote, um absurdo. Aí surgiu a idéia de se fazer uma espécie de mutirão formado por técnicos representantes de cada Diretoria e em um ambiente só ou seja, todos em torno de uma mesa, de modo que os processos circulavam pelas Diretorias sem precisar de protocolos ou malotes, um verdadeiro achado! A produtividade aumentou barbaramente e as decretações de áreas foram se sucedendo continuamente. Essa estratégia foi oficializada posteriormente e transformada em comitês estaduais e Comissão Revisora em nível central. O ambiente de trabalho da Diretoria era muito bom, mesmo porque as outras áreas de responsabilidade também avançavam, como as de titulação e regularização fundiária. A manutenção do bom clima de relacionamento entre os colegas estava a cargo da colega Marília Rodrigues, que além da eficiência com que desempenhava a sua função de assistente do Departamento de Obtenção Memória Incra 35 anos de Recursos Fundiários, organizava, pelo menos uma vez por mês, café da manhã em onde maioria dos servidores participava com muita descontração. A forma e o estilo que adotei para gerenciar a Diretoria me causou algumas críticas vindas de dois setores e outros problemas: 1. Em uma reunião de Diretoria o representante do Departamento de Inspeção e Controle, que não era nem diretor, me fez uma crítica, até agressiva, dizendo que eu estaria gastando muito com diárias e passagens de funcionários, ao que eu respondi, categoricamente, que antes de me criticar deveria avaliar o desempenho e produtividade da Diretoria, com viagens e sem viagens, o cara ficou calado, mesmo porque, todos os diretores e inclusive o presidente apoiaram a minha resposta. 2. Em uma reunião de servidores, na qual eu estava presente, um dirigente sindical, fez o seguinte comentário: “Existe um diretor do Incra, que em lugar de apoiar a melhoria dos salários dos servidores, está promovendo uma complementação de salários com a concessão de diárias, inclusive nesta época do ano está querendo garantir o vinho e o peru do Natal dos servidores.” Eu respondi: – “O diretor referido pelo colega, sou eu e assumo que estou fazendo isso, mesmo porque vinho e peru não é privilégio de doutor agrônomo e procurador.” A platéia me aplaudiu intensamente e o sindicalista saiu da sala muito zangado. 3. Fui denunciado pela imprensa local como incentivador de invasão de terras no Distrito Federal para favorecer a eleição de um candidato a governador pelo PT. Eu havia autorizado o assentamento de trabalhadores rurais em áreas do Projeto Alexandre Gusmão. Essa autorização contrariou os interesses de um ex-colega do Incra que intermediava a venda ilegal de lotes no Projeto Alexandre Gusmão. A vivência desta experiência serviu para adotar um modelo de gestão, quando assumi a Diretoria Executiva da Fassincra, considerando os seguintes aspectos: 1. Existe uma distância humana muito grande entre diretivos e servidores. 2. Em grande parte, os servidores estão desmotivados porque não sabem o que e para que estão fazendo. 3. De maneira geral os servidores estão desatualizados em conteúdo e procedimentos nas suas áreas de trabalho. 4. A instituição não se preocupa com as relações interpessoais dos funcionários, principalmente entre as diversas categorias de profissionais. 77 78 1. 2. 3. 4. Nead Especial 2 Esses aspectos assim como no Incra, existiam também na Fassincra e superamos quando tive a oportunidade dirigir a Fundação, como diretor executivo, da seguinte forma: Estabelecemos uma relação amistosa com os empregados, independente da função que desempenhavam, ou seja, todos eram amigos, e podia me comunicar com qualquer empregado de forma amistosa, tanto na sede como nos Estados, sem protocolo algum e muita informalidade. Implementamos um programa de capacitação para todos os empregados, para atualização e dar orientações de procedimentos dentro da Fundação como prestadora de serviços para a saúde dos servidores do Incra, ou seja, todos sabiam perfeitamente o que estavam fazendo na organização. Melhoramos as condições de ambiente de trabalho dos empregados, modernizando os instrumentos e equipamentos e criando rotinas de procedimentos atualizados e mais operacionais. Implantamos mecanismos para favorecer as relações interpessoais entre os empregados, incentivando reuniões sociais, como festas, café da manhã, comemorações de aniversários, almoços, jantares, bailes etc. Tudo isso sem custos e prejuízos para a empresa. Segundo os empregados da Fundação, foi um período muito agradável de se trabalhar, em que eles se sentiram valorizados como pessoas e profissionalmente mais seguros. Um abraço. 6 Memórias e fragmentos: o sonho da reforma agrária e o Incra Pau lo R o b e r to F o n t e s Ba r q u e t e Minha contribuição a excelente idéia de recuperar a história do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pelas “mãos” de atores que viveram e vivem o sonho da realização de uma autêntica reforma agrária, consiste em refletir sobre o período de transição da política agrária no Brasil, quando a colonização de terras cede lugar à política de assentamento, em meados de 1985. Nesse contexto pontuei alguns fragmentos da minha própria trajetória de vida, que se vincula naturalmente com a memória institucional. Fui aluno secundarista em Rio Branco-AC. Estudei agropecuária, assunto afinado com meu bem querer pela natureza exuberante daquela região. Mas não era só. Aprendi no debate de idéias, protagonizado por alguns professores com uma visão crítica da realidade do campo no Brasil, que demandas históricas de segmentos da sociedade não eram bem-vindas nos conteúdos escolares. Então, quando se anunciava alguma questão relacionada com a reforma agrária, por exemplo, os mestres logo cuidavam de cerrar as portas, pois, se tratava de fala subversiva, sujeita ao controle dos aparelhos repressivos do Estado. Mas por que tal tratamento a uma política pública amplamente utilizada ao redor do mundo para promover o desenvolvimento? Obviamente não há espaço, neste breve texto, para uma análise do significado da reforma agrária naquelas nações onde a mesma foi efetivamente executada. Contudo, quero assinalar pelo menos dois aspectos relacionados aos seus impactos: o primeiro envolve a melhoria na distribuição da renda e, o segundo, diz respeito às vantagens na geração de oportunidades de trabalho a custos inferiores aos do setor urbano. 80 Nead Especial 2 O fato é que o Brasil merecia desígnio mais equânime à sua persistentemente concentrada estrutura fundiária. No entanto, a resposta às aspirações populares que transformaram a reforma agrária em “cimento ideológico” da esquerda nos anos de 1960, resultou num conjunto de medidas para promover o processo de modernização do latifúndio. Tais políticas adotadas pelos militares culminaram no agravamento da crise agrária no início dos anos de 1980. Cheguei a universidade nesse mesmo período. O debate acerca do problema agrário brasileiro no curso de Economia era incipiente e insípido. Não obstante, ficou evidente a opção excludente adotada para promover o crescimento econômico, ou seja, modernização sem reforma agrária. Crescera o “bolo”, sem que fosse distribuído para uma população que se urbanizara. O reencontro com o tema da reforma agrária ocorreu no final de 1984 quando ingressei numa tabela especial de empregos do Projeto Fundiário Uaquiri (PFU), objeto das ações da Coordenadoria Regional do Incra no Estado do Acre. Mais que uma autarquia destinada a desenvolver equivocado programa de colonização de terras, o Incra se caracterizava pela semelhança com um empreendimento “familiar,” cujas edificações, contemplavam um conjunto de casas, parque esportivo, salão para eventos sociais, dentre outros. Para os servidores que moravam na vila, o ambiente de trabalho era a extensão de suas casas. Se esse modelo, de convívio fraterno e próximo, tivesse coincidido com uma proposta efetiva de realização da reforma agrária para o país, talvez a realidade agrária brasileira fosse outra. Na prática, contudo, os objetivos se voltaram para arrefecer focos de tensão social existentes no campo, gerados em face da expropriação de milhares de trabalhadores. A própria logomarca utilizada pelo Incra desde a sua criação, em 1970, mostra como era conservadora a visão do establishment. Formas retangulares davam a impressão de que o compromisso institucional era com a distribuição das terras. Olhar mais atento, entretanto, constatara retângulos de diferentes tamanhos, alguns pequenos e outros muito grandes, denotando a manutenção de um quadro fundiário concentrado e de uma ação institucional pouco criativa. A realidade observada confirmava essa digressão. Naquele período, os trabalhos de organização das formas de distribuição espacial nos imóveis eram basicamente definidos em gabinete, sem a participação das famílias, o chamado “quadrado burro.” Importante destacar que mesmo avançando na transição para uma nova estratégia de ação, o Incra mantém a logomarca até hoje. Aproveito este espaço Memória Incra 35 anos para sugerir campanha por uma nova, que contemple os desafios colocados à Reforma agrária na atualidade, como as crescentes preocupações focadas nas questões ambientais. Com o advento do processo de abertura política, novamente o debate sobre a importância da reforma agrária ganha peso no âmbito das proposições que substantivavam o movimento pelas Diretas já no ano de 1984. Jamais pensei que comigo mesmo dar-se-ia uma mudança radical que me levaria para o Ceará, mas, disso, falo mais adiante. Por dentro do Incra, mais especificamente do PFU, corriam várias atividades não afinadas com a propaganda governamental, cujos pilares alardeavam a integração dos “homens sem terra do Nordeste com as terras sem homens da Amazônia.” Foi um processo de difícil adaptação, aquele de transmudar nordestinos para a selva, com suas especificidades regionais desafiantes para um povo acostumado a viver na caatinga. Lembro-me, por exemplo, dos chamados “termos de acordo”, que eram praticados no âmbito do PFU, onde posseiros com anos de atividade no campo, “negociavam” suas posses com os fazendeiros, ávidos para concentrar mais terras, derrubar as matas e introduzir seus rebanhos de gado no lugar. Sendo assim, mesmo na vigência de um marco legal importante, o Estatuto da Terra, os militares cumpriram à risca um projeto que desvirtuou o sentido da reforma agrária. José Gomes da Silva, expoente da intelectualidade nas proposições em favor da reforma agrária, denunciou esse processo, quando escreveu que os militares haviam igualado o conjuntural, ou seja, a política agrícola, ao estrutural, consubstanciado na reforma agrária. A especificidade das ações do Estado brasileiro nas questões relacionadas à política de reforma agrária remonta à promulgação daquele instrumento legal, em 1964. Essa lei em vigor poucos meses após o golpe militar, foi objeto de controvertidas análises. Afinal, é uma Lei de reforma agrária? A resposta não é simples. Penso que foi uma forma de conter o ânimo das massas favoráveis à reforma agrária, permitindo algumas intervenções fundiárias. O Estatuto da Terra originou conceitos como os de latifúndio por dimensão e exploração, minifúndio, empresa rural, propriedade familiar e os respectivos critérios para a sua identificação e a possibilidade de desapropriação por interesse 81 82 Nead Especial 2 social. Apresentou indicações importantes, como o zoneamento do país em regiões homogêneas, as áreas em situação crítica de tensão social e, também, a obrigatoriedade para a elaboração dos Planos Nacionais de Reforma agrária (PNRA). Mas, sobretudo, se comprometeu com a modernização do latifúndio, transformando-o em empresa rural. Em cumprimento aos dispositivos do Estatuto da Terra, os governos militares instituíram dois PNRA, em 1966 e 1968. O primeiro centrava seus esforços na realização do cadastro de terras, ficando a reforma agrária para um momento subseqüente. O segundo PNRA definiu como prioridade a tributação. Essas iniciativas se mostraram inócuas para promover a distribuição de terras e foram insuficientes até mesmo como fonte de receita pública. As primeiras impressões identificam na reforma agrária um processo de natureza prioritariamente política, isto é, um instrumento capaz de alterar as correlações de poder numa determinada sociedade. Não se trata de algo com possibilidades de ser equacionado no âmbito do mercado, com escopo eminentemente técnico, como muitos querem fazer crer. São os Estados nacionais os responsáveis pelo seu devir ou pela sua procrastinação. Quando se analisa a movimentação política ocorrida durante o governo da chamada Nova República é possível constatar este fato. Naquela fase foi elaborada, com o apoio do Incra, a proposta do I Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República, amplamente discutida no IV Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, em Brasília, em 26 de maio de 1985. O objetivo geral do PNRA seria mudar a estrutura fundiária do País. O documento propositivo apontava com riqueza de detalhes os problemas gerados pela concentração das terras e as formas efetivas de enfrentá-la. Assegurava, também, mecanismos para que fossem consideradas as diferentes expressões culturais dos trabalhadores, notadamente quanto às formas de exploração das terras. José Graziano da Silva recupera esses dois momentos no livro Para entender o Plano Nacional de Reforma Agrária, onde deixa claro que o interesse dos militares era desenvolver o cadastro e a colonização de terras. Segundo o autor, o PNRA de 1985, tratado adiante, se diferencia dos anteriores por escolher a “desapropriação por interesse social como instrumento principal a ser usado no processo de reforma agrária,” e a indenização das terras em Títulos da Dívida Agrária-TDA (SILVA, 1985). Memória Incra 35 anos Recebida com entusiasmo pelos trabalhadores rurais, a proposta contou com a adesão de expressivas instituições e movimentos sociais. Apoiaram-na o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem-Terra (MST), a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Associação Brasileira de Reforma agrária (Abra), a Campanha Nacional pela Reforma agrária (CNRA), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Porém, as declarações de apoio não foram suficientes para que, na assinatura do Plano propriamente dito, fossem mantidas todas as proposições. Sucintamente, o PNRA da Nova República previa, com base no Estatuto da Terra, o assentamento de 1,4 milhão de famílias no quadriênio 1985/1989. Para compreender o fraco desempenho do Plano que, ao final daquele governo, não atingiu sequer 10% de suas metas, se faz necessário analisar as agudas contendas no seu processo de elaboração e execução. Por se tratar de um Plano que previa a distribuição de terras e a extinção de privilégios seculares, muitos eram os interessados em sua apreciação e discussão, apresentação de emendas e sugestões. A sua oficialização ocorreu após 12 versões, permitindo um texto muito distante da proposta original e voltado aos interesses dos proprietários de terra. As articulações que levaram a tal desvirtuamento se inserem num conjunto de atividades paralelas ao Plano que, aos poucos, foram tomando seu lugar e o condicionando às motivações contrárias à reforma agrária. Na mesma data de aprovação do PNRA, em outubro de 1985, o presidente da República assinou a Política Nacional de Desenvolvimento Rural (PNDR). Seus desdobramentos distorceram completamente o Plano, submetendo-o ao controle da Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan) e às demandas do setor agroindustrial, um de seus principais críticos. A reforma agrária ficou subordinada à política de face agrícola, abrindo caminho para a extinção do Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento (Mirad) e a vinculação do Incra ao Ministério da Agricultura, historicamente ligado aos interesses de grandes proprietários de terra. Os programas de irrigação, por exemplo, passaram a concorrer e se apropriar dos recursos destinados à política de teor agrário. Ocorre que, no campo político, eram travadas lutas ferrenhas entre defensores e opositores da reforma agrária. No âmbito da Assembléia Nacional Constituinte, 83 84 Nead Especial 2 de 1988, pressões contra-reformistas eram urdidas, culminando com um texto fechado em relação à reforma agrária e num ambiente institucional que emperrou o cumprimento das reivindicações dos segmentos populares. Dando seqüência ao relato pessoal, permeado com a experiência de trabalho no Incra, é o momento de esclarecer como se deu minha própria transição, no bojo dessas reminiscências. Eu não tinha nenhuma expectativa em deixar Rio Branco e muito menos o trabalho no Incra, cuja rotina estava a assimilar aos poucos, embora, naquele período, fossem quase inexistentes as possibilidades de capacitação e, portanto, de desenvolvimento profissional. Foi então que um problema de saúde em minha família exigiu uma decisão urgente, que permitisse enfrentar as limitações de infra-estrutura hospitalar e de saúde existentes em Rio Branco. Após breve estadia no Rio de Janeiro, para onde pensei em transferir-me, decidi por Fortaleza, metrópole dotada de bom atendimento e terra natal de minha companheira. Encerro aqui as memórias familiares, cuja dor foi superada com os resultados positivos do tratamento. O Incra veio depois, quando foi possível concretizar transferência para a Superintendência Regional do Ceará, no início dos anos de 1990. O fascínio pela bela cidade litorânea, cujas praias pude desfrutar algumas vezes durante períodos de férias, transformara-se numa realidade cotidiana e, portanto, desafiante: trabalho, aluguel, transporte, colégio para os filhos, vida social, etc. A sede do Incra, um edifício mediano localizado fora da área central, apresentava traços característicos das obras do tempo da ditadura. Aspecto frio, cerrado, sem cor, estilo caixote. Diz-se que o posicionaram distante da área central para inviabilizar as mobilizações populares voltadas para pressionar os governos pela realização da reforma agrária. Todavia, naquele período, o governo Federal acenava com a intenção de realizar um efetivo processo de reforma agrária. Tanto é assim que postos-chaves da administração ligados à temática da reforma agrária, estiveram ocupados por pessoas diretamente ligadas às lutas dos trabalhadores. As impressões iniciais no Ceará foram as melhores. Havia um ambiente de forte correspondência entre o que se planejava, e as aspirações da classe trabalhadora pela democratização da terra. Com a introdução da política de assentamento, os pressupostos da reforma agrária se ampliaram, perdendo sentido a colonização de terras, cujo equívoco, já evidenciei. Ganhou vulto a perspectiva de trabalhar Memória Incra 35 anos o assentamento das famílias em suas próprias regiões de origem, assegurando, dentre outras coisas, a preservação da identidade cultural das pessoas. Para levar adiante o que se preconizara na política de assentamento construiuse um significativo aparato institucional, participativo e democrático, onde os governos federal e estadual somaram esforços no encaminhamento das ações de reforma agrária. É importante salientar o envolvimento dos trabalhadores e técnicos nesse processo, proporcionando manifestações plenas de valor socioeconômico, político e cultural, a exemplo das feiras da reforma agrária, que mostraram a força que os movimentos sociais detinham naquele momento. Merece destaque o expressivo esforço de capacitação promovido tanto para técnicos como também para assentados. Foram diversas as metodologias utilizadas. Todas, não obstante suas limitações aportaram conteúdos valorosos para a qualificação da reforma agrária no Ceará. Dentre um conjunto de ações que pude observar, gostaria de assinalar aquela conhecida como “laboratório organizacional,” cujos pressupostos permanecem atuais. É notória sua capacidade de despertar na comunidade seu potencial para o desenvolvimento de diferentes atividades produtivas. Ademais, mostra que o assentamento não é, simplesmente, uma unidade de produção agropecuária. Sua complexidade envolve claramente o desafio pedagógico da construção de relações entre os sujeitos da reforma agrária. A metodologia utilizada nesse trabalho tem o mais nobre dos propósitos, consubstanciado na perspectiva de despertar nos assentados a conscientização de sua cidadania. Além disso, promove o protagonismo das pessoas nas suas inter-relações com as entidades e instituições municipais. Na prática, contudo, a descontinuidade das políticas e a falta de acompanhamento das ações não permitiram que os resultados fossem atingidos. O saldo positivo desse processo foi o surgimento de uma ampla frente de lutas em favor da realização da reforma agrária. Movimentos sociais com importante capacidade de mobilização surgiram. Dentre eles, o MST se constitui em meados dos anos 1980 e, em pouco tempo, transforma-se em um interlocutor com significativo alcance político nas suas ações realizadas em quase todo o país. Uma de suas características mais inovadoras se reflete na expressiva disposição para organizar a população pobre, tanto nos espaços rurais como também 85 86 Nead Especial 2 na área urbana, contribuindo decisivamente para desnudar a dívida social do Brasil com aquele segmento. Penso que uma das principais contribuições que a política de assentamentos trouxe ao debate acerca da reforma agrária, encontra-se na consolidação dessas experiências voltadas para a democratização do acesso a terra. Se, em geral, os assentamentos não estão efetivamente inseridos na dinâmica socioeconômica dos municípios onde foram criados, eles possibilitaram o surgimento de uma mobilização social que não havia nos marcos da política de colonização de terras. O “movimento” dos assentados provocou um ambiente no qual o tema da Reforma agrária encontrou o seu lugar. Nele, cotidianamente, as diversas expressões de luta pela consecução da Reforma agrária ora dialogam, ora pelejam com os governos. De acordo com o que aventei no início destas memórias, aqueles e aquelas que fazem o Incra, juntamente com as entidades parceiras, temos uma tarefa histórica das mais significativas. Ao alimentarmos o sonho da Reforma agrária, ao longo desses 35 anos, nos co-responsabilizamos pela construção da nação brasileira, cujos alicerces estão longe ainda das condições objetivas para abrigar todo o seu povo. Referências I n s t i t u to N a c i o n a l d e C o lo n i z a ç ã o e R e f o r ma A g r á r i a da Terra: Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, Brasília. ( I n c r a ) . Estatuto _______ . Proposta para elaboração do 1o Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República – 1o PNRA. Brasília: 1985. _______ . 1o PNRA: Decreto no 91.766 de 10 de outubro de 1985, Brasília. _______ . Política de Assentamento. Brasília: 1987. G O M ES D A S ILVA , José. A reforma agrária brasileira na virada do milênio – Campinas: Abra, 1996.v 7 Missão cumprida A l b e r to M a r q u e s Fui admitido no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), em 1966, no esplendor dos meus vinte anos. Dali até que me aposentasse proporcionalmente, vivi intensamente, conheci pessoas e lugares maravilhosos, tive um aprendizado que ainda hoje me serve e me faz seguir adiante, sempre de cabeça erguida. Entre os colegas de trabalho tenho amigos que considero verdadeiros irmãos. Em virtude disso, convivemos numa verdadeira confraria. Somos de fato uma grande família. Moro hoje, numa pacata cidade do norte de Minas, minha querida Janaúba, e aqui costumo em roda de amigos contar causos de pescaria, futebol, mas não deixo nunca de relembrar o tempo feliz que passou no meu querido Incra, casa onde ainda permanecem bons amigos, que continuam na ativa. Caso do meu compadre Ismael, chefe da sala do cidadão em Belo Horizonte, que me informou dessa feliz idéia da direção do Incra, e me fez o convite para participar e assim comemorar os seus 35 anos. São vários os causos, bem assim as histórias, que neste momento me transportam ao passado, algumas alegres, outras tristes. Escolhi para narrar, uma passagem simples da minha vida de servidor público, mas que é orgulho para mim e todos que estavam e permaneceram e perseveraram naquela empreitada. Se não me engano, transcorria o ano de 1988, quando fomos designados para realizar algumas vistorias de imóveis para fins de desapropriação por interesse social, na região noroeste de Minas, eram duas equipes de trabalho. Era fevereiro, proximidades do carnaval, chuva intensa, estradas intransitáveis, eis que já no encerramento dos trabalhos, deparamos com o fato de que todos os 88 Nead Especial 2 imóveis que vistoriamos tiveram de ser descartados pelos mais diversos motivos. Todos os nossos esforços foram em vão. Estávamos nos preparando para voltar amargando uma derrota, pois não foi possível indicar qualquer imóvel para desapropriação, fizemos o que foi possível; paciência, haveríamos mesmo que retornar sem qualquer proposta. Na véspera da viagem de retorno, sexta-feira de carnaval, gripado com febre altíssima, procurei uma farmácia para comprar algum remédio que pudesse me aliviar. Naquele local, como é de costume no interior mineiro, encontrei algumas pessoas que me reconheceram e passaram a questionar nosso trabalho. Alguns a favor da reforma agrária, outros contra, mas todos se manifestaram democraticamente. Informei-lhes que retornaríamos no dia seguinte, dando o trabalho por encerrado. Naquele momento, uma das pessoas presentes perguntou-me se gostava de briga, mesmo que fosse ruim, daquelas de cachorro grande, ao que respondi que sim, por uma boa causa topava qualquer briga, pois desconhecia a palavra medo. Despedimo-nos e fui para o hotel com fortes dores de cabeça e um terrível estado gripal, mas tendo o cuidado de antes anotar o endereço do senhor, pois estava interessado no que tinha para me contar. Era um forte pressentimento de que ali havia algo mais sério e que precisava urgentemente ser conferido. Sábado pela manhã, antes da viagem de volta, lá estava eu na porta da casa do referido senhor, para saber qual era a briga que haveria que enfrentar. Algo me dizia que ali tinha dente de coelho. Não podia me furtar ao encontro. Conversamos animadamente, até chegar a conclusão de nossa conversa, quando me passou a informação sobre determinado imóvel que não constava de nossa lista de vistoria, cujo proprietário era italiano. Segundo o informante tratava-se de um latifúndio. Voltei imediatamente ao hotel e comuniquei aos companheiros o ocorrido. Houve uma breve discussão entre nós, alguns achavam que valia a pena conferir, outros preferiam retornar para casa, pois já era sábado de carnaval e grande era a saudade das crianças. Decidimos então que uma viatura retornaria com uma equipe e a outra permaneceria até concluir a vistoria do imóvel X. A chuva continuava firme, não dava trégua, mesmo assim o entusiasmo daqueles que ficaram era enorme. No sábado pela manhã preparamos todo o Memória Incra 35 anos material necessário para a vistoria, ultimando os detalhes para que tudo corresse a contento. Naquele mesmo dia localizamos o oficial do Cartório de Registro de Imóveis de João Pinheiro, obtendo uma certidão de inteiro teor, dando conta de uma propriedade de 20.000 hectares, denominada Fruta Danta. Em seguida, pé na estrada. Ainda naquele sábado conseguimos notificar o gerente da propriedade, discorremos sobre o trabalho que iríamos realizar. Fomos informados que os proprietários da fazenda se encontravam em São Paulo. Aproveitamos, já que estávamos ali e percorremos de automóvel boa parte do imóvel, o que deu para sentir que ali estava a pérola que ainda não havíamos encontrado. O imóvel de tão plano que era, parecia uma grande mesa, banhado pelos rios Verde e Paracatu, além disso possuía belas veredas. Retornamos para João Pinheiro, ansiosos para que chegasse a segunda-feira, onde levantaríamos in loco os dados do imóvel. No domingo, ninguém é de ferro, descansamos. Segunda-feira pela manhã, a turma de campo partiu para o imóvel, enquanto eu fiquei providenciando a cadeia dominial e plantas cartográficas, ao tempo em que fazia contatos com autoridades, tais como, prefeito municipal, sindicatos patronal e dos trabalhadores rurais, igreja e a imprensa local, no sentido de agregar forças, já que a briga era mesmo de cachorro grande. À noite nos encontramos e fizemos uma breve avaliação do que até então tínhamos feito. Eu mostrava todo o material que havia conseguido coletar, falei também da objeção que havia encontrado por parte de algumas autoridades contatadas, enquanto os colegas que foram a campo externavam suas opiniões sobre o imóvel, no fundo, tudo era muito animador. Terça-feira de carnaval, bem cedinho, já estávamos na Fazenda Fruta Danta, levamos carne, pão, refrigerante, água, e barracas onde dormimos. Antes porém, na prosa que tivemos com os empregados da fazenda, ficamos sabendo de alguns detalhes que diziam respeito ao perfil dos proprietários do imóvel. Os trabalhos topográfico e agronômico, foram concluídos, restava apenas fazer o levantamento das benfeitorias, que se resumiam a uma enorme casa sede, varias casas de empregados, galpões etc. Na casa-sede, havia piscina, e no seu interior vários cômodos, inclusive um, subterrâneo, que não conseguimos identificar sua serventia. 89 90 Nead Especial 2 Na quarta-feira de Cinzas, fui a Paracatu providenciar algumas cópias heliográficas, retornando naquele mesmo dia para João Pinheiro, onde ainda tive tempo de voltar à casa daquele senhor, para agradecer e dizer que a briga estava comprada. Diz o mineiro, quando joga truco, “primeira feita, Agostín na garupa.” A primeira com certeza estava feita, era nossa parte no jogo. Eufóricos, na quinta-feira retornamos para Belo Horizonte, para concluir o trabalho, o que fizemos em tempo recorde. Pouco tempo depois, o Diário Oficial da União estampava o decreto presidencial que declarava o imóvel Fruta Danta de interesse social para fins de reforma agrária. Dali até a imissão de posse foi tudo muito rápido. Na rotina do trabalho, já esquecido daquela passagem, eis que um belo dia o procurador chefe me chama em sua sala, dizendo que havia uma pessoa que queria me conhecer. Para meu espanto se tratava de uma senhora austríaca, exatamente a ex-proprietária da Fazenda Fruta Danta, cujo primeiro nome se não me falha a memória é Anita. Depois do susto, a surpresa. Disse ela: “Não estou aqui para reclamar de tudo aquilo que me aconteceu, mas, pessoalmente, venho parabenizá-los, pelo belo trabalho que fizeram. O imóvel haveria mesmo que ser desapropriado.” Aliviado, com o ego nas alturas, retornei a minha sala, com a exata sensação do dever cumprido. Hoje, o Projeto Fruta Danta é um sucesso. Aquele estado gripal devido às chuvas que apanhei, transformou-se em pneumonia dupla, logo curada. Anita era mulher do mafioso Tomazo Buscheta, que fazia daquele imóvel, refúgio seu e de seus asseclas. Chegavam ao cúmulo de mandar um avião a João Pinheiro, apenas para comprar cigarros ou bebidas. Aquela sala subterrânea que a princípio tanto nos intrigou,chegando a ponto de não identificar sua serventia, era o local onde refinavam cocaína. A reforma agrária ganhou um belo patrimônio, graças, sem falsa modéstia, à perseverança daqueles que anonimamente fizeram sua parte. 8 O Incra na região do Alto-Purus, Sena Madureira – Acre Pau lo C é s a r Ra b e l lo M e n d e s d e O l i v e i r a Apresentação A decisão do Incra em promover o concurso Memória Incra 35 anos é altamente louvável, no momento em que permite que resgatemos, para conhecimento das gerações, passada, presente e futura, a história da autarquia, construída com muito trabalho, luta, sacrifício, suor e acima de tudo, dedicação e amor pela causa da reforma agrária. Nesse sentido, por meio de documentos, livros, fotografias, fitas de vídeo, DVD’s e principalmente de depoimentos dos servidores do Incra e de pessoas que, mesmo não tendo sido servidoras, participaram direta ou indiretamente de sua história, devemos tornar público o acervo de nossa instituição, celebrando seus êxitos, aprendendo com seus erros, mas acima de tudo, democratizando nossas ações, em busca de justiça social e cidadania no Brasil. O presente trabalho é fruto da experiência vivida pelo autor nos projetos de colonização oficial e fundiário do Incra localizados no município de Sena Madureira, Estado do Acre, região do Alto Purus, a saber,Projeto de Assentamento Dirigido Boa Esperança e Projeto Fundiário Alto Purus. Enquanto o trabalho ia sendo feito as lembranças foram surgindo, como se não tivessem passado mais de vinte anos desde que saí daquele município, em busca de outros desafios. Com as lembranças, vieram também as emoções de momentos marcantes do início da minha vida profissional, a qual tive e tenho a honra e o orgulho de ter começado e permanecido até hoje no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. 92 Nead Especial 2 “E Deus criou o céu, a terra e… o Acre” A Deus, que me deu a vida. À minha família, sem a qual a vida não tem sentido. Os meus sinceros agradecimentos aos amigos do Incra, em especial aos que trabalham na Superintendência Regional do Incra no Estado do Acre e em particular aos que trabalharam e conviveram comigo em Sena Madureira. Da mesma forma, o muito do pouco que sei em relação à colonização e reforma agrária devo principalmente aos colegas do Incra em todo o Brasil, que sempre me ensinaram e incentivaram nesses anos de Incra. Este trabalho é dedicado à memória dos colegas do Incra já falecidos, em especial a Maria Brasil Costa da Cruz e Ildeu Mendes Maia, amigos queridos que, prematuramente, foram velar por nós junto ao Criador. A Waldir Pamplona da Silva, professor e amigo de todas as horas. Qualquer semelhança com acontecimentos passados ou com pessoas não é mera coincidência e sim a realidade dos fatos, na interpretação do autor. Unidade Avançada Alto Purus, Sena Madureira, Acre Memória Incra 35 anos Introdução No início do século XX o Acre era uma região disputada por empresas estrangeiras e seus representantes, trabalhadores brasileiros, peruanos, bolivianos e indígenas. Localizado no sudoeste da Amazônia era até então território pertencente à Bolívia. Em 17 de novembro de 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, o Brasil recebeu a posse definitiva da região em troca de terras de Mato Grosso, do pagamento de dois milhões de libras esterlinas e do compromisso de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré. O Rio Purus faz parte da bacia amazônica; nasce no Peru e percorre cerca de 3.300 quilômetros até sua foz no rio Solimões, atravessando o Acre e parte do Amazonas. Situada na confluência dos rios Caeté e Iaco, tributários do Purus, Sena Madureira foi fundada em terras do antigo Seringal Santa Fé, no dia 25 de setembro de 1904, para ser a capital do Departamento do Alto Purus. Localiza-se na região central do Acre, limitando-se ao norte com o Estado do Amazonas, ao sul com o município de Assis Brasil, a leste com os municípios de Bujari, Rio Branco, Xapuri e Brasiléia, a oeste com o município de Manoel Urbano e a sudoeste com o Peru. A questão fundiária do Acre, a exemplo de outras regiões da Amazônia é complexa, demandando ações de competência da União Federal, visto suas terras situarem-se na faixa de fronteira do Brasil com as Repúblicas do Peru e da Bolívia, bem como na faixa de segurança nacional fixada em legislação própria. Seguindo as diretrizes emanadas pelos governos militares de ocupação de vazios demográficos em áreas de faixa de fronteira e de segurança nacional, notadamente na Amazônia Legal, o Incra se fez presente no Estado do Acre desde meados da década de 1970, com a criação e implantação da Coordenadoria Regional Acre/Rondônia, posteriormente Coordenadoria Regional do Acre – CR14, Coordenadoria Especial da Amazônia Ocidental (CEAO), novamente CR-14) e finalmente Superintendência Regional do Incra no Estado do Acre – SR-14- AC. As ações de colonização oficial foram materializadas através da criação e implantação dos Projetos de Assentamento Dirigido (PAD) Pedro Peixoto, abrangendo parte dos municípios de Rio Branco, Senador Guiomar e Plácido de Castro, PAD Humaitá, em Porto Acre, PAD Santa Luzia, em Cruzeiro do Sul, PAD Quixadá, em Brasiléia e Xapuri e PAD Boa Esperança, em Sena Madureira. 93 94 Nead Especial 2 As ações fundiárias foram desenvolvidas pelos Projetos Fundiários: PF Uaquiri, com sede em Rio Branco, PF Alto Juruá, com sede em Cruzeiro do Sul e PF Alto Purus, sediado em Sena Madureira. Final dos anos 1970 e início da década de 1980. Em Brasiléia/AC era assassinado com três tiros Wilson de Souza Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais daquele município, naquilo que viria a ser um prenúncio da disputa por terras entre fazendeiros, seringueiros e posseiros. Eram tempos de colonização oficial e ações fundiárias. O Incra tinha como presidente Paulo Yokota, que havia assumido em março de 1979, sucedendo a Lourenço José Tavares Vieira da Silva, tendo ocupado a presidência até fevereiro de 1985. No Estado do Acre a Coordenação Regional do Incra tinha passado de Assis Canuto para o general Fernando Moreno Maia, o General, como ficou conhecido. Eram tempos de legislação reforma clara e precisa, como o Estatuto da Terra e seu Decreto regulamentador, o 59.428/66. Eram tempos de observância da Lei no 6.383/76, da Exposição de Motivos 77/78 e seu Anexo: Rol das Hipótese de Convalidação. Eram tempos de execução das diretrizes contidas na Norma Incra DFT. 1 – F/1b. O assentamento de agricultores era regido pelos 12 programas a saber: Distribuição de terras, Organização territorial, Administração do Projeto, Assentamento, Unidades Agrícolas, Infra-estrutura Física, Educação, Saúde e Previdência Social, Habitação Rural, Empresa Cooperativa, Crédito e Comercialização. Era tempo em que os dirigentes do Incra em Brasília eram referência temática na autarquia e, apesar de não serem conhecidos pessoalmente pelos servidores da CR-14 suas orientações o eram, através dos documentos oficiais do Incra. Exemplos: Cristiano Machado Neto e Odair Zanatta nas questões fundiárias, Cláudio José Ribeiro e Hélio Palma de Arruda na colonização, George Willian Prescott na cartografia, Maria Jovita Wolney Valente e Almir Laversveiler de Moraes, nos assuntos de natureza jurídica. PAD Boa Esperança Criado em outubro de 1977 em áreas de seringais desapropriados por interesse social para fins de l reforma, o PAD Esperança como ficou conhecido, localiza-se à margem esquerda da BR-364, trecho Sena Madureira/Manoel Urbano, mais precisamente no Km 10, após a travessia do Rio Caeté. Memória Incra 35 anos Sede Administrativa do PAD Boa Esperança – Sena Madureira/AC Estruturado em quadro próprio de funcionários que chegaram a 39, entre artífices, agentes de portaria, assistente de administração, motoristas, desenhistas, radiotelegrafistas, técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos, funcionou administrativamente em instalações de alvenaria, em prédio localizado no centro da cidade, cedido ao Incra pela Prelazia Acre-Purus. Com área inicial de 292.000 hectares e com capacidade de assentamento de 2.750 famílias, o PAD Esperança recebeu famílias de várias regiões do Brasil, especialmente do sul do país, com ênfase para famílias de imigrantes do Estado do Paraná. O trabalho desenvolvido ao final da década de 1970 e início dos anos 1980 foi marcante em termos de colonização oficial. Desde a chegada das famílias, a maioria descapitalizada e sem o mínimo conhecimento da realidade da Amazônia Legal, o trabalho dos servidores do Incra foi fundamental para o assentamento dessas famílias. O cadastramento inicial dos trabalhadores, feito manualmente por meio do IC, Identificação e Classificação de Candidato a Parceleiro, formulário usado à época, permitia a classificação das famílias no processo de seleção; As expli- 95 96 Nead Especial 2 cações iniciais sobre o projeto e as parcelas, direitos e deveres do Incra e dos parceleiros, a ida aos lotes, as orientações sobre a mata, seus perigos, caprichos, regime de chuvas e secas, fauna e flora, dentre outras atribuições, tudo era feito com dificuldades naturais em função do isolamento do projeto em relação à sede municipal, e desta em relação à capital do Estado. Não tanto pela distância, aproximadamente 145 quilômetros, mas principalmente pela precariedade do principal acesso, a BR-364, asfaltada somente na década de 1990. Mesmo com todas as dificuldades citadas, era grande a alegria, o entusiasmo e a dedicação dos servidores do Incra e dos parceleiros, esses últimos animados com a posse e futura propriedade de suas terras. Os lotes eram de cem hectares em média e o Incra assentava as famílias somente após a medição e demarcação dos mesmos. Com recursos do crédito, as famílias assentadas adquiriam animais de tração e de tiro, carroças, equipamentos agrícolas, adubos e financiavam a produção de gêneros alimentícios, principalmente arroz, feijão e milho. Somente aqueles que conviveram ou convivem com a realidade da floresta Amazônica sabem o que é lidar com a falta ou a precariedade de estradas de acesso, principalmente no que diz respeito às condições de tráfego, em função das fortes chuvas que caem na região. As estradas vicinais e os ramais construídos pelo Incra, possibilitavam certa facilidade de trânsito no verão (período de seca), não permitiam nenhum tipo de tráfego no inverno, já que a lama que se forma no leito das estradas impede, de maneira cruel, trânsito de qualquer veículo automotor, mesmo aqueles com tração, como eram os jeep e pick-up que o Incra possuía. Aliada às condições das estradas, outra dificuldade encontrada na região e que impactou negativamente a colonização oficial no PAD Esperança relacionase às condições de saúde, agravadas principalmente pela malária, que atingia servidores, parceleiros e seus familiares. Nesse aspecto, a ação de servidores do Incra em muito contribuiu para minimizar o problema, já que inúmeros parceleiros foram salvos da morte por malária devido ao pronto socorro prestado pelos servidores do projeto, retirando-os de suas parcelas em ambulância do projeto e encaminhando-os em tempo hábil ao Hospital de Sena Madureira e quando necessário, aos hospitais de Rio Branco para o devido tratamento. Os técnicos do Incra realizavam as vistorias nas parcelas, com vistas à expedição de Autorização de Ocupação e posteriormente, de título definitivo. Memória Incra 35 anos Ressalta-se que a área do PAD Esperança abrangia seringais nativos, também vistoriados pelos técnicos para identificação dos ocupantes e definição das situações fundiárias encontradas. Assim, áreas localizadas às margens dos rios Caeté, Iaco, Macauã e Igarapé Xiburema foram objeto de levantamento feito pelos técnicos do projeto, trabalho que serviu para mapear e identificar as famílias residentes nas mesmas. Desde sua criação até os dias atuais, o PAD Esperança assentou 1.662 famílias, das quais permanecem 856. Foram implantados 314 quilômetros entre estradas vicinais e ramais, bem como 36 quilômetos de rede elétrica, 33 escolas e dois postos de saúde. A titulação definitiva beneficiou 162 famílias. Em que pesem todos os investimentos realizados pelo Incra no PAD Boa Esperança, a análise geral indica que, infelizmente, os objetivos inicialmente propostos não foram alcançados. A evasão e desistência de parceleiros foi muito superior à média de outros projetos. Inúmeras razões levaram ao fracasso, senão total, pelo menos parcial do projeto. Dentre elas destacam-se: escolha da área (sem acesso garantido em épocas invernosas), seleção de candidatos, muitos dos quais sem nenhuma experiência em manejo da floresta amazônica, capacidade de uso dos solos, modelo de assentamento inadequado e fora da realidade da floresta, parcelas demarcadas sem respeito aos divisores de água, paternalismo exacerbado do Incra, falta de integração com as instituições públicas estaduais e municipais, etc. Imigrantes paraenses chegados em Sena Madureira em 1982, para assentamento no PAD Boa Esperança. Observa-se o quantitativo de crianças e adolescentes. 97 98 Nead Especial 2 A inauguração da sede administrativa do PAD Boa Esperança Apesar de funcionar em prédio cedido pela Prelazia Acre-Purus, a CR-14 entendeu que o PAD Esperança tinha de ter sua sede própria, dentro de sua área de jurisdição. Para tanto, foi escolhido para receber a sede o Km 16 da BR-364, no sentido de Manoel Urbano, local que ficou conhecido como Dezesseis. Mesmo com opiniões contrárias à construção da sede e mudança dos servidores para a mesma, face às inúmeras dificuldades, dentre as quais o acesso precário, a falta de energia elétrica e de água potável, foi feita a licitação e construídos os prédios, a saber: sede da Executoria, do Grupamento Técnico, incluindo o Grupo de Identificação (GT-1) e de Demarcação (GT-2), Grupamento de Pessoal (GP) e Grupamento Administrtivo (GA), além de escola, posto de saúde, garagem e alojamento para os servidores. Marcada para setembro de 1982 a inauguração contou com a presença do Coordenador Regional, general Fernando Moreno Maia. A solenidade contaria ainda com a presença do Senador pelo Acre Jorge Kalume, então candidato a governador do Estado nas primeiras eleições diretas a serem realizadas no Brasil após anos. Tudo preparado, os convidados chegaram de avião monomotor a Sena Madureira no início da manhã da festa. Sabendo das chuvas que caem na região nessa época, o Executor do Projeto colocou três carros à disposição da comitiva após o Rio Caeté, já que sua ponte fica coberta logo após as primeiras chuvas, impossibilitando a passagem de veículos de um lado para outro do rio. O percurso até o Rio Caeté, de dez quilômetros aproximadamente, foi difícil, dadas as condições da BR. Chegando ao rio, a travessia foi feita em canoas, já que a ponte estava coberta. A partir daí, só vendo para acreditar! Foi chegar ao outro lado do Caeté que as comportas do céu foram abertas e despejaram um volume inimaginável de água, como há tempos não se via. Mesmo com jeep e pick-up, foi impossível fazer de carro o percurso dos seis quilômetros restantes até a sede a ser inaugurada. A cada cinqüenta metros o motorista e demais passageiros eram obrigados a descer e tirar com as mãos a lama que se acumulava em baixo dos veículos. Na região se diz que em estradas desse tipo não passa nem “jaboti acorrentado.” Até o general Moreno Maia entrou nessa rotina. Por fim, desistiram dos veículos e terminaram o restante da viagem a pé, descalços, que é a única maneira de se andar naquela lama. Memória Incra 35 anos Ao chegar ao projeto, após hora e meia de caminhada, sujos, exaustos e enlameados, os convidados foram se lavar e deram início à inauguração propriamente dita. Cantou-se o Hino Nacional, hastearam-se as bandeiras do Brasil, do Acre e de Sena Madureira, fizeram-se os discursos de praxe e confraternizaram com os parceleiros e seus familiares, que estavam aguardando os convivas, com um churrasco preparado por eles. Na ocasião, o general chamou o executor do Projeto e lhe disse: – Não se preocupe com o que aconteceu, pois isso é normal em função da estrada, principalmente quando chove assim. Foi bom que tivesse acontecido na presença do senador Jorge Kalume, pois como ele vai ser o próximo governador do Acre, ele certamente dará um jeito para asfaltar esse trecho da BR, já que viu pessoalmente como é difícil trafegar nessas condições. Passada a inauguração os convidados retornaram a Rio Branco (de avião) no dia seguinte. No outro dia, o Executor do Projeto foi chamado à sala de rádio do PAD Esperança e comunicado que estava exonerado de sua função. E a eleição para governador do Acre? O Senador Jorge Kalume foi derrotado pelo candidato do PMDB, Nabor Júnior. E a sede administrativa do Dezesseis? Funcionou por um pequeno período. Encontra-se em estado de abandono pela falta de condições de trabalho e de moradia, continua sem água potável, energia elétrica e sem condições de acesso permanente. O Projeto Fundiário Alto Purus O Projeto Fundiário Alto Purus, atualmente Unidade Avançada Alto Purus foi criado em setembro de 1975 e iniciou efetivamente seus trabalhos em março de 1976. Com área de jurisdição de aproximadamente 7.000.000,00 de hectares, abrangia os municípios de Sena Madureira, Manoel Urbano, Santa Rosa do Purus, Xapuri (parte) Assis Brasil e Feijó. Com sede administrativa e quadro próprio de servidores, que chegou a contar com 77 funcionários, entre artífices, agentes de portaria, assistentes de administração, motoristas, barqueiros, topógrafos, desenhistas, engenheiros agrônomos, agrimensores, advogados, dentre outros. Suas ações modificaram a realidade fundiária da região do Alto Purus, beneficiando inúmeras famílias 99 100 Nead Especial 2 de seringueiros, ribeirinhos, indígenas, bem como de seringalistas, fazendeiros, posseiros, arrendatários e meeiros. Com base na Lei no 6.383/76 e na Exposição de Motivos No77/78, o Incra promoveu ações discriminatórias em 16 glebas, com aproximadamente dois milhões e trezentos mil hectares, arrecadando e matriculando em nome da União Federal cerca de novecentos mil hectares. As glebas discriminadas levavam o nome dos seus principais seringais ou dos cursos d’água que possuíam, sendo pela ordem de discriminação as seguintes: Repouso, Forquilha, Livre-nos-Deus, Quatipuary, Barcelona, São Braz, Palmares, Mercês, Fronteira, Porongaba, Nova Olinda, Kaxinauá, Caeté, Feijó, Guanabara e Envira. A grande importância da atuação do PFAP na região do Purus está em ter conseguido evitar a concentração de grandes áreas em mãos de latifundiários, bem como ter reconhecido o direito à legitimação de posse e de regularização fundiária para centenas de famílias de agricultores, seringueiros e ribeirinhos. Sobre os seringueiros, é destaque o fato de que muitas famílias conseguiram, pela ação do Incra, sair da situação de quase escravidão em que viviam, sendo exploradas por seringalistas na compra da sua produção de borracha, por preços irrisórios, ou venda de gêneros de primeira necessidade a preços altíssimos. Antes da atuação do Incra, muitos seringueiros eram obrigados a vender a borracha e comprar o necessário somente no barracão do “dono” do seringal em que trabalhavam. Após a ação discriminatória, foram reconhecidos os domínios por ocupação, modalidade prevista no Rol das Hipóteses de Convalidação, anexo à citada EM 77/78. Ao longo de sua história, o PFAP expediu 925 Títulos Definitivos e promoveu a desapropriação por interesse social de 336.024 hectares. Atualmente estão sob jurisdição da UAAP os seguintes projetos de assentamento: PAR Mário Lobão, PA Favo de Mel, PC Boa Esperança, PA Joaquim de Matos, PAE Riozinho, PAF Providência Capital e PA Uirapuru, todos localizados em Sena Madureira, PA Nazaré e PA Liberdade, localizados no município de Manoel Urbano e PA Santa Rosa, localizado no município de Santa Rosa do Purus. Trabalhos do Incra: Sessão nostalgia, ou, você se lembra? Trabalhos digitados em computador de última geração? Nada disso. Trabalhos datilografados em máquinas de datilografia manual, Remington ou Olivetti com uso de papel carbono para cópia e uso de borracha ou Radex para correção de Memória Incra 35 anos letras erradas. As máquinas de datilografia elétricas não tinham ainda chegado em Sena no final dos anos 1970. Máquina de calcular Facit, manual, com alavanca do lado, que tínhamos de abaixar depois de cada operação desejada. Copiadoras e scaners de última geração? Ah! Ah! Ah! Usávamos mimeógrafos e estêncil a álcool para reproduzir documentos, que ficavam cheirando a cachaça. Imagens de satélite de alta resolução? Negativo. Quando muito, algumas fotografias aéreas, interpretadas com o uso de estereoscópio. Base de dados em meio digital? Negativo de novo. A base utilizada eram as Cartas do Projeto Radambrasil escala 1:100.000 e Cartas DSG, escala 1:250.000. Definição de coordenadas por meio de GPS? Tá brincando? Utilizavam-se os teodolitos Wild T1 e Wild T2, com as anotações em cadernetas de campo e os cálculos de área e perímetro sendo feitos no projeto, manualmente. As primeiras máquinas HP, a cartão, somente foram disponibilizadas para os técnicos do projeto em 1984. Plantas e memoriais descritivos em Plotter? Os desenhistas usavam pranchas, Régua T e normógrafo para confeccionar as plantas, feitas artesanalmente com tinta nanquim, em papel vegetal. Fotos digitais em máquinas de 5.5 megapixels? Quando muito, fotos tiradas em máquinas manuais, com filmes de celulóide, reveladas em Rio Branco, após semanas. Transmissão de dados, fotos e imagens via on line? Nem pensar! O que funcionava era o bom e velho malote do Incra, que chegava semanalmente aos projetos ou, quinzenalmente, em épocas de chuvas intensas, que interrompiam o tráfego na BR 364 e prejudicavam as viagens aéreas do Asa dura ou Cai-cai, como eram apelidados os aviões monomotores, que faziam a linha Sena/Rio Branco/Sena. Navegação pela Internet? As únicas navegações que fazíamos eram pelos rios Purus, Iaco, Caeté, Macauã e Igarapé Xiburema, em batelões do Incra, nas épocas de cheia e em canoas com motor de rabeta, apelidadas de “Desintera família” em época de seca dos rios. Trabalhos de campo eram perigosos e fascinantes ao mesmo tempo. Talvez até fascinantes pelo perigo que os envolvia. Para os serviços de medição e demarcação de áreas em seringais era montada uma verdadeira operação de guerra. Definida a área a ser trabalhada, escolhia-se a equipe, sempre coordenada pelo agrimensor ou topógrafo e composta por picadeiros, cozinheiros, barqueiros e demais ajudantes. 101 102 Nead Especial 2 Escolhida a equipe, fazia-se o “rancho,” adquirido no comércio da cidade, rateado por todos e composto obrigatoriamente por charque, feijão, óleo, sal, açúcar, café, além de querosene, fósforos, velas e remédios para primeiros socorros, como algodão, gaze, mercúrio cromo, esparadrapo e comprimidos para febre, gripe, diarréia, dores de cabeça e o “Específico Dr. Pessoa”, medicamento antiofídico de grande valia para a região. Sempre eram levadas também algumas garrafas da “mardita, ou seja, daquela que matou o guarda”, para aquecer os corpos cansados ao final do dia, após o banho nos igarapés. As viagens aos locais de medição e demarcação eram feitas em embarcações, até a sede do seringal a ser trabalhado. Dependendo do local escolhido, duravam de dois a cinco dias de subida de rio. A partir da sede do seringal, o percurso era feito a pé. Cada servidor levava a sua mochila, contendo os itens indispensáveis: muda de roupa com calça comprida, camisa de manga comprida, meião de futebol, cuecas, calções, cobertas, além de lanterna, pilhas, velas e fósforos, rede de dormir e mosquiteiro. A rotina desses servidores na floresta, apesar dos encantos desta, não era fácil. Primeiro, abrir as picadas no meio da mata, convivendo com todo tipo de inseto, ferradores ou não. Todos eles incomodavam de uma forma ou outra. Muitas vezes, as picadas eram abertas em vegetação de tabocal, densa e cheia de espinhos. Para atravessar tal vegetação, os servidores rastejavam, recebendo os espinhos nas roupas e no corpo, notadamente na cabeça e braços. Era de dar dó! Outra dificuldade diz respeito à presença de inúmeros cursos d’água a serem medidos e demarcados ou mesmo atravessados, cujo grau de dificuldade é marcante, tanto para o técnico que fazia as medições, quanto para os balizeiros, que não tinham posicionamento adequado para fixar as referidas balizas. Gastava-se um bocado de tempo para conclusão de tais medições. Difícil também era atravessar os igarapés com água na altura do peito, tendo que proteger os papéis e, principalmente os aparelhos de medição. Os varadouros de seringal e as estradas de seringa, em épocas de chuvas apresentam-se em estado lastimável de tráfego, face à lama podre que se forma em seu leito, em decorrência da decomposição de plantas, frutos e flores e de animais mortos. Entretanto, nada incomoda mais na floresta do que os insetos. De todo tipo, hematófagos ou não, desde piuns, muriçocas ou carapanãs, maruim, borrachudos, Memória Incra 35 anos mutucas, abelhas, marimbondos ou cabas, como são chamados naquela região, além das temíveis tocandiras ou tucandeiras (formigas de fogo), cujas ferroadas davam febres e dores terríveis. Andando ou parado, nenhum ser vivo de sangue quente fica impune a essas criaturas que, atraídas pelo suor e necessitando de sangue em alguns casos, em verdadeiras “esquadrilhas” de ataque, podem deixar o cidadão em puro estado de desespero. Há também os animais perigosos e/ou peçonhentos, desde as onças e queixadas, passando por aranhas, sem falar nas cobras e lagartos (sem trocadilho). Quem já trabalhou na floresta sabe do que estamos falando. Da mesma forma, os trabalhos de vistoria feitos pelos técnicos para ações de discriminatória, regularização fundiária, legitimação de posse, identificação de ocupantes etc também seguiam a mesma rotina acima, somente com a diferença que eram realizados quase sempre em duplas, com percursos entre as áreas a serem vistoriadas sendo feitos a pé, seguindo os varadouros de seringal ou as estradas de seringa. As distâncias não eram medidas em metros ou quilômetros e sim em minutos ou horas. Assim, quando perguntado ao seringueiro qual a distância até a colocação mais próxima, a resposta poderia ser: daqui a trinta minutos, uma hora, seis horas ou mesmo dez horas, que eram percorridas pelos técnicos com as mochilas penduradas às costas, sempre iniciando os trabalhos às 5h da manhã (no máximo) após o “quebra- jejum”, oferecidopelos seringueiros e ribeirinhos. Tal desjejum era constituído de farinha, ovos, carne de caça, quando tinha, feijão e arroz. Destaca-se que pelo menos que se saiba, nunca faltou pousada para técnicos do Incra, da Sucam, hoje Funasa, do IBDF e da Sudhevea, atualmente Ibama, nas casas dos seringueiros. Era chegar, se identificar e lá vinha o dono oferecer dormida, comida, prosa e informações necessárias, tanto para a vistoria quanto para orientações relativas ao seringal e seus ocupantes. Atávamos as redes na “paxiúba” e, no mais tardar às 6h da tarde, já caíamos no sono, exaustos pelo dia de caminhada e vistorias. “Causos,” curiosidades ou acredite se quiser Chico Mal-estar Chico era vigia noturno no PFAP. Gente boa, complementava o seu salário fornecendo marmitas e refeições em sua casa para servidores do Incra. Tinha porém uma particularidade: toda vez que alguém o cumprimentava, mesmo estando 103 104 Nead Especial 2 com boa saúde, respondia invariavelmente: rapaz, estou com um mal-estar! Era sempre a mesma coisa, quando perguntado: e aí Seu Chico, como vai? – Rapaz, estou com um mal-estar. Um dia, a turma resolveu conferir de perto se o mal-estar era verdadeiro ou falso. Esconderam-se atrás dos muros do projeto e ficaram aguardando Chico. Lá vinha ele, todo faceiro, alegre e satisfeito pela rua, assoviando e cantando. Quando passou pela turma, todos apareceram de uma vez e soltaram a pergunta infalível: – E aí seu Chico, como vai? Pilhado em sua alegria, ele não perdeu a pose e soltou essa: -Rapaz, eu até que tô bem, mas a mulher tá com um mal-estar! Não teve jeito! Daí para a frente ficou conhecido como Seu Chico Mal-estar. Outra do Chico Mal-estar: De outra feita ele foi reclamar com o executor do Projeto: Dr. Raimundo João, o Senhor precisa dar um jeito no GA (grupamento Administrativo). Eles precisam comprar Detefon e detefonar essa portaria, pois de noite os carapanãs não deixam a gente dormir!!! Sebastião Preto Sebastião Preto era um agricultor que teve suas terras desapropriadas para a criação do PAD Esperança. Nunca se conformou com isso e não somente não desocupou suas terras, como se recusou a receber indenização pelas mesmas, tendo ainda reservado para si e para os seus filhos oito lotes, ao longo do Km 38 da BR-364. Um dia, um engenheiro agrônomo e um técnico agrícola do PAD recém chegados em Sena Madureira foram fazer uma vistoria em sua parcela. Foram bem recebidos pelo Sebastião, que estava na tarefa de bater milho, em um jirau. Ao som das porretadas que dava para debulhar o milho, a conversa ia fluindo: – Então vocês são de Brasília é? E tome porrada no milho! Eu quero pegar algumas pessoas de Brasília, para aprenderem a não tomar as terras de um homem. E tome porrada no milho! Mas não precisam se preocupar não, que eu não quero nada com vocês, arraia miúda, doutorzinhos de merda. E tome mais porrada no milho! Eu quero pegar e dar umas pauladas iguais a essas (e tome porrada mais forte no milho) é aquele japonesinho Filho da p….e aquele tal de Figueiredo, para eles aprenderem a lidar com macho!!! E tome porrada! O agrônomo e o técnico agrícola nunca acharam tão bom não serem Paulo Yokota nem João Batista Figueiredo. Memória Incra 35 anos João Grande Em 1989 o Incra foi invadido por parceleiros que reivindicavam crédito, assistência técnica e outros benefícios. Invasão com depredação do patrimônio do Projeto e servidores feitos reféns. Chamada a desocupar o prédio, a Polícia Militar de Sena, inexperiente em tais tarefas foi incapaz de desalojar os invasores e libertar os reféns. Chamou-se então a Polícia Federal, que veio de Rio Branco para tomar as providências e cumprir a reintegração de posse decretada pela justiça. Os parceleiros, já alterados, gritavam: pode vir a “Fedorenta” (assim eles chamavam a Polícia Federal). Daqui nós não arredamos pé. Ao chegar a PF, com experiência em tais assuntos, invadiu o prédio, soltou os reféns e ordenou que todos os invasores ficassem deitados, sem se mover. Como alguns ainda relutassem, a PF disparou uma rajada de metralhadora para o alto, providência que surtiu efeito imediato, já que todos ficaram imóveis no chão. João Grande era um parceleiro que participou da invasão. Ao ver chegar a Fedorenta, correu e se escondeu no mato que havia perto do projeto. Ao escutar os tiros, saiu correndo e viu todos no chão, imóveis e em silêncio. Ao passar por uma pessoa ouviu a pergunta: o que houve? Olha rapaz, foi a resposta, acho que a “Fedorenta” matou todo mundo, só escapou eu! E continuou correndo até não agüentar mais… Serviço de recados prestado pela Rádio Difusora e pela Rádio Nacional da Amazônia João Ferreira, colocação Dois Irmãos, Seringal Bom Retiro, para José Ferreira, em Sena Madureira. “Aviso que Tião caiu da trepeça e quebrou a perna em dois lugares, mas tá tudo bem. Mande numerário” Severino do Ó, colocação Bom Jesus, Seringal Barcelona, para Maria do Ó, em Manoel Urbano: “Aviso que Candinho foi ofendido de Pico de Jaca e tá precisando seguir para hospital em Sena. Mande numerário! Altamirando Siqueira, da colocação Riozinho, Seringal São Pedro do Icó para João Brás, Colocação Espraiado, Seringal Boca do Macauã: Aviso que descerei o Iaco dia 30 de setembro para recebimento de conta junto ao compadre! Parceleiro chegando na sede do Boa Esperança Quero falar com a Dona MaIncra. (placa na entrada do Projeto: MA – Incra) 105 106 Nead Especial 2 Placa afixada na entrada de um ramal construído pelo Incra no PAD Esperança É proibido entrar neste ramal estando molhado Diálogo no avião Retornava de suas férias em Belo Horizonte para o Acre o saudoso advogado do PFAP Ildeu Mendes Maia. Ao seu lado sentou-se uma colega que, ao perceber que o avião enfrentava uma turbulência começou a passar mal, suando frio. Solícita, a aeromoça perguntou: A senhora está sentindo falta de ar? O Ildeu de imediato disparou: Não comissária, ela está sentindo é falta de terra mesmo!!! O Boca de Ferro A Rádio Difusora de Sena Madureira tinha um serviço de alto-falante, daqueles de ferro, que ficavam instalados em um poste na Praça 25 de Setembro, no centro da cidade. Servia para transmitir notícias, recados diversos, ofertar músicas, oferecer produtos para compra e venda, enfim, era “pau para toda obra”. O mais interessante nos serviços prestados era que, de segunda a sexta, invariavelmente as cinco da tarde, devido ao fuso horário, a terra tremia com os acordes da ópera O Guarani, de Carlos Gomes e o cidadão, querendo ou não querendo escutava em alto e bom som A voz do Brasil. Ficávamos tão acostumados que sábado e domingo sentíamos falta do Boca de Ferro berrando as notícias do governo e do Congresso Nacional. Aniversário do Incra O general Moreno Maia era um patriota. Pela sua formação militar e pelo seu caráter ele não abria mão de observar, respeitar e celebrar as datas cívicas, notadamente aquelas que diziam respeito ao Incra. Assim, não poderia deixar de comemorar o aniversário de nossa casa. Todo ano, durante o tempo em que esteve à frente da CR-14 ele convidava, conclamava ou mesmo convocava todos os servidores do Incra no Acre a participar das comemorações do aniversário da autarquia. Durante uma semana, as delegações dos projetos compareciam à sede da Coordenadoria e participavam ativamente da programação, que incluía apresentações de trabalhos executados pelos projetos, resultados obtidos, discussão das dificuldades encontradas e formas de superá-las, bem Memória Incra 35 anos como extensa programação cultural, artística e esportiva, além dos churrascos e das festas. Era uma confraternização só. Todos os projetos de colonização e fundiário, até aqueles sediados em Cruzeiro do Sul, que não possuíam acesso a Rio Branco via terrestre compareciam, em delegações vindas de avião. Gincanas culturais, torneios de vôlei, masculino e feminino, futebol de salão e soçaite, dominó, natação e atletismo faziam parte das competições esportivas, das quais a delegação de Sena sempre faturava pelo menos os títulos de futebol. De noite, o forró corria animado. Éramos uma só família! O Incra e a cidadania A presença do Incra em Sena Madureira e municípios vizinhos se fez sentir desde sua chegada àquela região, em meados dos anos 1970. Ações de cunho social voltadas à cidadania e desenvolvidas pelos servidores do Incra em parceria com instituições federais e do Estado do Acre foram marcantes, tais como as operações documento, mediante as quais dezenas de famílias obtiveram pela primeira vez documentos pessoais, como carteira de identidade, título de eleitor, certidão de nascimento e CPF. Assim, servidores do Incra percorriam os seringais, as estradas vicinais e ramais do projeto, munidos de formulários próprios para cada tipo de documento a ser obtido, fotografavam os beneficiários, recolhiam suas assinaturas e retornavam posteriormente com os documentos prontos. Saudação alusiva ao centenário de Sena Madureira, celebrado em 25/09/04, pintada nos muros da UAAP 107 108 Nead Especial 2 Da mesma forma, o Incra participou ativamente das campanhas de vacinação, cedendo servidores, viaturas, embarcações e instalações para a vacinação da população, tanto da cidade quanto das mais longínquas localidades. Muitos servidores complementam seu salário dando aulas para os ensinos médio e fundamental das escolas públicas de Sena Madureira. Assincra de Sena Madureira Seguindo os ideais de “mente sã em corpo são”, os servidores do Incra fundaram a Associação dos Servidores do Incra em Sena Madureira – AsssIncra, entidade voltada para atividades sociocultural e esportivas. Desde sua criação até os dias atuais a AssIncra/Sena participa ativamente da vida do município. Puxada pelas atividades esportivas, principalmente futebol, a associação sempre se destacou nos eventos do município e do Estado, tendo se sagrado pentacampeã de futebol de campo dos campeonatos disputados em Sena, na década de 1980. Com sede própria construída pelos servidores em regime de mutirão, primeiro, em forma de “Chapéu de Palha”, depois em alvenaria, a AssIncra promoveu bailes e festas inesquecíveis, tanto nas comemorações das datas cívicas, quanto nas vitórias alcançadas no futebol pelo seu magnífico escrete. Eram memoráveis as tardes de domingo quando havia partidas de futebol pelo campeonato de Sena. Os servidores do Incra, principalmente as mulheres, acompanhados de seus parentes e amigos faziam a festa na torcida organizada, incentivando o time sem parar, até a vitória final. Atletas como Louzada, Zequinha, Manoelzinho, Assis Lima, Plínio, Raimundo Vera, Dotô, Júlio Cezar, Côta, Edílson, PJ, dentre outros e, principalmente Jamil, elevaram o nome da AssIncra aos mais altos degraus da glória esportiva de Sena Madureira. Diversos romances tiveram seu início nas festas da AssIncra, embaladas pelo som do conjunto A chave do futuro – Os cinco valores da terra, liderados pelo servidor do PFAP e músico de sete instrumentos, Assis Dantas. Além dos esportes e das festas, a AssIncra também desenvolveu atividades de horta comunitária, com a produção de hortaliças sem agrotóxicos, para distribuição entre servidores, seus familiares e pessoas carentes da região. Memória Incra 35 anos Depoimentos sobre a ação da autarquia na região do Alto Purus Plínio Derze Craveiro, 53 anos, natural de Tarauacá/AC, assistente de Administração do Incra desde 1975 e atual Chefe da UAAP: “O Incra ajudou a alavancar o desenvolvimento da região, com a vinda de famílias de outros estados. O Incra é um dos órgãos que mais investe em infra-estrutura, principalmente em estradas e ramais.” Momento marcante: “Se não me falha a memória, quando cumprimos nossa meta, em 79/80, a comemoração, em frente ao projeto, com direito a queima de fogos.” Ena Maria Sá da Silva, 48 anos, casada com Louzada (motorista do Incra), natural de Sena Madureira/AC, no Incra desde 1976. “O Incra é importante, tanto na vida social da cidade, quanto para os parceleiros e a população de baixa renda. O Incra permite condições para as famílias se estruturarem. Dá a terra, crédito, infraestrutura, habitação, etc. Criou vários projetos na região, gerando empregos para a cidade”. Momento marcante: ter conhecido seu marido no Incra e formado sua família ao longo desses anos, vivendo felizes até hoje. Momento triste: invasão do prédio do Incra em 1989, com depredação das instalações. Sebastião Louzada da Silva, motorista do Incra, 52 anos, natural de Rio Branco/ AC, no Incra desde 1977, casado com Ena Maria. “O Incra contribuiu para a sociedade, a exemplo da “Operação Documento”, pela qual o parceleiro tinha acesso a todos os documentos possíveis, inclusive certidão de casamento, tudo sob a coordenação do General Moreno Maia”. Também propiciou melhores condições de vida para muitas famílias, parceleiros ou não. Grande poder de realização em obras de infra-estrutura, como estradas, escolas e postos de saúde, bem como ações de combate à malária e febre amarela”. Naquele tempo (fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980), o Incra dispunha de recursos e o servidor, apesar de não poder falar o que queria, era respeitado, tinha valor, era reconhecido. Hoje, apesar de poder falar o que quer, o servidor não tem mais direitos, não é mais respeitado. Nem na justiça se pode confiar, a exemplo dos planos Collor e Bresser”. Momento marcante: quando foi buscar de jeep a mulher de um parceleiro, que estava prestes a dar à luz. Foi na estrada para o Dezesseis e como não deu tempo de chegar ao hospital, eu e o marido tivemos que fazer o parto, dentro da viatura. Graças a Deus deu tudo certo e a criança sobreviveu. Ulisses D’Avila Modesto, Advogado, 56 anos, natural de Sena Madureira, duas vezes prefeito de Sena, duas vezes deputado estadual e secretário estadual de 109 110 Nead Especial 2 Apoio aos Municípios. “O Incra é importante para a região dada a necessidade da presença de uma instituição federal para atuar nas questões fundiárias. Houve um êxodo de pessoas para a região, atraídas por um novo Eldorado. Essas pessoas chegavam sem nenhuma estrutura. As condições eram totalmente diferentes entre as regiões de origem dos imigrantes (sulistas) e a região amazônica. O projeto dos militares para a região era baseado em promessas mirabolantes, a exemplo da Transamazônica. A maneira como foram assentadas as famílias apresentou deficiências estruturais e conjunturais, merecendo mudanças em sua metodologia. Mesmo com todos os investimentos feitos pelo Incra, não houve um impacto significativo na economia da região, com a chegada dos imigrantes. Aspecto positivo: cinqüenta por cento dos assentados permaneceram e produzem alimentos para o seu sustento. De negativo, os cinqüenta por cento que não permaneceram pelas razões acima. Não houve desenvolvimento na área rural. José Bezerra Marreiro (Dotô), 52 anos, motorista, no Incra desde 1978, natural de Sena Madureira, casado, três filhos e seis netos. “O Incra ajudou a fazer Sena Madureira. Para mim é tudo, é a minha família. Basta comparar Sena em 1978 e hoje, para se ver a diferença. Fato marcante: a ajuda de dois colegas do Incra, Antonio Carlos Cota e Luiz Barros nos estudos para o 2o Grau, principalmente em matemática. De negativo: a paralisação das atividades esportivas da AssIncra. Naquele tempo havia mais união entre os servidores.” José Maria Alves da Silva (Jota Alves), 38 anos, natural de Sena Madureira, jornalista e radialista em Sena, dois mandatos de vereador, incluindo a presidência da Câmara. “O Incra mudou o desenvolvimento da agricultura, incentivou o plantio de gêneros alimentícios, aumentou a produção agrícola, garantiu a permanência do produtor na região. Muitos parceleiros se transformaram em fazendeiros, a exemplo de Jair Alves, filho de Revenor, também parceleiro. O Incra precisa titular os parceleiros.” Edílson Vieira Diniz, 45 anos, natural de Sena, técnico agrícola, no Incra desde 1982. “O Incra através de suas atividades vem beneficiando famílias em vários aspectos, econômico, social, trazendo bem-estar para os assentados e suas famílias.” Momento marcante: sua transferência inesperada para a Unidade Fundiária de Feijó/AC, em janeiro de 1983, ficando dois anos e quatro meses, tendo sido ruim no início e mais proveitoso depois pelo lado profissional. Positivo: atualmente o Incra vem resgatando suas origens, principalmente a UAAP. Hoje o parceleiro tem o Incra novamente como sua casa. Memória Incra 35 anos Vicente Freire Neto, 59 anos, advogado e formado em comunicação social, natural de Aurora/CE, técnico em Comunicação Social do Incra, no qual está desde 1967 (Ibra). Trabalhou no PIC Alexandre Gusmão e participou da implantação da Coordenadoria Regional do Acre/Rondônia em 1975 sob a coordenação de Assis Canuto e Bernardes Martins Lindoso. “No início da década de setenta, foi criado um projeto fundiário para todo o Estado do Acre, o que foi um equívoco, já que era muita coisa para um só projeto. Posteriormente foram criados os três PF, a saber: Uaquiri, Alto Purus e Alto Juruá. O trabalho iniciado pelos três projetos não foi concluído em parte, no que concerne à dominialidade dos imóveis, a exemplo do Seringal Mercês, até hoje objeto de indefinição em seu domínio. As áreas indefinidas teriam que ter sido remetidas para a esfera judicial, o que não foi feito. Em relação ao PAD Boa Esperança, não se pode considerar um sucesso, por várias razões, dentre as quais destacam-se: área imprópria, sem acesso, não houve estudos de solo e viabilidade técnica para os assentamentos, não se buscou sustentabilidade. Outros assentamentos também foram implantados longe das rodovias. Não há uma política agrícola e de qualificação, o que possibilita a “pecuarização” das áreas e reconcentração fundiária”. Um momento marcante desses anos de Incra foi quando era chefe de pessoal e foi escalado pelo General para organizar um desfile de parceleiros do Boa Esperança no dia 7 de setembro de 1979 ou 1980. “Eu e o executor do Projeto saímos ao longo da BR-364 recolhendo alimentos (feijão, arroz, milho e macacheira), além de galinhas, patos e porcos para o almoço dos desfilantes e seus familiares, após o desfile, que aconteceu na avenida Avelino Chaves, via principal de Sena Madureira. O desfile foi um sucesso, assim como minha emoção, pois até hoje não esqueci aquela manhã.” Siglas Ceao – Coordenadoria Especial da Amazônia Ocidental CR –Coordenadoria Regional IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal IC –Identificação e Classificação de Candidato a Parceleiro MA – Ministério da Agricultura PA – Projeto de Assentamento Sudhevea – Superintendência de Desenvolvimento da Borracha PAD – Projeto de Assentamento Dirigido 111 112 Nead Especial 2 PAE – Projeto Agroextrativista PAF – Projeto de Assentamento Florestal PAR – Projeto de Assentamento Rápido PC – Projeto de Colonização PFAP – Projeto Fundiário Alto Purus Glossário Colocação: Casa, geralmente sobre palafitas, do seringueiro amazônico. Estereoscópio: Instrumento binocular, com aumento não muito grande e profundidade de foco relativamente elevada, e que permite observações microscópicas de objetos em relevo. Igarapé: Rio pequeno que tem as mesmas características dos grandes e que é geralmente navegável; os maiores denominam-se igarapés-açus e os menores, igarapés-mirins. Mimeógrafo: Aparelho para tirar cópias de páginas escritas sobre papel especial, o estêncil. Normógrafo: Aparelho de desenho, que consta de lâminas de celulóide com alfabetos vazados ou recortados e que servem de moldes para a elaboração (por meio de penas especiais) de legendas e letreiros Numerário: Respeitante a dinheiro, moeda; dinheiro efetivo Parceleiro: Beneficiário de uma parcela de terra. Paxiúba: Do tupi.Palmeira (Iriartea exorriza) habitante dos igapós, e que mede entre 10 e 15 metros de altura. O estipe é sustentado por um pedestal de raízes aéreas tão ásperas e duras que servem de ralo, e a madeira é escura e fibrosa. Seringal: Quantidade mais ou menos considerável de seringueiras dispostas proximamente entre si. Seringalista: Dono de seringal. Seringueira: Árvore da família das euforbiáceas (Hevea brasiliensis), de folhas compostas, flores pequeninas, reunidas em amplas panículas, fruto que é uma grande cápsula com sementes ricas em óleo, e madeira branca e leve, de cujo látex se fabrica a borracha; árvore-da-borracha. Seringueiro: Indivíduo que se dedica à extração do látex da seringueira e com ele prepara a borracha Memória Incra 35 anos Varadouro: Canal aberto com rapidez, e que permite a passagem de um rio para outro em curtíssimo tempo, a fim de se evitarem os acidentes do curso; varação. Caminho aberto na mata e que vai ter ao centro, ou vice-versa. Referências C a l i x to , Valdir de Oliveira. Plácido de Castro e a construção da ordem no Aquiri: contribuição à história das idéias políticas. Rio Branco: FEM, 2003. 260p. Coletânea: legislação reforma, legislação de registros públicos, jurisprudência. Elaboração de Maria Jovita Wolney Valente, 1983. 784 p 113 9 O projeto Zé Juquira e o Incra Ca r lo s A l b e r to S c h wa r z Apresentação Os relatos que farei nesta documentação, referem-se a experiências, fatos e acontecimentos ocorridos durante os trabalhos que realizo no Incra, que considero importantes e podem contribuir para enriquecer a documentação histórica da instituição. Os fatos aqui relatados -eu estava presente – muitos dos quais guardo bem vivos na minha memória me fizeram ter outra postura como servidor e como ser humano. Posso afirmar que aprendi muito no campo, especialmente sobre a fé e a esperança dos agricultores. Projeto Zé Juquira Relatar sobre o Projeto Zé Juquira é como contar a história de um filho. Tudo foi ocorrendo naturalmente, do nascimento até os dias de hoje, cuja finalidade principal é levar informações aos agricultores sobre a reforma agrária, meio ambiente, previdência social, Imposto Territorial Rural (ITR), associativismo, escola e saúde. As palestras que somam hoje mais de trezentas, realizadas no campo, nas escolas, universidades e até no Exército, demonstram acima de tudo a dedicação e o compromisso de um servidor em acreditar que podemos tornar este país mais justo. Atualmente em Manaus estou empenhado na alternativa de plantio das espécies frutíferas da Amazônia com a distribuição das sementes como o biriba, camu-camu, araçá-boi e outras; no kit captação de água das chuvas que são em abundância; no puxador de água e também no buraco da produção. Memória Incra 35 anos Nascimento do Projeto Zé Juquira Em 1995, um ano após ter ingressado no Incra, assumi a responsabilidade técnica pelo Projeto de Assentamento (PA) Tepequem. Quando cheguei ao projeto, na boca da noite fui motivo de curiosidade por parte dos agricultores que queriam saber quem eram os visitantes. Apresentei-me como técnico do Incra, responsável pelo projeto e logo marquei uma reunião para o outro dia. A reunião foi realizada na casa de João e a maioria da comunidade estava presente. A finalidade da viagem era tomar conhecimento do projeto e levantamento dos assentados em cada parcela. Não havia estradas era só na picada e eu tinha pouca experiência em andar na mata, mas logo Antão dos Santos, se prontificou a me acompanhar nos trabalhos, informando que era necessário cinco dias em um barco a remo para percorrer o rio Trairão. Um rancho reforçado o qual iria carregar nas costas, enquanto eu levava uma pasta de documentos e uma sacola com roupas e rede. No primeiro dia fomos à casa de Antão e enquanto eu descansava na rede ele fazia a janta ouvindo um velho rádio no horário da Voz do Brasil, quando me formula uma pergunta: – O que é essa tal de reforma agrária, que o rádio tanto fala seu doutor? Pensei um pouco e respondi, que é isso que estou fazendo, distribuição da terra, crédito, titulação, é tudo sobre a terra. -Mas eu tenho direito a tudo isso, não fui informado? O que é esse crédito,vou receber e o título tenho direito? Tentei responder a todas as perguntas, mas percebi que eu sabia muito pouco para estar no campo, que era mais um “despachante da reforma agrária”, do que um orientador de projeto. Precisava me preparar urgentemente para esclarecer todas as dúvidas dos agricultores, pois este era o meu trabalho principal no Incra. Confesso que foi uma noite triste para mim e Antão não tinha ficado satisfeito com as minhas respostas, mas lhe informei que terminado o trabalho que estava realizando, iria para Boa Vista e na minha volta iria dar uma palestra para todos os agricultores do projeto informando sobre os direitos e deveres dos assentados. Na mesma noite peguei o formulário de seleção para projetos de assentamento e iniciei a entrevista com Antão e quando lhe perguntei se tinha apelido me disse que era mais conhecido por Zé, e lhe perguntei se podia chamá-lo de Zé Juquira, ele respondeu que sim. – Parece um nome forte! Assim nasceu o Projeto Zé Juquira. 115 116 Nead Especial 2 A primeira palestra do Projeto Zé Juquira Ao voltar para Boa Vista sabia que tinha uma missão difícil, que era resumir todas as informações para repassar aos agricultores, pois havia marcado uma palestra na minha volta, logo pensei como organizar uma palestra com tantas informações. Para não me perder resolvi distribuir os assuntos em cartolinas com letras grandes e em forma de versos e desenhos ilustrativos. Não foi nada fácil definir a reforma agrária, mas fui encontrar no Estatuto da Terra a definição, normas de assentamento, seleção de trabalhadores rurais, créditos, direito ao lote, emissão de título, cláusulas resolutivas, abandono das parcelas rurais, registro em cartório e pagamento das prestações do título da terra. Assim estava definida a primeira palestra realizada no Trairão, com um almoço com muita macaxeira, farinha e galinha caipira. A palestra durou o dia todo devido ao grande interesse da comunidade Enquanto Zé Juquira com o seu velho chapéu de palha e um vasto bigode estendia as cartolinas, Marioca preparava o almoço. Assim foi dado o início das palestras e onde que fosse levava as faixas e organizava mais uma palestra, principalmente à noite à luz de lamparina. Peça teatral: A história de Zé Juquira Contar como tudo aconteceu, até hoje ainda me causa emoção, mais ainda devido ao carinho com que era tratado. Nas noites sobrava tempo e sempre um grupo de agricultores vinha à sede do Incra como que esperando por algo novo, até que numa dessas noites, lancei a idéia de montar uma peça teatral com os atores da comunidade, cujo objetivo principal era mostrar o que faziam e o que era preciso mudar e de que forma fazer essa mudança. Não seriam muitos atores, no máximo cinco e era para ser apresentada na festa de final de ano no Trairão na sede do município do Amajari. Logo se apresentaram o Zé Juquira como organizador da associação e seu primeiro presidente, Marioca sua mulher e fundadora do clube de mães, Chico motosserra como a pessoa que cortava toda a madeira necessária para as obras do projeto e até mesmo para fora, Tio João Bodó o pescador da vila, (quem precisasse de um peixinho era só ir à casa dele), Antonio caçador, que boa parte do tempo dedicava-se à caça e não costumava perder viagem. Memória Incra 35 anos A transformação seria grande. Primeiro era necessário fundar e fazer funcionar a associação e o clube de mães, após era necessário capacitar os associados com cursos pelo Sebrae e o Senar e por último a implantação dos projetos, o açude para João, o viveiro de mudas para o Chico motosserra e a granja para o Antonio caçador. Treinamos muito e foi apresentada diversas vezes na região, e posteriormente foi adaptada para Escola Móvel de Educação Ambiental com artistas contratados. A grande lição que Paulo Freire ensinou e que aprendi no Trairão com os agricultores Na Vila do Trairão, observei que era difícil encontrar alguma fruta e Roraima como é sabido é a terra da manga e lá quase não tinha. Comentei com alguns agricultores que estava disposto a pegar um caminhão e ir a Boa Vista, encher de manga de várias espécies e trazer para plantar a semente. Conseguimos um velho caminhão da Secretaria de Agricultura e não foi difícil encher de manga sem pagar nada e levamos para o Trairão. Foi a farra da manga e acredito que hoje as mangueiras já estão dando frutas. Organizamos uma reunião e eu sugeri a implantação de uma horta comunitária para fornecer verdura para a merenda escolar e o excedente servir para os agricultores e a instalação de um viveiro para a produção de mudas de várias espécies frutíferas e florestais para os participantes do projeto utilizar e vender. Logo apareceram 22 candidatos e o trabalho era realizado aos sábados e domingos. Durante a semana só um agricultor tomava conta. O velho maranhense Vila, muito mais garimpeiro do que agricultor, foi logo dizendo, “isso não me serve, maranhense que se preza come arroz com carne e farinha” e logo saiu da reunião. A maioria dos assentados do projeto era maranhense e alguns caboclos da região Não levei a sério a atitude do Vila e continuei com o meu projeto e iniciamos a obra. Consegui a tela, carrinhos, pás, enxada, pregos, mangueira e regadores. Nas duas primeiras semanas foi tudo bem, mas nas seguintes observei que estava havendo baixas e a turma era menor. Chegou num ponto em que eram oito agricultores. Resolvi fazer uma reunião para estudar o que estava ocorrendo, foi quando o Goianinho falou: – Doutor nós não queremos isso, estamos aqui para lhe agradar e fazer o seu projeto para não ficar chateado. 117 118 Nead Especial 2 Logo entendi que ninguém havia pedido o tal projeto e me lembrei de Paulo Freire, do extensionista que lança as suas idéias para dentro da comunidade, sem antes ouvir com cautela o que querem. Previdência social para a área rural Este assunto foi a minha marca como servidor público em Roraima. Fiquei conhecido como Zé Juquira da Previdência Social, tal foi o trabalho e a dedicação que dispensei que ainda hoje correm as lágrimas dos meus olhos quando me lembro. Na Vila do Trairão em 1996, havia um agricultor aposentado cujo nome era Chico Preto. Gostava de ir conversar com ele nos finais de tarde na barranca do rio Trairão, tomava a sua cachaça, dava umas baforadas num palheiro e às vezes lhe ajudava com fumo e desafiando a malária lançava a linha no rio para pescar, sempre com o seu rádio ligado. Devido a grande amizade que fizemos, ele me contava muitas histórias de sua vida, e disse-me que sua renda vinha de sua aposentadoria e da ajuda dos filhos. Logo me despertou curiosidade já que havia outros com idade avançada, mas não eram aposentados, à medida que perguntava se eram aposentados recebia como resposta uma queixa. Resolvi tomar conhecimento como funcionava esse benefício. Ao retornar a Boa Vista fui ao prédio da Previdência Social e recebi vários folhetos que informavam os benefícios para o trabalhador e trabalhadora rural e que eram vários os benefícios e não um só como pensava. Passei dias lendo e relendo aqueles documentos e procurava tirar as dúvidas pelo telefone de informações da Previdência. Assim comecei a entender todos os benefícios, a aposentadoria por tempo de serviço e por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte, auxílio-maternidade e outros e logo concluí que teria muito trabalho pela frente. Agora minha palestra ganhava mais uma cartolina da Previdência Social e tinha consciência de que quando se fala em dinheiro o interesse redobra. Era necessário explicar para o trabalhador para depois não ser chamado de mentiroso. Voltei ao Trairão e novamente uma grande palestra, com almoço e baile à noite, um dia especial. Expliquei que não representava a Previdência, mas como orientador de projeto tinha o dever de informar e orientar o agricultor e cada benefício tinha documentação específica, portanto para não perder a viagem era necessário preparar a documentação. Memória Incra 35 anos Lembro que o auxílio-maternidade foi o primeiro recebido pela agricultora na quantia de quatro salários mínimos. Havia uma grande novidade já que a mulher trabalhadora rural tinha os mesmos direitos do que o homem, havia uma problemática grande: a documentação do beneficiário e a comprovação do tempo de serviço na agricultura. A maioria dos trabalhadores da área rural,no máximo, tinha conhecimento da aposentadoria rural e com as palestras logo a notícia correu e eu me vi pequeno para atender a todos. Percebi que era necessário fazer um padrão da documentação necessária para cada benefício, e resolvemos conjuntamente o Incra com o sindicato, as associações de trabalhadores rurais, procuradoria da república a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a própria Previdência, para reunir no auditório do Incra e definir a documentação necessária para cada benefício. Isso facilitou em muito aos trabalhadores. Entendi que para uma melhor divulgação dos benefícios, além de orientar as associações era necessário divulgar por meio do rádio e assim cheguei à rádio Roraima no horário do informativo rural. Foi tão grande a procura que a Previdência me chamou para saber se era candidato a posto eletivo, e que estava usando a Previdência para conseguir votos da área rural, respondi que não, apenas estava exercendo o meu dever como orientador de projeto e cidadão. Com o passar do tempo a Previdência me chamou par acompanhar o serviço ambulante Prevmóvel em várias localidades do Estado, já que tinha conhecimento sobre o assunto. A questão ambiental nos projetos de assentamento Após levar para os agricultores as informações sobre os princípios da reforma agrária e também sobre a previdência social, iniciei o trabalho de conscientização sobre a problemática nos assentamento especialmente sobre as licenças de desmatamento, os aceiros e também a questão da caça e pesca na área rural. Quando aconteceu o grande incêndio em Roraima de 1998, eu já vinha falando sobre a necessidade de um cuidado especial para com a natureza, a formalização de um calendário de derrubadas e queimadas no Estado, com isso era mais fácil para acompanhar e controlar por parte do Ibama e o Dema. Agora com as faixas em tecido para durar mais, era explicado que o agricultor deve ter os cuidados quanto às derrubadas, preservando as margens dos igarapés, encosta dos morros, derrubar somente o que irá necessitar para plantar, assim como preparar os aceiros para evitar os incêndios. 119 120 Nead Especial 2 Diante os trabalhos desenvolvidos quanto à preservação, a World Wildlife Fund (WWF) convidou-me para participar de uma apresentação em Manaus e após a mesma fui contemplado com a participação no seu livro, sobre o Projeto Zé Juquira. Rádio Roraima – Programa Roraima rural Certa ocasião estando no projeto Tepequem, era comum as pessoas se reunir à noite para conversar e ouvir o rádio já que não havia televisão. Após a Voz do Brasil, tinha o programa rural, cujo objetivo era divulgar as informações para a área rural. Observei que pouco era falado sobre a Previdência Social assim como reforma agrária e meio ambiente. Quando retornei a Boa Vista fui à rádio e pedi para participar do programa; o pedido foi aceito e durante os trinta minutos conversamos sobre os temas estabelecidos. Os telefonemas foram tantos que logo fui convidado para retornar e assim diversas vezes retornei, inclusive fazendo o programa algumas vezes só. Dia da cidadania no Incra em Boa Vista Talvez minha maior virtude seja sonhar com os olhos abertos e os pés no chão. Senti que era necessário fazer uma reunião com as lideranças rurais especialmente presidentes das associações dos projetos e o Incra, Ibama, Previdência Social, OAB, Receita Federal e o Dema de Roraima, tendo por finalidade esclarecer aos trabalhadores a responsabilidade de cada instituição com a área rural. Cada instituição tinha 45 minutos para explanação e 30 minutos para debate, com exceção para a previdência que foi dado uma hora para explanação e uma para os debates, devido ao grande interesse. Se o presente concurso é para aproveitar as boas idéias julgo que essa deveria ser aproveitada e ser criado o Dia da Cidadania nas superintendências do Incra como forma de divulgar para a área rural, informações importantes para os trabalhadores. Campanha da declaração do ITR O ITR é um documento importante para a área rural. Qualquer benefício rural era solicitado o ITR anualmente declarado, mas muitos não sabiam e outros não Memória Incra 35 anos tinham como ir à capital para se regularizar. Baseado nisso juntamente com a Receita Federal, Incra, Federação da Agricultura, Sebrae e Secretaria de Agricultura, programamos no para setembro de 1999, percorrer todos os municípios de Roraima durante um mês para a declaração do ITR. Vale ressaltar que as áreas rurais com menos de 100 hectares não pagam o imposto, desde que realizem a declaração até o final de setembro, senão tem multa de R$ 50,00 ao ano. Com o avanço da tecnologia, hoje o ITR é declarado diretamente via internet. Calendário da reforma agrária Outro sonho que julgo da maior importância, reunir todas estas informações de forma simplificada em um calendário grande e bonito, para ficar exposto na parede onde o agricultor possa ver todos os dias e se lembrar dos princípios da reforma agrária, benefícios da previdência social para a área rural e a questão ambiental inclusive com poesia e também uma bela paisagem. Por não ter encontrado nenhuma instituição disposta a confeccionar o calendário inclusive o Incra, que em várias ocasiões solicitei, em 1997 mandei imprimir mil unidades, só que bem menor. Mesmo assim foi uma forma que encontrei para levar as informações até a área rural. Hoje, novamente sugiro ao Incra a confecção dos referidos calendários, pois é uma forma barata e eficaz de levar conhecimentos aos trabalhadores. Ainda guardo o calendário de 1997. Escola Móvel de Educação Ambiental e Cidadania Em 1998 uma seleção de projetos para a área rural, com ênfase para a questão ambiental, os recursos viriam de organismos internacionais através do PGAI e com a coordenação do Dema de Roraima. Apresentei o projeto Escola Móvel de Educação Ambiental e Cidadania- Projeto Zé Juquira, composto por educadores ambientais e sociais que realizavam as palestras participativas, tentando resolver as questões da localidade, sejam da saúde, educação, meio ambiente, a peça A história do Zé Juquira, adaptada à problemática da região, onde a comunidade tentava apresentar soluções. As crianças participavam de pequenos concursos, teatro, poesias ou qualquer atividade de interesse da comunidade e os prêmios eram livros, bicicletas e rádios. 121 122 Nead Especial 2 O projeto Zé Juquira foi o único aprovado e posto em funcionamento. Tinha duas viaturas, uma para transporte exclusivo do pessoal do teatro que era o grande acontecimento, composto por cinco artistas da Escola Técnica de Roraima, Zé Juquira, sua mulher Marioca, Chico motosserra, Antonio caçador, João Bodó e o compadre Manoel. O objetivo do teatro era apresentar alternativa de renda para os agricultores, assim como Antonio caçador que vivia da caça, a associação iria conseguir um financiamento para ele parar de caçar e criar frangos. João Bodó iria participar de um curso de piscicultura e após a implantação de um projeto de criação de peixes com financiamento do Pronaf-A, Chico motosserra não mais iria viver de derrubar as árvores, mas sim a implantação de um viveiro comunitário de várias espécies florestais e frutíferas, que lhe daria uma boa renda mensal. Distribuição de sementes das espécies da Amazônia para assentados: Projeto Aposentadoria Verde Com minha transferência para o Amazonas, e a dificuldade em continuar os trabalhos que vinha desenvolvendo em Roraima, observei uma grande quantidade de espécies frutíferas, mas que boa parte dos agricultores não tinham, por falta de sementes e incentivo Resolvi procurar o Inpa, o Idam e a Embrapa na tentativa de conseguir as sementes nativas da Amazônia e as instruções necessárias para os agricultores plantar. O Inpa, logo me deu sementes de araçá-boi, camu-camu, biriba, andiroba, cubiu, o Idam liberou sementes de couve, alface, maxixe, melancia, abóbora, coentro e cebolinha e a Embrapa forneceu sementes de jenipapo, biriba, e outras espécies. Comprei saquinhos de plástico e distribuí para diversos agricultores e sempre tinha sementes para distribuir. Hoje sou mais conhecido como o Zé das sementes. O projeto Aposentadoria Verde tem tudo a ver, pois se planta hoje para colher após vários anos, dependendo de cada espécie, é necessário plantar para um dia colher e não podemos esquecer que a velhice vai chegar e poderemos no máximo colher o que foi plantado. Projeto Kit captação de água da chuva e puxador de água Dois itens merecem ser relatados, pois na Amazônia com a abundância de água, o trabalhador rural ainda sofre sem ter água em sua casa .Muitos tomam banho nos Memória Incra 35 anos igarapés longe da casa e carregam água em baldes até a casa. Analisando o fato de que chove quase todos os dias, fiz um pequeno projeto de captação de água da chuva, o qual consiste em calha na casa, uma caixa de água elevada de mil litros e distribuição para a cozinha, banheiro e área externa. Esse sistema evita em parte a malária, já que não irá mais no final de tarde ao igarapé, menor desgaste físico tanto para o agricultor e a agricultora que terão água na torneira quase que todo o ano. O mais importante é o baixo custo – em torno de R$ 350,00- além de procurarmos uma forma de financiar o sistema. Quanto ao puxador de água funciona com um reservatório elevado e resistente para suportar pressão, quando cheio, ao abrir o registro à medida que sai numa ponta, puxa na outra que esta no igarapé. Kit para captação de água da chuva Objetivo Captar água da chuva visando a sua utilização nas atividades domésticas e na agricultura. Benefícios redução de doenças (malárias, cólera, verminoses), redução do esforço físico, melhoria da higiene pessoa. Público-alvo Comunidades rurais e urbanas. Investimento O Kit de captação de água de chuva é composto por um sistema de calha, reservatório, suporte e tubulação para distribuição. Cobertura Reservatório 1.000 litros Calha para captação Chuveiro Suporte para o reservatório Água na pia Água no vaso Tabela de investimentos (valores em R$, aproximados) Continuação Quant. 02 01 01 01 01 01 01 01 Calhas fortlit 3m x 170mm Cabeceira direita 170mm Cabeceira esquerda 170mm Emenda fortlit 170mm Bocal fortlit 170mm x 199mm Red. excêntrica fortlit 100mm x 50mm Tubo solo fortlit 50mm Adaptador c/ flange fortlit 50mm R$ unit. 35,90 4,50 4,50 8,50 15,50 3,00 6,00 13,50 Subtotal 77,80 4,50 4,50 8,50 15,50 3,00 6,00 13,50 01 01 03 01 06 03 02 04 Adaptador c/ flange fortlit 25mm Caixa d’água fortlev polietilieno 1000 l Tubo soldável fortlit 25mm x 6mm Acoplamento fortlit 100mm Joelhos soldáveis 25mm Torneiras here 100mm x 25mm Tubo cola fortlit 17g Tê soldável fortlit 25mm 5,50 210,00 9,00 3,00 0,30 1,50 1,00 0,50 Total 5,50 210,00 27,00 3,00 1,80 4,50 2,00 2,00 R$ 389,00 123 124 Nead Especial 2 Buraco da produção – compostagem Consiste em produzir uma pequena quantidade de alimentos para o sustento da família, em um círculo de três metros de diâmetro com uma profundidade de meio metro, onde é colocada terra preta, madeira, material orgânico em decomposição e é feita a compostagem. Não são utilizados produtos químicos nesse sistema, mas deve-se ter cuidado com a formiga e o pulgão. O agricultor pode produzir abóbora, maxixe, quiabo, coentro, alface, entre outros. A fé que vem do campo Nos dias atuais, em que o mundo se comunica via internet, a globalização sucumbe países e transforma o homem em objeto de lucro relevando a um segundo plano o respeito à vida, é necessário uma reflexão mais profunda da missão que nos foi dada para cumprir neste mundo, em um pequeno tempo que aqui passamos. Nas andanças que faço entre o campo e a cidade na qualidade de orientador de projetos de assentamento do Incra observo a diferença de princípios e de atitudes entre as duas formas de vida. Deixo claro que as opiniões relatadas são pessoais, acumuladas durante anos e que após avaliar os fatos, julguei importante relatar para que cada um que ler este artigo, possa tirar as suas próprias conclusões, longe de julgar a alguém, mas relatar as experiências que passei no interior. Em certa ocasião trabalhando no projeto de assentamento Tepequém, no Estado de Roraima, fiz uma visita técnica a uma família de trabalhadores e observando o pouco que produzia, perguntei ao tio João, que assim carinhosamente chamava, como conseguia sobreviver com a sua família, já que tinha muitos filhos e todos pequenos. Ele me levou no seu modesto quarto, e mostrou a bíblia e disse: — Daqui vem toda minha força doutor. E devolvendo a pergunta para mim, com o seu olhar sério e a face marcada pelos anos e pelo duro trabalho no campo: – E o senhor doutor, como consegue sobreviver? Orou hoje ao Senhor, agradeceu pela sua saúde, pelos filhos, conversou com Deus, pediu proteção? A cada pergunta a resposta era sempre a mesma, não! Para dar o último golpe, o humilde camponês me adverte: Memória Incra 35 anos — Doutor, pelo que vejo a principal lição da vida o senhor não aprendeu, aliás, essa lição a faculdade ou universidade não ensina para os seus alunos, mas é bom aprender logo enquanto é tempo e aqui no campo pode ser o local para aprender, um pouco dos ensinamentos do Senhor. E convidou-me para participar do culto. Fui embora, mas passei o resto do dia pensando seriamente. Bem sei que a escola nos ensina a conquistar o saber para obter os recursos materiais, que tanto valor damos, longe de preparar o homem para chegar mais próximo da vida espiritual. Saber o limite entre o material e o espiritual é fator importante na nossa vida. Preparamo-nos durante anos para passar no vestibular para o curso superior, mas pouco nos dedicamos para o vestibular espiritual. Não sabemos o dia do exame final, mas é bom começarmos a fazer o preparatório, o Mestre nos deixou muitos ensinamentos. Para mim a questão principal é, que cada um deve perguntar para si mesmo, de onde viemos, para onde vamos e o que estamos fazendo com a nossa própria vida. Esperar para quando chegar a velhice, na aposentadoria, já que muitos afirmam que orar é coisa para velhos, pode ser um erro grave, já que não sabemos a data do exame final. Sinto a presença de Deus mais freqüentemente no interior do que nas cidades, parece que gosta mais do interior, não tenho certeza, mas é lá que mais Ele é invocado e lembrado. Assim, também somos nós, gostamos de estar onde somos bem tratados. Acredito mesmo que a sua volta que estamos esperando, Ele vai preferir viver no campo, pois lá estão as pessoas mais simples de poucos recursos materiais e saber acadêmico, mas com muita fé e esperança nos corações. A vida nos centros urbanos nos engessou a padrões e costumes elaborados pelo homem moderno, através da televisão, jornal, o shopping, cotação das ações e muito pior, usando a sua própria mensagem para usufruir recursos e poder em benefícios próprios, do que realmente evangelizar as pessoas. Basta que nós reflitamos a respeito do casamento e do batismo; o primeiro parece-me quase que extinto, pois na atualidade as pessoas preferem apenas se juntar, o que é mais fácil para separar depois. O homem e a mulher moderna tendem a viver separados, já que não sabem mais dividir o amor e muito menos os recursos financeiros; quanto ao batismo, pouco praticado nos dias atuais, os jovens que vão à igreja, na maioria dos casos, vão porque são obrigados pelos pais que ainda insistem na formação não só escolar, mas para a formação do caráter e 125 126 Nead Especial 2 conduta. Parece-me que ser calouro numa faculdade é mais importante que iniciar no caminho de Deus. As lições do campo foram muitas e fui aprendendo. Em 1998 respondia pelo projeto de assentamento Equador, na divisa entre os Estados de Roraima e o Amazonas. O engenheiro do Incra e responsável pelas vistorias, nos acompanhava na oportunidade, quando encontramos o agricultor Jeová. Logo paramos o carro e eu que o conhecia, cumprimentei-o e ele disse: — Chefe, o senhor sabe o que me aconteceu? Olhei nos seus olhos e observei que estavam molhados. — Eu vendi o meu lote! O doutor logo retrucou: — Não pode! É contra as normas do Incra. Agora vai ficar sem terra. Eu senti um nó na garganta mas continuei calado, Jeová explica: — Senhores, a minha esposa estava para morrer e tinha que levar para se tratar em Manaus, não tendo recurso, o que me resta era vender o lote e assim o fiz por R$500,00. Ficou hospitalizada durante um mês. Consegui salvar minha esposa, e quem de vocês ao ver a companheira enferma não vende o que tem para salva-la? Doutor o senhor ia pensar duas vezes? Eu sabia que seria condenado, conheço o chefe, mas não tive outra saída orei ao senhor que me orientou, venda o lote, faça o tratamento de sua esposa e eu mostrarei uma terra melhor para você trabalhar, tenha fé e esperança. Ao ver minha tristeza pela venda da terra, Jeová afirma: — Não fique triste, a lei de Deus é muito diferente da lei dos homens. Eu sei que você não entende, peguei uma área de mata na fundiária, fora do projeto. Logo o doutor afirma: — Mas não irá receber o título nunca, meu amigo. E ele: — Para que serve o título doutor? O Pai celeste criou tudo isso, como a mata, os rios e a terra, os pássaros e os animais, sou um dos seus filhos e herdeiro, vocês são todos invasores, já que se dizem os donos do que não produziram ou criaram, os seus títulos para mim são falsos e não carregam Deus no coração, vou trabalhar com as minhas forças como sempre o fiz desde menino, trocando umas diárias e fazendo roçado. Diante a explicação, nos calamos e fomos embora. Durante uns quinze minutos o único barulho que ouvimos era o do carro, até que eu interrogo o doutor: Memória Incra 35 anos — Pelo que entendi, o Jeová realmente conversou com o Criador e dono de tudo isso e nós que pensávamos que o dono era o Incra e nós os representantes. Parece-me que necessitamos urgentemente rever conceitos, já que a lei dos homens muitas vezes não comunga com os princípios da vontade de Deus. Essa foi mais uma lição que nos dá o agricultor, pois não criamos nada e que no fundo estamos apenas distribuindo a riqueza que recebemos de Deus e que muitas vezes fazemos de forma errada, já que não consultamos o verdadeiro dono e muito menos aplicamos a sua lei ou os seus ensinamentos. Mas continuando nos relatos do campo, também no projeto Jundiá, quando fomos realizar o pagamento dos créditos para os agricultores na casa de Luis Quincó, um acontecimento me chamou a atenção. Havia mais de 60 agricultores e a comissão de pagamento formada por advogados, representantes do Incra de Brasília, polícias Militar e Federal e representantes da classe política do município. Após os discursos, apresentações e agradecimentos, eu sendo o responsável pela entrega dos créditos, me dirijo a todos que iríamos iniciar o pagamento. Naquela época se levava em espécie os recursos. Quando o dono da casa, senhor Luís, pede a palavra e nos fala em voz baixa, mas bem clara: — Na minha casa antes de qualquer atividade, nós agradecemos ao Senhor por nos dar a vida, o pão e tudo o que temos. Quero completar as palavras do representante de Brasília dizendo: obrigado Senhor, por ter nos enviado os seus servos para nos trazer os recursos que tanto precisamos, obrigado também aos homens que pagaram os impostos para que hoje pudéssemos receber, mas principalmente a Tu Senhor, que atendeu ao meu pedido e trouxe na minha própria casa este pagamento. Esta também foi uma bela demonstração de fé e lição para todos os que lá estavam. Posso afirmar que aprendi muito na área rural, especialmente no que se refere à vida espiritual, e após muitos anos de observação entre as atitudes no campo e na cidade, já que trabalho nas duas regiões, chego a conclusão pessoal, baseada no dia-a- dia, que Deus está mais próximo da área rural do que urbana. 127 128 Nead Especial 2 A história do Zé Juquira Esse rapaz que eu falo No Mato Grosso nasceu Até aos vinte anos Só com roça se envolveu Nome de Antão dos Santos Foi o que seu pai lhe deu De tudo ele plantava Até mesmo tangerina O tempo dele era pouco Até para curtir menina Estudou algumas letras Com luz de lamparina Na fronteira em Tabatinga Ele serviu de sentinela Para defender a pátria No clarão de luz de vela E hoje o computador Lhe joga pela janela Zé Juquira trabalhou Assim como um homem faz Nas construções de São Paulo Em Brasília muito mais Muitos anos arrancou ferro Na serra dos Carajás Eu gostaria de ver Um governo agricultor Dentro da reforma agrária Deputado e senador De mãos dadas com os roceiros E não com o computador Memória Incra 35 anos Eu peço a Vossa Excelência Que me faça um favor Que deixe só na cidade Esse tal computador Não leve nem a passeio Lá no meu interior O senhor fazendo isso Já me deixa sossegado Esse bicho fuxiqueiro Fez muitos desempregados É por isso que eu não gosto Deste aparelho malvado Organizando a sociedade Todos vão participar Aí sim vai dar gosto No campo trabalhar Aí é reforma agrária Que veio para nos ajudar Nessa tal reforma agrária Então vamos nos unir A união faz a força Que seja aqui ou ali Assim eu sei que tem paz Do Oiapoque ao Chuí Hoje só falam em reforma agrária Essa história me animou Dizem terras para todos Eu lhe pergunto seu doutor A terra do Zé Juquira Aonde ela ficou? Não queremos meia-sola Pois não dápara resolver Queremos estrada,escola e financiamento 129 130 Nead Especial 2 Para todos sobreviver Com ajuda se trabalha E se faz o que comer Doutor divida essa terra Para os que tem precisão Ao menos uma vez no ano Dê uma volta no sertão A conta de dividir O senhor não sabe não? Na roça eu colhi A minha melhor lição A fé e a esperança Que brota em cada pião A divisão justa da terra É o grito da nova nação Mensagem do Zé Juquira Sonhei um dia no campo morar Com a foice, machado e terçado as mãos calejar Hoje os Zé Juquira pedem terra para plantar Amanhã com a produção a pátria iremos pagar É melhor para todos do que nas cidades perambular Não deixem a chama da fé e esperança se apagar A dor que carrego no peito É como uma faca no coração a sangrar Minha dor não tem limite Pois vem da alma que está sempre a chorar O que vejo com esses olhos Só Deus pode me consolar Minhas letras são poucas Memória Incra 35 anos Meu palavreado é meio engasgado Mas será que preciso virar doutor Para esta nação me escutar O meu grito é de alerta A terra é para quem vai cultivar Conclusão Os fatos acima relatados considero os mais importantes, mas apenas citarei ainda como informação as solicitações que fizemos para a sede do Incra no sentido de melhor adaptar a instituição à realidade do campo: 1. Adicionar o nome da trabalhadora rural no cadastro. 2. Permitir o assentamento para trabalhadores rurais, mesmo com carteira assinada de até três salários mínimos. 3. Proibir o fornecimento de cadastro para áreas públicas acima de 100 ha. É a minha contribuição para a história do Incra. 131 10 Os plantadores de sonho F r a n c i s c o J o s é Na s c i m e n to Introdução Fazer o registro escrito das peripécias vivenciadas por mim no ofício de servidor público tem sido um desafio quase impossível de realizar. Tarefa penosa pelo dinamismo como as coisas foram acontecendo e por estarem dentro de um ambiente que em nenhum aspecto poderiam se emoldurar. Falar da história do Incra no Acre é falar de sonhos, utopias e de oportunidades perdidas. É traçar perfis de homens e mulheres que empunharam a bandeira da reforma agrária, deram o melhor de si em termos de dedicação, empenho, amor e vida. Escreveram o alfabeto de Deus nos caminhos tortuosos da história. Por esse cenário, passou um general, um coronel e os outros – os plantadores de sonho – que, embalados pelo clima ufanista fincaram os alicerces para a investida pioneira de colonizar a Amazônia. É claro que me incluo entre estes últimos. Os que conseguiram sobreviver aos dissabores e não abaixar a cabeça para os gritos, ameaças e as imposições tão peculiares dos que estavam à frente da instituição. Infelizmente, por desconhecimento de causa e imaturidade política, cometemos erros como, por exemplo, assentar famílias vindas de outras regiões em projetos de colonização sem as mínimas condições de sustentabilidade, não cuidar para que o meio ambiente fosse preservado e vender o discurso tão peculiar naquele momento: “Plante que o João garante!” As primeiras ações do Incra no Estado situam-se em meados de 1972. Momento em que o campo encontrava-se ferido pela ação devastadora do capital Propaganda veiculada durante o governo de João Batista Figueiredo (1979/1985). Memória Incra 35 anos expansionista e travava-se a luta pela não-incorporação de novas áreas à pecuária. Tempo em que o heroísmo servia de critério curricular para promoção funcional ou demissão sumária. Não tinha meio termo. Tempo em que se costumava medir o empenho no trabalho pela quantidade de malárias contraídas e por cada risco que se corria na lida diária. Recuperar parte dos acontecimentos não foi uma tarefa fácil. Pois, no serviço público, a valorização da memória institucional só entrou em pauta recentemente. Os servidores mais antigos que participaram da fase inicial de implantação da Superintendência do Incra no Acre ainda têm receio de expressar suas opiniões. Rescaldo da ditadura militar. Aliás, é bom que se diga que as seqüelas deixadas pelo Estado deixam marcas irreversíveis. Também, muitos colegas se foram para sempre, levando seus sonhos, experiências e esperanças. O anonimato não lhes tira o mérito da bravura. Aqui registro com pesar os nomes de Moreno Maia, Marne de Paiva, Macambira, Raimundinho, Raimundo Lopes, Enilda Buarque, Chiquinho, Jurandir, Altemir, Assis Lima, Pedro Firmino, Zuila Arantes, José Miguel, Maria Brasil, Raimundo Moreira, Cutruca, Narciso Assunção, Nilson Campos, Ivo Neves, Beto Ladrão, Meireles, Idelmar, Alberto Santiago, Francisco Pimentel, João Ademir, Aldenor Soares Pedrosa, Cleonildo Alves, Carlos Cleider, Newton Valério, Olécio Rosado, Santana, Wilson, Geraldo, o “locutor da rádio cipó,” e tantos outros. Fizeram o dever de casa. O tempo não os esqueceu. Com Fernando Moreno Maia, o General, o intrincado perfil fundiário do Estado foi sendo esmiuçado, palmo a palmo, deixando à mostra suas feridas. Meio às cegas, diria, os trabalhos se iniciaram. Tudo estava por fazer e o avião precisava ser consertado em pleno vôo. Não havia outra saída. Agora, ao olhar pelo retrovisor vejo um tanto de erros que poderiam ter sido evitados. A herança amarga continua permeando cada um de nós que sonhamos com uma justa distribuição de terra e renda. Mas nem tudo deu errado. A Amazônia não seria melhor sem a presença do Incra. A conclusão vai depender do ângulo que cada um deseja enxergar. Ousamos e realizamos, em pleno coração da Amazônia, o maior processo de colonização jamais idealizado na América Latina. É difícil condensar em poucas páginas os fatos interessantes que presenciei e vivi nos 35 anos de existência do Incra, dos quais participei como servidor em 26 deles. Para um catador de pérolas creio que não seria aprovado no teste da memória. Mesmo assim, trazer alguns relatos ao presente me causou um bem 133 134 Nead Especial 2 indescritível. Renasci com eles. Foi, acima de tudo, um ato de amor de quem sempre acreditou no valor do trabalho. Felizes lembranças que teimam em resistir a implacabilidade do tempo. Quanto ao Incra, apesar dos contratempos e de tantos desencantos, continuo tendo por ele aquele sentimento condenado pela igreja, mas, que assumo enquanto pecado: orgulhar-me dele. O convite A maior parte de minha juventude passei percorrendo os imensos corredores da Superintendência do Incra/AC, levando e trazendo demandas, elaborando sonhos, corrigindo rotas e aporrinhando a vida dos meus superiores. Apanhei muito da inexperiência e do deslumbramento de quem ensaia os primeiros passos na administração pública. Mas, contabilizando os resultados, creio que posso me considerar um vitorioso porque nunca precisei penhorar a minha alma nem desistir dos meus projetos por “burras abarrotadas de ouro”. Mesmo quando me diziam que estava no caminho errado, nunca pensei em desistir, por pura teimosia. Naquele 5 de março de 1978, estava eu no caixa 5 do Bradesco Centro, em Rio Branco/AC, quando o amigo José Alberto me chamou num canto e disse que um tal Nilson Campos Moreira, queria falar comigo. Nem imaginava que esse Nilson era um dos chefões do Incra/AC. Durante o meu período de intervalo para o almoço fui ao encontro dele. No outro dia, já estava trabalhando na instituição, para desespero dos gerentes do banco. Confesso ter sido um aprendiz inseguro, encabulado e, por vezes, precipitado. A primeira missão que recebi não tinha nada de especial, parecia mais um teste de humildade: comprar lanche para o chefe Nilson, no bar do “Zé Vela,” que ficava em frente a sede do Incra. Fui aprovado, apenas com uma ressalva: o refrigerante estava um pouco quente para quem buscava, em vão, a cura para uma ressaca monumental. A partir de então, saí para conquistar meu espaço, sempre acreditando que, se os outros podiam fazer eu também seria capaz de realizar. Não recuei frente às decepções, que foram muitas. Não temi cometer erros e assumi-los. Hoje, passados tantos anos, ainda continuo no encalço do inatingível, sou tocado pela utopia do irrealizável. Um viciado em sonhar, sonhar e sonhar. Memória Incra 35 anos As primeiras pessoas com quem tive contato no novo emprego foram José Alberto (avalista e companheiro de boêmia), Clara Bader (balangandãs espalhados pelo corpo e espírito muito à frente do seu tempo), Joecy (a conselheira), Nazaré Simão (grande confidente e defensora), Simão, Francis Mary (bruxinha e poetisa), Vicente Freire e Alcione (meus compadres), Nilson Campos (chefe e guru), Neto Thaumaturgo (parceiro de grandes orgias) e outros que depois foram se incorporando. Muito me ajudaram. Só resta pedir desculpas pelas minhas estúpidas irresponsabilidades. Pela falta de amor às coisas que me cercavam e a mim mesmo. Nazaré, por exemplo, me livrou inúmeras vezes da canetada do general e de ser demitido pelo Vicente Freire – o “impiedoso.” Mesmo sabendo que eu estava errado, sempre me defendeu. Quanto aos sábios conselhos da Joecy, só procurava segui-los quando a vaca já tinha ido para o brejo. Não lamento o tempo que passou. Mas não posso deixar de sentir uma ponta de saudade daquela turma que foi se separando tangida pelas vicissitudes da vida. A missão Era difícil não ser contagiado pelo espírito realizador do general Moreno Maia. Guardo a lembrança viva de quando fomos apresentados no meu primeiro dia de trabalho no Incra. Entrei em seu gabinete, nervoso, diante de um “general de estrelas”, em carne e osso, e apoiei o corpo na cadeira que estava à frente. Olhou-me por cima dos óculos e disse: “Você nem começou a trabalhar ainda e já está cansado? Endireite-se, rapaz, que a vida não se conquista deitado em berço esplêndido. E tem muito trabalho para ser feito.” Saí dali com um misto de raiva e desapontamento. Tive vontade de ir embora. Mas, com o passar do tempo, vendo sua maneira firme de administrar e a pressa em realizar a primeira fase do processo de colonização é que consegui entende-lo. Dias após, Marissanta (gerente da Fassincra/AC) e eu recebemos a incumbência de conseguir algumas cadeiras de roda para que ele distribuísse aos trabalhadores rurais portadores de deficiência física. O prazo estabelecido foi de duas semanas. E lá fomos nós, numa corrida desenfreada, para realizar a tarefa. Eu, na verdade, nem sei por que fui escolhido. O general tinha dessas coisas. Com muita sorte, cumprimos a missão cujo mérito credito a Marissanta. 135 136 Nead Especial 2 Foi gratificante ver a felicidade das pessoas recebendo as cadeiras de rodas das mãos do general que não cabia em si de contentamento. Percebo o quanto era difícil acompanhar o ritmo de trabalho que ele empreendia no Incra. Estava sempre com o pé no acelerador. Espírito irrequieto e sonhador inveterado. Um detalhista barroco. Não quero me deixar dominar pela nostalgia do mestre, mas, conviver com ele, durante seis anos, foi para mim um grato aprendizado, principalmente, por que era estimulador trabalhar com poucas chances de se errar pela segunda vez. Tive esse privilégio. Casa nova Em janeiro de 1977, tivemos a inauguração da atual sede do Incra, em Rio Branco. O último ato que Assis Canuto, então coordenador, realizaria no Acre. O acontecimento tomou conta da pacata cidade. O presidente do Incra, o maranhense Lourenço Vieira, veio especialmente de Brasília para prestigiar o acontecimento. O Governador do Estado, Geraldo Mesquita, também participou. Uma obra grandiosa que fazia jus à onda ufanista que o regime militar pregava. A missão do Incra era colonizar a Amazônia, sempre de olho no que o fantasma do comunismo podia representar. Mormente, quando corriam rumores que a semente de “Che” Guevara vingava na vizinha Bolívia. Um militar deveria assumir o posto de coordenador. Assis Canuto continuaria prestigiado, mas seria remanejado para o vizinho Estado de Rondônia. Para o Alto Comando das Forças Armadas, a região da faixa de fronteira não poderia ficar à solta. E não era por acaso que no sul do Pará, o Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins (Getat), braço militar da instituição, dava as cartas. O momento exigia que o comando das ações do órgão na Amazônia ocidental fosse entregue a alguém que tivesse a cara e o espírito nacionalistas do momento. O escolhido veio do Comando Militar do Leste, com sede no Rio de Janeiro – general Fernando Moreno Maia, que já se encontrava na reserva. O general Fernando Moreno Maia foi coordenador do Incra/AC no período de 1977/1983. Sua nomeação para o cargo foi bancada pelo general Brasil, que tinha trânsito livre na Vila Militar. Memória Incra 35 anos Separar o joio do trigo Devido à urgência que a situação impunha, os trabalhos de discriminação das terras tiveram que ser priorizados. O objetivo era vistoriar 34 milhões de hectares de terras acreanas e partes de Rondônia e Amazonas, então sob a jurisdição da Coordenadoria Especial do Acre. O processo discriminatório das terras foi realizado por Comissões Especiais de Discriminação de Terras Devolutas, cujos membros se dedicavam exclusivamente a esta atividade. A tarefa não era fácil. As dificuldades operacionais e jurídicas faziam com que os cronogramas fossem sendo dilatados, levando-se em conta, o jogo de interesses e a resistências dos proprietários em celebrar os acordos por via administrativa. Separar as terras públicas das terras privadas no Acre era como montar um quebra-cabeça no escuro. A ausência de documentação, comprovando o domínio da terra, foi sem dúvida um problema sem precedentes no decorrer do processo discriminatório. O máximo que os pretensos proprietários apresentavam eram registros públicos que não espelhavam a dominialidade da área em estudo. Como a legislação da época impedia o Incra de reconhecer como legítimos tais documentos, o passo seguinte, era a arrecadação do imóvel, para fins de reforma agrária, ou discutir o domínio na justiça quando cabível. Mesmo assim, tal situação não impedia de que as terras fossem vendidas de forma desenfreada para grupos empresariais do Sul. Em pouco tempo, dois terços das terras do Acre estavam em poder desses investidores, chamados de paulistas. As maiores vítimas foram os pequenos posseiros, seringueiros e ribeirinhos, moradores da região, que, em suas andanças pela mata, só sabiam sangrar a seringueira para extrair o látex, colher o que a floresta lhes oferecia. Pescar o alimento dos rios e cultivar uma pequena roça. Sem título de propriedade de suas pretensas posses, tiveram que esperar o reconhecimento de seus direitos por meio da lei. Muitos foram retirados de suas áreas de forma violenta pelos compradores “sulistas” que chegavam todos os dias, em busca de terras baratas. Um trabalho da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), publicado em 1986, informa que o Acre, por suas características fundiárias, tornou-se um atrativo para os especuladores. Um cidadão de origem alemã, chamado Erick Gottlob, montou uma empresa de colonização particular chamada imobiliária Pacífico, que funcionava ao lado do antigo hotel Chuí, em Rio Branco e vendia 137 138 Nead Especial 2 terras para empresários alemães e chineses de Formosa, de maneira indiscriminada e sem que o Incra, na época, tomasse qualquer providência para o caso. Por ações como essas de Erick Gottlob, cerca de 40 mil seringueiros, foram banidos de suas terras, num dos maiores êxodos já registrados no Brasil. Para os objetivos da política ditatorial, a colonização dirigida foi perfeitamente justificável e com benefícios. Seja na acumulação de capital, seja na limpeza da área patrocinada pela “frente pioneira”, floresta adentro. Sem a colonização dirigida não teria sido possível, entre outras coisas, a discriminação e o reconhecimento privado pela União de partes das terras amazônicas, ingrediente fundamental para que depois pudessem estas mesmas terras (devidamente documentadas), serem apropriadas animus dommini pela “frente capitalista.” A colonização dirigida e o Acre O caminho de vinda era a BR-364, no trecho Cuiabá e Rio Branco. O itinerário dos destemidos e sonhadores. Um flagelo para quem por ela ousasse se aventurar no período das chuvas amazônicas. Mas, para quem estava na aventura, o caminho era o da redenção: bendita terra! Tão esperada como quem espera o novo rebento. Aos poucos, eles foram chegando. Desconfiados e humildes a pedir licença para adentrar-se na nova casa. Novos caminhos; velhos sonhos; outros olhares. Os plantadores de sonho iniciavam a terceira grande migração para o Acre. Contrário ao que aconteceu durante o primeiro período da extração do látex no final do século XIX, ou mesmo na segunda migração durante o Estado Novo, em que o Acre foi uma das regiões que mais recebeu migrante, na colonização direcionada e espontânea, levada a efeito pelo regime militar, houve o inverso: somente a partir de 1979 é que o fluxo de migrantes, em sua maioria, originários do centro-sul do país começou a chegar. Vinham em busca de terras nos A grilagem de terra passou a ser uma atividade que dava bons lucros, contando, inclusive, com a conivência de alguns cartórios de registro. O município de Cruzeiro do Sul/AC foi destaque na ação dos grileiros. Em 1972, de uma só vez, o escrivão José de Nazareth da Cruz Veras, registrou 400 Títulos Definitivos grilando uma área devoluta de 38.000 hectares. Os citados no processo, pessoas influentes na região do Juruá, foram indiciados pela Polícia Federal. Mais tarde, a área foi destinada à criação do Projeto de Assentamento São Pedro. Memória Incra 35 anos assentamentos do Incra, uma vez que Rondônia e Mato Grosso já apresentavam dificuldades para o pronto atendimento. Quase não houve o incremento da colonização particular no Acre. A experiência desenvolvida pela Companhia de Desenvolvimento Agrário e Colonização do Acre (Colonacre) teve resultado insípido. Outra que tentou se aventurar por aqui foi a Colonizadora Agropecuária São Paulo/Amazonas (Coloama), desativada em pouco tempo. A colonização oficial, comandada pelo Incra, atuou soberanamente em todo o processo. Dessa forma, quando comparamos a atuação do órgão em relação às experiências que foram realizadas em Rondônia, notamos duas diferenças fundamentais: em primeiro lugar, aqui não se utilizou a licitação de terras públicas, que nada mais era que distribuir as melhores terras para quem trazia dinheiro, deixando as terras ruins e sem acesso, para as famílias que não possuíam recursos. Em segundo, grande parte das famílias assentadas nos projetos de colonização foi selecionada entre as que se encontravam em situações de conflito neste Estado. Com isso, pretendia-se diminuir o índice de violência e tensão social nas microrregiões do baixo e alto rio Acre. Entre as famílias que vieram para o Acre, podemos destacar duas categorias distintas: as que foram trazidas pelo programa de colonização oficial (ainda poderíamos distinguir entre estas as que vieram sem nenhum recurso e as famílias que foram desapropriadas e indenizadas, como exemplo, as que tiveram suas terras alagadas pela barragem da Usina de Itaipu) e as que aqui chegaram por conta própria, realizando a reforma agrária espontânea, mas que logo o Estado buscou controlar e disciplinar, colocando-as sob a égide da colonização direcionada, com base nos pressupostos estabelecidos pela ideologia dos militares. A política de colonização tardia do Acre inicia-se a partir de 1977, quando foram criados os Projetos de Assentamento Dirigidos – PAD’s Pedro Peixoto (abrangendo os municípios de Plácido de Castro, Senador Guiomar, Acrelândia e Rio Branco) e Boa Esperança (localizado em Sena Madureira). Em 1981, foram implantados os PAD’s Humaitá (município de Porto Acre) e Quixadá (município de Brasiléia) e, em 1982, Santa Luzia (Cruzeiro do Sul). Todos localizados ao longo de rodovias que estavam somente no projeto. Todavia, nessa época, a economia brasileira estava mergulhada em grave crise financeira, fruto do endividamento externo assumido pela ditadura. Assim, os recursos destinados à implementação dos PAD’s foram diminuídos paulatinamente, prejudicando a 139 140 Nead Especial 2 implantação de grande parte da infra-estrutura necessária ao desenvolvimento econômico das famílias. As famílias antes de serem assentadas ficavam aguardando nos “arraiais de adaptação” até que os entraves burocráticos, junto ao Incra, fossem resolvidos ou que os ramais oferecessem condições para que pudessem chegar aos lotes. Os “arraiais” não passavam de acampamentos precários, sem nenhuma condição de higiene; montados em tendas de lona fornecida pelo Exército brasileiro. Entre 1979 a 1981, fase áurea do fluxo migratório,vieram para o Acre 4.173 famílias. Tudo era improvisação e aventura. A colonização direcionada na Amazônia, além de ser um programa oficial ousado, teve, devido às características da região, muito de pioneirismo e heroísmo. O trabalho do Incra, que inicialmente deveria discriminar as terras foi uma operação hercúlea travada com grandes dificuldades. Faltava equipamento. Faltava gente. Sobrava disposição. As regiões de expansão da fronteira agrícola são campos férteis para que os atos de coragem e sofrimento estejam presentes. A rotina de um servidor do Incra, que trabalhasse como motorista, dentro de um projeto de assentamento, geralmente consistia em transportar os colonos até as suas parcelas; retirar a produção dos ramais para a cidade; enterrar os defuntos; tratar dos doentes até que fosse possível se chegar ao hospital mais próximo. Quando não havia outro jeito, realizava-se até parto no meio da mata. Morava literalmente dentro da boléia do caminhão. Olhando do ponto de vista das famílias migrantes, a situação foi bem mais amarga, porque, nessa cena histórica, muitas vezes não representavam mais que meros dados estatísticos, necessários para prestar contas de recursos aplicados ou pleitear liberações de novas verbas. A luta pela sobrevivência iniciava ainda na viagem de vinda. Por outro lado, a própria adaptação das famílias ao novo habitat representava mais desafios. Se, de um lado, havia uma etapa desafiadora que era domar e tornar agricultável uma floresta majestosa, do outro, o sentimento de “acreanidade,” tão singular na população local, funcionou como uma espécie de cordão de isolamento, deixando, muitas vezes, essa gente fora do contexto político. Uma recepção com gosto de “vocês não são benquistos aqui.” Fonte: Incra – SR. 14/T. Memória Incra 35 anos Parecia impossível um ser humano sobreviver em locais parecidos com campos de concentração, onde, para não morrer de fome, os colonos chegavam a comer as sementes que eram distribuídas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Essa carência permeou em todos os projetos de colonização do Acre. Isto por falta de acesso permanente durante boa parte do ano impedindo a comercialização da produção, ou por inaptidão das famílias para trabalhar com agricultura na Amazônia. Entretanto, a colonização não pode ser tratada como um fato isolado. E de fato não o era. Havia todo um aparato governamental que visava apoiar as ações que estavam sendo implementadas, tendo como carros chefes o Incra e a Sudam. O objetivo não era somente o de integrar a Amazônia ao restante do Brasil, mas, também, a preocupação de não perder o foco nas questões ditas de segurança nacional. Nesse sentido, as coisas deveriam estar alinhadas. Enquanto o governo promovia sua política de colonização dirigida, a colonização, ação capitaneada pelo Incra teria que ser direcionada, isto é, cuidar para que as famílias migrantes não ficassem fora do guarda-chuva institucional ou não se desencaminhassem para outras regiões. O Incra, como guardião das terras públicas, era, também, o senhor do destino dessa gente camponesa. A colonização direcionada do governo militar não era uma via de mão única, mas a sua direção apontava preferencialmente para as terras da Amazônia. Os burros do Incra Realizar os trabalhos de campo na Amazônia sempre foi muito difícil. Além das grandes distâncias a serem vencidas, no período das chuvas, os rios transbordam e os ramais enlameados tornam-se intrafegáveis. No entanto, as atividades não podiam parar. Foi então que a direção do Incra optou por adquirir burros ao invés de viaturas traçadas, sob o pretexto de que a sua manutenção era mais barata. Assim, os técnicos se locomoviam no lombo dos burros até os lotes mais distantes, levando suas mochilas e instrumentos de trabalho. Esses animais logo foram apelidados de “mascotes do Incra.” Jornal O Rio Branco de 19.10.83 – Título: Parceleiros sem casa e sem saúde comeram sementes. 141 142 Nead Especial 2 Por serem classificados como material permanente, tiveram afixado em suas orelhas as placas com o número do tombamento. No PAD Boa Esperança, descobriu-se que um dos animais era efeminado e permitia ser montado por outro, ou seja, um burro gay. Outro, que foi mandado de avião para o PAD Santa Luzia, em Cruzeiro do Sul, morreu afogado em 1983. Quando um animal morria, sua orelha era retirada para ser arquivada junto com o processo de baixa patrimonial. Mesmo com toda gozação que se fazia a respeito de tal investimento, os burros do Incra prestaram bons serviços, principalmente, na época das chuvas, uma vez que eram os únicos que conseguiam vencer os enormes atoleiros. Chico Mal-estar Trabalhava no Projeto Fundiário Alto Purus, em Sena Madureira/AC, um vigilante noturno que de tanto reclamar de doenças foi apelidado de Chico Mal-estar. Não podia ver um superior que ia logo gemendo de dores pelo corpo e de um mal-estar que nunca ficava bom. Era um hospital ambulante. Numa das visitas que o general Moreno Maia fez ao projeto em 1981, recebeu do Chico a seguinte reclamação: “Olhe general, as pessoas aqui não levam a sério os pedidos que a gente faz. Está com mais de uma semana que estou pedindo para comprarem Detefon e não fui atendido. Não consigo dormir direito quando estou em serviço com tantas carapanãs e mosquitos me ferrando. Desse jeito não tem cristão que agüente.” Chico foi demitido sumariamente pelo general. A Gata Contou-me Evandro Nascimento, então diretor de Recursos Humanos do Incra, que uma de suas dificuldades enfrentadas ao assumir o cargo foi entender a linguagem e apelidos falados na casa – o “incrês.” Certa vez, recebeu em seu gabinete uma servidora um tanto quanto chateada com os responsáveis em operar a folha de pagamento, porque, segundo ela, estes haviam cortado a sua Gata sem sequer lhe comunicarem. Um ato desumano para uma mulher que dera parte de sua vida em prol da instituição. A revolta era tanta que estava decidida a impetrar uma ação na justiça contra o Incra, “caso não devolvessem a sua Gata, integralmente, naquela semana.” Memória Incra 35 anos Assustado, e sem, saber do que se tratava, o diretor lhe disse que iria cuidar do assunto e tranqüilizou a servidora, dizendo que “jamais poderia concordar que fizessem tamanha maldade com um pobre animalzinho;” Depois foi informado que a gata, na verdade, tratava-se da Gratificação de Atividade Técnico-Administrativa, que havia sido excluída do pagamento da servidora, pelo fato desta não preencher os requisitos legais para recebê-la. As mãos A maior dificuldade enfrentada pelas famílias migrantes não foi somente aprecariedade dos ramais, a falta do crédito ou de políticas públicas de amparo, como se tem falado. É claro que tudo isso contribuiu negativamente, sem contar as doenças tropicais. No Paraná, eles trabalhavam com agricultura mecanizada, arando e plantando em pequenas áreas. Aqui chegando, foram surpreendidos por uma coisa elementar, mas, decisiva para o insucesso de quase todos eles: só podiam contar com as mãos. Mãos para brocar; mãos para capinar; mãos para plantar; mãos para colher; mãos para viver. Os sonhos estavam dependentes das mãos. Mas, as mãos não estavam preparadas para desempenhar tarefas tão árduas, isso sem contar com o choque inevitável de identidades culturais tão diferentes. O jornal Folha do Acre, de 4.12.1983, tece o seguinte comentário: “Trazer parceleiros do sul do Brasil e colocá-los na Amazônia é como colocar nordestinos para habitarem a Groenlândia.” Faltou bom senso! Uma morte anunciada Estamos em plena selva do norte brasileiro. Os últimos raios do sol da estiagem banham a floresta, rios e igarapés. Tudo ainda parece ser igual às notas que Vivaldi imaginou quando compôs As quatro estações. Um namoro eterno do verão com o verde da mata. O mesmo não se pode dizer do PAD Desencanto. No restante do Brasil, acontece o “milagre” tão decantado como sinônimo de progresso. As grandes obras ainda são destaques nos noticiários: do Nordeste vem a Transamazônica; das bandas do sul, uma hidrelétrica começa a destruir Crônica escrita a partir de notícia veiculada no jornal A Folha do Acre de 29.06.84. Título: Cidade mobilizada – Márcia de Deus. 143 144 Nead Especial 2 sonhos e vidas, formando um grande lago – Itaipu – “pedra que canta.” E famílias de lavradores, como na passagem bíblica, assistem às águas inundarem suas roças, casas e tudo que encontram pela frente. O Incra, naquele momento, era a única saída para quem nada mais possuía. E sem perda de tempo, aproveitando-se do desespero e da ansiedade dos humildes agricultores, propagandas foram veiculadas, mostrando a Amazônia como um lugar de terras férteis, vida fácil, fartura, um paraíso à espera de mãos para trabalhar e fazê-la produzir. Tudo era garantido: transporte, alimentação e, em pouco tempo, um título de propriedade da terra. Não havia porque esperar mais. O quê os prendia naquele mar que outrora fora tomado por pomares com colheitas temporãs? E lá vieram os novos retirantes! Uma saga de quase um mês de viagem em ônibus, avião e caminhão, até o destino final nos confins do Acre. Evangelista, sexagenário de físico esguio, é o primeiro a saltar da carroceria do velho Ford, com suas três filhas. Está empoeirado, mas feliz e esperançoso de começar uma nova vida. Os outros vão descendo devagar, atônitos, numa cena que lembra os esquálidos personagens de Raquel de Queiroz. Parecem frágeis e impotentes frente à exuberância da mata. Não trazem quase nada em suas bagagens. Mas a vontade de trabalhar é imensa. Depois de longa espera, são levados pelos técnicos do Incra para seus lotes: horas e horas caminhando mata adentro. Depois, são largados à própria sorte e isolados uns dos outros. Evangelista pára pensativo diante de sua parcela. Não vê quase nada. Somente árvores e mais árvores. Na Amazônia, para se plantar, seguese à derrubada da floresta para atear fogo, antes que cheguem as chuvas. Tinha que trabalhar muito e depressa. A natureza não espera e as águas são indiferentes a tudo. Além disso, daquele paraíso que foi mostrado pelas propagandas, quase nada existia: estrada, escola, médicos. Sem contar que a floresta esconde suas armas contra os invasores. E tome malária, hepatite, “ferida braba”, tifo e insetos peçonhentos de toda ordem. Ninguém havia sido alertado para isso. Ao primeiro contato com a mata, Evangelista contraiu malária. Os mantimentos que trouxera do Paraná logo foram consumidos. Enquanto tremia de frio e delirava por causa da febre estirado na rede, suas filhas choravam de fome. Márcia, por ser pequena e indefesa, era a que mais sofria. Chorava de fazer pena. Todo o sonho de Evangelista se resumia agora numa agonia que parecia não ter fim. Memória Incra 35 anos Passados alguns dias, Márcia morreu de inanição. Suas duas irmãs não agüentavam, sequer, colher ervas e cascas de árvores para fazer chá. A única maneira de sobreviverem seria caminhar pela mata em busca de ajuda. Evangelista e suas duas filhas saíram sem destino pelos picadões enlameados. O canto soturno dos pássaros e a gritaria dos bandos de macacos nas copas das árvores pareciam sinalizar um adeus. Fazia lembrar a alegria de Márcia, menina alegre e travessa. Doía saber que aquele rostinho ficaria para sempre enterrada na solidão da mata. Por pura sorte Evangelista foi encontrado por outros parceleiros e levado, com suas duas filhas, para a sede do PAD Desencanto. Lá receberam alimentação e tratamentos, num posto de saúde precariamente instalado. A recuperação levou meses. A alimentação não era das melhores, mas pelo menos não morreriam de fome.A saudade de Márcia era tamanha que fazia com que as horas passassem vagarosamente. Um suplício para um pai que havia perdido a esposa, há pouco mais de um ano, ainda no Paraná. Evangelista não pôde mais voltar para a parcela. A doença o deixou quase inválido para a lida na roça. Não possuía mais forças para trabalhos pesados. Como não sabia ler, nem escrever, foi fazer pequenos serviços na cidade e, suas filhas, empregadas como domésticas em casas de família. O drama vivenciado por Evangelista não foi uma exceção. A colonização direcionada tinha dessas coisas. O cumprimento de metas valia muito mais que o bem-estar das pessoas. Por isso, Evangelistas e Márcias foram personagens comuns por esses PAD’s da vida. Conclusão Esta é uma história que ainda não foi contada em toda a sua plenitude. Talvez nunca será. Enquanto isso, o tempo faz a sua parte calando as vozes, para sempre e levando consigo o relato oral que somente poderia ser contado por quem viveu o drama. Mas, mesmo a despeito de tão pouco se ter dito e pesquisado sobre a migração acontecida para o Acre, durante o governo militar, ainda há tempo. As pessoas são a alma e a memória da terra. Apesar de tudo restarão sempre os seus sonhos e com eles novos olhares. E como disse Isabel Cristina Martins Guillen, ainda bem “que sempre sobra um homem para contar a história.” Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco/PE 145 146 Nead Especial 2 Anexo I – Depoimentos de servidores e migrantes Depoimento 1 “Certo dia, ao concluir o assentamento de 58 famílias, o sol começava a sumir na mata. Na floresta, escurece mais cedo e rapidamente. Sabia que era impossível retornar caminhando até a sede, que ficava a uns 15 quilômetros do local. Ainda não havia estrada implantada e o único jeito era ir a pé através de um picadão. Para complicar ainda mais a situação, uma forte tempestade se aproximava. Como não conseguiria caminhar na escuridão, resolvi passar à noite ali mesmo, sentado no chão, de costas para o meu colega de trabalho, na esperança que alguém viesse nos socorrer. Cada um de nós vigiava o seu lado. Ainda tive a idéia de gritar e urrar, com pequenas pausas, para espantar as onças e outros predadores. Assim fizemos por toda madrugada. Quando o dia clareou, demos com uma senhora de idade avançada que dormia em cima de uma árvore, tranqüilamente, a poucos metros de onde a gente estava. Envergonhado e encharcado até os ossos pela chuva que ainda caia, fui falar com ela. Me disse não ter escutado nenhum grito durante a noite e já está acostumada a dormir ao relento, principalmente, quando vinha até a sede do Projeto, fazer suas compras”.(Chiquinho ex-servidor do Incra/AC – 1981). Depoimento 2 “O meu compadre JoãoBarbudo veio na frente. E eu disse para ele que se lá désse para pobre viver antão escrevesse para mim. Passado uns tempo recebi uma carta dele. Então vim sozinho, passei uns trinta dias por aqui para ver como era, gostei e fui buscar a minha família pois já tinha feito minha inscrição no Incra. Lá, eu trabalhava em terras alheias, arrendadas. Aqui pelo menos teria uma parcela para trabalhar no que era meu. Foi uma viagem sofrida cerca de quarenta dias em cima de um caminhão.”( Custódio Rodrigues – assentado no PC Humaitá) Depoimento 3 “Andei em muitos estados antes de vir para o Acre, conhecendo, para não tomar decisão errada. A doutora Mariza, gerente da Itaipu, disse para nós que o Acre era muito bom e que se a gente quisesse ela daria um jeito de trazer a gente. Fiquei com um pouco de medo. Ninguém tinha quase notícias daqui. Eu morava em Itaquará, município de São Miguel do Iguaçu, Paraná. A Itaipu nos deu dez Memória Incra 35 anos anos, mas com seis as águas começaram a subir e tivemos que sair. Então resolvi vir para o Acre com mudança e tudo. Saímos com 16 famílias em seis ônibus e chegamos com três ônibus. Trouxe comida para passar um ano sem comprar nada: nove latas de banha de porco, oito sacos de arroz limpo, fora o que vinha em casca, 10 sacos de café em coco e uns 300 quilos de salame. Eu, a mulher e os oito filhos.” (João Gomes Pereira – assentado no PC Humaitá) Depoimento 4 “É normal em todas regiões pioneiras os problemas e as dificuldades. Quando o oeste de São Paulo foi colonizado, havia também muita malária e muitas barreiras a serem vencidas. A ocupação de regiões é uma aventura que exige coragem. Quem é acomodado e fraco não deve sair de casa. Garanto que o sacrifício de hoje vai ser o grande prêmio de amanhã, pois o colono com cinco anos nesta área gozará de uma atuação muito melhor do que sua realidade anterior. O Incra dá condições necessárias e cada um tem queda dá o seu esforço próprio com a dose de sacrifício peculiar a este tipo de assentamento.” (Paulo Yokota – presidente do Incra – entrevista veiculada no jornal Gazeta do Acre – RB – 27.08.83) Anexo II – Fotos da colonização no Acre Mesmo diante de tantas dificuldades, os migrantes transmitiam alegria, expansividade e muita esperança em dias melhores. Até mesmo as crianças, que numa aventura, assim, são as que mais sofrem, corriam e brincavam o dia todo e, somente choravam quando tinham que tomar as vacinas obrigatórias. 147 148 Nead Especial 2 O homem e a natureza: o desafio – acervo particular – autor anônimo – 1980 Os migrantes estão chegando – 1981 – acervo particular – autor anônimo Memória Incra 35 anos Migrantes no “arraial de adaptação” – 1980 – lembra um campo de concentração – acervo particular Arraial de adaptação – 1981 – acervo particular 149 150 Nead Especial 2 Os serviços sanitários não existiam e doenças como malária, hepatite, tifo, sarampo e desidratação assolavam, levando muita gente a óbito. As cabanas de lona eram inadequadas devido ao forte calor amazônico já que não possuíam ventilação. Mesmo assim, há quem diga que esta era uma das poucas “mordomias” dispensadas a eles no momento da chegada. Mãos que sabiam plantar e colher, embora em condições adversas. Mãos para tudo. Anexo III – Saiu na imprensa acreana Coordenador Marne de Paiva critica o comunismo em reunião com assentados no PAD Pedro Peixoto Memória Incra 35 anos Coordenador Marne de Paiva criticou as assentadas do PAD Pedro Peixoto pelo fato de as mesmas estarem distribuindo o jornal A Voz Operária. Quase foi linchado. Reunião com empreiteiros para definir obras de engenharia nos projetos do Incra 151 152 Nead Especial 2 Coordenador Marne de Paiva volta atrás e insere o empreiteiro no pacote de obras de infra-estrutura Executor do PAD Pedro Peixoto é pressionado a deixar o cargo por membros do PDS Memória Incra 35 anos Referências C A RDOSO , Fernando Henrique. Amazônia: Expansão do capitalismo. São Paulo. Brasiliense, 1977. E STUDOS da CNBB. Pastoral da Terra-2: Posse e conflitos. São Paulo: Paulinas, 1976. I A NNI , Octavio. Colonização e Contra-reforma agrária na Amazônia. Rio de Janeiro: Vozes,1979. In c r a . Colonização em dados. Incra. Brasília: 1983. M A G A LHÃES , Juraci Perez. A ocupação desordenada da Amazônia. Brasília; Completa, 1990. N A SCI M ENTO , Francisco José. Reforma agrária: Incra – 20 anos de atuação na Amazônia Ocidental. Rio Branco: 1995. 153 11 Um novo olhar do Incra para a realização da reforma agrária J o s i ma r La n d i m No dia 22 de abril de 1980 cheguei em Sena Madureira no Estado do Acre, para trabalhar no Projeto Fundiário Alto Purus (PFAP), cheio de vida e de esperança em me firmar como profissional de Agronomia e, conseqüentemente como servidor público, considerando que estava assumindo ali o meu almejado emprego. No momento das apresentações fui indagado se era bom de futebol, tendo em vista, que a Associação dos Servidores do Incra do Projeto Fundiário (Assincra-PFAP), participava do campeonato municipal de futebol de campo e seus dirigentes torciam para que os novos servidores fossem atletas, dada a grande rivalidade existente com os demais times do município. Contudo, apesar de considerar-me um “perna-de-pau,” mais tarde assumi a presidência daquela entidade. Fui eleito por meio de voto, para uma gestão de dois anos e nesse período o time da Assincra foi bi e tricampeão e, graças ao trabalho de toda a diretoria consegui construir a sede social do clube que permanece até hoje. Passei a integrar a equipe do Grupo Técnico (GT–I), onde se encontravam bons profissionais, já que PFAP naquela época era tido como modelo pois se destacava no cumprimento de suas metas de titulação. Dentre os inúmeros trabalhos que contribuí para a sua execução foi a participação como membro técnico da Comissão Discriminatória no Seringal Porto Mamuriá, situado às margens do rio Purus, próximo à divisa com a Bolívia. Esse trabalho foi considerado um sucesso, tendo em vista que a comissão conseguiu deslindar o patrimônio público do particular e arrecadar uma boa parte de terra que foi destinada aos seringueiros que ali estavam apossados. Memória Incra 35 anos No entanto, apesar dos bons resultados alcançados nesse trabalho, passei a ter algumas preocupações quanto ao papel da instituição, pois aquela ação restringia-se apenas à entrega de uma Licença de Ocupação (LO) e futuramente um título definitivo, ou seja, um pedaço de papel que talvez para aquelas famílias não tivesse um significado maior. Considerando que se encontravam isoladas no meio da mata, “no fim de mundo,” sem nenhuma infra-estrutura de acesso, sem transporte e sem atendimento das políticas públicas de educação, saúde, isto é, sem assistência de nada. Por outro lado, para o Incra aquele título tinha uma importância extraordinária tendo em vista, que era mais um para o cumprimento das metas. O futuro, o bem-estar, ou as condições socioeconômicas daquelas longínquas famílias de seringueiros, embora fosse motivo de preocupação as políticas econômicas naquela época, não propiciavam efetivamente os meios necessários para o desenvolvimento daqueles honrados trabalhadores brasileiros. Continuando os passos da minha sonhada caminhada, a qual já me dedicava com imenso amor por ter consciência da importância do Incra em 1982 fui convidado a assumir a executória do Projeto de Assentamento Dirigido Boa Esperança (PADBE), que tinha um escritório de apoio em Sena Madureira e sua sede, situada a 16 quilômetros da cidade, a margem esquerda da BR – 364. Foi uma experiência marcante e um desafio que me engrandeceu muito como profissional e como servidor público. Logo no início dessa batalha foram acrescidas ainda mais as minhas preocupações a respeito das atribuições do Incra, instituição que já me fascinava pelo fato de seus dirigentes encararem os problemas com firmeza, criatividade e, acima de tudo, com honestidade. Estava feliz porque ia trabalhar num projeto de assentamento e com certeza ficaria mais próximo dos trabalhadores rurais e de certa forma poderia contribuir de algum modo com a melhoria das condições de vida daquelas famílias. Considerava que os objetivos da instituição naquele projeto poderiam ir além da simples entrega de um título de terra, pois já percebia que o alvo principal a se atingir deveria ser a qualidade de vida das pessoas, que com certeza, não aconteceria apenas com a distribuição ou regularização da terra simplesmente, apesar de sua primordial importância, pela quebra da estrutura fundiária daquele Estado e, conseqüentemente do país. 155 156 Nead Especial 2 Neste contexto, afligia-me a necessidade de prestar um serviço com qualidade, mesmo diante dos parcos recursos existentes, bem como senti a urgência de usar o poder criativo de estimular aqueles agricultores no cultivo da terra. A falta de interação entre os departamentos da instituição propiciava uma situação constrangedora, porquanto saí de um projeto fundiário, que de certa forma tinha todas as condições necessárias, para um de assentamento dirigido, onde os meios de trabalho eram os mais adversos possíveis. Na verdade a estrutura organogrâmica da instituição com a departamentalização de alguns setores criava dificuldade de comunicação e interação das ações, embora os objetivos fossem os mesmos, ou seja, a valorização do homem do campo. Não havia naquela época, uma delimitação específica da função da instituição. Assim, seus servidores acabavam assumindo atitudes completamente paternalistas, pois compreendiam que o Incra deveria se incumbir de um leque enorme de atividades. E o executor de projeto, principalmente muitas vezes assumia papéis de toda a ordem: padre, juiz, delegado, conselheiro, advogado, entre outros. Na criação e implantação do projeto, muitas vezes não se levava em consideração as peculiaridades da região, nem a cultura e os costumes das famílias existentes nos seringais. Geralmente, o anteprojeto de parcelamento, era feito em escritório e todo imóvel era retalhado em lotes, sem o cuidado de observar as condições locais, os divisores de água, bem como a principal atividade de exploração, o látex da seringueira. Naquela época, um dos objetivos do poder central, dos governantes locais e, conseqüentemente, do órgão de cúpula da instituição era o de povoar a Amazônia, por ser uma região de baixa densidade demográfica, de floresta abundante, de solos ricos, de pouca produção agropecuária e de segurança nacional, por ser fronteiriça. Quanto aos solos, cometeram um grande equívoco, pois comprovadamente a exuberância da floresta Amazônica estava ligada ao clima quente e úmido e não à riqueza de suas terras. Portanto, retirar a camada vegetal por completo em determinadas situações estava-se cometendo um crime ecológico dado ao intenso processo de erosão. Neste relato não poderia deixar de mencionar o papel do grande guerreiro e saudoso Chico Mendes, com quem tive a oportunidade de conversar pessoal Memória Incra 35 anos mente, em sua cidade natal Xapuri-AC. Ele me demonstrou como seringueiro que foi e amante da floresta Amazônica como ninguém, a necessidade de projetos de preservação daquele tesouro nacional e as peculiaridades da região. Não hesitando diante de inúmeras ameaças que recebeu e defendendo-a com amor e coragem até a morte. O governo Federal, em busca de alcançar os objetivos de habitar a região e, ao mesmo tempo, aumentar a produção agropecuária, fazia veicular na mídia a distribuição de lotes por meio do Incra. Isto era noticiado para agricultores como os de São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Paraná, entre outros. Na propaganda eram oferecidas além da terra, todas as condições necessárias tais como, transporte e alimentação até o projeto, que diziam ter água potável, estradas, habitação, escola, atendimento à saúde, crédito e assistência técnica. Veja a responsabilidade que era assumida pelo executor do projeto em receber as famílias e colocá-las em suas parcelas para produzirem sem o mínimo da infra-estrutura e assistência social necessária e de incumbência das diversas esferas governamentais. Da forma que era feito o parcelamento, muitos lotes ficavam longe dos recursos hídricos e as famílias tinham que se deslocar vários quilômetros para terem a água de consumo. As estradas tornavam-se de custo muito elevado, pois além da escassez de piçarra, por serem traçadas em escritório, na prática cortavam os divisores de água e as obras de artes (pontes e bueiros) tornavam-se muitas e encareciam bastante a construção de um quilômetro de vicinal. A principal via de acesso do PADBE é a BR-364, projetada até o Peru, mas aberta somente de Rio Branco ao município vizinho Manoel Urbano. Na época era trafegável durante três meses no ano. Para se ter dimensão das dificuldades de tráfego nessa rodovia, a sede do projeto distava apenas 16 quilômetros da cidade, porém no período chuvoso o acesso dava-se apenas de barco, onde nesse percurso gastava-se quatro horas e meia, sendo trinta minutos a pé. No Projeto os agricultores produziam milho e arroz. A produtividade era tão boa que se o acesso fosse favorável, logo estariam bem de vida. Contudo não havia alternativa, a não ser esperar pelo período seco e a vontade do poder público em reabrir as estradas. Quando chegavam as condições de escoamento, esses produtos já estavam quase todos apodrecidos, tendo em Piçarra- terra misturada com areia e pedra; cascalho (NR). 157 158 Nead Especial 2 vista que as condições de armazenamento eram precárias. Assim, o desestímulo e as frustrações por parte dos agricultores eram intensas. As escolas eram improvisadas em baixo de barracos ou de árvores, caso tivesse um professor da própria comunidade. Todo o atendimento à saúde havia necessidade de deslocamento para Sena Madureira, que com bastante sacrifício se fazia por meio de pequenas embarcações e muitas vezes debaixo de chuva e a qualquer hora da noite. Ou seja, o Incra criava com devotamento e expansibilidades os Projetos de Assentamento, mas havia indubitavelmente a falta de infra-estrutura, incubêrncia do poder público. Mesmo assim, a coragem e a esperança daquele povo, causavam muita emoção a qualquer um, pois diante de todas as dificuldades, quando eram visitados no período chuvoso recebiam a todos de braços abertos, sempre com muita hospitalidade, sorrisos de felicidade e com fé em Deus de que um dia aquela situação iria melhorar. Diante desta realidade os seringueiros, em sua maioria nordestinos, que já residiam naquela região desde a década de 1940 (soldados da borracha), isto é, bem antes da criação do projeto de assentamento, sentiam-se prejudicados pelo parcelamento, que além de não levar em consideração os recursos naturais, também não respeitava a cultura local. Com o retalhamento da área não se sentiam estimulados em abdicarem da atividade extrativista em benefício do surgimento e incentivo da agricultura, como se queria com a implantação do projeto. Assim, restando-lhes ainda algumas árvores de seringueira dentro dos seus lotes, conseguiam produzir uma péla de borracha de 50 quilos, transportavam-na em suas costas até à cidade onde negociavam. Faziam a feira de café, açúcar, sabão e outros gêneros e retornavam com os mantimentos do mês. Nesse cenário os parceleiros encontravam-se em situação de desigualdade em relação aos seringueiros, pois não podiam fazer o mesmo, porque não conheciam a atividade extrativista, por serem agricultores e se fizessem isso com um saco de milho ou de arroz, 50 quilos de um desses produtos, quantidade máxima que podiam carregar em suas costas, não compensaria o tamanho esforço pelo baixo preço daqueles gêneros alimentícios. Péla – bola de borracha (NR). Memória Incra 35 anos Com o passar do tempo as relações de amizades foram sendo estabelecidas entre seringueiros e agricultores, os quais querendo assegurar sua sobrevivência e de sua família aprenderam a cortar seringa e fazer igual aos seringueiros. Diante da realidade fatídica, em vez de os seringueiros aprenderem a fazer a agricultura que se praticava naqueles estados brasileiros, para atender aos anseios da política econômica que se almejava implantar naquela região, ocorreu o contrário: os seringueiros ensinaram o extrativismo aos agricultores. Os hercúleos esforços do Incra por meio de seus executores de projetos, diante das adversidades estruturais daquela região, em face de políticas públicas que não levavam em consideração as suas peculiaridades, não se obtinha o êxito pretendido; se as condições necessárias não são favorecidas, nem há respeito à cultura local, nem à pessoa humana, além de outros fatores, o fracasso de qualquer projeto é conseqüência inevitável. Somente a partir da morte de Chico Mendes, com repercussão internacional, a política foi redirecionada e essas questões foram mais observadas, surgindo os primeiros projetos extrativistas, sendo criado um dos maiores, em Xapuri. No curto período seco os trabalhos eram intensos, porquanto o acesso era reaberto e contribuía para um melhor atendimento às famílias no que diz respeito ao transporte à cidade. Também era o período em que, geralmente, as obras de infra-estrutura eram feitas, quando havia recursos, ou seja, ramais, escolas e postos de saúde. Naquela época, os termos parceria e integração das ações públicas estavam surgindo no papel, mas na prática encontravam-se muito longe de concretização. O Incra construía as escolas e os hospitais de forma isolada, sem nenhuma discussão ou entendimento com o poder público local. Dessa maneira havia escolas e hospitais, sem funcionamento, ou seja, como verdadeiros “elefantes brancos,” no meio daquela grande mata. Diante das mutações sociais e políticas, além do aumento da preocupação com o meio ambiente, surgia um cenário de profunda revolução com o advento em 1985, do processo eleitoral muito comentado pelo país afora, por ser o ano das Diretas já, quando o MDB foi o partido que mais se fortaleceu em âmbito nacional em função da figura humana e política, Tancredo Neves. Na ocasião, tomei a decisão de entregar a executória do PDBE, no dia 10/7/1985 e, ao mesmo tempo solicitei minha remoção para Rio Branco. 159 160 Nead Especial 2 Para mim, esse período de quase três anos diante daquele projeto, foi uma experiência gratificante, pelo tamanho aprendizado, mas por outro lado muito angustiante, pelo fato de não ter podido de forma eficaz suprir as carências estruturais e contribuído mais, no que tange ao desenvolvimento das pessoas que encontrei ali. Tenho plena certeza de que não me faltaram esforços, nem competência, nem tampouco, de todo o quadro de servidores do PAD Boa Esperança, que tive a grande honra de dirigir por quase três anos, porém pelos motivos já comentados, ou seja, falta de infra-estrutura, vontade política, respeito ao ambiente e a cultura local, para o cumprimento dos objetivos já referidos. Naquele ano chegando em Rio Branco fui trabalhar no PF Uaquiri e até tive a felicidade de novamente estar ao lado do grande amigo Waldir da Silva Pamplona, que já havia sido executor do PFAP, quando estive em Sena Madureira. Permaneci por mais três anos nesse projeto e após oito anos de serviços prestados naquela região solicitei minha transferência para o meu Estado do Ceará. Considerando que sempre foi um desejo de minha família e, principalmente, do meu pai que passava naquela época por problemas de saúde e meu retorno com certeza contribuiu bastante para o seu restabelecimento. Até hoje sou muito grato à sensibilidade de minha instituição a qual sirvo com amor e devotamento, que diante dos percalços familiares e pessoais pelos quais passava, autorizando a minha transferência para Fortaleza. No início da nova jornada de trabalho, em fevereiro de 1988, embora estivesse em minha terra, foi uma época difícil. Apesar de ser funcionário da “casa” há muitos anos, vinha de uma região completamente diferente do Nordeste. No entanto, esse fato para mim foi muito engrandecedor, pois compreendi que em qualquer meio de trabalho é necessário adaptar-se às peculiaridades culturais e econômicas de cada região. Por sorte fui designado para trabalhar no Assentamento, onde pretendia continuar o trabalho que havia iniciado no PADBE, embora tivesse a clareza de que em termo regionais estava diante de duas realidades completamente distintas. No Acre trabalhei com a colonização, mesmo sendo um PAD tinham-se os parceleiros; no Ceará, já se tentava trabalhar com a reforma agrária, onde o agricultor passava a ser o sujeito da ação e denominado assentado. A oportunidade de participar de um curso de Gestão para Áreas de reforma agrária, ministrado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Memória Incra 35 anos (Pnud), foi fundamental para abrir a minha mente e entender como deve ser visto o processo de reforma agrária, no qual nós servidores do Incra devemos trabalhar com a autogestão, onde o agricultor é o ponto central de todas as questões. A partir desses cursos o trabalho na Superintendência veio a se fortalecer e o paradigma do parcelamento foi quebrado. Considerando que a maioria dos servidores da SR-02 tinha ainda um apego imenso ao modelo parcelado, mesmo com os resultados adversos ao almejado na região dos Inhamus. Graças ao trabalho insistente dos servidores engajados no processo e do próprio superintendente na época, além de outros técnicos importantes dentro do contexto da reforma agrária no Ceará, os quais, deixo de nominar para não cometer a gafe de esquecer alguém. O parcelamento foi abolido em nosso Estado, bem como colocado na ordem do dia a participação dos movimentos sociais e o fortalecimento das organizações dos trabalhadores rurais, sempre representadas por associações ou cooperativas, portanto tenho plena certeza que somente a partir daí tivemos os melhores resultados no processo de reforma agrária no Ceará. Passar a trabalhar a autogestão nos assentamentos para mim foi o grande mote para a instituição alcançar os melhores resultados e dentre eles posso apontar o Projeto de Assentamento Santana Serra das Bestas, situado em Monsenhor Tabosa, que considero uma experiência de reforma agrária de nível internacional. Ali, cerca de 70 famílias de agricultores assentados conseguiram superar todas as dificuldades que o sertão do Ceará oferece e hoje vivem com dignidade. Sem dúvida sei que muitas experiências positivas podem ser mostradas por este Brasil afora. Também tenho certeza de que todos os resultados positivos surgiram a partir do olhar diferente ou da modernização, ou talvez de uma verdadeira transformação, em nível nacional, que a Instituição vem passando a cada dia, para a realização da reforma agrária. É fundamental lembrar também, que nos últimos anos muitos temas e ações estão sendo mais assegurados dentro da instituição como: assistência social, técnica e jurídica às famílias acampadas, Plano de Desenvolvimento dos Assentamentos (PDA), concessão de crédito de instalação, meio ambiente, licenciamento ambiental, recuperação do passivo ambiental, gênero, raça (quilombolas), geração e etnia, arte e cultura, ações de cidadania em direitos humanos, documentação, além da própria assistência técnica, com o grande programa de Ates. Por outro lado, as pessoas, principalmente as chefias, ao meu ver procuram assumir mais 161 162 Nead Especial 2 o papel de gestores de políticas públicas e não mais aquela visão antiga, de que o Incra deveria fazer tudo sozinho. O programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) tem contribuído muito na educação de jovens e adultos por esse país afora. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ) é outro programa fundamental que tem contribuído o processo de reforma agrária, embora na minha opinião, ainda precise de algum aperfeiçoamento, que com certeza virá no decorrer do tempo para melhor atender aos assentados e a agricultura familiar como um todo. Tenho clareza de que a instituição muito tem feito pela efetivação da reforma agrária, no entanto muito mais há que se fazer, pois o Brasil é como se canta no hino nacional “ gigante por natureza.” Finalmente, não me sinto ainda completamente desangustiado, haja vista a diversidade de acampamentos espalhados por este Brasil afora e outra imensidão de assentamentos para serem recuperados, todavia o segundo Plano Nacional de Reforma Agrária está aí com seus respectivos planos regionais, o orçamento da instituição vem crescendo e o fortalecimento do Incra por meio da sonhada e esperada implementação do Plano de Carreira e a realização de concurso público. Portanto, a luta continua e confio que a vontade política surja em nossos representantes e favoreça a caminhada em busca da realização concreta da reforma agrária. Memória Incra 35 anos mencao honrosa 12 Um telefonema inesperado J o s e ly A pa r e c i d a T r e v i s a n M a s s u q u e t to A iniciativa de reconstruir a memória do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária a partir de textos e acontecimentos que marcaram a vida profissional de servidores dessa instituição é de todo louvável: quem quer que a tenha concebido certamente foi guiado pelo nobre ideal de valorizar o servidor público comprometido com a reforma agrária. Certamente muitos órgãos públicos, espalhados pela imensidão desse país, têm memórias a resgatar e histórias a preservar. Contudo, em se tratando de refazer o caminho percorrido pelo Incra ao longo de 35 anos, o projeto Memória Incra 35 anos ganha contornos especiais porque faz com que cada servidor público, até mesmo aquele que não participou do concurso, vasculhe em suas lembranças fatos que jamais se apagarão de seu arquivo pessoal, ainda que se passem mais 35 anos. Somente a constatação do efeito propagador de histórias e ativador de lembranças já seria suficiente para fazer com que tal certame tivesse sucesso garantido, digno do reconhecimento de todos os servidores da entidade. Na verdade, ainda que um só servidor participasse a iniciativa já teria valido a pena. Afinal, ao incentivar o servidor a reconstruir a memória deste órgão público, encarregado de executar a reforma agrária e implementar a regularização fundiária no campo, o presente concurso como que convida cada qual de seus profissionais a reforçar o motivo pelo qual ainda permanece firme no propósito de desempenhar uma tarefa para a coletividade, enfim, um serviço público. Em outras palavras, ao incentivar o servidor a abrir seu baú de memórias empoeiradas e trazê-las para a claridade proporcionada por 35 anos de muito trabalho e incontáveis conquistas, este projeto desperta no servidor seu orgulho em fazer parte dessa história e dessa caminhada. Memória Incra 35 anos Este foi o motivo que, mesmo madrugada adentro consigo inspiração para dizer o quanto me orgulho de integrar uma equipe de servidores públicos engajados com a reforma agrária. Para alguns basta acordar todas as manhãs e seguir o ritual imposto pelo dever de trabalhar. Para mim, no entanto, e sei que também para outros servidores, a obrigação cede lugar ao prazer quando cada dia de trabalho é encarado como um desafio a ser superado. E foi exatamente a sensação que tive quando do acontecimento, relativamente recente, que passo a narrar como forma de colaborar com a reconstrução da memória do Incra. Foi assim: no final de 2004 o Incra obteve na Justiça Federal, mediante o ajuizamento de uma ação anulatória, o direito de imitir-se na posse de uma extensa área de terras, aproximadamente 23 mil hectares. Após uma batalha judicial este direito foi conquistado, a fim de que mais de duas mil famílias de trabalhadores rurais sem terra pudessem permanecer na área que ocupavam há mais de quatro anos. Tratava-se de um contingente aproximado de dez mil pessoas. A imprensa local chegou a designar a ocupação como “um dos maiores assentamentos do Brasil.” Pois bem, após a imissão na posse, o proprietário, inconformado com a decisão judicial, dela recorreu ao Tribunal Regional Federal. Para descontentamento de todos os que defendiam a manutenção das famílias sobre o imóvel rural, o Tribunal determinou que a imissão do Incra na posse da propriedade fosse suspensa. Nem é preciso dizer o impacto que tal notícia causou: a suspensão da imissão do Incra na posse do imóvel rural certamente desencadearia um grave confronto, vez que o conflito fundiário estava controlado mediante a garantia da posse estabelecida em favor da autarquia. Com efeito, a situação fatídica assemelhava-se a um barril de pólvora prestes a explodir: a suspensão da autorização judicial para o Incra gerir o acampamento representava um verdadeiro retrocesso no avanço alcançado após tanto tempo de espera. Sem dúvida, um estado de desespero tomaria conta das pessoas e a reação poderia ser a pior possível, inclusive com derramamento de sangue. Afinal, debaixo de cada lona havia um núcleo familiar sedento por justiça social e igualdade. De fato, todos que ali estavam ansiavam por um pedaço de terra para cultivar; desejavam que cada gota de suor derramado pelo sol escaldante não fosse em vão; sonhavam com o dia em que a solução do impasse 165 166 Nead Especial 2 fosse realidade e imaginavam como seria bom se as gotas de chuva, até então frias e impiedosas, pudessem se misturar às lágrimas de felicidade derramadas em nome do direito de plantar, colher e viver em paz. Diante de tão urgente quadro fui designada para tentar obter uma audiência com o prolator da referida decisão, na tentativa de sensibilizá-lo quanto às graves conseqüências que dela poderiam advir. Então, desloquei-me para outro Estado e utilizando os argumentos de que dispunha, ouvi do julgador que a situação poderia ser reexaminada se lhe fosse dirigido um pedido de reconsideração fundamentado, instruído com provas e documentos que retratassem o contexto social que eu descrevera em sua presença. Retornei para meu Estado de origem e durante dias trabalhei na elaboração do mencionado pedido de reconsideração: após descrever em detalhes a situação desumana em que se encontravam as milhares de pessoas acampadas na propriedade rural, apresentei fotografias que comprovavam os fatos descritos; narrei as agruras experimentadas pelos acampados com as intempéries; relatei as dificuldades enfrentadas pelos heróicos servidores do Incra encarregados de proceder ao cadastramentro de mais de duas mil famílias, em meio a tanta desesperança e sofrimento. Finalmente, demonstrei que enquanto lona e lama fossem o teto e o chão de tantos brasileiros acampados no imóvel rural, a “dignidade da pessoa humana”, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, não passaria de um amontoado de palavras sem sentido e sem significado. Para felicidade geral, o julgador reconsiderou seu posicionamento anterior e através de nova decisão houve por bem em manter o Incra na posse do imóvel, situação que permanece até os dias atuais. Além dos sentimentos de alívio e alegria, confesso que intimamente me senti gratificada pela decisão obtida e isto já bastava para meu contentamento. Comuniquei às esferas superiores o êxito alcançado pela instituição como um todo. Também a Coordenação local ficou muito satisfeita e agradecida. Enfim, aquele dia foi um dia especial: ao voltar para o aconchego de meu lar dividi com meus familiares a experiência única de fazer parte de um contexto onde se busca a distribuição da justiça da forma real e concreta. Percebi que pela narrativa do episódio, impulsos de ânimo e encorajamento foram despertados em meu filho e em meu marido, o que também serviu de estímulo em seus desafios pessoais travados no dia-a-dia, cada qual em sua tarefa. Memória Incra 35 anos Porém, uma alegria ainda maior esperava por mim no dia seguinte: qual não foi minha surpresa ao receber uma ligação telefônica de Brasília/DF, na qual a interlocutora se identificava como secretária do Gabinete da Presidência do Incra. Tomada por um misto de surpresa e perplexidade, sugeri à secretária que poderia estar ocorrendo um engano, pois jamais imaginei que alguém vinculado à Presidência do Incra, sobretudo o próprio presidente, pudesse estar fazendo contato. Todavia, ela confirmou que era comigo que desejava falar e em seguida transferiu a ligação. Nem é preciso dizer que após ouvir a voz do presidente do Incra, identificandose como tal, faltaram-me, a um só tempo, ar e voz. Suas palavras foram de apoio, agradecimento e reconhecimento pelo trabalho realizado. Após alguns segundos de pura emoção consegui agradecer pelas palavras de incentivo recebidas e disse-lhe que jamais esqueceria sua atitude de encorajamento. No diálogo que mantivemos o presidente do Incra fez questão de destacar a grandiosidade daquela conquista obtida no Tribunal. No entanto, ao responder a esta observação eu é que fiz questão de demonstrar a ele, o quão grandiosa e rara fora sua atitude naquele episódio. Destaquei que procedimentos como o que ele adotara serviam para despertar no servidor, às vezes tão injustiçado e criticado pela sociedade, o orgulho de trabalhar por uma causa social de grande expressão nacional. Enfim, transmiti ao presidente da entidade que aquele simples telefonema, a partir de então, funcionaria para mim como uma alavanca, impulsionando-me para novos e maiores desafios, capazes de elevar a autarquia para vôos ainda mais altos, mesmo quando os obstáculos parecessem intransponíveis ou quando as dificuldades insistissem em ofuscar o brilho das atribuições que incumbem a cada servidor público da reforma agrária. Controlei minha imensa satisfação e comentei com poucas pessoas acerca do ocorrido: temia que o alarde fosse confundido com os exageros próprios da vaidade. Mas agora, impulsionada pela alavanca do incentivo distribuído pela Presidência do Incra e pela belíssima iniciativa deste concurso, busco em minhas lembranças aquele episódio e quero afirmar que o que tem realmente importância no resgate dessa memória não é o fato de eu ter sido agraciada com um telefonema de parabenização, mas sim, o fato de que, em assim o fazendo, o presidente do Incra demonstrou que gestos simples e singelos, como 167 168 Nead Especial 2 um telefonema inesperado, novos horizontes podem ser descobertos e novo estímulo pode ser dado à vida profissional de qualquer servidor. Alguns poderão dizer que não fiz nada além de minha obrigação profissional. Outros poderão afirmar que já tive meus cinco minutos de glória e que isto deve bastar. De minha parte, prefiro seguir acreditando que cumpri com meu dever profissional, mas o fiz com muita satisfação. Não há “cinco minutos de glória ou fama” que se equiparem à alegria proporcionada pela notícia de que os idosos, as crianças, as mulheres grávidas, os recém-nascidos, os jovens, os homens, as mães de família, rostos que só conheci através de fotografias, não mais seriam despejados, permanecendo o Incra na posse do bem de raiz. Sei que para os acampados, hoje assentados, pois o recurso interposto pela parte contrária foi julgado em favor do Incra e o projeto fundiário caminha a todo vapor, a conquista obtida na justiça é anônima: não há um rosto e não há um nome em especial. Mas assim é que deve ser. Como órgão público, em sua feição exterior, o Incra deve apresentar-se como entidade una. Contento-me em saber que nós, servidores do Incra, de uma forma ou de outra, somos verdadeiros instrumentos de realização da justiça em nosso país, na medida em que fazemos nossa parte em prol da execução da reforma agrária, assim compreendida em todos os seus desdobramentos e derivações. Por isto, acredito que qualquer um de nós pode também estar do outro lado da linha telefônica e receber uma palavra de estímulo e encorajamento. A propósito, há coordenações em nível estadual que também já perceberam os efeitos positivos de um sincero reconhecimento e assim têm logrado obter maior adesão e participação dos integrantes de sua equipe de trabalho. Finalmente, colho a oportunidade deste relato para enfatizar que a iniciativa de resgate das memórias do Incra vem ao encontro da necessidade sempre presente de se vislumbrar no servidor público da reforma agrária a força que lhe é peculiar e o reconhecimento que merece. Como servidores públicos estamos fazendo a história acontecer hoje e agora. E se uma palavra de incentivo pudesse eu transmitir aos colegas servidores do Incra (ativos, aposentados, dirigentes atuais ou ex-dirigentes), diria: PARABÉNS! Sua história se confunde com a do Incra porque vocês ajudaram a escrevê-la e agora, resgatá-la. Memória Incra 35 anos Que possamos seguir altivos e firmes em nosso propósito de desempenhar um papel transformador no meio social em que vivemos, sempre com seriedade e responsabilidade. Quem sabe assim um dia venha para todos, o reconhecimento tão merecido, talvez não sob a forma de um telefonema, mas pela construção de uma sociedade mais justa e solidária. 169 13 Incra: gênero e número M a r i a Au x i l i a d o r a G u i ma r ã e s d e Ca s t i l h o Minas Gerais, região do Alto Paranaíba. Terra boa e próspera, com a economia baseada principalmente nas atividades agroindustriais. É de lá que sai boa parte da safra de milho, café, batatas, cenoura, alho, frutas e muito da produção mineira de laticínios. In natura e industrializados. Numa região dessas, onde a generosidade do solo se soma à fartura de água e a regularidade do clima, não costuma sobrar terra. Não bastasse a generosa parceria com a natureza, tem localização privilegiada, com acesso aos grandes mercados de Minas, São Paulo e do Distrito Federal. Não foi, portanto, nenhuma surpresa quando, a partir de 1996, os movimentos sociais – de forma mais acentuada o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araxá, filiado a Central Única dos Trabalhadores (CUT) passaram a reivindicar de forma veemente a ação do Incra nessa região. Os acampamentos de sem-terra surgiam e se multiplicavam da noite para o dia em vários municípios demandando vistorias e desapropriação de imóveis improdutivos e sua destinação para a agricultura familiar. Na época, eu tinha pouco mais que dois anos de trabalho na Superintendência Regional de Minas Gerais, onde tomei posse em janeiro de 1994, como orientadora de projetos de assentamento. E já então, o número de servidores era insuficiente para atender um estado com as dimensões geográficas e sociais de Minas. Extenso, diverso, e complexo em sua pluralidade, seus mais de 800 municípios sintetizam a variedade do próprio país. Minas Gerais exigiu e continua a exigir de nós, os servidores da SR-06, resistência física para as viagens longas e seguidas, além de muita versatilidade para perceber e interagir com sutis, porém marcantes diferenças regionais. Memória Incra 35 anos E foi em uma dessas jornadas, percorrendo acampamentos e cadastrando famílias na região do Alto Paranaíba que eu conheci Marta*, uma menininha de seis anos, que me marcou de forma especial. Marta era uma entre dúzias de crianças do acampamento, surgindo de todos os lados, levantando poeira, correndo por uma pequena e descampada colina em grande algazarra, quando a Belina 1987 do Incra cruzou a cancela da fazenda recém-desapropriada. — Êba, êba! O Incra chegou! O Incra chegou!O Incra chegou! A meninada gritava e rodeava o carro, se empurrando em meio aos vira-latas que, agitados com a gritaria, latiam sem parar, as crianças expressando com naturalidade a ansiedade que os adultos tentavam conter. Foi com essa recepção animada e barulhenta que cheguei ao acampamento para iniciar mais uma missão: cadastrar as cerca de 50 famílias ali acampadas e candidatas a beneficiárias no assentamento que logo seria criado. O acampamento estava montado bem na entrada da fazenda, próximo à estrada de acesso, já que naquela propriedade não havia nem mesmo uma casa sede que pudesse servir de referência ou oferecer alguma comodidade àquelas famílias. Assim, improvisando alguns caixotes como mesas e cadeiras, ajeitei-me à sombra de uma árvore para atender às famílias. Os coordenadores do acampamento, já prevendo o tempo que seria gasto por uma única servidora para atender a tanta gente, esticaram uma lona para além da sombra da árvore, de modo a garantir proteção contra a mudança da posição do sol no decorrer do dia. E foi detrás de um dos mastros que sustentavam o improvisado toldo de lona preta que surpreendi, fixados em mim, cheios de admiração, os olhos muito abertos e negros de Marta. Devolvi o olhar com um sorriso, mas, intimidada, Marta escondeu depressa a carinha espantada atrás do mastro. Algumas vezes, me olhava com um só olho, escondendo a outra metade do rosto. Cabelos muito lisos, a franja exageradamente curta realçava a expressão de espanto dos olhos. A cena se repetiu várias vezes: eu percebia que ela estava me olhando, retribuía o olhar, e de forma arisca e encabulada, ela voltava a esconder o rostinho. E ali ficamos eu e a menininha curiosa e arisca, nos comunicando com os olhos durante um bom tempo. Foi quando se apresentou para o cadastro um homem forte, a pele avermelhada maltratada pelo sol, barba por fazer, rodando o chapéu pelas abas com 171 172 Nead Especial 2 as mãos grossas de trabalhador rural, deixando à mostra a calva avançada e os poucos cabelos já grisalhos. Como num passe de mágica, a menina sai de seu esconderijo detrás do mastro e se cola às pernas do homem, que faz um carinho distraído em sua cabeça. — Essa é a Marta, minha filha caçula, informa o homem. Estendo a mão sobre a mesa caixote, e aperto a mãozinha suada. — Muito prazer, Marta! Nesse momento, ela levanta o rosto, abre ainda mais os olhos, e diz com o tom de voz de quem acaba de fazer a mais fantástica das descobertas: — Pai, o Incra é muié! Os que estão por perto começam a rir, e o pai constrangido, se apressa em repreender a menina: — Larga de ser boba, menina! O Incra é o carro que traz os homi e as muié pra trabaiá! Marta não se abala com a repreensão do pai. Pulando e correndo entre as barracas do acampamento, vai repetindo, apregoando em tom de orgulho, a sua extraordinária descoberta: — O Incra é muié! O Incra é muié! Final de tarde, atendidas boa parte das famílias, interrompi o trabalho que iria terminar no dia seguinte. Quando cheguei ao acampamento no outro dia, já mais relaxadas e acostumadas com a nossa presença, as crianças se dispersaram rapidamente após a recepção ruidosa. Menos Marta. Os olhos grandes fixos em mim, já não demonstravam acanhamento nem timidez. Mal abri a porta do carro, foi me dizendo com a convicção e a certeza que a gente só tem na infância: – Moça, quando eu crescer, eu quero ser Inra que nem a senhora. Respondi alguma coisa como “que legal!” surpreendida com aquela declaração explícita de identificação. Apenas sorri um tanto comovida, e me preparei para terminar meu trabalho. Afinal, depois daquele, tinha outro e mais outro acampamentos, e muitos outros trabalhos a serem feitos. Desde esse episódio, percorri praticamente toda a trajetória de atividades da criação à consolidação de muitos projetos de assentamento, em diferentes regiões de Minas. Estive presente inúmeras vezes nas etapas que compreendem o cadastro das famílias, o processo de seleção, o Sipra, as assembléias de legitimação, liberação de créditos. De acampamento a assentamento fui construindo Memória Incra 35 anos minha bagagem. Ouvi muitas histórias, causos, conheci muita gente, aprendi muita coisa. Vivi situações cômicas, outras quase trágicas. Presenciei cenas tocantes, partilhei momentos de aflição, angústia, mas também muitos outros de pura alegria e celebração. Mas jamais deixei de me lembrar dos grandes olhos admirados de Marta e da convicção do seu desejo de ser Incra. Foi nessa lida diária, que aos poucos fui assimilando a dimensão da surpresa de Marta, que me pareceu ser a simples admiração de uma criança ao ver um trabalho tão ansiado pela comunidade, ser realizado por uma mulher. Tenho minhas raízes muito bem plantadas, e devo dizer, com muito orgulho, no sertão das Gerais. Mas faz tempo que lancei meus olhos, meus sonhos, minhas buscas para além das veredas do sertão, e fui atrás da construção dos meus anseios. Sei, até porque não há como deixar de saber, que se muitas coisas mudaram na sociedade em relação às mulheres, outras permanecem arraigadas, quase inabaladas. Basta olhar em volta: quantas são as mulheres que ocupam cargos de decisão? Poucas? Muitas? Não sei quantas, não conheço estatística a este respeito. Mas sei, com toda certeza, que seu número é muito, muito menor do que o devido, se apenas a competência para isso, sem considerar diferença de gênero, fosse requerida. Em pleno século XXI, ainda há muitas portas fechadas, muito espaço que não permite partilha com o modo próprio da mulher de ver e agir. E se nos espaços urbanos, as distâncias entre os gêneros são menos percebidas, ou mais diluídas, no meio rural, são muitas vezes tão explícitas e drásticas, que dá para duvidar se realmente alguma coisa mudou nos últimos séculos! E ainda mais: se as mudanças ocorridas foram a favor ou contra as mulheres! Não foram poucas vezes em que mulheres de todas as idades, em acampamentos e assentamentos, buscaram e buscam em mim e nas demais colegas do Incra que trabalham no campo, a informação, o apoio, ou simplesmente o ouvido cúmplice para falar de suas agruras e esperanças. Fui percebendo que no imaginário daquela população dedicada ao pesado e imprescindível trabalho rural, a representação do Incra extrapola o próprio objetivo da instituição. Está para além e acima do braço do governo federal encarregado de executar uma política tão ansiada, que por mais que se faça, sempre parece pouco. Para os que esperam e os que acreditam, e até para os que já estão cansados, o Incra não é uma instituição: é uma entidade. No sentido místico da palavra! Com haveres, poderes próprios! 173 174 Nead Especial 2 E dentro desse universo tão especial, a população feminina expressa com maior veemência seu sentimento: o Incra, essa entidade mística, também é mulher! Lá no campo, entre as barracas dos acampamentos ou as agrovilas dos assentamentos, servidoras do Incra são mais que gestoras e/ou executoras de uma política pública. Somos sempre chamadas a desempenhar múltiplos papéis. De assessoras para assuntos administrativos e de organização comunitária, a conselheiras sobre temas que vão das carências sociais aos desacertos afetivos. Somos o Incra mulher, vistas assim, como aliadas, quase comadres. As demandas e queixas dessas trabalhadoras rurais vão de reivindicações pela solução de problemas relacionados com a saúde e educação dos filhos, ao alcoolismo de familiares, brigas entre vizinhos, violência doméstica, a jornada de trabalho sem começo, sem fim e sem pausa, a busca árdua e quase sempre nula pelo acesso aos meios de produção e aos mercados onde oferecer o resultado das muitas horas de trabalhos: nas roças, nos teares, nas cozinhas, nas agulhas e linhas, nos currais. Tudo permeado de segredos culinários e dicas de beleza, claro, já que ninguém é de ferro e beleza é fundamental. E é assim, desse modo despojadamente feminino, que o Incra é despersonalizado como instituição governamental, ao mesmo tempo em que adquire outra identidade menos formal e burocrática. Uma identidade somente compreendida pelos que transitam nesse universo de resistência,esperanças, suor e sonhos que agrega o povo que vive da lida na terra. A partir de 2000, iniciativas e programas vêm sendo adotados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Incra, com foco na população feminina. Em grande parte, diga-se por amor à verdade, por pressão das próprias trabalhadoras rurais, por meio dos movimentos sociais. Mas além de mulher, esse Incra sempre chamado a desempenhar múltiplos papéis, também é plural. O que nos deixa, a nós servidoras numa situação paradoxal de compromisso e impotência. Tudo isso, acaba por acarretar o risco de que nós, servidoras, sejamos tentadas a nos responsabilizarmos demais, abarcarmos o mundo, e terminar incorporando o mito, na tentativa vã de cobrir todos os furos ainda existentes nas políticas sociais. Mas por outro, existe a certeza da possibilidade de se fazer um trabalho que transforma, recria, resgata seus agentes e beneficiários num processo de troca e construção conjunta. Memória Incra 35 anos Sei que estamos escrevendo junto com os trabalhadores e trabalhadoras rurais, e os movimentos sociais que os congregam, um trecho marcante da trajetória histórica do processo de construção da identidade da nação. E é assim, como dizem os sertanejos, que vamos rompendo. Em meu caso, a força para seguir rompendo, vem da convicção de poder atuar num contexto de infinitas possibilidades humanas e também, da certeza de que, com todas as suas falhas e precariedades, essa entidade Incra, é aquela que consegue acender a luz nos olhos e despertar o sonho no coração limpo de uma criança. — Moça, quanto eu crescer, eu quero ser Incra. Eu responderia hoje: – Marta, você já nasceu grande, só por fazer parte desse processo. E foi você quem me fez crescer como eu nunca pensei que ainda poderia. Foi você Marta, que nunca mais me deixou esquecer a minha dupla responsabilidade: eu sou Incra. Eu sou mulher. Marta é um nome fictício, pois não pude obter em tempo hábil autorização da protagonista para expor sua identidade. Pelo mesmo motivo, também não está identificado em qual dos muitos assentamentos da região ela continua ( graças a Deus!) vivendo com a família. 175 14 A saga e as glórias do Incra nos seus 31 anos NatÁ l i o B e l m i r o H e r l e i n No texto a seguir, registraremos um pouco da história do Incra, para nós o mais importante órgão público federal do Brasil. Como servidor do Incra, e sendo jornalista, chefe da Assessoria de Imprensa do órgão, desde sua criação em julho de 1970, até 1992, num total de 22 anos, conseguimos, nessas duas décadas e pouco, concretizar nossos principais sonhos surgidos desde a juventude, quais sejam, conhecer praticamente todo o Estado do Rio Grande do Sul e boa parte do Brasil. E vamos a alguns itens referentes a nós. Fizemos nossos estudos primários, todos, e até iniciarmos estudos superiores em nossa cidade natal, Uruguaiana-RS. Isso, até 1947. A seguir, em 1948, prestamos o serviço militar. E logo, no início de 1949, fomos para a cidade de São Paulo, onde trabalhamos em oficinas gráficas e à noite, continuamos nossos estudos superiores nos formando em jornalismo em 1953, quando então retornamos para Uruguaiana. No ano seguinte, viajamos para Porto Alegre, mais precisamente, em 24 de agosto de 1954, dia da morte do presidente Getulio Vargas. Na capital gaúcha, onde residimos até o presente, passamos logo a escrever em jornais e revistas locais. E participando do Movimento Tradicionalista Gaúcho, passamos a escrever livros de contos gaúchos, anedotas e poemas, em estilo gaúcho e universal. Entramos no serviço público federal em junho de 1967, no Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) como chefe da Assessoria de Imprensa daquele órgão, que foi extinto, juntamente com o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) e o Grupo Executivo da Reforma Agrária (Gera) em 9 de julho de 1970, quando então foi criado o Incra. Memória Incra 35 anos No Incra, continuamos como chefe da Assessoria de Imprensa, viajando por vários anos com os delegados do órgão por, praticamente, todos os municípios onde houvesse agricultores assentados ou visitando áreas destinadas a esse fim. De 1970 até 1992, quando nos aposentamos, viajávamos todos os anos a Brasília, em janeiro ou fevereiro, onde participávamos de encontros de jornalistas do Incra com o presidente do órgão, ministro da Agricultura e às vezes, com senadores ou deputado federais. Em 1980, quando o Incra festejou 10 anos, vencemos um concurso nacional, com uma história sobre as atividades do órgão no Rio Grande do Sul durante sua primeira década de existência. Como prêmio, viajamos por mais de um mês, por esse Brasil adentro, visitando por alguns dias, em especial, Bahia, Amazonas e Minas Gerais, passando pelo Rio de Janeiro, que já conhecíamos desde 1952, quando estava em São Paulo. Temos cerca de 20 livros editados, de contos gaúchos, poemas, anedotas, vocabulário gaúcho e até crônicas políticas. Participamos ainda, em parceria com outros autores, de outros 20 livros, em geral, antologias. Agora, a seguir, os registros sobre o Incra, sua saga e suas glórias. Incra (I) Num país com as dimensões territoriais do Brasil a reforma agrária é uma prioridade impositiva gritante. A lógica afirmativa é repetida pela obviedade das circunstâncias decorrentes de três fatores: a existência de vastas áreas de terras improdutivas, o constante crescimento de habitantes e a conseqüente necessidade do aumento de produção agrícola, o importante setor primário. Ninguém ignora: o terceiro fator é motivado pelo segundo. A duplicação de habitantes de um local implica num inevitável e necessário maior consumo de alimentos. O fato é o moto-contínuo de um círculo vicioso imutável, perpétuo. Depreende-se do exposto que, se a reforma agrária é imprescindível no Brasil, de igual forma, é o óbvio, se faz necessário a existência de um órgão específico para tratar de tão importante setor. E, efetivamente – a maioria sabe- ele existe. Trata-se do Incra. Não são muitos, porém os que sabem da autêntica saga, ou seja, dos percalços enfrentados pelo Incra ao longo da estrada de sua existência. Estrada essa mais cheia de entraves do que pista esportiva de corrida com obstáculos. 177 178 Nead Especial 2 Criado em julho de 1970, para promover e executar a reforma agrária, efetuando o assentamento e o processo de colonização dos agricultores sem terras nas áreas desapropriadas ou da União ou Estados, o Incra, além de unificar e assumir as atividades e funções de três órgãos, também absorveu os servidores dos mesmos. Os três órgãos que, unificados, deram lugar ao Incra, foram o Ibra, o Inda e o Gera. De início, o Incra ficou vinculado ao Ministério da Agricultura. Depois, passou a órgão especial ligado diretamente à Presidência da República. Nessa situação permaneceu por alguns anos, até que, com a criação, a 30 de abril de 85, do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad), o Incra, foi vinculado ao novo ministério. Dois anos e meio depois, em outubro de 1987, por decreto-lei do presidente José Sarney, o Incra foi extinto. Decreto-lei que, no entanto, ficou dependendo da aprovação do Congresso Nacional. O Incra entrou em coma. E essa letargia durou um ano e meio. Praza a Deus que alguns doutos – e destemidos – integrantes do Congresso Nacional, demonstrando um alto bom senso, na memorável sessão da noite de 28 de março de 1989, rejeitaram o Decreto-lei no 2.363, de José Sarney. Dessa forma, o Incra, após um sofrimento que se estendeu do último trimestre de 1987 ao primeiro trimestre de 1989, foi recuperado, voltou a existir, ou melhor, continuou a existir. O fato foi motivo de comemoração em todo o Brasil, não só por funcionários do Incra -milhares- como também de colonos agricultores sem-terra – outros milhares – dos brasileiros de áreas diversas – também milhares – todos cientes e seguros de que, visto ser necessário implantar a reforma agrária no país, primeiramente se impõe, por via de conseqüência lógica, a existência de um órgão como o Incra, cujas funções são exclusivas do setor que lhe dá o nome. Inegavelmente, porém, para que as funções do Incra, no âmbito de sua área de ação, sejam viáveis e passíveis de êxito, falta uma complementação indispensável, que ainda e novamente só os integrantes do Congresso Nacional podem criar e fornecer. Referimo-nos a leis que regulamentem, que possibilitem, que facilitem, enfim, a execução rápida, efetiva e concreta da reforma agrária, e não que a façam emperrar, que a dificultem ou praticamente a impossibilitem, como tem ocorrido até o presente. Mas, a reforma agrária que se deseja, deve ser concretizada através de procedimentos justos – leis idem- e pagamentos adequados aos valores das terras desapropriadas, quando for esse o caso. Memória Incra 35 anos No dia 1o de agosto de 1989, quando o governo Federal, por meio do Ministério da Agricultura, destinou recursos num montante de NCz$4 milhões para as áreas de reforma agrária em projetos de colonização e assentamento nos estados do Nordeste, um orador local afirmou ser a medida, mais uma prova de que o presidente Sarney estava dando todo o seu apoio à reforma agrária – e por tabela ao Incra. Isso após convencer-se que tinha, interiormente, avaliado mal a questão “terra para produção primária” e em conseqüência extinto os órgãos encarregados de realizar a reforma agrária – Incra e Mirad. Ainda bem que, no tocante ao Incra, o Congresso Nacional compreendeu a mal-avaliação e reparou o lapso. Agora só falta a complementação já externada. É lícito salientar que, sobre a saga do Incra, ainda há muito a registrar, sendo o que faremos a seguir. Incra (ΙΙ) A odisséia 2001 No filme 2001 – Uma odisséia no espaço, a nave espacial robot, por sua perfeição, tornou-se perigosa no espaço. Não queria retornar à terra. E por isso, foi matando seus tripulantes, com exceção de um. O astronauta sobrevivente precisou conceber uma forma de liquidar com aquele engenho extraordinário. Passou, então, a desligar, um por um, os dispositivos que, no todo, ligados, davam “vida”, força e autocomando àquela máquina quase humana. Dessa maneira, foi tirando os poderes, as atividades, a eficiência, a determinação e, por conseguinte, pouco a pouco, lentamente, foi “matando” a máquina, até provocar sua extinção, ao menos como aeronave que se autodetermina. Dessa mesma forma, no espaço do tempo, os homens dos governos do Brasil têm procedido com as “máquinas” ou órgãos destinados a executar a reforma agrária no país. Em especial, assim vem ocorrendo com relação ao Incra. Constatamos o porquê dessa afirmação. Lento entrave Das atribuições do Incra, ao ser criado em 1970, e fora a colonização e reforma agrária, constava a cobrança de três tributos: Imposto Territorial Rural (ITR), Taxa de serviços cadastrais e Contribuição Sindical Rural, e mais, implantação da 179 180 Nead Especial 2 eletrificação rural, comando de tudo relacionado com as cooperativas e toda a infra-estrutura dos projetos de assentamentos. Mas o Incra já nasceu tendo vários inimigos, entre os quais três ministros – da Agricultura, do Interior e da Fazenda – pela posse das verbas de tributos rurais; os latifundiários, por motivos óbvios, e os próprios governos, por indecisão política na execução da reforma agrária. O Incra passou a ser considerado, por conhecidos setores, máquina perigosa. Assim, a exemplo da nave espacial acima lembrada, a desativação do Incra passou a ser efetuada, lenta, porém incessante. Pouco a pouco foram sendo desligados os “dispositivos” de atividades: comando sobre cooperativas, comando da eletrificação rural, também o da construção de açudes. E tudo foi parando, emperrando, inclusive a reforma agrária. Por último, talvez para selar a paz com aqueles citados ministros, foi “desligada” do Incra a competência de cobrar tributos rurais. Os latifundiários estavam eufóricos. Agora, para pressionar o governo a desligar o último dispositivo de vida do Incra tornou-se fácil. Basta forjar-se um motivo e o governo desativa tudo de vez, extingue a máquina criada para levar os sem-terra ao espaço dos sonhos da verdadeira reforma agrária. Crime e castigos Oxalá o governo, nessa história toda perceba: a) que deve invalidar jogadas sujas contra órgãos que visem a reforma agrária; b) se ex-dirigentes do Incra praticaram “maracutaias” devem ser punidos, eles, não o órgão, que não se autocomanda c) que, por leis justas conceda ao Incra a força que nunca teve nem para cobrar o ITR nem para executar a reforma agrária. E já nosso aplauso para um fato: agora o latifundiário paga alto preço pela terra nua, mas como ele queria, não para o Incra. Incra (ΙΙΙ) Cinqüenta lotes no Distrito Federal há 30 anos “O Incra possui 50 terrenos em Brasília, localizados nas regiões mais valorizadas da cidade. Os lotes estão sem utilização há 30 anos. Foram comprados por exigência do governo, quando o Incra se transferiu do Rio de Janeiro para Brasília, na instalação da nova capital (1960).” Memória Incra 35 anos Esta é a síntese da notícia publicada na Folha de S. Paulo, de 5/8/1990 e comentada no mesmo órgão por Josias de Souza, na edição de 10/9/1990. Tanto a Folha, como o comentarista, basearam-se em informes de fontes consideradas fidedignas. Portanto, nada contra o jornal ou o jornalista. Ao contrário, como sempre, palmas para eles. Mas, informes incorretos provocam críticas idem. Os fatos do affair Em 1960 o Incra nem existia. Foi criado em 1970, e ficou centralizado no Rio de Janeiro. Só transferiu-se em definitivo para Brasília em 1974. O órgão que fez a compra dos lotes, tudo indica, foi o Serviço Social Rural (SSR), visto possuir recursos, pois um dos seus objetivos era o de arrecadar impostos, para fazer o que constava do seu nome. A compra foi efetuada a pedido do governo, que, sendo democrático, não confiscava dinheiro de ninguém. A verba era necessária para ultimar obras em Brasília. O SSR foi criado em 1955, e extinto, junto como Instituto Nacional de Colonização e Imigração (Inic) em 1962, quando foi criada a Superintendência de Política Agrícola (Supra), para quem passou a posse dos 50 lotes. Com a extinção da Supra, em 1964, os lotes passaram para o Ibra. E, com sua extinção, em 1970, os lotes passaram para o Incra. Enigmas indecifráveis Quanto às razões pelas quais os lotes não foram logo vendidos, também não cabe culpa ao Incra, porque o órgão não se autodetermina, nem se autocomanda. Sempre teve e tem o seu dirigente. E mesmo este, como se sabe, é subordinado a poderes mais altos, superiores. Então se pergunta: por que esses informes distorcidos sobre fatos de época em que o Incra nem existia? Acaso para justificar entraves ao órgão idem à reforma agrária? Segundo um boato, o informante seria alguém do próprio Incra. A ser verdade, qual destas três hipóteses é a certa: a) será que os informes foram incorretos por um lapso involuntário? b) ou foram incorretos por ordem superior, que também podia estar com dados errôneos? c) – ou foram incorretos propositadamente, por razões inimagináveis, significando, ainda, que o Incra tem inimigos na trincheira? Enigmas….Enigmas…. A seguir: a verdade sobre os 500 porteiros para uma só portaria. 181 182 Nead Especial 2 Incra (ΙV) Mais de 500 porteiros “O Incra tem mais burocratas do que técnicos rurais.” A opinião é do ministro da Agricultura, Antonio Cabrera. Ele disse que essas distorções funcionais só agora foram levantadas, demonstrando que, no Incra, enquanto faltam técnicos do setor rural, há excessos de agentes administrativos (2.454); de motoristas (689); de procuradores (519) e o pior, excesso de porteiros (519), estes para atender uma só portaria, segundo ele. Essa a síntese de nota publicada no Correio Braziliense, de Brasília, edição de 6/6/1990 e logo transcrita em quase todos os grandes jornais do país, causando, na opinião pública, um impacto altamente negativo para o Incra. Distorções existem, em especial no último dado. Detalhes meritórios No Incra, a área funcional classificada como Agente de portaria, abrange não só porteiros propriamente ditos, como um sem-número de outras profissões, a saber: Faxineiros, office-boys, datilógrafos, telefonistas, secretários de gabinete, assessores, assistentes sociais, copiadores, arquivistas, servidores de cafezinho, ascensoristas, eletricistas, encanadores, jardineiros, mecânicos, motoristas, técnicos rurais, agrônomos e outros. Centenas de pessoas – as 519 da relação – e muitas delas sem possuir especialização profissional, mas que, posteriormente, fizeram cursos para os cargos que passaram a exercer, foram admitidas, e sempre por ordem superior, na condição de Agentes de portaria, ou Porteiro, o que fica constando no livro de ingresso. As alterações ou funções definitivas passam a constar de outros livros. Então: por que omitiram esses detalhes ao ministro? Enigmas persistentes Além da sede em Brasília, o Incra possui superintendências em todos os estados da União. Assim, o ministro apenas esqueceu de esclarecer que isso de “uma só portaria” significa “em cada unidade da Federação.” Quanto ao primeiro item da questão, o do suposto excesso de porteiros, consta que a declaração do ministro baseou-se em levantamento efetuado no próprio Incra. Portanto, a ele, ministro, neste caso, não cabe culpa pelas conclusões e crítica emitidas. Memória Incra 35 anos Vale por isso externar as, mesmas três perguntas que serviram para outros fatos prejudiciais ao Incra. - Será que foi por um lapso, que os detalhes sobre “a questão porteiros” não foram citados no levantamento entregue ao ministro? – ou não foram citados, talvez, por julgá-los desnecessários? Persistentes enigmas. Incra (V) final Nos últimos 50 anos, os anteriores governos do Brasil fizeram com que o órgão público federal encarregado da área que possui três setores interligados, imigração-colonização-reforma agrária, se constituísse no campeão da mudança de nome. E por quê? Por um desses motivos: não estar cumprindo metas, ou por irregularidades (de dirigentes), ou então – o mais incrível – por estar tentando cumprir seus objetivos… Sempre transitórios São já 12 órgãos criados para substituir um anterior e sempre para os mesmos fins: tratar dos referidos setores interligados, imigração-colonização-reforma agrária. Eis a sigla dessas instituições: DNI, DNA, ERT, Inic, SSR, Supra, Ibra, Inda, Mirad, Mara e Incra. Dois ministérios estão incluídos nessa relação: Mirad e Mara. O primeiro foi criado pelo Decreto 91.214, de 30/4/1985 e extinto pela MP de15/1/1989. O segundo, é o Ministério da Agricultura, que no governo Collor teve seu nome acrescido das palavras ”e da Reforma Agrária.” Daí: Mara. Atualmente este órgão é denominado Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A seguir nome completo dos outros órgãos da relação. DNE – Departamento Nacional da Imigração, DNA-Departamento Nacional da Agricultura e ERT- Estabelecimento Rural do Tapajós, criado na década de 1940 e extinto no alvorecer da de 1950. Inic – Instituto Nacional de Imigração e Colonização, criado pela Lei 2.163, de 5/1/1954, e SSR- Serviço Social Rural, criado pela Lei 26.713, de 23/9/1955. Ambos extintos em outubro de 1962, para dar lugar a um só órgão que trataria da reforma agrária: a Supra – Superintendência da Política Agrária, criada pela Lei Delegada no 11, de 11/10/1962. 183 184 Nead Especial 2 Em seguida decidiram que um só órgão era pouco para incrementar a reforma agrária. Assim, de conformidade com o Estatuto da Terra, Lei 4.504, de 30/11/1964, a Supra foi extinta para a criação de três novos órgãos: Ibra, Inda e Gera, respectivamente, Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário e Grupo Executivo da Reforma Agrária. Seis anos após, no entanto, voltaram atrás. Concluíram que três órgãos para um mesmo fim era muito. Então, pelo Decreto-Lei no 1.110, de 9/7/1970, Ibra, Inda e Gera foram extintos e foi criado o Incra. Mudará a regra Sabedores do destino de todo órgão que trata do problema agrário no Brasil, os servidores do Incra, desde logo, na capital federal e em todos os estados, se organizaram e criaram suas associações, que, em Brasília tem federação e confederação e até uma fundação. Tudo isso não os livrou das infindáveis angústias pelas ameaças contra o órgão onde trabalham. Pergunta: Diante das adversidades que enfrenta, conseguirá o Incra sobreviver? Resposta: Só se Lula não repetir erros dos seus antecessores, e, através do ministro do setor, der força ao Incra para executar seu principal objetivo: a reforma agrária; necessária, justa e legal. No entanto, se se repetir a medida paliativa que vem se tornando regra punir órgãos, com sua extinção, e não autores de erros – então só restará, no futuro, a história, fora de série, autêntica saga de um órgão público, e, por tabela, dos seus servidores: a saga do Incra. Para concluir estes registros sobre o Incra e os seus 35 anos de existência, completados em 9/7/2005, vale anexar que o Incra não é só para nós o mais importante órgão público federal mas também para milhares de agricultores que foram e ainda esperam ser assentados em terras onde possam trabalhar e produzir alimentos para suas famílias, para o Brasil e para o mundo. 15 Sobre o meio ambiente e a reforma agrária A n d r é Lu i z Ba n h o s e S o u z a Imbuídos do desejo de contribuir com a renovação de idéias e atitudes,traçamos alguns comentários e observações sobre os temas acima,por julgá-los pertinentes e fundamentais, visando principalmente a integração dos servidores do Incra no desenvolvimento sustentável da Amazônia. Toda a vida existe numa fina camada que circunda o globo terrestre. É a biosfera, que se estende desde as profundezas dos oceanos até o ponto mais alto das montanhas. Proporcionalmente, ela não é mais espessa do que o brilho de uma bola de bilhar. A biosfera de nosso planeta é singular, bela e frágil, muito frágil. Apresentase como um mosaico de delicados e intrincados padrões da natureza. Dominado pela água (mares, rios e outros mananciais, cerca de 70%) e gelo, sugerindo que este é o planeta água, toda a vida origina-se nos oceanos, os quais ainda tornam o planeta habitável, regulando seu clima e sustentando-o como um oásis no deserto negro do universo. Do espaço, pode-se ver como é pequena a quantidade de terra que sustenta a vida humana. Os desertos cobrem grande parte do globo e cerca de um terço da superfície terrestre é árida ou semi-árida. Outros 11% estão permanentemente sob gelo; outros 10% são compostos de tundra, vegetação de solos rochosos e frio intenso. Na maior parte do que resta, o solo é muito fino, pobre ou úmido para ser de alguma utilidade. Somente 11% da área total livre de gelo ( algo em torno de 1,5 bilhões de hectares), não apresentam sérios obstáculos ao cultivo. Deste total, talvez mais 13% pudessem ser utilizados, à custa de muito esforço e despesas. 186 Nead Especial 2 Entretanto, o mundo está perdendo terreno: a cada ano, cerca de 26 bilhões de toneladas métricas de solo são erodidas da terra, em conseqüência de sua má utilização pela humanidade. Um simples centímetro da camada superior do solo pode levar até mil anos para se formar. Nossa responsabilidade torna-se tanto maior quando lidamos com a interferência do Estado na estrutura fundiária do país, visando a melhor distribuição das terras, pois estamos trabalhando não somente com o solo, mas também, com um conjunto de ações e conseqüências complexas, que envolvem seres humanos e todo o bioma. De maneira que há de se pensar, planejar e executar as ações da reforma agrária, a médio e longo prazos, jamais perdendo de vista que o ideal a ser alcançado é produtividade sustentável, ou seja, criar condições de vida digna aos produtores rurais, sem depredação do meio ambiente, analisando a viabilidade de alternativas econômicas, extrativistas e florestais, baseadas em princípios de sustentabilidade. A ocupação do espaço rural necessita ter um ordenamento, sempre dentro da lei e da racionalidade. Neste contexto, devemos inserir a possibilidade da destinação das terras agriculturáveis, de domínio da União, inclusive as localizadas na Amazônia, a particulares, empresas, cooperativas etc. comprometidas com o uso sustentável dos recursos naturais. Se o princípio fundamental diz que a terra tem que ter função social, a floresta não é exceção. Ambas coexistem. Manter intocados recursos naturais que significam dinheiro e trabalho é uma tolice e uma forma de perpetuar a pobreza. Enquanto ecologistas do mundo inteiro e mesmo do Brasil denunciam atentados ao bioma amazônico, os moradores das favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, aguardam com ansiedade quem tome providências sobre os crimes contra a natureza humana que ali são uma constante. Os protestos são importantes. É bom saber que tem gente de olho nos erros que são cometidos em nome do lucro a qualquer preço. Mais importante, contudo, é apresentar soluções. É possível criar uma política racional que equilibre preservação e extração de recursos suficientes para combater a pobreza. Os zoneamentos agro-socioeconômico e ecológico são talvez, o único caminho para o Brasil cuidar do meio ambiente sem descuidar da pobreza.Se cada discurso feito pela preservação da Amazônia virasse um dólar, provavelmente já Memória Incra 35 anos teríamos juntado em um cofre dinheiro suficiente para pagar a dívida externa do Brasil e de quebra, salvar a floresta. A Amazônia é a segunda maior produtora mundial de madeira tropical, perdendo apenas para a Indonésia. Em 2002, as exportações de produtos madeireiros representaram cerca de R$1,7 bilhões. Entretanto, ao par de ser atividade dinâmica, é também controversa, pois quando realizada de forma predatória (na maioria das vezes), pode causar sérios danos ambientais e sociais, empobrecendo ainda mais, a longo prazo, a economia da região. Se for adequadamente manejada pode conciliar geração de riqueza e conservação dos recursos naturais. O desafio, portanto, é a mudança do paradigma. Passar de uma indústria extrativista, com baixo valor agregado, para a modernização do setor, buscando a excelência no padrão de manejo dos recursos florestais, agregando mais valor aos produtos, sempre com forte compromisso social e ambiental. Não há negar, pois, que a não atuação dos organismos governamentais, traz enormes prejuízos socioeconômico e ambientais à região, por permitir a ação clandestina e predatória de pessoas e empresas, que em total desrespeito às leis e ao meio ambiente, efetuam corte raso em nossas florestas, deixando atrás de si, apenas o vazio tenebroso de sua inconsciência e da sua ganância. Os solos amazônicos possuem, em sua maioria, baixa fertilidade natural e um equilíbrio solo-planta-fauna-solo eficaz, porém tênue, frágil. O modelo agrícola predominante utiliza técnicas de cultivo e insumos químicos que vão quebrar essa harmonia, tornando a agricultura insustentável em pouquíssimo tempo. A agricultura predominante consistentemente subordina a eficiência ecológica à econômica, por exemplo: usando máquinas que aumentam em muito a produtividade do trabalho, às custas da erosão e compactação do solo, ou ao plantar monoculturas para maior eficiência da produção,desconsiderando seus efeitos ecológicos; a necessidade do emprego de insumos externos de alto custo energético, antagônico a um modelo auto-suficiente em energia e à reciclagem de nutrientes, ou seja, fertilizantes sintéticos ao invés de matéria orgânica reciclada, como a natureza nos ensina; a tendência de empregar soluções paliativas para problemas sistemáticos,por exemplo, aplicando agrotóxicos em escala crescente de quantidade ou toxicidade, ou inundando o solo para evitar a salinização por fertilizantes minerais; a busca de soluções universais para problemas específicos locais.Um exemplo óbvio disto é a eliminação de variedades localmente adap- 187 188 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Nead Especial 2 tadas, em favor de uma única variedade de elite altamente produtiva, que se supõe geograficamente neutra. Fatores positivos para um assentamento ter sucesso: Terra: De boa fertilidade natural, relevo não muito acidentado, com boa disponibilidade de água. Clientela: Os assentados devem ter origem na agricultura familiar. Entorno: O acesso à sede do município deve ser fácil, onde haja uma economia agrícola dinâmica, com presença de agroindústrias e um bom mercado consumidor. Produção: A maior parte da produção deve ser voltada para o mercado consumidor e agroindústrias locais. Relações: Os assentados devem manter boas relações com o poder público local e contar com o apoio dos governos federal e estadual. Organização: Os assentados devem ter associações fortes, atuantes, que ajudem a organizar e escoar a produção. Crédito: Todos devem ter acesso aos créditos para a reforma agrária e aplicá-los corretamente. Assistência técnica: Deve ser disponibilizada para todos os assentados. Renda: Deve garantir não só a subsistência, mas também um excedente,oriundo da venda das colheitas. Um pouco de nossa história Criado em julho de 1970, pela fusão de dois órgãos fundiários (Inda e Ibra), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, nosso querido Incra, passou a ser responsável por todas as ações de colonização e reforma agrária, no âmbito federal. A ocupação do imenso vazio amazônico pela colonização oficial virou meta de governo, inclusive trazendo agricultores do sul do País, de avião. Por decreto, foi destinada imensa área de terras (mais de seis milhões de hectares) na região da rodovia Transamazônica, para fins de colonização e reforma agrária, criando o famoso Polígono Desapropriado de Altamira/PA. A partir de 1977, com a regulamentação da Lei no6.383, teve início a discriminação de terras devolutas em todo o país, com a criação das Comissões Especiais de Discriminação de Terras Devolutas, as quais são encarregadas de separar e reconhecer possíveis domínios legítimos dentro de determinada gleba, matricu- Memória Incra 35 anos lando o restante da área em nome da União, com subseqüente reconhecimento das posses de boa fé. Em poucos anos, o Incra estava encarregado de destinar milhões de hectares de terras, arrecadados via discriminatória ou arrecadação sumária. Tarefa hercúlea, tanto mais na Amazônia, ainda tão carente de infra-estrutura, até de acesso. Em meados dos anos 1980, o governo Federal voltou-se para a criação de Projetos de Assentamento, como prioridade, com a implementação de diversos programas de incentivo às famílias assentadas, em detrimento das ações de regularização fundiária. Passou-se então à obtenção de terras via desapropriação ou aquisição (muitas vezes demoradas e onerosas) com vistas ao atendimento da forte pressão dos movimentos sociais, demandando terra onde possam produzir e viver com dignidade. Passei a fazer parte da família Incra na ensolarada manhã do dia 20 de abril de 1977, quando desembarcamos, meu colega agrônomo Júlio Bezerra Martins e eu, no aeroporto de Altamira, recém-contratados pelo Projeto Fundiário de Altamira, órgão zonal da autarquia. Naquela época fervilhavam as ações de colonização, por meio dos PIC’s Altamira e Itaituba e a regularização fundiária, tocada pelos projetos fundiários. Vejo, com tristeza, que os colegas que lá estão hoje, continuam lutando com as mesmas dificuldades, principalmente quanto às estradas e ramais de acesso aos lotes rurais. Perdi a conta de quantas vezes a viatura em que estava atolou ou “pregou” em plena Transamazônica. Entretanto, uma delas ficou registrada especialmente em minha memória. Fomos, o executor do Projeto, Francisco Antonio Costa e eu, a um evento na Usina Abraão Lincoln-Pacal. No retorno, à tardinha, fomos apanhados por uma das chuvas torrenciais,comuns na região. Viajando com cautela, para não derrapar no verdadeiro “piso ensaboado” em que se transforma aquela estrada quando chove, a certa altura nos deparamos com caminhões, ônibus e outros veículos, parados. Ainda chovia muito e o jeito foi descermos para saber o que tinha acontecido. Dois caminhões não conseguiram subir a ladeira e estavam atravessados na pista, aguardando um trator chegar para puxá-los. A noite chegou e nada de trator. Então, resolvemos unir as forças de todos e tirar os caminhões no “muque.” Ali pude comprovar o significado de “a união faz a força.” Molhados até os ossos, 189 190 Nead Especial 2 enlameados até os cabelos, desobstruímos a estrada e, de um a um, todos foram passando e seguindo viagem. Chegamos a Altamira no começo da madrugada, sujos e cansados e, de quebra, apanhamos uma gripe “federal.” Logo entendi que havia de aprender a conviver com as forças da natureza, onde nós humanos é que somos os “estranhos.” 16 Uma contribuição para o desenvolvimento sustentável da reforma agrária no Rio Grande do Sul: a experiência pioneira de cooperação entre o Incra e a Embrapa C l a r o Lu i z d e F r e i ta s A reforma agrária, pela diversidade de interesses envolvidos e a complexidade de execução, não pode ser tratada como uma questão posta apenas para os governos. Sua execução exige o posicionamento e a participação de um amplo conjunto de atores sociais que aspiram à construção de uma sociedade mais democrática, solidária e igualitária. A eleição de um governo Federal de matiz mais popular fez crescer a esperança de um grande impulso no campo da reforma agrária, semelhante ao observado por ocasião da redemocratização do Brasil em 1985, quando foi instituído o I PNRA da Nova República, que acabou tendo uma execução muito aquém do esperado. A posse do novo governo em 2003 pôs outra vez em movimento setores sociais que demandavam a imediata formulação de um novo plano nacional e planos regionais de reforma agrária, que orientassem as ações de governo e que abrissem espaços para uma ampla participação da sociedade. A elaboração do II PNRA, ainda que concluída com certo atraso, mobilizou um número significativo de atores sociais interessados na questão, tanto nas esferas governamentais como em entidades da sociedade civil e movimentos sociais, nos seminários regionais para a elaboração dos PNRA’s. Entre as diretrizes estabelecidas no II PNRA, consta conciliar os aspectos quantitativo e qualitativo na execução da reforma agrária. Nesse sentido não basta apenas distribuir terra para populações carentes desse recurso produtivo. É fundamental que as famílias que recebem terra estejam capacitadas e organizadas, e recebam os apoios necessários para desenvolverem de forma sustentável seus empreendimentos. Por isso, o II PNRA aponta, em outras diretrizes, para a 192 Nead Especial 2 necessidade de cooperação interinstitucional, expressa na participação orçamentária e operacional dos diversos ministérios e órgãos públicos federais, além de contar com a participação dos governos estaduais, municipais, organizações privadas e movimentos sociais. Com base nessa orientação a Superintendência Regional do Incra no Rio Grande do Sul (RS) buscou apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Clima Temperado, de Pelotas visando desenvolver ações conjuntas na busca da qualificação dos projetos de assentamento no Estado. A aproximação entre os dois órgãos, que culminou com a assinatura de convênio, foi acompanhada desde o início por integrantes de movimentos sociais, que deram a legitimidade necessária para o desenvolvimento das ações acordadas no interior dos Projetos de Assentamento (PA). O convênio entre o Incra/RS e a Embrapa Clima Temperado foi firmado em 24 de setembro de 2003 com um ano de vigência. O objetivo do convênio foi o de “sistematizar, validar e disponibilizar tecnologias e conhecimentos” que visem o objetivo Desenvolvimento sustentável de assentamentos da reforma agrária no Rio Grande do Sul. As atividades do convênio foram estruturadas em quatro subprojetos: Subprojeto 1- Levantamento de dados para identificar e sistematizar processos produtivos utilizados pelos agricultores assentados, buscando suprir suas carências com informações já disponíveis ou que venham a ser geradas; Subprojeto 2 – instalação e acompanhamento de rede de referência e experimentos para servir de pólo de validação e transferência de tecnologias para apoiar o desenvolvimento técnico e econômico dos assentados; Subprojeto 3 – capacitação de técnicos e de agricultores monitores que possam atuar de forma complementar aos técnicos; Subprojeto 4 – identificação e sistematização de dados e informações para o estudo da malha fundiária nas regiões reformadas e prioritárias para reforma agrária no Rio Grande do Sul. Os resultados esperados da execução das atividades programadas nos quatro subprojetos foram assim definidos: Resultado 1 – Um banco de dados construído com informações sobre sistemas de produção e infra-estrutura nos assentamentos implantados nas seis regiões reformadas; Memória Incra 35 anos Resultado 2 – uma rede de referência organizada com 18 unidades pedagógicas em PA nas seis regiões reformadas, onde serão desenvolvidas as atividades de investigação, validação e transferência de tecnologias apropriadas, geradas na Embrapa; Resultado 3 – capacitados sessenta técnicos envolvidos com a assistência técnica a assentados e cem agricultores assentados para desenvolverem a função de monitores junto aos grupos de assentados, nas diversas regiões do Estado; Resultado 4 – um banco de dados construído para inserção de informações referentes à malha fundiária, condições de solo, capacidades de uso, vegetação e infra-estrutura de cada região prioritária, além da sistematização das informações sobre recursos naturais dos acervos do Incra e Embrapa. Uma síntese das ações realizadas e dos resultados alcançados se constitui no objeto do texto ora apresentado. Regiões abrangidas pelas ações do convênio Incra/Embrapa Os três subprojetos orientados para o apoio aos assentamentos desenvolveramse em seis regiões, definidas como regiões reformadas, assim denominadas pela concentração de assentamentos. Conforme as diretrizes do Plano Regional de Reforma Agrária as ações e investimentos para o estabelecimento de novos assentamentos ou para o desenvolvimento dos já existentes devem ser concentradas nessas regiões para potencializar seus impactos. As regiões reformadas, no Rio Grande do Sul, são: Missões, Tupanciretã, Porto Alegre, Piratini, Bagé e Santana do Livramento, que englobam 50 municípios. O universo dos PA’s criados no RS, sob a responsabilidade do Incra, compõe-se de 155 unidades. A área é de 162.519 hectares, com capacidade de assentamento para 7.025 famílias, conforme dados do banco de relatório de projetos de assentamentos/Sipra/Incra, 2005. As atividades desenvolvidas no subprojeto 4 -estudos da malha fundiária, abrangeram as áreas definidas pelo Incra/RS como prioritárias para a reforma agrária. São assim definidas, ou por apresentarem forte concentração fundiária, ou por já contarem com um número expressivo de assentamentos. No último caso, se confundem com as regiões reformadas. A área prioritária para obtenção dos recursos fundiários dentro do Plano Regional de Reforma Agrária do Rio Grande do Sul é constituída por seis regiões, a saber: 193 194 Nead Especial 2 1. região de São Gabriel (São Gabriel, Rosário do Sul, Cacequi, Santana do Livramento, Dom Pedrito, Bagé, Hulha Negra, Candiota e Aceguá); 2. região de Uruguaiana (Uruguaiana, Alegrete, Barra do Quarai, Itaqui, Maçambará, Manoel Viana e São Borja); 3. região de São Luiz Gonzaga (São Luiz Gonzaga, Santiago, Unistalda, Itacorubi, Santo Antônio das Missões, São Nicolau, Bossoroca, Capão do Cipó, São Miguel das Missões e Vitória das Missões); 4. região de Tupanciretã (Tupanciretã, Jarí, Júlio de Castilhos, Jóia, Boa Vista do Incra, Cruz Alta, Santa Bárbara do Sul e Palmeira das Missões); 5. região de Piratini (Piratini, Herval, Pedras Altas, Pinheiro Machado, Encruzilhada do Sul, Pântano Grande e Rio Pardo); 6. região de Pelotas (Pelotas, Santa Vitória do Palmar, Arroio Grande, Pedro Osório, Cerrito, Capão do Leão, Turuçu, São Lourenço do Sul, Cristal, Camaquã, Arambaré e Tapes). O estudo aprofundado da malha fundiária ficou restrito aos 16 municípios identificados em negrito na relação acima, cuja exploração agrícola está centrada na pecuária de corte extensiva, e onde, em larga escala, áreas de várzea são arrendadas para a cultura do arroz. Resultados alcançados Resultado 1 – Banco de dados de sistemas de produção e infra-estrutura dos PA’s. As ações do convênio identificaram, por intermédio de entrevistas nos PA’s, os sistemas de produção e a infra-estrutura existente em 151 assentamentos, que ocupam uma área de 160.432,5 hectares, onde estão assentadas 6.895 famílias, conforme Tabela 1. Memória Incra 35 anos Tabela 1. Número, área e famílias assentadas nos PA’s que integram o banco de dados do convênio, por região reformada Região reformada Número de PA’s Área total (ha) Área média dos PA’s/ ha Famílias assentadas Bagé 21 23.349,3 1.111,9 963 Livramento 14 17.965,7 1.283,3 646 Piratini 46 47.206,2 1.026,2 1.724 Porto Alegre 15 23.996,4 1.599,8 1.026 Missões 21 12.736,0 606.5 Tupanciretã 34 35.178,9 1.034,7 1.927 151 160.432,5 1.062,5 6.895 TOTAL 609 Fontes: Banco de relatório de projetos de assentamentos/Sipra/ Incra, 2005 e banco de dados do convênio Incra/Embrapa. Com as informações coletadas nos assentamentos foi construído um banco de dados de sistemas de produção e infra-estrutura. Este banco visou contribuir para sanar a carência de informações existentes no Incra, e que são relevantes para a formulação de novos projetos e encaminhamento de ações para um desenvolvimento sustentável nos assentamentos. Os dados coletados em questionários, diretamente nos 151 assentamentos pesquisados, foram incluídos num banco de dados no aplicativo Access, disponível no acervo do Incra/RS. Como exemplo, apresentam-se, a seguir, alguns dados que revelam aspectos da realidade da produção dos PA’s no Rio Grande do Sul. Utilização da terra, produção e produtividade nos assentamentos no RS. Os dados da pesquisa revelam diferenças marcantes no uso da terra nas regiões, quando analisados por subsetor de atividades. Os subsetores foram definidos como: lavoura temporária (agrupando todos os cultivos anuais); lavoura permanente (incluindo a fruticultura e outras atividades com ciclos superiores a um ano); pecuária (especificando as áreas de pastagens nativas e cultivadas); e florestal (discriminando matas nativas e matas cultivadas). Os dados permitem 195 196 Nead Especial 2 afirmar que há uma razoável adequação do uso da terra à aptidão agrícola dos solos das regiões. O cultivo da terra mostra-se bem mais intenso nas regiões que integram a macro-região norte, especialmente as de Tupanciretã e das Missões, onde os solos apresentam maior potencialidade. Nestas duas regiões destaca-se, sobremaneira, a binômia soja/trigo. Já nas regiões do sul, onde existe maior limitação para o cultivo da terra, grande parte das áreas dos assentamentos são utilizadas com pastagens e matas nativas, particularmente nas regiões de Bagé e Piratini, onde somam, respectivamente, cerca de 91% e 80% do total das áreas utilizadas. Tabela 2 .Uso da terra por subsetor nos assentamentos, por região reformada, em hectares, ano agrícola 2002/03 Região reformada Uso da terra por subsetor da agricultura Bagé Piratini Livramento Porto Alegre Missões Tupanciretã Lavoura temporária 3.061 6.177 4.532 3.657 6.906 27.333 51.669 3 607 16 32 105 349 1.112 10.480 11.344 3.116 437 1.964 2.897 30.238 Pastagem cultivada 500 1.173 3.085 7 1.774 2.587 9.126 Mata nativa 752 6.573 611 780 1.021 2.402 12.139 3 150 136 528 98 Lavoura permanente Pastagem nativa Mata cultivada 512 Total 1.427 Fonte: Banco de dados do convênio. A produção animal nos PA’s revela-se importante em todas as regiões, com destaque para a pecuária leiteira. Mas a pecuária de corte também se destaca, especialmente nos assentamentos das regiões de Livramento e Piratini, onde supera a pecuária leiteira em número de animais. A produção de leite é considerada estratégica para os assentados, por assegurar renda mensal para as famílias e por contribuir para a melhoria dos solos, especialmente pelo fato de que foi definida como modelo a ser adotado a produção a pasto. Na tabela a seguir é apresentada a existência de animais nos assentamentos. Memória Incra 35 anos Tabela 3. Existência de animais nos PA’s, classificados por região. Ano agrícola 2002/03 Número de animais Criação Região de Bagé Região de Livramento Região de Piratini Região das Missões Região de Porto Alegre Região de Tupanciretã Bovinos tração 517 468 1.640 572 448 950 Eqüinos 882 349 901 247 565 466 Suínos 1.791 965 5.887 2.840 4.593 10.459 Bovinos carne 1.845 3.505 8.451 2.191 3.525 9.463 Vacas de leite 3.022 1.469 5.911 3.883 1.584 9.526 Aves 9.523 15.060 38.750 18.030 416.665 325.615 Ovinos 295 257 Fonte: Banco de dados do convênio Os dados de produção e produtividade das principais lavouras e criações, apresentados nas tabelas a seguir, revelam, de um modo geral, resultados insatisfatórios, especialmente na macro-região sul, que devem merecer a devida atenção dos atores sociais que participam do processo de reforma agrária. Chama atenção o fato de que, diferente das demais regiões, em Bagé o plantio de sementes varietais de milho supera largamente o plantio de sementes híbridas. Mesmo na região de Tupanciretã, onde predomina largamente o uso de sementes híbridas, a produtividade do cereal situa-se pouco acima de 60 sacos por hectare, insuficiente, se comparada com o potencial produtivo das sementes disponíveis no mercado. 197 198 Nead Especial 2 Tabela 4. Produção e produtividade dos principais cultivos existentes nos PA’s da macrorregião sul, no ano agrícola 2002/03 Região Bagé Cultivo Área (ha) Prod. (t) Região Livramento Produti vidade (Kg/ha) Milho hib. 564 1.110 1.966 Milho var. 1.574 1.885 1.200 Soja Prod. (t) 2.120 3.924 1.850 4.641 10.216 2.201 698 1.335 1.910 1.031 2.184 2.118 1.812 383 571 1.490 289 175 1.101 1.475 1.340 Sorgo 600 1.200 2.981 610 Fonte: Banco de dados do convênio. Área (ha) Prod. (t) Produti vidade (Kg/ha) Área (ha) 1.645 Feijão Produti vidade (Kg/ha) Região Piratini Memória Incra 35 anos Tabela 5. Produção e produtividade dos principais cultivos existentes nos PA’s da macrorregião norte, no ano agrícola 2002/03 Região Missões Cultivo Produti vidade (Kg/ha) Área (ha) Prod. (t) Milho hib. 1.559 3.805 2.440 Milho var. 268 481 1.800 3.939 7.628 1.946 691 942 1.364 Soja Trigo Arroz irrig. Região P. Alegre Região Tupanciretã Produti vidade Kg/ha Área (ha) 575 1.112 1.934 3.111 11.026 167 1.368 Área (ha) Prod. (t) 229 120 98 813 303 Mandioca 97 1.134 11.630 222 Produti vidade (Kg/ha) 3.540 774 3.580 19.618 53.549 2.730 4.264 8.077 1.894 1.540 532 553 1.040 2.916 13.105 523 4.625 8.844 2.266 10.994 Feijão 216 Prod (t) 467 4.851 Fonte: Banco de dados do convênio. Entre os produtos de origem animal, ao lado da produção de carne, ovos e mel, destaca-se o leite, uma atividade presente em todos os PA e considerada como estratégica para o desenvolvimento sustentável dos PA’s. Chama a atenção a baixíssima produtividade leiteira nas regiões de Bagé, Livramento e Piratini, em especial nas duas últimas, onde a produção diária de vaca em lactação calculada ficou abaixo de quatro litros, de acordo com os dados da tabela 6. Provavelmente a baixa produtividade está relacionadas à predominância de animais de baixo nível zootécnico alimentados de forma deficiente, com pastagens nativas em pastejo contínuo. Nos PA’s da macrorregião norte a produtividade da atividade leiteira é bem mais alta. Ali a fonte principal de alimento das vacas, as pastagens cultivadas, permitiu a introdução de vacas de melhor nível zootécnico. 199 200 Nead Especial 2 Tabela 6. Produtividade de leite nos PA’s, por região. Macrorregião norte. Ano agrícola 2002/03 Produtividade Região reformada Produção de litros Produção de litros de leite por vaca de leite por vaca em lactação/ano em lactação/dia** No vacas em lactação* Produção total, em 1000 l Bagé 2.025 3.447 3.447 5,7 Livramento 1.346 1.457 1.082 3,6 Piratini 4.842 5.414 1.118 3,7 Missões 2.608 5.802 2.224 7,4 Porto Alegre 1.235 3.583 2.901 9,7 Tupanciretã 6.382 7.027 3.272 10,9 *estimativa de vacas em lactação = 67% do total de vacas ** estimativa de lactação de 300 dias/vaca Fonte: Banco de dados do convênio. Resultado 2 –Rede de referência Uma rede de referência significa “uma forma participativa de acompanhar o desenvolvimento e o desempenho técnico-econômico das práticas dos agricultores, subsidiando o processo de intervenção da pesquisa ou da extensão rural, através da coleta de informações agronômicas e socioeconômicas com base em sistema de produção e tipologia de unidades produtivas,” conforme definição do Programa RS Rural. As ações no subprojeto foram executadas em duas etapas. A primeira se desenvolveu no período de novembro de 2003 a março de 2004. Nesta etapa as ações foram focadas na produção de sementes varietais. O programa de produção de sementes varietais tem o objetivo de diminuir a dependência dos agricultores de insumos externos à propriedade. A atividade abrangeu todas as regiões reformadas. A grande estiagem ocorrida no verão de 2003/04 prejudicou, enormemente, o desenvolvimento das plantas, reduziu a produção e comprometeu o alcance dos Memória Incra 35 anos resultados esperados. Mesmo assim, foi possível obter um mínimo de produção para iniciar sua multiplicação, levada a efeito na safra seguinte. Na segunda etapa, iniciada em abril de 2004, as ações foram orientadas para a instalação das 18 unidades pedagógicas representativas previstas. O primeiro passo, após a seleção das unidades pedagógicas, feita em conjunto com as coordenações dos PA’s, foi definir o perfil de entrada, sendo utilizado o questionário “Perfil do estabelecimento agrícola familiar.” adotado pelo Programa de Consolidação de Assentamentos (PAC), do Incra. Em seguida foi elaborado o plano de trabalho para cada unidade pedagógica, envolvendo análise do solo, aquisição de insumos, preparo do solo, semeadura, promoção de reuniões técnicas e cronograma de acompanhamento do desenvolvimento das ações. Nas 18 unidades pedagógicas foram instalados experimentos com tecnologias do estoque da Embrapa, testando sua validade para adoção nos PA e como referência nas atividades de capacitação dos agricultores e técnicos. As principais inovações implementadas foram: manejo e conservação de solos; manejo de sistemas de produção; demonstração de uso de máquinas para preparo do solo e plantio apropriadas para agricultura familiar; manejo de arroz irrigado associado com criação de marrecos e peixes; cultivo e manejo de amendoim-forrageiro, capim-elefante-anão, cana-de-açúcar, aveia-preta, ervilhaca, feijão-miúdo e lab-lab; ensaios com diferentes cultivares de feijão e batatinha. Os ensaios com cultivares de feijão e batatinha já permitiram, no primeiro ano, a identificação daquelas de melhor desempenho nas diversas regiões, em condições adversas de clima. Resultado 3 – Capacitação de técnicos e de agricultores Pelo fato de ser, na atualidade, grande o número de beneficiários da reforma agrária no RS constituído por famílias que residiam desde variados tempos em áreas urbanas, é indispensável assegurar-lhes acesso a informações técnicas que permitam sua capacitação para desenvolverem com sucesso suas novas atividades. Da mesma forma, muitos técnicos que os assistem têm formação de nível médio e pouca experiência. Sua capacitação é condição para que possam prestar serviços com a qualidade exigida. O convênio tinha como meta realizar oito cursos de caráter tecnológico, sendo três para técnicos e cinco para agricultores assentados. Superando as 201 202 Nead Especial 2 metas, foram ministrados 31 cursos atingindo 577 agricultores assentados e técnicos, de forma conjunta. Os ministrantes foram, em sua quase totalidade, os pesquisadores da Embrapa Clima Temperado. Os cursos foram orientados pelo enfoque de uma transição para agroecologia. A seleção dos temas e os programas foram elaborados levando-se em conta as demandas apresentadas pelas famílias assentadas e pelos técnicos locais. Os temas abordados foram: alimentação, manejo e sanidade do gado leiteiro, manejo ecológico do solo, produção de mel, produção de sementes de milho e de feijão, alimentação, manejo e sanidade de suínos e conceitos e práticas de agroecologia. Resultado 4 – Banco de dados da malha fundiária A criação de um banco de dados disponibilizando informações sobre a malha fundiária das regiões prioritária para a reforma agrária no Rio Grande do Sul foi o objetivo perseguido pela equipe que atuou no subprojeto 4 do convênio Incra/ Embrapa. Como resultado do trabalho realizado, foi construído o Sistema de Informações Geográficas (SIG), e criado o Banco de Dados Sigincra. O banco de dados está no arquivo Sigincra e contém informações de três categorias diferentes: 1. Cadastrais – que inclui os objetos Ambiental, Assentamentos do Governo do Estado, Assentamentos do Incra, Imóveis com mais de mil hectares e RS_CAD. 2. Imagens – RS_SOLOS_IMAGENS. 3. Temáticas- RS_SOLOS_TEMATICO. O estudo da malha fundiária nas áreas prioritárias iniciou por uma pesquisa no Sistema Nacional de Cadastro Rural, selecionando o universo dos imóveis com superfície de área superior a mil hectares em municípios preferenciais dentro dessas regiões. Por meio da consulta das DP’s obteve-se informações básicas. As informações foram tabuladas por município e posteriormente transferidas para o gerenciador do banco de dados do Spring, para a sua associação com a respectiva informação espacial. A localização espacial dos imóveis para o seu desenho sobre a imagem de satélite (georreferenciada), foi feita com o uso da descrição constante na DP e com o auxilio das Cartas Topográficas do Exército, plantas e croquis constantes no acervo técnico do Incra. Nos casos onde foi possível somente uma localização Memória Incra 35 anos aproximada, o imóvel ficou representado por uma circunferência. No trabalho foi usado o programa AUTO CAD map. Os perímetros dos imóveis identificados foram transferidos para o programa Spring, onde foi feita a associação dos perímetros (espacial) com as informações e dados referentes ao imóvel. Outros resultados – Foros de desenvolvimento da agricultura camponesa nas metades norte e sul do estado. O convênio Incra/Embrapa/Fapeg incentivou a formação de foros para o desenvolvimento da agricultura camponesa e da reforma agrária, visando a integração dos PA’s na economia regional. Nesses foros abriram-se espaços democráticos para discussões e encaminhamentos de soluções para os principais problemas dos PA’s e de seu entorno. Participam desses foros representantes de instituições governamentais, nãogovernamentais e de movimentos sociais organizados, envolvidos na luta pelo fortalecimento da agricultura familiar. Foram organizados dois foros, um na metade Sul e outro na metade norte. Na metade sul a reunião de fundação ocorreu no dia 24 de junho de 2004, nas dependências da Embrapa Clima Temperado, em Pelotas, com a presença de representantes da Embrapa, Universidade Católica de Pelotas, Cooperativa Central dos Assentados no RS (Coceargs), Cooperativa dos Prestadores de Assistência (Coptec), lideranças dos PA’s e do MST. Não ocorreu o esperado avanço das ações desse fórum, provavelmente pelo paralelismo com o antigo e atuante Fórum da Agricultura Familiar da Região Sul, no qual todas as organizações e entidades acima citadas têm assento. Observa-se um movimento no sentido de unificar os dois foros, dada a grande convergência de interesses. Na metade norte do Estado a fundação do fórum ocorreu no dia 30 de julho de 2004, no município de São Luiz Gonzaga. Nessa reunião houve a participação de um expressivo número de agricultores assentados, MST, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Pequenos Agricultores e de representações de instituições governamentais e não-governamentais, entre as quais o Incra/RS, Embrapa Clima Temperado, Embrapa Trigo, Emater, Gabinete da Reforma Agrária e Cooperativismo do Governo do Estado (Grac), Coptec, secretários municipais de Agricultura de municípios vizinhos e professores de universidades com 203 204 Nead Especial 2 atuação na região. Esse fórum já realizou várias reuniões, em diferentes locais, mostrando-se muito ativo. Conclusões A análise dos resultados alcançados pressupõe a necessidade de algumas considerações preliminares. Em primeiro lugar cabe destacar o caráter de pioneirismo do convênio. Pela primeira vez o Incra e a Embrapa decidiram atuar em conjunto num processo que visou contribuir para o desenvolvimento sustentável da reforma agrária. Cabe observar que a Embrapa, como instituição, tinha um relacionamento pouco afinado com populações assentadas, o que tornou necessário promover articulações objetivando maior conhecimento mútuo e aproximação. Uma segunda referência para avaliação dos resultados diz respeito ao tempo de duração do convênio. As ações do projeto foram orientadas para disponibilização de tecnologias visando à transição de uma agricultura convencional para uma produção agropecuária baseada em princípios da agroecologia. Buscava-se um desenvolvimento que combinasse alta produtividade no processo produtivo com o bem-estar geral e a preservação ambiental, e que favorecesse o empoderamento das famílias assentadas. Resultados concretos para promover mudanças estruturais, como a pretendida, dependem do tempo necessário para o acúmulo de novos conhecimentos e sua assimilação e valorização pela sociedade. Isso é particularmente lento num contexto de avanço do agronegócio modernizado, atualmente tão valorizado pela mídia brasileira. Cabe ainda considerar um terceiro elemento na análise dos resultados alcançados. Trata-se da conhecida situação problemática de parte significativa dos PA’s implantados no Rio Grande do Sul, onde são constatados problemas de passivos de obras de infra-estrutura, de venda e arrendamento de terra, e de níveis insatisfatórios de vida de famílias assentadas. A permanência desse quadro de dificuldades por longo período tem o efeito de levar famílias assentadas a buscarem outros caminhos, muitas vezes abandonando seus lotes. Outras famílias, mesmo permanecendo na área, revelam-se desestimuladas para se envolverem em processos de mudanças que têm como base a vontade de participar e o comprometimento com as decisões coletivas. Considerando esses pressupostos (o pequeno espaço de tempo para a execução do projeto conveniado, as dificuldades enfrentadas pelo seu pioneirismo Memória Incra 35 anos e a complexa realidade dos assentamentos no Estado), os resultados foram animadores. O Seminário Estadual realizado em Tupanciretã, no dia 29 de março de 2005, para analisar os resultados do convênio Incra/Embrapa, concluiu que o convênio foi exitoso e que a experiência realizada deve ter continuidade e ser ampliada para outros PA’s. Além disso, foi reivindicada a participação das demais unidades de pesquisa da Embrapa no Estado. Ainda que não tenham sido palpáveis as mudanças pretendidas, indubitavelmente foram iniciados importantes processos de organização e de capacitação, que poderão causar, em prazos pouco maiores, os impactos desejados. Ficou claramente demonstrado o reconhecimento dos benefícios do trabalho pela Embrapa. Primeiramente pelo envolvimento de mais uma de suas unidades nas ações do convênio, o Centro Nacional de Pesquisas do Trigo. Em segundo lugar, pelo comprometimento dos demais centros de pesquisa da Embrapa no RS – Pecuária Sul, de Bagé e Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, de se integrarem efetivamente ao novo convênio com o Incra, a ser firmado ainda em 2005. Por último, pelo interesse de outros centros de pesquisa de conhecer melhor e, se possível, reproduzir ações semelhantes em suas áreas de atuação. 205 17 Semear sonhos Lu c a s M i l h o m e n s F o n s e c a Final do século XIX e aquela princesa européia-tupiniquim, pressionada pelos gringos anglo-saxões e sua industrialização capitalista decreta uma pseudolibertação dos povos negros escravizados no Brasil. Junto ao decreto a primeira oportunidade abortada de se fazer uma reforma agrária no país: a famosa Lei de Terras, que em uma de suas cláusulas vinculava o direito a terra somente a elite abastada (entenda-se gigantesca minoria) que possuísse bens, dinheiro, pois era necessário comprar a terra, e dinheiro era a última coisa que um negro recém- liberto (e qualquer outro pobre mestiço ou branco) tivesse, o primeiro erro de uma série das elites brasileiras para com o povo. E olha que nem citamos as famigeradas capitanias hereditárias… As décadas se passam e os personagens políticos, controvertidos, personalistas e autoritários aparecem, Getúlio Vargas foi o maior deles. Em seu Estado Novo poderia ter ousado, mas seu vínculo dúbio entre uma Alemanha nazista e um feroz capitalista, os Estados Unidos, só o empurrou para a opressão, abafando as manifestações populares e uma antiga idéia de divisão igualitária de terras. A primeira metade do século chega ao fim com uma segunda guerra mundial no meio do caminho. Enquanto a Europa estava devastada, os EUA enriquecidos e o mundo numa guerra fria nuclear. No Brasil o meio camponês começa a se organizar, reivindicar seus direitos, lutar pelo justo, eis que surgem as Ligas Camponesas, e o nobre Francisco Julião, grande líder que mobilizou as massas, do litoral ao sertão nordestino. E com “palmos medida” a terra de cada dia formava uma nova oportunidade de transformar este país em uma nação, e o porta-voz seria João Goulart, o Jango. O discurso foi feito, e atormentou o status quo: Memória Incra 35 anos Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da Supra (Superintendência da Reforma Agrária). Assinei-o, meus patrícios, com meu pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa pátria. Ainda não é aquela reforma agrária por qual lutamos. Ainda não é a reformulação do nosso panorama rural empobrecido. Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado. Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro…espero que dentro de menos de sessenta dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios ao lado das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação. E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reivindicação, aquela que lhes dará um pedaço de terra para cultivar… Os dias foram mais do que os 60 imaginados por Jango e a oportunidade da reforma agrária mais uma vez abortada: os emissários do retrocesso tocavam as trombetas da ditadura. Ela veio sombria, mordaz e cruel. Punindo com a prisão e morte os lutadores do povo brasileiro. Muitos, desterrados e banidos, tiveram que fugir para outras paragens, outros países. Os que ficaram precisaram se encobrir no véu do anonimato, alguns empunhando armas no interior da Amazônia, às margens do Araguaia… No campo, os movimentos populares abafados, se dissipam com a investida militar, de coturno e boina. Logo após a derrocada de Jango não se pensava que surgiria uma lei que tratasse do tema, mas ela veio. O Estatuto da Terra, de 1964, apareceu como uma legislação moderna, até progressista, mas no mundo real e cotidiano autoritário se configurou como instrumento estratégico não para mexer na estrutura fundiária do país, mas para controlar as lutas sociais e desarticular os conflitos por terra. Anos se passam e os golpistas sabem que é preciso consolidar seu poderio, nas cidades e no meio rural. É preciso criar formas para desbravar o imenso país, dar “unidade” ao continente Brasil, principalmente a região amazônica, tão inóspita e esquecida. Eis que, em 1970, num sopro de conservadorismo e progresso (sob a égide de leis incrivelmente avançadas para seu tempo, pelo menos no Brasil), e da fusão de dois órgãos anteriores – Inda e Ibra –, surge o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – o Incra. A grandeza do instituto não é maculada pela torpeza de seus criadores, tanto que sobrevive a eles (com idas e vindas, é verdade!). Os primeiros anos do Incra 207 208 Nead Especial 2 são priorizados em apenas uma palavra que compõe seu significado: a colonização. Mais que qualquer outra coisa ela foi ponto principal das ações iniciais do órgão. Como um de seus resultados, a criação de várias cidades, colonizadas, literalmente, por seus servidores. Principalmente na região norte do país. Os anos se passam e a redemocratização do Brasil se configura como uma fatalidade irreversível, finda os anos 1970. Aqui, permitam-me leitores, abro parênteses para o ano de 1978, onde começam as primeiras manifestações pré-abertura política (via metalúrgicos do ABC) e confesso que alegremente, também é o ano de nascimento do escriba que vos redige esta reflexão agrária: eu. A alvorada dos anos 1980 se transforma em um laboratório de possibilidades democráticas. A sociedade civil começa a se organizar nas suas infinitas frentes, e a camponesa é uma das mais fortes. O Incra passa por grandes transformações e, logo após a primeira eleição (indireta, é verdade…) de um não-militar, é concebido, pelas forças progressistas – incluídas aí parte do Estado e sociedade –, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que visava massificar a reforma agrária no país. Mas, antes de avançar um pouco mais na história, é preciso ressaltar a importância dos movimentos sociais do campo nesse processo de redemocratização, incluindo aí os avanços no próprio Incra. Não fosse a pressão dos movimentos, muitas vezes criminalizados por setores da elite brasileira (impossível não lembrar dos grandes veículos de comunicação que compõem a mídia nacional), que sempre abominaram a idéia de reforma agrária. A letargia poderia ter comprometido totalmente as iniciativas do Estado sobre a questão, coisa que infelizmente, em alguns momentos, aconteceu. É preciso que tenhamos hombridade para dizê-la. Até porque, na dialética dos tempos, nem só de fatos aparentemente positivos é feita a história, principalmente a história agrária brasileira. Muitas mortes e uma incessante luta entre o latifúndio e trabalhadores rurais sem-terra manchou (e ainda mancha) os anais de nosso país. O Incra é peça fundamental para cessar tais iniqüidades, mas, como bem sabemos, não é o único. Sociedade organizada é sinônimo de Estado fortalecido, de políticas públicas palpáveis, de democracia real. Com o PNRA muito do que era esperado há décadas começou a tomar forma palpável, o ambiente de redemocratização do país também favorecia tal cenário que, com o passar do tempo, se modificou. O final da década de 80 e começo Memória Incra 35 anos dos anos 90 não foi nada positivo para o Incra, o processo de globalização neoliberal com o viés privatizante atingiu em cheio o órgão responsável pela reforma agrária no país. Uma das medidas iniciais do primeiro presidente eleito diretamente pelo povo no Brasil foi extinguir, gradativamente, as funções do Incra, desrespeitando sua história e o que é pior, o processo de reforma agrária que ora se encaminhava. Mais alguns anos e o desmonte era iminente. O número de servidores diminuía e a infra-estrutura básica de funcionamento também diminuta e escassa. Pouca gente, poucas salas, poucos computadores, poucas viaturas e muito, muito desânimo. O Incra estava prestes a se transformar em uma agência (ou coisa parecida), em uma sombra do que foi outrora, mais alguns anos nesse ritmo e pronto, iríamos ver a extinção da instituição responsável pela reforma agrária no Brasil. Um pequeno salto na história, quando o vento sopra novamente favorável à questão agrária em nossas terras tropicais. Após um grande refluxo de iniciativas positivas, em novembro de 2003 é lançado o II PNRA, e com ele uma série de iniciativas que visavam reestruturar e recuperar o órgão que passara por tanta indiferença e descaso. No ano seguinte é lançado o edital do primeiro concurso do Incra depois de muitos anos com o jejum de novos servidores. Na nova safra de jovens (e experientes) que adentraram no órgão, eu me incluo solícito. Em breve outros novos servidores também farão parte dessa jornada, agora no maior processo seletivo que o Incra já pensou em realizar. Tenho cá com meus botões algumas convicções, dentre elas, a de que a reforma agrária é fundamental para a democracia brasileira, para o fim de uma série de desigualdades existentes em nosso país. E dentro das contradições incranas, eu, uma peça na estrutura, prefiro encará-la com o desejo de transformação radical da sociedade, onde mais do que dar terras e créditos para trabalhadores rurais que encontram sua oportunidade na reforma agrária, possamos, também, semear sonhos no chão da dura realidade brasileira. 209 18 Nós fazemos a reforma agrária E l i n e y P e d r o s o Fau l s t i c h Inicio esta reflexão expressando o desejo da maioria daqueles que trabalham ou trabalharam no Incra; deram à causa da reforma agrária grande parte de suas vidas, seja na sede em Brasília, nas superintendências regionais, que já foram coordenadorias, seja nos projetos de assentamento, de colonização; enfim, na cidade ou no campo, está mais do que na hora de deixarmos de ver estampada nos jornais ou veiculada na mídia falada e televisada declarações de políticos ou de segmentos da sociedade brasileira, ou de organizações não-governamentais e até de estrangeiros, de que a reforma agrária não está sendo feita no país ou, pior que isto, que ainda não se fez reforma agrária em terras brasileiras. Contra fatos não há argumentos, diz um dito popular, utilizado até na esfera da justiça. Por isso afirmamos: Nós fazemos a reforma agrária. Antes mesmo de falar das realizações, é oportuno citar a afirmação do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, aos servidores do Incra, por ocasião do 35o aniversário do órgão: Todos se perguntarão se, ao longo dos últimos 35 anos, o Incra ajudou ou não a construir um País mais inclusivo e democrático. Para nós, esta é uma pergunta de fácil resposta. Em três décadas e meia, como instituição civilizatória que é, o Incra assentou mais de 550 mil famílias, criando uma nova perspectiva de paz e prosperidade no campo. Destas, 117 mil foram assentadas nos últimos dois anos numa área somada de 9 milhões de hectares. Repartiu terra e cidadania. Tornou, portanto, mais justo um país ainda profundamente injusto. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária comemora, 35 anos de existência, mas não há como falar da reforma agrária – uma forma de distri- Memória Incra 35 anos buição de terras – somente a partir da criação deste órgão. É preciso rememorar a história do Brasil para, então, sentirmos a importância de que se reveste a ação desse instituto para a sociedade brasileira e, sobretudo, para o Brasil. Ocupação territorial Com apenas 505 anos de existência nosso país, relativamente novo, tem muita história, mas pouquíssimos registros. Chegamos ao ponto de termos registros e documentos históricos em países como Estados Unidos, Inglaterra, França e até mesmo Portugal sobre os quais nos era negada consulta. Ocupado pelos índios, espalhados pelo imenso território totalmente desconhecido dos primeiros habitantes brancos, o país começou a ser ocupado e explorado pelo litoral onde foram sendo construídas aldeias, vilas, povoados e finalmente, cidades. Portugal imaginava a grandeza territorial da sua colônia, mas não encontrava adesões suficientes para uma melhor ocupação territorial. Pouquíssimos eram os portugueses que ousavam abandonar a vida na Corte, em Lisboa, e aventurar-se além-mar. Foi assim que D João III, rei de Portugal, de 1534 a 1536, resolveu dividir o paíscontinente em 14 regiões administrativas intituladas capitanias hereditárias. Eram grandes faixas de terras que iam do litoral até a linha do Tratado de Tordesilhas a quem, por carta de doação, o monarca português nomeava donatário com o privilégio de administrar a terra e, por meio de forais, determinava-se os direitos e seus deveres como donatário. A esses poderosos donos de terras competia fundar vilas e cidades; cobrar impostos; fazer concessão parcial de terras (sesmarias): explorar por tempo determinado um pedaço de terra. Em contrapartida tinham por obrigação, ou dever, atender aos pedidos da metrópole, administrar e povoar o território. O sistema não deu certo pela grande distância da metrópole, pela falta de comunicação entre as capitanias, ataques dos índios e péssimos administradores. O insucesso do sistema redundou com a extinção da última capitania, em 1759, por ato do Marquês de Pombal. O regime de capitanias hereditárias mostrou-se frágil e efêmero, pois ele destinava-se simplesmente a garantir a Portugal, a posse do país, mas em se tratando de sistema de posse e uso da terra ele não teve grande significado ou 211 212 Nead Especial 2 importância. Durante esse período, dado o fracasso do sistema, proliferaram as doações de terras a portugueses e seus descendentes na forma de Sesmarias cujo instituto marcou de modo definitivo a nossa estrutura fundiária. Estas doações resultaram no surgimento dos primeiros minifúndios e latifúndios. Em síntese, a Carta de sesmaria, era a doação de terra ao sesmeiro para que o mesmo a fizesse produzir e quando a terra não era aproveitada conforme a intenção dos reis de Portugal isto é, por inadimplência ao contrato, a posse da terra retornava à coroa portuguesa. Estas terras recuperadas ou devolvidas, e também terras que não haviam sido doadas foram classificadas de terras devolutas. Foi também nesse período que ocorreram as primeiras transações imobiliárias, de início com a autorização da Corte em Portugal e, posteriormente, com a instalação do reinado no Brasil, passaram a ser feitos em nossos primeiros cartórios os registros de terras. A proliferação de latifúndios continuou com o crescimento e conquista do território nacional pelos nossos bravos bandeirantes. Em 1822, com o advento da independência do Brasil, por decisão do príncipe regente D. Pedro I, ocorreu o encerramento do período sesmarial. Este período foi consolidado por ato dando posse de terras a um posseiro e suspendendo as Cartas de sesmarias que estavam para serem doadas até que ocorresse a convocação de Assembléia Geral Constituinte e Legislativa. O decreto de D. Pedro I registrou: “… fique o suplicante na posse das terras que tem cultivado e suspendam-se todas as sesmarias futuras, até a convocação da Assembléia …” Este período durou 28 anos até que, em 28 de setembro de 1850, foi editada a Lei no 601, quando, segundo os historiadores, pela primeira vez tratou-se com o devido respeito e propriedade o instituto das terras devolutas. Pelo ato do imperador garantiu-se a legitimação das posses mansas e pacíficas; ao Império ficou reservada a faixa de fronteira; autorizou-se o governo a vender terras públicas; foi instituído o registro paroquial; previu-se a discriminação de terras e proibiu-se a aquisição de terras devolutas por outro título que não fosse a posse por compra. A Lei de Terras privilegiou quem tinha poder econômico, que pudesse adquirir a terra através da compra e do registro em cartório. A grande extensão das terras devolutas, a dificuldade de acesso a elas e a falta de recursos para sua demarcação e fiscalização demonstraram que a União não tinha condições de cumprir a própria lei, portanto persistiu o problema. Memória Incra 35 anos Em 1891, já constituída a república, a nova Constituição transferiu as minas e as terras devolutas para posse dos estados cabendo à União, apenas as faixas de fronteira e os terrenos de marinha. Vimos até aqui que a questão fundiária, com a preocupação do social não ocorreu de maneira significativa, se ocorreu, talvez tenha sido subliminarmente. A ênfase foi a colonização oficial visando a economia, o crescimento do país para alargamento de fronteiras de exportação dos nossos produtos agrícolas. Já no final do Império foram criados os primeiros núcleos coloniais onde os colonos eram, na maioria, imigrantes europeus, exemplo seguido no início da República, a maioria deles fadada ao fracasso. Uma segunda fase de criação dos núcleos de colonização foi levada a termo, pelo presidente Getúlio Vargas, que instituiu em 1930 o projeto Marcha para o Oeste, com o objetivo de ocupar o oeste brasileiro com assentamento de agricultores brasileiros (colonos) para, em Mato Grosso, produzir alimentos ocupando dessa forma, espaços vazios do nosso território. Esta ação se resumia como sendo a expansão do Brasil dentro de suas próprias fronteiras, pelo cultivo do solo; o brasileiro dominando a natureza, conhecendo sua terra e ficando cada vez mais integrado nela. No projeto ocupacional com a criação de várias colônias agrícolas federais privilegiou-se o agricultor sulista, pois Getúlio, também sulista, via aquele trabalhador como alguém de visão de prosperidade. O colono tinha a promessa da posse definitiva da terra após três anos de ocupação e trabalho nela, mas infelizmente o resultado final desse processo foi uma forte especulação das terras. Os que não tiveram progresso venderam suas glebas para os que venciam na terra, daí vingando a proletarização da sua mão-de-obra. No entanto, a partir desses núcleos coloniais surgiram algumas cidades, entre elas, Dourados. Entre as constituições de 1891 e 1934 a aquisição de terras já não se caracterizou em função da morada habitual, isto é, pela sua real ocupação e exploração efetiva e sim por requerimentos. Não havia dispositivo legal que limitasse as dimensões de terras; muitas foram adquiridas em tamanho superior às sesmarias. Assim, formavam-se latifúndios improdutivos pelo ajuntamento de propriedades que, em grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro eram negociados a preços elevados. 213 214 Nead Especial 2 O despertar dos camponeses Em meados da década de 1940 surgiram em quase todos os estados brasileiros, com o apoio e sob dependência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), as Ligas Camponesas, mais precisamente por volta de 1945, num forte e significativo movimento de organização política dos camponeses que resistiam à expulsão da terra e à expropriação, sobretudo esses trabalhadores do campo recusavam o regime salarial. O descontrole na concessão de terras, um verdadeiro abuso, durou até o fim do Estado Novo e a reação dos camponeses à política fundiária estava cada vez mais forte. Assim, em 5 de setembro de 1946, foi editado o DecretoLei 9.760, que disciplinou as formas de acesso às terras públicas e passou a regular a discriminação de terras. Mas, a reação persistia e considerando a posição do PCB à retaguarda do movimento campesino, em 1947, o governo decretou a ilegalidade do Partido e com a repressão generalizada, as ligas foram violentamente reprimidas pela polícia do governo, bem como pelos próprios fazendeiros e seus jagunços. Apesar da repressão, as ligas ressurgiram em 1954, inicialmente em Pernambuco. O movimento continuou ganhando força principalmente nos estados nordestinos. Na clandestinidade, ainda naquele ano, o Partido Comunista criou a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (Ultab) organizando os camponeses em todo o Brasil. Além da Liga Camponesa e da Ultab, outros movimentos surgiram no país entre os quais o Movimento dos Agricultores sem-Terra (Master), com apoio do PTB; o Serviço de Assistência Rural, o Serviço de Orientação Rural e a Frente Agrária Gaúcha, (movimentos da ala conservadora da igreja católica) e o Movimento de Educação de Base, representando a ala progressista da igreja, tendo a frente a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A criação de um órgão federal que concentrasse a atribuição de cuidar da imigração, colonização e reforma agrária (embora muito tímida) ocorreu por ato de Getúlio Vargas, em 5 de janeiro de 1954. Com a finalidade de absorver as atribuições do Conselho de Imigração e Colonização – ligado ao Departamento Nacional de Imigração, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio –, e da Divisão de Terras e Colonização – vinculada ao Ministério da Agricultura. Foi criado o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic). No ano seguinte, em 23 de Memória Incra 35 anos setembro de 1955, Café Filho, que sucedeu Getúlio Vargas criou o Serviço Social Rural (SSR), uma autarquia ligada ao Ministério da Agricultura. Como defesa contra as organizações campesinas, tentando acalmar o grito do campo, em 1956, o governo editou a Lei 3.081 disciplinando o processo discriminatório para terras federais, estaduais e municipais, mas isso não foi a solução. O movimento no campo cresceu até que em 1962 encontros e congressos foram realizados para criar uma consciência nacional em favor da reforma agrária. Pensava-se ou sonhava-se com uma reforma agrária radical com luta para erradicação do monopólio de classe sobre a terra. Os camponeses resistiram e começaram a ocupar terras. Novamente o governo se sentiu em cheque e em 11 de outubro de 1962 criou a Superintendência de Política Agrária (Supra), absorvendo as atribuições do Inic e do SSR. Estatuto da Terra Até agora, somente na rápida introdução deste artigo e na breve referência à organização e luta dos camponeses, nós citamos a reforma agrária brasileira. Este era um grito forte que se ouvia no campo onde os agricultores estavam se organizando em ligas camponesas, desde 1945 para pressão contra o Estado Novo e aos governos que o sucederam, até repercutir de forma explosiva no Congresso Nacional e no próprio Palácio do Planalto. A situação política no país após a renúncia de Jânio e a ascensão de Jango com amplo apoio da Liga Camponesa, sindicatos e movimentos sociais provocaram forte reação dos militares que, em março de 1964, assumiram o poder, na conhecida revolução brasileira. A par das cassações políticas, perseguições que ocorreram naquele início de governo ditatorial essa mobilização e organização e sua motivação finalmente vingaram, digamos, foram consideradas pelo governo militar que nomeou um grupo de trabalho para cuidar do assunto. Em 30 de novembro de 1964 o governo brasileiro sancionou a Lei 4.504, instituindo o Estatuto da Terra regulando os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para fins de execução da reforma agrária e promoção da política agrícola do Brasil. 215 216 Nead Especial 2 O Estatuto da Terra consagrou o princípio do uso da propriedade rural condicionando-o à sua função social deliberando: A propriedade da terra desempenha a sua função social quando simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labuta, assim como de suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais renováveis; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam. Com o advento do Estatuto da Terra, lei que definiu os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da reforma agrária e promoção da política agrícola. (art. 1o) o governo se viu na necessidade de criar órgãos para promover a Política Agrícola mediante o emprego de medidas que proporcionasse a harmonização das atividades agropecuárias com o processo de industrialização para o fortalecimento da economia rural, citada no segundo item do mesmo artigo. Com esta intenção criou o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) e o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) que trabalharam lado a lado, de maneira bastante deficitária, durante seis anos. Ao final desse período, o governo reconheceu que ambos não tinham recursos materiais e humanos para cumprirem sua finalidade, isto é, executarem as atividades a serem desenvolvidas no setor agrário pelo poder público. Decidiu-se, então, pela criação de um órgão com atribuição, competência e responsabilidade para expandir-se de forma gradual, em função de legislações que adviriam e que já estavam em fase de elaboração como o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). Assim, pelo Decreto-lei 1.110, de 9 de julho de 1970, fundiu-se o Inda e o Ibra criando-se o Incra, hoje comemorando 35 anos de atuação e realizações. A reforma agrária O próprio Estatuto da Terra, no Item 1o, do Capítulo I – Princípios e Definições, define a questão reforma agrária da seguinte forma: “Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.” Memória Incra 35 anos Críticos afirmam que não se fez reforma agrária no Brasil. Ignora-se, principalmente o período de 1964-1985, da edição do Estatuto da Terra à data da instalação da considerada Nova República e até mesmo o passado recente -1985-1995- período encerrado com a instalação do governo neoliberal. Essa crítica é para a maioria dos que trabalharam e trabalham no Incra, totalmente descabida, pois desrespeita o trabalho dispensado por todos e os resultados até então obtidos. É uma crítica que procura apagar uma parte da história do povo brasileiro e de suas instituições oficiais. Apagar exatamente parte da nossa história, que foi muito prejudicada com registros falhos ou distorcidos e com o extravio ou desaparecimento de documentos-registros importantes, localizados em outros países como citamos anteriormente. O Incra Como é sabido ainda hoje persiste uma aberração do nosso sistema fundiário, a existência do latifúndio improdutivo, uma minoria de brasileiros sendo detentores de grandes proporções de terra, muitas vezes mantida para fins de especulação imobiliária e econômica, sem a exploração devida, sem cumprir sua função social: produzir, manter empregos, gerar renda… Quando o Incra foi criado esse fato já incomodava toda a sociedade brasileira, em particular os trabalhadores do campo e até o governo. O êxodo rural era uma constante, inchando as periferias das grandes cidades. Com tanta terra disponível e mão-de-obra em quantidade para trabalhar no campo, estávamos a importar cada vez mais alimentos. Em verdade as terras não consistiam apenas no latifúndio improdutivo e especulativo, mas também milhões de hectares de terras devolutas. Com fundamentação no Estatuto da Terra, o governo Federal utilizando-se do Incra o executor da política de reforma agrária – aliado à necessidade de ocupar grandes vazios demográficos – optou por duas linhas de ação: a regularização fundiária, daí, legalizando em ampla escala as propriedades ocupadas, de maneira mansa e pacífica, utilizando o usucapião. A segunda, assentar colonos em projetos a exemplo dos de colonização. Neste caso criou Projetos Fundiários (PF), Projetos de Assentamento Dirigido (PAD) e Projetos Integrados de Colonização (PIC). Uma das filosofias usada foi a de integrar “os homens sem terra do Nordeste com as terras sem homens da Amazônia.” Na prática, verificou-se que a maior 217 218 Nead Especial 2 parte das famílias deslocadas para a região procederam do sul do país, (RS e SC) e não do Nordeste. Estudos posteriores demonstraram que o custo do programa foi alto, o número de famílias beneficiadas reduzido e o impacto sobre a região insignificante. Avaliação de estudiosos consideram que os projetos de desenvolvimento implantados pelos governos militares levaram ao aumento da desigualdade social. Suas políticas aumentaram a concentração de renda, conduzindo a imensa maioria da população à miséria, intensificando a concentração fundiária e promovendo o maior êxodo rural da história do Brasil. Sob a retórica da modernização, os militares aumentaram os problemas políticos e econômicos, e quando deixaram o poder, em 1985, a situação do país estava extremamente agravada pelo que fora chamado de “milagre brasileiro.” Consideram, ainda, que o avanço do capitalismo no campo aumentou a miséria e provocou a concentração e acumulação de riqueza, transformando o meio rural pela modernização tecnológica de alguns setores da agricultura, com a mecanização e a industrialização. Isso acabou por expropriar e expulsar os trabalhadores rurais da terra, causando o crescimento do trabalho assalariado e produzindo um novo personagem da luta pela terra e na luta pela reforma agrária: o bóia-fria. Curiosamente, grande parte dos que defendem esta tese, ao que parece, ainda pensam no Brasil dividido apenas em pequenas e médias propriedades rurais com os trabalhadores rurais, sejam camponeses, sejam campesinos, sejam agricultores, apenas trabalhando a terra na base das ferramentas rudimentares e utensílios como o arado manual ou por tração animal. Nada de arados mecânicos, semeadeiras, colheitadeiras. Afirmam: “Em seu pacto tácito, os militares e a burguesia pretendiam controlar a questão agrária, por meio da violência e com a implantação de seu modelo de desenvolvimento econômico para o campo, que priorizou a agricultura capitalista em detrimento da agricultura camponesa.” Esta não foi e não é a interpretação da maioria dos funcionários do Incra que trabalharam pelo homem do campo desde a criação do instituto há 35 anos e também daqueles que assumiram mais tarde seus empregos e executaram o programa de reforma agrária do governo durante o período militar até chegar à Nova República, em 1985. Não se pode ignorar os antigos territórios federais do Acre e de Rondônia que ascenderam à condição de estado com o crescimento e com o desenvol- Memória Incra 35 anos vimento proporcionados pelos projetos de reforma agrária naquelas regiões de onde surgiram uma série de municípios; os imensos espaços vazios foram ocupados e para garantia da segurança nacional ocuparam-se de forma segura as fronteiras com o Peru e Bolívia. Entre estas cidades lembramos Xapuri, Cruzeiro do Sul, Sena Madureira, Guajará-Mirim, Alta Floresta, Vilhena e Jaru. Os que repudiam a atuação do Incra, consideram o órgão incompetente, cabide de emprego e responsável pelo caos que se sucedeu no campo em razão de seguidos insucessos de políticas governamentais. Fazem questão de ignorar ou não considerar uma gama de resultados positivos. Ignoram que a reforma agrária, dos sonhos e anseio nacional, não só dos agricultores e dos membros do Movimento Nacional dos Trabalhadores sem-Terra (MST), não foi viabilizada em razão das políticas econômicas e pela fraca atuação de muitos governos. É importante destacarmos que em 1985 no período intitulado Nova República, o presidente José Sarney elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) editado pelo Decreto no 97.766, de 10 de outubro de 1985, conforme preconizava o Estatuto da Terra, com metas ambiciosas: destinar 43.000.000 hectares de terras para assentamento de 1.400.000 famílias, ao longo de cinco anos. Para alcançar a meta criou o Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e a Reforma Agrária (Mirad). No final desse período, porém, foram assentadas apenas 89.950 famílias numa área dez vezes menor que a sonhada. Foi nessa ocasião que surgiu a União Democrática Ruralista (UDR), organização dos latifundiários criada para defender seus privilégios e interesses. Em 1988, essa organização conseguiu minar a criação de uma lei de reforma agrária no processo Constituinte e inviabilizou a solução para a questão agrária. Os agricultores na oportunidade, também expandiam o processo de territorialização do MST. Nas periferias das cidades, os sem-terra com o apoio da igreja católica, dos sindicatos de trabalhadores rurais e de partidos políticos, reunindo famílias para refletirem sobre suas vidas e as perspectivas de vida e trabalho, ao passo que faziam levantamentos das realidades da luta pela terra nos municípios, analisavam as conjunturas políticas por meio da construção de conhecimentos e tomavam decisões para mudar os seus destinos. O número acanhado e frustrante de quase 90 mil assentamentos refletia, à época, o forte embate político e ideológico que se travava na Assembléia Nacional Constituinte em torno da reforma agrária. Foi também na mesma ocasião, em 1987, que o governo que tinha meta tão ambiciosa e por que não dizer utópica, 219 220 Nead Especial 2 contrariamente ao próprio discurso, ao invés de dar força à reforma agrária, em um ato injustificável extinguiu o Incra órgão que estava a serviço da nobre causa. Transferiu a maioria de seus funcionários para o Ministério da Agricultura, ao qual atribuiu a execução da reforma agrária. Uma parcela bem menor de funcionários, principalmente os procuradores foram alocados no Inter, criado na ocasião. Mas, o governo Federal não contava com a organização dos funcionários do Incra constituídos na Confederação Nacional das Associações de Servidores do Incra (Cnasi) e nas suas 43 Assincras, associações afiliadas. Esses servidores uniram-se a entidades, partidos políticos, segmentos da sociedade e parlamentares pró-reforma que atuaram dia e noite no Congresso Nacional que, por meio de decreto parlamentar, em 29 de março de 1989 rejeitou o decreto-lei que extinguiu o Incra. No entanto, a falta de respaldo político e o irrisório orçamento mantiveram a reforma agrária semi-estagnada. Somente a partir da edição de Lei Agrária (Lei no 8.629/93) que regulamentou dispositivos da Constituição de 1988 referentes à reforma agrária, o Incra tomou novo impulso com a busca da transformação das terras obtidas em projetos de assentamento. Para a desapropriação por interesse social, a partir dos instrumentos legais instituídos com a promulgação da nova Lei Agrária e da Lei Complementar no 76/93, o Incra adotou como diretriz a priorização das ações nas regiões mais críticas em termos de concentração fundiária, da existência de terras ociosas – aproveitáveis para a agricultura – da incidência de tensão ou conflito social, da maior proximidade dos centros consumidores e de significativa demanda social por terras. A partir de 1994, com Fernando Henrique Cardoso, a reforma agrária torna-se uma política mais visível a partir dos novos tipos de projetos de assentamentos rurais, de acordo com a territorialização da luta pela terra e, também, com a regularização das terras de posseiros nas áreas de fronteira da Amazônia. Entretanto a ampliação da política neoliberal, implantada desde o governo Collor, a crise da agricultura ficou cada vez mais aguda, transformando muitos agricultores antes empregados ou trabalhando na terra como meeiros, em sem-terra. Em 29 de abril de 1996 o Incra foi vinculado ao Ministério Extraordinário de Política Fundiária ficando a política de reforma agrária vinculada diretamente à Presidência da República; em 14 de janeiro de 2000, o Decreto no 3.338, criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e, mais recentemente, em novembro de Memória Incra 35 anos 2003 o governo Lula lançou o II PNRA com meta de assentar 400.000 famílias; regularizar a posse de 500.000 famílias e beneficiar 150.000 famílias com o crédito fundiário. Estas metas são para 2003-2006. Em contraponto à afirmação de que não se realiza a reforma agrária no Brasil, apresentamos os dados do Incra que podem ser divididos em quatro períodos distintos O primeiro vai da criação da autarquia ao fim do governo militar (1970-1984); o segundo vai da Nova República ao governo Itamar Franco (1985-1994); o terceiro abrange o período neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o quarto que é o do período atual (2003-2005) o governo Lula, cujas raízes o identificam com o movimento dos trabalhadores rurais e movimentos de base. A ação do Incra Eis o resultado da ação do Incra, executando a reforma agrária sob ordem dos vários governos e sob pressão dos movimentos sociais e sociedade brasileira. No retrato acanhado do que foi a reforma agrária em 35 anos, serão apresentados dados em relação a assentamento, discriminação de terras, titulação e desapropriação. Assentamento de famílias de trabalhadores rurais No período 1970-1984, foram assentadas 166.189 famílias numa média de 11.870 famílias/ano. No período seguinte 1985-1994, o total de famílias assentadas chegou a 150.138 com média de 15.013 famílias/ano. De 1995-2002, foi registrado um grande salto: atingindo 524.080 famílias com média anual de 65.510 (aqui registramos os dados reconhecidos atualmente pelo Incra e MDA constantes do II PNRA); No último período de 2003-2005 foram assentadas 117.555 famílias. Total: 957.962 famílias assentadas. Considera-se no primeiro período que os agricultores foram assentados em PF’s, PAD’s e PEC’s, num total de 131.317 famílias; e o Proterra e convênios assentaram 34.317 famílias. Discriminação de terras O processo de discriminação de terras consiste na separação das terras devolutas das privadas, promovendo-se daí, a arrecadação de terras em nome da União, 221 222 Nead Especial 2 com seu registro em cartório. De 1970-1984, o procedimento discriminatório era mais utilizado, para atender à diretriz de se ocupar espaços vazios no processo de colonização oficial tendo sido discriminados 124.198.306 hectares. Nos períodos seguintes, esse processo passou a ser menos utilizado, em virtude da ênfase dada ao processo de desapropriação por interesse social em terras ociosas, que não cumpriam sua função social. Assim, de 1984 a 1985 foram discriminados 6.966.922 hectares de 1995 a 1999, 3.439.106 hectares. Total: 134.604.329 hectares discriminados. Titulação de terras Quanto à titulação de propriedades há que se destacar que ela pode ser definitiva ou provisória. E havia uma particularidade nos projetos de colonização onde também foram também tituladas áreas urbanas e para-rurais. Fato ocorrido no período de 1970-1984 quando foram outorgados 1.032.532 documentos, numa área de 61.987.741 hectares, estando aí contabilizadas emissões de títulos federais, estaduais e municipais pelos órgãos que atuavam no setor fundiário. Em 1985-1994 foram expedidos 221.506 documentos, em uma área de 5.347.781 hectares. Em 1995-1999 foram expedidos 47.790 documentos, em uma área de 3.169.844 hectares. Totais gerais: 70.505.366 hectares titulados e 1.301.828 propriedades tituladas. Desapropriação de terras Em relação à desapropriação de terras, no período 1970-1984, foi desapropriada uma média de 1,6 milhão de hectares.totalizando 23.365.519 hectares; o período seguinte, de 1985-1994, apresentou uma média de 1.415.489 hectares/ano, totalizando 12.739.407 hectares, fato que registra a menor atenção dada à reforma agrária e já de 1995-1999, essa média foi ligeiramente superior e ficou em 1,7 milhão de hectares totalizando 8.725.844 há; finalmente de 2003-2005 foram desapropriados 869.721 hectares. Total geral: 45.700.491 hectares desapropriados. Criação de Projetos de Assentamento Uma vez que os projetos de assentamento começaram a ser criados apenas a partir de 1995 dentro da nova linha de ação determinada pelo governo neoliberal. Registra-se que o relatório daquele governo (1995-2002) aponta a criação de Memória Incra 35 anos 9.034 projetos de assentamento, número fortemente questionado e o governo atual (2003-2004) criou 441 projetos de assentamentos. Total: 9.475 projetos de assentamento. Relacionamos apenas cinco itens referentes à ação do Incra, que fazem parte do amplo processo que classificamos como a reforma agrária. Abaixo destacamos três deles, a discriminação, a titulação e a desapropriação que totalizam 2.508.102 quilômetros quadrados. Este resultado é mais do que significativo, para contestar a afirmação de que no Brasil não é feita a reforma agrária. Vejamos : Discriminação de terras – Total: 134.604.329 ha = 1.346.043 km2 equivalente aproximadamente às áreas dos estados BA + MG + SC + PE Titulação de terras – Total: 70.505.366 ha titulados = 705.055 km2 Equivalente a aproximadamente às áreas dos estados a AC + RO + RR + RJ + ES Desapropriação de terras – Total: 45.700.491 ha = 457.004 km2 Equivalente aproximadamente às áreas dos estados CE + SE + RN + PB+ AP + AL + DF Observe-se que há áreas que estão em mais de um dos itens acima, o que não invalida a equiparação de áreas com os tamanhos dos estados citados. Encerrando a contestação, quanto aos resultados do órgão, destacamos algumas contradições: o ministro do Desenvolvimento Agrário citou mais de 550 mil assentados contando os 117 mil assentados pelo atual governo; o II PNRA aponta para 524.080 famílias somente naquele governo, entretanto, Fernando Henrique Cardoso chegou a divulgar quase duas vezes este número, dados que não consideramos. Há que se considerar, ainda, cerca de 316 mil assentados até antes de iniciar o governo neoliberal. O somatório dos totais que consideramos totalizam um universo de cerca de 958 mil famílias assentadas. Considerando que um casal brasileiro do campo ou do interior tem cerca de 2 ou 3 filhos número que reconhecidamente é bem maior na maioria delas podemos considerar que, na média as famílias dos agricultores devem ter cinco membros. Isto representa que o programa de reforma agrária assentou um universo de aproximadamente 4.780.000 brasileiros e con- 223 224 • • • • • • • Nead Especial 2 siderando a titulação de cerca de um milhão de propriedades os beneficiários diretos da reforma agrária nestes 35 anos deve dobrar dentro da mesma linha de interpretação. Assim, quase 10 milhões de brasileiros podem ser contabilizados como beneficiários do programa de reforma agrária. Se todos continuam no campo, trabalhando a terra ou se mantêm suas propriedades só um estudo mais profundo da realidade fundiária brasileira Além destas ações, lembramos que o órgão e seus funcionários foram responsáveis pela execução de um sem par de atividades de programas. Os projetos que antecederam os atuais projetos de assentamento tinham em sua maioria, escolas e postos de saúde com professores, enfermeiros e até mesmo médicos contratados pelo Incra, assistência técnica e rural. Para viabilização dos assentamentos, as propriedades precisaram de vistorias, demarcação com árduos trabalhos dos nossos técnicos de cadastro, topógrafos, engenheiros e trabalhadores auxiliares. Durante esses anos muito se investiu nestes projetos. Foram construídas casas, centros comunitários, armazéns, silos, açudes, tanques, sistema de irrigação, redes hidráulica e de energia elétrica. Milhares de assentados – agricultores e os familiares – têm participado de programas como o Pronera, Escola para todos e outros. Alguns têm sido beneficiados com o Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf ). Os beneficiários da reforma agrária e aqueles que se candidatam ao programa vem contando com uma série de benefícios que lhes proporciona uma melhor condição de cidadania a começar pelo período em que ainda estão acampados na luta pela sua terra. Recebem assistência jurídica, participam do Fome Zero e têm seus filhos incluídos no programa educacional. Encerrando este artigo destacamos as ações e programas que atualmente estão em execução: recuperação da capacidade produtiva e a viabilidade econômica dos assentamentos; criação de 2.075.000 postos permanentes de trabalho no setor; implementação do cadastramento georreferenciado do território nacional regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais; reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de comunidades quilombolas; garantir o assentamento dos ocupantes, não-índios, de áreas indígenas; promover a igualdade de gênero na reforma agrária; Memória Incra 35 anos • garantir1assistência técnica e extensão rural; • garantir capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas as famílias; • universalizar o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas reformadas. Continuamos convictos de que nós fazemos a reforma agrária e que – segundo o ministro Rosseto, o Incra ajudou a construir um país mais inclusivo e democrático. Além de assentar os milhões de agricultores, repartiu terra e cidadania tornando mais justo um país ainda profundamente injusto. Sim… nós fazemos a reforma agrária ! No Brasil estamos fazendo a reforma agrária. 225 19 Além da reforma agrária G e r a l d i n o G u s tav o d e Q u e i r o z T e i x e i r a Sempre se ouve a voz dos contrários à reforma agrária. Afinal, estão geralmente habitando os melhores lugares das cidades, alguns são donatários de grandes porções de terra, que nem sempre cultivam, outros clamam pela simples desinformação. Eles têm voz, têm contatos influentes, e têm medo do efetivo cumprimento da função social da propriedade. Fixam sua razão nos erros da reforma agrária refletidos nos altos índices de evasão nos assentamentos, no ocasional fracasso de algumas famílias que não lograram êxito nos seus empreendimentos. Não percebem que o assentamento para muitos foi a única real oportunidade que tiveram na vida e que o insucesso, nesses casos, merece inclusive ser comemorado. Ora! Quantos brasileiros morrem todos os dias sem ter oportunidade semelhante? A reforma agrária com todos os seus problemas de execução ainda é o melhor caminho para a inclusão social. A falta desta informação conduz ao paradoxo que leva, muitas vezes, trabalhadores rurais com-terra, minifundistas, a filiarem-se no sindicato patronal, engajando-se na luta anti-reforma agrária. Têm medo de perder a pouca terra protegida a largos esforços do assédio do latifúndio, e não querem para si a alcunha depreciativa de trabalhador rural, que revela um parentesco próximo dos sem-terra, tão atacados na mídia. Querem ser fazendeiros e ficar perto dos “grandes”, gozando das suas docilidades, desde que fiquem nos seus devidos lugares: subservientes. Os acampados às margens das estradas mostram não somente a carência da reforma agrária, mas revelam a necessidade de se promover um programa verdadeiro de combate à exclusão social. Afinal, quem levaria sua família para morar debaixo de uma lona preta, à margem da rodovia, na esperança de que um dia, o governo, com toda a sua burocracia, lhe conceda uma área de terra?Só quem realmente precisa, aceita essa condição. Memória Incra 35 anos Sob a sombra da lona preta se oculta o retrato mais primitivo da luta pela sobrevivência:- “aquele que se morre de velhice antes dos trinta e de fome um pouco por dia.” Lá residem ilusões e desesperos cotidianos, instantes de felicidade regados a gole de cachaça e gritos mudos de socorro que chegam aos tímpanos de uma sociedade acostumada e indiferente. Alguns, realmente, não são adaptados à realidade rural, mas querem uma oportunidade, apareça ela onde for. No meio deles existem uns poucos picaretas, os aproveitadores, mas esta espécie está disseminada por todos os lugares, faz parte do gênero humano. Os resultados da reforma agrária devem ser aferidos por quem vive e não somente por quem observa. São bem maiores que os milhões de quilos produzidos pela agricultura familiar que abastece a maior parte da mesa do brasileiro. Vão além, estão traduzidos em terra, moradia, escola, crédito, assessoria técnica e social, enfim, perspectivas de dignidade para quem nunca teve a esperança de ter plenamente nada.Não encerra em si mesma, vai além, é um instrumento de inserção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento humano. O público assentado tem muito que reclamar dos serviços da reforma agrária, afinal, o governo se desdobra para agradar a agricultura patronal voltada à exportação, porque precisa dos dólares e ao mesmo tempo, fazer a reforma agrária, porque também precisa combater a injustiça social. No antagonismo das escolhas, perde-se o foco e padece o mais fraco. Mesmo assim, temos avançado. A reforma tem chegado a milhares de famílias a cada ano, levando os seus benefícios, realizando sonhos, avançando além do ordenamento fundiário. É agrária porque no campo é seis vezes mais barato gerar um emprego que na cidade, e a agricultura familiar, frente a patronal, necessita de oito vezes menos área para gerar uma vaga empregatícia:- é mais competente em emprego e renda/hectare. No universo das razões para aprofundar a reforma agrária estão os resultados dos 35 anos de criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), cuja atividade no período demonstra o íntimo das prioridades dos governos, mas que ao longo do tempo avançou sob as pressões dos movimentos sociais e pela boa vontade do corpo funcional que se esforça para conceder a muitos brasileiros o direito de vislumbrar horizontes de oportunidades, que quase sempre se encontram invisíveis no país da desigualdade. 227 20 Reforma agrária como exercício de liberdade G i l b e r to Bamp i O presente trabalho visa contribuir com o concurso Memória Incra 35 anos, uma vez que se insere na perspectiva de reconstituição da memória do Incra não só como instituição, mas também de registro das experiências dos servidores que fazem parte, historicamente, da vida da própria instituição. Por esta razão, a exposição foi dividida em três partes. O item II trata da periodização da existência do Incra, como instituição do estado brasileiro, encarregada da execução da reforma agrária no país. O item III trata da abordagem de dois temas indissociáveis, ou seja, de reforma agrária e democracia. O item IV trata dos novos desafios, colocados pela conjuntura, cujo enfrentamento significa a ampliação dos espaços democráticos da sociedade, representados pelos assentamentos, entendendo a massividade da reforma agrária como um imperativo para transformar o campo brasileiro, cada vez mais, em espaço de exercício da liberdade no país. A periodização da existência do Incra Inicialmente, cabe assinalar o que se pode considerar como a missão do Incra, fazendo uma espécie de periodização da vida da instituição, ao longo desses 35 anos de sua existência. Sob o ponto de vista geral, pode-se entender que o Incra tem uma missão, como um organismo de Estado que intervém na questão agrária, no sentido de democratizar o acesso à terra no país. A história do Incra inicia-se em 1970, com a fusão do Ibra e do Inda. Estas foram duas instituições que resultaram do intenso processo de mobilização política Memória Incra 35 anos da sociedade brasileira, na década de 1960, que resultou no golpe de estado de 1964, tendo sido criadas pelo Estatuto da Terra, em novembro de 1964. O Estatuto da Terra, por sua vez, foi fruto da intensa reivindicação dos movimentos sociais do campo, quando o estado autoritário deu sua resposta a esses movimentos, sem, contudo, implementá-lo, até o advento da redemocratização do país. Em 1985, com o processo de redemocratização, a missão do Incra pôde, finalmente, se realizar, iniciando-se o processo de reforma agrária, apesar de seu alcance limitado, sem a massividade que a sociedade brasileira exigia e exige. No período de 1964 até 1985, basicamente as atividades do Incra se restringiram às ações nas áreas de cadastro e tributação, de regularização fundiária e de colonização, seja ela oficial ou particular. Somente a partir de 1985 verificou-se efetivamente, a implementação de um programa de reforma agrária no país, com o advento do I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Ao proceder uma periodização das ações do Incra, observa-se o período que se estende de 1964 a 1985, com ênfase nas ações acima citadas e, a partir de 1985, quando se completa o processo de redemocratização do país, criaram-se as condições para que, efetivamente, se implantasse, gradativamente, aquilo que tinha sido proposto no Estatuto da Terra, isto é, a extinção gradual do minifúndio e do latifúndio. O que é fundamental perceber nesse processo de mudanças pelas quais passaram as políticas públicas no Brasil voltadas à questão agrária? É evidente que a questão da missão do Incra sempre esteve voltada para a colonização, no período anterior, antes da redemocratização, sofrendo uma inflexão fundamental após 1985, iniciando-se o processo de reforma agrária no país. São dois períodos absolutamente claros, bem demarcados na história do Incra, e que refletem a correlação de forças política da sociedade brasileira, que permitiu o cumprimento efetivo da sua missão institucional somente a partir de 1985. É curioso verificar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que implementa o processo de reforma agrária, a partir de 1985. Por que isso? Porque o processo histórico no Brasil leva a reconhecer o país como sendo um dos que apresentam a maior desigualdade na distribuição da terra e da renda no mundo. Dados recentes mostram que o Brasil é o segundo país de maior desigualdade no mundo na questão da distribuição da renda e também, o país com a maior desigualdade regional do mundo. 229 230 Nead Especial 2 A questão da reforma agrária se coloca como uma necessidade da sociedade brasileira de promover a redistribuição da propriedade da terra, o que vai implicar, necessariamente, na redistribuição da renda, tanto em termos pessoais como em termos regionais. E, o que é mais importante, a redistribuição de poder político, na medida em que a reforma agrária significa democratizar o acesso à terra e criar espaços de liberdade, representados pelos assentamentos da reforma agrária. Isso tem, evidentemente, toda uma concepção teórica por trás, que coloca a necessidade de aprofundar a discussão sobre a visão dos dois tipos de vias de desenvolvimento capitalista na agricultura: a primeira, a via autoritária, baseada na grande propriedade e, a segunda, a via democrática, representada pela reforma agrária e pelo fortalecimento da agricultura familiar. Reforma agrária e democracia A via autoritária de desenvolvimento capitalista na agricultura é aquela que, infelizmente, se verificou, historicamente no Brasil. No Brasil, o processo de concentração da propriedade sempre esteve presente ao longo de sua história, desde as capitanias hereditárias, porque a apropriação do espaço no campo brasileiro sempre foi uma fonte de poder, principalmente no âmbito do modo de produção colonial escravista, que predominou na formação econômico-social até quase o final do século XIX. Essas especificidades do desenvolvimento capitalista no Brasil marcaram, indelevelmente, a origem da sociedade de classes no país, tendo sido o último país do mundo a abolir a escravidão, nódoa que as elites brasileiras jamais apagarão de sua história, uma vez que se articulavam com as elites dos países centrais, as quais (pasmem), recriaram o modo de produção escravista, durante o processo de acumulação primitiva do capital em nível mundial. O desenvolvimento e expansão da grande propriedade no campo no Brasil, primeiro com a plantation da cana-de-açúcar, em Pernambuco e em São Paulo, em seguida com o “ciclo do ouro”, em Minas Gerais, e, após, com a expansão do café, em São Paulo, todas inseridas no modo de produção colonial escravista, resultado do processo de acumulação primitiva do capital em nível mundial, é uma marca e uma especificidade do desenvolvimento capitalista autoritário no Brasil. É, precisamente, ao longo da segunda metade do século XIX que se verifica, no Brasil, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, com a imigração de Memória Incra 35 anos colonos europeus, principalmente para a parceria do café, em São Paulo, tendo a Lei de Terras de 1850, representado aquilo que Antônio Cândido caracterizou como sendo a transição de um modo de produção com “terras livres para homens cativos,” para um outro, com “homens livres para terras cativas.” O longo período histórico, que se encerra na segunda metade do século XIX, marcou, indelevelmente, a constituição da sociedade de classes no Brasil, em que a terra concentrada em poucas mãos configurou as classes sociais que nela tinham a sua fonte de poder político, de corte nitidamente autoritário. Não é para menos que os especialistas em desenvolvimento econômico e social comparado desenvolveram a concepção de que a democracia e a ditadura têm suas origens sociais no modo em que, historicamente, se constituíram as classes sociais em sociedades de base agrícola, o que reafirma a tese de que quanto mais concentrada a terra, maior a concentração do poder político, o que explica grande parte da história brasileira, marcada, profundamente, pela predominância dos regimes autoritários. Portanto, a história política do Brasil, até o final do século XIX, é uma história de períodos de regimes autoritários, apesar de, nos países de industrialização originária, como a França, por exemplo, a democracia burguesa se tenha consolidado desde a Revolução Francesa, em 1789, cujo traço fundamental foi a democratização do acesso à terra pelos camponeses, sob o impulso das forças produtivas da Revolução Industrial, que transformou a França, por esta razão, no país campeão mundial da agricultura familiar. A França é o país mais democrático do mundo, graças à sua base produtiva desconcentrada no campo, que já fez sua reforma agrária, há mais de duzentos anos, o que por esta razão, torna aquele país campeão mundial da liberdade. Quanto ao Brasil, mesmo ao longo do século XX, é um país que viveu poucos períodos democráticos, mesmo de democracia representativa, de alcance limitado, com liberdades democráticas e direitos civis absolutamente limitados. Ao se reconstituir a história percebe-se que, basicamente, a experiência do Brasil é uma experiência marcada pela vigência de regimes autoritários, graças à configuração de suas classes sociais, mesmo durante a transição de uma sociedade de base agrícola para uma de base industrial, que, curiosamente, dá um salto de qualidade justamente na grande depressão do capitalismo central, em 1929, quando a Revolução de 30 explode no país, marcando o fim da República 231 232 Nead Especial 2 Velha e a reorganização da sociedade civil, bem como o rearranjo de sua base produtiva e de sua reinserção na divisão internacional do trabalho, como um país que se industrializa rapidamente. A Revolução de 30, considerada por alguns autores como a revolução burguesa no Brasil, que marca a transição de uma sociedade de base agrícola para uma de base industrial, nada mais foi do que um pacto de elites, em que o Estado tomou à frente do processo de industrialização, face à fragilidade da burguesia industrial emergente. Isto corrobora a tese de muitos autores, de que quanto mais retardatária, ou tardia, a industrialização de um país, mais o Estado intervém na atividade econômica, dado o caráter do desenvolvimento desigual e combinado de que se reveste o desenvolvimento desses países. Evidentemente que o caso do Brasil é um caso de industrialização tardia, que se verifica apenas na primeira metade do século XX, considerado, por alguns autores, como país de quarta geração. Apesar do extraordinário crescimento industrial do país, ao logo do período de 1930 a 1945, ao nível político, o país foi marcado pela ascensão de regimes autoritários, especialmente do Estado Novo, que visava manter sob controle os trabalhadores emergentes da indústria, que experimentou um segundo salto de industrialização após a Segunda Guerra mundial, que, curiosamente, se dá no momento de fragilidade do capitalismo central. O período de maior prosperidade industrial se deu, exatamente no período de 45 a 64, marcado pela vigência da democracia representativa, que se encerra, com a agudização da questão agrária no Brasil, por um período de 20 anos, de 64 a 85, pela emergência dos movimentos sociais organizados no campo brasileiro, reivindicando, por um lado, uma reforma agrária massiva, que se traduz no Estatuto da Terra, e, por outro, o reconhecimento dos direitos trabalhistas do campo, que se revela na promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. Mas por que, no caso brasileiro, a questão agrária só aflora na década de 1960, depois de 30 anos de industrialização tardia? Porque o Brasil – por ser considerado um país de industrialização tardia, que transita de uma sociedade de base agrícola para uma de base industrial, tão-somente na década de 1930 – não resolveu a questão da distribuição extremamente desigual da terra, que, curiosamente, se concentrou ainda mais com o processo de industrialização do próprio campo. E porque não resolveu a questão agrária, somente em 1960 Memória Incra 35 anos é que vão se agudizar os conflitos, impulsionados pela organização crescente dos movimentos sociais no campo. Nesse contexto, o que é a história do Incra, a missão do Incra, senão a de um organismo do Estado brasileiro, no sentido de promover a democratização do acesso à terra, de promover diferentes formas de apropriação democrática da terra, na medida em que os conflitos se agudizam? E ainda mais, quando a questão agrária foi enfrentada, a partir de 1985, se assiste à ascensão das forças reacionárias do campo, representadas pela União Democrática Ruralista (UDR), que se opõe ao Movimentos dos Trabalhadores sem-Terra (MST), assim como, de forma mais moderada, ambas representando interesses antagônicos, se opõem a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e a Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag). Neste sentido, a tese que aqui é defendida se traduz no enfrentamento cada vez mais agudo entre os representantes da agricultura familiar, de um lado, com os interesses da agricultura patronal, de outro. Até mesmo o Estado brasileiro se encontra dividido, refém da agudização dos conflitos sociais no campo, tendo sido necessária a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), no início do século XXI, para atender às reivindicações do MST e da Contag, enquanto a agricultura patronal se organiza em torno do Ministério da Agricultura, atendendo às reivindicações da UDR e da CNA. Neste sentido, o Estado brasileiro está diante de um dilema de difícil solução, pois apesar de ter sido inaugurada uma fase de democracia representativa no Brasil, a partir de 1985, é cada vez mais forte a tensão entre estes dois pólos de disputa de poder no campo, com o MST impulsionando as transformações necessárias para democratizar o acesso à terra no país. Vale dizer, a questão agrária no Brasil ainda não está resolvida, razão pela qual cresce a responsabilidade do Estado brasileiro, no sentido de dirimir conflitos, mas ao mesmo tempo, impulsionar as transformações que a sociedade deseja. Mesmo assim, o governo democrático e popular do presidente Lula tem conseguido avanços significativos, na disputa de recursos públicos, seja para implementar o II PNRA, seja para fortalecer a agricultura familiar. Estes avanços, no entanto, devem continuar a ser perseguidos, pois a legislação agrária do país, curiosamente, tem avançado nas últimas décadas, tendo sido a reforma agrária insculpida num Capítulo da Constituição Federal de 1988, apesar de alguns retrocessos localizados, relativos à legislação infraconstitucional. 233 234 Nead Especial 2 O problema que permanece é que a questão agrária não está resolvida, demandando mais ousadia por parte do governo, no sentido das transformações que a sociedade está a exigir. E o incra se coloca no olho do furacão, tendo a consciência, por um lado, de seu papel estratégico nestas transformações, mas cujo avanço é, constantemente, emperrado pelos opositores de transformações mais profundas. Nesse sentido, nada mais oportuno que identificar as necessidades de avanço, tanto da reforma agrária, quanto da agricultura familiar, no sentido de impulsionar a via democrática de desenvolvimento do capitalismo no campo, papel central do Incra nessa conjuntura. Em outras palavras, trata-se de concentrar esforços nas ações consideradas estratégicas para a reforma agrária, pois a conjuntura política do país, em particular, e da América Latina, em geral, apontam nesta direção. A missão do Incra, portanto, que é fruto da correlação de forças políticas da sociedade, só se pode desenvolver plenamente na medida em que esta correlação de forças favoreça a implementação de uma política pública capaz de dar conta da expansão da via democrática de desenvolvimento da agricultura, procurando romper com o seu passado histórico, pois este passado sempre levou à concentração da propriedade, da renda e do poder no campo. A reforma agrária vai, portanto, exatamente, no sentido oposto do processo histórico verificado no Brasil, isto é, no sentido da sua redistribuição. Portanto, o papel histórico do Incra tem sido o de implementar a via democrática de desenvolvimento capitalista no campo brasileiro, ora com ênfase em um instrumento, ora com ênfase em outro. Ao se recuperar a história do Incra, um de seus momentos mais extraordinários ocorreu, precisamente, com o advento da redemocratização, através da implementação, ainda que modesta, do I Plano nacional de Reforma Agrária (I PNRA). E os funcionários que sempre se identificaram com o projeto de reforma agrária e não de colonização, realmente, nesse momento, sentiram-se muito estimulados a participar. Foi um momento de ampla participação dos servidores e um salto de qualidade no engajamento dos próprios servidores nesse processo. Ou seja, um momento de dar apoio ao I PNRA, participar da sua formulação e da sua implementação, representando uma inflexão histórica dentro do Incra. O segundo momento, mais extraordinário ainda, ocorreu com o advento do II PNRA, quando a sua formulação se deu de forma participativa, não só com Memória Incra 35 anos os servidores, mas com os representantes dos movimentos sociais, que foram ouvidos e dele participaram. Nesse sentido, o II PNRA marca uma diferença de qualidade, inaugurando as formas participativas de exercício da democracia, na formulação e implementação de políticas públicas. Apesar de todos os avanços obtidos no governo Lula, dois novos desafios permanecem, o que se traduz na abordagem a seguir. Reforma agrária como exercício da liberdade – novos desafios Dois novos desafios permanecem ao Incra, durante o governo Lula, no sentido de dar respostas adequadas às reivindicações dos movimentos sociais, que visam ampliar os espaços de liberdade representados pelos assentamentos da reforma agrária no país. O primeiro desafio diz respeito à ampliação e requalificação dos quadros técnicos do Incra, dedicados à vistoria, à avaliação e à perícia judicial de imóveis rurais, aí entendida a sua maior capacitação, visando baratear e acelerar o processo de reforma agrária no país. Trata-se, portanto, de ações estratégicas para a reforma agrária, razão pela qual essa questão da perícia judicial, bem como a questão das vistorias e da avaliação na fase administrativa, cuja aceleração se constitui numa das principais demandas das famílias acampadas no país, são essenciais para aumentar a velocidade e a qualidade do processo de reforma agrária no Brasil. O segundo desafio, mais complexo, diz respeito à revisão dos índices de rendimento, que informam o conceito de propriedade produtiva. Como este é um outro assunto estratégico para o Incra, a sua redefinição vai significar a ampliação do estoque de terras desapropriáveis, significando a redefinição, também, dos. rumos da reforma agrária no Brasil. Por que? Primeiro, porque a atualização desses índices está previsto em Lei, pois o art. 11 da Lei no 8.629/93 propõe que, periodicamente, sejam ajustados os índices, de acordo com o desenvolvimento científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimento regional; em segundo, porque – com o desenvolvimento do agronegócio nos últimos anos, principalmente no agronegócio ligado à exportação – está muito claro que esses índices, fixados com base no censo de 1975, tem, praticamente, trinta anos de grande defasagem. 235 236 Nead Especial 2 Faz-se urgente a atualização, não só no que diz respeito aos produtos do agronegócio, da lavoura empresarial, enfim, dos produtos chamados produtos vegetais, mas também, e especialmente, da pecuária, porque, no caso dos produtos vegetais trata-se de índices que vão dar a possibilidade de simplesmente não beneficiar e nem prejudicar o agronegócio, pois a tarefa da reforma agrária não é atingir a propriedade produtiva, mas sim a propriedade improdutiva. A atualização dos índices para produtos vegetais é uma espécie de neutralização dos efeitos do agronegócio na agricultura brasileira. Então, não vai nem beneficiar e nem prejudicar os proprietários de terra se houver a atualização desses índices. No caso da pecuária, o Incra tem de fazer uma proposta ousada. Ousada porque se a política pública de reforma agrária é uma política de geração de emprego e renda, não há dúvida de que, na agricultura patronal, o setor mais pernicioso à economia do país é aquela representada pela pecuária tradicional, com baixos índices de produtividade. No caso, o Incra deve fazer um ajuste para cima dos índices atualmente observados, utilizando o Potencial Demográfico como variável fundamental, que indica o estágio de desenvolvimento científico e tecnológico da agropecuária e o seu desenvolvimento regional. Por que? Porque é uma forma de provocar a transferência de terras do latifúndio pecuário tradicional, atrasado, para a agricultura familiar. O Brasil tem 170 milhões de hectares ocupados com pastagens, sejam elas nativas ou plantadas. Essa é a grande fronteira agrícola de expansão da agricultura familiar no Brasil. Evidentemente, se existem duas vias de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, deve-se optar entre a via da modernização conservadora, como se observou nas últimas décadas na economia brasileira (da agricultura voltada para a exportação, da lavoura empresarial), ou, então, optar pela via democrática de desenvolvimento capitalista no campo, representada pela expansão da agricultura familiar, que deveria se expandir nos espaços ocupados pela pecuária tradicional. O grande salto de qualidade que se pode ter, em termos de geração de emprego e renda na agricultura, não há dúvida, é a apropriação destes espaços – voltados para a pecuária tradicional, com baixos índices de produtividade, com baixos índices de lotação – pela agricultura familiar. Aí há um imenso potencial de desenvolvimento da agricultura brasileira, mediante o estímulo, por meio do Memória Incra 35 anos programa de reforma agrária – tarefa do MDA e do Incra – à criação de unidades familiares, que proporcionem até 50 vezes mais empregos do que a pecuária tradicional, pois a expansão da lavoura empresarial, nestes espaços, vai proporcionar, tão-somente, quatro ou cinco vezes mais empregos. Pretende-se que sejam 50 vezes mais, porque as condições de desenvolvimento do capitalismo no Brasil traz consigo o problema do desemprego estrutural, como uma das principais tragédias do modelo de desenvolvimento brasileiro. Esse desemprego estrutural só pode ser combatido (e deve ser combatido intensamente) com um programa ambicioso e massivo de reforma agrária, que gere emprego e renda. E, claro, como é tarefa do MDA e do Incra, este novo modelo deve estimular e fortalecer a agricultura familiar, porque não há dúvida de que essa é a forma mais adequada para a sociedade brasileira, pois impulsiona a via democrática de desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, dando conta das especificidades do desenvolvimento capitalista no Brasil. Propondo esse modelo de desenvolvimento democrático na agricultura, estar-se-á criando, não só novas e substanciais oportunidades de geração de emprego e renda, mas também gerando um país mais igualitário e democraticamente sustentável, pois, quanto mais baseado o desenvolvimento capitalista na agricultura familiar, mais democrático o país. Quanto mais desenvolvido na base da grande propriedade, mais autoritário o seu regime político, pois as experiências internacionais em desenvolvimento econômico e social comparado apontam nesse sentido. E como aprendeu-se (e aprendeu-se a duras penas) o que seja viver sob um regime autoritário, o resgate da democracia tem que ser o resgate do fortalecimento da agricultura familiar e do programa de reforma agrária, pois democracia e reforma agrária são duas vertentes absolutamente indissociáveis, razão pela qual todos os que lutam por justiça social devem se empenhar para o aprofundamento deste processo. Essa é a convicção mais profunda que devem ter os militantes da reforma agrária, no sentido de aprofundar, massivamente, a redistribuição de terras no País. Por outro lado, o fortalecimento da agricultura familiar, cujo financiamento, felizmente, passou de dois bilhões de reais, em 2002, no último ano do governo de Fernando Henrique para nove bilhões no governo Lula, se constitui em programa estratégico de geração de emprego e renda para o país. 237 238 Nead Especial 2 Portanto, a reforma agrária e o fortalecimento da agricultura familiar significam, fundamentalmente, a redistribuição de poder político e a ampliação dos espaços democráticos da sociedade brasileira. A geração de 1968 – que sofreu todo esse processo imposto por governos autoritários, que resultaram na concentração da propriedade, da renda e do poder, e que dedicaram os melhores anos de suas vidas ao combate à tirania dos regimes autoritários – sabe muito bem o que isto significa. Uma reforma agrária massiva e um maior apoio ao fortalecimento da agricultura familiar significam ampliar os espaços de democracia e de liberdade na sociedade brasileira. 21 Fragmentos históricos do Incra e da reforma agrária no Brasil O r i va l p r a z e r e s A criação do Incra: avanço ou retrocesso da reforma agrária A reforma agrária no Brasil, desde a nossa Independência, já se constituía em tema de discussão, um assunto ainda impreciso e indefinido para os anseios e aspirações da época. Em diversos momentos no início da República, a história registra a celebração de atos legislativos de intervenção na propriedade da terra para fins de formação de colônias de agricultores e repressão à grilagem de terras, através de ações de legitimação de posses, para regularizar a situação das terras públicas e incentivar a colonização e a imigração. No entanto, é a partir de 1950 que o problema agrário recrudesce e começa a ser enfrentado com maior decisão pelo governo brasileiro, inicialmente com a constituição de Comissões Nacionais de Política Agrária, embora estas não tenham conseguido sair dos embates teóricos do jurisdicismo, uma marca de nossa administração pública. Nessa época tramitaram no Congresso Nacional mais de uma centena de projetos sobre Reforma Agrária, alcançando em 1959 a marca de 213 projetos, apresentados entre 1946 e 1958. Em decorrência de tantas proposições, foram criados em diferentes momentos, o INIC – Instituto Nacional de Imigração e Colonização (5 de janeiro de 1954) e o Serviço Social Rural. Destaco o SSR – Serviço Social Rural, criado pela Lei no 2.613, de 23 de setembro de 1955, mas somente implantado tempos depois, voltado exclusivamente para a implementação de programas de desenvolvimento e organização de comunidades rurais. Sua atuação nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul começou em dezembro de 1960. Embora extraordinário em seus objetivos e métodos operacionais, a atuação do SSR não correspondia aos anseios de 240 Nead Especial 2 modificação e transformação da estrutura fundiária do país – e assim do sistema e condições de posse e uso da terra em seus aspectos econômico e social. A criação da SUPRA – Superintendência de Política Agrária – Lei Delegada no 11, de 11 de outubro de 1962, que também extingue o INIC, Estabelecimento Rural de Tapajós e o SSR, aconteceu num momento nacional marcado por conflitos e ocorrências de forte clamor popular em várias regiões do país, nos centros urbanos, sob o comando dos sindicatos e União Nacional dos Estudantes – UNE, e em regiões críticas de tensão social no meio rural, com destaque para as invasões de terras no Paraná (Cascavel e Maringá) e às ações das Ligas Camponesas em Pernambuco e Paraíba. Em Santa Catarina, entre 1962 e 1964, a SUPRA, sob o comando do Delegado Regional Benjamim Ferreira Gomes, de Joinville, teve suas atividades especialmente voltadas para a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais no Estado, com algumas intervenções em casos pontuais relacionados à posse e uso da terra, em Tubarão e Papanduva. Desde logo, no entanto, se verificou a manifesta incapacidade do governo em formular uma estratégia para a reforma agrária, como instrumento de desenvolvimento econômico e paz social. O Brasil, finalmente, teve em 1964, sob o regime militar, a sua lei de reforma agrária – O Estatuto da Terra, Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, que cria o Ibra – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, como seu órgão executor. Atendia, assim, o regime militar não apenas a compromissos internacionais – Conferência de Punta del Este, promovida pela OEA, mas principalmente a um compromisso maior com o povo brasileiro e o desenvolvimento do país. O governo do presidente Castelo Branco assumia, então, um histórico desafio que se transformava, naquela fase da vida nacional, em ameaça concreta à ordem social e política do país. As justificativas apresentadas ao Congresso Nacional para aprovação do Estatuto da Terra demonstram com clareza e coragem as contradições e desigualdades da estrutura agrária do Brasil à época, identificando os angustiantes problemas do uso e posse da terra com a crescente industrialização do país, assinalando o constrangimento do mercado interno, a marginalização das populações rurais, o baixo nível da produtividade agrícola, a situação vexatória do trabalhador rural submetido às mais injustas condições de trabalho, classificando, enfim, a Reforma Agrária como tarefa prioritária. O Ibra, em cumprimento à sua missão institucional, desde logo desenvolveu seus trabalhos em duas grandes linhas de ação: primeiro, o cadastramento dos imóveis rurais em todo o país – previsão de 4 milhões, objetivando conhecer a Memória Incra 35 anos realidade agrária do Brasil, como ponto de partida; segundo, a definição das áreas prioritárias de reforma agrária e aplicação do instrumento da desapropriação por interesse social. A implantação do Cadastro Rural, desencadeado em todo o território nacional durante a operação denominada Semana da Terra, durante o mês de dezembro de 1965, foi sucesso absoluto. Em SC, a operação ocorreu entre 06 e 13 de dezembro. Finalmente, conhecia-se, agora, a situação de posse e uso da terra no país, ponto de partida para a reforma agrária brasileira, através dos instrumentos da tributação progressiva e da desapropriação por interesse social. Com as informações colhidas no cadastramento, o Ibra passou a cumprir o dispositivo constitucional de lançamento e cobrança do Imposto Territorial Rural – ITR (até então de responsabilidade dos municípios), um poderoso instrumento de reforma agrária, na medida em que sobre o valor básico do ITR incidiam índices de progressividade e regressividade, segundo o uso atual e a potencialidade de uso da área do imóvel . Também com base nos dados cadastrais, o imóvel rural passou a ter uma classificação que o identificava no conjunto da estrutura fundiária do país – Minifúndio (MIN), Latifúndio por Exploração (LXP), Latifúndio por Dimensão (LDM) ou Empresa Rural (EMR), informação cujos dados são importantíssimos para fins de tributação e eventual desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Para administrar o processo de reforma agrária no Brasil o Ibra adotou duas estruturas de execução em âmbito estadual e regional: uma, nas capitais e pontos estratégicos em todos os estados, dirigida exclusivamente para o desenvolvimento e manutenção do cadastro de imóveis e tributação territorial rural, e outra em cada uma das cinco grandes áreas prioritárias no país (Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, São Paulo e Porto Alegre), estruturada para as ações de intervenção na propriedade da terra, com funções de desapropriação por interesse social e implantação de projetos de reforma agrária. Contudo, o compromisso governamental pela opção capitalista da reforma agrária, assegurada no Estatuto da Terra, não impediu que fortes setores de opinião, defensores do latifúndio e do vigente modelo agrário brasileiro, em especial o pessoal da CNA-Confederação Nacional da Agricultura e suas afiliadas no Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais, sustentassem campanhas de descrédito de seus dirigentes, na tentativa de desestabilizar o 241 242 Nead Especial 2 processo de mudança em curso. Em menos de quatro anos de existência, o Ibra – apesar da falta de continuidade administrativa, das crises internas e da patente incompreensão de alguns setores de opinião – pôde, ao mesmo tempo em que assentava os fundamentos da Reforma Agrária, proceder a todo um trabalho de revisão crítica dos processos de atuação, transformando muitas experiências em positivos fatores de correção. Nos processos de desapropriação por interesse social, a questão do preço das terras constituía-se no grande entrave à agilização dos procedimentos de intervenção na propriedade. Eram intermináveis as discussões no âmbito do Poder Judiciário, ficando o órgão executor da reforma agrária tolhido em sua missão de implantar seus projetos de assentamento e colonização. Consciente da magnitude do problema agrário brasileiro e da necessidade de serem adotados instrumentos capazes de proporcionar respostas mais prontas e efetivas, o governo baixou o Decreto-Lei no 554, de 25 de abril de 1969, dispondo sobre a desapropriação por interesse social de imóveis rurais, um passo à frente do governo no árduo caminho da execução da Reforma Agrária postulada no Estatuto da Terra. A nova lei garantia ao Ibra, nos atos de desapropriação por interesse social, a imediata imissão na posse do imóvel por sentença judicial, no prazo de 72 horas. O mérito do ato expropriatório somente era examinado pelo juiz após concluída a imissão de posse pelo Ibra. Rito sumário, o interesse social era atendido na sua plenitude com a simples propositura da ação, juntando-se a ela o ato declaratório de interesse social para fins de desapropriação e o documento comprovante do depósito em títulos da dívida agrária para resgate em 20 anos. Depósitos em dinheiro somente para quitação de benfeitorias úteis e necessárias, descontados os eventuais débitos do ITR incidentes sobre o imóvel. Procedimento ágil e definitivo, utilizado somente nas situações em que não fosse possível o ACORDO entre o Ibra e o expropriado. Com tantos poderes, o Ibra cada vez mais tornou-se alvo da insatisfação dos grandes proprietários de terras e setores reacionários da política nacional, com influência junto ao governo militar, sob a presidência do Marechal Arthur da Costa e Silva. No Rio Grande do Sul, a reação era comandada pela FARSUL, presidida por Luiz Fernando Cirne Lima, mais tarde elevado ao cargo de Ministro da Agricultura. Atendendo exposição de motivos do então Ministro da Agricultura, Ivo Pereira Arzua, indicado para o cargo pelas forças conservadoras da agricultura do Paraná, com apoio da CNA, o presidente da República assinou em 23 de junho Memória Incra 35 anos de 1968 o Decreto de Intervenção no Ibra, surpreendendo dirigentes, técnicos e servidores em todo o país, levando o presidente da Autarquia, Engenheiro Doutor César Cantanhede a responder, em Carta Aberta, a uma missiva recebida do ministro da Agricultura, no mesmo dia, à noite, no Aeroporto de Brasília, das mãos do Secretário-Geral do Ministério, adiante transcrita: Por imperativo de ordem legal S.Exa. o Senhor Presidente da República vem de decretar intervenção no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, do que não poderia eu, òbviamente, fazer antecipada comunicação a V.Sa. Venho, pois, na oportunidade, trazer o fato ao seu conhecimento, cumprindo-me apresentar-lhe meu agradecimento pela colaboração até hoje prestada naquele importante Órgão da Administração Indireta. A Carta Aberta dirigida ao Ministro da Agricultura, publicada nos grandes jornais da época, em especial o Jornal do Brasil, mostrou como o Gabinete do Ministro articulou a realização de inquéritos, fruto de calúnias, intrigas e mentiras sobre atos de gestão administrativa, absurdamente irresponsáveis conforme demonstrado através de documentos em que comprovavam terem sido praticados por deliberação unânime do Conselho Diretor da Autarquia. Na Carta Aberta diz ainda o presidente César Cantanhede ao Ministro: Ao dispensar o General Saraiva Martins, de um cargo de confiança, por ter sido condenado pela Justiça, logo comuniquei a V.Sa . que, no dia seguinte, seria iniciada uma campanha contra mim, como de fato se iniciou. Da mesma forma tive oportunidade de, há meses, comunicar, não só a V.Sa., como a altas autoridades militares do Governo, que a ação contra o Presidente do Ibra iria se ativar, pois já não se tratava mais da pessoa do Presidente do Ibra,mas, sim, de modificar toda a administração, pois que a campanha pessoal provocada por frustrados e decepcionados e alimentada por quem deveria resguardar a instituição a que serviria, estava sendo substituída por outra campanha de maior poder econômico e maiores interesses políticos. E, num último e resignado gesto de aceitação do fato, mas extravasando sua repugnância, o presidente afastado conclui em sua carta: O mundo em que os homens vivem, Dr. Arzua, apresenta duas faces distintas: uma, em que vivem e labutam aquêles que cultivam a verdade, que usam sempre de lealdade, que 243 244 Nead Especial 2 veneram a honestidade e que primam pela elegância de atitudes; e de outra, onde estão os que amam a inverdade, que se comprazem com a deslealdade, que não conhecem atitudes e gestos delicados e que, pela malícia e má-fé, pactuam com a desonestidade. • • • • • Como resultado da intervenção no Ibra entre 1968 e 1970, período em que esteve sob o comando do General Luiz Carlos Pereira Tourinho, o governo militar do presidente da República Arthur da Costa e Silva criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, através do Decreto-Lei no 1.110, de 9 de julho de 1970, autarquia federal vinculada ao Ministério da Agricultura, extinguindo e incorporando os órgãos criados pelo Estatuto da Terra, o Ibra e o Inda. Para a presidência da nova Autarquia, o governo trouxe de Pernambuco o advogado José Francisco de Moura Cavalcanti, mais tarde Ministro da Agricultura e, em seguida, eleito Governador de Pernambuco, e para o Ministério da Agricultura o pecuarista Luiz Fernando Cirne Lima, ex-presidente da FARSUL – Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul. A nova autarquia assumiu a responsabilidade de gerir as atividades constitucionalmente atribuídas aos órgãos extintos, inclusive absorver os servidores de seus respectivos quadros funcionais, alguns com vínculos ao Estatuto dos Servidores Civis da União, conhecidos como estatutários e a maioria regidos pela CLT, remanescentes do INIC e SSR e, agora, também, os dos extintos Inda e Ibra . As diretrizes traçadas no Regulamento Geral do Incra (Decreto no 68.153, de 1o de fevereiro de 1971), para estruturação da autarquia, foram estabelecidas segundo os seguintes objetivos centrais da Reforma Administrativa do governo, expressa no Decreto-Lei no 200/67, sob a coordenação do Ministério da Desburocratização: descentralização executiva; fortalecimento do planejamento e coordenação; desburocratização administrativa; dinamização da atividade técnica; fortalecimento e sistematização dos mecanismos de controle. Do ponto de vista de sua missão institucional – colonização e reforma agrária, a prioridade da ação da nova autarquia foi dada pelo governo à colonização e à regularização fundiária, envolvendo as terras situadas na Amazônia Legal e faixa de 150km ao longo das fronteiras do Brasil com os países limítrofes e em ambas Memória Incra 35 anos as margens das rodovias federais implantadas e a construir na região, em cumprimento ao Programa de Integração Nacional – PIN, entre as quais, a rodovia Transamazônica, a partir de Estreito, em Pernambuco, até Humaitá, na BR em construção no Amazonas, ligando Porto Velho em Rondônia à cidade de Manaus. Durante todo o período dos governos militares, a partir da criação do Incra e até o início da redemocratização do país em 1985, a política de desenvolvimento nacional esteve sempre direcionada para a ocupação da Amazônia Legal, formada pelos atuais Estados do Acre, Rondônia, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão, com grandes investimentos governamentais em estradas e em incentivos fiscais às empresas industriais e agropecuárias, através de programas como o PIN e Poloamazônia, através do Banco da Amazônia e do então BNDE. A colonização na Amazônia Legal marcou profundamente a ação do Incra no cumprimento de sua missão institucional. A implantação de projetos de assentamento e colonização em terras públicas multiplicaram-se, a maioria terras devolutas transcritas em nome da União Federal, através de procedimentos sumários de arrecadação ou de discriminação administrativa, na forma da lei, implantados nas faixas de 100km em ambos os lados das rodovias na Amazônia Legal (as agrovilas em Altamira, Marabá e Itaituba, no Pará; os projetos Ouro Preto, Ariquemes, Vilhena em Rondônia; projeto Boca do Acre e Humaitá no Amazonas, e outros no Sul do Pará, Maranhão e Mato Grosso. De todas as partes do território nacional migraram para a Amazônia milhares de famílias gaúchas, catarinenses, paranaenses, capixabas e do nordeste, principalmente do Maranhão, demonstrando coragem e patriotismo, em muitos casos. Algumas centenas de famílias foram levadas pelo Incra, de avião ou por terra. Grande parte, porém, por seus próprios meios. Uma epopéia vivida por muitos brasileiros, muitos deles surpreendidos com a morte pela malária, ainda presente nos dias atuais em toda a Amazônia Ocidental, principalmente. As atividades de legitimação e regularização de terras na Amazônia e Faixa de Fronteiras, através dos procedimentos de titulação, nos casos de posse mansa e pacífica, constituíram-se também em eficientes instrumentos de ação do governo em seu propósito de garantir a ocupação de imensos vazios demográficos e de aumentar a produção pelo avanço da fronteira agropecuária. As ações de titulação de terras pelo Incra, integradas às atividades de assentamento de agricultores em projetos de colonização nos estados da Amazônia Legal, tiveram sustentação nos 245 246 Nead Especial 2 procedimentos de discriminação e arrecadação de terras devolutas realizados pela autarquia, que permitiram à União reaver ao seu patrimônio imobiliário dezenas de milhões de hectares, numa época em que a grilagem de terras e as fraudes nos cartórios imperavam na região. Na verdade, com a extinção do Ibra, a reforma agrária deixou de ser prioridade, embora tenha havido algumas importantes ações de desapropriação de terras no país durante o período militar, após a criação do Incra. Essas ações ocorreram no Pará, com a desapropriação do polígono de Altamira, que segundo informações, constituiu-se na maior área desapropriada em todos os tempos no Brasil, ou em Rondônia em 1975, duas áreas com mais de 1 milhão de hectares cada, e mesmo em São Paulo, na região do Paranapanema ou em Pernambuco e outros estados. Em algumas situações, como em São Paulo e Pernambuco, a intervenção do governo se deu em decorrência de conflitos pela posse e uso da terra, justificando a medida por força de grave tensão social. Na maioria dos casos, contudo, a desapropriação atendeu outras exigências ou necessidades de interesse social, como construção de barragens para hidrelétricas, implantação de reservas biológicas, áreas indígenas ou de proteção ambiental, etc. Aqui cabe uma reflexão. Coincidência ou não, somos levados a crer que o episódio da extinção do Ibra e a criação do Incra como seu sucessor, era parte da estratégia de permanência dos militares no poder, uma decisão já tomada com a decretação do AI-5 em 1968, período em que o Ibra já começa a sofrer pesadas pressões de setores da agricultura, comandada pela FARSUL, afiliada da CNA no Rio Grande do Sul, principalmente. Na época, a reforma agrária passou a ser odiada pelos detentores da grande propriedade no Brasil, mesmo considerando a afirmação de sua concepção capitalista, assegurada no Estatuto da Terra ao estabelecer a empresa rural como paradigma a ser alcançado. Assim, a reforma agrária foi substituída pelo Programa de Integração Nacional, cabendo ao Incra a construção de um de seus principais pilares: a regularização fundiária das terras públicas localizadas na Amazônia Legal e Faixa de Fronteira e a colonização ao longo das rodovias implantadas e a implantar na região, como objetivos de integração nacional. A retomada do processo de reforma agrária deu-se, portanto, a partir do restabelecimento do estado de direito democrático no Brasil, em 1985, com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney à Presidência e Vice-Presidência da República, respectivamente, quando o governo da Nova República aprovou o 1o PNRA Memória Incra 35 anos – Plano Nacional de Reforma Agrária, bem como planos estaduais de reforma agrária na maioria dos estados brasileiros, após estudos e debates envolvendo toda a sociedade. Foram criadas áreas prioritárias para fins de reforma agrária em diversas regiões do País, com definições de princípios e diretrizes para as ações a nível central e regional. Presidiu o Incra nessa nova fase o engenheiro José Gomes da Silva, renomado estudioso da reforma agrária e integrante da equipe que elaborou o Estatuto da Terra em 1964. Naquela época José Gomes atuava na Unicamp, em Campinas/SP, onde morava. Ardoroso defensor da reforma agrária no Brasil, José Gomes foi o grande responsável pela conceituada publicação Reforma Agrária, sendo o seu principal editor. Agora, no limiar de 2005, em vias de aprovação do Segundo Plano Nacional de Reforma Agrária, não nos esqueçamos, que o mesmo governo civil que aprovou o 1o PNRA em 1985, dois anos após, num disparate sem precedente, extinguiu o Incra, consoante o Decreto-Lei no 2.363, de 21/10/1987. Felizmente, os servidores com o apoio das instituições e entidades comprometidas com a reforma agrária levaram a Câmara dos Deputados a rejeitar o famigerado Decreto-lei, restabelecendo o Incra em toda a sua plenitude, numa sessão histórica daquela Casa do Congresso Nacional, consoante o Decreto Legislativo no 2, de 24/03/1989, sob a presidência do grande Deputado Ulisses Guimarães. Para orgulho de todos nós servidores, o Incra, com esse ato, passa a se constituir no ente público dos mais legítimos da esfera do Poder Executivo, ao ter sua missão institucional restabelecida pela representatividade popular do Congresso Nacional. O livro fundiário do Incra O que consiste o Livro Fundiário do Incra. Qual sua finalidade e importância. Qual sua relação com a reforma agrária. Por que? É possível que nos dias de hoje, com os avanços contínuos das tecnologias da informação, muitos já indaguem – para que livros …? Interessante !!! Realmente, é possível que já se possa dispensá-los! Afinal, o computador conectado à rede Internet nos permite acessar o mundo dos livros em tantas bibliotecas existentes no mundo…Será?… Bem, parece haver razões para dúvidas sobre a necessidade de se manter custosos espaços físicos para armazenar livros…Será mesmo? Mas, afinal, o que é o Livro Fundiário do Incra ? Será que todos os servidores do Incra sabem de sua existência e em que consiste o Livro Fundiário ? 247 248 Nead Especial 2 1975. Presidia o Incra o Engenheiro Agrônomo Lourenço Tavares Vieira da Silva, nomeado em 1974 para o cargo por influência do conhecido político maranhense, Vitorino Freire. Para a Diretoria de Recursos Fundiários, o governo trouxe de Minas Gerais o então Coordenador Regional da Autarquia, Cristiano Machado Neto, engenheiro agrônomo de Viçosa, indicado pelo Ministro da Agricultura, Alysson Paulinelli, também mineiro e engenheiro agrônomo, formado em Lavras, ex-Secretário da Agricultura de Minas no governo de Rondon Pacheco. Remanescente do quadro do extinto Ibra, onde exerceu em Curitiba e Porto Alegre, no período de 1966 a 1970, importantes funções de coordenação geral da execução dos projetos de Cadastro e Tributação nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Cristiano Machado assumiu a Diretoria de Recursos Fundiários do Incra em 1974, nos primeiros dias do governo militar do presidente Garrastazu Médici. Comprometido inteiramente com as causas da instituição e profundo conhecedor de sua máquina administrativa, tendo colaborado com a equipe na estruturação do Incra em 1970, Cristiano Machado marcou sua passagem na Diretoria do Incra pela organização e ordenamento das ações sob a sua responsabilidade, instituindo, atualizando e reunindo sob a forma de sistemáticas, manuais e rotinas de trabalho, toda a metodologia operacional de discriminação administrativa, legitimação e regularização de terras devolutas da União, desapropriação por interesse social e titulação de posses, lotes e parcelas, em assentamentos e projetos de colonização, ratificação de títulos na faixa de fronteira, etc., inspirado nos princípios de desburocratização e reforma administrativa do governo. O trabalho em equipe, a adoção de novas práticas gerenciais e a gestão por projetos, sempre nortearam sua administração no Ibra e no Incra, sendo por isso reconhecido por todos com os quais atuou em Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte e Brasília, com respeito e admiração merecidos. O Livro Fundiário do Incra, instituído em sua gestão em 1975, consoante Norma-dft/ft-1, é revelador do seu estilo dinâmico e inovador, ao produzir uma metodologia de controle de outorga dos documentos de titulação de terras do Incra e da União, de responsabilidade da instituição, por força da legislação de terras vigente. Até então, praticava-se no Incra um sistema idêntico ao usado nos Cartórios de Notas, Registros de Imóveis e Títulos e Documentos, em todo o país – imensos livros, com encadernação dura e pesada, geralmente em cor preta, com dimensões em torno de 60x90cm. Em uso, abertos para registros ou consultas, Memória Incra 35 anos sua largura era em torno de 1,20m. A planta topográfica era aplicada em local próprio da folha, onde se registrava, manualmente, o teor do memorial descritivo, confrontações, identificação dos outorgantes e demais informações constitutivas do ato. Pode-se imaginar quão lento era o processo de expedição e outorga de títulos de terras no Brasil, desde o Império, a República e até o ano de 1975. É importante registrar que, na época, os documentos de titulação emitidos pelo Incra, como de resto os estados no Brasil, já eram compostos segundo uma matriz pré-impressa, em off-set, em diferentes modelos, conforme as especificidades de cada situação jurídico-administrativa, para complementação datilográfica individual. Os registros oficiais demonstram saltos significativos nos números de titulações outorgados pelo Incra entre 1974 e 1980. A partir das experiências em 1982-1983 com o Projeto de Regularização Fundiária do Nordeste – Projeto Incra-BID, em parceria com os Estados da Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Bahia, e 1984-1987 com o Projeto de Desenvolvimento do Nordeste-Incra/BIRD, numa ação integrada com os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais/polígono das Secas, o Incra em cooperação com o SERPRO desencadeou um novo processo de desenvolvimento tecnológico na emissão de plantas, memoriais descritivos e respectivos títulos de terras, no contexto de um complexo sistema interativo de dados cadastrais, com base em informações obtidas inicialmente por aerofotogrametria e depois por imagens-satélite, de alta resolução e atualidade, chegando até os dias de hoje no Brasil. Portanto, nos tempos de 1975, praticavam-se no Incra os modelos de emissão de títulos de terras possíveis para as limitações da época, mas incentivando pesquisas e o desenvolvimento de novas tecnologias, de modo a alcançar a qualidade e eficácia dos procedimentos de titulação em programas de regularização fundiária e de reforma agrária no país, em cumprimento ao Estatuto da Terra e legislação aplicável. Assim, com a experiência de quem trabalhou durante bom tempo como Oficial no Cartório de Notas de seu pai, em Viçosa/MG, respeitado escrivão da comarca e região da Zona da Mata em Minas, Cristiano Machado decidiu por dar nova forma ao vetusto Livro Fundiário do Incra, organizado e mantido pela Divisão de Terras Públicas, da diretoria sob o seu comando. Uma equipe técnica foi constituída sob a coordenação do Chefe da DFT, Engo Agro Mário Nogueira, e integrado por vários servidores, dos quais destacamos o Major Moreira, o servidor 249 250 Nead Especial 2 Valdir, o assessor do Gabinete, Inimá do Nascimento Silva,o advogado Barata e outros, com o objetivo de estudar e desenvolver o novo Livro Fundiário do Incra, com a função de ordenar e controlar a emissão de títulos da União e da Autarquia, outorgados aos usuários de terras públicas, em assentamentos oficiais ou em áreas devolutas ocupadas de boa-fé, em todo o território nacional. A ocupação da Amazônia e sua integração ao desenvolvimento nacional constituíam programas prioritários do governo. Era intensa a motivação do Incra que exercia um papel fundamental através dos seus programas de discriminação, arrecadação e regularização de terras devolutas, inclusive na recuperação de terras públicas em mãos de grileiros e empresários inescrupulosos em toda a região amazônica, em especial, Mato Grosso, Rondônia e Sul do Pará. A ProcuradoriaGeral do Incra em conjunto com as Procuradorias Regionais da autarquia nos estados, apoiada pelos técnicos da Diretoria de Recursos Fundiários, em Brasília e nas unidades descentralizadas nos estados, recuperou milhões de hectares ao patrimônio público nacional. A questão da regularização dominial da propriedade do imóvel ocupado constituía-se em aspiração de milhares de ocupantes de boa-fé, originários de todas as regiões e estados brasileiros, que se deslocavam para a região amazônica atraídos pelos governos federal e estaduais, interessados em ampliar as atuais fronteiras agrícolas e agropecuárias, criando as condições estratégicas indispensáveis para o seu desenvolvimento. As exigências político-administrativas do momento fizeram com que o grupo de trabalho constituído pelo Diretor do DF, e sob sua orientação, apresentasse em poucos dias o projeto do novo Livro Fundiário do Incra, que consistia em um sistema de livros encadernados, cor azul marinho, apropriados para juntada de documentos de titulação de imóveis, em folhas soltas, no formato A-4, com numeração seqüencial de 1 a 100 (um número por imóvel/título), confeccionados especificamente para esse fim. Cada livro continha uma identificação própria, segundo o sistema alfabético, iniciando pela letra A até a letra Z, e sucessivamente, de AA até AZ, e assim, indefinidamente, tantas as combinações alfabéticas necessárias. O sistema, a princípio, foi centralizado na Divisão de Terras Públicas-DFT, subordinada à Diretoria de Recursos Fundiários-DF, integrante da estrutura orgânica do Incra, autarquia federal com sede nacional em Brasília. A descentralização do sistema para os órgãos estaduais do Incra dependeria do interesse, necessidade e oportunidade, a serem definidos pela administração pública. Memória Incra 35 anos Em suma, conceitualmente, o Livro Fundiário do Incra é o repositório onde são armazenados e mantidos, sob guarda e controle, as cópias de todos os documentos oficiais de titulação, outorgados pela autarquia aos beneficiários de parcelas, lotes ou áreas em projetos de reforma agrária, colonização, regularização e legitimação de terras públicas da União e do Incra, segundo os dispositivos constitucionais e legislação complementar aplicáveis. É, pois, um acervo de grande valor histórico, a espera de novas tecnologias de informação a serviço da sociedade e de suas origens, nas sesmarias e capitanias hereditárias. Referências Estatuto da Terra – Lei no 4.504, de 30/11/1964 Caderno “Ibra – Reforma Agrária e Desenvolvimento Agrícola”, 1969/1970 “Carta Aberta do presidente do Ibra ao Sr. ministro da Agricultura”, 1968 S i lv e i r a , Lourival Patrocínio. Economista – Princípios da Reforma Administrativa adotados na estruturação do Incra. 251 22 Educação no campo: perspectiva de uma educação rural diferenciada R o s a n e R o d r i g u e s d a S i lva “A frente de batalha da educação é tão importante quanto a da ocupação de um latifúndio […] A nossa luta é para derrubar três cercas: a do latifúndio, a da ignorância e a do capital.” João Pedro Stédile Este artigo tem como proposta apresentar a construção da concepção de um processo educacional diferenciado aos povos do campo e da floresta, que os teóricos denominam de educação do campo, tendo como base metodológica a Educação Popular alimentada pela Pedagogia Libertadora de Paulo Freire, demonstrado através de práticas inovadoras em Rondônia e executado com recursos federais, através do Incra, em parceria com os movimentos sociais e instituições de ensino superior, na perspectiva de uma construção coletiva do conhecimento. Palavras-chave: Educação do campo; povos do campo; educação popular; construção coletiva; parcerias. Artigo apresentado como concorrente ao concurso Memória Incra 35 anos, novembro de 2005. Professora, graduada em ciências – Licenciatura curta pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia em Nova Friburgo/RJ e graduada em direito pela Faculdade de Ciências Exatas, Letras e Humanas de Rondônia. Povos do Campo na concepção dos estudiosos da Educação do Campo são todos aqueles que vivem no campo e na floresta: assentados, acampados, meeiros, agregados, pescadores, índios, quilombolas, seringueiros e outros. Memória Incra 35 anos A construção da concepção de um processo educacional para os povos do campo avança com as práticas educacionais que estão sendo aplicadas e vivenciadas em todo o Brasil, por meio do Programa Nacional da Educação na Reforma Agrária (Pronera), executado pelo Incra, em parceria com as instituições de ensino superior e os movimentos sociais. Baseados na pedagogia libertadora de Paulo Freire trabalham a construção coletiva do processo educacional junto aos sujeitos dessa educação, os agentes sociais e as instituições governamentais. Os objetivos deste trabalho são demonstrar que as práticas educacionais vêm constituindo um espaço de formação político-social-cultural, diferenciado e engajado na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Apresentaremos as duas experiências em Rondônia, Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA) nos assentamentos e acampamentos de reforma agrária e o curso de graduação em pedagogia da terra, ambos em parceria com os movimentos sociais e executados pela Universidade Federal de Rondônia com recursos do Pronera. A primeira fase do processo educacional é o diagnóstico, construído por todos os parceiros, a fim de identificar a demanda, na área de atuação dos diversos agentes, a estrutura física local onde funcionarão as turmas, as vias de acesso, a produção e a diversidade de povos a serem contemplados. A segunda fase é a elaboração coletiva do projeto educacional a ser apresentado para aprovação no Incra e liberação dos recursos; neste projeto já deve estar contemplado a equipe que irá atuar na execução do projeto e as planilhas de custos. A terceira e quarta fases diferenciam-se dependendo do curso objeto do projeto: no caso de alfabetização de jovens e adultos, é a formação das turmas, a identificação dos monitores e coordenadores locais, a capacitação dos monitores – que será realizada por professores da universidade, orientando a teoria, o método e a técnica a ser utilizada por estes monitores, utilizando-se a teoria libertadora de Paulo Freire – e a escolarização daqueles que não tenham o 1o grau, visitas de instalação das turmas. Em se tratando do curso de pedagogia, as fases seguintes à apresentação do projeto são, a seleção para o vestibular, a realização do vestibular e demais ações obrigatórias para ingresso no nível superior. Difere-se também a quinta fase: da avaliação que, no caso da alfabetização ocorre durante as etapas de capacitação e visitas as salas de aula pelos alunos 253 254 Nead Especial 2 bolsistas e coordenadores dos projetos e no caso do curso de pedagogia da terra, ocorre normalmente no encerramento de cada etapa. O acompanhado do projeto desde sua apresentação até sua conclusão é realizado por todos os parceiros nele envolvido. A história da educação do campo A história da educação do campo se dá no bojo da evolução da luta pela reforma agrária e de como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem-Terra (MST) desenvolve esta luta. O MST é fruto do processo histórico de resistência dos camponeses brasileiros que tiveram a oportunidade de socializar as suas experiências e ousaram unirem as suas forças em uma luta comum. O enfrentamento do problema educacional vivido pelos trabalhadores nas áreas de reforma agrária extrapolava a necessidade das famílias que queriam o acesso à escola para seus filhos. As famílias já entendiam que a educação é um direito. Na concepção de Stédile (2003): “Um direito que se dá em duas linhas: na linha política a luta pelo direito e pelo acesso à alfabetização de jovens e adultos; e na linha pedagógica com o processo de uma proposta própria de educação do MST.” Assim, iniciam-se encontros do movimento com educadores e educadoras do campo, formados e em formação, para discutirem as práticas e as medidas a serem adotadas para difundirem a educação diferenciada aos trabalhadores rurais (ou do campo). Em julho de 1995 é publicado o Programa de Reforma Agrária do MST que entre as características da reforma agrária necessária indica “o desenvolvimento social e nele a alfabetização de todos, jovens e adultos” (Caderno de formação no 23, p.26). É realizado em julho de 1997, o 1o Encontro Nacional dos Educadores e das Educadoras da Reforma Agrária (Enera), no campus da Universidade de Brasília (UnB). No encontro houve uma socialização de experiências sendo a EJA discutida como Sem-terra oriundos de vários estados se reúnem em Cascavel, PR, e fundam o MST em janeiro de 1984. João Pedro Stédile é líder nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra Memória Incra 35 anos uma das grandes bandeiras de luta do movimento. Os frutos colhidos do Encontro foram uma série de convênios firmados com Ministério da Educação (MEC), Unesco, Unesp, Unijui, Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos). A proposta de um fundo governamental para financiar a educação nas áreas da reforma agrária. É realizada em julho de 1998 a Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, promovida pelo MST, CNBB, UnB, Unesco e Unicef; na Conferência reafirmou-se que o campo existe e que é legítima a luta por políticas públicas específicas e por um projeto educativo próprio para quem vive nele, oficialmente é implementado o Pronera, com recursos para projetos educacionais em parceria com as instituições de ensino superior, escolas agrotécnicas federais, Escola Família Agrícola. Educadores e educadoras dos movimentos sociais e das universidades se juntam constituindo um espaço permanente de debate sobre a educação básica do campo, na Articulação Nacional por uma Educação do Campo. O 1o Encontro Nacional de Educadores e Educadoras de Jovens e Adultos, com o objetivo de aprofundar a proposta de EJA no MST articulado à construção de um projeto popular para o Brasil, aprofundou a discussão relativa à educação que se desejava e a compreensão de que não se podia repetir nas escolas do campo a educação convencional aplicada nas cidades. Neste encontro definiu-se que “a linha teórica da educação do campo na pedagogia libertadora de Paulo Freire, deve estar vinculada a um projeto de desenvolvimento do campo, onde está incluída a reforma agrária e, um projeto popular de desenvolvimento do Brasil.” (Caderno de educação no 11, p. 26). A identidade dos sujeitos do campo Quem são os sujeitos do campo e o que trazem de novo para a agenda nacional do governo? Por que não se aceita mais falar em educação para o meio rural? O que difere a educação rural da educação do campo? Essas e outras reflexões irão constituir a identidade dos sujeitos do campo, que vêm sendo desenhada a partir da compreensão de que a luta do movimento por uma educação do campo é por políticas públicas que garantam o seu direito à educação e a uma educação que seja no e do campo. No dizer da professora Roseli Salete Caldart “No – o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; Do setor de Educação do MST e da Articulação Nacional por uma Educação do Campo. 255 256 Nead Especial 2 Do – o povo tem direito a uma educação pensada desde seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais.” Os sujeitos da educação do campo são os sujeitos do campo, a perspectiva da educação do campo é educar o povo para que se articulem, se organizem e assumam a condição de sujeitos da direção de seus destinos. Trata-se de políticas públicas educacionais feitas dos e não para os sujeitos do campo, construídas com os próprios sujeitos dos direitos que as exigem. O campo brasileiro vem sendo tratado pelos vários governos como um espaço diferenciado em oportunidades, reproduzem a escola da cidade nos campos brasileiros, reafirmam a máxima de que se deve “estudar para sair da roça, ou sair da roça para estudar,” colocando sempre o espaço do campo como sendo do atraso, da pobreza, reforçando a dicotomia campo X cidade; quando na realidade sabemos que ambos se complementam, um não existe sem o outro. Os sujeitos do campo são aqueles que enfrentam e sentem na própria pele os efeitos dessa realidade e não se conformam com ela. São os ribeirinhos, os meeiros, os pescadores, os seringueiros, acampados, assentados, colonos, quilombolas, povos indígenas, pequenos agricultores, povos da floresta, roceiros, bóias-frias e outros grupos mais. Embora os traços entre os diversos povos sejam bastante diferentes, tais diferenças, entretanto, não apagam a identidade comum de que todos são brasileiros que vivem no campo e que historicamente têm sido vítima da opressão, da discriminação, quer seja econômica, política ou cultural. A consciência das diferenças e das diversas identidades e culturas construídas em séculos de história, não enfraquecem o movimento, ao contrário, torna-o mais forte, a perspectiva deve ser sempre a do diálogo e do respeito às diferenças, tornando o movimento por uma educação do campo, um movimento plural em suas expressões e em seus movimentos. Alfabetização de jovens e adultos em Rondônia Os primeiros projetos de alfabetização de jovens e adultos na linha da educação do campo são apresentados ao Incra em 2000 para execução em 2001, pela Universidade Federal de Rondônia, tendo as parcerias dos movimentos sociais e a coordenação geral de professores da universidade: Memória Incra 35 anos […] nesse primeiro projeto buscamos enfatizar a construção política ideológica do papel dos agentes sociais envolvidos no processo educacional que se quer desenvolver e a pratização da teoria freireana aos trabalhadores do espaço do campo. Já tínhamos a experiência da educação popular de Paulo Freire, entretanto na cidade, o enfrentamento foi aplicar a mesma prática no campo. (M i r a n d a , Marilsa, 2001) Os projetos atendiam um total de mil e seiscentos trabalhadores rurais em assentamentos nos municípios de Theobroma e Rolim de Moura, tendo sido montadas 80 turmas e envolveu uma equipe de cem) pessoas. Os maiores problemas foram a evasão, a maioria por dificuldades visuais e de acesso (estradas), o atraso no repasse dos recursos pelo governo Federal e a mobilização do povo que vive no campo, com suas diferentes identidades e organizações. Não obstante todos os desafios enfrentados atingiram-se a meta dos projetos, oitenta por cento dos alunos conseguiram se alfabetizar e ampliaram-se os limites do ser desses indivíduos, que agora que descobriram o mundo das letras, querem continuar seus estudos. Em 2002 para execução em 2003, foi apresentado novo projeto ao Incra, cujo objeto foi a alfabetização de jovens e adultos, tendo como diferencial a ausência da parceria com os movimentos sociais organizados (MST), a proposta de parceria apresentada neste projeto envolviam as associações de produtores rurais, outra novidade trazida no bojo deste projeto era o atendimento aos assentados do Incra na área ribeirinha. O projeto contemplava a alfabetização mil alunos e a escolarização (elevação da escolaridade) de 50 monitores ou educadores populares. Os maiores entraves na execução deste projeto estiveram no acompanhamento das turmas, já que se espalharam pelo Estado todo, e sem a parceria do MST, teve dificuldade de discutir e implementar a pedagogia freireana, ficando mesmo no processo educacional de alfabetização tradicional, ou seja, o “Ivo continuou vendo a uva.” Enfrentaram-se outras dificuldades, como o acesso (agora com o complicador da área ribeirinha), a falta de energia elétrica nas salas de aula, e o atraso no repasse dos recursos, porém superou-se o entrave da dificuldade visual, já que ocorreram alterações nas normas de execução e aplicação dos recursos, autorizando a aquisição de óculos. 257 258 Nead Especial 2 Apesar de todas as dificuldades os alunos, agora alfabetizados, manifestaram desejo de continuar a estudar, e após a realização do Encontro Estadual por uma Educação do Campo e o Encontro do Campo e da Floresta da Região Norte, em que estiveram presentes alunos, monitores, coordenadores, movimentos sociais e instituições governamentais, constitui-se um espaço de discussão das diferenças da região norte e de suas peculiaridades, resultando em várias alterações nas orientações sobre a execução dos projetos. Novamente em 2003, a universidade apresentou projeto de alfabetização para execução em 2004, atendendo mil alunos nos municípios de Alta Floresta, Alto Alegre, Alvorada do Oeste, Cacaulândia, Candeias do Jamari, Campo Novo, Governador Jorge Teixeira, Montenegro, Nova Mamoré, Porto Velho, Presidente Médice, Theobroma, Vale do Anari e Urupá. Desta vez, já atendendo reivindicações, o atendimento pôde ser estendido aos trabalhadores em acampamentos. Esse projeto está em execução, porém algumas das dificuldades de ordem estrutural estão sendo superadas, não acontecem mais atrasos nos repasses dos recursos federais, que já são disponibilizados no início de cada exercício; entretanto o desafio da educação do campo permanece, há uma resistência muito grande pelos pedagogos, pelos educadores e pelos próprios alfabetizandos de implementarem a práxis da pedagogia libertadora, a democratização dos conteúdos, o ensinar a aprender e o professor progressista-libertador. Pedagogia da terra Além dos projetos educacionais de ensino fundamental e médio, emerge uma demanda maior que é a de formação em nível superior dos educadores e educadoras do campo. Nessa perspectiva as universidades federais por meio do Pronera passaram a desenvolver projetos, incluindo a agenda da educação do campo nos sistemas federais de ensino superior, apresentando cursos específicos aos educadores do campo, os chamados cursos de pedagogia da terra. Os cursos de pedagogia da terra foram inicialmente implantados nos Estados: RS, MT, ES, PA, RN. Em Rondônia, por ocasião do I Seminário por uma Educação do Campo em Rolim de Moura (2003), após várias reuniões envolvendo os diversos parceiros, Memória Incra 35 anos Incra, UNIR, MST, MPA, e outros, decidiu-se pela apresentação do primeiro curso de pedagogia da terra. O projeto foi apresentado junto ao Incra, aprovado na coordenação pedagógica nacional do Pronera e implantado a partir de janeiro de 2004. O curso foi pensado em etapas, que acontecem nos meses de janeiro e fevereiro, junho e julho, no Campus da Universidade Federal de Rondônia em Rolim de Moura e atende a um número de sessenta alunos/assentados oriundos de vários assentamentos do Incra no Estado, indicados pelos movimentos sociais que já atuam como educadores e educadoras do campo. O processo de seleção obedece aos procedimentos legais do MEC e a carga horária é a mesma dos cursos de graduação, sendo que os alunos durante as etapas estudam manhã, tarde e noite. Os alunos ficam hospedados no campus, o que facilita o acontecer das aulas. A metodologia aplicada é a da concepção educacional de Paulo Freire, “combinando estudo com trabalho, com cultura, com organização coletiva, com postura de transformar o mundo, dialogando com a realidade mais ampla e com as grandes questões da educação, da humanidade” (Educação do campo: Identidade e políticas públicas, vol. 4, p.35). A formação desses pedagogos da terra para trabalhar a educação do campo, nas escolas do campo, irá fortalecer o processo educacional diferenciado aos povos do campo. É, sobremaneira, um grande passo na busca de políticas públicas de educação do campo. Conclusão Apresentamos neste artigo, de forma bastante sucinta, as discussões que vêm acontecendo sobre o movimento por uma educação do campo concebido pelos movimentos sociais organizados que pleiteiam uma educação diferenciada aos povos do campo. As experiências apresentadas em Rondônia e desenvolvidas em todo o Brasil, pelo Pronera e de outras na mesma linha, constatam a viabilidade de se incluir na agenda governamental a transformação desses programas em políticas públicas de educação do campo. Só podemos conceber um processo real de formação, se realizado a partir e com os sujeitos nele envolvidos, de tal sorte que, a educação do campo irá 259 260 Nead Especial 2 revolucionar a idéia arcaica e ultrapassada do campo como um lugar de atraso e subdesenvolvimento. São grandes os esforços dos envolvidos para que os avanços educacionais aconteçam. São grandes também os desafios colocados e o principal deles é o envolvimento de maior número de professores dentro da universidade federal à frente de projetos inovadores e revolucionários como este, na busca de um novo modelo de desenvolvimento e de ampliar os espaços do campo. É preciso se desafiar em transformar o conhecimento em ação. Colocar em prática, vivenciar valores, conteúdos e reflexões, contribuindo para o processo de organização do povo que vive no campo, para a construção de um modelo de desenvolvimento e de um novo papel para o campo neste modelo, repensando e redesenhando o desenvolvimento territorial brasileiro. Referências Caderno de Educação- Deliberações do I Enera. Brasília: abril 2003. Caderno de formação- Programa de reforma agrária do MST. Brasília: 2003. M ULLER , Mary Stela; C ORNELSEN , Julce Mary. Normas e Padrões para teses, dissertações e monografias. 5a ed. atualizada. São Paulo: Eduel, 2004, 155p. K OLLING , Edgar Jorge: C ERIOLI , Paulo Ricardo; C A LD A RT , Roseli Salete. (Orgs). Por uma educação do campo. Educação do Campo: Identidade e políticas públicas. Coleção por uma educação do campo, no. 4. Brasília: 2002. 23 O Incra e as ações de reforma agrária brasileira surpreendem e impressionam o mundo E loy A lv e s F i l h o Múltiplas são as formas e as cores que um olhar pode captar através da lente de um caleidoscópio… A cada impacto novas formas e combinações de cores produzem-se e compõem um mosaico de 35 anos de uma história vitoriosa. O presente texto tem por principal objetivo trazer à tona, a partir de um olhar particular, fragmentos colhidos de diferentes momentos em que a minha trajetória profissional, como professor e pesquisador, se conecta e interpenetra com a história desta autarquia que comemora seu 35o aniversário. Aceitar o desafio de escrever sobre a implementação do Programa de Reforma Agrária no Brasil sob os auspícios do Incra resulta das análises que venho fazendo, há cerca de vinte anos, sobre os aspectos que a caracterizam, o sistema de poder e as políticas públicas que contribuem ou inviabilizam a geração de emprego e de renda para uma parcela da população que vive no campo. Sob esse enfoque, trata-se de um esforço pessoal de inscrever minhas reflexões nos atuais debates que visam compreender as transformações macroestruturais que vêm ocorrendo nas sociedades, desde o final do século XX. Após anos de estudos sobre temas como ação coletiva, movimentos sociais, reforma agrária e a rica oportunidade de atuar como superintendente regional do Incra sinto renascer em mim, e na sociedade em geral, a esperança de ver surgirem ações que revitalizam ideais sobre a imprescindibilidade do Incra e de um programa nacional de reforma agrária. Ressalto que, indiscutivelmente, à frente da formulação e da execução dessa empreendedora política pública se encontra o Incra, órgão inúmeras vezes criticado, política e socialmente, mas inabalável em seus princípios, gerados de sólidos alicerces fundados na justeza de seus objetivos e retidão de seus métodos. 262 Nead Especial 2 Cabe, porém, ressaltar que, na atualidade, a globalização hegemônica e neoliberal apregoa o Estado mínimo, ou melhor, defende a tese de que cada vez menos responsabilidades sociais devem ser assumidas pelo Estado, tendo como um de seus principais efeitos a diferenciação social, a crescente marginalização de certas parcelas da população e a gradual destruição das solidariedades sociais. Sabe-se, no entanto, que o modo como a globalização produz esses efeitos não é linear, tal como não o é a própria globalização, entendida aqui como um conjunto de processos movidos tanto por influências políticas como econômicas. O fenômeno é muito complexo, uma vez que ocorre no âmbito de uma tensão dialética entre a integração de novos espaços sociais, necessária à expansão das oportunidades no mercado global, e a fragmentação dos grupos sociais, conseqüente da diferente dotação de recursos para aproveitar essas oportunidades. Porém, o aproveitamento dessas oportunidades está condicionado pela disponibilidade de recursos materiais e tecnológicos desigualmente repartidos pelos grupos sociais. A questão agrária brasileira, nesse contexto, não pode aparecer como questão agrária, mas apenas residualmente como problema social. Sob esse enfoque, ela se manifesta não como irracionalidade para o desenvolvimento capitalista, mas como problema de emprego, trabalho e sobrevivência para as populações carentes e que o próprio caráter capitalista da propriedade cria ao se modernizar e se desenvolver. Nesse âmbito, as ações empreendidas pelo Incra, tanto na elaboração como na implementação de um programa de reforma agrária vêm, admiravelmente, conquistando, a cada ano, maior reconhecimento e legitimidade junto à sociedade e aos movimentos sociais, seja por sua capacidade para administrar e manter um profícuo diálogo com os trabalhadores rurais seja pelo respeito que vêm demonstrando à luta pelo direito à concessão de um pedaço de terra, fonte de trabalho e sustento de tantas famílias brasileiras. Geralmente, programas sociais de tipo estruturante, isto é, que buscam promover a inserção, de forma mais duradoura, de excluídos, de injustiçados e de discriminados socialmente, têm vida curta, tanto por questões políticas e ideológicas quanto por seus elevados custos. Surpreende, e é ao mesmo tempo motivo de orgulho, que o Programa Nacional de Reforma Agrária capitaneado pelo Incra venha se revelando, nas últimas três décadas, como um dos raros programas sociais eficientes, contínuo e abrangente. Memória Incra 35 anos Contabiliza-se, na atualidade, a implantação de milhares de projetos de assentamentos, o investimento de bilhões de reais gastos para assentar milhares de famílias. Apesar da enorme carência de técnicos, de equipamentos e das dificuldades enfrentadas para atender a imensa demanda, o modo como o Incra vem conduzindo o Programa Nacional de Reforma Agrária revela a fibra dos servidores dessa autarquia e a força política dos trabalhadores rurais brasileiros para verem cumpridos os compromissos para com essa parcela de excluídos. As vozes dos trabalhadores rurais ecoaram de todos os recantos do Brasil e foram ouvidas em todo mundo. As reivindicações por terra para trabalho, produção, cidadania e respeito ao meio ambiente foram entendidas pela sociedade e os produtos da reforma agrária ultrapassaram nossas fronteiras, repercutindo no mercado internacional. A reconstrução da estrutura familiar em um mesmo local de vida e trabalho, produção, emprego e, também, reprodução familiar, onde os valores culturais, sociais, religiosos e ambientais foram resgatados, são alguns dos aspectos essenciais que caracterizam a reforma agrária brasileira. Essas, entre outras razões, têm estimulado cientistas sociais e economistas de várias partes do mundo a realizarem estudos sobre as características similares de ação e de subordinação de trabalhadores rurais, em diversos momentos históricos, às políticas e programas que os têm como principais beneficiários, na perspectiva de que a socialização de conhecimentos, experiências, saberes e expectativas desses contingentes populacionais dêem visibilidade às diferentes “vozes do campo” e somem esforços na direção de contribuir para um desenvolvimento rural integrado e sustentável em favor dos pobres. Considerando os imperativos que visam a emancipação social, ressalto a pertinência de pensar e de discutir sobre o futuro de comunidades rurais brasileiras, especialmente as suas relações sociais internas e o acesso aos recursos necessários para ultrapassarem uma histórica pobreza estrutural. Engajado no esforço para ampliar a compreensão que se tem sobre os modos de organização e o cotidiano das vidas de trabalhadores rurais, na perspectiva de contribuir na criação de alternativas que viabilizem a transformação social, política, econômica e cultural necessária tanto à promoção de uma vida mais digna e feliz como à garantia dos direitos àqueles que vivem no e do campo, me dediquei, no último ano, a investigar e conhecer o processo de reforma agrária 263 264 Nead Especial 2 implementada em Portugal, sem deixar, porém, de a considerar como um fato histórico e, nestes termos, datado e determinado pela história social, cultural, econômica e política de cada país. As imagens de futuro que trarei para o espaço deste texto, mesmo que seja de um futuro que já nos sentimos percorrer, é sempre o produto de uma síntese pessoal embebida na imaginação, no meu caso, na imaginação sociológica. O estudo sobre a experiência portuguesa estará aqui referido como forma de, mais uma vez, ressaltar a importância da criação dessa autarquia brasileira que vem, sábia e articuladamente, desempenhando a nobre tarefa que lhe coube. Começo destacando a forma como os dois espaços geográficos se inseriram no movimento em favor da reforma agrária, as políticas que adotaram, as especificidades e as recorrências entre os dois casos em questão: o caso brasileiro e o caso português. O estudo pautou-se tanto por uma análise das ações governamentais e dos movimentos sociais em favor de uma reorganização da estrutura fundiária, de geração de emprego e inclusão social, no Brasil e em Portugal, como pela identificação de pontos convergentes e divergentes entre os saberes produzidos e acumulados pelos trabalhadores rurais dos dois países. As formas como, em 1834, os latifundiários portugueses arremataram as terras da igreja e os princípios que nortearam a Lei de Terras de 1850, no Brasil, além da proximidade temporal, que não é mera coincidência, têm muito em comum. O impasse político e a crise social e econômica que caracterizavam as duas sociedades rurais, acentuaram uma crise de todo um modelo de desenvolvimento que ofereceu as condições fundamentais para que se desencadeassem processos de reforma agrária nos dois países. O amplo debate suscitado pela sociedade brasileira e o envolvimento de outros países sul-americanos com o programa de reforma agrária, deixou o novo governo do Regime de Exceção sem alternativa senão manter a questão dentro das ações prioritárias do plano de governo. Para viabilizar as ações, iniciou um processo de criação de mecanismos legais que facultavam à União o poder de desapropriar terras, por interesse social, para fins de reforma agrária, mediante o pagamento de prévia e justa indenização com títulos especiais da dívida pública. O governo militar estimou que a criação tanto do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) como do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) Memória Incra 35 anos pudessem, então, garantir os meios para executar a reforma agrária. Porém, os resultados econômicos, sociais, culturais e ambientais das ações desses órgãos foram desastrosos para a sociedade. Na perspectiva de reverter esse quadro, criou-se em 9de julho de 1970, por meiodo Decreto no 1.110, o Incra, resultado da fusão do Ibra e do Inda. Vários programas especiais de desenvolvimento regional foram implementados, mas os impactos ou os resultados foram pequenos em relação às propostas e os recursos disponibilizados. Em razão do não atendimento às demandas dos trabalhadores rurais semterra, da baixa eficiência na alteração da estrutura fundiária brasileira, do agravamento dos problemas sociais, do início do processo de redemocratização do país, a questão da reforma agrária voltou à discussão, em todos os níveis e nos mais diversos fóruns, nos primeiros anos da década de 1980. Cruzam-se, mais uma vez, as histórias dos dois países. Em meados das décadas de 1970 e 1980, respectivamente Portugal e Brasil, superaram longos e desastrosos regimes ditatoriais. A abertura política liberou anseios democráticos e permitiu que as categorias sociais, até então excluídas, se organizassem e reivindicassem alguma forma de inclusão e de emancipação social. A mobilização social para resgatar a democracia, a institucionalização de um governo civil e as graves questões sociais existentes no país, levou às formações, no início dos anos de 1980, de diversos movimentos de trabalhadores rurais. Essa mobilização, a organização social de outros movimentos e a formalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em 1984, foram fatores cruciais para a inclusão, na Constituição Federal de 1988, de dispositivos que permitissem a desapropriação de terras que não estivessem cumprindo a sua função social. Os movimentos sociais foram, e continuam sendo, como o MST, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e outras siglas regionais, um contínuo fator de pressão social sobre os poderes constituídos pelo avanço da reforma agrária no Brasil. O decreto do governo no 97.766, de 10de outubro de 1985, determinou, após ampla e complexa discussão com a sociedade, a elaboração de um ambicioso Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que coube ao recém-criado Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e Reforma Agrária (Mirad) implementar com a meta utópica de assentar 1,4 milhão de famílias em quatro anos e desapropriar 43 milhões de hectares de terras. 265 266 Nead Especial 2 As diferenças entre as metas propostas e os resultados obtidos refletiram-se no intenso debate político e ideológico sobre as questões orçamentárias, os entraves jurídicos e a baixa capacidade operacional dos Órgãos responsáveis pela reforma agrária resultaram na extinção do Mirad e do Incra em 1987. No período entre 1987, ano da extinção do Incra, até sua recriação em 1989, o Ministério da Agricultura ficou responsável pela reforma agrária no país. Desde então, a política e as ações de Reforma Agrária sofreram profundas alterações, seja com dotações orçamentárias crescentes seja com importantes alterações legislativas e metodológicas que deram condições ao Incra agir na direção de consolidar sua missão institucional. Por seu lado, a revolução de 1974 trouxe consigo o prenúncio de uma nova era em Portugal. No período de 1975 a 1978, ocorreram ocupações de mais de um milhão de hectares e a criação de centenas de Unidades Coletivas de Produção (UCP’s), gerando emprego para milhares de trabalhadores rurais. A reforma agrária portuguesa teve apoio das Forças Armadas e do Partido Comunista Português, uma das razões para que tenha se caracterizado como um movimento regional, circunscrito ao Alentejo, não contando com nenhum outro tipo de apoio, nem mesmo dos pequenos proprietários. Neste sentido, em ambos os países, os trabalhadores rurais, desprovidos do capital necessário à exploração da terra, organizaram-se, transformando-se em um dos mais fortes movimentos sociais surgidos no final do século XX, com duração mais efêmera em Portugal, mas que ainda continua agindo ativamente no Brasil. Tanto no Brasil como em Portugal a abrangência da reforma agrária parece corresponder ao tamanho, à força política e à organização do movimento social que a reivindica. No caso português, os movimentos sociais em favor de uma transformação na estrutura fundiária ficaram restritos ao Alentejo. Os movimentos sociais de luta pela terra, no Brasil, vêm se transformando em exemplos de organização e de mobilização social, o que nos faz pensar que as reservas de possibilidade histórica das populações rurais representam, e muito, sua capacidade para reinventar o mundo e se reinventar no mundo. São, também, exemplares as relações que o Incra mantém com todos os movimentos sociais, agindo com cordialidade, primando pela igualdade de direitos e de tratamento, independentemente da corrente ideológica do movimento social. Os trabalhadores rurais, tanto na experiência brasileira como na experiência portuguesa, entendem a reforma agrária como uma alternativa pertinente ao Memória Incra 35 anos processo de redemocratização da sociedade, no sentido de ter como finalidade máxima a garantia do acesso à terra àqueles que dela retiram a renda necessária para sua subsistência. Porém, tal alternativa é significada de modos diferentes em cada cultura. Outro aspecto interessante que difere da noção corrente no Brasil e que merece ser ressaltado é o significado da terra. A terra, para todos os trabalhadores rurais portugueses, inclusive para os que se envolveram e lutaram em favor da reforma agrária, é tida como um espaço de trabalho, nunca entendida como passível de se tornar propriedade privada. Por sua vez, no Brasil, a maioria dos trabalhadores rurais almeja a propriedade individual da terra, enquanto algumas lideranças e intelectuais defendem a nacionalização e a desapropriação privada da terra, sendo o Estado seu fiel guardião, cedendo seu adequado uso aos que nela trabalhem. Destaca-se, nesse contexto, uma diferença significativa quanto ao grau de autonomia e de independência que trabalhadores rurais portugueses e brasileiros puderam vivenciar, em decorrência dos processos de reforma agrária nos dois países. Os trabalhadores rurais, em Portugal, saíram, na sua maioria, da condição de desempregados ou empregados temporários para a condição de proletários, pois eram empregados das UCPs, não desfrutando, assim, de um maior grau de autonomia, mantendo-se subjugados às ordens das direções das cooperativas. No caso dos trabalhadores brasileiros, considera-se que, apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas no cotidiano de suas vidas, a condição de proprietário de seu lote de terra lhes garante um maior grau de autonomia e espaço para criação de ações emancipatórias. Porém, respeitadas as diferenças de espaço e de tempo em que se deram as experiências de reforma agrária nos dois países, ambos os grupos de trabalhadores enfrentam, na atualidade, dificuldades similares para sobreviverem e retirarem do trabalho da terra seu sustento e de sua família. A principal diferença, em termos de expectativas futuras na transformação das condições de vida dos trabalhadores rurais nos dois países está, exatamente, na possibilidade de que os trabalhadores rurais brasileiros, diferentes do que ocorre na realidade portuguesa, podem contar com o apoio imprescindível e institucional do Incra. 267 268 Nead Especial 2 Cabe ressaltar que o Incra não mede esforços para atender as demandas dos trabalhadores rurais e, também, diversifica suas atividades na busca por atender os agricultores beneficiários da reforma agrária de forma integral e abrangente. A Autarquia entendeu, desde o início, que apenas a terra era insuficiente para garantir a sustentabilidade do programa e ampliou suas ações. Vem sendo indispensável para o sucesso do programa de reforma agrária brasileiro, mesmo que ainda em número insuficiente, as obras de infra-estrutura, os créditos para habitação, produção, assistência técnica e ambiental. Esse conjunto de ações, não implementadas em Portugal, confirma o acerto na elaboração do Programa de Reforma Agrária levado a termo pelo Incra e a eficiência desta autarquia na sua condução. Embora possa considerar-se que tanto a formulação como a execução de políticas públicas seja papel do Estado e, especialmente, no caso da reforma agrária, seja de sua competência a criação do Programa de Desenvolvimento Rural Sustentável, reconhece-se, igualmente, que um programa de reforma agrária deve, além de garantir o desenvolvimento, a consolidação da agricultura familiar e o fortalecimento da economia camponesa, representar uma forma de favorecer tanto a inclusão social do homem do campo e/ou de seus beneficiários no mercado de trabalho e no processo produtivo como favorecer a sua participação em espaços nos quais se definem as diretrizes de ação, estimulando, assim, a preservação da cultura e dos valores daqueles que constituem a comunidade que coabita nos projetos de assentamentos. O Incra, apesar de sua juventude, já é parte integrante e inesquecível da história brasileira, seja como um órgão público responsável pela fiscalização e normatização do território nacional seja como planejador e executor de um dos maiores programas de inclusão social em andamento. Diferentemente de Portugal, onde a reforma agrária teve uma duração muito curta, o Incra tem conduzido, desde sua criação, uma reforma agrária de âmbito nacional, independentemente do tamanho continental do Brasil e de sua diversidade social, econômica, política, étnica e cultural. A consolidação do Incra como autarquia deu-se graças à dedicação dos servidores que, em alguns casos, arriscam a própria vida enfrentando a violência de latifundiários inconformados com o processo de desapropriação pelo não cumprimento da função social da terra. A soma desses esforços constitui-se na base de um patrimônio moral admirado no mundo inteiro. O acúmulo de inúmeras experiências bem sucedidas, o apoio e o reconhecimento tanto por parte dos Memória Incra 35 anos movimentos sociais como por parte da sociedade em geral é que garantem à autarquia a respeitabilidade necessária para sua continuidade. A cada dia o papel reservado ao Incra se torna mais importante e abrangente, pois, além da reforma agrária, agora está conduzindo magistralmente o re-ordenamento territorial brasileiro, ação de suma importância para toda sociedade brasileira. A reforma agrária portuguesa, por seu lado, caracterizou-se pela falta de apoio político, para haver maior abrangência nas ações que visavam promover a reforma agrária em todo o território nacional, pela descontinuidade e pela inexistência de créditos e de assistência técnica. Enfim, a ausência de um órgão como o Incra, lamentavelmente, inviabilizou a reforma agrária condenada a uma vida curta, ou seja, a chama da esperança para milhares de trabalhadores rurais apagou-se em cinco anos. No Brasil, embora as medidas de desapropriação de terras permaneçam como instrumentos básicos para angariar recursos fundiários para assentar famílias com perfil de trabalhador rural, o Incra utiliza-se de alternativas para ampliar ao máximo a obtenção de áreas rurais, tal como o uso de terras públicas e daquelas disponibilizadas por aquisição, diferentemente do que significaram em outros períodos, as regularizações fundiárias se constituem hoje na possibilidade de inclusão de posseiros pobres ao cenário da agricultura familiar. Certamente concorda-se com aqueles que reconhecem que há muito que fazer ainda em termos, especialmente, de ressocialização dessas populações para perspectivas que se abrem e, também, que essas não dependem apenas da regularização fundiária, mas da participação efetiva de agentes de mediação e beneficiários. Estima-se que o cumprimento do que prevê o artigo 86 da Constituição Federal de 1988, ou melhor, que a mobilização dos trabalhadores imponha que a função social da propriedade seja tomada como referência na definição de ações integradas e articuladas entre os trabalhadores rurais e o Incra, os ministérios do Desenvolvimento Agrário, da Agricultura, da Saúde, da Educação, do Trabalho, do Meio Ambiente e ainda da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) pois, só assim, um programa de reforma agrária pode, de fato, se constituir como um instrumento político de desenvolvimento social, cultural e econômico para transformar a realidade da sociedade rural do Brasil. Tenho a expectativa de que a força dos movimentos sociais não se arrefeça e faça avançar a reforma agrária em detrimento do injusto latifúndio improdutivo 269 270 Nead Especial 2 e em favor dos trabalhadores rurais sem ou com pouca terra. A democracia não é algo assegurado automaticamente. Ela é, sim, decorrente de uma ação coletiva que viabiliza a negociação e a instauração de acordos públicos. Estimo que a sociedade civil, os movimentos sociais, os intelectuais e os setores progressistas continuem reconhecendo e oferecendo o apoio necessário para que o Incraconclua de maneira adequada a impostergável a reforma agrária brasileira. Encerro minhas reflexões lembrando um pensamento com o qual concordo plenamente. Na atualidade, “se anuncia um conceito alternativo de cidadania para o século XXI, uma revisão da idéia ilustrada de tolerância e uma ampliação da idéia tradicional dos direitos humanos.” 24 Nossa parcela de contribuição para auxiliar no resgate de sua memória A l i n i o R o s a S o a r e s e S i lva Trinta e cinco anos atrás, num dia nove de julho, o Brasil deu mais orgulho e esperança ao seu matuto. Ao ser criado o Instituto, cuja causa humanitária de fazer reforma agrária produziu emprego e renda amenizando a fazenda da contenda fundiária. Como Instituição, o nosso Incra surgiu quando um decreto fundiu o Ibra, o Gera e o Inda. Nesse tempo a Nação brinda, no futebol, grande ato da seleção no estrelato, que a gente lembra e comenta que o Incra nasce em setenta, em pleno tricampeonato. Para resgatar sua história o Incra fez um concurso convocando ao discurso cada um, em verso ou prosa. Esta causa tão honrosa enaltece o funcionário, que depõe nesse cenário, pois teve um papel em cena. E, por certo, vale a pena ouvir seu documentário. O primeiro desafio do Órgão, em seu roteiro, foi agir de timoneiro da integração nacional. Num País continental, com Amazônia devoluta, valeu a fé resoluta do Incra e do seu colono que não largou no abandono os tantos anos de luta. 272 Nead Especial 2 Do período militar ao fim dos anos oitenta o colono representa nosso principal emblema. Porém, mais tarde um problema ganha mais notoriedade: o acesso à propriedade através das invasões, atraindo multidões inquieta a sociedade. Com isso a Reforma Agrária muito mais nos foi cobrada, com tanta gente acampada, pelos confins do Brasil. O trabalhador servil, não se fez mais de rogado: quis o seu quinhão dobrado, cobrando o lote e o fomento. O Incra nesse momento não se furtou ao legado. Os anos noventa vêm acarretando mudanças que influíram nas finanças e atribuições do instituto. O ITR era um tributo no cadastro arrecadado, porém, foi determinado, que por ser imposto, o tal, na Receita Federal seria centralizado. Diante da nova ordem, o órgão, então, recorre à vocação que decorre da força do próprio nome. O Incra não se consome enquanto lembrar reforma, postada por sobre a norma para assim, ser respeitado. O bem em prol do Assentado é a melhor coisa que informa. Tal como tantos cadastros, e tantos assentamentos! Tal como tantos fomentos e tantas habitações! Não obstante invasões, tem superado os impasses, convidando sempre as classes, a por as cartas na mesa. Nosso Incra, com certeza, coopera para os enlaces. O Incra chegou assim, ao final século vinte cumprindo a lei com requinte e atento à causa rural. O Empreendedor Social, no ano de dois mil, criado, foi um programa pensado. Para ser linha de frente, no campo, tal como um agente do Incra para o assentado. Memória Incra 35 anos E nessa missão de ponta, como um dos protagonistas, fizemos muitas visitas em áreas de atuação. Checando a situação de cada assentamento pro seu desenvolvimento, na produção, dia a dia. Levar a cidadania foi nosso contentamento. Nós, da Superintendência do Rio Grande do Norte, queremos um Incra forte, como forte é o sertanejo. E haverá maior festejo, para nós, seus servidores, quando além de agricultores, os atuais assentados, na educação, formados, consigam ser vencedores. Nossas congratulações pelo Incra e sua história, deixamos como memória por estas linhas gravadas. As vitórias conquistadas sobrepujam desenganos. Pelos projetos e planos que todo o país aprova, desejamos vida nova por mais trinta e cinco anos. O Incra surge na história do Brasil como uma conquista do povo brasileiro para trazer a terra à sua função social como agente pacificador dos conflitos agrários, na condição de parceiro dos sem-terra e dos assentados na revolução do campo.” Revolução do campo A história do Brasil constará nos seus anais os movimentos sociais que hoje lutam por terra. Quase num clima de guerra surge a tal revolução que põe fim à relação de senhor e agregado na figura do assentado com seu pedaço de chão. Desde os tempos medievais que o pequeno camponês pela terra espera a vez para melhorar sua renda. Quem vivia na fazenda dando duro, anos a fio, à mercê do senhorio, não tendo prosperidade, supera a mediocridade lutando com honra e brio. 273 274 Nead Especial 2 Fez valer-se Cidadão, o agricultor servil que vivia no Brasil no cabresto do curral. O Instituto Nacional, dito Incra, soletrado, tendo o Brasil parcelado, ao fazerr agrária, fez-se força libertária aliada ao assentado. A injustiça social emperra a democracia. Nosso Incra aguarda o dia que aja paz entre irmãos. Nem todos somos cristãos; nem todos são muçulmanos.Mas, todos, seres humanos, qual flores de um mesmo jarro.A mão que amassa o barro merece melhores anos… O Incra administrando conflitos agrários – O fazendeiro e o sem-terra simulam, num diálogo, os conflitos entre classes que o Incra, através dos seus servidores tem testemunhado ao longo da fase mais crítica das pressões sociais, nos últimos dez anos. O fazendeiro e o sem-terra No Brasil sempre ocorreu o conflito social, desde os tempos de Cabral, que a injustiça, o campo vê. E com o MST, movimento proletário, no meio do espaço agrário, surge um clima de guerra do trabalhador sem-terra contra o latifundiário. Para mostrar esse fato, eu convido a um desafio, se um lado tem pavio, o outro o isqueiro tem Prá falar o que convém, o espaço aqui é dado, se um quer ser assentado, O outro não quer dar a terra, fala a verdade não erra quem for melhor no dobrado… — Eu vou me apresentar, o meu nome é Severino, desde os tempos de menino que eu tiro da terra o pão. Pelo pedaço de chão, eu pego inté no machado, prá quem quer ser assentado não tem que fazer escolha, forro minha cama com folha só pra ficar acampado — Agradeço por ser dada a palavra a um fazendeiro, me chamam João boiadeiro por ter muito boi no pasto Memória Incra 35 anos Eu tava seguindo o rastro de uma criação perdida e ao ver minha terra invadida eu fiquei desconsolado, todo esse povo acampado onde eu dediquei minha vida — Você dedicou sua vida, mas, o chão num é meu nem teu, se você não for ateu, vai lembrar que o Criador É o mesmo que criou acampado e fazendeiro, se hoje um tem mais dinheiro e anda montado em carro, os dois são do mesmo barro, cavado pelo coveiro. — Cavado pelo coveiro, eu lhe meto no buraco, se você insistir no ato de ficar nessa invasão Qualquer um me dá razão se eu lhe meter uma bala, você vai perder a fala se continuar na intriga, pra não sair dessa briga, eu pago até uma boiada. — Eu pago inté uma boiada – você diz isso blefando, a cobra num tá fumando, mas ainda vai fumar Aqui vou continuar, e daqui ninguém me tira, eu tenho comigo uma embira para lhe amarrar no mato, posso lhe cortar o saco se zombar desse caipira. — Quem vai zombar do caipira será mesmo a polícia, vai haver uma perícia na minha propriedade. Produtiva, na verdade, ela será declarada, e a posse reintegrada pelo juiz, cedo ou tarde, é aí que o coro arde numa pisa nessa cambada — Cambada sei que não somos, você tenha mais respeito! Nós também temos direito de lutar por essa terra. E quando o cabrito berra é a fome que lhe aperta, fizemos a coisa certa Pior é ficar parado e ver o filho, coitado, com fome de boca aberta. — A boca aberta com fome, a vocês eu não desejo, a solução que eu vejo, é o Incra comprar a terra A nossa disputa encerra com Incra entrando no meio, assim não tenho receio. Se eu for indenizado, você termina assentado e eu com meu bolso cheio! — Você com seu bolso cheio, e eu com o meu vazio, mesmo assim eu negocio pra depois recuperar. 275 276 Nead Especial 2 Quando o Pronaf chegar, então tiro o meu atraso: compro bezerros com prazo, fiado, por muitos anos, e se der certo meus planos está resolvido o caso. — Está resolvido o caso, brindemos com uma cachaça, nós vamos beber de graça que o Incra pagou a conta. Agora a mesa está pronta, já assinei meu contrato e estou enchendo meu prato, você pode encher o seu, mas não diga que sou eu o que foi bobo de fato. Os servidores do Incra presenciam o seu dia-dia dilemas de sem-terra, especialmente nos últimos quinze anos. Nas linhas a seguir, analisaremos o estado de ansiedade psíquica que ocasionalmente condiciona o comportamento de um trabalhador sem-terra, envolto em meio a uma sociedade da qual, o quinhão que lhe cabe, não lhe permite usufruir as condições decentes e básicas de vida, o que o impele a sobreviver deixando constantemente transparecer o seu inconformismo e revolta que o expõe à situações que afloram ao limite da sua resistência em manter-se dentro de um comportamento social racional e civilizado. Este é o campo onde atuará, dentro do seu subconsciente, dois entes antagônicos, ou seres que representam o bem e o mal, os quais lhes enviarão mensagens para sugerir o seu modo de agir dentro de determinadas situações a que ficará exposto no seu dia-dia. Estes dois entes mitológicos, anjo e demônio darão bons e maus conselhos ao sem-terra que, no decorrer do episódio contenderá ainda com sua própria mulher, a qual, a princípio, não engole bem a idéia de ir viver no meio de acampados invasores, mesmo sob a promessa futura de conseguir um lote para morar, mas, no final reconhece na assistência do Incra a melhor opção para o conforto de sua família. Dilema de um sem-terra Para quem nunca pisou num pedaço de chão seu, e que ainda não morreu, vale a pena lutar para poder conquistar, enquanto esperança tem, um pouquinho mais além do que ver passar a banda, se pra frente é que se anda, sonhar num atrasa ninguém. Memória Incra 35 anos Mas sair do calabouço onde se nasce metido nem sempre é permitido, nem sempre é conquistado. E em cada degrau galgado há de se ver o suor, quando não é o pior -o sangue que é derramado, na terra – um bem sonhado por quem espera o melhor. Quando na mesa o pão falta, falta também paciência, e pra fazer penitência, é preciso vocação. Tendo arroz com feijão, muita gente se conforma, mas se for de outra forma, tendo a barriga vazia, qualquer homem, qualquer dia pula por cima da norma. […] E lá vai nosso sem-terra, por esse mundo selvagem marcando sua viagem com destino imprevisível. Seu desejo irresistível de tornar-se independente faz ocupada sua mente em sonhos de liberdade pelo acesso à propriedade pra ter uma vida decente… Segue os pensamentos do Sem-terra, com intervenções do anjo, demônio e de sua mulher… Sempre fui home de bem, cumpridô dos meus devê, mas no mundo a gente vê que nem sempre isso adianta Quando um home se levanta pelas três da madrugada, sai que nem alma penada numa terra que num é dono e trabaia inté com sono, inda ganha quase nada. O homem deve confortar-se com aquilo que ele tem, pois na vida o que convém é portar-se com decência, E é preciso paciência e agir com honestidade, não se iluda com a vaidade, se você é pobre ou rico, isso é o que lhe testifico, tudo em nome da verdade! — Tudo em nome da verdade – essa conversa é antiga – ele quer que você diga que será bem comportado Sempre agüentando calado o acocho do patrão sem ter um lote de chão onde ganhe muito dinheiro farreando o ano inteiro – veja bem que eu tenho razão! 277 278 Nead Especial 2 Sei que tenho que escuiê no mei dessa incruziada, dum lado é a invernada que leva a vaca pro brejo; do outro, parêço um tejo quando infrenta a cascavé, e precisa dar no pé, para pudê iscapá, por isso vou me arribá junto cons fi e muié. Muié! Nós vamo parti, assim mermo, de arribada, lá pras famia acampada na mata grande do ipê Onde o MST invadiu no mês passado. Foi lá que eu deixei montado nosso barraco de paia, ande, ajunte logo as traia que o jumento tá selado. Home, tu cria juizo – tu parece um abiscoitado! Como é que uns gato pingado vão enfrentar a polícia? Eu já soube da nutícia que lá o tempo tá quente, e uns pobre que nem a gente vão tratar que nem cachorro, se é pra ir pra lá eu morro, perto aqui dos meus parente. Não escute essa mulher que além de abusada é burra, se não for, meta-lhe uma surra que pra não ser tão teimosa.E tem mulher mais fogosa por aí, melhor que a tua, beba cachaça na rua que é pra ficar mais esperto, e assim dá tudo certo e tua vida continua. José, não dê atenção aos conselhos do demônio, pois sagrado é o matrimônio e honrada é tua mulher. E não esqueça, José, que fizeste um juramento de cumprir o sacramento. Pense bem nos filhos teus, isso é um conselho que Deus, recomenda em mandamento. E não se entregue ao vício, cachaça, fumo ou baralho. Se envolva só no trabalho, nas lidas de agricultor. Até se fosse um doutor, também pra ele diria: fuja bem do que vicia, de briga, esteja onde esteja, e reze um credo na igreja, Padre Nosso Ave Maria! - Padre Nosso e Ave Maria – isso é ladainha pura! Esse anjo te esconjura porque tu queres vencer, pensando que dá pra ter dessa terra o teu pedaço, como no PA Barbaço, onde muita gente enrica e você, pobre, só fica dando credo a estardalhaço. Memória Incra 35 anos Minha cabeça tá zonza, minha mulera tá quente, comigo ninguém intente me mandá o que fazê. Hoje num quero sabê de anjo de inferno ou diabo. Tô liso que nem quiabo, precisando de dinheiro Vou xafurdá num terrêro – é dessa vez que me acabo! Já cansei de trabaiá pro’souto dando na impreita, na meia minha colhêta, ficando com caldo e osso. Se tô no fundo do poço, não me resta aqui mais nada, eu boto o burro na estrada com muié ou sem muié. Vou viver que nem Migué – comendo pelas berada! Já convenci a muié, e ela foi se aproxegando, dispois vieram contando qual foi seu convencimento. É que tem um documento que o Incra dá prá assentada, se ela tem uma barrigada recebe quato salário, porque já tá no berçário nossa fia Anunciada. Eu encerro a história aqui, onde o bem, ao mal derrota. E antes de mudar minha rota, vou, deixando um “até breve!”- do colega aqui que escreve e que criou esta lenda, pra quem lê, por certo entenda que, se a realidade é crua, vale a fantasia sua que realce a nossa agenda. Lamentos de um ex-assentado – Retrata os problemas que enfrenta um agricultor Ex-assentado, com baixo grau de instrução, quando vende o seu lote pensando em galgar ascensão econômica fora do assentamento, na vida urbana. O fracasso da aventura lhe revela a falta de opções de emprego e de melhoria de vida e a desilusão com a cidade grande. Daí, ele se arrepende, ao recordar o seu tempo como assentado, quando tinha acesso às benesses do Incra. Lamentos de um ex-assentado Meus senhores e senhoras, sei que vai passando as horas, peço a vossa permissão Pode ser que o meu caso sirva como exemplo dado, me escutem com atenção É que eu já fui assentado, ganhei lote cadastrado no programa federal 279 280 Nead Especial 2 Do que é bom ninguém se esquece, mas o corpo é quem padece se a cabeça pensa mal Pra contar a minha história, vou lembrar da fase inglória do tempo que fui meeiro Vivi como agregado, trabalhei duro, dobrado ganhando pouco dinheiro Daí eu parti pra guerra, no movimento Sem Terra eu lutei como acampado Pelo pedaço de chão, portando foice na mão, até que fui assentado Com a desapropriação, veio a demarcação sendo o Incra o mandatário Recebi investimentos, ferramentas e alimentos como beneficiário Eu tava ínté bem vida, com Maria Aparecida, vivendo um bom matrimônio No lote fiz um cercado, vivia todo animado, zelando meu patrimônio Eu tinha quatro carneiro, dois bode, pai de chiqueiro, muitas cabras no aprisco Meu lote dava feijão, muito milho e algodão, bastava qualquer chuvisco. Na roça, o ditado manda, que cobra que muito anda, no coro, lodo não cria E eu fiquei abestalhado, vendendo um bem conquistado, meu lote por ninharia. Os meus planos nesse dia era com minha famia morar na grande cidade Então fui motorizado, num carro velho montado, pra viver uma novidade Com o dinheiro ajuntado montei um bar equipado, com muita mercadoria Um ano logo se passa, eu vendi muita cachaça, mas não tive melhoria Enquanto tinha dinheiro, meu bar era o paradeiro de quem se dizia amigo Foi na conta do fiado que logo fui tapeado com merecido castigo O meu bar não deu em nada, e a coisa tá enrolada mais do que fumo no rolo Lembro que fui assentado, se hoje tô fracassado, eu me considero um tolo Hoje moro de aluguel, vivendo de déu em déu, porque deixei minha casa Mas quem tem a vida à toa, é formiga que avoa quando inventa criar asa Já perdi a mocidade nos costumes da cidade não me dou com agitação Tenho saudade de fato da terra fresca e do mato, como dói meu coração! Minha fia Cleonice viveu sua meninice quando eu era assentado Hoje sai com a sacola, não sei se vai pra escola, ou pra ver o namorado Memória Incra 35 anos Eu olhei seu boletim e só tinha nota ruim e eu fiquei desconfiado Me dizem coisa medonha, que o cara fuma maconha e eu vivo preocupado A Maria Aparecida se sente compadecida, com tudo, também, pudera, pois, a nossa penitência começou com a desistência do lote que nosso era. Diz que nossa vida outrora comparada com a de agora era de rei e rainha Se pudesse nessa hora voltava, sem mais demora pro cantinho que a gente tinha. Noutro dia, quinta ou sexta, soubemos que havia cesta pelo Incra distribuída. E como a coisa era pouca, ficamos de água na boca e num beco sem saída Agora não tem mais jeito, nós já não temos mais direito, pois não sou mais assentado Hoje tudo que mais quero é aguardar o Fome Zero pra sair desse imprensado. Voltar pro assentamento, não tem mais consentimento, eu assumo minha burrada Hoje eu sou cabra da peste, lá no Banco do Nordeste, minha conta tá encerrada Pra quem plantava na horta, hoje vê bater à porta, vez por outra um cobrador Por tudo que sou cobrado, meu carro velho quebrado, alguém de mim carregou. Se alguém da reforma agrária falar uma coisa contrária, meu amigo, eu tomo as dores. Nela eu fiz um pé de meia, e se a coisa aqui tá feia, num é culpa dos doutores. Quem tiver lote, segure, e faça um jeito, procure cultivar a produção Que a ilusão da cidade nunca trás prosperidade para quem veio do sertão! Recordando as RBs do Sipra – Em 13 de fevereiro de 2004, homenageamos os Franciscos dos assentamentos, por ser um dos nomes mais freqüentes nas relações de beneficiários… Chicos de assentamentos Quem fizer uma relação de Francisco em assentamento não vai achar cem por cento porque metade é Maria. 281 282 Nead Especial 2 Viajando um certo dia eu fui parar num PA, onde quem mora por lá Se não for Maria é Chico e eu pensei, como é que fico se o nome deles errar? Eu peguei a relação de seus beneficiários e antes dos meus comentários, eu comecei a chamada Na reunião marcada, chamei Francisco de Assis, dizendo que sempre quis Conhecê-lo pessoalmente – muito prazer, Presidente, mas o tal então me diz… …Eu sou Francisco de Assis, mas não sou o presidente, e me levou ao presente chefe da Associação. Ele até me deu razão por haver me atrapalhado, ao ter seu nome trocado por outro de Assis, “Vieira”,o seu era “de Oliveira” e assim fui desculpado. Fui chamando outro de Assis, mas este era “Sobrinho”, depois Francisco Marinho, e o Francisco Morais. E no meio de outros tais, tinha Francisco José e Francisco Canindé, das Chagas, tinha mais três, ora vejam só vocês, tinha Chico a dar com o pé! Houve uma substituição de um lote por abandono, e o Francisco, o antigo dono, era o Francisco Raimundo que saiu no meio do mundo, sem dizer o paradeiro, mas o Francisco, pedreiro, pro seu lugar indicado, desistiu e foi trocado pelo Francisco Trigueiro… …Cabra de peia, birrento, causador de muito atrito, foi querer ganhar no grito uma briga com outro Chico. Mas quem fez calar seu bico foi Zé Francisco Pereira que andou dizendo besteira para Francisco Clemente e a coisa ficou mais quente, do que boca de caieira… …Francisco, tu só é home, na casa de tuas nega, eu tô lhe dizendo, chega de agir na covardia! Por ter respeito à Maria, de quem tu és afilhado num dou num pobre coitado, - Vai cuidar do teu aprisco, cria juízo, Francisco, deixa de ser atentado! Memória Incra 35 anos Saí desse assentamento e fui no outro seguinte onde tinha mais de vinte Francisco relacionado. E num lugar reservado, li na Carta de Anuência, desde a Francisca Inocência Ao Francisco Valdomiro, me despachei, em retiro, terminada a penitência. Eu dou o caso por encerrado, pra não dizer outros tantos, Francisco, no meio dos santos tem seu nome espalhado. Quando ocorre um batizado, entre outros tantos mil, esse nome tão gentil pode estar na certidão como José, Pedro ou João, nos confins do meu Brasil! Os assentamentos do Incra como inspiração poética (PA,s corridos pelo autor, nos anos de 1999 a 2005): Criamos, numa alegoria à Canção de exílio de Gonçalves Dias, a Canção dos assentamentos do RN. Nos versos, os nomes dos assentamentos estão destacados em negrito. Canção dos assentamentos do RN Minha terra tem Palheiros, Monte Alegre e Trapiá! Jamais houve assentamentos noutras terras como cá! — Não há tal como Barbaço; nem há tal como Casinhas; E outros tantos decantados entre os versos destas linhas. Minha terra tem Casqueira, Bela Vista e Gravatá. Onde há Superintendências, não se assenta como cá. Nossas vilas tem Jurema; nossos campos, Colorado. Nossas terras, Águas Vivas; nossas serras, Lajeado. Minha terra tem Rosado, parcelado à beira-mar! As terras que outros parcelam, não parcelam como cá! Nossos lotes tem Modelo; nossas matas, Petrolina; 283 284 Nead Especial 2 Nossas áreas, mais Recreio; nossas Santas, Ursulina. Em minha terra, tão Formosa, fui até Caracaxá. Fiz a Ronda com Três Voltas, volta e meia em Paraná. Passei no Canto das Pedras, em Cavaco e Sussuarana. Depois de Aurora da Serra, voltei no fim de semana. Quero estar em Maravilha, qualquer dia de manhã! Quero ver o sol poente sobre as serras de Acauã! E adentrar-me em Catingueira e no Rancho do Pereiro Ou na Baixa do Novilho, Soledade e Umarizeiro. O Bom Trabalho feito, com Boa Fé, não se acaba. De Olho D’Água da Escada até Baixa da Quixaba Com um e dois Eldorados, Três Corações “Vivará”. Com saudades de Santana, Cordão de Sombra e Xoá. Com as contas do Rosário de Antonio Conselheiro Faço procissões, Milagres, por Favela e por Sombreiro. Guarapes, Serra Verde, Santa Rita e Encruzilhada, Chegarão ao Paraíso pelo Portal da Chapada. Minha terra tende orgulho desses campos, desses ares! - Do teu Cabelo de Negro; do Quilombo dos Palmares; - Do céu de Umburanas, de Pau D’Arco e de Lorena! - Em teu seio, oh Liberdade!- Sede amada, Madalena! Boa Sorte, Arizona, Bom Futuro e Logradouro; Jerusalém, Terra Nova e também Brinco de Ouro! Pedra Branca, Jatuarana, Santa Clara e Palestina, Todos com Vale do Lírio reinarão na Paz Divina… O Incra, em 35 anos como agente de difusão da caprinocultura, vem através deste servidor, prestar homenagem ao bode, por ser um animal robusto, adaptado ao Memória Incra 35 anos semi-árido e amplamente difundido nos assentamentos, já que é normalmente recomendado para aquisição nos projetos do Pronaf encaminhados pelo órgão em benefício dos assentados… Sua Majestade, o bode! Ninguém cumprimenta o bode, no mundo dos racionais. Entre tantos animais, o bode tem seu valor. No mundo qualquer doutor, com branco no colarinho, tem honras pelo caminho mesmo que não seja honesto, por isso é que manifesto ao bode o meu carinho! II Pela caatinga espalhado com vigor de sertanejo pedindo pouco manejo, o bode segue sua sina. E se “Pade Ciço” ensina, tratem bem a natureza!, peço com delicadeza, respeite, não incomode, Sua Majestade, o Bode, merece chamar-se Alteza! III Salve o caprino guerreiro! Eita bichinho astuto! amigo bom do matuto,vagante montês, garboso. O seu prato é saboroso que nem carne de gazela A cabra, sua donzela, vive toda envaidecida, ao bode foi prometida no aprisco do pai dela. IV Ao bode, pai de chiqueiro, é reservado um harém, pela vontade que tem, pela vontade do dono. Sentado, posto num trono, o Bode reprodutor, dando uma de doutor, examinando as cabras, monta as gordas, e monta as magras, pra lucro do agricultor. V O Bode é patrimônio de toda humanidade, e desde ’Antigüidade dele se faz escultura. E na caprinocultura, é animal estudado. Tem bode pronunciado, valendo “corpo” em inglês, imaginem então vocês, doutor em Bode, formado. VI 285 286 Nead Especial 2 Já houve uma eleição pra eleger vereador, que um bode preto ganhou no interior de Pernambuco. Acharam o povo maluco, porque o Bode venceu, mas, a posse não se deu, um homem foi empossado, pensem no bicho honrado que o município perdeu! VII Sai dos confins do sertão, as raças valorizadas, para as festas animadas das feiras dos animais. E no meio dos currais, se escolhe o preferido, que está ali pra ser vendido, Se é caro, compra quem pode, um bom exemplar de bode, vale o dinheiro investido. VIII Se o retrato do sertão um dia fosse tirado, de um modo que revelado mostrasse com exatidão a vida lá no sertão, tão dura no seu trabalho, digo a verdade, não falho, que a tal fotografia, com certeza exibiria um bode usando chocalho. O histórico dos 35 anos do Incra pode se fazer representar em 3.500 anos de história, desde a Antiguidade, numa simbologia, na qual sugerimos sete assentamentos como sendo As sete maravilhas do mundo antigo na SR-19 – RN. Consideramos como os mais célebres, assentamentos do Rio Grande do Norte, sobre os quais paira a mística de se contarem feitos ou características peculiares dignas de pesquisa arqueológica e da curiosidade turística. Temos uma crônica a respeito, cujo tema e espaço, infelizmente não cabem aqui, mas, fazemos um convite aos que lerem este documento, para venham conhecer no RN. …A estátua de Zeus – PA Hipólito – Mossoró; o Mausoléu de Helicarnasso – PA Arapuá – Ipanguaçu; o Templo de Artemis – deusa da caça – PA Casinhas – Japi; As pirâmides de Gizé – Pirâmides do Egito – PA Serrote/Serra Branca – São Rafael; o Farol de Alexandria – PA Frei Damião – na estrada de Mossoró – Apodi; o Colosso de Rodhes – PA Zabelê – Touros e Os jardins suspensos da Babilônia – PA RosadoAreia Branca. A vida dura do acampado, que sob ação benéfica do Incra evolui para assentado, pode ser retratada na figura do seu principal animal de estimação – o cachorro, fiel companheiro nas agruras dessa evolução… Memória Incra 35 anos Vida de cachorro de assentamento Tentei me comunicar, ao longo de tantos anos, mas, na língua dos humanos eu nunca pude falar. Posso até sinalizar usando o som do latido, com isto, me faço ouvido, mas, não me faço entender. Sofri com meu padecer, por não ser compreendido. Mas, minha sorte chegou, acabando a minha agonia. Foi quando num belo dia, que me deu contentamento, surgiu no assentamento, ouvindo sons e sinais, conversando com animais, e entendendo minha mensagem, um tradutor com bagagem de sentir até meus ais! E é por seu intermédio que aqui falo o que sinto. Conto a verdade, não minto. Pois bicho num esconde nada. Não levem na cachorrada, se a estas letras recorro. Senão com desgosto eu morro sem contar a minha estória. Seja posto como glória alguém falar por cachorro. Sempre fui cachorro pobre, desde os tempos de criança. Guardo ainda na lembrança o dia em que fui parido. Minha mãe deu um gemido depois que nasceram três. Imaginem só vocês, que depois que veio o quarto, veio quinto e neste parto, eu fui o número seis! A ninhada se espalhou, como papel solto ao vento. Vim parar num assentamento, mas antes fui acampado. Qualquer cachorro criado por trabalhador sem-terra, seja no campo ou na serra, no meio da rua ou na mata, um cachorro vira-lata tem que estar pronto pra guerra. Quando vim numa mudança trazido numa carroça, fui com meu dono pra roça, sem comer nada, em jejum. Só me deram jerimum, as cinco e meia da tarde. Pimenta, dizem, não arde, nos olhos que não são nossos. Mesmo distante dos ossos, eu comi, sem muito alarde. Um dia aqui no projeto algumas cestas trouxeram, mas nada delas me deram que abrisse meu apetite. 287 288 Nead Especial 2 Eu peguei até bronquite por causa de minha fraqueza. Eu sei que minha magreza me faz esperto no mato, mas eu queria, de fato, viver gordo, na riqueza! No sertão, ao meio dia, o sol esquenta a caatinga. A mãe dos outros não xinga, cachorro de apartamento. Mas quem for de assentamento, como eu, não se contém, logo reclama pra alguém, mandando pra’aquele canto. Confesso que não sou santo, porém, não mordo ninguém. Um dia eu vi uma cena passada numa novela, na qual tinha uma cadela mimada pela madame. Eu tava comendo inhame, enquanto ela, filé. Cobrei do meu dono Zé, reclamando o mesmo trato. Mesmo sabendo que o prato nem ele sabe o que é. Cachorro rico é dengoso e também cheio de frescura. Nunca comeu tanajura nem nunca caçou tatu. Come carne de zebu e até ração importada e não conhece a jornada de um cão de assentado, vendo o seu dono agarrado sempre no cabo da enxada. Agradeço ao tradutor que transmitiu meu enredo – é homem que não tem medo de rirem de sua cara. Não é qualquer um que encara a missão de um tal recado. Seja o tal condecorado Com uma medalha “Cão Nobre!” pelo que fez por um pobre cachorro de assentado! A criação do programa empreendedores sociais pelo Incra em 2000 e a nossa participação. Criado o programa, o Incra realizou o concurso e treinou os servidores aprovados, colocando-os em ação no período de 2001 a 2003. Estivemos entre os 17 classificados no Estado do RN. O programa serviu para dar assistência aos assentados, cujo modelo era de extensão rural do órgão, havendo, ao nosso ver, apresentado resultados satisfatórios, tanto para o Incra quanto, especialmente para os assentados. A nossa participação em tal atividade, na condição de um dos quinhentos atuantes em nome do órgão no território nacional, trabalhando em duas regiões Memória Incra 35 anos do médio e alto oeste do Rio Grande do Norte, foi para nós motivo de orgulho. Esse orgulho deixamos expresso na composição da letra e música do hino: Hino dos empreendedores sociais I Uni-vos já! empreendedores sociais Porque pra ser capaz, bastante é só querer fazer Segui o lema que encerra a missão primaz: Trazer ao campo a paz, e ao assentado o bem viver! É o Incra quem ordena a vossa lida Ter a missão cumprida será vosso galardão Sereis empreendedores! Sereis executores da reforma agrária em nossa nação! II Empreendedores sociais vossa batalha É o campo e quem trabalha Deus ajuda e faz vencer! É nos assentamentos vossa luta por quem trava disputa para lá sobreviver! Se fores fortes, sereis multiplicadores e articuladores entre as classes envolvidas. Seja na agricultura, seja na pecuária, a reforma agrária espera por vocês! Incra – Uma bela história feita em belas paisagens – Uma das mais belas vistas entre os Assentamentos do Incra, no RN, quiçá no Brasil, pode ser considerada a que se vislumbra no PA Rosado, em Areia Branca. Eis o nosso registro poético que usamos como um palco final de comemoração deste documentário, no momento histórico em que o ministro do Desenvolvimento Agrário, o presidente do Incra, superintendentes de todas as unidades da Federação, agrônomos, técnicos, servidores em geral e aposentados do órgão, presidentes de sindicatos rurais, assentados, representantes de cooperativas agrícolas, empresas de assistência técnica e as demais ligadas à reforma agrária celebram o Incra, em seus 35 anos. 289 290 Nead Especial 2 Monumento rosado Luzes solenes irrompem dos umbrais do firmamento. Mormente o sol, descortinado ao breu da matutina. Que a face ondulada do mar espumado bolina. E faz do matiz rosado da falésia, um monumento. Ao pino do sopé emoldurado pelo vento escorraceiro, É visto no horizonte, o vasto e morno mar azulado. E o fogaréu de areia traz a tona um tom encarnado. Que se funde ao cinza esverdeado de um coqueiro. A brisa fresca, em assobio, beija a onda mansa. E o eremita transeunte a escuta como um canto Que corre todo o oráculo com tamanho encanto Que a mata, num farfalho, incontinente, dança! Quisera poder sempre de regresso, ver o céu rosado! Quisera, em pé descalço, novamente descer a ladeira! E andar, surrando as pernas, sem sentir canseira. Somente por saber que na marola serei refrescado! Um novo projeto de desenvolvimento para o país passa pela transformação do meio rural em um espaço com qualidade de vida, acesso a direitos, sustentabilidade social e ambiental. Ampliar e qualificar as ações de reforma agrária, as políticas de fortalecimento da agricultura familiar, de promoção da igualdade e do etno-desenvolvimento das comunidades rurais tradicionais. Esses são os desafios que orientam as ações do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), órgão do Ministério do Desenvolvimento Agrário (mda) voltado para a produção e a difusão de conhecimento que subsidia as políticas de desenvolvimento rural. Trata-se de um espaço de reflexão, divulgação e articulação institucional com diferentes centros de produção de conhecimento sobre o meio rural, nacionais e internacionais, como núcleos universitários, instituições de pesquisa, organizações não-governamentais, centros de movimentos sociais, agências de cooperação. Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (iica), o Nead desenvolve um projeto de cooperação técnica intitulado “Apoio às Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável,” que abrange um conjunto diversificado de ações de pesquisa, intercâmbio e difusão. 294 Nead Especial 2 Eixos articuladores • Construção de uma rede rural de cooperação técnica e científica para o desen• • • • • volvimento Democratização ao acesso às informações e ampliação do reconhecimento social da reforma agrária e da agricultura familiar O Nead busca também Estimular o processo de autonomia social Debater a promoção da igualdade Analisar os impactos dos acordos comerciais Difundir a diversidade cultural dos diversos segmentos rurais Projeto editorial O projeto editorial do Nead abrange publicações das séries Estudos Nead, Nead Debate, Nead Especial e Nead Experiências, o Portal Nead e o boletim Nead Notícias Agrárias. Publicações Reúne estudos elaborados pelo Nead , por outros órgãos do mda e por organizações parceiras sobre variados aspectos relacionados ao desenvolvimento rural. Inclui coletâneas, traduções, reimpressões, textos clássicos, compêndios, anais de congressos e seminários. Apresenta temas atuais relacionados ao desenvolvimento rural que estão na agenda dos diferentes atores sociais ou que estão ainda pouco divulgados. Difunde experiências e iniciativas de desenvolvimento rural a partir de textos dos próprios protagonistas. Memória Incra 35 anos Portal Um grande volume de dados é atualizado diariamente na página eletrônica www. nead.org.br, estabelecendo, assim, um canal de comunicação entre os vários setores interessados na temática rural. Todas as informações coletadas convergem para o Portal NEAD e são difundidas por meio de diferentes serviços. A difusão de informações sobre o meio rural conta com uma biblioteca virtual temática integrada ao acervo de diversas instituições parceiras. Um catálogo on line também está disponível no Portal para consulta de textos, estudos, pesquisas, artigos e outros documentos relevantes no debate nacional e internacional. Boletim Para fortalecer o fluxo de informações entre os diversos setores que atuam no meio rural, o NEAD publica semanalmente o boletim Nead Notícias Agrárias. O informativo é distribuído para mais de dez mil usuários, entre pesquisadores, professores, estudantes, universidades, centros de pesquisa, organizações governamentais e não-governamentais, movimentos sociais e sindicais, organismos internacionais e órgãos de imprensa. Enviado todas as sextas-feiras, o boletim traz notícias atualizadas sobre estudos e pesquisas, políticas de desenvolvimento rural, entrevistas, experiências, acompanhamento do trabalho legislativo, cobertura de eventos, além de dicas e sugestões de textos para fomentar o debate sobre o mundo rural. Visite o Portal www.nead.org.br Telefone: (61) 3328 8661 E-mail: [email protected] Endereço: SCN, Quadra 1, Bloco C, Ed. Brasília Trade Center, 5o andar, Sala 506 Brasília/DF CEP 70711-901 295 O texto deste livro foi composto em Myriad Pro e DIN Schablonierschrift, e impresso sobre papel offset em dezembro de 2006. Nead Especial 2