Nead Especial
2
Memória Incra 35 anos
MemOria Incra
A l b e r to M a r q u e s
A n to n i o F e r n a n d o M at t z a
A n to n i o P r a n c u t t i
Ca r lo s A l b e r to S c h wa r z
F r a n c i s c o J o s é Na s c i m e n to
J o s é d e R i b ama r Ca r d o s o
J o s i ma r La n d i m
J ú l i o L i z a r r a g a Ram i r e z
Pau lo C é s a r Ra b e l lo M e n d e s d e O l i v e i r a
Pau lo R o b e r to F o n t e s Ba r q u e t e
Ra i m u n d o J o s é A l m e i d a Bat i s ta
35 anos
A l i n i o R o s a S o a r e s e S i lva
A n d r é Lu i z Ba n h o s e S o u z a
C l a r o Lu i z d e F r e i ta s
E l i n e y P e d r o s o Fau l s t i c h
E loy A lv e s F i l h o
G e r a l d i n o G u s tav o d e Q u e i r o z T e i x e i r a
G i l b e r to Bamp i
J o s e ly A pa r e c i d a T r e v i s a n M a s s u q u e t to
Lu c a s M i l h o m e n s F o n s e c a
M a r i a Au x i l i a d o r a G u i ma r ã e s d e Ca s t i l h o
NatÁ l i o B e l m i r o H e r l e i n
O r i va l P r a z e r e s
R o s a n e R o d r i g u e s d a S i lva
m d a / i n c r a , b r a s í l i a - d f, 2 0 0 6
Lu i z I n á c i o Lu l a d a S i lva
N e a d ES P ECI A L 2
Presidente da República
Copyright 2 0 0 6 by M D A
G u i l h e r m e Ca s s e l
Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário
M a r c e lo Ca r d o n a R o c h a
Secretário-Executivo do Ministério
do Desenvolvimento Agrário
R o l f Ha c k b a r t
Presidente do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária
Va lt e r B i a n c h i n i
Secretário de Agricultura Familiar
E u g ê n i o P e i xoto
Secretário de Reordenamento Agrário
J o s é H u m b e r to O l i v e i r a
Secretário de Desenvolvimento Territorial
Ca i o Ga lvã o d e F r a n ç a
Coordenador-Geral do Núcleo de Estudos
Agrários e Desenvolvimento Rural
A d r i a n a L . Lo p e s
Coordenadora-Executiva do Núcleo de Estudos
Agrários e Desenvolvimento Rural
P r o j e to g r áf i c o, c apa e d i a g r ama ç ã o
Márcio Duarte – m 1 0 Design Gráfico
R e v i s ã o e p r e pa r a ç ã o d e o r i g i n a i s
Ana Maria Costa
Ministério do Desenvolvimento Agrário (m d a )
www.mda.gov.br
Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra)
www.incra.gov.br
Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural (n e a d )
s c n , Quadra 1, Bloco C, Ed. Trade
Center, 5o andar, sala 501
c e p 70711-902 Brasília/DF
Telefone: (61) 3328 8661
www.nead.org.br
pc t mda/iica – Apoio às
Políticas e à Participação Social no
Desenvolvimento Rural Sustentável
B823m
Brasil. Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Memória Incra 35 anos / Alberto Marques. Antônio
Fernando Mattza. Antonio Francutti … [et. al.]. -Brasília : MDA : Incra, 2006.
296 p. ; 15,5 x 22,5 cm. -- (Nead Especial ; 2)
Vários autores
1. Incra – história – Brasil. 2. Reforma agrária – Brasil.
familiar. I. Título. II. Marques, Alberto. III. Mattza.
Antônio Fernando. IV. Francutti, Antônio. V. Série. CDD 333.3192081
Grupo de Trabalho
Projeto Memória Incra 35 Anos
(Criado pela Portaria Incra/P/nº372, de 3 de agosto de 2005)
1.Kátia Maria da Silva Vasco (Coordenadora)
2.Elizabeth Ribeiro e Fonseca
3. Maria Lucia Muniz de Almeida
4.Geraldo Francisco Coelho
5. José Vaz Parente
6. Abdias Vilar de Carvalho
7. Antonio Rubens Pompeu Braga
Representantes do MDA:
8.Caio Galvão de França
9. Adriana L. Lopes
Comissão Julgadora Dos Trabalhos:
1. Antonio Rubens Pompeu Braga, sociólogo,
aposentado INCRA, ex-superintendente da SR 02
2. Marcos Antonio Vieira de Castro, economista,
aposentado do Ministério do Planejamento
3.Elias Pessoa de Carvalho, técnico em
educação; aposentado do INCRA
4.Leonilde Medeiros, socióloga; professora
da UFFRJ, membro do CPDA
5.Raimundo Nonato Pinheiro Alves, técnico
em educação, aposentado do Incra
Sumário
Apresentação 14
Introdução 15
Artigos Premiados
1 35 anos em vida com os pés na terra 19
A n to n i o P r a n c u t t i
Terra 19
Incra 19
2Extrativismo: ainda bem que chegou tarde 34
Ra i m u n d o J o s é A l m e i d a Bat i s ta
3Histórias dos meus 33 anos de Incra 39
J o s é d e R i b ama r Ca r d o s o
4Incra, 35 anos em vida 49
A n to n i o F e r n a n d o M at t z a
O começo (uma entrevista simples) 49
Dentre os motivos, o prédio da SR-07 50
Dramas 52
Alegrias 53
Os antecedentes e os antepassados do Incra 53
Nead Especial 2
Os ideais da reforma agrária 56
Os movimentos sociais 57
Sangue no campo 58
Servidores 59
5Lembrando casos do Incra 62
J ú l i o L i z a r r a g a Ram i r e z
Relato da implantação de um projeto de assentamento 62
Registro da produção de um documento orientador 72
Depoimento sobre o gerenciamento de uma diretoria do Incra 74
6 Memórias e fragmentos: o sonho da reforma agrária e o Incra 79
Pau lo R o b e r to F o n t e s Ba r q u e t e
Referências 86
7 Missão cumprida 87
A l b e r to M a r q u e s
8 O Incra na região do Alto-Purus,Sena Madureira – Acre 91
Pau lo C é s a r Ra b e l lo M e n d e s d e O l i v e i r a
Apresentação 91
“E Deus criou o céu, a terra e… o Acre” 92
Introdução 93
PAD Boa Esperança 94
A inauguração da sede administrativa do PAD Boa Esperança 98
O Projeto Fundiário Alto Purus 99
Trabalhos do Incra: Sessão nostalgia, ou, você se lembra? 100
“Causos,” curiosidades ou acredite se quiser 103
Chico Mal-estar 103
Sebastião Preto 104
João Grande 105
Serviço de recados prestado pela Rádio Difusora e
pela Rádio Nacional da Amazônia 105
Parceleiro chegando na sede do Boa Esperança 105
Placa afixada na entrada de um ramal construído
pelo Incra no PAD Esperança 106
Diálogo no avião 106
Memória Incra 35 anos
O Boca de Ferro 106
Aniversário do Incra 106
O Incra e a cidadania 107
Assincra de Sena Madureira 108
Depoimentos sobre a ação da autarquia na região do Alto Purus 109
Siglas 111
Glossário 112
Referências 113
9O projeto Zé Juquira e o Incra 114
Ca r lo s A l b e r to S c h wa r Z
Apresentação 114
Projeto Zé Juquira 114
Nascimento do Projeto Zé Juquira 115
A primeira palestra do Projeto Zé Juquira 116
Peça teatral: A história de Zé Juquira 116
A grande lição que Paulo Freire ensinou e que aprendi
no Trairão com os agricultores 117
Previdência social para a área rural 118
A questão ambiental nos projetos de assentamento 119
Rádio Roraima – Programa Roraima rural 120
Dia da cidadania no Incra em Boa Vista 120
Campanha da declaração do ITR 120
Calendário da reforma agrária 121
Escola Móvel de Educação Ambiental e Cidadania 121
Distribuição de sementes das espécies da Amazônia para
assentados: Projeto Aposentadoria Verde 122
Projeto Kit captação de água da chuva e puxador de água 122
Buraco da produção – compostagem 124
A fé que vem do campo 124
Conclusão 131
10Os plantadores de sonho 132
F r a n c i s c o J o s é Na s c i m e n to
Introdução 132
10
Nead Especial 2
O convite 134
A missão 135
Casa nova 136
Separar o joio do trigo 137
A colonização dirigida e o Acre 138
Os burros do Incra 141
Chico Mal-estar 142
A Gata 142
As mãos 143
Uma morte anunciada 143
Conclusão 145
Anexo I – Depoimentos de servidores e migrantes 146
Depoimento 1 146
Depoimento 2 146
Depoimento 3 146
Depoimento 4 147
Anexo II – Fotos da colonização no Acre 147
Anexo III – Saiu na imprensa acreana 150
Referências 153
11Um novo olhar do Incra para a realização da reforma agrária 154
J o s i ma r La n d i m
Menção honrosa
12Um telefonema inesperado 164
J o s e ly A pa r e c i d a T r e v i s a n M a s s u q u e t to
13Incra: gênero e número 170
M a r i a Au x i l i a d o r a G u i ma r ã e s d e Ca s t i l h o
14 A saga e as glórias do Incra nos seus 31 anos 176
NatÁ l i o B e l m i r o H e r l e i n
Incra (I) 177
Memória Incra 35 anos
Incra (ΙΙ) 179
A odisséia 2001 179
Lento entrave 179
Crime e castigos 180
Incra (ΙΙΙ) 180
Cinqüenta lotes no Distrito Federal há 30 anos 180
Os fatos do affair 181
Enigmas indecifráveis 181
Incra (ΙV ) 182
Mais de 500 porteiros 182
Detalhes meritórios 182
Enigmas persistentes 182
Incra (V) final 183
Sempre transitórios 183
Mudará a regra 184
15Sobre o meio ambiente e a reforma agrária 185
A n d r é Lu i z Ba n h o s e S o u z a
Um pouco de nossa história 188
16Uma contribuição para o desenvolvimento sustentável da
reforma agrária no Rio Grande do Sul: a experiência pioneira
de cooperação entre o Incra e a Embrapa 191
C l a r o Lu i z d e F r e i ta s
Regiões abrangidas pelas ações do convênio Incra/Embrapa 193
Resultados alcançados 194
Resultado 1 – Banco de dados de sistemas de produção e infra-estrutura dos PA’s. 194
Utilização da terra, produção e produtividade nos assentamentos no RS. 195
Resultado 2 –Rede de referência 200
Resultado 3 – Capacitação de técnicos e de agricultores 201
Resultado 4 – Banco de dados da malha fundiária 202
Outros resultados – Foros de desenvolvimento da agricultura
camponesa nas metades norte e sul do estado. 203
Conclusões 204
11
12
Nead Especial 2
17Semear sonhos 206
Lu c a s M i l h o m e n s F o n s e c a
18Nós fazemos a reforma agrária 210
E l i n e y P e d r o s o Fau l s t i c h
Ocupação territorial 211
O despertar dos camponeses 214
Estatuto da Terra 215
A reforma agrária 216
O Incra 217
A ação do Incra 221
Assentamento de famílias de trabalhadores rurais 221
Discriminação de terras 221
Titulação de terras 222
Desapropriação de terras 222
Criação de Projetos de Assentamento 222
19 Além da reforma agrária 226
G e r a l d i n o G u s tav o d e Q u e i r o z T e i x e i r a
20Reforma agrária como exercício de liberdade 228
G i l b e r to Bamp i
A periodização da existência do Incra 228
Reforma agrária e democracia 230
Reforma agrária como exercício da liberdade – novos desafios 235
21 Fragmentos históricos do Incra e da reforma agrária no Brasil 239
O r i va l p r a z e r e s
A criação do Incra: avanço ou retrocesso da reforma agrária 239
O livro fundiário do Incra 247
Referências 251
R o s a n e R o d r i g u e s d a S i lva
22Educação no campo: perspectiva de uma
educação rural diferenciada 252
R o s a n e R o d r i g u e s d a s i lva
Memória Incra 35 anos
A história da educação do campo 254
A identidade dos sujeitos do campo 255
Alfabetização de jovens e adultos em Rondônia 256
Pedagogia da terra 258
Conclusão 259
Referências 260
23O Incra e as ações de reforma agrária brasileira
surpreendem e impressionam o mundo 261
E loy A lv e s F i l h o
24Nossa parcela de contribuição para auxiliar
no resgate de sua memória 271
A l i n i o R o s a S o a r e s e S i lva
Revolução do campo 273
O fazendeiro e o sem-terra 274
Dilema de um sem-terra 276
Lamentos de um ex-assentado 279
Chicos de assentamentos 281
Canção dos assentamentos do RN 283
Sua Majestade, o bode! 285
Vida de cachorro de assentamento 287
A criação do programa empreendedores sociais pelo
Incra em 2000 e a nossa participação. 288
Hino dos empreendedores sociais 289
Monumento rosado 290
Eixos articuladores 294
Projeto editorial 294
Publicações 294
Portal 295
Boletim 295
13
Apresentação
A edição deste livro a rigor concretiza o compromisso com os participantes
selecionados no Concurso Incra 35 anos.
Para o MDA e o Incra, entretanto, a recuperação da memória do Incra, seja
pelos relatos dos servidores, seja através da recuperação documental que tem
o papel de revelar a memória da instituição Incra e da ação Reforma Agrária
que engrandece a missão desta autarquia, tão necessária ao desenvolvimento
rural sustentável.
Estão de parabéns os que participaram do concurso.
Estão de parabéns todos os que defendem a reforma agrária como política
pública estruturante e essencial ao Estado brasileiro. Rolf Hackbart
Presidente do Incra
Guilherme Cassel
Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário
Introdução
No ensejo das comemorações dos 35 anos de criação do Incra, foram instituídos
por meio da Portaria Incra/P no 372 de 03.08.05, o projeto Memória Incra-PMI, e
o concurso Memória Incra 35 anos, em parceria com o MDA/Nead.
No tocante ao concurso Memória Incra 35 Anos, seu objetivo principal foi
estimular os seus servidores e servidoras da ativa, aposentados e ex-servidores,
a participarem do resgate da memória do órgão, por meio do relato de suas
experiências e vivências profissionais e funcionais, como atores privilegiados
da sua história.
Foram inscritos 81 trabalhos sobre a temática a partir do olhar dos servidores, com seus conhecimentos, práticas e motivações à época da ocorrência
dos mesmos, e como hoje à luz de novos dados e informações, foram relacionados com a conjuntura atual, como cada um vê e explica os mesmos fatos e
acontecimentos.
No final foram premiados 12 trabalhos, objetos desta publicação, cujos autores
receberam uma medalha comemorativa e um prêmio em dinheiro. E, também,
13 agraciados com Menção Honrosa. A categoria foi criada pela Comissão Julgadora em razão da qualidade dos trabalhos. Todos os inscritos receberam um
certificado de participação.
O livro ora entregue contém recortes de vários tempos e momentos da
história do Incra, onde os servidores e servidoras por meio de seus relatos, nos
levam a conhecer outras pessoas e aos seu lugares de trabalho, desconhecidos
por muitos, por exemplo, ao extremo da Amazônia, e, principalmente, desvendando pequenos e grandes “segredos,” conhecidos por poucos, de sagas de
16
Nead Especial 2
histórias reais, verdadeiras, fidedignas, por eles testemunhadas e agora colocada
à disposição do grande público.
Os textos são recheados pelos sentimentos e emoções por eles vivenciados
em momentos de suas vidas a serviço do órgão, num verdadeiro e consciente ato
de doação como cidadãos e cidadãs participantes da construção de um grande
projeto de desenvolvimento do nosso país, mais justo, mais humano, com mais
oportunidade para muitos, em especial o acesso à terra para milhões de famílias
de trabalhadores rurais. Este é o pano de fundo desses depoimentos.
São, portanto, histórias acontecidas em vários momentos da trajetória histórica
da instituição e em lugares onde os servidores do Incra, e dos seus antecessores,
foram os desbravadores e plantaram sementes de trabalho e esperança, em
especial na região amazônica. Histórias de descobertas e crescimento pessoal
e profissional dentro da instituição, de encontro de pessoas, de cultivo de novas
amizades, de casamentos e criação dos filhos e da formação de uma grande
família. Muitos assim consideram o Incra como uma escola de vida formadora
de muitos jovens de várias categorias profissionais que foram ao longo de 35
anos se unindo a outros já existentes no órgão, criando uma identidade, uma
cultura, uma linguagem e muitos sentimentos que só os servidores do Incra
são capazes de entender!
Nos relatos não foram esquecidas as fases difíceis atravessadas pelo órgão e as
feridas abertas na vida dos servidores, em particular no período do regime militar,
onde aconteceram perseguições, demissões, e outros desencantos posteriores,
como a extinção do Incra, a luta pela sua recriação, a colocação de servidores
em disponibilidade. Em todos os momentos os servidores souberam resistir e
manter-se unidos para continuar a luta. Ainda, encontramos referências especiais
aos servidores cujas vidas foram ceifadas em plena juventude, quando a serviço
do órgão. São eles nossos heróis anônimos, a quem devemos respeito e aos quais
rendemos sinceras homenagens por suas atitudes corajosas e destemidas, no
enfretamento de situações adversas, às quais foram submetidos, como, infortúnios e a causas naturais e também, nos confrontos com indivíduos contrários à
atuação do órgão na defesa do interesse público e dos trabalhadores.
O objetivo do concurso foi plenamente atingido, deixando uma grande lição
e um desafio para que as histórias não fiquem guardadas nas gavetas, mas sejam
lidas por todos os servidores da ativa e aposentados, pelos seus familiares, pelos
amigos, enfim sejam conhecidas pela sociedade. Que os servidores continuem
Memória Incra 35 anos
registrando suas experiências e que as divulguem pelos meios existentes no
órgão, ou seja, não precisam esperar novo concurso. Isto foi o concurso.
No tocante ao projeto Memória do Incra, do qual o concurso constituiu
uma parte importante, este deve ser entendido como um trabalho de resgate
da história do órgão responsável constitucional pela execução da política fundiária brasileira. É uma parte importante do resgate da memória nacional ao
lado da história da educação, da saúde, do trabalho no campo – memória
camponesa – e outras de alto significado no processo de formação e construção da nação brasileira.
É objetivo do projeto conhecer a história do órgão em toda sua extensão, por
meio de dois eixos: o resgate da história oral e da história documental. Dentro
das atividades da memória oral, até o momento, foram entrevistadas 44 pessoas,
entre servidores da ativa, aposentados, ex-dirigentes. Os depoimentos serão, ao
final dos trabalhos, colocados à disposição da sociedade. A parte da memória
documental vem sendo desenvolvida; foram recebidos acervos de ex-servidores e de outras fontes. Para área de documentação o Incra conta com o valioso
apoio do Arquivo Nacional.
Os documentos resultantes do projeto Memória Incra, constituem matéria-prima especial para o processo de formação de outros profissionais que
venham a trabalhar diretamente na reforma agrária ou em atividades ligadas ao
desenvolvimento rural, a programas de capacitação na perspectiva da educação
popular, ou a outros processos organizativos no meio rural.
Também, poderão ser utilizados como material didático nos cursos de capacitação para servidores Incra em sala de aula, oficinas, encontros, objetivando
que os servidores e outros agentes da reforma agrária passem a incorporar essas
contribuições, como uma referência para suas vidas profissionais, funcionais e
pessoais como cidadãos.
Compartilhamos com todos os servidores e servidoras desta gloriosa instituição o alerta e o chamamento feito por um dos participantes do concurso em
suas palavras: “para os servidores do Incra a palavra rotina não existe, porque a
cada dia enfrentamos novos desafios e que temos de dar resposta.” Antonio Rubens Pompeu Braga
17
Memória Incra 35 anos
Artigos premiados
1
35 anos em vida
com os pés na terra
A n to n i o P r a n c u t t i
Terra
O estudo de certas radioatividades naturais permitiu fixar aproximadamente a
idade da Terra em 4,5 bilhões de anos.
A Terra é o terceiro dos planetas principais do sistema solar, em ordem crescente das distâncias do Sol. Situa-se entre Vênus e Marte. Gira sobre si própria,
com movimento quase uniforme, em torno de um eixo que passa por seu centro
de gravidade, enquanto circula em redor do Sol e determina a duração do ano;
e a rotação sobre si mesma, a do dia. A Terra tem a forma de um elipsóide de
revolução, achatado. Seu diâmetro equatorial é de 12.756 quilômetros aproximadamente e seu diâmetro polar de 12.713 quilômetros.
Graças ao Grande Criador por tudo que existe, depois de fixá-la, Deus fez o
homem para nela habitar, procriar e seguir formando o grande canteiro para
abrigar a humanidade na perene tarefa de continuar sua obra.
E hoje, protegidos pelas leis naturais e seguindo as determinações criadas pela
inteligência humana, o homem, senhor dos mares, dos desertos e da terra, afina-se
com seus semelhantes, criadores e descobridores das máquinas e equipamentos
que fizeram e fazem o desenvolvimento, mas tendo como célula-mãe a terra que
precisa ser cuidada e protegida, como se fosse um ser vivo, nosso, semelhante a nós.
Incra
Pelo Decreto-Lei número 1.110 de 9 de julho de 1970, o presidente da República,
general Emílio Garrastazu Médici criou o Instituto Nacional de Colonização e
20
Nead Especial 2
Reforma Agrária (Incra), entidade autárquica vinculada ao Ministério da Agricultura, hoje Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com sede na capital
da República, passando-lhe todos os direitos, competências, atribuições e
responsabilidades do Instituto Brasileiro de Reforma agrária (Ibra), do Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) e do Grupo Executivo da Reforma
Agrária (Gera), que foram extintos.
O instituto passou a ser dirigido por um presidente, indicado pelo ministro
da Agricultura e quatro diretores; os funcionários das entidades extinguidas
passaram para a nova autarquia.
Iniciou-se assim, no Brasil, um procedimento mais compacto para cuidar da
terra, da propriedade e da segurança dos proprietários rurais.
Sempre foi um orgulho para mim, pertencer aos quadros funcionais do Incra
e sempre alimentei o desejo de escrever sobre o que passei e presenciei, nos 24
anos que sirvo com vontade, lealdade e emoção ao instituto. Agora vejo essa
condição mais privilegiada, quando posso, por deferência de uma parceria do
Incra com o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), do
MDA, participar do concurso Memória Incra 35 Anos.
Nasci no interior do Rio Grande do Sul, na pequena e hospitaleira Garibaldi.
Desde criança aprendi lidar com a terra. Meu pai trabalhou em forma de condomínio com seu irmão, em uma área de 11 hectares, herdada de seu pai que veio
da Itália. Quando os filhos do casal foram crescendo, a família passou a explorar,
de forma familiar, os 5,5 hectares que coube a cada um dos herdeiros. Meu
pai além da vitivinicultura, principal atividade agrícola desenvolvida na região,
ampliou também a atividade leiteira, visto que o rendimento com a venda do
leite se fazia mensal ao passo que o rendimento pela venda da uva era anual. O
ganho obtido com a venda do leite não era suficiente, mas era indispensável para
o complemento da renda familiar. Minha irmã e meu irmão mais velhos foram
trabalhar na cidade e sendo de oito membros a nossa família, coube a mim, o
terceiro filho, a tarefa de ajudar meu pai nas atividades agrícolas. Ele, no entanto,
sempre incentivou para que eu estudasse e assim pude conciliar trabalhar na
roça durante o dia e estudar à noite.
Durante as atividades que desenvolvíamos, conversávamos a respeito do
meu futuro. Devido ao manejo com o gado de leite ser bastante árduo e exigir
muitos cuidados sanitários, meu pai sempre nutriu o desejo para que eu fosse
cursar veterinária. No entanto, ao se aproximar a data do vestibular eu lhe disse
Memória Incra 35 anos
que preferia o curso de direito e, como que prevendo o desiderato me disse:
– “Filho é você que vai freqüentar a faculdade e não eu. Você deve fazer o que
achar melhor para ti.”
Ao tomarmos conhecimento que havia sido aprovado no vestibular de direito
da Universidade de Caxias do Sul (UCS), papai que sempre demonstrou ser uma
pessoa forte e pouco emotiva, fruto das dificuldades da vida, simplesmente
desmaiou de emoção.
A opção pela carreira de advogado nunca me desvinculou da terra. A origem
é uma coisa muito especial e nos faz manter raízes muito fortes com o meio de
onde viemos.
Mais tarde saí em busca de novos horizontes tanto pessoais como profissionais e me mudei para Brasília.
Desde os primeiros anos de curso universitário, freqüentado com muitas
dificuldades financeiras, meu pensamento sempre esteve voltado para as coisas
do campo, da realidade de onde tinha vindo. Parece que tudo estava escrito pela
mão do Grande Criador, pois, o destino me reservaria muitas emoções nessa área.
A primeira ação que defendi tão logo obtive a tão almejada carteira da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB/DF), foi uma Ação de Reintegração de Posse no
município de Cavalcante/GO, Comarca de Formosa na qual trabalhei com muito
denodo e cuidando de todos os detalhes o direito de um paupérrimo posseiro
frente ao poderio econômico do fazendeiro (esbulhador). Isto foi em 1980. Meu
desempenho naquela ação despertou curiosidade por parte de um advogado
de Brasília que sempre atuou nas questões agrárias, elogiando a “audácia” do
jovem advogado. Com o trabalho reconhecido, mas, em dificuldades para me
manter no escritório de advocacia juntamente com mais três sócios, todos com
outras atividades, aliado ao gosto pelas causas agrárias, ensejou para que eu
fosse contratado pelo Incra, em 25 de junho de 1981, na qualidade de advogado
junto à Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) para prestar serviço ao
Incra, tendo atuado até 31 de maio de 1983 junto a Divisão de Desapropriação em
Brasília. Com enorme desejo de retornar ao sul, após mais de sete anos de muita
experiência na capital da República e, aliado a problemas de saúde de minha
finada mãe, e para ficar mais próximo dos meus entes queridos, me propus a vir
para a cidade de Chapecó.
Mas, o que mais me levou a escrever sobre os 35 anos do Incra são as experiências vividas nestas plagas fronteiriças, que, humildemente passo a relatar:
21
22
Nead Especial 2
O Incra tem, ao longo desses 35 anos, dois momentos bem marcantes e
distintos. O primeiro vai de sua criação em 1970 até 1985, período em que o
órgão cuidou da regularização fundiária e em um segundo momento, com a
redemocratização do país, a partir de 1985, seu trabalho foi direcionado para o
assentamento de agricultores rurais sem-terra, ou seja, na execução da reforma
agrária propriamente dita.
Desde a criação do projeto fundiário em Santa Catarina ocorrida em 30
de novembro de 1972 pela Portaria Incra, 2.562, com sede em Chapecó, região
limítrofe com o Rio Grande do Sul e Paraná e próxima da Argentina, havia um
planejamento que previa a instalação de uma unidade fundiária no município de
Xanxerê, que teria como objetivo cuidar da regularização fundiária da ex-colônia
militar que havia sido criada naquele município. No início de 1985 foi criada a
referida unidade, quando fui designado para chefiá-la.
Tão logo iniciei os trabalhos que visavam a regularização de vários minifúndios existentes na microrregião de Xanxerê, minha função dentro da autarquia
mudou radicalmente, como se verá adiante.
O segundo momento do Incra teve início com a reabertura democrática.
Na verdade, o país vivenciou em 1984, uma grande luta em prol da democracia,
com a campanha “Diretas já”. Com a reabertura democrática todas aquelas reivindicações sociais, todo aquele acúmulo de demandas passaram a fazer parte
do programa do novo governo. Com a eleição de José Sarney a presidente da
República, após 21 anos de regime militar, o governo atento às reivindicações
dos movimentos sociais incluiu em seu programa a Reforma agrária. Como o
atendimento da demanda por terras se acentuou durante o regime militar, o movimento dos sem-terra, que há alguns anos já vinha se organizando, não deu folga
ao governo recentemente empossado e numa verdadeira orquestração nacional
promoveu uma avalanche de invasões, levadas a efeito no dia 25 de maio de 1985.
Esse dia passa a ser um divisor de águas e marca o início da reforma agrária
no Brasil e é a partir dessa data que este humilde servidor do Incra começa a
viver profundas experiências humanas e profissionais, coincidindo com o deslocamento funcional ao município de Xanxerê, visto que o município de Abelardo
Luz, palco de muitas invasões, fica próximo daquele.
A bem da verdade, é bom que se diga que o quadro funcional do Incra não
estava aparelhado para atender e enfrentar tão delicada questão que sempre
foi a Reforma Agrária. O Incra, até então tinha executado a atividade de regula-
Memória Incra 35 anos
rização fundiária e, de repente, se viu diante de outra realidade fundiária, muito
mais dramática e complexa e tendo que atender as pressões de um movimento
social muito bem organizado e programático.
Com as invasões ocorridas em maio de 1985, o Incra pressionado pelo MST
firmou um termo de compromisso, tendo ainda como avalistas os Sindicatos de
Trabalhadores Rurais e outras entidades ligadas ao setor, o qual estipulava um
prazo de 90 dias para que o governo Federal, através do órgão executor da reforma
agrária, desapropriasse 20 mil hectares de terras para o assentamento de duas
mil famílias de agricultores, notadamente, na região oeste de Santa Catarina.
Assim que o superintendente estadual assumiu o cargo, se viu diante de
enormes dificuldades para tentar cumprir o termo dentro do prazo estabelecido e
na quantidade de área pretendida. Ouvi o superintendente falar de como poderia
encaminhar aquela delicada situação e eu de pronto lhe disse que tinha iniciado
minha atividade no Incra exatamente na Divisão de Desapropriação em Brasília e
por isso poderia contar comigo caso necessário, que eu conhecia o pessoal que
trabalhava nessa área e que poderia agilizar o andamento dos processos. Eu não
tinha noção exata de quantos e nem quais processos haviam sido constituídos,
visto que foram formalizados no âmbito da Superintendência, porém, não me
importava a demanda, se chamado eu iria executar uma missão muito especial
e por certo encontraria respaldo tanto da Superintendência quanto dos meus
colegas de Brasília para a execução de referida tarefa.
Um pouco antes de embarcar para Brasília, os meios de comunicação regionais noticiaram que estava se deslocando para a capital federal um procurador
do Incra para agilizar os processos de desapropriação com objetivo de assentar
duas mil famílias de agricultores, fazendo parte do compromisso assinado. Não
demonstrei qualquer preocupação com as notícias, pois,iria cumprir uma missão
e pretendia fazê-la da melhor forma possível. Pensava que quanto mais ficasse
no anonimato melhor seria, para dar andamento aos trabalhos.
Logo após as invasões, por determinação do instituto e devido à própria
demanda, eu visitava pelo menos três vezes por semana os acampamentos
dos sem-terra. O maior deles ficava localizado na denominada Sede Roseira, no
município de Fachinal dos Guedes. Eram centenas de famílias aglomeradas numa
área que pertencia à empresa Santa Úrsula Florestal, que recebeu incentivos
fiscais para a execução de um projeto de plantio de noz pecã, que não vingou
e então a área estava arrendada para uma família de Xanxerê.
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Nead Especial 2
Bem me lembro, em uma ocasião, juntamente com o superintendente e um
representante do governo do Estado, lotado na Secretaria de Agricultura de Santa
Catarina em visita àquele acampamento, a enorme população acampada nos
recebeu com cânticos e palavras de ordem em prol da reforma agrária, sabendo
da importância dos cargos ocupados pelos “visitantes da capital”.
Na ocasião o representante do Estado me disse: “-Eu gostaria de estar no teu
lugar. Daqui a alguns meses irei fazer um curso de mestrado na Espanha e por
certo já teria a minha tese baseada nessa atividade que desenvolves em meio
a toda essa situação.”
Refleti sobre a conversa, mas as reivindicações e problemas eram tantos que
não tinha muito tempo para pensar a respeito. No entanto, a observação me
deixou bastante lisonjeado.
O acampamento que eu atendia com mais freqüência ficava no município
de Abelardo Luz, também numa área pertencente à Santa Úrsula Florestal que
tinha obtido incentivo fiscal para executar um projeto de plantio de macieiras,
todavia, a exemplo do que ocorreu com o outro imóvel, também esse projeto
não prosperou, de sorte que a área estava arrendada para uma família de agricultores daquele município.
Naquele local se concentravam também centenas de famílias sem-terra, com
quem, desde o início mantive um bom relacionamento. Essa aglomeração se
deveu ao fato da proprietária do imóvel Papuan I, Anair Motta dos Santos Pereira,
ter ingressado com ação de reintegração de posse e com isso grande parte daquelas famílias que lá se encontravam se deslocaram para a área da Santa Úrsula
Florestal, que ficava próxima daquela, enquanto outras permaneceram na beira
de uma estrada perto da área que foi desocupada por ordem judicial. No novo
acampamento na área da Santa Úrsula Florestal não seriam molestadas, pelo
menos por algum tempo, visto que tinha sido decretada a falência da empresa;
sendo que o Banco do Estado de Santa Catarina arrematou o imóvel e o governo
do Estado não tinha interesse em aumentar o conflito social.
Os problemas surgiram depois com os arrendatários, e isso, mereceu muita
negociação. Nesse período, até a efetivação das desapropriações, conforme se
verá adiante eu me dirigia tanto a esse acampamento quanto ao daquelas famílias
que permaneciam à beira da estrada. As reivindicações eram tantas que parecia
que eu passava num “corredor polonês.” Com muita calma e escutando mais
do que falando eu permanecia junto com os sem-terra e quando retornava a
Memória Incra 35 anos
Abelardo Luz, distante cerca de 32 quilômetros, visitava a prefeitura e o Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, quando as pessoas daquele meio,ansiosas, queriam
saber como estava a situação.
A imprensa dava ampla cobertura porque era inédita a situação que estava
ocorrendo. No país inteiro os meios de comunicação davam destaque à questão
da reforma agrária. Aliás, com repercussão mundial e, por incrível que pareça
eu nunca me defrontei com os órgãos de imprensa. Nutria meus superiores
com todas as informações possíveis, cabendo a eles a tarefa de repassar para a
imprensa. No âmbito mais local junto à Prefeitura Municipal e o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais eu informava o andamento das ações levadas a efeito pelo
Incra em Abelardo Luz.
Após essa digressão, retorno sobre a minha missão em Brasília na instrução
dos processos de desapropriação de interesse da SR-10, marco significativo
na minha atividade dento do Incra. Todo final de tarde eu fazia um relato ao
superintendente sobre o andamento dos 14 processos que tinham ficado sob
minha responsabilidade.
Feito o relato retornava a rotina de trabalho, analisava as peças dos autos por
diversas vezes, me dirigia ao encontro de diretores para explicar qual era minha
missão ou tratar dos processos em cada área específica. Bem recordo que com
o procurador-geral discuti sobre um processo, do imóvel Putinga, localizado
nos municípios de Caçador e Matos Costa, onde estava presente uma questão
florestal, muito comum naquela região, onde há muitos reflorestamentos. O
procurador-geral tinha grande preocupação com a questão florestal, de sorte
que o processo necessitava de um estudo mais aprofundado.
Com o diretor de Recursos Fundiários debati sobre grande parte dos processos, objetos de minha análise. Sentia-me bem à vontade porque tinha uma boa
bagagem na área fundiária. Toda diretoria do Incra havia tomado posse alguns
meses antes e não estava ainda suficientemente habituada com os trâmites dos
processos, além de que os mesmos enfrentavam uma agenda sempre lotada
durante o expediente normal e após esse era um momento apropriado para
tratar dos assuntos pendentes.
Nesses encontros, um foi muito especial. Fui ao diretor de Cadastro e expliquei
a razão da minha ousadia em interrompê-lo, visto que eu estava atrás de dois
processos que haviam sido distribuídos àquela diretoria, por coincidência ambos
do município de Anchieta referentes aos imóveis Sanga Azul e Aparecida. Os
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Nead Especial 2
dois processos estavam com problemas semelhantes. Expliquei-lhe de como eu
achava que deveriam ser encaminhados. Então ele calmamente, como se fosse
de pai para filho me disse: -“Filho, se o que você está me dizendo é o correto, é
o que verdadeiramente precisa ser feito, pode fazer o despacho que eu assino.”
O despacho era para tomar providências no aspecto cadastral dos imóveis.
Não me fiz de rogado. Redigi os despachos, ele leu e aprovou. No dia seguinte
os processos foram remetidos para a adoção das providências recomendadas.
Aquele rápido e importante encontro me deixou bastante comovido e não raras
vezes o recordo com emoção.
Permaneci 15 dias em Brasília trabalhando nos processos para que o presidente
da República os assinasse. Foi uma tarefa árdua, pois em cada processo havia a
necessidade de providenciar a minuta do decreto, fazer uma informação jurídica,
elaborava uma ficha com resumo dos valores envolvidos na proposta, fazer a
exposição de motivos do ministro da Reforma agrária ao presidente da República
e o ofício de encaminhamento do presidente do Incra para o ministro.
Retornei a Xanxerê extremamente cansado e naquele final de semana eu só
queria descansar. Já era o último dia de agosto, quando expirava o prazo estabelecido no Termo de Compromisso. No entanto, a recompensa estava por vir.
No dia 3 de setembro de 1985, o presidente da República declarou de interesse
social para fins de reforma agrária os imóveis rurais: Entre Rios (1.030,8000 ha),
Jacutinga (390,4236 ha) e Rabo de Galo (405,1169 ha) no município de São Miguel
do Oeste; Barra Escondida (490,3000 ha) e Lageado Grande (1.256,9208 ha) no
município de São José do Cedro; Papuan I (362,0000 ha) Sandra (1.039,1441 ha) e
Santa Rosa I (1.241,0000 ha) no município de Abelardo Luz; Derrubada (601,5717 ha)
no município de Ponte Serrada e Parolim (7.219,1642 ha) no município de Itaiópolis,
único fora da região oeste do Estado, totalizando 13.005,6400 hectares.
As outras três áreas referentes aos imóveis rurais “Sanga Azul e Aparecida”,
com áreas respectivas de 218,7773 ha e 280,5000 ha, localizados no município
de Anchieta, também no oeste do estado e mais o imóvel “Putinga”com área
de 4.412,3683 hectares, localizada nos municípios de Caçador e Matos Costa, no
meio oeste, foram desapropriadas no dia 31 de dezembro de 1985, somando
mais 4.911.6456 hectares, para atendimento do Termo de Compromisso. Com
relação a outra área do imóvel “Fazenda Velha”com área de 515,0000 hectares
somente foi desapropriado após algum tempo, pois o IBGE teve que se posicionar
quanto a exata localização do imóvel, se num município ou outro, concluindo
Memória Incra 35 anos
afinal de que parte ficava no município de Irani e outra parte no município de
Catanduvas, igualmente localizados nesta região. Depois outros imóveis foram
sendo desapropriados, principalmente no município de Abelardo Luz. Só para se
ter uma idéia da importância do município na Reforma agrária, o mesmo conta
atualmente com 22 assentamentos, totalizando 1.229 famílias assentadas.
O período posterior aos decretos de desapropriação foi intenso, um trabalho
rico e repleto de experiências, às vezes bem complicadas, mas, com certeza,
gratificantes. Discorrer a respeito de cada uma delas é motivo de muita emoção.
Foram dias, meses e anos de uma experiência singular. Muitas foram as reuniões,
as negociações tanto com assentados quanto com os desapropriados, cada um
com suas razões. Creio que até hoje nem o MST nem mesmo os desapropriados
sabiam que fui eu quem foi à Brasília para tratar da desapropriação das áreas, não
só daquelas que fizeram parte do pacote inicial, mas de muitas outras.
Sem forçar nada eu ia vivenciando aquilo de forma espontânea. Tratava com
madeireiros que estavam extraindo madeira, cujos acordos foram celebrados tanto
com o Incra quanto com os expropriados e com os assentados, pois quando da
desapropriação estava em vigência contratos de extração de madeira, devidamente aprovados pelo Ibama, até porque,os madeireiros tinham compromissos
assumidos, tinham funcionários e contratos a cumprir com clientes.
Foram feitas inúmeras reuniões com os assentados, orientando-os para que
não desmatassem as beiras das fontes de água ou em áreas íngremes e que
deixassem pelos menos 20% de reserva legal em cada parcela. Grande parte das
reuniões era para tratar de assuntos do assentamento, nas quais as lideranças
faziam as suas reivindicações, eu anotava e repassava por meio de relatórios à
Superintendência.
Eu sabia que me encontrava deslocado de minha função, mas naquele
momento não havia como modificar asituação. Estava tão envolvido com o
dia-a-dia de minhas atividades junto àquelas pessoas necessitadas, que os superiores não cogitavam em delegar as tarefas. Mas posso afirmar que tudo o que
fiz foi para o cumprimento do dever assumido quando de minha diplomação,
aliando profissionalismo, cautela e muita dedicação, pois estava tratando com
seres humanos.
Outras experiências merecem destaque:
Em um sábado à tarde me reuni num restaurante na cidade de Abelardo Luz
juntamente com os ex-proprietários do imóvel Santa Rosa I e com o procura-
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dor dos mesmos para viabilizar um acordo em relação ao preço oferecido pela
desapropriação. A reunião começou às 14h e se estendeu até às 20h. Eu tinha
um jantar promovido pelo Lions Clube em Xanxerê. Quando cheguei, lá pelas
21h, minha esposa estava pálida e meus amigos apreensivos, pois sabiam que
eu vivia envolvido com problemas e que tratava com muitas pessoas, estava
sempre só. Fui recebido com palmas, o jantar transcorreu normalmente e tive a
oportunidade de expor para alguns presentes como eram as regras estabelecidas
pelo Incra para as negociações.
Para minha satisfação, após aquele encontro proveitoso, o acordo foi celebrado,
não só com os desapropriados do imóvel Santa Rosa I, que residiam na cidade
de Guarapuava, no Paraná, mas, também foi celebrado acordo nos mesmos
moldes com a ex-proprietária do imóvel Sandra, que veio especialmente do Rio
de Janeiro para acompanhar a reunião.
Outro episódio que convém destacar é o que diz respeito a uma tentativa
de ser amarrado no tronco de uma árvore, por sugestão de uma freira que se
encontrava fazendo uma reunião no assentamento Santa Rosa I, que se dirigiu
com veemência contra minha pessoa, falando mal da atuação do Incra. No entanto,
como eu tinha um bom relacionamento com os assentados, principalmente com
as lideranças e fazia só o meu trabalho, o intento da freira não logrou êxito.
Um episódio, este extremamente lamentável, foi quando me dirigi, juntamente com o motorista do Incra e o oficial de Justiça de Abelardo Luz a fim de
proceder a imissão de posse no imóvel Serra dos Buracos, também em Abelardo Luz. Fomos recebidos por cerca de 12 empregados da fazenda. O clima de
animosidade estava no ar. As pessoas estavam fortemente armadas. Tão logo
chegamos à casa de um dos expropriados, apareceu o outro expropriado que
entrou esbravejando contra o ato de desapropriação. Nós três nos olhamos e,
sinceramente, ficamos esperando pelo pior. Minhas palavras não faziam qualquer sentido ao revoltado ex-proprietário. Não fosse a intervenção do oficial de
Justiça, que era muito conhecido das pessoas presentes, nossas vidas estariam
seriamente ameaçadas.
Mais adiante, numa audiência na Justiça Federal referente a uma ação de
reintegração de posse movida pelo Incra sobre aquele imóvel, visto que o exproprietário insistia em molestar as pessoas acampadas, o mesmo me ameaçou
de morte tão logo o juiz se retirou da audiência. Fui à sala do magistrado e este
me aconselhou procurar a polícia para registrar queixa e foi o que fiz. Passado
Memória Incra 35 anos
algum tempo, o advogado do indignado cidadão, com o qual mantenho um
bom relacionamento, me procurou dizendo que o mesmo queria se desculpar.
Só que não aceitei o pedido de desculpas, pois sempre respeitei as pessoas e a
lei, fui ameaçado e humilhado no cumprimento do dever.
No entanto, outras tantas experiências gratificantes são dignas de registro.
Estava hierarquicamente vinculado ao executor do projeto fundiário localizado em Chapecó. Entretanto, somente na atividade administrativa me dirigia a
Chapecó, mas no aspecto técnico e jurídico na condução das várias facetas no
município de Abelardo Luz, eu falava diretamente com a Superintendência, face
a urgência na tomada de medidas. Quando me deslocava para Abelardo Luz, era
uma avalanche de pessoas e de pedidos, seguia para o sindicato, prefeitura ou
qualquer outra repartição era assediado, parecendo que eu era a solução para
eles, não imaginando quão é difícil tratar as demandas.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais fica no lado direito da Rua Padre J.
Smedt, 1676, centro de Abelardo Luz. No lado esquerdo ficam a prefeitura e o
fórum. Para este narrador que tinha morado durante algum tempo em Brasília,
dava a impressão que era a Praça dos Três Poderes em miniatura.
Caso eu demorasse em visitar um ou outro local, era chamado ou por um
funcionário da prefeitura ou do fórum, este em menor escala. No sindicato os
pleitos eram para saber quem seria assentado, ou quem deveria ser excluído do
recebimento de cestas básicas e uma série de outras demandas.
Na prefeitura era tratada a questão do transporte, -visto que há um imóvel
que fica a 40 quilômetros da sede do município- da educação, da saúde e do
andamento das propostas de desapropriação. Certa vez, por conhecer mais ou
menos o funcionamento da máquina pública e saber exatamente os termos a
serem colocados, em nome da Prefeitura redigi um ofício para o então Ministério
Extraordinário da Reforma Agrária.
Sempre tive condições de ajudar na solução dos encaminhamentos. Repetindo-se os fatos quando eu fui cumprir a missão de agilizar os primeiros processos
de desapropriação, já conhecia grande parte dos imóveis, sabia quem eram seus
proprietários, sabia se estavam em faixa de fronteira ou não, tinha conhecimento
da questão ambiental, tendo a dimensão exata do imóvel e da clientela que
mais tarde seria assentada.
No fórum, várias vezes o juiz queria saber se estavam em andamento novas
propostas de desapropriação e se havia a possibilidade de novos assentamentos,
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visto que outros imóveis se encontravam invadidos. O juiz queria evitar a execução de reintegrações de posse e muitas vezes, foram negociados prazos para a
desocupação, pois estavam em trâmite outras propostas de desapropriação.
Outro aspecto que deve ser enfocado é a atuação do Incra no Conselho
Municipal Agrário, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República e que previa a instalação de Conselhos Agrários Estaduais e Municipais,
coordenados pelo Incra, com a participação da prefeitura, Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Sindicato Rural, cooperativas, um ou dois representantes do MST,
representante da Empresa de Assistência Técnica do Estado e outras entidades
ligadas ao setor produtivo.
As reuniões eram difíceis, porque estava em jogo o futuro dos pretendentes
ao assentamento. Por ser funcionário do Incra cabia a mim coordenar os trabalhos.
Enquanto a comissão se reunia nas dependências da prefeitura, no lado de fora
ficavam centenas de agricultores aguardando o desfecho.
Nesses encontros eu levava toda a documentação referente à vida pregressa
dos candidatos, e que continha basicamente o seguinte: se tinham passagem
pela polícia, se já tinham sido proprietários de imóveis rurais e se já tinham sido
condenados pela justiça, e diga-se de passagem, essas providências também
eram feitas por mim.
O representante da prefeitura, quase sempre o chefe do Executivo Municipal
pugnava para que pelo menos 50% das vagas destinadas ao assentamento fossem
preenchidas por pessoas oriundas do seu município, condição essencial para que
ele pudesse arcar com as despesas, principalmente nos setores da educação e
saúde. Às vezes havia divergência quanto a um ou outro nome e aí era solicitado
o devido esclarecimento por parte dos representantes do MST. Confesso que
nunca tive qualquer problema dessa ordem. A escolha dos parceleiros sempre
foi feita de forma respeitosa e transparente.
Sem deixar de lado as narrativas acerca das experiências que ora trago a tona,
vários foram os momentos em que eu não tinha a tranqüilidade suficiente para
me comunicar com meus superiores sobre as medidas que estava tomando ou
que precisava tomar, tanto no sindicato quanto na prefeitura que sempre estavam repletos de pessoas, cujas narrativas poderiam interessar-lhes. Então eu me
dirigia ao Cartório de Registro de Imóveis que fica um pouco afastado e falava
gentilmente ao titular, pedindo-lhe para fazer uso do telefone e me comunicar
com meus superiores, dando-lhes as informações necessárias. Até na hora do
Memória Incra 35 anos
almoço eu tinha que me deslocar para fora do centro da cidade, caso contrário
eu não teria tranqüilidade para fazer a refeição, pois as pessoas ao me verem,
faziam as cobranças e pedidos de informações.
Sorte que Abelardo Luz tem uma natureza privilegiada e me dirigia até o
restaurante que fica junto às belezas incomensuráveis das Quedas de Abelardo
Luz, um paraíso ecológico e natural, uma verdadeira réplica das Sete Quedas
do Iguaçu. Nesse local, além de usufruir da natureza eu aproveitava para me
programar para as atividades da tarde que na maioria das vezes consistiam nas
visitas aos assentamentos ou acampamentos.
Abelardo Luz, como se pode notar, estava sempre em ebulição, parecia um
verdadeiro Eldorado da Terra. Hoje a economia do município, não obstante, ser
grande produtor de soja, depende muito dos assentamentos.
Residi em Xanxerê até maio de 1987, quando retornei ao então Projeto Fundiário de Santa Catarina com sede na cidade de Chapecó, para assumir a chefia
do Grupamento Fundiário. Todavia, o remanescente de Abelardo Luz e suas
incontáveis histórias ficaram para sempre na memória deste servidor do Incra.
Com meu retorno a Chapecó e a instalação da Vara Federal de Chapecó e
Joaçaba, em dezembro de 1997, os procuradores passaram a atuar no contencioso,
aliás acredito que seja a única Unidade Avançada em que os procuradores atuam
no contencioso. Inicialmente a atuação se deu nos executivos Fiscais, tanto na
Justiça Federal quanto nas comarcas da região. Após o Grupamento Fundiário,
mesmo não descuidando dos remanescentes de regularização fundiária mergulhou fundo nas ações de cunho contencioso, desapropriações propriamente ditas,
tanto das provenientes de regularização fundiária quanto das de reforma agrária.
Nesse ínterim vale destacar que mais de uma vez fomos chamados pelos
magistrados, principalmente pela primeira juíza que tomou posse na Vara Federal
de Chapecó, vinda da cidade de Santos-SP, para falar sobre desapropriações e
sobre reforma agrária. Um dia a magistrada me confessou : -“Dr. não estou muito
convicta do arrazoado feito por um advogado. Estou achando que ele está faltando com a verdade, gostaria de ir juntamente com um oficial de Justiça para
verificar in loco que está acontecendo no imóvel Sandra.”
A questão envolvia a retirada indevida de madeira de parte de alguns assentados, que ficou retida por determinação do Incra. Utilizamos uma viatura do Incra
e nos dirigimos ao local. A magistrada se convenceu de que efetivamente os fatos
narrados pela defesa não condiziam com a realidade constatada no imóvel.
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Para encerrar, narro um acontecimento que muito me emocionou da forma
como se deu. No dia 30 de dezembro de 1996, eu, um motorista do Incra e um
oficial de Justiça de Joaçaba, fomos fazer a imissão na posse do imóvel Fazenda do
Confinamento, atual Projeto de Assentamento Zumbi dos Palmares, localizado no
município de Coronel Passos Maia, que há pouco tempo havia se desmembrado
do município de Ponte Serrada. Aliás, hoje é o segundo município em número
de assentamentos. Ao chegarmos no imóvel, tinha inúmeras pessoas em cima
de árvores comendo guavirovas (fruta da época com forte produção na região),
que desceram rapidamente e foram se aproximando.
Quando o oficial de Justiça disse que veio cumprir o mandado de imissão
de posse, a alegria transbordou na face daqueles rudes senhores, senhoras e
crianças, cuja vibração foi tão forte que nos emocionou. Que belo presente de
final de ano. Essa é a verdadeira recepção de uma imissão de posse, não como
a que narrei anteriormente.
Deixamos o oficial de Justiça em Catanduvas, a 25 quilômetros de Joaçaba.
Retornamos a Ponte Serrada para abastecer o veículo, cumprimos a última tarefa,
que era passar um fax para a Superintendência, que estava aguardando com
inusitado interesse a comunicação da imissão de posse, que visava a complementação da meta estabelecida para aquele exercício. Falei para o motorista que
isso merecia uma comemoração. Abrimos uma garrafa de cerveja e brindamos
como se fosse um champanha. O momento era próprio porque estava chegando
o final de ano e tínhamos acabado de concretizar um sonho não só do Incra, mas
principalmente de várias pessoas que estavam aguardando com muita ansiedade
por um pedaço de chão para plantar e colher os frutos que as alimentam.
O resgate da memória da reforma agrária no Brasil, que tornam a reconstrução
e valorização dos 35 anos de história do Incra, sugeridos no concurso Memória
Incra 35 Anos, possibilitou a este servidor trazer para o texto, o que a memória
guarda com tanto carinho e valorização, dos dias e momentos vividos nos gabinetes diretivos e na terra em meio aos conflitos e os acordos celebrados que
hoje resultam em paz e desenvolvimento.
Nestes 35 anos, o Incra atenuou os problemas vividos pelo homem do campo
promovendo a regularização fundiária. Democratizou o acesso a terra fazendo a
inserção social de milhares de famílias que se encontravam à margem do processo
produtivo através da execução da reforma agrária. Para os próximos anos creio
que a atuação do Incra deverá se voltar pela adoção de políticas públicas que
Memória Incra 35 anos
viabilizem a permanência dos assentados em suas parcelas permitindo que os
mesmos possam se desenvolver social e economicamente. Por certo o quadro
funcional da autarquia e seus parceiros não medirão esforços para a consecução
de tais políticas sociais. 33
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Extrativismo: ainda bem
que chegou tarde
Ra i m u n d o J o s é A l m e i d a Bat i s ta
Em 1971, nem lembro em qual mês, cheguei com mais oito irmãos (quatro homens e quatro mulheres) à cidade de Humaitá, vindo perambulando de seus
interiores fugindo das mazelas e inúmeras malárias. Todo pai quer para os filhos
as oportunidades que não teve. E com a gente também foi assim.
Lembro-me vagamente como se tudo fosse um sonho, pois custamos acreditar quando realizamos aquilo que tanto queremos.
Humaitá era uma cidade simples, ruas de terra, poucos carros e explicitada
divisão de classes sociais pobres e ricos. A cidade vivia ainda, resíduos dos tempos
áureos da borracha.
Ao chegarmos ao cais do porto, uma escada de concreto que ia até próximo às
águas barrentas e caudalosas do rio Madeira, nos permitiram dar nossos primeiros
passos na nova terra. Vários curiosos e estivadores ali estavam. Em cidade pequena os barcos de linha (recreios) são as maiores atrações. Acabávamos de fugir da
exploração de seringueiros implementada pelos patrões seringalistas, abastados
à custa das ignorâncias e necessidades dos homens de inúmeras noites em claro.
Não lembro, mas posso imaginar quantas humilhações meu pai e outros
seringueiros sofreram, além daqueles que “sumiam” ao final do fabrico porque
haviam tirado saldo (que nunca recebiam) sempre havia uma justificativa para
aqueles sumiços repentinos A onça era quem levava a culpa. O perigoso felino
comia todos que tinham algo a receber, nas constantes versões dos patrões.
Fugíamos das pragas, da escravidão branca e da vida quase nômade que
levávamos, que todas as terras que habitávamos tinham sempre um proprietário
cobrando arrendamentos absurdos e impossíveis de serem pagos. Eram as formas
mais claras de manterem seus fregueses sob seus domínios.
Memória Incra 35 anos
Ao chegarmos à Humaitá passamos a viver normal. Papai trabalhava fazendo
bico aqui e ali e meus irmãos mais velhos ajudaram a criar a gente. Na realidade,
nós nos viramos.
Estudamos, mas Deus me deu o dom de desenhar. Com 18 anos fui contratado pelo Incra, e aí começa toda história:
Fui contratado no dia 6 de agosto de 1982. O Brasil acabava de perder para a
Itália, na Espanha, a Copa mais fácil de ganhar, naquela inesquecível tragédia de
Sarriá, o dia PR (Paulo Rossi). Bom! Aquilo para os brasileiros era o ano de zebra,
para mim foi o meu ano de sorte. Estava contratado pelo Incra, o mais benfeitor
instituto das questões sociais da Amazônia brasileira.
O Incra realizou em 30 anos naquela região, a justiça social, definindo o
que era de propriedade particular e de domínio do Estado e posteriormente
da União (aquelas que os seringalistas, diziam ser também deles) por meio da
arrecadação de glebas.
A disciplina foi fundamental para que Pedro Ferreira, seringueiro e morador
do beiradão, bradasse em voz alta, dizendo que tinha se libertado da escravidão
ao receber seu título definitivo de terra:
Até anos atrás, nenhum pobre tinha terra, de um rio a outro tudo tinha dono e a gente
se quisesse trabalhar, tinha que aceitar os regulamentos impostos pelo patrão.
Pedro Ferreira, falava dos que eu chamo de títulos cometa, de cabeça pequena
e cauda enorme, estendendo aos seringalistas o poder de cobrar pela extração
de produtos e áreas que nunca lhes pertenceram.
Mas, quem ousava em contestar o Estado do Amazonas que expedia o título,
sempre para amigos de governadores? Ou a elite comprometida com os coronéis
de barranco e às vezes sustentada por eles ou sustentada pela pobreza do povo?
Nesses 23 anos de Incra participei de várias viagens e algumas aventuras.
Sofri com doenças regionais, principalmente por nove vezes a danada da malária
me pegou.
Rios, lagos, igarapés, estradas, vicinais foram testemunhas das aventuras
cercadas de esperanças de “gente” que regularizamos seus sonhos.
Beiradão – à beira de rio. Nota da revisora (NR).
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Nead Especial 2
Por quatro anos fui executor da Unidade Avançada de Humaitá-AM, divulguei
o trabalho social de nosso órgão, escrevendo para jornais, rádio e televisão e
acho que fiz um bom trabalho.
Nada disso me impressionou mais que o que aconteceu há pouco tempo.
Ao deixar a executória da Unidade, passei a trabalhar no setor de criação de
projetos, e foi aí que tudo aconteceu.
Criamos dois projetos de assentamento, o Botos (Humaitá) e Jenipapo
(Manicoré). Para os dois, fui sem diárias, devido às dificuldades das unidades,
porém valeu a pena, pois foi conhecendo as normas do extrativismo que minha
vida mudou. Comecei a ver as coisas com outros olhos e valorizar ainda mais o
homem do interior, com suas peculiaridades, amor pelas coisas que Deus criou
especialmente para eles, para que pudessem nos ensinar.
Conheci várias pessoas, inúmeras histórias e grandes heróis, que por mais
que eu tente entender, jamais saberei a dimensão que eles representam para a
história de um povo gênese da enganação desde o eldorado prometido e não
cumprido pelo próprio regime humano.
Onde moravam, onde viviam esses heróis? Moravam, viviam, entre rios, lagos,
igarapés abandonados pelo sistema, que só incluía quem podia contribuir de
forma satisfatória.
Foi aí que o Incra chegou, constatou que a terra que eles habitavam era de
domínio da União. Então criamos o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE),
reconhecendo as famílias tradicionais, que ali vivem a centenas de anos a contar
pelos seus deuteroses. Ali eles viveram, criaram seus filhos, que criaram seus
netos e bisnetos, vivendo exclusivamente em parceria com a mãe natureza.
Eles deixaram de ter patrões que os exploraram durante dezenas de anos e
passaram a vida cuidando para os outros como me disse Júlio Costa, que vive
nos Botos há mais de 60 anos, sendo fiel ao patrão até na hora de vender seu
produto extrativista Se não o fizesse ele o mandava prender por roubo, mesmo
em área que nunca lhe pertenceu.
Deuterose – representação ou reprodução de uma coisa. Tradição, descendentes. (NR).
Memória Incra 35 anos
Aqueles heróis viveram a metade de suas vidas separados de suas famílias
pelas seringueiras e castanheiras da vida, que durante suas existências separam
em fábricos que eles dividem em seis meses.
No verão eles cortavam as estradas com dezenas de seringueiras próximas
às suas casas ou nos “centros” quando vinham de mês em mês para visitar sua
prole, sempre numerosa e saudosas heroínas que foram mães e pais por todo
o tempo ausente desses heróis.
No inverno, partiam para os “centros” com seus paneiros novos e enormes
para o “fábrico das castanhas”, onde viajam dias e dias para passarem seis meses
longe de suas residências, outra vez entregues às suas eternas companheiras
que durante sua vida conjugal só eram separados pela distância que se fazia
necessária. A lealdade sempre esteve presente naqueles casais que levaram muito
a sério “até que a morte os separe” e mesmo depois da morte, poucos foram os
que buscaram novas companhias.
Ao criamos o PAE, me vi diante daqueles homens e mulheres que na infância
eu sabia, mas não conhecia como eles viviam Passei a viver os problemas deles,
a lutar por eles, a defendê-los e admirá-los como meus heróis de carne e ossos,
às vezes mais ossos do que carne, que o próprio tempo se encarregou de eliminá-las, Deles sobraram a fé no seu padroeiro ou em Nossa Senhora, que não
fica sem fogos (foguetes) nas noites de quermesses.
Esse povo culturalmente rico preserva os costumes e obediências, e tem
dificuldades de se adaptar às evoluções do mundo, mas nos dão lições de dignidade a cada dia que com eles convivemos.
Passaram a vida toda extraindo da mãe natureza alimentos para viver, produto
para sobreviver e ornato para enfeitar suas vaidades, que digam as belas morenas
de pernas grossas que desfilam seus charmes, confundindo os adolescentes, que
no beiradão, são adultos antes do tempo.
Isso me impressionou tanto que passei a viver para eles (os extrativistas) e a
me sentir como um deles e por muitas vezes fui um também…
Nada me impressionou mais que no dia que foi pago o crédito-habitação,
no PAE Jenipapo. Toda minha história veio à tona, o governo Federal por meio
Fabrico, fábrico – de fabricar, fabricação. Na Amazônia, período seco durante o qual é cortada e
preparada a borracha.(NR).
Paneiro – cesto de vime; bancada à ré de pequenos barcos para passageiros (NR).
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Nead Especial 2
do Incra, estar construindo uma casa para quem sempre viveu morando mal,
além de caixa d’água, vaso sanitário, nossa! Isso é um sonho!
Nada foi mais forte que isso; pensei em minha família, voltei ao passado quando
nem sonhava em ser funcionário público, nem sabia o que era isso, morava no
interior em casas extremamente rústicas, cobertas de palha branca, cercadas e
assoalhadas de paxiúba e fomos para cidade para fugir do desconforto.
É senhores jurados! Meu coração disparou de alegria, só de imaginar, que se
em 1971, se já existisse o Incra em Humaitá criando os PAE’s hoje eu não estaria
escrevendo esse artigo referente aos 35 anos de memória e nem seria funcionário
público, pois meu saudoso pai jamais sairia do interior com as condições que
hoje o governo dispõe aos tradicionais moradores.
Ufa! Ainda bem que inventaram “esse negócio” (PAE) há pouco tempo,
ainda bem… Humaitá, 26 de Outubro de 2005.
Paxiúba – palmeira da Amazônia, também chamada de castiçal. (NR).
3
Histórias dos meus
33 anos de Incra
J o s é d e R i b ama r Ca r d o s o
A condução da política de reforma agrária no país vem se desenvolvendo
gradativamente após a década de 1950, com a fusão do Instituto Nacional de
Desenvolvimento Agrário (Inda) e do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
(Ibra). O marco foi a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) em 20 de julho de 1970, no comando do general Emílio Garrastazu Médici na presidência da República, que comandou o período de maior
repressão marcado por prisões, torturas, exílios, mortes e desaparecimentos de
centenas de pessoas.
Simultaneamente o governo cria a Rodovia Transamazônica cortando as
terras das imensas florestas da Amazônia, e naquele mesmo ano é implantado
na cidade de Marabá, o Incra com o Projeto Fundiário (PF) e o Projeto Integrado
de Colonização (PIC).
A prioridade foi dada ao Projeto de Colonização às margens da Transamazônica, com lotes demarcados a 100.000 hectares para cada colono, destinados
na época há mais de duas mil famílias, com casas construídas de madeira em
agrovilas e estradas vicinais ao longo da Transamazônica, partindo dos municípios
de Itupiranga, Ipixunas, Jacundá, Tucuruí e outros.
A expansão da colonização na época foi tão eficaz que o Incra se viu obrigado
a recrutar colonos de várias regiões do Brasil, dando-lhes transporte gratuito, feira
livre, assistência técnica e social e oito meses de salário mínimo.
Após presenciar todos esses acontecimentos, em 1971, tive a oportunidade
de contribuir com minha parcela para o desenvolvimento desses fatos.
Minha participação no Incra começou assim: O Incra criou uma frente de
trabalho com a construção da estrada vicinal OP-3, no entroncamento do po-
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Nead Especial 2
voado de Brejo Grande com a Transamazônica, quando houve a contratação de
pessoal para trabalho temporário.
Na época, “eu não era filósofo, charlatão ou educador.” Era um simples agricultor, morador daquela região, e estava em busca de melhores condições de
subsistência. Resolvi assim me fichar naquele trabalho, pois ali onde morava era
uma das entradas e saídas das regiões de conflitos dos terroristas do Araguaia.
(Homens procurados pelo regime militar, conhecidos por guerrilheiros ou terroristas). Assim, o local se tornou um dos pontos estratégicos para as tropas do
Exército montarem suas emboscadas aos guerrilheiros.
O local era considerado um barril de pólvora Havia noites em que ninguém
dormia por causa das imensas rajadas de metralhadoras, bastando o vento fazer
qualquer barulho na mata para que os tiroteios ficassem intensos. Lembro-me
de ocasião que pegava meu filho pequeno e deitava-me com ele no chão para
nos proteger dos tiroteios a menos de 50 metros de distância, e com isto, minha
mãe enlouqueceu ao presenciar tamanhas agressões.
Helicópteros voavam a todo instante transportando soldados para suas bases
de acampamentos no centro das matas. Avião monomotor, equipado com altofalante anunciando a rendição do chefe dos terroristas conhecido como Osvaldão,
dizendo que o mesmo estava cercado pelos batedores do Exército e não tinha
chance de escapar. Os relatos das prisões e execuções eram muitos violentos.
Após a minha contratação temporária, participei da equipe do agrimensor
Mário Vargas do Incra/Marabá. Começamos os serviços com a guarnição de duas
equipes de comando do Exército; uma acompanhava os trabalhos da linha de
frente da locação da estrada nos serviços de topografia e a outra ficava na retaguarda juntamente com o engenheiro, chefes de obra e seus maquinários.
Todas as noites nossas equipes se uniam num só acampamento, para ficarmos
amparados pelo plantão de vigilância do Exército. E mesmo assim, com toda
a segurança, o medo dos terroristas era tamanho, havendo até morte entre os
próprios soldados na hora da troca de turno. Assim seguimos por mais de 70
quilômetros mata adentro.
No percurso encontramos os primeiros vestígios dos terroristas, devido a
localização da estrada ser em cima da trilha que dava acesso aos seus esconderijos. Num determinado dia, deparamos com suas moradias e lá encontramos
pegadas através de ramos e corte de banana, ainda saindo água do cacho. Nesse
dia não deu mais para retomarmos ao acampamento principal, pois estava
Memória Incra 35 anos
anoitecendo e tivemos de pernoitar ali mesmo, sem mantimento algum. Foi
uma noite de tormento.
O medo de represália por parte dos terroristas era tão grande, que nem os
soldados que nos prestavam segurança não quiseram tirar plantão à noite. Fomos
convocados pelo chefe de equipe para substituir os soldados e fazer o plantão
da noite, prometendo-nos compensar com hora extra, e assim, passamos a
receber instruções de manuseio das armas e enfrentamos a vigilância daquela
noite, enquanto eu muito ansioso por substituir um dos soldados.
Ali mesmo ficamos posicionados, cada um em seu lugar. De repente surge
um grande temporal, com chuva, relâmpagos e trovões. Foi aí que pude entender,
que nem sempre armas de fogo nos dão proteção, pois com aqueles relâmpagos
e todo o seu clarão a denunciar nossa posição, ficávamos desprotegidos no
meio do tempo, e se os terroristas quisessem nos eliminar não haveria como
escaparmos por causa da claridade dos relâmpagos.
No dia seguinte, partimos com nossos trabalhos de topografia, e ao nos
deparar com duas estradas carroçáveis, seguimos o rumo errado, caminhando
por mais de 30 quilômetros até sair numa área de posse que diziam ser ocupada
pelos terroristas. Lá não encontramos ninguém, apenas uma casa abandonada.
Já estávamos há dois dias sem alimentação e pernoitamos ali mesmo. Todos
cansados, os soldados jogaram suas armas pelo chão, e t nós caímos no sono
até o dia seguinte, quando tivemos de retomar e pegar a estrada certa de são
Domingos do Araguaia, ponto final de nossos trabalhos, onde finalmente pudemos descansar um pouco para em seguida, retomamos a Marabá.
Em 10 de outubro de 1972, após a construção da estrada vicinal OP-3 fui
contratado pelo Projeto Integrado de Colonização Incra, que assinou minha
carteira de trabalho no 69266 série 330 DRT/PA, no cargo de Serviço braçal.
Continuei trabalhando com o mesmo agrimensor Mário Vargas, no serviço de
levantamento topográfico, num trecho de 100 quilômetros, com fechamento
de medição ida e volta na Transamazônica, partindo da divisa do município de
Jacundá ao Porto da Balsa do Rio Araguaia.
Depois do levantamento passei a trabalhar com o agrimensor Ciríaco, dando
continuidade aos mesmos serviços, no trecho de Marabá a São João do Araguaia.
Nesse serviço ficamos sabendo que o Incra, havia criado um curso em Marabá
para o cargo de Identificador, que iria se realizar em um prazo de 90 dias. Então
um colega da nossa equipe me convidou para que fizéssemos as inscrições; a
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Nead Especial 2
princípio relutei por não ter muito tempo para estudar, mesmo assim, passei
a encarar a realidade e percebi que com aquela atitude estava jogando fora a
maior oportunidade de minha vida, pois o meu sonho era ser um funcionário
público federal com estabilidade.
Tive a convicção que aquela era a única oportunidade que tinha, podendo
a sorte jamais bater à minha porta outra vez. Daquele dia em diante, passamos
a estudar juntos, todas as noites e feriados. Chegado o dia das provas, meu
amigo desistiu e eu fui. Lá, tive de imediato um calafrio ao me deparar com
todas aquelas pessoas inscritas para a disputa de apenas cinco vagas. Achei
impossível conseguir aprovação, mas ao abrir o caderno de provas, percebi que
tinha chances de ser aceito.
Após a prova tive duas semanas de licença, aproveitei então para voltar para
casa, que se localizava no entroncamento de Brejo Grande. Passada uma semana,
quando já estava bem despreocupado, um carro do Incra parou na minha porta;
fiquei um pouco assustado sem saber do que se tratava. Foi quando o motorista
me entregou um comunicado informando que eu havia sido aprovado no concurso do Incra de Marabá e que o mesmo havia vindo me buscar.
A partir de então passei a participar de treinamentos, realizando trabalhos por
vezes muito difíceis, como plotagem das áreas de terras vistoriadas com escala
adequada aos mapas das áreas de posses vistoriadas, preenchimento de laudos
de vistoria rural e ficha de cadastramentos e outros. Após o treinamento foi criado
um pequeno escritório em São Domingos da Lata, no município de São João
do Araguaia, para facilitar o desempenho de nossas atividades na regularização
das áreas de posses que eram requeridas ali mesmo.
Assim, conforme o total de processos a serem regularizados eram autorizados
nossos deslocamentos para as áreas de posse, sempre trabalhando em duplas.
Quando os serviços eram concluídos retornávamos então para realizar outra etapa.
Às vezes um grupo vistoriava os trabalhos do outro, elaborando um relatório que
era entregue ao chefe que ficava conhecendo o serviço de cada um.
O trabalho naquela região durou pouco, pois ali também era considerado um
estopim, devido ao fato de estarmos trabalhando na mesma região do Araguaia,
onde os terroristas viviam. Era sabido pela população que ali se encontrava esconderijo deles. Por esse motivo as estradas da região eram cercadas pelos postos
policiais, onde os terroristas sofriam constantes batidas do Exército. Freqüentemente se ouvia boatos de que nós estávamos jurados de morte, pois nossos
Memória Incra 35 anos
trabalhos de vistoria rural estavam avançando e invadindo seus territórios. Por
motivo de segurança fomos retirados imediatamente de lá. Mas, em 20 de junho
de 1973, após o trabalho de 60 dias de experiência, foi assinado meu contrato de
trabalho pelo Projeto Fundiário Marabá- Incra, no cargo de Identificador.
Logo após fui designado a efetuar vistoria na região de Palestina do Pará,
quando ao decorrer da viagem, às 7h da manhã me deparei com uma cena grotesca. Era o posto da polícia daquela região que estava em chamas. Os soldados
se encontravam trajando somente cuecas, pois os terroristas, além de atear fogo
no posto, roubaram suas fardas e armas.
Mesmo presenciando este fato segui em frente. Um mês depois, eu e outro
colega, Osmar Parusca, fomos designados para dar continuidade aos trabalhos
de vistoria daquela região de conflito do Araguaia. Com dois dias de serviços,
chegamos à tarde numa área de posse e não encontramos ninguém na casa.
Dentro de alguns minutos chegou um rapaz que disse ser empregado ali. Então o
mesmo saiu gritando pelo nome do posseiro e foi embora. E nós que já estávamos
desconfiados, pensamos que podia ser uma espécie de armadilha, pois já vivíamos
constantes ameaças de morte. Com a saída do rapaz adentramos o interior da
casa e vimos sobre a cama farda de soldado do Exército. Ficamos mais desconfiados e decidimos sair dali de imediato, pois temíamos algum tipo de represália.
Já era à tardinha quando saímos de lá correndo por mais de 15 quilômetros
até chegar a São Domingos da Lata. Lá nos hospedamos em uma pensão e no
dia seguinte surge de repente no povoado um grupo de pessoas civis todas
armadas, com rifles, espingardas e fuzis. Vestiam roupas esfarrapadas, fingindo
serem terroristas da região. Mas, tudo não passava de uma manobra do Exército,
para a comprovação dos fornecedores de manutenção dos mesmos, e assim,
efetuaram prisões de dezenas de pessoas envolvidas no fornecimento dos terroristas. No mesmo dia retomamos a Marabá e ficou estabelecido que sairíamos
daquela área de conflitos.
Com a saída do Araguaia passamos a trabalhar numa faixa de terras da jurisdição
do Projeto Fundiário Marabá, situada entre o Rio Tocantins, Rio Itacaiúnas, Igarapé
Café e Igarapé do Lago Vermelho, com a Transamazônica, ponto final da gleba.
Para os primeiros trabalhos dessa área de terras foram designados eu e Manoel
Marciano Barreto Filho. Viajamos de barco como passageiros pelo rio Itacaiúnas até
a foz do Igarapé Café, mais de 50 quilômetros distante de Marabá, ponto inicial de
nossos trabalhos. Lá nos deixaram largados como uns cães sem dono numa casa
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Nead Especial 2
de palha abandonada há muito tempo. Com a enchente do Igarapé, formou-se
ali uma pequena ilha. Já era noite e tivemos de pernoitar ali mesmo.
No dia seguinte meu colega estava com febre de malária. Saímos por um
único caminho que tínhamos encontrado. Caminhamos poucos metros dali,
até o caminho sumir dentro de um grande lago à nossa frente. Havia um coqueiral com bastantes talos secos. Então improvisei uma pequena balsa com
talos quebrados à mão amarrados com cipó, até a altura que suportasse os
pesos das nossas mochilas. Nesse sufoco, o colega disse que não sabia nadar.
Então, a única solução foi amarrar as mochilas na balsa e eu sair nadando na
frente puxando a balsa e ele se apoiando nela, até atravessar o lago. A nossa
sorte na travessia foi que o lago tinha se transformado por dentro da mata, e
de vez enquanto descansávamos segurando nas copas das árvores. Assim,
nadamos aproximadamente 100 metros, até chegarmos em terra firme, de
onde continuamos viajando até o final do caminho que terminou num ponto
de extração de castanha.
De lá voltamos até chegar à margem do mesmo igarapé. Já era noite quando
localizamos outra casa. Lá fomos informados que para sair dali precisávamos de
barco ou de uma canoa, pois a área era setor de exploração de castanha e com
o escoamento do produto feito pelo rio, não existia caminho terrestre. Nossa
sorte de continuarmos com os trabalhos foi termos encontrado alguns índios
pernoitando no local. Eles iam para suas aldeias e passavam pelo nosso roteiro de
trabalho. Nessas alturas, eu também já estava com febre de malária e o morador
nos deu remédio. Continuamos nossos trabalhos por mais de 15 dias.
A área era de difícil acesso, coberta por intensa floresta de castanheiras e
vegetação diversa, infestada de mosquitos da malária e outros perigos, como,
cobras, porco-do-mato e índios, pois a área situava-se nas terras indígenas, mais
de 50 quilômetros distante de Marabá. Passamos mais de 15 dias viajando e nos
alimentando de caças, peixes e comidas oferecidas pelos posseiros e capatazes
dos latifundiários que dominavam várias glebas de castanhais.
As terras eram empossadas com documentos de título de ocupação, expedido pelo Estado do Pará, o que fazia deles eram xerifes daquela região. Com os
documentos em mãos, de somente uma gleba, acabavam por dominar duas ou
mais glebas pela ganância da extração de castanha-do-pará. E com todas dificuldades encontradas, eu e mais três colegas do grupo de identificação, fizemos os
levantamentos de regularização fundiária daquela faixa de terras.
Memória Incra 35 anos
O inverno era intenso, os córregos e os igarapés estavam transbordando os
seus leitos. Nas travessias tínhamos que passar improvisando meios de transportar nossas mochilas. Feridas se formaram em minhas costas, de tanto andar
com mochila por todos aqueles lugares. Assim, continuei por muito tempo,
trabalhando e contraindo malária até o final da regularização fundiária daquela
faixa de terra.
Após o levantamento da área passamos para os trabalhos de regularização
de outras áreas, situadas nos municípios de Itupiranga, localizado entre o rio
Tocantins, Igarapé do Lago Vermelho, Rio Cajazeiras e seus afluentes, até a
Transamazônica, ponto final desse território. Para o início desse trabalho foi
contratado um barqueiro que nos conduzia. Foi também designado um grupo
com um técnico agrícola e cinco identificadores. Saímos de Marabá de barco
pelo rio Tocantins até a foz do rio Cajazeiras, onde começamos nossos trabalhos
pelo rio Cajazeiras e seus afluentes. Ao começarmos fomos logo encontrando
imprevistos, pois a região também era infestada de mosquitos da malária. Saímos
de lá infectados de malária; para cada uma viagem de trabalho naquela região
era um tipo diferente de malária.
Com a criação da Coordenadoria Especial do Araguaia e Tocantins (Ceat) foi
implantada a Unidade Fundiária de Vila Rondon do Pará, no município de São
Domingos do Capim, onde fui designado a participar, desde a construção do
prédio até os levantamentos das áreas de regularização fundiária das glebas
Rondon-A, Rondon-B, Rondon-C, Rondon-D, Água Azul, Garratão e outras que
ainda estavam no comando do Projeto Fundiário Marabá.
A região também era de intensos conflitos sociais. A maioria das terras era
ocupada pelos latifundiários, donos de milhares de hectares comprovados pelos
documentos de títulos definitivos voadores que depois de adquiridos procuravam localizar suas áreas de terras a qualquer preço, sem nenhuma fiscalização
topográfica dos órgãos competentes. Os proprietários mandavam elaborar uma
planta de medição de suas terras no escritório, através da carta geográfica do
Estado e com a planta da área e o título definitivo na mão, compravam uma área
de posse e faziam grandes aberturas através de grandes financiamentos.
Quando era para tirar os posseiros de dentro de seus domínios, apelavam
à justiça e ganhavam todas as questões, comprovando com seus documentos
junto à planta da área, proporcional ao tamanho de sua propriedade. Com isto
contratavam os serviços de topografia e fechavam os perímetros de suas áreas.
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Daí em diante, continuavam negociando com os posseiros, que ficavam circulados pela medição, sendo então indenizados, pelo proprietário.
Aqueles que não aceitavam, depois de algum tempo era eliminados de suas
posses. Com isto, surgiam vários boatos sobre sumiço de posseiros na região
que desapareciam misteriosamente, e amanheciam mortos há centenas de
quilômetros de suas áreas de posse, mortos por tiros, um deles encontrado na
BR-010 e outro com pescoço decepado por motosserra encontrado na margem
do rio Gurupi. Assim as famílias apavoradas desistiam de seus direitos e os vendiam a qualquer preço. Por causa de grandes conflitos sociais nas regiões do
Pará e Tocantins, houve a necessidade de se criar o Grupo Executivo das Terras
do Araguaia Tocantins (Getat).
A partir daí, foi extinto o Projeto Fundiário Açailândia, e foi criado em seu lugar
a Unidade Executiva Açailândia, passando para a administração do Getat, que
assumiria a Unidade Fundiária de Rondon do Pará. Foi organizada uma equipe
de aproximadamente 15 funcionários nesse órgão, composta por engenheiro
agrônomo, técnico agrícola, topógrafo, assistente administrativo, agente de
portaria e motorista. Achei por bem pedir que me colocassem na equipe. Fui
aceito e posto na função de um técnico agrícola.
Porém tudo isto não passara de um grande susto, pois o agrônomo José Luís
Vidal, que era o chefe da Unidade, passou a morar na casa no prédio própria
Unidade. Como não tínhamos vigia ele passou assumir a responsabilidade da
segurança da Unidade e também nos ajudava na parte da limpeza do prédio.
Mesmo com todo esse apreço, o mesmo não contou ponto no dia de nossas demissões, pois ele viajou com seu veículo para Açailândia, saindo às 4h da
manhã daquele dia. Não tendo com quem deixar as chaves do prédio levou-as,
pensando que chegaria na hora do expediente, mas acabou por se atrasar.
Nós, nós que chegamos na hora do expediente ficamos do lado de fora até
às 8h30. Daí, quando ficamos sabendo de sua viagem fomos embora. Logo após
termos saído ele chegou e fomos nos apresentar para o expediente da tarde, pois
se alguém chegasse, ele mesmo atenderia. Com essa decisão tomada por ele,
causara nossas demissões, pois nessa época éramos governados pela hierarquia
militar do comando da Administração do coronel Carneiro Leão, coordenador
do Getat de Marabá. Ele fora avisado que a Unidade estava fechada.
Duas horas depois que o chefe tinha chegado de viagem às 11h da manhã
daquele dia, o coronel Carneiro Leão chegou de helicóptero e foi à casa do chefe
Memória Incra 35 anos
pedir as chaves da Unidade, e foi logo dizendo que desocupassem a casa do prédio
imediatamente, pois todos os servidores que ali trabalhavam estavam demitidos.
Com isto, perdi 10 anos de serviço com carteira de trabalho assinada.
Fui demitido em 20 de janeiro de 1981 na administração do extinto Getat.
Logo após este acontecimento, fui à Coordenadoria de Marabá falar com o mesmo coronel sobre as possibilidades do meu retomo. Por sorte fui bem atendido
garantindo assim meu retomo. Pedindo meu nome e endereço na presença do
chefe da Unidade Fundiária São Pedro da Água Branca, Demerwal Machão dos
Santos e executor da Unidade de Açailândia, José Vivaldo, garantiu me chamar
para trabalhar com ele novamente, na frente do coronel, e com esta garantia,
me despreocupei.
O coronel foi embora da região e José Vivaldo também. Por sorte minha,
Demerwal Machão dos Santos assumiu a Executória e Açailândia e mandou
um documento oficializando meu retomo para aquela Unidade. Na época eu
já estava com 10 meses fora do Incra e estava estagiando na empresa Queiroz
Galvão, no cargo de Apontador de máquinas pesadas. Era verão e estava dentro
daquela nuvem de poeiras por todos os lados, quando de repente surge na
minha frente o meu cunhado com o comunicado na mão que anunciava o meu
retomo ao Incra. Naquele momento agradeci muito a Deus, indo então até ao
escritório da firma pedir meu afastamento. No dia seguinte me apresentei no
Setor Pessoal daquela Unidade.
Em 25 de novembro de 1981 fui readmitido pela Unidade Executiva de
Açailândia Incra, no cargo de Auxiliar técnico, onde continuei trabalhando nas
funções anteriores. Logo após a extinção do Getat houve corte de despesas,
onde ficamos sem zelador e vigia por quatro anos. Foi quando o executor me
chamou ao gabinete, e disse que daquele dia em diante eu não participaria mais
do serviço técnico e nem do escritório. Eu me achando praticamente demitido,
me sujeitei a assumir o cargo de vigia pelo durante quatro anos, trabalhando dia
e noite para segurar o emprego, até contratarem novas firmas de vigilância. Daí
fui trabalhar no Almoxarifado por sete anos, passando depois para a Cartografia
até a presente data.
Essa é minha história 33 anos de serviço no Incra, com carteira de trabalho
assinada desde 10/10/1972 pelo PIC-Marabá, na função de serviço braçal, de
onde sai por transferência em 29/05/1973 e fui admitido por meio de concurso
no PF Marabá. Dali saí por transferência para o PF Açailândia, 20/04/1977, sendo
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contratado para o cargo de Agente administrativo até 20/01/1981. Tempo em que
saí por demissão forçada pela hierarquia militar, em pleno comando do Getat.
Depois de 10 meses de minha demissão, foi oficializada minha recontratação
pela a Unidade de Açailândia, no cargo de Auxiliar técnico, em 29/11/1981 até a
presente data.
E esta é a minha história de participação da comemoração dos 35 anos de
criação do Incra, que conseguiu com grande êxito o assentamento de 115 mil
famílias previsto no II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que destinou
mais de 10 mil quilômetros, atendendo 316 mil famílias com serviço de assentamento técnico, social e ambiental. Realizando parcerias que levaram água, luz e
saneamento básico, além de avanços políticos de inclusão de gênero, e com isto
vem comprovando o acerto do governo Federal em priorizar a reforma agrária
com política pública desse vasto país. 4
Incra, 35 anos em vida
A n to n i o F e r n a n d o M at t z a
O começo (uma entrevista simples)
— Jacob, amigo velho, será que podemos conversar um pouco? Quero participar
do concurso Memória Incra 35 Anos, e você, com seu cabedal de conhecimento,
é a pessoa ideal.
— Pô, Almir, agora, no encerrar do expediente? Tu não tá vendo que hoje é
sexta feira e que depois das 18h já é sábado?
— Ah, eu sei, mas não posso abrir mão de contar com você, e depois o Incra é
a nossa vida, né? Estamos aqui há tanto tempo que somos uma família.
— Isso é verdade, Almir, uma família numerosa, orgulhosa, que abrange todo o
território nacional. Tenho muito orgulho de fazer parte da trajetória da reforma
agrária em nosso país, mesmo diante de tantos obstáculos. Pena que em breve
terei que me aposentar.
— Ora! Por quê?
— Tempo de casa, amigo, idade, essas coisas. Mas com um detalhe, vou sair pela
expulsória, tal como o Éden e o Manoel Henrique, e outros mais…
— Como assim?
— Ué. Vou fazer setentinha.
— Já?
— Sim!
— Então, vamos começar. Espere só um instante. Pronto! O gravador está ligado.
Serei rápido. Diga-me. Qual é o seu maior motivo de orgulho no Incra?
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Nead Especial 2
Dentre os motivos, o prédio da SR-07
— Tenho vários motivos de orgulho e algumas decepções, mas o Incra como
instituição altamente social, é de fato o meu maior orgulho, principalmente
porque, como servidor, faço parte de sua história. Porém, há um outro motivo
de orgulho, que é esse prédio maravilhoso que abriga a nossa SR-07.
— Realmente. Que coisa linda.
— Você conhece a história do prédio?
— Não? Qual é? Eu vim da Sunab para o Incra em 1997, quando a sede ainda
era no Largo de São Francisco, 34. Acho que foi em 1999 que nos mudamos
para cá, não foi?
— Sim, creio que sim! E cá estamos nós a falar do Incra dentro deste prédio de
três andares, cuja história, o Eduardo, da Divisão Técnica, conhece muito bem.
Ele me disse que este solar foi construído nos idos de 1870, e foi residência do
Barão do Rio Negro até 1900. Depois foi comprado dos herdeiros do Barão por um
empresário italiano de nome Paschoal Segreto, pela quantia, à época, fabulosa, de
100 contos de réis. O empresário, a princípio transformou o prédio num grande
teatro, tendo inclusive, na inauguração encenado a peça O Fausto, de Gounod.
Depois transformou o teatro em café-concerto e clube elegante.
— Tá! Mas o meu objetivo é a memória do Incra, e não do prédio.
— Aí você se engana, meu caro. Este prédio reflete a grandeza da SR-07, e merece ser situado na história do Incra como memória concreta, pois foi nele que
efetivamente se alicerçou a idéia da reforma agrária.
— Como assim?
— Bem! O imóvel era freqüentado pela nata da época. Ou seja, grandes latifundiários, belicosos coronéis, políticos influentes, barões do café, senhores de
engenho, artistas, intelectuais, etc. Portanto, era muito comum o assunto agrário
permear as festas, as conversas e os negócios levados a efeito naquele ambiente
altamente social, onde os salões eram luxuosos e os seus jardins e recantos eram
deliciosos refúgios para conversas mais íntimas. Ainda, segundo o Eduardo, o
empresário gostava de mudar suas atividades constantemente, mas, ao que
parece, foi em 1908 que ele teve a idéia de promover um baile de carnaval. A
partir daí, graças ao sucesso retumbante do empreendimento carnavalesco do
criativo empresário, o prédio foi batizado com o nome de High Life, e se tornou
o mais famoso, freqüentado e tradicional clube carnavalesco do Rio de Janeiro,
Memória Incra 35 anos
cujo brilho durou intensamente até os anos 40, sendo que no meio dos anos 50, a
decadência natural do clube começou a acontecer e, em 1957, com o empresário
já falido, o prédio foi alugado ao Serviço Social Rural (SSR).
— Continue, por favor.
— Em 1962, a Superintendência da Reforma Agrária (Supra), passou a ser o
novo órgão, o qual, em 1964 foi dividido em dois, a saber: Instituto Nacional de
Desenvolvimento Agrário (Inda), e Instituto Brasileiro da Reforma Agrária (Ibra),
hoje Incra, que acabou comprando o casarão.
— Já estou começando a gostar da história do prédio. Que mais?
— Saiba que este imóvel, durante longos anos, foi sede do Incra nacional.
— Quê!
— É isso que você ouviu. Quer saber qual foi a grandeza do Incra nacional?
— Sim, quero.
— Vamos por etapa. Em fevereiro de 1985, em função de abalos em sua estrutura,
o imóvel foi desativado, e o Incra, por absoluta necessidade, mudou-se para
um conjunto de dez andares no Largo de São Francisco, 34, bem no centro do
Rio de Janeiro. Em 1987, a despeito de muitos desejarem sua demolição, algum
dirigente afoito solicitou a Prefeitura Municipal do Estado do Rio de Janeiro
(era assim que se chamava à época) o tombamento do imóvel, com ênfase na
preservação das formas arquitetônicas externas do prédio, e encontrou apoio na
ideologia de alguns servidores do Incra que, associados ao interesse de algumas
instituições, tais como o Clube de Engenharia, o Instituto de Arquitetos do Brasil,
e a Associação dos Moradores e Amigos da Glória, lutaram o bom combate em
relação à proteção artística e cultural da arquitetura denominada Bélle Époque. Em
conseqüência, ainda em 1987, o imóvel foi tombado como Patrimônio Cultural
da Cidade do Rio de Janeiro.
— Você tem razão, Jacob. A memória concreta da SR-07 se reflete claramente
neste imóvel.
— Tem mais, Almir. A proposta de restauração do imóvel foi uma longa gestação, que, se não me engano e se a memória não me falha, começou em 5 de
agosto de 1986, com Agostinho Guerreiro, à época, superintendente regional
do Leste Meridional (SR-07), reportando-se ao então presidente do Incra, Ruben
Ilgenfritz, e propondo, graças a sua visão altamente preservativa, a restauração
tão idealizada, que mais tarde viria a se concretizar, nos permitindo, desde 1999,
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Nead Especial 2
a usufruir desse patrimônio histórico cultural que encanta a todos, servidores,
visitantes e a clientela da reforma agrária no Rio de Janeiro.
— Poxa! Tô de fato, encantado.
— Bem, creio que já podemos mudar de assunto. Vá em frente.
Dramas
— Tá! E qual é sua maior decepção como servidor do Incra?
— Eu tive duas grandes decepções. A primeira veio em outubro de 1987, quando
o governo Sarney, através do Decreto no 2.363, extinguiu o Incra, passando suas
atribuições para o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário–Mirad.
Mas esta não foi exatamente a pior decepção porque depois, graças a Medida
Provisória no 02, de 29 de março de 1989, os termos do malfadado Decreto seriam
rejeitados e o Incra seria restabelecido. A Segunda realmente foi bem pior, e se
não fosse o apego que eu tenho a ideologia da reforma agrária talvez tivesse
saído do serviço público em 1990, quando o Decreto no 99.334 alcançou vários
servidores federais, alguns competentes e trabalhadores, colocando–os em
disponibilidade remunerada. Tal medida causou impacto profundo em vários
colegas, pois a disponibilidade não tinha uma explicação lógica, e, além disso,
era uma ameaça de demissão sem justa causa e sem critérios.
— A disponibilidade o atingiu?
— Claro! Eu fui um dos 2.605 servidores do quadro de pessoal do Incra. Fui
atingido pelo desespero e pela revolta. As repercussões negativas da disponibilidade remunerada só teriam um fim em 1992, quando o Decreto no 427/92
possibilitou o retorno às atividades, mas a ferida da disponibilidade, passados
tantos anos, ainda sangra.
— Como assim?
— Porque é uma ferida aberta, pela qual ninguém pediu desculpas.
— Entendo. Além de você, quem mais foi atingido pela disponibilidade?
— Ah, muitos. Que eu me lembre agora, entre os servidores remanescentes
daquela violência arbitrária, Marinho, Guilherme, Russo, Darcy, Petrúcio, Horácio,
Asterhugo, Serpa, Zé Fernandes, Orlando, Aurinha, etc. Todos ainda na atividade.
E entre os aposentados, Manoel Henrique, Paulão, Ubajara…E outros mais.
— E sobre demissões voluntárias e aposentadorias precoces?
Memória Incra 35 anos
— Os servidores do Incra não foram poupados da política perversa do Ministério
de Administração e Reforma do Estado (Maré), em sua ânsia de enxugar a máquina pública, e muitos, por medo ou ignorância, ou aderiram à aposentadoria
precoce ou aceitaram a demissão voluntária.
Alegrias
— Mudando um pouco o foco, qual foi o melhor momento dos servidores do
Incra?
— Ora! Acho que o melhor momento para os servidores federais, e do Incra em
particular, aconteceu em 1990, um ano atípico e paradoxal, cheio de entraves
para os servidores e para o Incra, a saber: a) Lei no 8.022, de 12 de abril de 1990,
que transferiu para a Secretaria da Receita Federal a competência referente à
administração das receitas arrecadas; b) Decreto no 99.334, de 20 de junho de
1990, que trata da disponibilidade remunerada dos servidores do Incra já comentada; c) Portaria / MAARA/no 227/90, que dispensou 550 servidores considerados
prescindíveis ao serviço público, e d) a Lei 8.112, de 21 de dezembro de 1990, que
trata do Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais da União, este
sim, o melhor momento para os servidores do Incra, até a presente data.
— E sua maior alegria como servidor do Incra?
— Tenho lembranças de muitos bons momentos e, sobretudo, muitas pequenas
e perenes alegrias profissionais que são, de fato, um rosário para a alegria maior
que é ser servidor deste órgão no transcurso de sua trajetória de 35 anos.
Os antecedentes e os antepassados do Incra
— Como surgiu o Incra?
— O Incra surgiu de uma fusão entre o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
(Ibra), e o Instituto Nacional do Desenvolvimento Agrário (Inda). Entretanto,
acredito que os primeiros passos institucionais para a reforma agrária no país
foram dados nos anos 1950. Quer um exemplo?
— Sim! Claro?
— Em 5 de janeiro de 1954, a Lei no 2.613/54 criou o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic), cuja atribuição era assistir e encaminhar trabalhadores
rurais, migrantes e imigrantes, dentro de um programa nacional de colonização
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Nead Especial 2
que orientasse para os trabalhos agrícolas. O Inic absorveu várias repartições,
na época, dentre elas o Conselho de Imigração e Colonização, o Departamento
Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e a Divisão
de Terras e Colonização do Ministério da Agricultura.
— Poxa Jacob! Você é um verdadeiro sabe-tudo. Que mais?
— Ora. Eu gosto dessa trajetória que fez surgir o Incra. Mas, continuando. Depois veio a Lei no 2.613, de 23 de setembro de 1960, que criou o Serviço Social
Rural (SSR), autarquia vinculada ao Ministério da Agricultura, com atribuições
que visavam exclusivamente o social no meio rural, e com a intenção de fixar
o homem à terra e assim evitar o êxodo rural, incrementando a produção agrícola e promovendo atividades sociais com o fito de administrar a produção
e a economia das pequenas propriedades. Em seguida, em 11 de outubro de
1962, surgiu a Superintendência de Política Agrária (Supra) (1962-1964), a qual
absorveu o SSR, e o Inic. As atribuições da Supra, eram as seguintes: a) colaborar
na formulação da política do país; b) planejar, promover e executar a reforma
agrária e, em caráter supletivo, a medida complementar de assistência técnica,
financeira, educacional e sanitária, entendeu?
— Sim! Tudo bem. Mas, e o Incra, como surgiu?
— Como já disse de uma fusão entre o Ibra, e o Inda.
— Fale mais a respeito, pois quero me integrar totalmente às raízes do Incra.
— Muito bem. O Ibra era uma autarquia vinculada à Presidência da República e
surgiu com advento da Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, e suas atribuições
eram as seguintes: zoneamento, cadastro e tributação rural; distribuição de terras
em áreas consideradas prioritárias, promoção agrária e assistência financeira. A
mesma Lei criou também o Inda, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura
e com atribuições voltadas para o desenvolvimento rural através das atividades
de colonização, extensão rural e cooperativismo.
— Você citou a Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964. Não é a mesma lei que
criou o Estatuto da Terra?
— Sim. O Estatuto da Terra, eu diria, era a alma do Ibra e do Inda.
— Qual era a exata dimensão do Estatuto da Terra?
— Para mim, a dimensão do Estatuto da Terra se resume no artigo 16, caput, da
Lei no 4.504, que diz o seguinte: estabelecer um sistema de relações entre o homem,
a propriedade e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o
Memória Incra 35 anos
bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a
gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.
— Entendo. Por favor, continue.
— Em 9 de julho de 1970, o Decreto da Lei no 1.110, absorvendo o Ibra, e o Inda,
criou o Incra, com a finalidade de estruturar a reforma agrária no país, promovendo tanto o desenvolvimento rural quanto coordenando e executando a
colonização.
— Então, Jacob, para você o Incra teve em sua trajetória a inserção de várias
instituições que o precederam?
— Sim, evidente. Ou você pensa que a reforma agrária nasceu com o surgimento do Incra?
— Não. Mas como te disse antes, vim da Sunab. Sou um sunabiano, e quero
conhecer o Incra mais a fundo porque já visto sua camisa há muito tempo.
— Gostei dessa definição. Então você é um sunabiano, eu sou um ibraiano,
alguns colegas, como o Cortines, da Operacional, por exemplo, é um indaiano,
e no final somos todos incraianos. É ou não é assim? (risos).
— É (risos).
— Mas, continuando. Em 16 de agosto de 1982, o Decreto no 87.457, que trata
da instituição do Programa Nacional de Política Fundiária, criou o Ministério
Extraordinário para Assuntos Fundiários, com o qual o Incra se vinculou. Quase
dois anos depois, a Lei no 7.231, de 23 de outubro de 1984, transferiu competências do Incra para o Ministério da Agricultura, visando principalmente à área do
desenvolvimento rural. A partir daí e com o advento do Decreto no 91.214, de 30
de abril de 1985, que criou o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
(Mirad), o Incra passou por vários decretos, dentre eles o de no 912.766, de 10 de
outubro de 1985, que aprovava o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), cuja
meta fundamental era o assentamento de um milhão e quatrocentas mil famílias.
Depois veio o Decreto no 94.234, de 15 de abril de 1987, que autorizava o Incra a
contratar até 1.250 profissionais. Enquanto isso, o Decreto-Lei de no 2.328, de 5 de
maio de 1987, promovia alterações na estrutura organizacional do Incra. Assim,
através de vários decretos, a aventura da reforma agrária no país continuava a
alimentar ideais e estes não sucumbiam diante das dificuldades institucionais.
— Caramba! Dá a impressão que o Incra não é linear.
— E não é. Pelo contrário, o Incra sempre foi contraditório, talvez devido a
contrapontos de gestões entre as esferas federal, estadual e municipal, ou talvez
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Nead Especial 2
devido às oposições do patronato rural e da bancada ruralista que se articulam
politicamente para se manterem em evidência, e dessa forma se oporem sistematicamente à reforma agrária verdadeira justa.
— Ou seja, a reforma agrária precisa de um único tutor, o governo federal?
— A meu ver, sim.
Os ideais da reforma agrária
— O que, para você Jacob, representa os ideais da reforma agrária?
— O êxodo rural inchou as grandes cidades e daí resultou no que podemos
chamar de defasagem no campo. Ou seja, a meu ver, é necessário que o homem
do campo volte a ocupar aquelas áreas vazias através de uma verdadeira e eficaz
reforma agrária. Também é extremamente necessário que o governo federal,
com o aval da sociedade e de novas leis criadas exclusivamente para programas
de distribuição de terras, volte-se definitivamente contra aqueles que fazem da
terra um meio de negociatas.
— Mas, o que é exatamente defasagem no campo?
— Defasagem oriunda da falta de verdadeiros trabalhadores rurais. Hoje, o que
se vê nos assentamentos e acampamentos, é uma gama de homens e mulheres
que estão apenas em busca de um espaço para ocuparem. São, em sua maioria,
desempregados urbanos.
— Sim. É verdade. Mas não é uma luta legítima?
— É uma luta legítima na medida em que os grandes latifundiários pensam e
agem em causa própria. O Incra é um órgão social, e o governo Federal precisa
despontar suas ações em cima da justiça social. O Incra é a resposta para a enorme
dívida social do país para com a população rural. Afinal, meu caro, o governo
federal não pode esquecer que o trabalhador rural é o verdadeiro protagonista
da reforma agrária.
— O que mais?
— O incentivo a exploração racional da terra teve um arremedo de ação na
Constituição Federal de 1946, cuja redação original em seu artigo 147, sofreria,
em 9 de novembro de 1964, algumas modificações importantes, dando a União
instrumentos mais avançados para a efetivação de uma justa distribuição de
terras. Em 1962, o Brasil subscreveu a Carta de Punta Del Este reconhecendo
enfaticamente ser necessário implementar em seu território a reforma agrária.
Memória Incra 35 anos
Quer dizer, os assuntos agrários, em sua maioria, eram tratados no Rio de Janeiro,
e particularmente, em várias ocasiões nos salões deste casarão, desde aquelas
épocas românticas do início do século XX, onde vínculos com os sistemas arcaicos
dos séculos XVIII e XIX eram na verdade grandes ranços no sistema de controle
de terras e dos conflitos que envolviam trabalhadores rurais.
— De novo, o prédio?
— Sim. Voltei à história do prédio apenas para enfatizar que dentre os imóveis
que servem de sede as Regionais do Incra nos Estados, este é o que mais concentra a história da reforma agrária.
Os movimentos sociais
— Jacob, fale um pouco dos movimentos sociais.
— Quem mais entende de movimentos sociais são o Fernando Cabeção, da
Operacional, o PC, o Borges, o Teixerinha, o Mineiro e o Selvo, da Técnica, o
Almeida e o Guaraci, do programa Fome Zero, e principalmente o Alexandre
Sapatinho, da Divisão de Suporte Administrativo.
— Ôpa! Essa me espanta. O Sapatinho?
— Sim. Ele estudou a respeito. Ele me disse que a base dos movimentos sociais
remonta ao século XVII, quando a estrutura fundiária, caracterizada por extrema
desigualdade social beneficiava apenas aos mais fortes. Ressalte-se que a organização fundiária surgiu, de fato, em 1822, quando a grilagem de terras substituiu a
ferro e a fogo o regime das sesmarias criado em 1530 pela Coroa Portuguesa que,
por sua vez, dividiu sua colônia a leste da linha do Tratado de Tordesilhas em 12
capitanias hereditárias e fez nascer o latifúndio que explorava o trabalho escravo,
daí provocando revoltas e os primeiros passos de pressão social pela terra.
— Mas, para você, qual é sua visão dos movimentos sociais?
— O Incra depende de uma política governamental consistente contra o
latifúndio, e os Movimentos Sociais pela Terra dependem do aval da sociedade
para avançar em sua estratégia de luta. Entretanto, ambas as bandeiras tremulam
contra as desigualdades sociais, e ambas incomodam aqueles que se locupletam
e se ufanam em privilégios feudais. O Incra e os Movimentos Sociais pela Terra,
a meu ver, são as sementes que hão de frutificar vigorosamente se a política da
reforma agrária se fizer verdadeiramente eficaz, e se, principalmente, a dinâmica
institucional do Incra prevalecer contra a violência no campo.
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— Em nível de memória, os Movimentos Sociais pela Terra, têm algo a ver com
o Incra?
— Claro Almir. Os trabalhadores rurais são a clientela do Incra e, quando prejudicados em suas expectativas, se unem para reivindicar seus direitos pela terra, inclusive
ultrapassando as fronteiras do gabinete da república, e exercendo a filosofia da
pressão em ocupações de prédios públicos para chamar a atenção da sociedade.
— Isso adianta?
— Sim, porque a sociedade, de maneira geral é letárgica, ignora o que se passa
no campo, e prefere passar ao largo da luta ideológica pelo bem comum. Ou seja,
a sociedade se acha incólume às influências dos conflitos agrários, mas sob suas
portas e janelas, o desvalido – vítima do êxodo rural – pede-lhe esmola.
— Jacob, os Movimentos Sociais pela Terra se modernizaram e hoje estão aparelhados com equipamentos de informática e utilizam a mídia para se expressarem.
Qual é, realmente, a origem dos Movimentos Sociais pela Terra?
— Bem! Os trabalhadores rurais sempre encararam a repressão, mas no período de
1964 a 1970, os Movimentos Sociais pela Terra, à época, chamados de Forças Sociais,
apesar do pouco fôlego, resistiram bravamente à ditadura militar e conseguiram
se organizar pelos ideais da reforma agrária. Conseqüentemente se modernizaram,
mas acho que sua origem está colada nas antigas Ligas Camponesas.
Sangue no campo
— E a violência no campo?
— Quem estudou a respeito desse assunto foram os sunabianos Amarilio, da
Divisão de Suporte Administrativo, o Adauto, da Procuradoria e a Mariula, do
Gabinete.
— Fico feliz em saber que os servidores da SR-07 são interessados o suficiente
para acompanhar a história da reforma agrária em toda sua extensão.
— Sim. É verdade. Eles se interessaram porque os conflitos de terra afligem o
homem do campo e enriquecem negativamente a estatística cruel de mortes
perpetradas por pistoleiros e jagunços contratados por maus fazendeiros.
— O que você sugere para se acabar de vez com os conflitos de terra?
— Eu tenho uma sugestão utópica, mas vamos a ela. Se eu fosse governante do
Brasil, a minha primeira providência para robustecer os mecanismos da reforma
agrária seria criar a Polícia Federal Agrária, que, com poderes específicos para acom-
Memória Incra 35 anos
panhar os servidores do Incra em missões oficiais, teriam uma delegacia em cada
Regional, como ocorre com o MDA em relação a sua Ouvidoria Agrária, por exemplo.
— A idéia é boa, mas, será viável?
— Viável é. Os conflitos de terra se agravam progressivamente e assinalam uma
curva ascendente de registros de mortes impunes que uma Polícia Federal Agrária
poderia checar e chegar aos criminosos. É preciso ressaltar que os conflitos agrários
também ocorrem entre os trabalhadores rurais, mas estes, em suas querelas, não
usam pistolas sofisticadas ou revólveres modernos. Em outras palavras, armas
potentes comumentes usadas por jagunços e pistoleiros em suas emboscadas
e armadilhas poderiam ser apreendidas.
— E as armas dos trabalhadores rurais?
— As armas dos trabalhadores rurais são apenas ferramentas agrícolas, e estas
raramente são usadas em seus entreveros pessoais.
— Que outras coisas a sua utópica polícia poderia fazer?
— Promover o desarmamento no campo e combater o crime no meio rural,
além de caçar as milícias privadas e os esquadrões de extermínio que defendem
os interesses de grandes grupos econômicos que privatizam a terra.
— O Incra, hoje, pode fazer algo para impedir a violência no campo?
— Nós, servidores, sabemos que os excluídos são capazes de cobrar com seu
sangue o seu direito a terra. Mas, apesar de estarmos também expostos a perigos constantes, não abrimos mão de trabalhar de acordo com a lei, que é uma
maneira de combater a violência no campo.
— E os latifundiários?
— Estão cada vez mais poderosos e são adeptos de uma oligarquia rural reacionária e violenta, que não lavra a terra e não permitem que a lavrem. Para eles repito
um pensamento do Antônio Feo, servidor da Divisão de Suporte Administrativo
da SR-07: os que se supõem donos de vastas áreas de terra esquecem que bastam
apenas uma cova de sete palmos para cobrir-lhes o corpo após a morte.
Servidores
— Jacob, o que você acha dos seus colegas servidores da SR-07?
— Acho que são heróis, particularmente, os da Divisão de Suporte Administrativo,
com os quais convivo.
— Por que heróis?
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— Primeiro pelo dia-a-dia sempre intenso. Depois pela mão-de-obra escassa,
e em seguida pelo excesso de trabalho. Para você ter uma pálida idéia, no Setor
de RH, trabalham Liana, Cássia, Meire, Mayra, Claudia, Maria do Carmo, Ideal e
você. É um setor pesado para os poucos servidores que ali trabalham tendo em
vista o fato do Rio de Janeiro já ter sediado o Incra central.
— E os demais setores?
— Pela pouca mão-de-obra, são todos complicados.
— Fale um pouco desses setores.
— Na Contabilidade e Finanças, eu, Elza, Celso e Paulinho, fazemos das tripas
coração. No Almoxarifado, o Alexandre Sapatinho, que também cuida do Patrimônio, é um estressado faz-tudo. No Protocolo e Arquivo trabalham o Rudney e
Aurinha; no Transporte, o Horácio, o Serpa e o Asterhugo; na Licitação, o Baiano
e o Luiz Carlos; no SICAF, o Luiz Henrique, e no apoio geral, o Amarilio.
— De fato, é um quadro reduzido.
— Somos um quadro reduzido, mas somos guerreiros. Mostramos o profissionalismo extraordinário que sempre pautou nossos rumos, porque sabemos que a
Divisão de Suporte Administrativo é o coração do Incra em qualquer Regional.
— A memória Incra 35 anos
— Qual é a filosofia dos servidores da SR-07?
— É: “Terra para produzir. Produção para repartir”.
— E para encerrarmos, já lhe agradecendo a paciência e o desfile do seu conhecimento, gostaria que você expusesse suas considerações finais.
— Pois não! Até que enfim você quer encerrar o nosso papo, né? Mas saiba que o
Incra precisa proporcionar aos seus servidores a possibilidade de resgatar valores
esquecidos nos arquivos e nas gavetas, e o concurso vai ao seu final, quando
forem examinados os textos dos participantes, surpreender muita gente.
— Por que você acha isso?
— Simples. Pelo fator memória pessoal, pois é o servidor, através das ações implementadas pelo Incra que leva a esperança aos assentados e aos acampados;
é o servidor que representa o planejamento social do Incra em suas missões no
campo; é o servidor que mostra a sua cara e que representa acima de tudo o
respeito às metas da reforma agrária, seja em suas atividades externas ou internas.
O Incra, meu caro Almir, através dos seus servidores, é o instrumento institucional
que afirma a função social da terra como luz para um Brasil melhor e mais justo.
Memória Incra 35 anos
— Pô, Jacob! Você é uma pessoa inspirada. Mas acho melhor você tecer logo suas
considerações finais porque a fita que está no gravador é de apenas meia hora.
— Tá! Tá! Tá! Encerro dizendo que a razão da reforma agrária justa e verdadeira
é a razão dos servidores do Incra, e que gente e terra sempre foram a argamassa
social que sustenta até os dias de hoje a estrutura firme e forte da nossa instituição em sua trajetória de 35 anos, pois nessas três décadas e meia de atividades,
fomos realmente capazes de percorrer a estrada dos anos lutando pelo ideal
democrático da reforma agrária. E agora, parabenizando o Incra sob o teto deste
solar, nós, servidores da grande família Incra, pelo nosso suor e espírito de luta,
também estamos de parabéns. Gostou?
— Pô! Se gostei? Obrigado Jacob, voc… Plec! 61
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Lembrando casos do Incra
J ú l i o L i z a r r a g a Ram i r e z
Durante minha passagem pela instituição como servidor do quadro, destaco
três casos, entre muitos que vivenciei no período entre 1967, ano em que ingressei ainda no Ibra, e 1996, ano em que me aposentei, nos três casos fui “ator
principal.” Estive afastado da instituição por “motivos políticos” de 1974 até 1985,
neste último período fui aplicar o que aprendi no Incra, nas bandas da África
e América Central.
O primeiro caso é um relato que vivenciei a partir do segundo ano do meu
ingresso na instituição, no segundo faço registro de um período “especial” que
participei dentro do órgão, assim que voltei com a anistia e o terceiro é um depoimento, também, vivido por mim, dois anos antes da minha aposentadoria.
Esses episódios, foram importantes porque contribuíram para dar uma guinada
nas formas de proceder, agir e operar as ações principais do Incra, relacionados
com os programas de assentamentos de trabalhadores rurais e a obtenção de
recursos fundiários.
Relato da implantação de um projeto de assentamento
A área inicialmente de 42 mil hectares localizada no município de Iguatemi,do
então Estado de Mato Grosso, posteriormente o projeto deu origem aos municípios de Mundo Novo, Japorã e Sete Quedas no atual Mato Grosso do Sul, a
área de formato retangular limitava por um lado com o Paraguai; outro com
rio Paraná, divisa com o Estado do Paraná; o outro lado com o rio Iguatemi e o
último com propriedades particulares e terras devolutas ao longo da fronteira
com o Paraguai,
Memória Incra 35 anos
Posteriormente estas áreas foram incorporadas ao projeto com mais 31 mil
hectares, na segunda etapa e depois mais 90 mil hectares. Na chamada terceira
etapa, perfazendo um total de 162 mil hectares. A área era muito grande e no
meu relato farei referência apenas à primeira etapa.
As terras eram devolutas em parte, com ocupações irregulares e outras
pertenciam a particulares com documentos regulares que permitiam a ocupação. De alta fertilidade chamada de “terra roxa’’, na época costumávamos dizer
que “onde cuspíamos nascia um pé de feijão.” Coberta por florestas virgens,
com muita madeira de lei e palmito, bem abastecida de água, tanto nas divisas
como dentro da área, com muito peixe de qualidade; clima intermediário entre
o tropical e o temperado, nos meses de maio a julho fazia frio a zero grau, as
chuvas abundantes e bem distribuídas e topografia plana a suavemente ondulada. Essas características conformavam um cenário natural excelente para o
desenvolvimento de atividades agrícolas em regime de exploração familiar, a
respeito, comentávamos que “Pero Vaz de Caminha escreveu a famosa carta ao
rei de Portugal, de Iguatemi, porque lá em se plantando tudo dava.” O arranjo
fundiário ou estrutura fundiária, ou ainda a ocupação territorial da área é que
apresentava um quadro completamente desordenado, bagunçado e injusto, por
esta razão chamávamos de “Zorra Fundiária”. Veja os gráficos:
Área dos imóveis
6%
Número de imóveis
1%
1%
32%
32%
61%
55%
12%
Latifundiários
Minif.
Empresários rurais
Ausentes
63
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Nead Especial 2
O pior que este cenário tinha implicações de caráter internacional sérios, de
tamanho de um bonde, os mineiros diriam, “ô trem complicado sô!”
Além da ocupação na área rural existiam dois núcleos de concentração
urbana, ocupando uma área total de 154 hectares. Com um total de 176 famílias
residentes, também sem a preocupação de ordenamento territorial ou um
mínimo de planejamento urbano.
A “zorra fundiária” era simplesmente um cartão de visitas negativo para o Brasil,
pois, na inserção das fronteiras do Brasil e o Paraguai se localizavam as famosas
“cataratas de Sete Quedas” que, aliás, infelizmente não existem mais, por terem
sido cobertas pela represa de Itaipu
Este local era visitado por turistas de várias partes do Brasil e do mundo, além
do mais, uma faixa de terra da área do projeto era motivo de disputa entre os
dois países desde 1750 (Tratado de Tordesilhas). Segundo esse tratado a fronteira entre os dois países era a Serra do Maracajá,-confesso que eu não vi serra
nenhuma- em todo o caso o Brasil dizia que a serra estava dentro do território
paraguaio e o Paraguai dizia que a serra estava em território brasileiro.
Até que era divertido, porque os marcos que fixavam a fronteira entre o Brasil
e o Paraguai, em número mais ou menos de 15, eram fixados todos os dias pelas
manhãs pelo Exército brasileiro e às tardes o Exército paraguaio os retirava. Isso
durou muitos anos, até que graças à ocupação ordenada que o Incra promoveu
os marcos nunca mais foram mexidos.
Além da desordem fundiária, ocorriam outros problemas com o contrabando
de produtos entre os dois países, a extração de madeira ilegal, exploração de
palmito e otras cositas más, praticadas por brasileiros e paraguaitos, parecia território sem dono e sem lei. Tal situação motivou para que a Comissão Nacional
de Faixa de Fronteiras, subordinada à Presidência da República e o Ibra, na época
comandada por generais do Exército, assinassem um convênio para reordenar o
território e implantar um projeto de assentamento humano com fins de desenvolver atividades agrícolas em regime de agricultura familiar e acabar de forma
definitiva com a bagunça generalizada presente na área.
O procedimento metódico para a implantação de projetos de assentamento,
foi concebido sob a coordenação e liderança do engenheiro agrônomo Dryden
Castro de Arezzo e participação ativa de outros técnicos, como, arquiteto Bención
Tiomny, geógrafa Ângela Moraes Neves, professor Osmar Fávero, técnico em
educação, Bernardes Martins Lindoso, procurador Mauro Fonseca, pedagoga
Memória Incra 35 anos
Maria Pelegrini, arquiteto Cleso Gomes de Oliveira, cartógrafo Hugo Carboggini
e eu. Agrônomo,“equipe multidisciplinar mesmo.”
Essa metodologia ainda em formato preliminar, seria testada justamente
no Projeto de Assentamento de Iguatemi e para o teste em campo é que fui
convidado em companhia de Bernardes Martins Lindoso. Nossa missão seria
testar, adequar, corrigir, complementar e propor a estrutura metodológica em
formato final ou definitivo a partir da prática de concepção, implementação e
consolidação do assentamento.
Essa metodologia recomenda, que nos assentamentos devem ser desenvolvidos 12 atividades bem definidas, que possuem características típicas bem
delimitadas ao mesmo tempo se complementam entre si. Existe dependência
e precedência entre elas, ou seja, existem atividades que têm de ser executadas
para outras serem implementadas. Aconclusão de cada atividade permite sua
consolidação, sendo que ao término da implantação de todas as atividades pode
o projeto ser declarado consolidado e providenciada sua emancipação.
Para cada uma das atividades, chamada de programas, foi prevista a definição
ou conceito, as atividades estratégicas que devem ser desenvolvidas e a estratégia
de realização de cada atividade, isto é, “uma espécie de receita de bolo.” Em outras
palavras, a metodologia era simplesmente um “manual” para implementar um
projeto de assentamento em áreas reformadas, de colonização e de arrecadação
de terras, utilizando técnicas de programação operacional.
O projeto inicialmente estava coordenado pela Diretoria Fundiária e executada
pelo Distrito de Terras de Mato Grosso, DFZ-03, com sede em Campo Grande.
O presidente do Ibra era o general Moraes; o diretor da DF era o Dryden Castro
Arezzo e o chefe da DFZ-03, era o coronel Clovis Rodrigues Barbosa. O responsável pelos trabalhos topográficos era o capitão Freitas, que seguia a orientação
do general Araújo, chefe da Cartografia da DF e os trabalhos de discriminação e
arrecadação de terras na área era coordenado pelo capitão Chuchu.
Pelo time em campo, na maioria militar, as coisas tinham que acontecer,
pois, o coronel Clovis sempre lembrava que, “a programação prevista tem que
se cumprida sem dúvidas nem murmúrios, custe o que custar e ponto,” e para
isso nunca faltaram recursos de nenhum tipo para executar a programação e
dentro dos prazos previstos.
Quando chegamos na área do projeto as atividades referentes à desapropriação, arrecadação de terras e reconhecimento de posses ou regularização
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Nead Especial 2
fundiária já haviam sido concluídas, bem como, o Departamento da Pedologia
do Ministério da Agricultura havia realizado um estudo dos recursos naturais da
área, aliás, um excelente estudo. A esse conjunto de atividades a metodologia
chamou de Distribuição de terras (Programa 1), que foi realizado com o auxílio
de fotografias aéreas, começando com a obtenção de terras e terminando com
a titulação.
Com base nas informações e ratificação das ocupações, da disponibilidade
de terras arrecadadas, dos estudos de solos, a localização de caminhos e estradas
e presença da rede hídrica o projeto de organização do território ou plano de
parcelamento da área, foi elaborado prevendo todas as áreas destinadas para
uso comunitário e reserva florestal em bloco, a este conjunto de atividades a
metodologia denominou Organização territorial (Programa 2).
O Programa 2 foi realizado com a participação de 18 topógrafos contratados
pelo Incra, com a participação dos beneficiários do assentamento como balizeiros e mateiros para a abertura de centenas de quilômetros de picadas com
auxílio de um helicóptero.
Com o Programa de Organização Territorial definido e as parcelas demarcadas, com a respectiva capacidade de assentamento, havia a necessidade de se
estruturar ou compor uma equipe técnica e administrativa mínima, para implementar as diversas atividades necessárias ao assentamento de agricultores ou
trabalhadores rurais. Nesse sentido, contando com os 40 servidores que existiam
na área, foi organizada uma estrutura operacional.
Inicialmente, que depois foi sendo ampliada na medida em que o projeto foi
crescendo, como me referi anteriormente, em mais duas etapas, quatriplicando
a área do projeto original.
O desenho original do organograma para execução do projeto é apresentado
a seguir. Após 1974 esse desenho foi ampliado em função das próprias necessidades do projeto e também o conhecido “cabide de empregos” que assolou o
Incra e é claro também o projeto, que segundo informações que tive, chegou a
ter mais de 200 servidores, na grande maioria contratados pelo regime CLT, sem
concurso público e com alto IP (indicação política).
Os 40 servidores estavam assim distribuídos:
• Um administrador
• Um engenheiro agrônomo coordenador do Setor Técnico
• Cinco técnicos agrícolas no Grupo de Atividades Agrícolas
Memória Incra 35 anos
• Oito técnicos em Desenvolvimento Comunitário (topógrafos treinados) no grupo
•
•
•
•
•
•
•
de Atividades Sociais
Um engenheiro civil e 10 topógrafos no Grupo de Infraestrutura
Um contador, coordenador do Setor Administrativo
Dois auxiliares administrativos no Grupo de Pessoal
Dois auxiliares administrativos no Grupo de Material e cinco motoristas
Quatro auxiliares administrativos no Grupo de Finanças
Pessoal contratado por empreitada(serviços eventuais)
Conselho do Projeto formado por representantes dos assentados.
A estrutura tinha um regulamento interno que fixava as atribuições de
cada unidade, bem como, as responsabilidades de cada membro das unidades
operativas.
ADMINISTRADOR
SETOR TÉCNICO
CONSELHO DO PROJETO
SETOR ADMINISTRATIVO
O conjunto de atividades e procedimentos a metodologia denominou Organização administrativa (Programa 3). A estruturação desse programarepresenta
o sucesso ou insucesso do assentamento. A equipe era tão envolvida com o
assentamento que tudo era possível, graças à dedicação e criatividade do pessoal.
O coronel Clovis fixou nos acessos à área, placas com os seguintes dizeres: “Aqui
o impossível é realizado. Milagre demora um pouco.”
Uma vez estruturada a Administração com os respectivos papéis definidos
e precedido de um treinamento em serviço, passou a se identificar e selecionar
as famílias candidatas a mais ou menos 200 parcelas vagas; de um total de 800
parcelas, 350 foram ocupadas pelas agricultoras já localizadas na área;150 parcelas
estavam destinadas para agricultores da Annoni/RS e de Santa Fé /SP.
As famílias selecionadas eram localizadas nas parcelas e passavam a usufruir os
créditos de implantação, construção de moradias, capacitação, organização social,
etc. Esse conjunto de atividades se denominou Assentamento (Programa 4).
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Nead Especial 2
Quando realizamos o processo de seleção houve muitos candidatos. A
maioria ficou perto da área, realizando trabalhos esporádicos, aguardando a
ampliação do projeto; outros entraram no Paraguai e assim nasceram os chamados brasiguaios.
A organização social dos assentados foi a chave principal para o sucesso do
projeto, chamando a atenção de muitos órgãos, instituições e universidades
que realizaram várias pesquisas e estudos. Como foi o caso da Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), IPEA, Projeto Rondon, Bolsa de Cereais
de São Paulo, SNI, Escola Superior de Guerra, PUC/RJ, entre outras e não posso
deixar de dar uma idéia do que foi e como funcionava.
A área era muito extensa, para se ter uma idéia, entre um extremo e outro
havia uma distância de 60 quilômetros, em estrada de terra. A capacidade de
assentamento era de 800 famílias e a equipe técnico-administrativa muito reduzida e a metodologia previa a participação dos assentados.
considerando esses aspectos, coube-nos definir como seria a participação dos
beneficiários para poder suplantar as dificuldades, considerando que o cenário
natural dava condições para implantar um projeto altamente viável.
Ocorreu-nos que os assentados poderiam organizar-se em grupos de vizinhança, de modo que cada grupo teria participação junto à administração do
Projeto para pleitear, sugerir, cobrar, assumir e obter benefícios nas atividades
inerentes a sua implementação. Essa participação se daria mediante representantes e para evitar a concentração de poder em poucas pessoas, poderiam
ser vários de cada grupo, sendo que cada representante seria responsável por
uma ou duas atividades, de modo que dentro do possível todos teriam funções
dentro do grupo. Com a totalidade dos assentados estariam participando do
desenvolvimento das atividades dentro do assentamento.
A formação dos grupos de vizinhança foram inicialmente previstos por
nós a partir dos mapas de loteamento e discutidos com os respectivos grupos,
assim como a finalidade dos grupos e as principais funções, as discussões levaram a ajustes da formação do grupos, as definições das funções e a eleição
dos responsáveis, aos grupos demos o nome pomposo de Unidades Agrárias
de Trabalho e Produção (UATP). Os assentados chamavam simplesmente de
unidades e aos responsáveis pelas atividades por cada Unidade eles chamaram
de encarregados.
Memória Incra 35 anos
Cada Unidade tinha de maneira geral os encarregados e respectivos encargos:
Comunicação- responsável pela convocação de reuniões, transmitir avisos da
Administração para os membros da Unidade e vice-versa (pelo critério de escolha
adotado por eles, recaía no assentado que tinha maior número de filhos, segundo
os assentados, quem tinha maior número de filhos podia convocar reuniões em
menos tempo em caso de urgência); Agricultura- responsável pelos levantamentos de necessidades de insumos agrícolas, áreas de plantio, organização de
mutirões para colheitas, etc; Educação – responsável pela freqüência de crianças
na escola, realizações de mutirões para conservação das escolas, etc. Assim
por diante em outras atividades como, saúde, infra-estrutura,comercialização,
crédito,habitação, cooperativa e representante no Conselho. Este ultimo, representava os interesses gerais da Unidade junto ao Conselho de representantes do
Projeto, as atividades eram aquelas 12 definidas pela metodologia e que foram
denominadas de Programas.
Essa organização deu muita dinâmica ao projeto e reduziu os custos administrativos. Para se ter uma idéia, pelo sistema tradicional um levantamento de
necessidades de insumos levaria muitos dias, contando com o pessoal reduzido
que estava lotado no projeto, além do mais, os custos com combustível e outros
materiais, elevaria o custo final da operação. Já com a participação das Unidades,
tanto o levantamento de necessidades assim como a distribuição dos insumos
se resumia a um dia e a custos mínimos.
Os mutirões ou trabalhos solidários realizados nas Unidades contribuíram de
forma categórica no desenvolvimento do espírito cooperativo, o que facilitou a
constituição de uma cooperativa em bases sólidas Posteriormente foram criadas
também as Unidades Agrárias Femininas (UAF), considerando que as UATP eram
constituídas na maioria por homens, as UAF’s tiveram grande participação nas
ações educativas em vários temas.
Com a organização das UATP, a implementação das outras atividades no projeto foram facilitadas tanto é que a organização da estrutura de produção agrícola
foi realizada a partir das propostas das Unidades e com o aconselhamento da
nossa equipe técnica que era dada junto a cada UATP a partir das necessidades
levantadas pelo encarregado de Agricultura. A necessidade previa também
o crédito, assistência técnica e capacitação, e a este conjunto de atividades a
Metodologia chamou de Unidades Agrícolas (Programa 5).
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Nead Especial 2
Esse Programa, já no primeiro ano agrícola, transformou a área em uma
das de maior produção de Mato Grosso. No segundo ano agrícola do projeto o
município de Iguatemi passou de 15o lugar em arrecadação de Imposto sobre
Circulação de Mercadorias (ICM) para 2o no Estado.
Para facilitar o escoamento da produção agrícola do projeto, foram abertas
estradas, melhoradas as já existentes e construídas as pontes com a utilização
de materiais locais. Os encarregados de Infra-estrutura assumiram o papel de
promover mutirões para a conservação das estradas e a esse conjunto de atividades a metodologia chamou de Infra-estrutura (Programa 6).
Em Iguatemi, nos primeiros dois anos, as estradas foram abertas e conservadas
na base da enxada, pois, não se contava com tratores ou outros equipamentos.
Chegamos a construir um embarcadouro de madeira no rio Paraná para a expedição de produtos em chatas ou chalanas e uma pista de pouso para aviões
de pequeno porte.
Até aqui, segundo a metodologia, os programas eram de responsabilidade
direta do Incra, ou seja de execução determinada. Daqui em diante as atividades
foram de caráter promocional.
Os assentados e respectivas famílias deveriam ser contemplados com atividades de educação, sejam de alfabetização e ensino fundamental, tanto para
crianças, jovens e adultos. Para tanto o Incra deveria participar cedendo locais para
a construção das unidades de educação e a própria construção das mesmas.
Em casos excepcionais, promovendo a participação dos órgãos municipais
e estaduais no desenvolvimento e na manutenção dos programas de educação. A essa atividade a metodologia denominou de Programa de Educação
(Programa 7).
No projeto foram construídas 32 escolas isoladas e dois grupos escolares,
com 12 salas de aula cada uma, com capacidade de atendimento a 400 alunos
por grupo. Construídos e mantidos com recursos do Estado de Mato Grosso e
do município de Iguatemi, as professoras foram recrutadas na área do projeto.
Um outro serviço que os assentados deveriam ser beneficiários é um programa de medicina preventiva, curativa e ambulatorial. A partir de levantamentos
realizados pelos encarregados das Unidades e também das UAF’s, esse conjunto
de atividades foi denominado Programa de Saúde (Programa 8).
Memória Incra 35 anos
Foi construído um posto médico no Projeto com recursos do Estado e mantido pela Prefeitura de Iguatemi. Foram treinados atendentes, parteiras leigas e
agentes de saúde, todos de origem local.
Era fundamental as condições de moradia dos assentados. Para isso a metodologia previu a construção de moradias e seus apêndices tais como, cisterna,
latrina, horta, pomar, galinheiro, etc utilizando materiais disponíveis no local e
seguindo modelos construtivos adotados na região. Essas atividades constituem
o Programa Habitação (Programa 9).
Em nosso caso, havendo muita madeira, produto dos desmatamentos, utilizamos a madeira transformada para construção de casa, apesar de o arquiteto
do Incra, Cleso Gomes de Oliveira, orientou a construção de casas, em regime de
mutirão, com madeira roliça sem beneficiamento, utilizando o mínimo possível de
pregos metal. Os tetos eram cobertos por lascas de madeira em forma de telhado,
experiência que diminuiu os custos de habitação em até 60 % dos habituais.
Tendo em vista que os assentados a partir do Programa 4, estariam organizados
em UATP e trabalhando em forma solidária e cooperativa, tornou-se necessária
a formalização da organização em uma entidade societária, com personalidade
jurídica, para defender os interesses profissionais e econômicos dos associados.
As atividades para configuração e reconhecimento legal dessa organização foi
denominada de Empresa Cooperativa (Programa 10).
A Empresa Cooperativa teve papel importante em dois conjuntos de atividades.
Para facilitar a obtenção de financiamentos destinados ao custeio das atividades
agrícolas e investimentos produtivos o que vem a ser o Crédito (Programa 11) e o
segundo, para viabilizar em condições mais favoráveis, a venda ou distribuição
da produção de forma vantajosa, que se denominou Comercialização (Programa
12). Nesse programa foram construídos quatro armazéns com recursos do Estado
de Mato Grosso.
A partir das UATP, foi criada a Cooperativa Agrícola Mista do Projeto de
Assentamento de Iguatemi (Campai), responsável pela captação de créditos
e comercialização da produção do projeto; o processo de comercialização do
projeto, foi um sucesso absoluto, é digno de um relato à parte, pois, até a Bolsa
de Cereais do Estado de São Paulo, visitou o Projeto para conhecer o sistema
de comercialização.
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5.
6.
Nead Especial 2
Esta metodologia foi utilizada até 1980, daí para frente foram utilizadas as
famosas PO, que eram fichas de atividades, metas e custos segundo o “modelito”
Delfin Neto.
Na minha ótica, as conclusões são as seguintes:
O projeto deu certo por que com ele, se corrigiu as distorções de uso e posse da
terra, em uma área muito extensa e conflitante, o que é o principal pressuposto
da reforma agrária como conceito universal.
Os assentados beneficiários do projeto passaram a obter renda suficiente para
pagar os compromissos pessoais e os assumidos com o assentamento e melhorar
as condições sociais e econômicas do conjunto familiar.
O projeto de Iguatemi provocou um impacto muito grande na região, favorecendo a criação de um pólo de desenvolvimento incontestável, dando condições
para a criação de três municípios e contribuiu para a criação do Estado de Mato
Grosso do Sul.
A Metodologia adotada, gerou um documento, que até hoje, passados mais de
30 anos, está em uso em vários países da América Latina e África, menos no Brasil,
infelizmente, “aqui se quer inventar”. Esse documento foi traduzido em cinco
idiomas pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO) de Roma e Banco Mundial (Bird); ainda é usada a metodologia como roteiro
para formulação e a análise de projetos de desenvolvimento rural integrado.
Lendo a metodologia verifica-se que o conteúdo é atualíssimo e ainda pode
ser utilizado com pouquíssimas adequações. Volto a dizer: não adianta querer
inventar a roda, a roda já foi inventada há muito tempo e ela é redonda.
O uso dessa metodologia me deu oportunidade de prestar consultoria internacional, em cerca de dez países da América Latina e África e com sucesso técnico.
Registro da produção de um documento orientador
Em 1986, com o lançamento do 1o PNRA, começaram as desapropriações de
terras em ritmo acelerado, porque a Nova República se propunha a realizar “a
maior reforma agrária de mundo em todos os tempos.”
Com isso havia mais de 150 áreas desapropriadas, até mais de 50% com
imissão de posse, mas, não se podia promover o assentamento de famílias porque dependia de “criar os projetos de assentamento” e para isto era necessário
formular o “projeto técnico”(exigência do Estatuto da Terra).
Memória Incra 35 anos
O diretor de Assentamento do Incra, Ayrton Empinotti, preocupado com a
situação, convocou o agrônomo Dryden Castro Arezzo e a mim, para formular
um modelo de projeto técnico que permitisse assentar as famílias, assim que
o Incra emitisse na posse da área e ao mesmo tempo evitasse a ocupação de
terras pela falta do tal “projeto.”
Em poucos dias formulamos uma proposta, mas, esta teria que ser discutida e
validada pelos técnicos da área de assentamento de todas as superintendências,
claro, que só após validada seria aplicada imediatamente.
As discussões foram realizadas em três pólos: Curitiba, Fortaleza e Cuiabá.
Participaram cerca de 550 técnicos e assim nasceu o documento que continha
as diretrizes para formular os projetos de assentamento e promover o acesso de
famílias às áreas reformadas. O documento contendo essas diretrizes foi denominado Política de assentamento, conhecido como livrinho verde.
A Política de assentamento resumidamente recomendava: que os projetos
tinham de ser desenhados considerando: a) a participação dos assentados, b) a
parcimônia de recursos, c) objetividade e d) prevendo a autogestão. Os documentos que conteriam os Projetos seriam os seguintes:
1. Plano Preliminar (PP), documento a ser elaborado ainda na fase de desapropriação,
contendo informações preliminares tais como: capacidade de assentamento,
necessidades de crédito de implantação, estimativa de recursos para infra-estrutura física etc. Este documento permitiria a criação do projeto, o ingresso das
famílias na área, logo após da imissão de posse pelo Incra.
2. Programa de Ação Imediata (PAI), documento a ser produzido junto com os
assentados, a partir do pleno conhecimento das condições naturais da área,
permitiria decidir sobre a organização territorial, as atividades produtivas, necessidades de créditos e todos os requerimentos necessários ao desenvolvimento
do projeto
3. Projeto Técnico Definitivo (PTD). Esse documento seria preparado opcionalmente,
após a consolidação do PAI, com a finalidade de registrar os componentes do
projeto e que servissem para avaliações futuras.
A política de assentamento durou pouco tempo, se não me engano apenas
uns quatro anos. Foi substituída por outras formas de se elaborar projetos, até
chegar aos tempos atuais em que se utilizam o Programa de Desenvolvimento
dos Assentamentos (PDA) e são elaborados por empresas de planejamento.
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Nead Especial 2
O processo de discussão do documento desde a formulação da proposta
inicial, as discussões em pólos e a organização final em “Política de Assentamento”,
foi sem dúvida, um dos momentos mais ricos que vi dentro da Instituição, pois,
a proposta inicial produzida por nós, foi amplamente enriquecida, aprofundada
e melhorada a partir das experiências locais vividas pelos técnicos de todas as
unidades da Federação e participantes das discussões
Em 2002, convidado pelo superintendente do Incra-MS, assessorei, sob
forma de consultoria ao governo de Estado de Mato Grosso do Sul, na formulação e implementação do Projeto de Assentamento Itamarati. Na ocasião
lancei mão da Política de Assentamento misturada com a velha metodologia
relatada no caso anterior. Os resultados estão sendo excelentes, inclusive
esse projeto está sendo considerado como ícone da reforma agrária pelos
especialistas no assunto.
Depoimento sobre o gerenciamento de uma diretoria do Incra
Em 1993 eu estava desempenhando a função de chefe de Gabinete adjunto do
Ministro da Agricultura, quando o presidente do Incra, O.Russo, me convidou
para assumir o Departamento de Desapropriações da Diretoria Fundiária da
instituição. Não me neguei a aceitar o convite, mesmo não tendo nunca trabalhado nessa área, por que sempre trabalhei na ação de Assentamento; por
outro lado, as minhas funções no Ministério da Agricultura eram totalmente
políticas e burocráticas.
No Departamento de Desapropriações fiquei pouco tempo, em torno de
dois meses, tempo necessário para entender o processo de desapropriações
com toda sua complexidade, implicações técnicas, jurídicas, e políticas.
Por solicitação do mesmo residente, passei a responder pela Diretoria, tendo
em vista que o titular havia pedido demissão ou foi demitido, não sei o que
ocorreu, a verdade é que passei a responder provisoriamente. Fui ficando até
completar um ano e meio.
Nesse período consegui mobilizar os servidores da Diretoria e nossos homólogos nas superintendências regionais e assim desapropriar mais de dois
milhões de hectares e montar processos para a desapropriação de mais outros
10 milhões de hectares. Um verdadeiro recorde de desapropriações no Incra,
pelo menos até aquela época.
Memória Incra 35 anos
Não foi fácil, mas, com criatividade, dedicação, muita paciência, comprometimento e claro muita sorte, é possível “tirar água da pedra” me perdoem o
exagero, mas, foi possível e sem reza brava ou milagre .
Ao assinar as autorizações de viagens e concessão de diárias, percebi que
só um grupo seleto de procuradores e agrônomos viajavam e eram justamente
os que ocupavam chefias, isto me “grilou”, porque os trabalhos previstos pelos
viajantes era orientar a montagem de processos para desapropriação e os
processos que chegavam em Brasília estavam de maneira geral mal instruídos,
incompletos. Sempre voltavam à origem para correções, complementações e
assim por diante e era um tal de ir e vir, um autentico iôiô de processos.
Em conversa com alguns superintendentes fui identificando que um dos
maiores problemas nos Estados, principalmente nas Unidades Avançadas, era a
falta de pessoal administrativo para auxiliar na montagem dos processos, digitar
pareceres, desenhar plantas.
A partir dessa constatação propus aos chefes de Departamento da Diretoria
que após um levantamento das carências de pessoal nas superintendências,
elaborassem um plano de viagens de administrativos para auxiliarem preferencialmente às Unidades Avançadas na montagem de processos.
Além desse auxilio, eu tinha em mente que a ida dos administrativos à área
seria muito importante, porque eles fatalmente teriam de visitar acampamentos,
entrar em contacto com os trabalhadores sem-terra. Enfim, teriam a oportunidade
de entender qual era o conteúdo e a razão dos processos que chegavam em
Brasília e às vezes eles não davam a menor importância àquele monte de papéis
e plantas, que continham esses volumosos pacotes, às vezes sujos e gastos pelo
longo tempo de tramitação.
Meus amigos! Não deu outra, quando o pessoal começou a viajar, a alegria
por viajar já era grande, inclusive tinha gente que nunca havia viajado de avião
e na volta depois do trabalho de campo, a alegria de voltar e as preocupações
que traziam era uma outra história, parecia que as pessoas se transformavam,
pois, o ânimo, entusiasmo e vontade de resolver as coisas a curto prazo, pareciam
incontroláveis, mudaram de comportamento da “água para o vinho,” ao ponto
de me criar até problemas, porque ao ver a realidade dos acampamentos e o
trabalho heróico que os colegas de campo realizavam, eles se comprometiam a
resolver e advogar por eles, para mudar e melhorar a situação dos sem-terra e as
condições de trabalho dos colegas da “linha de frente” o mais rápido possível.
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Haviam entendido o verdadeiro significado e conteúdo que os processos
continham nesse monte de papéis que muitas vezes manuseavam sem compromisso algum.
O pessoal, além de fazer o relatório burocrático que o órgão exige, de maneira
informal e com suas palavras, contava com naturalidade aos colegas de sala,
tudo o que havia visto e ouvido sobre os problemas dos colegas da instituição
e dos sem-terra A isto chamo de relatório humano porque é cheio de detalhes,
carregado de emoção, de riqueza de observações e até de conclusões.
A cada publicação dos atos declaratórios de desapropriação no Diário Oficial
era uma festa dos servidores, principalmente daqueles que haviam ajudado a
montar os processos, parecia a comemoração de um gol da seleção de futebol
contra a Argentina, tal era a euforia.
A enxurrada de processos para Brasília, criou um problema sério, porque nós
não estávamos preparados para analisar e dar prosseguimento à quantidade de
processos que se amontoavam nas diversas diretorias do Incra. E aumentava a
cada dia a pressão dos sem-terra, reforçada pelos novos embaixadores que eram
os colegas da Diretoria Fundiária.
Para dar vazão ao andamento dos processos é que nos ocorreu requisitar
procuradores e agrônomos das superintendências estaduais para auxiliarem na
análise dos mesmos. Essa estratégia ajudou, mas não resolveu, pois os documentos tinham de ser checados e analisados pelas diretorias de Cadastro, Fundiária,
Assentamento e a Procuradoria Jurídica, nessa seqüência.
Essa documentação ia de uma a outra Diretoria via protocolo e às vezes via
malote, um absurdo. Aí surgiu a idéia de se fazer uma espécie de mutirão formado por técnicos representantes de cada Diretoria e em um ambiente só ou
seja, todos em torno de uma mesa, de modo que os processos circulavam pelas
Diretorias sem precisar de protocolos ou malotes, um verdadeiro achado!
A produtividade aumentou barbaramente e as decretações de áreas foram
se sucedendo continuamente. Essa estratégia foi oficializada posteriormente e
transformada em comitês estaduais e Comissão Revisora em nível central.
O ambiente de trabalho da Diretoria era muito bom, mesmo porque as
outras áreas de responsabilidade também avançavam, como as de titulação e
regularização fundiária. A manutenção do bom clima de relacionamento entre os
colegas estava a cargo da colega Marília Rodrigues, que além da eficiência com
que desempenhava a sua função de assistente do Departamento de Obtenção
Memória Incra 35 anos
de Recursos Fundiários, organizava, pelo menos uma vez por mês, café da manhã
em onde maioria dos servidores participava com muita descontração.
A forma e o estilo que adotei para gerenciar a Diretoria me causou algumas
críticas vindas de dois setores e outros problemas:
1. Em uma reunião de Diretoria o representante do Departamento de Inspeção
e Controle, que não era nem diretor, me fez uma crítica, até agressiva, dizendo
que eu estaria gastando muito com diárias e passagens de funcionários, ao
que eu respondi, categoricamente, que antes de me criticar deveria avaliar o
desempenho e produtividade da Diretoria, com viagens e sem viagens, o cara
ficou calado, mesmo porque, todos os diretores e inclusive o presidente apoiaram a minha resposta.
2. Em uma reunião de servidores, na qual eu estava presente, um dirigente sindical,
fez o seguinte comentário: “Existe um diretor do Incra, que em lugar de apoiar a
melhoria dos salários dos servidores, está promovendo uma complementação
de salários com a concessão de diárias, inclusive nesta época do ano está querendo garantir o vinho e o peru do Natal dos servidores.” Eu respondi: – “O diretor
referido pelo colega, sou eu e assumo que estou fazendo isso, mesmo porque
vinho e peru não é privilégio de doutor agrônomo e procurador.” A platéia me
aplaudiu intensamente e o sindicalista saiu da sala muito zangado.
3. Fui denunciado pela imprensa local como incentivador de invasão de terras no
Distrito Federal para favorecer a eleição de um candidato a governador pelo
PT. Eu havia autorizado o assentamento de trabalhadores rurais em áreas do
Projeto Alexandre Gusmão. Essa autorização contrariou os interesses de um
ex-colega do Incra que intermediava a venda ilegal de lotes no Projeto Alexandre Gusmão. A vivência desta experiência serviu para adotar um modelo
de gestão, quando assumi a Diretoria Executiva da Fassincra, considerando os
seguintes aspectos:
1. Existe uma distância humana muito grande entre diretivos e servidores.
2. Em grande parte, os servidores estão desmotivados porque não sabem o que
e para que estão fazendo.
3. De maneira geral os servidores estão desatualizados em conteúdo e procedimentos nas suas áreas de trabalho.
4. A instituição não se preocupa com as relações interpessoais dos funcionários,
principalmente entre as diversas categorias de profissionais.
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1.
2.
3.
4.
Nead Especial 2
Esses aspectos assim como no Incra, existiam também na Fassincra e superamos quando tive a oportunidade dirigir a Fundação, como diretor executivo,
da seguinte forma:
Estabelecemos uma relação amistosa com os empregados, independente da
função que desempenhavam, ou seja, todos eram amigos, e podia me comunicar
com qualquer empregado de forma amistosa, tanto na sede como nos Estados,
sem protocolo algum e muita informalidade.
Implementamos um programa de capacitação para todos os empregados, para
atualização e dar orientações de procedimentos dentro da Fundação como prestadora de serviços para a saúde dos servidores do Incra, ou seja, todos sabiam
perfeitamente o que estavam fazendo na organização.
Melhoramos as condições de ambiente de trabalho dos empregados, modernizando os instrumentos e equipamentos e criando rotinas de procedimentos
atualizados e mais operacionais.
Implantamos mecanismos para favorecer as relações interpessoais entre os
empregados, incentivando reuniões sociais, como festas, café da manhã, comemorações de aniversários, almoços, jantares, bailes etc. Tudo isso sem custos e
prejuízos para a empresa.
Segundo os empregados da Fundação, foi um período muito agradável de
se trabalhar, em que eles se sentiram valorizados como pessoas e profissionalmente mais seguros.
Um abraço. 6
Memórias e fragmentos: o sonho
da reforma agrária e o Incra
Pau lo R o b e r to F o n t e s Ba r q u e t e
Minha contribuição a excelente idéia de recuperar a história do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pelas “mãos” de atores que viveram
e vivem o sonho da realização de uma autêntica reforma agrária, consiste em
refletir sobre o período de transição da política agrária no Brasil, quando a colonização de terras cede lugar à política de assentamento, em meados de 1985.
Nesse contexto pontuei alguns fragmentos da minha própria trajetória de vida,
que se vincula naturalmente com a memória institucional.
Fui aluno secundarista em Rio Branco-AC. Estudei agropecuária, assunto
afinado com meu bem querer pela natureza exuberante daquela região. Mas não
era só. Aprendi no debate de idéias, protagonizado por alguns professores com
uma visão crítica da realidade do campo no Brasil, que demandas históricas de
segmentos da sociedade não eram bem-vindas nos conteúdos escolares. Então,
quando se anunciava alguma questão relacionada com a reforma agrária, por
exemplo, os mestres logo cuidavam de cerrar as portas, pois, se tratava de fala
subversiva, sujeita ao controle dos aparelhos repressivos do Estado.
Mas por que tal tratamento a uma política pública amplamente utilizada ao
redor do mundo para promover o desenvolvimento?
Obviamente não há espaço, neste breve texto, para uma análise do significado da reforma agrária naquelas nações onde a mesma foi efetivamente
executada. Contudo, quero assinalar pelo menos dois aspectos relacionados
aos seus impactos: o primeiro envolve a melhoria na distribuição da renda e, o
segundo, diz respeito às vantagens na geração de oportunidades de trabalho a
custos inferiores aos do setor urbano.
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Nead Especial 2
O fato é que o Brasil merecia desígnio mais equânime à sua persistentemente
concentrada estrutura fundiária. No entanto, a resposta às aspirações populares
que transformaram a reforma agrária em “cimento ideológico” da esquerda nos
anos de 1960, resultou num conjunto de medidas para promover o processo de
modernização do latifúndio. Tais políticas adotadas pelos militares culminaram
no agravamento da crise agrária no início dos anos de 1980.
Cheguei a universidade nesse mesmo período. O debate acerca do problema
agrário brasileiro no curso de Economia era incipiente e insípido. Não obstante,
ficou evidente a opção excludente adotada para promover o crescimento econômico, ou seja, modernização sem reforma agrária. Crescera o “bolo”, sem que
fosse distribuído para uma população que se urbanizara.
O reencontro com o tema da reforma agrária ocorreu no final de 1984 quando
ingressei numa tabela especial de empregos do Projeto Fundiário Uaquiri (PFU),
objeto das ações da Coordenadoria Regional do Incra no Estado do Acre.
Mais que uma autarquia destinada a desenvolver equivocado programa de
colonização de terras, o Incra se caracterizava pela semelhança com um empreendimento “familiar,” cujas edificações, contemplavam um conjunto de casas,
parque esportivo, salão para eventos sociais, dentre outros. Para os servidores
que moravam na vila, o ambiente de trabalho era a extensão de suas casas.
Se esse modelo, de convívio fraterno e próximo, tivesse coincidido com uma
proposta efetiva de realização da reforma agrária para o país, talvez a realidade
agrária brasileira fosse outra.
Na prática, contudo, os objetivos se voltaram para arrefecer focos de tensão
social existentes no campo, gerados em face da expropriação de milhares de
trabalhadores. A própria logomarca utilizada pelo Incra desde a sua criação, em
1970, mostra como era conservadora a visão do establishment. Formas retangulares
davam a impressão de que o compromisso institucional era com a distribuição
das terras. Olhar mais atento, entretanto, constatara retângulos de diferentes tamanhos, alguns pequenos e outros muito grandes, denotando a manutenção de
um quadro fundiário concentrado e de uma ação institucional pouco criativa. A
realidade observada confirmava essa digressão. Naquele período, os trabalhos de
organização das formas de distribuição espacial nos imóveis eram basicamente
definidos em gabinete, sem a participação das famílias, o chamado “quadrado burro.”
Importante destacar que mesmo avançando na transição para uma nova
estratégia de ação, o Incra mantém a logomarca até hoje. Aproveito este espaço
Memória Incra 35 anos
para sugerir campanha por uma nova, que contemple os desafios colocados à
Reforma agrária na atualidade, como as crescentes preocupações focadas nas
questões ambientais.
Com o advento do processo de abertura política, novamente o debate sobre
a importância da reforma agrária ganha peso no âmbito das proposições que
substantivavam o movimento pelas Diretas já no ano de 1984. Jamais pensei
que comigo mesmo dar-se-ia uma mudança radical que me levaria para o Ceará,
mas, disso, falo mais adiante.
Por dentro do Incra, mais especificamente do PFU, corriam várias atividades
não afinadas com a propaganda governamental, cujos pilares alardeavam a
integração dos “homens sem terra do Nordeste com as terras sem homens da
Amazônia.”
Foi um processo de difícil adaptação, aquele de transmudar nordestinos
para a selva, com suas especificidades regionais desafiantes para um povo
acostumado a viver na caatinga.
Lembro-me, por exemplo, dos chamados “termos de acordo”, que eram
praticados no âmbito do PFU, onde posseiros com anos de atividade no campo,
“negociavam” suas posses com os fazendeiros, ávidos para concentrar mais terras,
derrubar as matas e introduzir seus rebanhos de gado no lugar.
Sendo assim, mesmo na vigência de um marco legal importante, o Estatuto
da Terra, os militares cumpriram à risca um projeto que desvirtuou o sentido da
reforma agrária. José Gomes da Silva, expoente da intelectualidade nas proposições em favor da reforma agrária, denunciou esse processo, quando escreveu
que os militares haviam igualado o conjuntural, ou seja, a política agrícola, ao
estrutural, consubstanciado na reforma agrária.
A especificidade das ações do Estado brasileiro nas questões relacionadas à
política de reforma agrária remonta à promulgação daquele instrumento legal,
em 1964.
Essa lei em vigor poucos meses após o golpe militar, foi objeto de controvertidas análises. Afinal, é uma Lei de reforma agrária? A resposta não é simples.
Penso que foi uma forma de conter o ânimo das massas favoráveis à reforma
agrária, permitindo algumas intervenções fundiárias.
O Estatuto da Terra originou conceitos como os de latifúndio por dimensão
e exploração, minifúndio, empresa rural, propriedade familiar e os respectivos
critérios para a sua identificação e a possibilidade de desapropriação por interesse
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Nead Especial 2
social. Apresentou indicações importantes, como o zoneamento do país em
regiões homogêneas, as áreas em situação crítica de tensão social e, também,
a obrigatoriedade para a elaboração dos Planos Nacionais de Reforma agrária
(PNRA). Mas, sobretudo, se comprometeu com a modernização do latifúndio,
transformando-o em empresa rural.
Em cumprimento aos dispositivos do Estatuto da Terra, os governos militares
instituíram dois PNRA, em 1966 e 1968. O primeiro centrava seus esforços na
realização do cadastro de terras, ficando a reforma agrária para um momento
subseqüente. O segundo PNRA definiu como prioridade a tributação. Essas
iniciativas se mostraram inócuas para promover a distribuição de terras e foram
insuficientes até mesmo como fonte de receita pública.
As primeiras impressões identificam na reforma agrária um processo de
natureza prioritariamente política, isto é, um instrumento capaz de alterar as
correlações de poder numa determinada sociedade. Não se trata de algo com
possibilidades de ser equacionado no âmbito do mercado, com escopo eminentemente técnico, como muitos querem fazer crer. São os Estados nacionais
os responsáveis pelo seu devir ou pela sua procrastinação.
Quando se analisa a movimentação política ocorrida durante o governo da
chamada Nova República é possível constatar este fato.
Naquela fase foi elaborada, com o apoio do Incra, a proposta do I Plano
Nacional de Reforma Agrária da Nova República, amplamente discutida no IV
Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais, em Brasília, em 26 de maio de 1985.
O objetivo geral do PNRA seria mudar a estrutura fundiária do País.
O documento propositivo apontava com riqueza de detalhes os problemas gerados pela concentração das terras e as formas efetivas de enfrentá-la.
Assegurava, também, mecanismos para que fossem consideradas as diferentes
expressões culturais dos trabalhadores, notadamente quanto às formas de
exploração das terras.
José Graziano da Silva recupera esses dois momentos no livro Para entender o Plano Nacional de
Reforma Agrária, onde deixa claro que o interesse dos militares era desenvolver o cadastro e a colonização de terras. Segundo o autor, o PNRA de 1985, tratado adiante, se diferencia dos anteriores por
escolher a “desapropriação por interesse social como instrumento principal a ser usado no processo
de reforma agrária,” e a indenização das terras em Títulos da Dívida Agrária-TDA (SILVA, 1985).
Memória Incra 35 anos
Recebida com entusiasmo pelos trabalhadores rurais, a proposta contou
com a adesão de expressivas instituições e movimentos sociais. Apoiaram-na
o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem-Terra (MST), a Confederação dos
Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Associação Brasileira de Reforma agrária (Abra), a Campanha Nacional pela Reforma agrária (CNRA), a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas (Ibase). Porém, as declarações de apoio não foram suficientes
para que, na assinatura do Plano propriamente dito, fossem mantidas todas as
proposições.
Sucintamente, o PNRA da Nova República previa, com base no Estatuto da
Terra, o assentamento de 1,4 milhão de famílias no quadriênio 1985/1989. Para
compreender o fraco desempenho do Plano que, ao final daquele governo, não
atingiu sequer 10% de suas metas, se faz necessário analisar as agudas contendas
no seu processo de elaboração e execução.
Por se tratar de um Plano que previa a distribuição de terras e a extinção
de privilégios seculares, muitos eram os interessados em sua apreciação e
discussão, apresentação de emendas e sugestões. A sua oficialização ocorreu
após 12 versões, permitindo um texto muito distante da proposta original e
voltado aos interesses dos proprietários de terra. As articulações que levaram a
tal desvirtuamento se inserem num conjunto de atividades paralelas ao Plano
que, aos poucos, foram tomando seu lugar e o condicionando às motivações
contrárias à reforma agrária.
Na mesma data de aprovação do PNRA, em outubro de 1985, o presidente
da República assinou a Política Nacional de Desenvolvimento Rural (PNDR).
Seus desdobramentos distorceram completamente o Plano, submetendo-o ao
controle da Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan) e
às demandas do setor agroindustrial, um de seus principais críticos.
A reforma agrária ficou subordinada à política de face agrícola, abrindo caminho para a extinção do Ministério da Reforma Agrária e do Desenvolvimento
(Mirad) e a vinculação do Incra ao Ministério da Agricultura, historicamente ligado
aos interesses de grandes proprietários de terra. Os programas de irrigação, por
exemplo, passaram a concorrer e se apropriar dos recursos destinados à política
de teor agrário.
Ocorre que, no campo político, eram travadas lutas ferrenhas entre defensores
e opositores da reforma agrária. No âmbito da Assembléia Nacional Constituinte,
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Nead Especial 2
de 1988, pressões contra-reformistas eram urdidas, culminando com um texto
fechado em relação à reforma agrária e num ambiente institucional que emperrou
o cumprimento das reivindicações dos segmentos populares.
Dando seqüência ao relato pessoal, permeado com a experiência de trabalho
no Incra, é o momento de esclarecer como se deu minha própria transição, no
bojo dessas reminiscências.
Eu não tinha nenhuma expectativa em deixar Rio Branco e muito menos o
trabalho no Incra, cuja rotina estava a assimilar aos poucos, embora, naquele
período, fossem quase inexistentes as possibilidades de capacitação e, portanto,
de desenvolvimento profissional. Foi então que um problema de saúde em minha
família exigiu uma decisão urgente, que permitisse enfrentar as limitações de
infra-estrutura hospitalar e de saúde existentes em Rio Branco.
Após breve estadia no Rio de Janeiro, para onde pensei em transferir-me,
decidi por Fortaleza, metrópole dotada de bom atendimento e terra natal de
minha companheira. Encerro aqui as memórias familiares, cuja dor foi superada
com os resultados positivos do tratamento.
O Incra veio depois, quando foi possível concretizar transferência para a
Superintendência Regional do Ceará, no início dos anos de 1990. O fascínio pela
bela cidade litorânea, cujas praias pude desfrutar algumas vezes durante períodos de férias, transformara-se numa realidade cotidiana e, portanto, desafiante:
trabalho, aluguel, transporte, colégio para os filhos, vida social, etc.
A sede do Incra, um edifício mediano localizado fora da área central, apresentava traços característicos das obras do tempo da ditadura. Aspecto frio, cerrado,
sem cor, estilo caixote. Diz-se que o posicionaram distante da área central para
inviabilizar as mobilizações populares voltadas para pressionar os governos pela
realização da reforma agrária.
Todavia, naquele período, o governo Federal acenava com a intenção de
realizar um efetivo processo de reforma agrária. Tanto é assim que postos-chaves
da administração ligados à temática da reforma agrária, estiveram ocupados por
pessoas diretamente ligadas às lutas dos trabalhadores.
As impressões iniciais no Ceará foram as melhores. Havia um ambiente de forte
correspondência entre o que se planejava, e as aspirações da classe trabalhadora
pela democratização da terra. Com a introdução da política de assentamento, os
pressupostos da reforma agrária se ampliaram, perdendo sentido a colonização
de terras, cujo equívoco, já evidenciei. Ganhou vulto a perspectiva de trabalhar
Memória Incra 35 anos
o assentamento das famílias em suas próprias regiões de origem, assegurando,
dentre outras coisas, a preservação da identidade cultural das pessoas.
Para levar adiante o que se preconizara na política de assentamento construiuse um significativo aparato institucional, participativo e democrático, onde os
governos federal e estadual somaram esforços no encaminhamento das ações
de reforma agrária.
É importante salientar o envolvimento dos trabalhadores e técnicos nesse
processo, proporcionando manifestações plenas de valor socioeconômico, político e cultural, a exemplo das feiras da reforma agrária, que mostraram a força
que os movimentos sociais detinham naquele momento.
Merece destaque o expressivo esforço de capacitação promovido tanto
para técnicos como também para assentados. Foram diversas as metodologias
utilizadas. Todas, não obstante suas limitações aportaram conteúdos valorosos
para a qualificação da reforma agrária no Ceará.
Dentre um conjunto de ações que pude observar, gostaria de assinalar aquela
conhecida como “laboratório organizacional,” cujos pressupostos permanecem
atuais. É notória sua capacidade de despertar na comunidade seu potencial para
o desenvolvimento de diferentes atividades produtivas. Ademais, mostra que o
assentamento não é, simplesmente, uma unidade de produção agropecuária.
Sua complexidade envolve claramente o desafio pedagógico da construção de
relações entre os sujeitos da reforma agrária.
A metodologia utilizada nesse trabalho tem o mais nobre dos propósitos,
consubstanciado na perspectiva de despertar nos assentados a conscientização
de sua cidadania. Além disso, promove o protagonismo das pessoas nas suas
inter-relações com as entidades e instituições municipais.
Na prática, contudo, a descontinuidade das políticas e a falta de acompanhamento das ações não permitiram que os resultados fossem atingidos.
O saldo positivo desse processo foi o surgimento de uma ampla frente
de lutas em favor da realização da reforma agrária. Movimentos sociais com
importante capacidade de mobilização surgiram. Dentre eles, o MST se constitui em meados dos anos 1980 e, em pouco tempo, transforma-se em um
interlocutor com significativo alcance político nas suas ações realizadas em
quase todo o país.
Uma de suas características mais inovadoras se reflete na expressiva disposição para organizar a população pobre, tanto nos espaços rurais como também
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Nead Especial 2
na área urbana, contribuindo decisivamente para desnudar a dívida social do
Brasil com aquele segmento.
Penso que uma das principais contribuições que a política de assentamentos
trouxe ao debate acerca da reforma agrária, encontra-se na consolidação dessas
experiências voltadas para a democratização do acesso a terra. Se, em geral, os
assentamentos não estão efetivamente inseridos na dinâmica socioeconômica
dos municípios onde foram criados, eles possibilitaram o surgimento de uma mobilização social que não havia nos marcos da política de colonização de terras.
O “movimento” dos assentados provocou um ambiente no qual o tema da
Reforma agrária encontrou o seu lugar. Nele, cotidianamente, as diversas expressões de luta pela consecução da Reforma agrária ora dialogam, ora pelejam
com os governos.
De acordo com o que aventei no início destas memórias, aqueles e aquelas
que fazem o Incra, juntamente com as entidades parceiras, temos uma tarefa
histórica das mais significativas. Ao alimentarmos o sonho da Reforma agrária,
ao longo desses 35 anos, nos co-responsabilizamos pela construção da nação
brasileira, cujos alicerces estão longe ainda das condições objetivas para abrigar
todo o seu povo. Referências
I n s t i t u to N a c i o n a l d e C o lo n i z a ç ã o e R e f o r ma A g r á r i a
da Terra: Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, Brasília.
( I n c r a ) . Estatuto
_______ . Proposta para elaboração do 1o Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova
República – 1o PNRA. Brasília: 1985.
_______ . 1o PNRA: Decreto no 91.766 de 10 de outubro de 1985, Brasília.
_______ . Política de Assentamento. Brasília: 1987.
G O M ES D A S ILVA , José. A reforma agrária brasileira na virada do milênio – Campinas: Abra, 1996.v
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Missão cumprida
A l b e r to M a r q u e s
Fui admitido no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra), em 1966, no esplendor dos meus vinte anos. Dali até que me aposentasse proporcionalmente, vivi
intensamente, conheci pessoas e lugares maravilhosos, tive um aprendizado que
ainda hoje me serve e me faz seguir adiante, sempre de cabeça erguida.
Entre os colegas de trabalho tenho amigos que considero verdadeiros irmãos. Em virtude disso, convivemos numa verdadeira confraria. Somos de fato
uma grande família.
Moro hoje, numa pacata cidade do norte de Minas, minha querida Janaúba,
e aqui costumo em roda de amigos contar causos de pescaria, futebol, mas não
deixo nunca de relembrar o tempo feliz que passou no meu querido Incra, casa
onde ainda permanecem bons amigos, que continuam na ativa. Caso do meu
compadre Ismael, chefe da sala do cidadão em Belo Horizonte, que me informou
dessa feliz idéia da direção do Incra, e me fez o convite para participar e assim
comemorar os seus 35 anos.
São vários os causos, bem assim as histórias, que neste momento me transportam ao passado, algumas alegres, outras tristes. Escolhi para narrar, uma passagem
simples da minha vida de servidor público, mas que é orgulho para mim e todos
que estavam e permaneceram e perseveraram naquela empreitada.
Se não me engano, transcorria o ano de 1988, quando fomos designados para
realizar algumas vistorias de imóveis para fins de desapropriação por interesse
social, na região noroeste de Minas, eram duas equipes de trabalho.
Era fevereiro, proximidades do carnaval, chuva intensa, estradas intransitáveis,
eis que já no encerramento dos trabalhos, deparamos com o fato de que todos os
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Nead Especial 2
imóveis que vistoriamos tiveram de ser descartados pelos mais diversos motivos.
Todos os nossos esforços foram em vão.
Estávamos nos preparando para voltar amargando uma derrota, pois não foi
possível indicar qualquer imóvel para desapropriação, fizemos o que foi possível;
paciência, haveríamos mesmo que retornar sem qualquer proposta.
Na véspera da viagem de retorno, sexta-feira de carnaval, gripado com febre
altíssima, procurei uma farmácia para comprar algum remédio que pudesse me
aliviar. Naquele local, como é de costume no interior mineiro, encontrei algumas pessoas que me reconheceram e passaram a questionar nosso trabalho.
Alguns a favor da reforma agrária, outros contra, mas todos se manifestaram
democraticamente.
Informei-lhes que retornaríamos no dia seguinte, dando o trabalho por
encerrado. Naquele momento, uma das pessoas presentes perguntou-me se
gostava de briga, mesmo que fosse ruim, daquelas de cachorro grande, ao que
respondi que sim, por uma boa causa topava qualquer briga, pois desconhecia
a palavra medo.
Despedimo-nos e fui para o hotel com fortes dores de cabeça e um terrível
estado gripal, mas tendo o cuidado de antes anotar o endereço do senhor, pois
estava interessado no que tinha para me contar. Era um forte pressentimento de
que ali havia algo mais sério e que precisava urgentemente ser conferido.
Sábado pela manhã, antes da viagem de volta, lá estava eu na porta da casa
do referido senhor, para saber qual era a briga que haveria que enfrentar. Algo
me dizia que ali tinha dente de coelho. Não podia me furtar ao encontro.
Conversamos animadamente, até chegar a conclusão de nossa conversa,
quando me passou a informação sobre determinado imóvel que não constava
de nossa lista de vistoria, cujo proprietário era italiano. Segundo o informante
tratava-se de um latifúndio.
Voltei imediatamente ao hotel e comuniquei aos companheiros o ocorrido.
Houve uma breve discussão entre nós, alguns achavam que valia a pena conferir,
outros preferiam retornar para casa, pois já era sábado de carnaval e grande era
a saudade das crianças.
Decidimos então que uma viatura retornaria com uma equipe e a outra permaneceria até concluir a vistoria do imóvel X.
A chuva continuava firme, não dava trégua, mesmo assim o entusiasmo
daqueles que ficaram era enorme. No sábado pela manhã preparamos todo o
Memória Incra 35 anos
material necessário para a vistoria, ultimando os detalhes para que tudo corresse
a contento.
Naquele mesmo dia localizamos o oficial do Cartório de Registro de Imóveis
de João Pinheiro, obtendo uma certidão de inteiro teor, dando conta de uma
propriedade de 20.000 hectares, denominada Fruta Danta.
Em seguida, pé na estrada. Ainda naquele sábado conseguimos notificar o
gerente da propriedade, discorremos sobre o trabalho que iríamos realizar. Fomos informados que os proprietários da fazenda se encontravam em São Paulo.
Aproveitamos, já que estávamos ali e percorremos de automóvel boa parte do
imóvel, o que deu para sentir que ali estava a pérola que ainda não havíamos
encontrado. O imóvel de tão plano que era, parecia uma grande mesa, banhado
pelos rios Verde e Paracatu, além disso possuía belas veredas.
Retornamos para João Pinheiro, ansiosos para que chegasse a segunda-feira,
onde levantaríamos in loco os dados do imóvel. No domingo, ninguém é de
ferro, descansamos.
Segunda-feira pela manhã, a turma de campo partiu para o imóvel, enquanto
eu fiquei providenciando a cadeia dominial e plantas cartográficas, ao tempo
em que fazia contatos com autoridades, tais como, prefeito municipal, sindicatos patronal e dos trabalhadores rurais, igreja e a imprensa local, no sentido de
agregar forças, já que a briga era mesmo de cachorro grande.
À noite nos encontramos e fizemos uma breve avaliação do que até então
tínhamos feito. Eu mostrava todo o material que havia conseguido coletar, falei
também da objeção que havia encontrado por parte de algumas autoridades
contatadas, enquanto os colegas que foram a campo externavam suas opiniões
sobre o imóvel, no fundo, tudo era muito animador.
Terça-feira de carnaval, bem cedinho, já estávamos na Fazenda Fruta Danta,
levamos carne, pão, refrigerante, água, e barracas onde dormimos. Antes porém,
na prosa que tivemos com os empregados da fazenda, ficamos sabendo de alguns
detalhes que diziam respeito ao perfil dos proprietários do imóvel.
Os trabalhos topográfico e agronômico, foram concluídos, restava apenas
fazer o levantamento das benfeitorias, que se resumiam a uma enorme casa
sede, varias casas de empregados, galpões etc.
Na casa-sede, havia piscina, e no seu interior vários cômodos, inclusive um,
subterrâneo, que não conseguimos identificar sua serventia.
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Nead Especial 2
Na quarta-feira de Cinzas, fui a Paracatu providenciar algumas cópias heliográficas, retornando naquele mesmo dia para João Pinheiro, onde ainda
tive tempo de voltar à casa daquele senhor, para agradecer e dizer que a briga
estava comprada.
Diz o mineiro, quando joga truco, “primeira feita, Agostín na garupa.” A primeira
com certeza estava feita, era nossa parte no jogo.
Eufóricos, na quinta-feira retornamos para Belo Horizonte, para concluir o
trabalho, o que fizemos em tempo recorde.
Pouco tempo depois, o Diário Oficial da União estampava o decreto presidencial que declarava o imóvel Fruta Danta de interesse social para fins de reforma
agrária. Dali até a imissão de posse foi tudo muito rápido.
Na rotina do trabalho, já esquecido daquela passagem, eis que um belo dia
o procurador chefe me chama em sua sala, dizendo que havia uma pessoa que
queria me conhecer. Para meu espanto se tratava de uma senhora austríaca,
exatamente a ex-proprietária da Fazenda Fruta Danta, cujo primeiro nome se
não me falha a memória é Anita.
Depois do susto, a surpresa. Disse ela:
“Não estou aqui para reclamar de tudo aquilo que me aconteceu, mas, pessoalmente, venho parabenizá-los, pelo belo trabalho que fizeram. O imóvel
haveria mesmo que ser desapropriado.”
Aliviado, com o ego nas alturas, retornei a minha sala, com a exata sensação
do dever cumprido.
Hoje, o Projeto Fruta Danta é um sucesso.
Aquele estado gripal devido às chuvas que apanhei, transformou-se em
pneumonia dupla, logo curada.
Anita era mulher do mafioso Tomazo Buscheta, que fazia daquele imóvel,
refúgio seu e de seus asseclas. Chegavam ao cúmulo de mandar um avião a
João Pinheiro, apenas para comprar cigarros ou bebidas.
Aquela sala subterrânea que a princípio tanto nos intrigou,chegando a ponto
de não identificar sua serventia, era o local onde refinavam cocaína.
A reforma agrária ganhou um belo patrimônio, graças, sem falsa modéstia, à
perseverança daqueles que anonimamente fizeram sua parte. 8
O Incra na região do Alto-Purus,
Sena Madureira – Acre
Pau lo C é s a r Ra b e l lo M e n d e s d e O l i v e i r a
Apresentação
A decisão do Incra em promover o concurso Memória Incra 35 anos é altamente
louvável, no momento em que permite que resgatemos, para conhecimento
das gerações, passada, presente e futura, a história da autarquia, construída com
muito trabalho, luta, sacrifício, suor e acima de tudo, dedicação e amor pela
causa da reforma agrária.
Nesse sentido, por meio de documentos, livros, fotografias, fitas de vídeo,
DVD’s e principalmente de depoimentos dos servidores do Incra e de pessoas
que, mesmo não tendo sido servidoras, participaram direta ou indiretamente de
sua história, devemos tornar público o acervo de nossa instituição, celebrando
seus êxitos, aprendendo com seus erros, mas acima de tudo, democratizando
nossas ações, em busca de justiça social e cidadania no Brasil.
O presente trabalho é fruto da experiência vivida pelo autor nos projetos de
colonização oficial e fundiário do Incra localizados no município de Sena Madureira, Estado do Acre, região do Alto Purus, a saber,Projeto de Assentamento
Dirigido Boa Esperança e Projeto Fundiário Alto Purus.
Enquanto o trabalho ia sendo feito as lembranças foram surgindo, como se
não tivessem passado mais de vinte anos desde que saí daquele município, em
busca de outros desafios. Com as lembranças, vieram também as emoções de
momentos marcantes do início da minha vida profissional, a qual tive e tenho a
honra e o orgulho de ter começado e permanecido até hoje no Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária.
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Nead Especial 2
“E Deus criou o céu, a terra e… o Acre”
A Deus, que me deu a vida.
À minha família, sem a qual a vida não tem sentido.
Os meus sinceros agradecimentos aos amigos do Incra, em especial aos que
trabalham na Superintendência Regional do Incra no Estado do Acre e em particular aos que trabalharam e conviveram comigo em Sena Madureira.
Da mesma forma, o muito do pouco que sei em relação à colonização e
reforma agrária devo principalmente aos colegas do Incra em todo o Brasil, que
sempre me ensinaram e incentivaram nesses anos de Incra.
Este trabalho é dedicado à memória dos colegas do Incra já falecidos, em
especial a Maria Brasil Costa da Cruz e Ildeu Mendes Maia, amigos queridos que,
prematuramente, foram velar por nós junto ao Criador.
A Waldir Pamplona da Silva, professor e amigo de todas as horas.
Qualquer semelhança com acontecimentos passados ou com pessoas não
é mera coincidência e sim a realidade dos fatos, na interpretação do autor.
Unidade Avançada Alto Purus, Sena Madureira, Acre
Memória Incra 35 anos
Introdução
No início do século XX o Acre era uma região disputada por empresas estrangeiras e seus representantes, trabalhadores brasileiros, peruanos, bolivianos e
indígenas. Localizado no sudoeste da Amazônia era até então território pertencente à Bolívia.
Em 17 de novembro de 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, o
Brasil recebeu a posse definitiva da região em troca de terras de Mato Grosso, do
pagamento de dois milhões de libras esterlinas e do compromisso de construir
a estrada de ferro Madeira-Mamoré.
O Rio Purus faz parte da bacia amazônica; nasce no Peru e percorre cerca
de 3.300 quilômetros até sua foz no rio Solimões, atravessando o Acre e parte
do Amazonas.
Situada na confluência dos rios Caeté e Iaco, tributários do Purus, Sena Madureira foi fundada em terras do antigo Seringal Santa Fé, no dia 25 de setembro
de 1904, para ser a capital do Departamento do Alto Purus. Localiza-se na região
central do Acre, limitando-se ao norte com o Estado do Amazonas, ao sul com o
município de Assis Brasil, a leste com os municípios de Bujari, Rio Branco, Xapuri e
Brasiléia, a oeste com o município de Manoel Urbano e a sudoeste com o Peru.
A questão fundiária do Acre, a exemplo de outras regiões da Amazônia é
complexa, demandando ações de competência da União Federal, visto suas terras
situarem-se na faixa de fronteira do Brasil com as Repúblicas do Peru e da Bolívia,
bem como na faixa de segurança nacional fixada em legislação própria.
Seguindo as diretrizes emanadas pelos governos militares de ocupação de
vazios demográficos em áreas de faixa de fronteira e de segurança nacional, notadamente na Amazônia Legal, o Incra se fez presente no Estado do Acre desde
meados da década de 1970, com a criação e implantação da Coordenadoria
Regional Acre/Rondônia, posteriormente Coordenadoria Regional do Acre – CR14, Coordenadoria Especial da Amazônia Ocidental (CEAO), novamente CR-14) e
finalmente Superintendência Regional do Incra no Estado do Acre – SR-14- AC.
As ações de colonização oficial foram materializadas através da criação e
implantação dos Projetos de Assentamento Dirigido (PAD) Pedro Peixoto, abrangendo parte dos municípios de Rio Branco, Senador Guiomar e Plácido de Castro,
PAD Humaitá, em Porto Acre, PAD Santa Luzia, em Cruzeiro do Sul, PAD Quixadá,
em Brasiléia e Xapuri e PAD Boa Esperança, em Sena Madureira.
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As ações fundiárias foram desenvolvidas pelos Projetos Fundiários: PF Uaquiri,
com sede em Rio Branco, PF Alto Juruá, com sede em Cruzeiro do Sul e PF Alto
Purus, sediado em Sena Madureira.
Final dos anos 1970 e início da década de 1980. Em Brasiléia/AC era assassinado com três tiros Wilson de Souza Pinheiro, presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais daquele município, naquilo que viria a ser um prenúncio
da disputa por terras entre fazendeiros, seringueiros e posseiros.
Eram tempos de colonização oficial e ações fundiárias. O Incra tinha como
presidente Paulo Yokota, que havia assumido em março de 1979, sucedendo a Lourenço José Tavares Vieira da Silva, tendo ocupado a presidência até fevereiro de 1985.
No Estado do Acre a Coordenação Regional do Incra tinha passado de Assis Canuto para o general Fernando Moreno Maia, o General, como ficou conhecido.
Eram tempos de legislação reforma clara e precisa, como o Estatuto da Terra
e seu Decreto regulamentador, o 59.428/66. Eram tempos de observância da
Lei no 6.383/76, da Exposição de Motivos 77/78 e seu Anexo: Rol das Hipótese
de Convalidação. Eram tempos de execução das diretrizes contidas na Norma
Incra DFT. 1 – F/1b.
O assentamento de agricultores era regido pelos 12 programas a saber: Distribuição de terras, Organização territorial, Administração do Projeto, Assentamento,
Unidades Agrícolas, Infra-estrutura Física, Educação, Saúde e Previdência Social,
Habitação Rural, Empresa Cooperativa, Crédito e Comercialização.
Era tempo em que os dirigentes do Incra em Brasília eram referência temática
na autarquia e, apesar de não serem conhecidos pessoalmente pelos servidores
da CR-14 suas orientações o eram, através dos documentos oficiais do Incra. Exemplos: Cristiano Machado Neto e Odair Zanatta nas questões fundiárias, Cláudio
José Ribeiro e Hélio Palma de Arruda na colonização, George Willian Prescott
na cartografia, Maria Jovita Wolney Valente e Almir Laversveiler de Moraes, nos
assuntos de natureza jurídica.
PAD Boa Esperança
Criado em outubro de 1977 em áreas de seringais desapropriados por interesse
social para fins de l reforma, o PAD Esperança como ficou conhecido, localiza-se
à margem esquerda da BR-364, trecho Sena Madureira/Manoel Urbano, mais
precisamente no Km 10, após a travessia do Rio Caeté.
Memória Incra 35 anos
Sede Administrativa do PAD Boa Esperança – Sena Madureira/AC
Estruturado em quadro próprio de funcionários que chegaram a 39, entre
artífices, agentes de portaria, assistente de administração, motoristas, desenhistas,
radiotelegrafistas, técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos, funcionou administrativamente em instalações de alvenaria, em prédio localizado no centro
da cidade, cedido ao Incra pela Prelazia Acre-Purus.
Com área inicial de 292.000 hectares e com capacidade de assentamento
de 2.750 famílias, o PAD Esperança recebeu famílias de várias regiões do Brasil,
especialmente do sul do país, com ênfase para famílias de imigrantes do Estado
do Paraná.
O trabalho desenvolvido ao final da década de 1970 e início dos anos 1980
foi marcante em termos de colonização oficial.
Desde a chegada das famílias, a maioria descapitalizada e sem o mínimo
conhecimento da realidade da Amazônia Legal, o trabalho dos servidores do
Incra foi fundamental para o assentamento dessas famílias.
O cadastramento inicial dos trabalhadores, feito manualmente por meio
do IC, Identificação e Classificação de Candidato a Parceleiro, formulário usado
à época, permitia a classificação das famílias no processo de seleção; As expli-
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cações iniciais sobre o projeto e as parcelas, direitos e deveres do Incra e dos
parceleiros, a ida aos lotes, as orientações sobre a mata, seus perigos, caprichos,
regime de chuvas e secas, fauna e flora, dentre outras atribuições, tudo era feito
com dificuldades naturais em função do isolamento do projeto em relação à
sede municipal, e desta em relação à capital do Estado. Não tanto pela distância,
aproximadamente 145 quilômetros, mas principalmente pela precariedade do
principal acesso, a BR-364, asfaltada somente na década de 1990.
Mesmo com todas as dificuldades citadas, era grande a alegria, o entusiasmo
e a dedicação dos servidores do Incra e dos parceleiros, esses últimos animados
com a posse e futura propriedade de suas terras. Os lotes eram de cem hectares
em média e o Incra assentava as famílias somente após a medição e demarcação
dos mesmos.
Com recursos do crédito, as famílias assentadas adquiriam animais de tração
e de tiro, carroças, equipamentos agrícolas, adubos e financiavam a produção
de gêneros alimentícios, principalmente arroz, feijão e milho.
Somente aqueles que conviveram ou convivem com a realidade da floresta
Amazônica sabem o que é lidar com a falta ou a precariedade de estradas de
acesso, principalmente no que diz respeito às condições de tráfego, em função
das fortes chuvas que caem na região.
As estradas vicinais e os ramais construídos pelo Incra, possibilitavam certa
facilidade de trânsito no verão (período de seca), não permitiam nenhum tipo
de tráfego no inverno, já que a lama que se forma no leito das estradas impede,
de maneira cruel, trânsito de qualquer veículo automotor, mesmo aqueles com
tração, como eram os jeep e pick-up que o Incra possuía.
Aliada às condições das estradas, outra dificuldade encontrada na região e
que impactou negativamente a colonização oficial no PAD Esperança relacionase às condições de saúde, agravadas principalmente pela malária, que atingia
servidores, parceleiros e seus familiares. Nesse aspecto, a ação de servidores do
Incra em muito contribuiu para minimizar o problema, já que inúmeros parceleiros foram salvos da morte por malária devido ao pronto socorro prestado pelos
servidores do projeto, retirando-os de suas parcelas em ambulância do projeto
e encaminhando-os em tempo hábil ao Hospital de Sena Madureira e quando
necessário, aos hospitais de Rio Branco para o devido tratamento.
Os técnicos do Incra realizavam as vistorias nas parcelas, com vistas à expedição de Autorização de Ocupação e posteriormente, de título definitivo.
Memória Incra 35 anos
Ressalta-se que a área do PAD Esperança abrangia seringais nativos, também vistoriados pelos técnicos para identificação dos ocupantes e definição
das situações fundiárias encontradas. Assim, áreas localizadas às margens dos
rios Caeté, Iaco, Macauã e Igarapé Xiburema foram objeto de levantamento
feito pelos técnicos do projeto, trabalho que serviu para mapear e identificar as
famílias residentes nas mesmas.
Desde sua criação até os dias atuais, o PAD Esperança assentou 1.662 famílias,
das quais permanecem 856. Foram implantados 314 quilômetros entre estradas
vicinais e ramais, bem como 36 quilômetos de rede elétrica, 33 escolas e dois
postos de saúde. A titulação definitiva beneficiou 162 famílias.
Em que pesem todos os investimentos realizados pelo Incra no PAD Boa Esperança, a análise geral indica que, infelizmente, os objetivos inicialmente propostos
não foram alcançados. A evasão e desistência de parceleiros foi muito superior à
média de outros projetos. Inúmeras razões levaram ao fracasso, senão total, pelo
menos parcial do projeto. Dentre elas destacam-se: escolha da área (sem acesso
garantido em épocas invernosas), seleção de candidatos, muitos dos quais sem
nenhuma experiência em manejo da floresta amazônica, capacidade de uso dos
solos, modelo de assentamento inadequado e fora da realidade da floresta, parcelas demarcadas sem respeito aos divisores de água, paternalismo exacerbado do
Incra, falta de integração com as instituições públicas estaduais e municipais, etc.
Imigrantes paraenses chegados em Sena Madureira em 1982, para assentamento
no PAD Boa Esperança. Observa-se o quantitativo de crianças e adolescentes.
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A inauguração da sede administrativa do PAD Boa Esperança
Apesar de funcionar em prédio cedido pela Prelazia Acre-Purus, a CR-14 entendeu que o PAD Esperança tinha de ter sua sede própria, dentro de sua área de
jurisdição. Para tanto, foi escolhido para receber a sede o Km 16 da BR-364, no
sentido de Manoel Urbano, local que ficou conhecido como Dezesseis.
Mesmo com opiniões contrárias à construção da sede e mudança dos servidores para a mesma, face às inúmeras dificuldades, dentre as quais o acesso precário,
a falta de energia elétrica e de água potável, foi feita a licitação e construídos os
prédios, a saber: sede da Executoria, do Grupamento Técnico, incluindo o Grupo
de Identificação (GT-1) e de Demarcação (GT-2), Grupamento de Pessoal (GP) e
Grupamento Administrtivo (GA), além de escola, posto de saúde, garagem e
alojamento para os servidores.
Marcada para setembro de 1982 a inauguração contou com a presença do
Coordenador Regional, general Fernando Moreno Maia. A solenidade contaria
ainda com a presença do Senador pelo Acre Jorge Kalume, então candidato
a governador do Estado nas primeiras eleições diretas a serem realizadas no
Brasil após anos.
Tudo preparado, os convidados chegaram de avião monomotor a Sena Madureira no início da manhã da festa. Sabendo das chuvas que caem na região
nessa época, o Executor do Projeto colocou três carros à disposição da comitiva
após o Rio Caeté, já que sua ponte fica coberta logo após as primeiras chuvas,
impossibilitando a passagem de veículos de um lado para outro do rio.
O percurso até o Rio Caeté, de dez quilômetros aproximadamente, foi difícil,
dadas as condições da BR. Chegando ao rio, a travessia foi feita em canoas, já
que a ponte estava coberta. A partir daí, só vendo para acreditar! Foi chegar ao
outro lado do Caeté que as comportas do céu foram abertas e despejaram um
volume inimaginável de água, como há tempos não se via.
Mesmo com jeep e pick-up, foi impossível fazer de carro o percurso dos seis
quilômetros restantes até a sede a ser inaugurada. A cada cinqüenta metros o
motorista e demais passageiros eram obrigados a descer e tirar com as mãos a
lama que se acumulava em baixo dos veículos. Na região se diz que em estradas
desse tipo não passa nem “jaboti acorrentado.” Até o general Moreno Maia entrou
nessa rotina. Por fim, desistiram dos veículos e terminaram o restante da viagem
a pé, descalços, que é a única maneira de se andar naquela lama.
Memória Incra 35 anos
Ao chegar ao projeto, após hora e meia de caminhada, sujos, exaustos e
enlameados, os convidados foram se lavar e deram início à inauguração propriamente dita. Cantou-se o Hino Nacional, hastearam-se as bandeiras do Brasil, do
Acre e de Sena Madureira, fizeram-se os discursos de praxe e confraternizaram
com os parceleiros e seus familiares, que estavam aguardando os convivas, com
um churrasco preparado por eles.
Na ocasião, o general chamou o executor do Projeto e lhe disse: – Não se
preocupe com o que aconteceu, pois isso é normal em função da estrada, principalmente quando chove assim. Foi bom que tivesse acontecido na presença
do senador Jorge Kalume, pois como ele vai ser o próximo governador do Acre,
ele certamente dará um jeito para asfaltar esse trecho da BR, já que viu pessoalmente como é difícil trafegar nessas condições.
Passada a inauguração os convidados retornaram a Rio Branco (de avião)
no dia seguinte.
No outro dia, o Executor do Projeto foi chamado à sala de rádio do PAD
Esperança e comunicado que estava exonerado de sua função.
E a eleição para governador do Acre? O Senador Jorge Kalume foi derrotado
pelo candidato do PMDB, Nabor Júnior.
E a sede administrativa do Dezesseis? Funcionou por um pequeno período.
Encontra-se em estado de abandono pela falta de condições de trabalho e
de moradia, continua sem água potável, energia elétrica e sem condições de
acesso permanente.
O Projeto Fundiário Alto Purus
O Projeto Fundiário Alto Purus, atualmente Unidade Avançada Alto Purus foi
criado em setembro de 1975 e iniciou efetivamente seus trabalhos em março
de 1976. Com área de jurisdição de aproximadamente 7.000.000,00 de hectares,
abrangia os municípios de Sena Madureira, Manoel Urbano, Santa Rosa do Purus,
Xapuri (parte) Assis Brasil e Feijó.
Com sede administrativa e quadro próprio de servidores, que chegou a
contar com 77 funcionários, entre artífices, agentes de portaria, assistentes de
administração, motoristas, barqueiros, topógrafos, desenhistas, engenheiros
agrônomos, agrimensores, advogados, dentre outros. Suas ações modificaram
a realidade fundiária da região do Alto Purus, beneficiando inúmeras famílias
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de seringueiros, ribeirinhos, indígenas, bem como de seringalistas, fazendeiros,
posseiros, arrendatários e meeiros.
Com base na Lei no 6.383/76 e na Exposição de Motivos No77/78, o Incra
promoveu ações discriminatórias em 16 glebas, com aproximadamente dois
milhões e trezentos mil hectares, arrecadando e matriculando em nome da
União Federal cerca de novecentos mil hectares.
As glebas discriminadas levavam o nome dos seus principais seringais ou dos
cursos d’água que possuíam, sendo pela ordem de discriminação as seguintes:
Repouso, Forquilha, Livre-nos-Deus, Quatipuary, Barcelona, São Braz, Palmares, Mercês, Fronteira, Porongaba, Nova Olinda, Kaxinauá, Caeté, Feijó, Guanabara e Envira.
A grande importância da atuação do PFAP na região do Purus está em ter
conseguido evitar a concentração de grandes áreas em mãos de latifundiários,
bem como ter reconhecido o direito à legitimação de posse e de regularização
fundiária para centenas de famílias de agricultores, seringueiros e ribeirinhos. Sobre
os seringueiros, é destaque o fato de que muitas famílias conseguiram, pela ação
do Incra, sair da situação de quase escravidão em que viviam, sendo exploradas
por seringalistas na compra da sua produção de borracha, por preços irrisórios, ou
venda de gêneros de primeira necessidade a preços altíssimos. Antes da atuação
do Incra, muitos seringueiros eram obrigados a vender a borracha e comprar o
necessário somente no barracão do “dono” do seringal em que trabalhavam. Após
a ação discriminatória, foram reconhecidos os domínios por ocupação, modalidade prevista no Rol das Hipóteses de Convalidação, anexo à citada EM 77/78.
Ao longo de sua história, o PFAP expediu 925 Títulos Definitivos e promoveu
a desapropriação por interesse social de 336.024 hectares. Atualmente estão sob
jurisdição da UAAP os seguintes projetos de assentamento: PAR Mário Lobão, PA
Favo de Mel, PC Boa Esperança, PA Joaquim de Matos, PAE Riozinho, PAF Providência Capital e PA Uirapuru, todos localizados em Sena Madureira, PA Nazaré
e PA Liberdade, localizados no município de Manoel Urbano e PA Santa Rosa,
localizado no município de Santa Rosa do Purus.
Trabalhos do Incra: Sessão nostalgia, ou, você se lembra?
Trabalhos digitados em computador de última geração? Nada disso. Trabalhos
datilografados em máquinas de datilografia manual, Remington ou Olivetti com
uso de papel carbono para cópia e uso de borracha ou Radex para correção de
Memória Incra 35 anos
letras erradas. As máquinas de datilografia elétricas não tinham ainda chegado
em Sena no final dos anos 1970. Máquina de calcular Facit, manual, com alavanca
do lado, que tínhamos de abaixar depois de cada operação desejada.
Copiadoras e scaners de última geração? Ah! Ah! Ah! Usávamos mimeógrafos e
estêncil a álcool para reproduzir documentos, que ficavam cheirando a cachaça.
Imagens de satélite de alta resolução? Negativo. Quando muito, algumas
fotografias aéreas, interpretadas com o uso de estereoscópio.
Base de dados em meio digital? Negativo de novo. A base utilizada eram as
Cartas do Projeto Radambrasil escala 1:100.000 e Cartas DSG, escala 1:250.000.
Definição de coordenadas por meio de GPS? Tá brincando? Utilizavam-se
os teodolitos Wild T1 e Wild T2, com as anotações em cadernetas de campo e
os cálculos de área e perímetro sendo feitos no projeto, manualmente. As primeiras máquinas HP, a cartão, somente foram disponibilizadas para os técnicos
do projeto em 1984.
Plantas e memoriais descritivos em Plotter? Os desenhistas usavam pranchas,
Régua T e normógrafo para confeccionar as plantas, feitas artesanalmente com
tinta nanquim, em papel vegetal.
Fotos digitais em máquinas de 5.5 megapixels? Quando muito, fotos tiradas
em máquinas manuais, com filmes de celulóide, reveladas em Rio Branco, após
semanas.
Transmissão de dados, fotos e imagens via on line? Nem pensar! O que funcionava era o bom e velho malote do Incra, que chegava semanalmente aos projetos
ou, quinzenalmente, em épocas de chuvas intensas, que interrompiam o tráfego
na BR 364 e prejudicavam as viagens aéreas do Asa dura ou Cai-cai, como eram
apelidados os aviões monomotores, que faziam a linha Sena/Rio Branco/Sena.
Navegação pela Internet? As únicas navegações que fazíamos eram pelos
rios Purus, Iaco, Caeté, Macauã e Igarapé Xiburema, em batelões do Incra, nas
épocas de cheia e em canoas com motor de rabeta, apelidadas de “Desintera
família” em época de seca dos rios.
Trabalhos de campo eram perigosos e fascinantes ao mesmo tempo. Talvez
até fascinantes pelo perigo que os envolvia.
Para os serviços de medição e demarcação de áreas em seringais era montada
uma verdadeira operação de guerra. Definida a área a ser trabalhada, escolhia-se
a equipe, sempre coordenada pelo agrimensor ou topógrafo e composta por
picadeiros, cozinheiros, barqueiros e demais ajudantes.
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Escolhida a equipe, fazia-se o “rancho,” adquirido no comércio da cidade,
rateado por todos e composto obrigatoriamente por charque, feijão, óleo, sal,
açúcar, café, além de querosene, fósforos, velas e remédios para primeiros socorros, como algodão, gaze, mercúrio cromo, esparadrapo e comprimidos para
febre, gripe, diarréia, dores de cabeça e o “Específico Dr. Pessoa”, medicamento
antiofídico de grande valia para a região. Sempre eram levadas também algumas
garrafas da “mardita, ou seja, daquela que matou o guarda”, para aquecer os
corpos cansados ao final do dia, após o banho nos igarapés.
As viagens aos locais de medição e demarcação eram feitas em embarcações, até a sede do seringal a ser trabalhado. Dependendo do local escolhido,
duravam de dois a cinco dias de subida de rio. A partir da sede do seringal, o
percurso era feito a pé.
Cada servidor levava a sua mochila, contendo os itens indispensáveis: muda
de roupa com calça comprida, camisa de manga comprida, meião de futebol,
cuecas, calções, cobertas, além de lanterna, pilhas, velas e fósforos, rede de
dormir e mosquiteiro.
A rotina desses servidores na floresta, apesar dos encantos desta, não era fácil.
Primeiro, abrir as picadas no meio da mata, convivendo com todo tipo de inseto,
ferradores ou não. Todos eles incomodavam de uma forma ou outra. Muitas vezes,
as picadas eram abertas em vegetação de tabocal, densa e cheia de espinhos.
Para atravessar tal vegetação, os servidores rastejavam, recebendo os espinhos
nas roupas e no corpo, notadamente na cabeça e braços. Era de dar dó!
Outra dificuldade diz respeito à presença de inúmeros cursos d’água a serem
medidos e demarcados ou mesmo atravessados, cujo grau de dificuldade é
marcante, tanto para o técnico que fazia as medições, quanto para os balizeiros,
que não tinham posicionamento adequado para fixar as referidas balizas. Gastava-se um bocado de tempo para conclusão de tais medições. Difícil também
era atravessar os igarapés com água na altura do peito, tendo que proteger os
papéis e, principalmente os aparelhos de medição.
Os varadouros de seringal e as estradas de seringa, em épocas de chuvas
apresentam-se em estado lastimável de tráfego, face à lama podre que se forma
em seu leito, em decorrência da decomposição de plantas, frutos e flores e de
animais mortos.
Entretanto, nada incomoda mais na floresta do que os insetos. De todo tipo,
hematófagos ou não, desde piuns, muriçocas ou carapanãs, maruim, borrachudos,
Memória Incra 35 anos
mutucas, abelhas, marimbondos ou cabas, como são chamados naquela região,
além das temíveis tocandiras ou tucandeiras (formigas de fogo), cujas ferroadas
davam febres e dores terríveis. Andando ou parado, nenhum ser vivo de sangue
quente fica impune a essas criaturas que, atraídas pelo suor e necessitando de
sangue em alguns casos, em verdadeiras “esquadrilhas” de ataque, podem deixar
o cidadão em puro estado de desespero. Há também os animais perigosos e/ou
peçonhentos, desde as onças e queixadas, passando por aranhas, sem falar nas
cobras e lagartos (sem trocadilho).
Quem já trabalhou na floresta sabe do que estamos falando.
Da mesma forma, os trabalhos de vistoria feitos pelos técnicos para ações de
discriminatória, regularização fundiária, legitimação de posse, identificação de
ocupantes etc também seguiam a mesma rotina acima, somente com a diferença
que eram realizados quase sempre em duplas, com percursos entre as áreas a
serem vistoriadas sendo feitos a pé, seguindo os varadouros de seringal ou as
estradas de seringa. As distâncias não eram medidas em metros ou quilômetros
e sim em minutos ou horas. Assim, quando perguntado ao seringueiro qual a
distância até a colocação mais próxima, a resposta poderia ser: daqui a trinta
minutos, uma hora, seis horas ou mesmo dez horas, que eram percorridas pelos
técnicos com as mochilas penduradas às costas, sempre iniciando os trabalhos
às 5h da manhã (no máximo) após o “quebra- jejum”, oferecidopelos seringueiros
e ribeirinhos. Tal desjejum era constituído de farinha, ovos, carne de caça, quando tinha, feijão e arroz. Destaca-se que pelo menos que se saiba, nunca faltou
pousada para técnicos do Incra, da Sucam, hoje Funasa, do IBDF e da Sudhevea,
atualmente Ibama, nas casas dos seringueiros. Era chegar, se identificar e lá
vinha o dono oferecer dormida, comida, prosa e informações necessárias, tanto
para a vistoria quanto para orientações relativas ao seringal e seus ocupantes.
Atávamos as redes na “paxiúba” e, no mais tardar às 6h da tarde, já caíamos no
sono, exaustos pelo dia de caminhada e vistorias.
“Causos,” curiosidades ou acredite se quiser
Chico Mal-estar
Chico era vigia noturno no PFAP. Gente boa, complementava o seu salário fornecendo marmitas e refeições em sua casa para servidores do Incra. Tinha porém
uma particularidade: toda vez que alguém o cumprimentava, mesmo estando
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com boa saúde, respondia invariavelmente: rapaz, estou com um mal-estar! Era
sempre a mesma coisa, quando perguntado: e aí Seu Chico, como vai? – Rapaz,
estou com um mal-estar.
Um dia, a turma resolveu conferir de perto se o mal-estar era verdadeiro ou
falso. Esconderam-se atrás dos muros do projeto e ficaram aguardando Chico.
Lá vinha ele, todo faceiro, alegre e satisfeito pela rua, assoviando e cantando.
Quando passou pela turma, todos apareceram de uma vez e soltaram a pergunta
infalível: – E aí seu Chico, como vai?
Pilhado em sua alegria, ele não perdeu a pose e soltou essa: -Rapaz, eu até
que tô bem, mas a mulher tá com um mal-estar!
Não teve jeito! Daí para a frente ficou conhecido como Seu Chico Mal-estar.
Outra do Chico Mal-estar: De outra feita ele foi reclamar com o executor do
Projeto: Dr. Raimundo João, o Senhor precisa dar um jeito no GA (grupamento
Administrativo). Eles precisam comprar Detefon e detefonar essa portaria, pois
de noite os carapanãs não deixam a gente dormir!!!
Sebastião Preto
Sebastião Preto era um agricultor que teve suas terras desapropriadas para a
criação do PAD Esperança. Nunca se conformou com isso e não somente não
desocupou suas terras, como se recusou a receber indenização pelas mesmas,
tendo ainda reservado para si e para os seus filhos oito lotes, ao longo do Km
38 da BR-364.
Um dia, um engenheiro agrônomo e um técnico agrícola do PAD recém
chegados em Sena Madureira foram fazer uma vistoria em sua parcela. Foram
bem recebidos pelo Sebastião, que estava na tarefa de bater milho, em um jirau.
Ao som das porretadas que dava para debulhar o milho, a conversa ia fluindo:
– Então vocês são de Brasília é? E tome porrada no milho! Eu quero pegar algumas
pessoas de Brasília, para aprenderem a não tomar as terras de um homem. E
tome porrada no milho! Mas não precisam se preocupar não, que eu não quero
nada com vocês, arraia miúda, doutorzinhos de merda. E tome mais porrada no
milho! Eu quero pegar e dar umas pauladas iguais a essas (e tome porrada mais
forte no milho) é aquele japonesinho Filho da p….e aquele tal de Figueiredo,
para eles aprenderem a lidar com macho!!! E tome porrada! O agrônomo e o
técnico agrícola nunca acharam tão bom não serem Paulo Yokota nem João
Batista Figueiredo.
Memória Incra 35 anos
João Grande
Em 1989 o Incra foi invadido por parceleiros que reivindicavam crédito, assistência
técnica e outros benefícios. Invasão com depredação do patrimônio do Projeto e
servidores feitos reféns. Chamada a desocupar o prédio, a Polícia Militar de Sena,
inexperiente em tais tarefas foi incapaz de desalojar os invasores e libertar os
reféns. Chamou-se então a Polícia Federal, que veio de Rio Branco para tomar as
providências e cumprir a reintegração de posse decretada pela justiça.
Os parceleiros, já alterados, gritavam: pode vir a “Fedorenta” (assim eles chamavam a Polícia Federal). Daqui nós não arredamos pé.
Ao chegar a PF, com experiência em tais assuntos, invadiu o prédio, soltou
os reféns e ordenou que todos os invasores ficassem deitados, sem se mover.
Como alguns ainda relutassem, a PF disparou uma rajada de metralhadora para
o alto, providência que surtiu efeito imediato, já que todos ficaram imóveis
no chão.
João Grande era um parceleiro que participou da invasão. Ao ver chegar a
Fedorenta, correu e se escondeu no mato que havia perto do projeto.
Ao escutar os tiros, saiu correndo e viu todos no chão, imóveis e em silêncio.
Ao passar por uma pessoa ouviu a pergunta: o que houve? Olha rapaz, foi a resposta, acho que a “Fedorenta” matou todo mundo, só escapou eu! E continuou
correndo até não agüentar mais…
Serviço de recados prestado pela Rádio Difusora
e pela Rádio Nacional da Amazônia
João Ferreira, colocação Dois Irmãos, Seringal Bom Retiro, para José Ferreira,
em Sena Madureira. “Aviso que Tião caiu da trepeça e quebrou a perna em dois
lugares, mas tá tudo bem. Mande numerário”
Severino do Ó, colocação Bom Jesus, Seringal Barcelona, para Maria do Ó, em
Manoel Urbano: “Aviso que Candinho foi ofendido de Pico de Jaca e tá precisando
seguir para hospital em Sena. Mande numerário!
Altamirando Siqueira, da colocação Riozinho, Seringal São Pedro do Icó para
João Brás, Colocação Espraiado, Seringal Boca do Macauã: Aviso que descerei o
Iaco dia 30 de setembro para recebimento de conta junto ao compadre!
Parceleiro chegando na sede do Boa Esperança
Quero falar com a Dona MaIncra. (placa na entrada do Projeto: MA – Incra)
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Nead Especial 2
Placa afixada na entrada de um ramal construído pelo Incra no PAD Esperança
É proibido entrar neste ramal estando molhado
Diálogo no avião
Retornava de suas férias em Belo Horizonte para o Acre o saudoso advogado do
PFAP Ildeu Mendes Maia. Ao seu lado sentou-se uma colega que, ao perceber que
o avião enfrentava uma turbulência começou a passar mal, suando frio. Solícita,
a aeromoça perguntou: A senhora está sentindo falta de ar?
O Ildeu de imediato disparou: Não comissária, ela está sentindo é falta de
terra mesmo!!!
O Boca de Ferro
A Rádio Difusora de Sena Madureira tinha um serviço de alto-falante, daqueles
de ferro, que ficavam instalados em um poste na Praça 25 de Setembro, no centro da cidade. Servia para transmitir notícias, recados diversos, ofertar músicas,
oferecer produtos para compra e venda, enfim, era “pau para toda obra”. O mais
interessante nos serviços prestados era que, de segunda a sexta, invariavelmente
as cinco da tarde, devido ao fuso horário, a terra tremia com os acordes da ópera
O Guarani, de Carlos Gomes e o cidadão, querendo ou não querendo escutava
em alto e bom som A voz do Brasil. Ficávamos tão acostumados que sábado e
domingo sentíamos falta do Boca de Ferro berrando as notícias do governo e
do Congresso Nacional.
Aniversário do Incra
O general Moreno Maia era um patriota. Pela sua formação militar e pelo seu
caráter ele não abria mão de observar, respeitar e celebrar as datas cívicas,
notadamente aquelas que diziam respeito ao Incra. Assim, não poderia deixar
de comemorar o aniversário de nossa casa. Todo ano, durante o tempo em que
esteve à frente da CR-14 ele convidava, conclamava ou mesmo convocava todos
os servidores do Incra no Acre a participar das comemorações do aniversário
da autarquia. Durante uma semana, as delegações dos projetos compareciam
à sede da Coordenadoria e participavam ativamente da programação, que
incluía apresentações de trabalhos executados pelos projetos, resultados
obtidos, discussão das dificuldades encontradas e formas de superá-las, bem
Memória Incra 35 anos
como extensa programação cultural, artística e esportiva, além dos churrascos
e das festas.
Era uma confraternização só. Todos os projetos de colonização e fundiário,
até aqueles sediados em Cruzeiro do Sul, que não possuíam acesso a Rio Branco
via terrestre compareciam, em delegações vindas de avião.
Gincanas culturais, torneios de vôlei, masculino e feminino, futebol de salão
e soçaite, dominó, natação e atletismo faziam parte das competições esportivas,
das quais a delegação de Sena sempre faturava pelo menos os títulos de futebol.
De noite, o forró corria animado.
Éramos uma só família!
O Incra e a cidadania
A presença do Incra em Sena Madureira e municípios vizinhos se fez sentir desde
sua chegada àquela região, em meados dos anos 1970.
Ações de cunho social voltadas à cidadania e desenvolvidas pelos servidores do
Incra em parceria com instituições federais e do Estado do Acre foram marcantes,
tais como as operações documento, mediante as quais dezenas de famílias obtiveram pela primeira vez documentos pessoais, como carteira de identidade, título
de eleitor, certidão de nascimento e CPF. Assim, servidores do Incra percorriam os
seringais, as estradas vicinais e ramais do projeto, munidos de formulários próprios
para cada tipo de documento a ser obtido, fotografavam os beneficiários, recolhiam suas assinaturas e retornavam posteriormente com os documentos prontos.
Saudação alusiva ao centenário de Sena Madureira, celebrado
em 25/09/04, pintada nos muros da UAAP
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Nead Especial 2
Da mesma forma, o Incra participou ativamente das campanhas de vacinação,
cedendo servidores, viaturas, embarcações e instalações para a vacinação da
população, tanto da cidade quanto das mais longínquas localidades.
Muitos servidores complementam seu salário dando aulas para os ensinos
médio e fundamental das escolas públicas de Sena Madureira.
Assincra de Sena Madureira
Seguindo os ideais de “mente sã em corpo são”, os servidores do Incra fundaram
a Associação dos Servidores do Incra em Sena Madureira – AsssIncra, entidade
voltada para atividades sociocultural e esportivas. Desde sua criação até os dias
atuais a AssIncra/Sena participa ativamente da vida do município.
Puxada pelas atividades esportivas, principalmente futebol, a associação
sempre se destacou nos eventos do município e do Estado, tendo se sagrado
pentacampeã de futebol de campo dos campeonatos disputados em Sena, na
década de 1980.
Com sede própria construída pelos servidores em regime de mutirão, primeiro,
em forma de “Chapéu de Palha”, depois em alvenaria, a AssIncra promoveu bailes
e festas inesquecíveis, tanto nas comemorações das datas cívicas, quanto nas
vitórias alcançadas no futebol pelo seu magnífico escrete.
Eram memoráveis as tardes de domingo quando havia partidas de futebol
pelo campeonato de Sena. Os servidores do Incra, principalmente as mulheres,
acompanhados de seus parentes e amigos faziam a festa na torcida organizada,
incentivando o time sem parar, até a vitória final. Atletas como Louzada, Zequinha,
Manoelzinho, Assis Lima, Plínio, Raimundo Vera, Dotô, Júlio Cezar, Côta, Edílson,
PJ, dentre outros e, principalmente Jamil, elevaram o nome da AssIncra aos mais
altos degraus da glória esportiva de Sena Madureira.
Diversos romances tiveram seu início nas festas da AssIncra, embaladas pelo
som do conjunto A chave do futuro – Os cinco valores da terra, liderados pelo
servidor do PFAP e músico de sete instrumentos, Assis Dantas.
Além dos esportes e das festas, a AssIncra também desenvolveu atividades
de horta comunitária, com a produção de hortaliças sem agrotóxicos, para distribuição entre servidores, seus familiares e pessoas carentes da região.
Memória Incra 35 anos
Depoimentos sobre a ação da autarquia na região do Alto Purus
Plínio Derze Craveiro, 53 anos, natural de Tarauacá/AC, assistente de Administração
do Incra desde 1975 e atual Chefe da UAAP: “O Incra ajudou a alavancar o desenvolvimento da região, com a vinda de famílias de outros estados. O Incra é um
dos órgãos que mais investe em infra-estrutura, principalmente em estradas e
ramais.” Momento marcante: “Se não me falha a memória, quando cumprimos
nossa meta, em 79/80, a comemoração, em frente ao projeto, com direito a
queima de fogos.”
Ena Maria Sá da Silva, 48 anos, casada com Louzada (motorista do Incra), natural de Sena Madureira/AC, no Incra desde 1976. “O Incra é importante, tanto na
vida social da cidade, quanto para os parceleiros e a população de baixa renda. O
Incra permite condições para as famílias se estruturarem. Dá a terra, crédito, infraestrutura, habitação, etc. Criou vários projetos na região, gerando empregos para
a cidade”. Momento marcante: ter conhecido seu marido no Incra e formado sua
família ao longo desses anos, vivendo felizes até hoje. Momento triste: invasão
do prédio do Incra em 1989, com depredação das instalações.
Sebastião Louzada da Silva, motorista do Incra, 52 anos, natural de Rio Branco/
AC, no Incra desde 1977, casado com Ena Maria. “O Incra contribuiu para a sociedade, a exemplo da “Operação Documento”, pela qual o parceleiro tinha acesso
a todos os documentos possíveis, inclusive certidão de casamento, tudo sob a
coordenação do General Moreno Maia”. Também propiciou melhores condições
de vida para muitas famílias, parceleiros ou não. Grande poder de realização em
obras de infra-estrutura, como estradas, escolas e postos de saúde, bem como
ações de combate à malária e febre amarela”. Naquele tempo (fim dos anos 1970
e começo dos anos 1980), o Incra dispunha de recursos e o servidor, apesar de
não poder falar o que queria, era respeitado, tinha valor, era reconhecido. Hoje,
apesar de poder falar o que quer, o servidor não tem mais direitos, não é mais
respeitado. Nem na justiça se pode confiar, a exemplo dos planos Collor e Bresser”. Momento marcante: quando foi buscar de jeep a mulher de um parceleiro,
que estava prestes a dar à luz. Foi na estrada para o Dezesseis e como não deu
tempo de chegar ao hospital, eu e o marido tivemos que fazer o parto, dentro
da viatura. Graças a Deus deu tudo certo e a criança sobreviveu.
Ulisses D’Avila Modesto, Advogado, 56 anos, natural de Sena Madureira, duas
vezes prefeito de Sena, duas vezes deputado estadual e secretário estadual de
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Nead Especial 2
Apoio aos Municípios. “O Incra é importante para a região dada a necessidade da
presença de uma instituição federal para atuar nas questões fundiárias. Houve um
êxodo de pessoas para a região, atraídas por um novo Eldorado. Essas pessoas
chegavam sem nenhuma estrutura. As condições eram totalmente diferentes
entre as regiões de origem dos imigrantes (sulistas) e a região amazônica. O
projeto dos militares para a região era baseado em promessas mirabolantes,
a exemplo da Transamazônica. A maneira como foram assentadas as famílias
apresentou deficiências estruturais e conjunturais, merecendo mudanças em sua
metodologia. Mesmo com todos os investimentos feitos pelo Incra, não houve
um impacto significativo na economia da região, com a chegada dos imigrantes.
Aspecto positivo: cinqüenta por cento dos assentados permaneceram e produzem alimentos para o seu sustento. De negativo, os cinqüenta por cento que não
permaneceram pelas razões acima. Não houve desenvolvimento na área rural.
José Bezerra Marreiro (Dotô), 52 anos, motorista, no Incra desde 1978, natural
de Sena Madureira, casado, três filhos e seis netos. “O Incra ajudou a fazer Sena
Madureira. Para mim é tudo, é a minha família. Basta comparar Sena em 1978
e hoje, para se ver a diferença. Fato marcante: a ajuda de dois colegas do Incra,
Antonio Carlos Cota e Luiz Barros nos estudos para o 2o Grau, principalmente
em matemática. De negativo: a paralisação das atividades esportivas da AssIncra.
Naquele tempo havia mais união entre os servidores.”
José Maria Alves da Silva (Jota Alves), 38 anos, natural de Sena Madureira, jornalista e radialista em Sena, dois mandatos de vereador, incluindo a presidência
da Câmara. “O Incra mudou o desenvolvimento da agricultura, incentivou o
plantio de gêneros alimentícios, aumentou a produção agrícola, garantiu a
permanência do produtor na região. Muitos parceleiros se transformaram em
fazendeiros, a exemplo de Jair Alves, filho de Revenor, também parceleiro. O
Incra precisa titular os parceleiros.”
Edílson Vieira Diniz, 45 anos, natural de Sena, técnico agrícola, no Incra desde
1982. “O Incra através de suas atividades vem beneficiando famílias em vários aspectos, econômico, social, trazendo bem-estar para os assentados e suas famílias.”
Momento marcante: sua transferência inesperada para a Unidade Fundiária de
Feijó/AC, em janeiro de 1983, ficando dois anos e quatro meses, tendo sido ruim
no início e mais proveitoso depois pelo lado profissional. Positivo: atualmente
o Incra vem resgatando suas origens, principalmente a UAAP. Hoje o parceleiro
tem o Incra novamente como sua casa.
Memória Incra 35 anos
Vicente Freire Neto, 59 anos, advogado e formado em comunicação social, natural de Aurora/CE, técnico em Comunicação Social do Incra, no qual está desde
1967 (Ibra). Trabalhou no PIC Alexandre Gusmão e participou da implantação da
Coordenadoria Regional do Acre/Rondônia em 1975 sob a coordenação de Assis
Canuto e Bernardes Martins Lindoso. “No início da década de setenta, foi criado
um projeto fundiário para todo o Estado do Acre, o que foi um equívoco, já que
era muita coisa para um só projeto. Posteriormente foram criados os três PF, a
saber: Uaquiri, Alto Purus e Alto Juruá. O trabalho iniciado pelos três projetos
não foi concluído em parte, no que concerne à dominialidade dos imóveis, a
exemplo do Seringal Mercês, até hoje objeto de indefinição em seu domínio. As
áreas indefinidas teriam que ter sido remetidas para a esfera judicial, o que não
foi feito. Em relação ao PAD Boa Esperança, não se pode considerar um sucesso,
por várias razões, dentre as quais destacam-se: área imprópria, sem acesso, não
houve estudos de solo e viabilidade técnica para os assentamentos, não se buscou
sustentabilidade. Outros assentamentos também foram implantados longe das
rodovias. Não há uma política agrícola e de qualificação, o que possibilita a “pecuarização” das áreas e reconcentração fundiária”. Um momento marcante desses
anos de Incra foi quando era chefe de pessoal e foi escalado pelo General para
organizar um desfile de parceleiros do Boa Esperança no dia 7 de setembro de
1979 ou 1980. “Eu e o executor do Projeto saímos ao longo da BR-364 recolhendo
alimentos (feijão, arroz, milho e macacheira), além de galinhas, patos e porcos
para o almoço dos desfilantes e seus familiares, após o desfile, que aconteceu
na avenida Avelino Chaves, via principal de Sena Madureira. O desfile foi um sucesso, assim como minha emoção, pois até hoje não esqueci aquela manhã.” Siglas
Ceao – Coordenadoria Especial da Amazônia Ocidental
CR –Coordenadoria Regional
IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IC –Identificação e Classificação de Candidato a Parceleiro
MA – Ministério da Agricultura
PA – Projeto de Assentamento
Sudhevea – Superintendência de Desenvolvimento da Borracha
PAD – Projeto de Assentamento Dirigido
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PAE – Projeto Agroextrativista
PAF – Projeto de Assentamento Florestal
PAR – Projeto de Assentamento Rápido
PC – Projeto de Colonização
PFAP – Projeto Fundiário Alto Purus
Glossário
Colocação: Casa, geralmente sobre palafitas, do seringueiro amazônico.
Estereoscópio: Instrumento binocular, com aumento não muito grande e profundidade de foco relativamente elevada, e que permite observações microscópicas
de objetos em relevo.
Igarapé: Rio pequeno que tem as mesmas características dos grandes e que é
geralmente navegável; os maiores denominam-se igarapés-açus e os menores,
igarapés-mirins.
Mimeógrafo: Aparelho para tirar cópias de páginas escritas sobre papel especial,
o estêncil.
Normógrafo: Aparelho de desenho, que consta de lâminas de celulóide com
alfabetos vazados ou recortados e que servem de moldes para a elaboração (por
meio de penas especiais) de legendas e letreiros
Numerário: Respeitante a dinheiro, moeda; dinheiro efetivo
Parceleiro: Beneficiário de uma parcela de terra.
Paxiúba: Do tupi.Palmeira (Iriartea exorriza) habitante dos igapós, e que mede
entre 10 e 15 metros de altura. O estipe é sustentado por um pedestal de raízes
aéreas tão ásperas e duras que servem de ralo, e a madeira é escura e fibrosa.
Seringal: Quantidade mais ou menos considerável de seringueiras dispostas
proximamente entre si.
Seringalista: Dono de seringal.
Seringueira: Árvore da família das euforbiáceas (Hevea brasiliensis), de folhas
compostas, flores pequeninas, reunidas em amplas panículas, fruto que é uma
grande cápsula com sementes ricas em óleo, e madeira branca e leve, de cujo
látex se fabrica a borracha; árvore-da-borracha.
Seringueiro: Indivíduo que se dedica à extração do látex da seringueira e com
ele prepara a borracha
Memória Incra 35 anos
Varadouro: Canal aberto com rapidez, e que permite a passagem de um rio para
outro em curtíssimo tempo, a fim de se evitarem os acidentes do curso; varação.
Caminho aberto na mata e que vai ter ao centro, ou vice-versa.
Referências
C a l i x to , Valdir de Oliveira. Plácido de Castro e a construção da ordem no Aquiri:
contribuição à história das idéias políticas. Rio Branco: FEM, 2003. 260p.
Coletânea: legislação reforma, legislação de registros públicos, jurisprudência.
Elaboração de Maria Jovita Wolney Valente, 1983. 784 p
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O projeto Zé
Juquira e o Incra
Ca r lo s A l b e r to S c h wa r z
Apresentação
Os relatos que farei nesta documentação, referem-se a experiências, fatos e acontecimentos ocorridos durante os trabalhos que realizo no Incra, que considero
importantes e podem contribuir para enriquecer a documentação histórica da
instituição. Os fatos aqui relatados -eu estava presente – muitos dos quais guardo
bem vivos na minha memória me fizeram ter outra postura como servidor e
como ser humano. Posso afirmar que aprendi muito no campo, especialmente
sobre a fé e a esperança dos agricultores.
Projeto Zé Juquira
Relatar sobre o Projeto Zé Juquira é como contar a história de um filho. Tudo
foi ocorrendo naturalmente, do nascimento até os dias de hoje, cuja finalidade
principal é levar informações aos agricultores sobre a reforma agrária, meio
ambiente, previdência social, Imposto Territorial Rural (ITR), associativismo,
escola e saúde.
As palestras que somam hoje mais de trezentas, realizadas no campo, nas
escolas, universidades e até no Exército, demonstram acima de tudo a dedicação
e o compromisso de um servidor em acreditar que podemos tornar este país
mais justo. Atualmente em Manaus estou empenhado na alternativa de plantio
das espécies frutíferas da Amazônia com a distribuição das sementes como o
biriba, camu-camu, araçá-boi e outras; no kit captação de água das chuvas que
são em abundância; no puxador de água e também no buraco da produção.
Memória Incra 35 anos
Nascimento do Projeto Zé Juquira
Em 1995, um ano após ter ingressado no Incra, assumi a responsabilidade técnica
pelo Projeto de Assentamento (PA) Tepequem. Quando cheguei ao projeto, na
boca da noite fui motivo de curiosidade por parte dos agricultores que queriam
saber quem eram os visitantes. Apresentei-me como técnico do Incra, responsável
pelo projeto e logo marquei uma reunião para o outro dia.
A reunião foi realizada na casa de João e a maioria da comunidade estava
presente. A finalidade da viagem era tomar conhecimento do projeto e levantamento dos assentados em cada parcela. Não havia estradas era só na picada
e eu tinha pouca experiência em andar na mata, mas logo Antão dos Santos,
se prontificou a me acompanhar nos trabalhos, informando que era necessário
cinco dias em um barco a remo para percorrer o rio Trairão. Um rancho reforçado
o qual iria carregar nas costas, enquanto eu levava uma pasta de documentos e
uma sacola com roupas e rede.
No primeiro dia fomos à casa de Antão e enquanto eu descansava na rede
ele fazia a janta ouvindo um velho rádio no horário da Voz do Brasil, quando me
formula uma pergunta: – O que é essa tal de reforma agrária, que o rádio tanto
fala seu doutor? Pensei um pouco e respondi, que é isso que estou fazendo,
distribuição da terra, crédito, titulação, é tudo sobre a terra. -Mas eu tenho direito
a tudo isso, não fui informado? O que é esse crédito,vou receber e o título tenho
direito? Tentei responder a todas as perguntas, mas percebi que eu sabia muito
pouco para estar no campo, que era mais um “despachante da reforma agrária”,
do que um orientador de projeto.
Precisava me preparar urgentemente para esclarecer todas as dúvidas dos
agricultores, pois este era o meu trabalho principal no Incra. Confesso que foi
uma noite triste para mim e Antão não tinha ficado satisfeito com as minhas
respostas, mas lhe informei que terminado o trabalho que estava realizando, iria
para Boa Vista e na minha volta iria dar uma palestra para todos os agricultores
do projeto informando sobre os direitos e deveres dos assentados.
Na mesma noite peguei o formulário de seleção para projetos de assentamento e iniciei a entrevista com Antão e quando lhe perguntei se tinha apelido
me disse que era mais conhecido por Zé, e lhe perguntei se podia chamá-lo
de Zé Juquira, ele respondeu que sim. – Parece um nome forte! Assim nasceu
o Projeto Zé Juquira.
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Nead Especial 2
A primeira palestra do Projeto Zé Juquira
Ao voltar para Boa Vista sabia que tinha uma missão difícil, que era resumir todas
as informações para repassar aos agricultores, pois havia marcado uma palestra
na minha volta, logo pensei como organizar uma palestra com tantas informações. Para não me perder resolvi distribuir os assuntos em cartolinas com letras
grandes e em forma de versos e desenhos ilustrativos. Não foi nada fácil definir
a reforma agrária, mas fui encontrar no Estatuto da Terra a definição, normas de
assentamento, seleção de trabalhadores rurais, créditos, direito ao lote, emissão
de título, cláusulas resolutivas, abandono das parcelas rurais, registro em cartório
e pagamento das prestações do título da terra.
Assim estava definida a primeira palestra realizada no Trairão, com um
almoço com muita macaxeira, farinha e galinha caipira. A palestra durou o dia
todo devido ao grande interesse da comunidade Enquanto Zé Juquira com o
seu velho chapéu de palha e um vasto bigode estendia as cartolinas, Marioca
preparava o almoço. Assim foi dado o início das palestras e onde que fosse
levava as faixas e organizava mais uma palestra, principalmente à noite à luz
de lamparina.
Peça teatral: A história de Zé Juquira
Contar como tudo aconteceu, até hoje ainda me causa emoção, mais ainda
devido ao carinho com que era tratado. Nas noites sobrava tempo e sempre
um grupo de agricultores vinha à sede do Incra como que esperando por algo
novo, até que numa dessas noites, lancei a idéia de montar uma peça teatral
com os atores da comunidade, cujo objetivo principal era mostrar o que faziam
e o que era preciso mudar e de que forma fazer essa mudança.
Não seriam muitos atores, no máximo cinco e era para ser apresentada
na festa de final de ano no Trairão na sede do município do Amajari. Logo se
apresentaram o Zé Juquira como organizador da associação e seu primeiro presidente, Marioca sua mulher e fundadora do clube de mães, Chico motosserra
como a pessoa que cortava toda a madeira necessária para as obras do projeto
e até mesmo para fora, Tio João Bodó o pescador da vila, (quem precisasse de
um peixinho era só ir à casa dele), Antonio caçador, que boa parte do tempo
dedicava-se à caça e não costumava perder viagem.
Memória Incra 35 anos
A transformação seria grande. Primeiro era necessário fundar e fazer funcionar a associação e o clube de mães, após era necessário capacitar os associados
com cursos pelo Sebrae e o Senar e por último a implantação dos projetos, o
açude para João, o viveiro de mudas para o Chico motosserra e a granja para o
Antonio caçador. Treinamos muito e foi apresentada diversas vezes na região, e
posteriormente foi adaptada para Escola Móvel de Educação Ambiental com
artistas contratados.
A grande lição que Paulo Freire ensinou e que
aprendi no Trairão com os agricultores
Na Vila do Trairão, observei que era difícil encontrar alguma fruta e Roraima
como é sabido é a terra da manga e lá quase não tinha. Comentei com alguns
agricultores que estava disposto a pegar um caminhão e ir a Boa Vista, encher
de manga de várias espécies e trazer para plantar a semente. Conseguimos um
velho caminhão da Secretaria de Agricultura e não foi difícil encher de manga
sem pagar nada e levamos para o Trairão. Foi a farra da manga e acredito que
hoje as mangueiras já estão dando frutas.
Organizamos uma reunião e eu sugeri a implantação de uma horta comunitária para fornecer verdura para a merenda escolar e o excedente servir
para os agricultores e a instalação de um viveiro para a produção de mudas de
várias espécies frutíferas e florestais para os participantes do projeto utilizar e
vender. Logo apareceram 22 candidatos e o trabalho era realizado aos sábados
e domingos. Durante a semana só um agricultor tomava conta.
O velho maranhense Vila, muito mais garimpeiro do que agricultor, foi logo
dizendo, “isso não me serve, maranhense que se preza come arroz com carne e
farinha” e logo saiu da reunião. A maioria dos assentados do projeto era maranhense e alguns caboclos da região Não levei a sério a atitude do Vila e continuei
com o meu projeto e iniciamos a obra. Consegui a tela, carrinhos, pás, enxada,
pregos, mangueira e regadores. Nas duas primeiras semanas foi tudo bem, mas
nas seguintes observei que estava havendo baixas e a turma era menor. Chegou
num ponto em que eram oito agricultores.
Resolvi fazer uma reunião para estudar o que estava ocorrendo, foi quando o
Goianinho falou: – Doutor nós não queremos isso, estamos aqui para lhe agradar
e fazer o seu projeto para não ficar chateado.
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Nead Especial 2
Logo entendi que ninguém havia pedido o tal projeto e me lembrei de Paulo
Freire, do extensionista que lança as suas idéias para dentro da comunidade, sem
antes ouvir com cautela o que querem.
Previdência social para a área rural
Este assunto foi a minha marca como servidor público em Roraima. Fiquei conhecido como Zé Juquira da Previdência Social, tal foi o trabalho e a dedicação que
dispensei que ainda hoje correm as lágrimas dos meus olhos quando me lembro.
Na Vila do Trairão em 1996, havia um agricultor aposentado cujo nome era
Chico Preto. Gostava de ir conversar com ele nos finais de tarde na barranca do
rio Trairão, tomava a sua cachaça, dava umas baforadas num palheiro e às vezes
lhe ajudava com fumo e desafiando a malária lançava a linha no rio para pescar,
sempre com o seu rádio ligado. Devido a grande amizade que fizemos, ele me
contava muitas histórias de sua vida, e disse-me que sua renda vinha de sua
aposentadoria e da ajuda dos filhos.
Logo me despertou curiosidade já que havia outros com idade avançada, mas
não eram aposentados, à medida que perguntava se eram aposentados recebia
como resposta uma queixa. Resolvi tomar conhecimento como funcionava esse
benefício. Ao retornar a Boa Vista fui ao prédio da Previdência Social e recebi
vários folhetos que informavam os benefícios para o trabalhador e trabalhadora
rural e que eram vários os benefícios e não um só como pensava.
Passei dias lendo e relendo aqueles documentos e procurava tirar as dúvidas
pelo telefone de informações da Previdência. Assim comecei a entender todos
os benefícios, a aposentadoria por tempo de serviço e por invalidez, auxílio-doença, pensão por morte, auxílio-maternidade e outros e logo concluí que teria
muito trabalho pela frente.
Agora minha palestra ganhava mais uma cartolina da Previdência Social e tinha
consciência de que quando se fala em dinheiro o interesse redobra. Era necessário
explicar para o trabalhador para depois não ser chamado de mentiroso.
Voltei ao Trairão e novamente uma grande palestra, com almoço e baile à
noite, um dia especial. Expliquei que não representava a Previdência, mas como
orientador de projeto tinha o dever de informar e orientar o agricultor e cada
benefício tinha documentação específica, portanto para não perder a viagem
era necessário preparar a documentação.
Memória Incra 35 anos
Lembro que o auxílio-maternidade foi o primeiro recebido pela agricultora
na quantia de quatro salários mínimos. Havia uma grande novidade já que a
mulher trabalhadora rural tinha os mesmos direitos do que o homem, havia
uma problemática grande: a documentação do beneficiário e a comprovação
do tempo de serviço na agricultura. A maioria dos trabalhadores da área rural,no
máximo, tinha conhecimento da aposentadoria rural e com as palestras logo a
notícia correu e eu me vi pequeno para atender a todos.
Percebi que era necessário fazer um padrão da documentação necessária
para cada benefício, e resolvemos conjuntamente o Incra com o sindicato, as
associações de trabalhadores rurais, procuradoria da república a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) e a própria Previdência, para reunir no auditório do
Incra e definir a documentação necessária para cada benefício.
Isso facilitou em muito aos trabalhadores. Entendi que para uma melhor divulgação dos benefícios, além de orientar as associações era necessário divulgar
por meio do rádio e assim cheguei à rádio Roraima no horário do informativo
rural. Foi tão grande a procura que a Previdência me chamou para saber se era
candidato a posto eletivo, e que estava usando a Previdência para conseguir
votos da área rural, respondi que não, apenas estava exercendo o meu dever
como orientador de projeto e cidadão. Com o passar do tempo a Previdência me
chamou par acompanhar o serviço ambulante Prevmóvel em várias localidades
do Estado, já que tinha conhecimento sobre o assunto.
A questão ambiental nos projetos de assentamento
Após levar para os agricultores as informações sobre os princípios da reforma agrária
e também sobre a previdência social, iniciei o trabalho de conscientização sobre a
problemática nos assentamento especialmente sobre as licenças de desmatamento,
os aceiros e também a questão da caça e pesca na área rural. Quando aconteceu
o grande incêndio em Roraima de 1998, eu já vinha falando sobre a necessidade
de um cuidado especial para com a natureza, a formalização de um calendário de
derrubadas e queimadas no Estado, com isso era mais fácil para acompanhar e
controlar por parte do Ibama e o Dema. Agora com as faixas em tecido para durar
mais, era explicado que o agricultor deve ter os cuidados quanto às derrubadas,
preservando as margens dos igarapés, encosta dos morros, derrubar somente o que
irá necessitar para plantar, assim como preparar os aceiros para evitar os incêndios.
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Diante os trabalhos desenvolvidos quanto à preservação, a World Wildlife Fund
(WWF) convidou-me para participar de uma apresentação em Manaus e após a
mesma fui contemplado com a participação no seu livro, sobre o Projeto Zé Juquira.
Rádio Roraima – Programa Roraima rural
Certa ocasião estando no projeto Tepequem, era comum as pessoas se reunir
à noite para conversar e ouvir o rádio já que não havia televisão. Após a Voz do
Brasil, tinha o programa rural, cujo objetivo era divulgar as informações para a
área rural. Observei que pouco era falado sobre a Previdência Social assim como
reforma agrária e meio ambiente.
Quando retornei a Boa Vista fui à rádio e pedi para participar do programa; o
pedido foi aceito e durante os trinta minutos conversamos sobre os temas estabelecidos. Os telefonemas foram tantos que logo fui convidado para retornar e
assim diversas vezes retornei, inclusive fazendo o programa algumas vezes só.
Dia da cidadania no Incra em Boa Vista
Talvez minha maior virtude seja sonhar com os olhos abertos e os pés no chão.
Senti que era necessário fazer uma reunião com as lideranças rurais especialmente
presidentes das associações dos projetos e o Incra, Ibama, Previdência Social,
OAB, Receita Federal e o Dema de Roraima, tendo por finalidade esclarecer aos
trabalhadores a responsabilidade de cada instituição com a área rural.
Cada instituição tinha 45 minutos para explanação e 30 minutos para debate,
com exceção para a previdência que foi dado uma hora para explanação e uma
para os debates, devido ao grande interesse.
Se o presente concurso é para aproveitar as boas idéias julgo que essa deveria ser aproveitada e ser criado o Dia da Cidadania nas superintendências do
Incra como forma de divulgar para a área rural, informações importantes para
os trabalhadores.
Campanha da declaração do ITR
O ITR é um documento importante para a área rural. Qualquer benefício rural
era solicitado o ITR anualmente declarado, mas muitos não sabiam e outros não
Memória Incra 35 anos
tinham como ir à capital para se regularizar. Baseado nisso juntamente com a
Receita Federal, Incra, Federação da Agricultura, Sebrae e Secretaria de Agricultura, programamos no para setembro de 1999, percorrer todos os municípios
de Roraima durante um mês para a declaração do ITR.
Vale ressaltar que as áreas rurais com menos de 100 hectares não pagam o
imposto, desde que realizem a declaração até o final de setembro, senão tem
multa de R$ 50,00 ao ano. Com o avanço da tecnologia, hoje o ITR é declarado
diretamente via internet.
Calendário da reforma agrária
Outro sonho que julgo da maior importância, reunir todas estas informações
de forma simplificada em um calendário grande e bonito, para ficar exposto na
parede onde o agricultor possa ver todos os dias e se lembrar dos princípios da
reforma agrária, benefícios da previdência social para a área rural e a questão
ambiental inclusive com poesia e também uma bela paisagem.
Por não ter encontrado nenhuma instituição disposta a confeccionar o
calendário inclusive o Incra, que em várias ocasiões solicitei, em 1997 mandei
imprimir mil unidades, só que bem menor. Mesmo assim foi uma forma que
encontrei para levar as informações até a área rural. Hoje, novamente sugiro ao
Incra a confecção dos referidos calendários, pois é uma forma barata e eficaz de
levar conhecimentos aos trabalhadores. Ainda guardo o calendário de 1997.
Escola Móvel de Educação Ambiental e Cidadania
Em 1998 uma seleção de projetos para a área rural, com ênfase para a questão
ambiental, os recursos viriam de organismos internacionais através do PGAI e
com a coordenação do Dema de Roraima. Apresentei o projeto Escola Móvel de
Educação Ambiental e Cidadania- Projeto Zé Juquira, composto por educadores
ambientais e sociais que realizavam as palestras participativas, tentando resolver
as questões da localidade, sejam da saúde, educação, meio ambiente, a peça A
história do Zé Juquira, adaptada à problemática da região, onde a comunidade
tentava apresentar soluções.
As crianças participavam de pequenos concursos, teatro, poesias ou qualquer atividade de interesse da comunidade e os prêmios eram livros, bicicletas e rádios.
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Nead Especial 2
O projeto Zé Juquira foi o único aprovado e posto em funcionamento. Tinha
duas viaturas, uma para transporte exclusivo do pessoal do teatro que era o grande
acontecimento, composto por cinco artistas da Escola Técnica de Roraima, Zé
Juquira, sua mulher Marioca, Chico motosserra, Antonio caçador, João Bodó e
o compadre Manoel.
O objetivo do teatro era apresentar alternativa de renda para os agricultores,
assim como Antonio caçador que vivia da caça, a associação iria conseguir um
financiamento para ele parar de caçar e criar frangos. João Bodó iria participar
de um curso de piscicultura e após a implantação de um projeto de criação de
peixes com financiamento do Pronaf-A, Chico motosserra não mais iria viver de
derrubar as árvores, mas sim a implantação de um viveiro comunitário de várias
espécies florestais e frutíferas, que lhe daria uma boa renda mensal.
Distribuição de sementes das espécies da Amazônia
para assentados: Projeto Aposentadoria Verde
Com minha transferência para o Amazonas, e a dificuldade em continuar os trabalhos
que vinha desenvolvendo em Roraima, observei uma grande quantidade de espécies frutíferas, mas que boa parte dos agricultores não tinham, por falta de sementes
e incentivo Resolvi procurar o Inpa, o Idam e a Embrapa na tentativa de conseguir
as sementes nativas da Amazônia e as instruções necessárias para os agricultores
plantar. O Inpa, logo me deu sementes de araçá-boi, camu-camu, biriba, andiroba,
cubiu, o Idam liberou sementes de couve, alface, maxixe, melancia, abóbora, coentro
e cebolinha e a Embrapa forneceu sementes de jenipapo, biriba, e outras espécies.
Comprei saquinhos de plástico e distribuí para diversos agricultores e sempre
tinha sementes para distribuir. Hoje sou mais conhecido como o Zé das sementes.
O projeto Aposentadoria Verde tem tudo a ver, pois se planta hoje para colher
após vários anos, dependendo de cada espécie, é necessário plantar para um
dia colher e não podemos esquecer que a velhice vai chegar e poderemos no
máximo colher o que foi plantado.
Projeto Kit captação de água da chuva e puxador de água
Dois itens merecem ser relatados, pois na Amazônia com a abundância de água, o
trabalhador rural ainda sofre sem ter água em sua casa .Muitos tomam banho nos
Memória Incra 35 anos
igarapés longe da casa e carregam água em baldes até a casa. Analisando o fato de
que chove quase todos os dias, fiz um pequeno projeto de captação de água da
chuva, o qual consiste em calha na casa, uma caixa de água elevada de mil litros e
distribuição para a cozinha, banheiro e área externa. Esse sistema evita em parte a
malária, já que não irá mais no final de tarde ao igarapé, menor desgaste físico tanto
para o agricultor e a agricultora que terão água na torneira quase que todo o ano.
O mais importante é o baixo custo – em torno de R$ 350,00- além de procurarmos uma forma de financiar o sistema. Quanto ao puxador de água funciona com
um reservatório elevado e resistente para suportar pressão, quando cheio, ao abrir
o registro à medida que sai numa ponta, puxa na outra que esta no igarapé.
Kit para captação de água da chuva
Objetivo
Captar água da chuva visando a sua utilização nas
atividades domésticas e na agricultura.
Benefícios
redução de doenças (malárias, cólera, verminoses),
redução do esforço físico, melhoria da higiene pessoa.
Público-alvo
Comunidades rurais e urbanas.
Investimento
O Kit de captação de água de chuva é composto por um
sistema de calha, reservatório, suporte e tubulação para
distribuição.
Cobertura
Reservatório
1.000 litros
Calha para
captação
Chuveiro
Suporte para
o reservatório
Água na pia
Água no vaso
Tabela de investimentos (valores em R$, aproximados)
Continuação
Quant.
02
01
01
01
01
01
01
01
Calhas fortlit 3m x 170mm
Cabeceira direita 170mm
Cabeceira esquerda 170mm
Emenda fortlit 170mm
Bocal fortlit 170mm x 199mm
Red. excêntrica fortlit 100mm x 50mm
Tubo solo fortlit 50mm
Adaptador c/ flange fortlit 50mm
R$ unit.
35,90
4,50
4,50
8,50
15,50
3,00
6,00
13,50
Subtotal
77,80
4,50
4,50
8,50
15,50
3,00
6,00
13,50
01
01
03
01
06
03
02
04
Adaptador c/ flange fortlit 25mm
Caixa d’água fortlev polietilieno 1000 l
Tubo soldável fortlit 25mm x 6mm
Acoplamento fortlit 100mm
Joelhos soldáveis 25mm
Torneiras here 100mm x 25mm
Tubo cola fortlit 17g
Tê soldável fortlit 25mm
5,50
210,00
9,00
3,00
0,30
1,50
1,00
0,50
Total
5,50
210,00
27,00
3,00
1,80
4,50
2,00
2,00
R$ 389,00
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Nead Especial 2
Buraco da produção – compostagem
Consiste em produzir uma pequena quantidade de alimentos para o sustento
da família, em um círculo de três metros de diâmetro com uma profundidade
de meio metro, onde é colocada terra preta, madeira, material orgânico em
decomposição e é feita a compostagem. Não são utilizados produtos químicos
nesse sistema, mas deve-se ter cuidado com a formiga e o pulgão. O agricultor
pode produzir abóbora, maxixe, quiabo, coentro, alface, entre outros.
A fé que vem do campo
Nos dias atuais, em que o mundo se comunica via internet, a globalização
sucumbe países e transforma o homem em objeto de lucro relevando a um
segundo plano o respeito à vida, é necessário uma reflexão mais profunda da
missão que nos foi dada para cumprir neste mundo, em um pequeno tempo
que aqui passamos.
Nas andanças que faço entre o campo e a cidade na qualidade de orientador
de projetos de assentamento do Incra observo a diferença de princípios e de
atitudes entre as duas formas de vida.
Deixo claro que as opiniões relatadas são pessoais, acumuladas durante anos
e que após avaliar os fatos, julguei importante relatar para que cada um que ler
este artigo, possa tirar as suas próprias conclusões, longe de julgar a alguém,
mas relatar as experiências que passei no interior.
Em certa ocasião trabalhando no projeto de assentamento Tepequém, no
Estado de Roraima, fiz uma visita técnica a uma família de trabalhadores e observando o pouco que produzia, perguntei ao tio João, que assim carinhosamente
chamava, como conseguia sobreviver com a sua família, já que tinha muitos
filhos e todos pequenos. Ele me levou no seu modesto quarto, e mostrou a
bíblia e disse:
— Daqui vem toda minha força doutor. E devolvendo a pergunta para mim,
com o seu olhar sério e a face marcada pelos anos e pelo duro trabalho no
campo: – E o senhor doutor, como consegue sobreviver? Orou hoje ao Senhor,
agradeceu pela sua saúde, pelos filhos, conversou com Deus, pediu proteção?
A cada pergunta a resposta era sempre a mesma, não! Para dar o último golpe,
o humilde camponês me adverte:
Memória Incra 35 anos
— Doutor, pelo que vejo a principal lição da vida o senhor não aprendeu, aliás,
essa lição a faculdade ou universidade não ensina para os seus alunos, mas é
bom aprender logo enquanto é tempo e aqui no campo pode ser o local para
aprender, um pouco dos ensinamentos do Senhor. E convidou-me para participar do culto.
Fui embora, mas passei o resto do dia pensando seriamente. Bem sei que
a escola nos ensina a conquistar o saber para obter os recursos materiais, que
tanto valor damos, longe de preparar o homem para chegar mais próximo da
vida espiritual. Saber o limite entre o material e o espiritual é fator importante na
nossa vida. Preparamo-nos durante anos para passar no vestibular para o curso
superior, mas pouco nos dedicamos para o vestibular espiritual. Não sabemos
o dia do exame final, mas é bom começarmos a fazer o preparatório, o Mestre
nos deixou muitos ensinamentos.
Para mim a questão principal é, que cada um deve perguntar para si mesmo, de onde viemos, para onde vamos e o que estamos fazendo com a nossa
própria vida. Esperar para quando chegar a velhice, na aposentadoria, já que
muitos afirmam que orar é coisa para velhos, pode ser um erro grave, já que não
sabemos a data do exame final. Sinto a presença de Deus mais freqüentemente
no interior do que nas cidades, parece que gosta mais do interior, não tenho
certeza, mas é lá que mais Ele é invocado e lembrado. Assim, também somos
nós, gostamos de estar onde somos bem tratados. Acredito mesmo que a sua
volta que estamos esperando, Ele vai preferir viver no campo, pois lá estão as
pessoas mais simples de poucos recursos materiais e saber acadêmico, mas com
muita fé e esperança nos corações.
A vida nos centros urbanos nos engessou a padrões e costumes elaborados
pelo homem moderno, através da televisão, jornal, o shopping, cotação das ações
e muito pior, usando a sua própria mensagem para usufruir recursos e poder
em benefícios próprios, do que realmente evangelizar as pessoas. Basta que nós
reflitamos a respeito do casamento e do batismo; o primeiro parece-me quase
que extinto, pois na atualidade as pessoas preferem apenas se juntar, o que é
mais fácil para separar depois. O homem e a mulher moderna tendem a viver
separados, já que não sabem mais dividir o amor e muito menos os recursos
financeiros; quanto ao batismo, pouco praticado nos dias atuais, os jovens que
vão à igreja, na maioria dos casos, vão porque são obrigados pelos pais que
ainda insistem na formação não só escolar, mas para a formação do caráter e
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Nead Especial 2
conduta. Parece-me que ser calouro numa faculdade é mais importante que
iniciar no caminho de Deus.
As lições do campo foram muitas e fui aprendendo. Em 1998 respondia pelo
projeto de assentamento Equador, na divisa entre os Estados de Roraima e o
Amazonas. O engenheiro do Incra e responsável pelas vistorias, nos acompanhava
na oportunidade, quando encontramos o agricultor Jeová. Logo paramos o carro
e eu que o conhecia, cumprimentei-o e ele disse:
— Chefe, o senhor sabe o que me aconteceu?
Olhei nos seus olhos e observei que estavam molhados.
— Eu vendi o meu lote!
O doutor logo retrucou:
— Não pode! É contra as normas do Incra. Agora vai ficar sem terra.
Eu senti um nó na garganta mas continuei calado, Jeová explica:
— Senhores, a minha esposa estava para morrer e tinha que levar para se tratar
em Manaus, não tendo recurso, o que me resta era vender o lote e assim o fiz por
R$500,00. Ficou hospitalizada durante um mês. Consegui salvar minha esposa,
e quem de vocês ao ver a companheira enferma não vende o que tem para
salva-la? Doutor o senhor ia pensar duas vezes? Eu sabia que seria condenado,
conheço o chefe, mas não tive outra saída orei ao senhor que me orientou, venda
o lote, faça o tratamento de sua esposa e eu mostrarei uma terra melhor para
você trabalhar, tenha fé e esperança.
Ao ver minha tristeza pela venda da terra, Jeová afirma:
— Não fique triste, a lei de Deus é muito diferente da lei dos homens. Eu sei que
você não entende, peguei uma área de mata na fundiária, fora do projeto.
Logo o doutor afirma:
— Mas não irá receber o título nunca, meu amigo.
E ele:
— Para que serve o título doutor? O Pai celeste criou tudo isso, como a mata,
os rios e a terra, os pássaros e os animais, sou um dos seus filhos e herdeiro,
vocês são todos invasores, já que se dizem os donos do que não produziram
ou criaram, os seus títulos para mim são falsos e não carregam Deus no coração,
vou trabalhar com as minhas forças como sempre o fiz desde menino, trocando
umas diárias e fazendo roçado.
Diante a explicação, nos calamos e fomos embora. Durante uns quinze minutos
o único barulho que ouvimos era o do carro, até que eu interrogo o doutor:
Memória Incra 35 anos
— Pelo que entendi, o Jeová realmente conversou com o Criador e dono de
tudo isso e nós que pensávamos que o dono era o Incra e nós os representantes.
Parece-me que necessitamos urgentemente rever conceitos, já que a lei dos
homens muitas vezes não comunga com os princípios da vontade de Deus.
Essa foi mais uma lição que nos dá o agricultor, pois não criamos nada e que
no fundo estamos apenas distribuindo a riqueza que recebemos de Deus e que
muitas vezes fazemos de forma errada, já que não consultamos o verdadeiro
dono e muito menos aplicamos a sua lei ou os seus ensinamentos.
Mas continuando nos relatos do campo, também no projeto Jundiá, quando
fomos realizar o pagamento dos créditos para os agricultores na casa de Luis
Quincó, um acontecimento me chamou a atenção. Havia mais de 60 agricultores
e a comissão de pagamento formada por advogados, representantes do Incra de
Brasília, polícias Militar e Federal e representantes da classe política do município.
Após os discursos, apresentações e agradecimentos, eu sendo o responsável pela
entrega dos créditos, me dirijo a todos que iríamos iniciar o pagamento. Naquela
época se levava em espécie os recursos. Quando o dono da casa, senhor Luís,
pede a palavra e nos fala em voz baixa, mas bem clara:
— Na minha casa antes de qualquer atividade, nós agradecemos ao Senhor
por nos dar a vida, o pão e tudo o que temos. Quero completar as palavras do
representante de Brasília dizendo: obrigado Senhor, por ter nos enviado os seus
servos para nos trazer os recursos que tanto precisamos, obrigado também aos
homens que pagaram os impostos para que hoje pudéssemos receber, mas
principalmente a Tu Senhor, que atendeu ao meu pedido e trouxe na minha
própria casa este pagamento.
Esta também foi uma bela demonstração de fé e lição para todos os que lá
estavam. Posso afirmar que aprendi muito na área rural, especialmente no que
se refere à vida espiritual, e após muitos anos de observação entre as atitudes no
campo e na cidade, já que trabalho nas duas regiões, chego a conclusão pessoal,
baseada no dia-a- dia, que Deus está mais próximo da área rural do que urbana.
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Nead Especial 2
A história do Zé Juquira
Esse rapaz que eu falo
No Mato Grosso nasceu
Até aos vinte anos
Só com roça se envolveu
Nome de Antão dos Santos
Foi o que seu pai lhe deu
De tudo ele plantava
Até mesmo tangerina
O tempo dele era pouco
Até para curtir menina
Estudou algumas letras
Com luz de lamparina
Na fronteira em Tabatinga
Ele serviu de sentinela
Para defender a pátria
No clarão de luz de vela
E hoje o computador
Lhe joga pela janela
Zé Juquira trabalhou
Assim como um homem faz
Nas construções de São Paulo
Em Brasília muito mais
Muitos anos arrancou ferro
Na serra dos Carajás
Eu gostaria de ver
Um governo agricultor
Dentro da reforma agrária
Deputado e senador
De mãos dadas com os roceiros
E não com o computador
Memória Incra 35 anos
Eu peço a Vossa Excelência
Que me faça um favor
Que deixe só na cidade
Esse tal computador
Não leve nem a passeio
Lá no meu interior
O senhor fazendo isso
Já me deixa sossegado
Esse bicho fuxiqueiro
Fez muitos desempregados
É por isso que eu não gosto
Deste aparelho malvado
Organizando a sociedade
Todos vão participar
Aí sim vai dar gosto
No campo trabalhar
Aí é reforma agrária
Que veio para nos ajudar
Nessa tal reforma agrária
Então vamos nos unir
A união faz a força
Que seja aqui ou ali
Assim eu sei que tem paz
Do Oiapoque ao Chuí
Hoje só falam em reforma agrária
Essa história me animou
Dizem terras para todos
Eu lhe pergunto seu doutor
A terra do Zé Juquira
Aonde ela ficou?
Não queremos meia-sola
Pois não dápara resolver
Queremos estrada,escola e financiamento
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Nead Especial 2
Para todos sobreviver
Com ajuda se trabalha
E se faz o que comer
Doutor divida essa terra
Para os que tem precisão
Ao menos uma vez no ano
Dê uma volta no sertão
A conta de dividir
O senhor não sabe não?
Na roça eu colhi
A minha melhor lição
A fé e a esperança
Que brota em cada pião
A divisão justa da terra
É o grito da nova nação
Mensagem do Zé Juquira
Sonhei um dia no campo morar
Com a foice, machado e terçado as mãos calejar
Hoje os Zé Juquira pedem terra para plantar
Amanhã com a produção a pátria iremos pagar
É melhor para todos do que nas cidades perambular
Não deixem a chama da fé e esperança se apagar
A dor que carrego no peito
É como uma faca no coração a sangrar
Minha dor não tem limite
Pois vem da alma que está sempre a chorar
O que vejo com esses olhos
Só Deus pode me consolar
Minhas letras são poucas
Memória Incra 35 anos
Meu palavreado é meio engasgado
Mas será que preciso virar doutor
Para esta nação me escutar
O meu grito é de alerta
A terra é para quem vai cultivar
Conclusão
Os fatos acima relatados considero os mais importantes, mas apenas citarei ainda
como informação as solicitações que fizemos para a sede do Incra no sentido
de melhor adaptar a instituição à realidade do campo:
1. Adicionar o nome da trabalhadora rural no cadastro.
2. Permitir o assentamento para trabalhadores rurais, mesmo com carteira assinada
de até três salários mínimos.
3. Proibir o fornecimento de cadastro para áreas públicas acima de 100 ha.
É a minha contribuição para a história do Incra. 131
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Os plantadores
de sonho
F r a n c i s c o J o s é Na s c i m e n to
Introdução
Fazer o registro escrito das peripécias vivenciadas por mim no ofício de servidor
público tem sido um desafio quase impossível de realizar. Tarefa penosa pelo
dinamismo como as coisas foram acontecendo e por estarem dentro de um
ambiente que em nenhum aspecto poderiam se emoldurar. Falar da história do
Incra no Acre é falar de sonhos, utopias e de oportunidades perdidas. É traçar
perfis de homens e mulheres que empunharam a bandeira da reforma agrária,
deram o melhor de si em termos de dedicação, empenho, amor e vida. Escreveram o alfabeto de Deus nos caminhos tortuosos da história.
Por esse cenário, passou um general, um coronel e os outros – os plantadores de sonho – que, embalados pelo clima ufanista fincaram os alicerces para a
investida pioneira de colonizar a Amazônia. É claro que me incluo entre estes
últimos. Os que conseguiram sobreviver aos dissabores e não abaixar a cabeça
para os gritos, ameaças e as imposições tão peculiares dos que estavam à frente
da instituição. Infelizmente, por desconhecimento de causa e imaturidade política,
cometemos erros como, por exemplo, assentar famílias vindas de outras regiões
em projetos de colonização sem as mínimas condições de sustentabilidade,
não cuidar para que o meio ambiente fosse preservado e vender o discurso tão
peculiar naquele momento: “Plante que o João garante!” As primeiras ações do Incra no Estado situam-se em meados de 1972. Momento em que o campo encontrava-se ferido pela ação devastadora do capital
Propaganda veiculada durante o governo de João Batista Figueiredo (1979/1985).
Memória Incra 35 anos
expansionista e travava-se a luta pela não-incorporação de novas áreas à pecuária.
Tempo em que o heroísmo servia de critério curricular para promoção funcional
ou demissão sumária. Não tinha meio termo. Tempo em que se costumava medir
o empenho no trabalho pela quantidade de malárias contraídas e por cada risco
que se corria na lida diária.
Recuperar parte dos acontecimentos não foi uma tarefa fácil. Pois, no serviço
público, a valorização da memória institucional só entrou em pauta recentemente.
Os servidores mais antigos que participaram da fase inicial de implantação da
Superintendência do Incra no Acre ainda têm receio de expressar suas opiniões.
Rescaldo da ditadura militar. Aliás, é bom que se diga que as seqüelas deixadas
pelo Estado deixam marcas irreversíveis. Também, muitos colegas se foram para
sempre, levando seus sonhos, experiências e esperanças. O anonimato não lhes
tira o mérito da bravura.
Aqui registro com pesar os nomes de Moreno Maia, Marne de Paiva, Macambira, Raimundinho, Raimundo Lopes, Enilda Buarque, Chiquinho, Jurandir, Altemir,
Assis Lima, Pedro Firmino, Zuila Arantes, José Miguel, Maria Brasil, Raimundo
Moreira, Cutruca, Narciso Assunção, Nilson Campos, Ivo Neves, Beto Ladrão,
Meireles, Idelmar, Alberto Santiago, Francisco Pimentel, João Ademir, Aldenor
Soares Pedrosa, Cleonildo Alves, Carlos Cleider, Newton Valério, Olécio Rosado,
Santana, Wilson, Geraldo, o “locutor da rádio cipó,” e tantos outros. Fizeram o
dever de casa. O tempo não os esqueceu.
Com Fernando Moreno Maia, o General, o intrincado perfil fundiário do
Estado foi sendo esmiuçado, palmo a palmo, deixando à mostra suas feridas.
Meio às cegas, diria, os trabalhos se iniciaram. Tudo estava por fazer e o avião
precisava ser consertado em pleno vôo. Não havia outra saída. Agora, ao olhar
pelo retrovisor vejo um tanto de erros que poderiam ter sido evitados. A herança
amarga continua permeando cada um de nós que sonhamos com uma justa
distribuição de terra e renda. Mas nem tudo deu errado. A Amazônia não seria
melhor sem a presença do Incra. A conclusão vai depender do ângulo que cada
um deseja enxergar. Ousamos e realizamos, em pleno coração da Amazônia, o
maior processo de colonização jamais idealizado na América Latina.
É difícil condensar em poucas páginas os fatos interessantes que presenciei
e vivi nos 35 anos de existência do Incra, dos quais participei como servidor em
26 deles. Para um catador de pérolas creio que não seria aprovado no teste da
memória. Mesmo assim, trazer alguns relatos ao presente me causou um bem
133
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Nead Especial 2
indescritível. Renasci com eles. Foi, acima de tudo, um ato de amor de quem
sempre acreditou no valor do trabalho. Felizes lembranças que teimam em resistir
a implacabilidade do tempo.
Quanto ao Incra, apesar dos contratempos e de tantos desencantos, continuo tendo por ele aquele sentimento condenado pela igreja, mas, que assumo
enquanto pecado: orgulhar-me dele.
O convite
A maior parte de minha juventude passei percorrendo os imensos corredores
da Superintendência do Incra/AC, levando e trazendo demandas, elaborando
sonhos, corrigindo rotas e aporrinhando a vida dos meus superiores. Apanhei
muito da inexperiência e do deslumbramento de quem ensaia os primeiros
passos na administração pública.
Mas, contabilizando os resultados, creio que posso me considerar um vitorioso
porque nunca precisei penhorar a minha alma nem desistir dos meus projetos por
“burras abarrotadas de ouro”. Mesmo quando me diziam que estava no caminho
errado, nunca pensei em desistir, por pura teimosia.
Naquele 5 de março de 1978, estava eu no caixa 5 do Bradesco Centro, em Rio
Branco/AC, quando o amigo José Alberto me chamou num canto e disse que
um tal Nilson Campos Moreira, queria falar comigo. Nem imaginava que esse
Nilson era um dos chefões do Incra/AC. Durante o meu período de intervalo para
o almoço fui ao encontro dele. No outro dia, já estava trabalhando na instituição,
para desespero dos gerentes do banco. Confesso ter sido um aprendiz inseguro,
encabulado e, por vezes, precipitado.
A primeira missão que recebi não tinha nada de especial, parecia mais um
teste de humildade: comprar lanche para o chefe Nilson, no bar do “Zé Vela,”
que ficava em frente a sede do Incra. Fui aprovado, apenas com uma ressalva:
o refrigerante estava um pouco quente para quem buscava, em vão, a cura
para uma ressaca monumental. A partir de então, saí para conquistar meu
espaço, sempre acreditando que, se os outros podiam fazer eu também seria
capaz de realizar. Não recuei frente às decepções, que foram muitas. Não temi
cometer erros e assumi-los. Hoje, passados tantos anos, ainda continuo no
encalço do inatingível, sou tocado pela utopia do irrealizável. Um viciado em
sonhar, sonhar e sonhar.
Memória Incra 35 anos
As primeiras pessoas com quem tive contato no novo emprego foram José
Alberto (avalista e companheiro de boêmia), Clara Bader (balangandãs espalhados pelo corpo e espírito muito à frente do seu tempo), Joecy (a conselheira),
Nazaré Simão (grande confidente e defensora), Simão, Francis Mary (bruxinha
e poetisa), Vicente Freire e Alcione (meus compadres), Nilson Campos (chefe e
guru), Neto Thaumaturgo (parceiro de grandes orgias) e outros que depois foram
se incorporando. Muito me ajudaram. Só resta pedir desculpas pelas minhas
estúpidas irresponsabilidades. Pela falta de amor às coisas que me cercavam e
a mim mesmo.
Nazaré, por exemplo, me livrou inúmeras vezes da canetada do general e de
ser demitido pelo Vicente Freire – o “impiedoso.” Mesmo sabendo que eu estava
errado, sempre me defendeu. Quanto aos sábios conselhos da Joecy, só procurava
segui-los quando a vaca já tinha ido para o brejo. Não lamento o tempo que
passou. Mas não posso deixar de sentir uma ponta de saudade daquela turma
que foi se separando tangida pelas vicissitudes da vida.
A missão
Era difícil não ser contagiado pelo espírito realizador do general Moreno Maia.
Guardo a lembrança viva de quando fomos apresentados no meu primeiro dia
de trabalho no Incra. Entrei em seu gabinete, nervoso, diante de um “general
de estrelas”, em carne e osso, e apoiei o corpo na cadeira que estava à frente.
Olhou-me por cima dos óculos e disse: “Você nem começou a trabalhar ainda
e já está cansado? Endireite-se, rapaz, que a vida não se conquista deitado em
berço esplêndido. E tem muito trabalho para ser feito.”
Saí dali com um misto de raiva e desapontamento. Tive vontade de ir embora. Mas, com o passar do tempo, vendo sua maneira firme de administrar e a
pressa em realizar a primeira fase do processo de colonização é que consegui
entende-lo.
Dias após, Marissanta (gerente da Fassincra/AC) e eu recebemos a incumbência de conseguir algumas cadeiras de roda para que ele distribuísse aos
trabalhadores rurais portadores de deficiência física. O prazo estabelecido foi
de duas semanas. E lá fomos nós, numa corrida desenfreada, para realizar a
tarefa. Eu, na verdade, nem sei por que fui escolhido. O general tinha dessas
coisas. Com muita sorte, cumprimos a missão cujo mérito credito a Marissanta.
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Nead Especial 2
Foi gratificante ver a felicidade das pessoas recebendo as cadeiras de rodas das
mãos do general que não cabia em si de contentamento.
Percebo o quanto era difícil acompanhar o ritmo de trabalho que ele empreendia no Incra. Estava sempre com o pé no acelerador. Espírito irrequieto
e sonhador inveterado. Um detalhista barroco. Não quero me deixar dominar
pela nostalgia do mestre, mas, conviver com ele, durante seis anos, foi para mim
um grato aprendizado, principalmente, por que era estimulador trabalhar com
poucas chances de se errar pela segunda vez. Tive esse privilégio.
Casa nova
Em janeiro de 1977, tivemos a inauguração da atual sede do Incra, em Rio Branco.
O último ato que Assis Canuto, então coordenador, realizaria no Acre. O acontecimento tomou conta da pacata cidade. O presidente do Incra, o maranhense
Lourenço Vieira, veio especialmente de Brasília para prestigiar o acontecimento.
O Governador do Estado, Geraldo Mesquita, também participou. Uma obra
grandiosa que fazia jus à onda ufanista que o regime militar pregava.
A missão do Incra era colonizar a Amazônia, sempre de olho no que o fantasma do comunismo podia representar. Mormente, quando corriam rumores
que a semente de “Che” Guevara vingava na vizinha Bolívia. Um militar deveria
assumir o posto de coordenador. Assis Canuto continuaria prestigiado, mas seria
remanejado para o vizinho Estado de Rondônia.
Para o Alto Comando das Forças Armadas, a região da faixa de fronteira não
poderia ficar à solta. E não era por acaso que no sul do Pará, o Grupo Executivo
das Terras do Araguaia e Tocantins (Getat), braço militar da instituição, dava as
cartas. O momento exigia que o comando das ações do órgão na Amazônia
ocidental fosse entregue a alguém que tivesse a cara e o espírito nacionalistas
do momento. O escolhido veio do Comando Militar do Leste, com sede no Rio
de Janeiro – general Fernando Moreno Maia, que já se encontrava na reserva.
O general Fernando Moreno Maia foi coordenador do Incra/AC no período de 1977/1983. Sua nomeação para o cargo foi bancada pelo general Brasil, que tinha trânsito livre na Vila Militar.
Memória Incra 35 anos
Separar o joio do trigo
Devido à urgência que a situação impunha, os trabalhos de discriminação das
terras tiveram que ser priorizados. O objetivo era vistoriar 34 milhões de hectares
de terras acreanas e partes de Rondônia e Amazonas, então sob a jurisdição da
Coordenadoria Especial do Acre.
O processo discriminatório das terras foi realizado por Comissões Especiais de
Discriminação de Terras Devolutas, cujos membros se dedicavam exclusivamente
a esta atividade. A tarefa não era fácil. As dificuldades operacionais e jurídicas
faziam com que os cronogramas fossem sendo dilatados, levando-se em conta,
o jogo de interesses e a resistências dos proprietários em celebrar os acordos
por via administrativa. Separar as terras públicas das terras privadas no Acre era
como montar um quebra-cabeça no escuro.
A ausência de documentação, comprovando o domínio da terra, foi sem
dúvida um problema sem precedentes no decorrer do processo discriminatório.
O máximo que os pretensos proprietários apresentavam eram registros públicos
que não espelhavam a dominialidade da área em estudo.
Como a legislação da época impedia o Incra de reconhecer como legítimos
tais documentos, o passo seguinte, era a arrecadação do imóvel, para fins de
reforma agrária, ou discutir o domínio na justiça quando cabível. Mesmo assim,
tal situação não impedia de que as terras fossem vendidas de forma desenfreada
para grupos empresariais do Sul. Em pouco tempo, dois terços das terras do Acre
estavam em poder desses investidores, chamados de paulistas.
As maiores vítimas foram os pequenos posseiros, seringueiros e ribeirinhos,
moradores da região, que, em suas andanças pela mata, só sabiam sangrar a
seringueira para extrair o látex, colher o que a floresta lhes oferecia. Pescar o alimento dos rios e cultivar uma pequena roça. Sem título de propriedade de suas
pretensas posses, tiveram que esperar o reconhecimento de seus direitos por meio
da lei. Muitos foram retirados de suas áreas de forma violenta pelos compradores
“sulistas” que chegavam todos os dias, em busca de terras baratas.
Um trabalho da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), publicado
em 1986, informa que o Acre, por suas características fundiárias, tornou-se um
atrativo para os especuladores. Um cidadão de origem alemã, chamado Erick
Gottlob, montou uma empresa de colonização particular chamada imobiliária
Pacífico, que funcionava ao lado do antigo hotel Chuí, em Rio Branco e vendia
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Nead Especial 2
terras para empresários alemães e chineses de Formosa, de maneira indiscriminada e sem que o Incra, na época, tomasse qualquer providência para o caso. Por
ações como essas de Erick Gottlob, cerca de 40 mil seringueiros, foram banidos
de suas terras, num dos maiores êxodos já registrados no Brasil.
Para os objetivos da política ditatorial, a colonização dirigida foi perfeitamente
justificável e com benefícios. Seja na acumulação de capital, seja na limpeza da
área patrocinada pela “frente pioneira”, floresta adentro. Sem a colonização dirigida
não teria sido possível, entre outras coisas, a discriminação e o reconhecimento
privado pela União de partes das terras amazônicas, ingrediente fundamental
para que depois pudessem estas mesmas terras (devidamente documentadas),
serem apropriadas animus dommini pela “frente capitalista.”
A colonização dirigida e o Acre
O caminho de vinda era a BR-364, no trecho Cuiabá e Rio Branco. O itinerário dos
destemidos e sonhadores. Um flagelo para quem por ela ousasse se aventurar no
período das chuvas amazônicas. Mas, para quem estava na aventura, o caminho
era o da redenção: bendita terra! Tão esperada como quem espera o novo rebento.
Aos poucos, eles foram chegando. Desconfiados e humildes a pedir licença para
adentrar-se na nova casa. Novos caminhos; velhos sonhos; outros olhares. Os
plantadores de sonho iniciavam a terceira grande migração para o Acre.
Contrário ao que aconteceu durante o primeiro período da extração do látex
no final do século XIX, ou mesmo na segunda migração durante o Estado Novo,
em que o Acre foi uma das regiões que mais recebeu migrante, na colonização
direcionada e espontânea, levada a efeito pelo regime militar, houve o inverso:
somente a partir de 1979 é que o fluxo de migrantes, em sua maioria, originários do centro-sul do país começou a chegar. Vinham em busca de terras nos
A grilagem de terra passou a ser uma atividade que dava bons lucros, contando, inclusive, com
a conivência de alguns cartórios de registro. O município de Cruzeiro do Sul/AC foi destaque na
ação dos grileiros. Em 1972, de uma só vez, o escrivão José de Nazareth da Cruz Veras, registrou 400
Títulos Definitivos grilando uma área devoluta de 38.000 hectares. Os citados no processo, pessoas
influentes na região do Juruá, foram indiciados pela Polícia Federal. Mais tarde, a área foi destinada
à criação do Projeto de Assentamento São Pedro.
Memória Incra 35 anos
assentamentos do Incra, uma vez que Rondônia e Mato Grosso já apresentavam
dificuldades para o pronto atendimento.
Quase não houve o incremento da colonização particular no Acre. A experiência desenvolvida pela Companhia de Desenvolvimento Agrário e Colonização
do Acre (Colonacre) teve resultado insípido. Outra que tentou se aventurar por
aqui foi a Colonizadora Agropecuária São Paulo/Amazonas (Coloama), desativada
em pouco tempo. A colonização oficial, comandada pelo Incra, atuou soberanamente em todo o processo.
Dessa forma, quando comparamos a atuação do órgão em relação às experiências que foram realizadas em Rondônia, notamos duas diferenças fundamentais:
em primeiro lugar, aqui não se utilizou a licitação de terras públicas, que nada
mais era que distribuir as melhores terras para quem trazia dinheiro, deixando
as terras ruins e sem acesso, para as famílias que não possuíam recursos. Em
segundo, grande parte das famílias assentadas nos projetos de colonização
foi selecionada entre as que se encontravam em situações de conflito neste
Estado. Com isso, pretendia-se diminuir o índice de violência e tensão social nas
microrregiões do baixo e alto rio Acre.
Entre as famílias que vieram para o Acre, podemos destacar duas categorias
distintas: as que foram trazidas pelo programa de colonização oficial (ainda poderíamos distinguir entre estas as que vieram sem nenhum recurso e as famílias que
foram desapropriadas e indenizadas, como exemplo, as que tiveram suas terras
alagadas pela barragem da Usina de Itaipu) e as que aqui chegaram por conta
própria, realizando a reforma agrária espontânea, mas que logo o Estado buscou
controlar e disciplinar, colocando-as sob a égide da colonização direcionada, com
base nos pressupostos estabelecidos pela ideologia dos militares.
A política de colonização tardia do Acre inicia-se a partir de 1977, quando
foram criados os Projetos de Assentamento Dirigidos – PAD’s Pedro Peixoto
(abrangendo os municípios de Plácido de Castro, Senador Guiomar, Acrelândia
e Rio Branco) e Boa Esperança (localizado em Sena Madureira). Em 1981, foram
implantados os PAD’s Humaitá (município de Porto Acre) e Quixadá (município de Brasiléia) e, em 1982, Santa Luzia (Cruzeiro do Sul). Todos localizados ao
longo de rodovias que estavam somente no projeto. Todavia, nessa época, a
economia brasileira estava mergulhada em grave crise financeira, fruto do endividamento externo assumido pela ditadura. Assim, os recursos destinados à
implementação dos PAD’s foram diminuídos paulatinamente, prejudicando a
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implantação de grande parte da infra-estrutura necessária ao desenvolvimento
econômico das famílias.
As famílias antes de serem assentadas ficavam aguardando nos “arraiais de
adaptação” até que os entraves burocráticos, junto ao Incra, fossem resolvidos
ou que os ramais oferecessem condições para que pudessem chegar aos lotes.
Os “arraiais” não passavam de acampamentos precários, sem nenhuma condição
de higiene; montados em tendas de lona fornecida pelo Exército brasileiro. Entre
1979 a 1981, fase áurea do fluxo migratório,vieram para o Acre 4.173 famílias.
Tudo era improvisação e aventura. A colonização direcionada na Amazônia,
além de ser um programa oficial ousado, teve, devido às características da região,
muito de pioneirismo e heroísmo. O trabalho do Incra, que inicialmente deveria
discriminar as terras foi uma operação hercúlea travada com grandes dificuldades.
Faltava equipamento. Faltava gente. Sobrava disposição.
As regiões de expansão da fronteira agrícola são campos férteis para que os
atos de coragem e sofrimento estejam presentes. A rotina de um servidor do
Incra, que trabalhasse como motorista, dentro de um projeto de assentamento,
geralmente consistia em transportar os colonos até as suas parcelas; retirar a
produção dos ramais para a cidade; enterrar os defuntos; tratar dos doentes
até que fosse possível se chegar ao hospital mais próximo. Quando não havia
outro jeito, realizava-se até parto no meio da mata. Morava literalmente dentro
da boléia do caminhão.
Olhando do ponto de vista das famílias migrantes, a situação foi bem mais
amarga, porque, nessa cena histórica, muitas vezes não representavam mais que
meros dados estatísticos, necessários para prestar contas de recursos aplicados
ou pleitear liberações de novas verbas. A luta pela sobrevivência iniciava ainda
na viagem de vinda.
Por outro lado, a própria adaptação das famílias ao novo habitat representava
mais desafios. Se, de um lado, havia uma etapa desafiadora que era domar e tornar agricultável uma floresta majestosa, do outro, o sentimento de “acreanidade,”
tão singular na população local, funcionou como uma espécie de cordão de
isolamento, deixando, muitas vezes, essa gente fora do contexto político. Uma
recepção com gosto de “vocês não são benquistos aqui.”
Fonte: Incra – SR. 14/T.
Memória Incra 35 anos
Parecia impossível um ser humano sobreviver em locais parecidos com
campos de concentração, onde, para não morrer de fome, os colonos chegavam
a comer as sementes que eram distribuídas pela Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa).
Essa carência permeou em todos os projetos de colonização do Acre. Isto
por falta de acesso permanente durante boa parte do ano impedindo a comercialização da produção, ou por inaptidão das famílias para trabalhar com
agricultura na Amazônia.
Entretanto, a colonização não pode ser tratada como um fato isolado. E
de fato não o era. Havia todo um aparato governamental que visava apoiar as
ações que estavam sendo implementadas, tendo como carros chefes o Incra e
a Sudam. O objetivo não era somente o de integrar a Amazônia ao restante do
Brasil, mas, também, a preocupação de não perder o foco nas questões ditas
de segurança nacional.
Nesse sentido, as coisas deveriam estar alinhadas. Enquanto o governo
promovia sua política de colonização dirigida, a colonização, ação capitaneada
pelo Incra teria que ser direcionada, isto é, cuidar para que as famílias migrantes
não ficassem fora do guarda-chuva institucional ou não se desencaminhassem
para outras regiões. O Incra, como guardião das terras públicas, era, também,
o senhor do destino dessa gente camponesa. A colonização direcionada do
governo militar não era uma via de mão única, mas a sua direção apontava
preferencialmente para as terras da Amazônia.
Os burros do Incra
Realizar os trabalhos de campo na Amazônia sempre foi muito difícil. Além das
grandes distâncias a serem vencidas, no período das chuvas, os rios transbordam
e os ramais enlameados tornam-se intrafegáveis. No entanto, as atividades não
podiam parar. Foi então que a direção do Incra optou por adquirir burros ao
invés de viaturas traçadas, sob o pretexto de que a sua manutenção era mais
barata. Assim, os técnicos se locomoviam no lombo dos burros até os lotes mais
distantes, levando suas mochilas e instrumentos de trabalho. Esses animais logo
foram apelidados de “mascotes do Incra.”
Jornal O Rio Branco de 19.10.83 – Título: Parceleiros sem casa e sem saúde comeram sementes.
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Por serem classificados como material permanente, tiveram afixado em suas
orelhas as placas com o número do tombamento. No PAD Boa Esperança, descobriu-se que um dos animais era efeminado e permitia ser montado por outro, ou
seja, um burro gay. Outro, que foi mandado de avião para o PAD Santa Luzia, em
Cruzeiro do Sul, morreu afogado em 1983. Quando um animal morria, sua orelha
era retirada para ser arquivada junto com o processo de baixa patrimonial.
Mesmo com toda gozação que se fazia a respeito de tal investimento, os
burros do Incra prestaram bons serviços, principalmente, na época das chuvas,
uma vez que eram os únicos que conseguiam vencer os enormes atoleiros.
Chico Mal-estar
Trabalhava no Projeto Fundiário Alto Purus, em Sena Madureira/AC, um vigilante
noturno que de tanto reclamar de doenças foi apelidado de Chico Mal-estar.
Não podia ver um superior que ia logo gemendo de dores pelo corpo e de um
mal-estar que nunca ficava bom. Era um hospital ambulante. Numa das visitas
que o general Moreno Maia fez ao projeto em 1981, recebeu do Chico a seguinte
reclamação: “Olhe general, as pessoas aqui não levam a sério os pedidos que a
gente faz. Está com mais de uma semana que estou pedindo para comprarem
Detefon e não fui atendido. Não consigo dormir direito quando estou em serviço
com tantas carapanãs e mosquitos me ferrando. Desse jeito não tem cristão
que agüente.”
Chico foi demitido sumariamente pelo general.
A Gata
Contou-me Evandro Nascimento, então diretor de Recursos Humanos do Incra,
que uma de suas dificuldades enfrentadas ao assumir o cargo foi entender a
linguagem e apelidos falados na casa – o “incrês.” Certa vez, recebeu em seu
gabinete uma servidora um tanto quanto chateada com os responsáveis em
operar a folha de pagamento, porque, segundo ela, estes haviam cortado a sua
Gata sem sequer lhe comunicarem. Um ato desumano para uma mulher que
dera parte de sua vida em prol da instituição. A revolta era tanta que estava
decidida a impetrar uma ação na justiça contra o Incra, “caso não devolvessem
a sua Gata, integralmente, naquela semana.”
Memória Incra 35 anos
Assustado, e sem, saber do que se tratava, o diretor lhe disse que iria cuidar
do assunto e tranqüilizou a servidora, dizendo que “jamais poderia concordar
que fizessem tamanha maldade com um pobre animalzinho;”
Depois foi informado que a gata, na verdade, tratava-se da Gratificação de
Atividade Técnico-Administrativa, que havia sido excluída do pagamento da
servidora, pelo fato desta não preencher os requisitos legais para recebê-la.
As mãos
A maior dificuldade enfrentada pelas famílias migrantes não foi somente aprecariedade dos ramais, a falta do crédito ou de políticas públicas de amparo, como
se tem falado. É claro que tudo isso contribuiu negativamente, sem contar as
doenças tropicais. No Paraná, eles trabalhavam com agricultura mecanizada, arando
e plantando em pequenas áreas. Aqui chegando, foram surpreendidos por uma
coisa elementar, mas, decisiva para o insucesso de quase todos eles: só podiam
contar com as mãos. Mãos para brocar; mãos para capinar; mãos para plantar;
mãos para colher; mãos para viver. Os sonhos estavam dependentes das mãos.
Mas, as mãos não estavam preparadas para desempenhar tarefas tão árduas, isso
sem contar com o choque inevitável de identidades culturais tão diferentes.
O jornal Folha do Acre, de 4.12.1983, tece o seguinte comentário: “Trazer parceleiros do sul do Brasil e colocá-los na Amazônia é como colocar nordestinos
para habitarem a Groenlândia.” Faltou bom senso!
Uma morte anunciada
Estamos em plena selva do norte brasileiro. Os últimos raios do sol da estiagem
banham a floresta, rios e igarapés. Tudo ainda parece ser igual às notas que Vivaldi
imaginou quando compôs As quatro estações. Um namoro eterno do verão com
o verde da mata. O mesmo não se pode dizer do PAD Desencanto.
No restante do Brasil, acontece o “milagre” tão decantado como sinônimo de
progresso. As grandes obras ainda são destaques nos noticiários: do Nordeste
vem a Transamazônica; das bandas do sul, uma hidrelétrica começa a destruir
Crônica escrita a partir de notícia veiculada no jornal A Folha do Acre de 29.06.84. Título: Cidade
mobilizada – Márcia de Deus.
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sonhos e vidas, formando um grande lago – Itaipu – “pedra que canta.” E famílias
de lavradores, como na passagem bíblica, assistem às águas inundarem suas
roças, casas e tudo que encontram pela frente.
O Incra, naquele momento, era a única saída para quem nada mais possuía.
E sem perda de tempo, aproveitando-se do desespero e da ansiedade dos
humildes agricultores, propagandas foram veiculadas, mostrando a Amazônia
como um lugar de terras férteis, vida fácil, fartura, um paraíso à espera de mãos
para trabalhar e fazê-la produzir. Tudo era garantido: transporte, alimentação e,
em pouco tempo, um título de propriedade da terra.
Não havia porque esperar mais. O quê os prendia naquele mar que outrora
fora tomado por pomares com colheitas temporãs? E lá vieram os novos retirantes! Uma saga de quase um mês de viagem em ônibus, avião e caminhão, até o
destino final nos confins do Acre. Evangelista, sexagenário de físico esguio, é o
primeiro a saltar da carroceria do velho Ford, com suas três filhas. Está empoeirado,
mas feliz e esperançoso de começar uma nova vida.
Os outros vão descendo devagar, atônitos, numa cena que lembra os esquálidos personagens de Raquel de Queiroz. Parecem frágeis e impotentes frente à
exuberância da mata. Não trazem quase nada em suas bagagens. Mas a vontade
de trabalhar é imensa.
Depois de longa espera, são levados pelos técnicos do Incra para seus lotes:
horas e horas caminhando mata adentro. Depois, são largados à própria sorte e
isolados uns dos outros. Evangelista pára pensativo diante de sua parcela. Não vê
quase nada. Somente árvores e mais árvores. Na Amazônia, para se plantar, seguese à derrubada da floresta para atear fogo, antes que cheguem as chuvas. Tinha
que trabalhar muito e depressa. A natureza não espera e as águas são indiferentes
a tudo. Além disso, daquele paraíso que foi mostrado pelas propagandas, quase
nada existia: estrada, escola, médicos. Sem contar que a floresta esconde suas
armas contra os invasores. E tome malária, hepatite, “ferida braba”, tifo e insetos
peçonhentos de toda ordem. Ninguém havia sido alertado para isso.
Ao primeiro contato com a mata, Evangelista contraiu malária. Os mantimentos que trouxera do Paraná logo foram consumidos. Enquanto tremia de frio e
delirava por causa da febre estirado na rede, suas filhas choravam de fome. Márcia,
por ser pequena e indefesa, era a que mais sofria. Chorava de fazer pena. Todo o
sonho de Evangelista se resumia agora numa agonia que parecia não ter fim.
Memória Incra 35 anos
Passados alguns dias, Márcia morreu de inanição. Suas duas irmãs não agüentavam, sequer, colher ervas e cascas de árvores para fazer chá. A única maneira
de sobreviverem seria caminhar pela mata em busca de ajuda. Evangelista e suas
duas filhas saíram sem destino pelos picadões enlameados. O canto soturno dos
pássaros e a gritaria dos bandos de macacos nas copas das árvores pareciam sinalizar
um adeus. Fazia lembrar a alegria de Márcia, menina alegre e travessa. Doía saber
que aquele rostinho ficaria para sempre enterrada na solidão da mata.
Por pura sorte Evangelista foi encontrado por outros parceleiros e levado, com
suas duas filhas, para a sede do PAD Desencanto. Lá receberam alimentação e
tratamentos, num posto de saúde precariamente instalado. A recuperação levou
meses. A alimentação não era das melhores, mas pelo menos não morreriam de
fome.A saudade de Márcia era tamanha que fazia com que as horas passassem
vagarosamente. Um suplício para um pai que havia perdido a esposa, há pouco
mais de um ano, ainda no Paraná. Evangelista não pôde mais voltar para a parcela.
A doença o deixou quase inválido para a lida na roça. Não possuía mais forças
para trabalhos pesados. Como não sabia ler, nem escrever, foi fazer pequenos
serviços na cidade e, suas filhas, empregadas como domésticas em casas de família.
O drama vivenciado por Evangelista não foi uma exceção. A colonização
direcionada tinha dessas coisas. O cumprimento de metas valia muito mais que
o bem-estar das pessoas. Por isso, Evangelistas e Márcias foram personagens
comuns por esses PAD’s da vida.
Conclusão
Esta é uma história que ainda não foi contada em toda a sua plenitude. Talvez
nunca será. Enquanto isso, o tempo faz a sua parte calando as vozes, para sempre
e levando consigo o relato oral que somente poderia ser contado por quem
viveu o drama.
Mas, mesmo a despeito de tão pouco se ter dito e pesquisado sobre a migração acontecida para o Acre, durante o governo militar, ainda há tempo. As
pessoas são a alma e a memória da terra. Apesar de tudo restarão sempre os seus
sonhos e com eles novos olhares. E como disse Isabel Cristina Martins Guillen,
ainda bem “que sempre sobra um homem para contar a história.” Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco/PE
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Nead Especial 2
Anexo I – Depoimentos de servidores e migrantes
Depoimento 1
“Certo dia, ao concluir o assentamento de 58 famílias, o sol começava a sumir na
mata. Na floresta, escurece mais cedo e rapidamente. Sabia que era impossível
retornar caminhando até a sede, que ficava a uns 15 quilômetros do local. Ainda
não havia estrada implantada e o único jeito era ir a pé através de um picadão.
Para complicar ainda mais a situação, uma forte tempestade se aproximava. Como
não conseguiria caminhar na escuridão, resolvi passar à noite ali mesmo, sentado
no chão, de costas para o meu colega de trabalho, na esperança que alguém
viesse nos socorrer. Cada um de nós vigiava o seu lado. Ainda tive a idéia de gritar
e urrar, com pequenas pausas, para espantar as onças e outros predadores. Assim
fizemos por toda madrugada. Quando o dia clareou, demos com uma senhora
de idade avançada que dormia em cima de uma árvore, tranqüilamente, a poucos metros de onde a gente estava. Envergonhado e encharcado até os ossos
pela chuva que ainda caia, fui falar com ela. Me disse não ter escutado nenhum
grito durante a noite e já está acostumada a dormir ao relento, principalmente,
quando vinha até a sede do Projeto, fazer suas compras”.(Chiquinho ex-servidor
do Incra/AC – 1981).
Depoimento 2
“O meu compadre JoãoBarbudo veio na frente. E eu disse para ele que se lá désse
para pobre viver antão escrevesse para mim. Passado uns tempo recebi uma
carta dele. Então vim sozinho, passei uns trinta dias por aqui para ver como era,
gostei e fui buscar a minha família pois já tinha feito minha inscrição no Incra. Lá,
eu trabalhava em terras alheias, arrendadas. Aqui pelo menos teria uma parcela
para trabalhar no que era meu. Foi uma viagem sofrida cerca de quarenta dias
em cima de um caminhão.”( Custódio Rodrigues – assentado no PC Humaitá)
Depoimento 3
“Andei em muitos estados antes de vir para o Acre, conhecendo, para não tomar
decisão errada. A doutora Mariza, gerente da Itaipu, disse para nós que o Acre
era muito bom e que se a gente quisesse ela daria um jeito de trazer a gente.
Fiquei com um pouco de medo. Ninguém tinha quase notícias daqui. Eu morava
em Itaquará, município de São Miguel do Iguaçu, Paraná. A Itaipu nos deu dez
Memória Incra 35 anos
anos, mas com seis as águas começaram a subir e tivemos que sair. Então resolvi
vir para o Acre com mudança e tudo. Saímos com 16 famílias em seis ônibus e
chegamos com três ônibus. Trouxe comida para passar um ano sem comprar
nada: nove latas de banha de porco, oito sacos de arroz limpo, fora o que vinha
em casca, 10 sacos de café em coco e uns 300 quilos de salame. Eu, a mulher e
os oito filhos.” (João Gomes Pereira – assentado no PC Humaitá)
Depoimento 4
“É normal em todas regiões pioneiras os problemas e as dificuldades. Quando o
oeste de São Paulo foi colonizado, havia também muita malária e muitas barreiras
a serem vencidas. A ocupação de regiões é uma aventura que exige coragem.
Quem é acomodado e fraco não deve sair de casa. Garanto que o sacrifício de
hoje vai ser o grande prêmio de amanhã, pois o colono com cinco anos nesta
área gozará de uma atuação muito melhor do que sua realidade anterior. O Incra
dá condições necessárias e cada um tem queda dá o seu esforço próprio com a
dose de sacrifício peculiar a este tipo de assentamento.” (Paulo Yokota – presidente
do Incra – entrevista veiculada no jornal Gazeta do Acre – RB – 27.08.83)
Anexo II – Fotos da colonização no Acre
Mesmo diante de tantas dificuldades, os migrantes transmitiam alegria, expansividade e muita esperança em dias melhores. Até mesmo as crianças, que
numa aventura, assim, são as que mais sofrem, corriam e brincavam o dia todo
e, somente choravam quando tinham que tomar as vacinas obrigatórias.
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O homem e a natureza: o desafio – acervo particular – autor anônimo – 1980
Os migrantes estão chegando – 1981 – acervo particular – autor anônimo
Memória Incra 35 anos
Migrantes no “arraial de adaptação” – 1980 – lembra um
campo de concentração – acervo particular
Arraial de adaptação – 1981 – acervo particular
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Os serviços sanitários não existiam e doenças como malária, hepatite, tifo,
sarampo e desidratação assolavam, levando muita gente a óbito. As cabanas de
lona eram inadequadas devido ao forte calor amazônico já que não possuíam
ventilação. Mesmo assim, há quem diga que esta era uma das poucas “mordomias”
dispensadas a eles no momento da chegada.
Mãos que sabiam plantar e colher, embora em condições adversas. Mãos para tudo.
Anexo III – Saiu na imprensa acreana
Coordenador Marne de Paiva critica o comunismo em
reunião com assentados no PAD Pedro Peixoto
Memória Incra 35 anos
Coordenador Marne de Paiva criticou as assentadas do PAD Pedro Peixoto pelo fato
de as mesmas estarem distribuindo o jornal A Voz Operária. Quase foi linchado.
Reunião com empreiteiros para definir obras de engenharia nos projetos do Incra
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Coordenador Marne de Paiva volta atrás e insere o empreiteiro
no pacote de obras de infra-estrutura
Executor do PAD Pedro Peixoto é pressionado a deixar o cargo por membros do PDS
Memória Incra 35 anos
Referências
C A RDOSO , Fernando Henrique. Amazônia: Expansão do capitalismo. São Paulo.
Brasiliense, 1977.
E STUDOS da CNBB. Pastoral da Terra-2: Posse e conflitos. São Paulo: Paulinas, 1976.
I A NNI ,
Octavio. Colonização e Contra-reforma agrária na Amazônia. Rio de
Janeiro: Vozes,1979.
In c r a . Colonização em dados. Incra. Brasília: 1983.
M A G A LHÃES , Juraci Perez. A ocupação desordenada da Amazônia. Brasília;
Completa, 1990.
N A SCI M ENTO , Francisco José. Reforma agrária: Incra – 20 anos de atuação na
Amazônia Ocidental. Rio Branco: 1995.
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Um novo olhar do Incra para a
realização da reforma agrária
J o s i ma r La n d i m
No dia 22 de abril de 1980 cheguei em Sena Madureira no Estado do Acre, para
trabalhar no Projeto Fundiário Alto Purus (PFAP), cheio de vida e de esperança
em me firmar como profissional de Agronomia e, conseqüentemente como
servidor público, considerando que estava assumindo ali o meu almejado
emprego.
No momento das apresentações fui indagado se era bom de futebol, tendo em
vista, que a Associação dos Servidores do Incra do Projeto Fundiário (Assincra-PFAP),
participava do campeonato municipal de futebol de campo e seus dirigentes
torciam para que os novos servidores fossem atletas, dada a grande rivalidade
existente com os demais times do município.
Contudo, apesar de considerar-me um “perna-de-pau,” mais tarde assumi
a presidência daquela entidade. Fui eleito por meio de voto, para uma gestão
de dois anos e nesse período o time da Assincra foi bi e tricampeão e, graças
ao trabalho de toda a diretoria consegui construir a sede social do clube que
permanece até hoje.
Passei a integrar a equipe do Grupo Técnico (GT–I), onde se encontravam
bons profissionais, já que PFAP naquela época era tido como modelo pois se
destacava no cumprimento de suas metas de titulação.
Dentre os inúmeros trabalhos que contribuí para a sua execução foi a participação como membro técnico da Comissão Discriminatória no Seringal Porto
Mamuriá, situado às margens do rio Purus, próximo à divisa com a Bolívia.
Esse trabalho foi considerado um sucesso, tendo em vista que a comissão
conseguiu deslindar o patrimônio público do particular e arrecadar uma boa
parte de terra que foi destinada aos seringueiros que ali estavam apossados.
Memória Incra 35 anos
No entanto, apesar dos bons resultados alcançados nesse trabalho, passei
a ter algumas preocupações quanto ao papel da instituição, pois aquela ação
restringia-se apenas à entrega de uma Licença de Ocupação (LO) e futuramente
um título definitivo, ou seja, um pedaço de papel que talvez para aquelas famílias
não tivesse um significado maior.
Considerando que se encontravam isoladas no meio da mata, “no fim
de mundo,” sem nenhuma infra-estrutura de acesso, sem transporte e sem
atendimento das políticas públicas de educação, saúde, isto é, sem assistência
de nada.
Por outro lado, para o Incra aquele título tinha uma importância extraordinária
tendo em vista, que era mais um para o cumprimento das metas.
O futuro, o bem-estar, ou as condições socioeconômicas daquelas longínquas famílias de seringueiros, embora fosse motivo de preocupação as políticas
econômicas naquela época, não propiciavam efetivamente os meios necessários
para o desenvolvimento daqueles honrados trabalhadores brasileiros.
Continuando os passos da minha sonhada caminhada, a qual já me dedicava com imenso amor por ter consciência da importância do Incra em 1982
fui convidado a assumir a executória do Projeto de Assentamento Dirigido Boa
Esperança (PADBE), que tinha um escritório de apoio em Sena Madureira e sua
sede, situada a 16 quilômetros da cidade, a margem esquerda da BR – 364. Foi
uma experiência marcante e um desafio que me engrandeceu muito como
profissional e como servidor público.
Logo no início dessa batalha foram acrescidas ainda mais as minhas preocupações a respeito das atribuições do Incra, instituição que já me fascinava
pelo fato de seus dirigentes encararem os problemas com firmeza, criatividade
e, acima de tudo, com honestidade.
Estava feliz porque ia trabalhar num projeto de assentamento e com certeza
ficaria mais próximo dos trabalhadores rurais e de certa forma poderia contribuir
de algum modo com a melhoria das condições de vida daquelas famílias.
Considerava que os objetivos da instituição naquele projeto poderiam ir além
da simples entrega de um título de terra, pois já percebia que o alvo principal
a se atingir deveria ser a qualidade de vida das pessoas, que com certeza, não
aconteceria apenas com a distribuição ou regularização da terra simplesmente,
apesar de sua primordial importância, pela quebra da estrutura fundiária daquele
Estado e, conseqüentemente do país.
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156
Nead Especial 2
Neste contexto, afligia-me a necessidade de prestar um serviço com qualidade,
mesmo diante dos parcos recursos existentes, bem como senti a urgência de
usar o poder criativo de estimular aqueles agricultores no cultivo da terra.
A falta de interação entre os departamentos da instituição propiciava uma
situação constrangedora, porquanto saí de um projeto fundiário, que de certa
forma tinha todas as condições necessárias, para um de assentamento dirigido,
onde os meios de trabalho eram os mais adversos possíveis.
Na verdade a estrutura organogrâmica da instituição com a departamentalização de alguns setores criava dificuldade de comunicação e interação das ações,
embora os objetivos fossem os mesmos, ou seja, a valorização do homem do campo.
Não havia naquela época, uma delimitação específica da função da instituição. Assim, seus servidores acabavam assumindo atitudes completamente
paternalistas, pois compreendiam que o Incra deveria se incumbir de um leque
enorme de atividades. E o executor de projeto, principalmente muitas vezes
assumia papéis de toda a ordem: padre, juiz, delegado, conselheiro, advogado,
entre outros.
Na criação e implantação do projeto, muitas vezes não se levava em consideração as peculiaridades da região, nem a cultura e os costumes das famílias
existentes nos seringais.
Geralmente, o anteprojeto de parcelamento, era feito em escritório e todo
imóvel era retalhado em lotes, sem o cuidado de observar as condições locais,
os divisores de água, bem como a principal atividade de exploração, o látex da
seringueira.
Naquela época, um dos objetivos do poder central, dos governantes locais
e, conseqüentemente, do órgão de cúpula da instituição era o de povoar a
Amazônia, por ser uma região de baixa densidade demográfica, de floresta
abundante, de solos ricos, de pouca produção agropecuária e de segurança
nacional, por ser fronteiriça.
Quanto aos solos, cometeram um grande equívoco, pois comprovadamente
a exuberância da floresta Amazônica estava ligada ao clima quente e úmido e
não à riqueza de suas terras. Portanto, retirar a camada vegetal por completo
em determinadas situações estava-se cometendo um crime ecológico dado ao
intenso processo de erosão.
Neste relato não poderia deixar de mencionar o papel do grande guerreiro
e saudoso Chico Mendes, com quem tive a oportunidade de conversar pessoal­
Memória Incra 35 anos
mente, em sua cidade natal Xapuri-AC. Ele me demonstrou como seringueiro
que foi e amante da floresta Amazônica como ninguém, a necessidade de
projetos de preservação daquele tesouro nacional e as peculiaridades da região.
Não hesitando diante de inúmeras ameaças que recebeu e defendendo-a com
amor e coragem até a morte.
O governo Federal, em busca de alcançar os objetivos de habitar a região e,
ao mesmo tempo, aumentar a produção agropecuária, fazia veicular na mídia a
distribuição de lotes por meio do Incra. Isto era noticiado para agricultores como
os de São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Paraná, entre outros.
Na propaganda eram oferecidas além da terra, todas as condições necessárias
tais como, transporte e alimentação até o projeto, que diziam ter água potável,
estradas, habitação, escola, atendimento à saúde, crédito e assistência técnica.
Veja a responsabilidade que era assumida pelo executor do projeto em receber as famílias e colocá-las em suas parcelas para produzirem sem o mínimo
da infra-estrutura e assistência social necessária e de incumbência das diversas
esferas governamentais.
Da forma que era feito o parcelamento, muitos lotes ficavam longe dos recursos hídricos e as famílias tinham que se deslocar vários quilômetros para terem a
água de consumo. As estradas tornavam-se de custo muito elevado, pois além
da escassez de piçarra, por serem traçadas em escritório, na prática cortavam
os divisores de água e as obras de artes (pontes e bueiros) tornavam-se muitas
e encareciam bastante a construção de um quilômetro de vicinal.
A principal via de acesso do PADBE é a BR-364, projetada até o Peru, mas
aberta somente de Rio Branco ao município vizinho Manoel Urbano. Na época
era trafegável durante três meses no ano. Para se ter dimensão das dificuldades
de tráfego nessa rodovia, a sede do projeto distava apenas 16 quilômetros da
cidade, porém no período chuvoso o acesso dava-se apenas de barco, onde
nesse percurso gastava-se quatro horas e meia, sendo trinta minutos a pé.
No Projeto os agricultores produziam milho e arroz. A produtividade era tão
boa que se o acesso fosse favorável, logo estariam bem de vida.
Contudo não havia alternativa, a não ser esperar pelo período seco e a vontade do poder público em reabrir as estradas. Quando chegavam as condições
de escoamento, esses produtos já estavam quase todos apodrecidos, tendo em
Piçarra- terra misturada com areia e pedra; cascalho (NR).
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Nead Especial 2
vista que as condições de armazenamento eram precárias. Assim, o desestímulo
e as frustrações por parte dos agricultores eram intensas.
As escolas eram improvisadas em baixo de barracos ou de árvores, caso
tivesse um professor da própria comunidade.
Todo o atendimento à saúde havia necessidade de deslocamento para Sena
Madureira, que com bastante sacrifício se fazia por meio de pequenas embarcações e muitas vezes debaixo de chuva e a qualquer hora da noite.
Ou seja, o Incra criava com devotamento e expansibilidades os Projetos de
Assentamento, mas havia indubitavelmente a falta de infra-estrutura, incubêrncia
do poder público.
Mesmo assim, a coragem e a esperança daquele povo, causavam muita emoção a qualquer um, pois diante de todas as dificuldades, quando eram visitados
no período chuvoso recebiam a todos de braços abertos, sempre com muita
hospitalidade, sorrisos de felicidade e com fé em Deus de que um dia aquela
situação iria melhorar.
Diante desta realidade os seringueiros, em sua maioria nordestinos, que já
residiam naquela região desde a década de 1940 (soldados da borracha), isto
é, bem antes da criação do projeto de assentamento, sentiam-se prejudicados
pelo parcelamento, que além de não levar em consideração os recursos naturais,
também não respeitava a cultura local.
Com o retalhamento da área não se sentiam estimulados em abdicarem da
atividade extrativista em benefício do surgimento e incentivo da agricultura, como
se queria com a implantação do projeto. Assim, restando-lhes ainda algumas
árvores de seringueira dentro dos seus lotes, conseguiam produzir uma péla
de borracha de 50 quilos, transportavam-na em suas costas até à cidade onde
negociavam. Faziam a feira de café, açúcar, sabão e outros gêneros e retornavam
com os mantimentos do mês.
Nesse cenário os parceleiros encontravam-se em situação de desigualdade
em relação aos seringueiros, pois não podiam fazer o mesmo, porque não conheciam a atividade extrativista, por serem agricultores e se fizessem isso com
um saco de milho ou de arroz, 50 quilos de um desses produtos, quantidade
máxima que podiam carregar em suas costas, não compensaria o tamanho
esforço pelo baixo preço daqueles gêneros alimentícios.
Péla – bola de borracha (NR).
Memória Incra 35 anos
Com o passar do tempo as relações de amizades foram sendo estabelecidas entre seringueiros e agricultores, os quais querendo assegurar sua
sobrevivência e de sua família aprenderam a cortar seringa e fazer igual aos
seringueiros.
Diante da realidade fatídica, em vez de os seringueiros aprenderem a fazer
a agricultura que se praticava naqueles estados brasileiros, para atender aos anseios da política econômica que se almejava implantar naquela região, ocorreu
o contrário: os seringueiros ensinaram o extrativismo aos agricultores.
Os hercúleos esforços do Incra por meio de seus executores de projetos,
diante das adversidades estruturais daquela região, em face de políticas públicas
que não levavam em consideração as suas peculiaridades, não se obtinha o êxito
pretendido; se as condições necessárias não são favorecidas, nem há respeito
à cultura local, nem à pessoa humana, além de outros fatores, o fracasso de
qualquer projeto é conseqüência inevitável.
Somente a partir da morte de Chico Mendes, com repercussão internacional,
a política foi redirecionada e essas questões foram mais observadas, surgindo os
primeiros projetos extrativistas, sendo criado um dos maiores, em Xapuri.
No curto período seco os trabalhos eram intensos, porquanto o acesso
era reaberto e contribuía para um melhor atendimento às famílias no que diz
respeito ao transporte à cidade. Também era o período em que, geralmente,
as obras de infra-estrutura eram feitas, quando havia recursos, ou seja, ramais,
escolas e postos de saúde.
Naquela época, os termos parceria e integração das ações públicas estavam surgindo no papel, mas na prática encontravam-se muito longe de concretização.
O Incra construía as escolas e os hospitais de forma isolada, sem nenhuma
discussão ou entendimento com o poder público local. Dessa maneira havia
escolas e hospitais, sem funcionamento, ou seja, como verdadeiros “elefantes
brancos,” no meio daquela grande mata.
Diante das mutações sociais e políticas, além do aumento da preocupação
com o meio ambiente, surgia um cenário de profunda revolução com o advento
em 1985, do processo eleitoral muito comentado pelo país afora, por ser o ano
das Diretas já, quando o MDB foi o partido que mais se fortaleceu em âmbito
nacional em função da figura humana e política, Tancredo Neves.
Na ocasião, tomei a decisão de entregar a executória do PDBE, no dia 10/7/1985
e, ao mesmo tempo solicitei minha remoção para Rio Branco.
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Nead Especial 2
Para mim, esse período de quase três anos diante daquele projeto, foi uma
experiência gratificante, pelo tamanho aprendizado, mas por outro lado muito
angustiante, pelo fato de não ter podido de forma eficaz suprir as carências
estruturais e contribuído mais, no que tange ao desenvolvimento das pessoas
que encontrei ali.
Tenho plena certeza de que não me faltaram esforços, nem competência,
nem tampouco, de todo o quadro de servidores do PAD Boa Esperança, que tive
a grande honra de dirigir por quase três anos, porém pelos motivos já comentados, ou seja, falta de infra-estrutura, vontade política, respeito ao ambiente e
a cultura local, para o cumprimento dos objetivos já referidos.
Naquele ano chegando em Rio Branco fui trabalhar no PF Uaquiri e até tive a
felicidade de novamente estar ao lado do grande amigo Waldir da Silva Pamplona,
que já havia sido executor do PFAP, quando estive em Sena Madureira.
Permaneci por mais três anos nesse projeto e após oito anos de serviços prestados naquela região solicitei minha transferência para o meu Estado do Ceará.
Considerando que sempre foi um desejo de minha família e, principalmente, do
meu pai que passava naquela época por problemas de saúde e meu retorno
com certeza contribuiu bastante para o seu restabelecimento.
Até hoje sou muito grato à sensibilidade de minha instituição a qual sirvo
com amor e devotamento, que diante dos percalços familiares e pessoais pelos
quais passava, autorizando a minha transferência para Fortaleza.
No início da nova jornada de trabalho, em fevereiro de 1988, embora estivesse
em minha terra, foi uma época difícil. Apesar de ser funcionário da “casa” há muitos
anos, vinha de uma região completamente diferente do Nordeste.
No entanto, esse fato para mim foi muito engrandecedor, pois compreendi
que em qualquer meio de trabalho é necessário adaptar-se às peculiaridades
culturais e econômicas de cada região.
Por sorte fui designado para trabalhar no Assentamento, onde pretendia continuar o trabalho que havia iniciado no PADBE, embora tivesse a clareza de que
em termo regionais estava diante de duas realidades completamente distintas.
No Acre trabalhei com a colonização, mesmo sendo um PAD tinham-se
os parceleiros; no Ceará, já se tentava trabalhar com a reforma agrária, onde o
agricultor passava a ser o sujeito da ação e denominado assentado.
A oportunidade de participar de um curso de Gestão para Áreas de reforma
agrária, ministrado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Memória Incra 35 anos
(Pnud), foi fundamental para abrir a minha mente e entender como deve ser visto
o processo de reforma agrária, no qual nós servidores do Incra devemos trabalhar
com a autogestão, onde o agricultor é o ponto central de todas as questões.
A partir desses cursos o trabalho na Superintendência veio a se fortalecer e
o paradigma do parcelamento foi quebrado. Considerando que a maioria dos
servidores da SR-02 tinha ainda um apego imenso ao modelo parcelado, mesmo
com os resultados adversos ao almejado na região dos Inhamus.
Graças ao trabalho insistente dos servidores engajados no processo e do
próprio superintendente na época, além de outros técnicos importantes dentro
do contexto da reforma agrária no Ceará, os quais, deixo de nominar para não
cometer a gafe de esquecer alguém.
O parcelamento foi abolido em nosso Estado, bem como colocado na ordem
do dia a participação dos movimentos sociais e o fortalecimento das organizações
dos trabalhadores rurais, sempre representadas por associações ou cooperativas,
portanto tenho plena certeza que somente a partir daí tivemos os melhores
resultados no processo de reforma agrária no Ceará.
Passar a trabalhar a autogestão nos assentamentos para mim foi o grande mote
para a instituição alcançar os melhores resultados e dentre eles posso apontar
o Projeto de Assentamento Santana Serra das Bestas, situado em Monsenhor
Tabosa, que considero uma experiência de reforma agrária de nível internacional.
Ali, cerca de 70 famílias de agricultores assentados conseguiram superar todas as
dificuldades que o sertão do Ceará oferece e hoje vivem com dignidade.
Sem dúvida sei que muitas experiências positivas podem ser mostradas por
este Brasil afora. Também tenho certeza de que todos os resultados positivos
surgiram a partir do olhar diferente ou da modernização, ou talvez de uma
verdadeira transformação, em nível nacional, que a Instituição vem passando a
cada dia, para a realização da reforma agrária.
É fundamental lembrar também, que nos últimos anos muitos temas e ações
estão sendo mais assegurados dentro da instituição como: assistência social,
técnica e jurídica às famílias acampadas, Plano de Desenvolvimento dos Assentamentos (PDA), concessão de crédito de instalação, meio ambiente, licenciamento
ambiental, recuperação do passivo ambiental, gênero, raça (quilombolas), geração
e etnia, arte e cultura, ações de cidadania em direitos humanos, documentação,
além da própria assistência técnica, com o grande programa de Ates. Por outro
lado, as pessoas, principalmente as chefias, ao meu ver procuram assumir mais
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Nead Especial 2
o papel de gestores de políticas públicas e não mais aquela visão antiga, de que
o Incra deveria fazer tudo sozinho.
O programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) tem contribuído muito na educação de jovens e adultos por esse país afora.
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf )
é outro programa fundamental que tem contribuído o processo de reforma
agrária, embora na minha opinião, ainda precise de algum aperfeiçoamento, que
com certeza virá no decorrer do tempo para melhor atender aos assentados e
a agricultura familiar como um todo.
Tenho clareza de que a instituição muito tem feito pela efetivação da reforma
agrária, no entanto muito mais há que se fazer, pois o Brasil é como se canta no
hino nacional “ gigante por natureza.”
Finalmente, não me sinto ainda completamente desangustiado, haja vista a
diversidade de acampamentos espalhados por este Brasil afora e outra imensidão
de assentamentos para serem recuperados, todavia o segundo Plano Nacional
de Reforma Agrária está aí com seus respectivos planos regionais, o orçamento
da instituição vem crescendo e o fortalecimento do Incra por meio da sonhada
e esperada implementação do Plano de Carreira e a realização de concurso público. Portanto, a luta continua e confio que a vontade política surja em nossos
representantes e favoreça a caminhada em busca da realização concreta da
reforma agrária. Memória Incra 35 anos
mencao honrosa
12
Um telefonema inesperado
J o s e ly A pa r e c i d a T r e v i s a n M a s s u q u e t to
A iniciativa de reconstruir a memória do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária a partir de textos e acontecimentos que marcaram a vida profissional de servidores dessa instituição é de todo louvável: quem quer que a tenha
concebido certamente foi guiado pelo nobre ideal de valorizar o servidor público
comprometido com a reforma agrária. Certamente muitos órgãos públicos, espalhados pela imensidão desse país, têm memórias a resgatar e histórias a preservar.
Contudo, em se tratando de refazer o caminho percorrido pelo Incra ao longo
de 35 anos, o projeto Memória Incra 35 anos ganha contornos especiais porque
faz com que cada servidor público, até mesmo aquele que não participou do
concurso, vasculhe em suas lembranças fatos que jamais se apagarão de seu
arquivo pessoal, ainda que se passem mais 35 anos.
Somente a constatação do efeito propagador de histórias e ativador de
lembranças já seria suficiente para fazer com que tal certame tivesse sucesso
garantido, digno do reconhecimento de todos os servidores da entidade.
Na verdade, ainda que um só servidor participasse a iniciativa já teria valido
a pena. Afinal, ao incentivar o servidor a reconstruir a memória deste órgão público, encarregado de executar a reforma agrária e implementar a regularização
fundiária no campo, o presente concurso como que convida cada qual de seus
profissionais a reforçar o motivo pelo qual ainda permanece firme no propósito
de desempenhar uma tarefa para a coletividade, enfim, um serviço público.
Em outras palavras, ao incentivar o servidor a abrir seu baú de memórias
empoeiradas e trazê-las para a claridade proporcionada por 35 anos de muito
trabalho e incontáveis conquistas, este projeto desperta no servidor seu orgulho
em fazer parte dessa história e dessa caminhada.
Memória Incra 35 anos
Este foi o motivo que, mesmo madrugada adentro consigo inspiração para
dizer o quanto me orgulho de integrar uma equipe de servidores públicos engajados com a reforma agrária.
Para alguns basta acordar todas as manhãs e seguir o ritual imposto pelo
dever de trabalhar. Para mim, no entanto, e sei que também para outros servidores, a obrigação cede lugar ao prazer quando cada dia de trabalho é encarado
como um desafio a ser superado. E foi exatamente a sensação que tive quando
do acontecimento, relativamente recente, que passo a narrar como forma de
colaborar com a reconstrução da memória do Incra.
Foi assim: no final de 2004 o Incra obteve na Justiça Federal, mediante o
ajuizamento de uma ação anulatória, o direito de imitir-se na posse de uma
extensa área de terras, aproximadamente 23 mil hectares. Após uma batalha
judicial este direito foi conquistado, a fim de que mais de duas mil famílias de
trabalhadores rurais sem terra pudessem permanecer na área que ocupavam
há mais de quatro anos.
Tratava-se de um contingente aproximado de dez mil pessoas. A imprensa local
chegou a designar a ocupação como “um dos maiores assentamentos do Brasil.”
Pois bem, após a imissão na posse, o proprietário, inconformado com a
decisão judicial, dela recorreu ao Tribunal Regional Federal. Para descontentamento de todos os que defendiam a manutenção das famílias sobre o imóvel
rural, o Tribunal determinou que a imissão do Incra na posse da propriedade
fosse suspensa.
Nem é preciso dizer o impacto que tal notícia causou: a suspensão da
imissão do Incra na posse do imóvel rural certamente desencadearia um grave
confronto, vez que o conflito fundiário estava controlado mediante a garantia
da posse estabelecida em favor da autarquia.
Com efeito, a situação fatídica assemelhava-se a um barril de pólvora prestes
a explodir: a suspensão da autorização judicial para o Incra gerir o acampamento
representava um verdadeiro retrocesso no avanço alcançado após tanto tempo
de espera. Sem dúvida, um estado de desespero tomaria conta das pessoas e a
reação poderia ser a pior possível, inclusive com derramamento de sangue.
Afinal, debaixo de cada lona havia um núcleo familiar sedento por justiça
social e igualdade. De fato, todos que ali estavam ansiavam por um pedaço de
terra para cultivar; desejavam que cada gota de suor derramado pelo sol escaldante não fosse em vão; sonhavam com o dia em que a solução do impasse
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Nead Especial 2
fosse realidade e imaginavam como seria bom se as gotas de chuva, até então
frias e impiedosas, pudessem se misturar às lágrimas de felicidade derramadas
em nome do direito de plantar, colher e viver em paz.
Diante de tão urgente quadro fui designada para tentar obter uma audiência
com o prolator da referida decisão, na tentativa de sensibilizá-lo quanto às graves
conseqüências que dela poderiam advir.
Então, desloquei-me para outro Estado e utilizando os argumentos de que
dispunha, ouvi do julgador que a situação poderia ser reexaminada se lhe fosse
dirigido um pedido de reconsideração fundamentado, instruído com provas e
documentos que retratassem o contexto social que eu descrevera em sua presença.
Retornei para meu Estado de origem e durante dias trabalhei na elaboração
do mencionado pedido de reconsideração: após descrever em detalhes a situação desumana em que se encontravam as milhares de pessoas acampadas na
propriedade rural, apresentei fotografias que comprovavam os fatos descritos;
narrei as agruras experimentadas pelos acampados com as intempéries; relatei
as dificuldades enfrentadas pelos heróicos servidores do Incra encarregados
de proceder ao cadastramentro de mais de duas mil famílias, em meio a tanta
desesperança e sofrimento.
Finalmente, demonstrei que enquanto lona e lama fossem o teto e o chão
de tantos brasileiros acampados no imóvel rural, a “dignidade da pessoa humana”, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, não passaria de um
amontoado de palavras sem sentido e sem significado.
Para felicidade geral, o julgador reconsiderou seu posicionamento anterior e
através de nova decisão houve por bem em manter o Incra na posse do imóvel,
situação que permanece até os dias atuais.
Além dos sentimentos de alívio e alegria, confesso que intimamente me
senti gratificada pela decisão obtida e isto já bastava para meu contentamento.
Comuniquei às esferas superiores o êxito alcançado pela instituição como um
todo. Também a Coordenação local ficou muito satisfeita e agradecida.
Enfim, aquele dia foi um dia especial: ao voltar para o aconchego de meu lar
dividi com meus familiares a experiência única de fazer parte de um contexto
onde se busca a distribuição da justiça da forma real e concreta. Percebi que pela
narrativa do episódio, impulsos de ânimo e encorajamento foram despertados
em meu filho e em meu marido, o que também serviu de estímulo em seus
desafios pessoais travados no dia-a-dia, cada qual em sua tarefa.
Memória Incra 35 anos
Porém, uma alegria ainda maior esperava por mim no dia seguinte: qual
não foi minha surpresa ao receber uma ligação telefônica de Brasília/DF, na
qual a interlocutora se identificava como secretária do Gabinete da Presidência
do Incra.
Tomada por um misto de surpresa e perplexidade, sugeri à secretária que
poderia estar ocorrendo um engano, pois jamais imaginei que alguém vinculado
à Presidência do Incra, sobretudo o próprio presidente, pudesse estar fazendo
contato. Todavia, ela confirmou que era comigo que desejava falar e em seguida
transferiu a ligação.
Nem é preciso dizer que após ouvir a voz do presidente do Incra, identificandose como tal, faltaram-me, a um só tempo, ar e voz. Suas palavras foram de apoio,
agradecimento e reconhecimento pelo trabalho realizado. Após alguns segundos
de pura emoção consegui agradecer pelas palavras de incentivo recebidas e
disse-lhe que jamais esqueceria sua atitude de encorajamento.
No diálogo que mantivemos o presidente do Incra fez questão de destacar a
grandiosidade daquela conquista obtida no Tribunal. No entanto, ao responder
a esta observação eu é que fiz questão de demonstrar a ele, o quão grandiosa
e rara fora sua atitude naquele episódio. Destaquei que procedimentos como
o que ele adotara serviam para despertar no servidor, às vezes tão injustiçado e
criticado pela sociedade, o orgulho de trabalhar por uma causa social de grande
expressão nacional.
Enfim, transmiti ao presidente da entidade que aquele simples telefonema,
a partir de então, funcionaria para mim como uma alavanca, impulsionando-me
para novos e maiores desafios, capazes de elevar a autarquia para vôos ainda
mais altos, mesmo quando os obstáculos parecessem intransponíveis ou quando
as dificuldades insistissem em ofuscar o brilho das atribuições que incumbem a
cada servidor público da reforma agrária.
Controlei minha imensa satisfação e comentei com poucas pessoas acerca
do ocorrido: temia que o alarde fosse confundido com os exageros próprios
da vaidade. Mas agora, impulsionada pela alavanca do incentivo distribuído
pela Presidência do Incra e pela belíssima iniciativa deste concurso, busco em
minhas lembranças aquele episódio e quero afirmar que o que tem realmente
importância no resgate dessa memória não é o fato de eu ter sido agraciada
com um telefonema de parabenização, mas sim, o fato de que, em assim o fazendo, o presidente do Incra demonstrou que gestos simples e singelos, como
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Nead Especial 2
um telefonema inesperado, novos horizontes podem ser descobertos e novo
estímulo pode ser dado à vida profissional de qualquer servidor.
Alguns poderão dizer que não fiz nada além de minha obrigação profissional.
Outros poderão afirmar que já tive meus cinco minutos de glória e que isto deve
bastar. De minha parte, prefiro seguir acreditando que cumpri com meu dever
profissional, mas o fiz com muita satisfação.
Não há “cinco minutos de glória ou fama” que se equiparem à alegria proporcionada pela notícia de que os idosos, as crianças, as mulheres grávidas, os
recém-nascidos, os jovens, os homens, as mães de família, rostos que só conheci
através de fotografias, não mais seriam despejados, permanecendo o Incra na
posse do bem de raiz.
Sei que para os acampados, hoje assentados, pois o recurso interposto pela
parte contrária foi julgado em favor do Incra e o projeto fundiário caminha a
todo vapor, a conquista obtida na justiça é anônima: não há um rosto e não há
um nome em especial. Mas assim é que deve ser.
Como órgão público, em sua feição exterior, o Incra deve apresentar-se
como entidade una.
Contento-me em saber que nós, servidores do Incra, de uma forma ou de
outra, somos verdadeiros instrumentos de realização da justiça em nosso país,
na medida em que fazemos nossa parte em prol da execução da reforma agrária,
assim compreendida em todos os seus desdobramentos e derivações.
Por isto, acredito que qualquer um de nós pode também estar do outro
lado da linha telefônica e receber uma palavra de estímulo e encorajamento. A
propósito, há coordenações em nível estadual que também já perceberam os
efeitos positivos de um sincero reconhecimento e assim têm logrado obter maior
adesão e participação dos integrantes de sua equipe de trabalho.
Finalmente, colho a oportunidade deste relato para enfatizar que a iniciativa
de resgate das memórias do Incra vem ao encontro da necessidade sempre
presente de se vislumbrar no servidor público da reforma agrária a força que lhe
é peculiar e o reconhecimento que merece. Como servidores públicos estamos
fazendo a história acontecer hoje e agora.
E se uma palavra de incentivo pudesse eu transmitir aos colegas servidores
do Incra (ativos, aposentados, dirigentes atuais ou ex-dirigentes), diria: PARABÉNS!
Sua história se confunde com a do Incra porque vocês ajudaram a escrevê-la e
agora, resgatá-la.
Memória Incra 35 anos
Que possamos seguir altivos e firmes em nosso propósito de desempenhar
um papel transformador no meio social em que vivemos, sempre com seriedade e
responsabilidade. Quem sabe assim um dia venha para todos, o reconhecimento
tão merecido, talvez não sob a forma de um telefonema, mas pela construção
de uma sociedade mais justa e solidária. 169
13
Incra: gênero e número
M a r i a Au x i l i a d o r a G u i ma r ã e s d e Ca s t i l h o
Minas Gerais, região do Alto Paranaíba. Terra boa e próspera, com a economia
baseada principalmente nas atividades agroindustriais. É de lá que sai boa
parte da safra de milho, café, batatas, cenoura, alho, frutas e muito da produção
mineira de laticínios. In natura e industrializados. Numa região dessas, onde a
generosidade do solo se soma à fartura de água e a regularidade do clima, não
costuma sobrar terra. Não bastasse a generosa parceria com a natureza, tem
localização privilegiada, com acesso aos grandes mercados de Minas, São Paulo
e do Distrito Federal.
Não foi, portanto, nenhuma surpresa quando, a partir de 1996, os movimentos
sociais – de forma mais acentuada o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araxá,
filiado a Central Única dos Trabalhadores (CUT) passaram a reivindicar de forma
veemente a ação do Incra nessa região.
Os acampamentos de sem-terra surgiam e se multiplicavam da noite para
o dia em vários municípios demandando vistorias e desapropriação de imóveis
improdutivos e sua destinação para a agricultura familiar. Na época, eu tinha
pouco mais que dois anos de trabalho na Superintendência Regional de Minas
Gerais, onde tomei posse em janeiro de 1994, como orientadora de projetos de
assentamento. E já então, o número de servidores era insuficiente para atender
um estado com as dimensões geográficas e sociais de Minas.
Extenso, diverso, e complexo em sua pluralidade, seus mais de 800 municípios sintetizam a variedade do próprio país. Minas Gerais exigiu e continua a
exigir de nós, os servidores da SR-06, resistência física para as viagens longas e
seguidas, além de muita versatilidade para perceber e interagir com sutis, porém
marcantes diferenças regionais.
Memória Incra 35 anos
E foi em uma dessas jornadas, percorrendo acampamentos e cadastrando
famílias na região do Alto Paranaíba que eu conheci Marta*, uma menininha de
seis anos, que me marcou de forma especial.
Marta era uma entre dúzias de crianças do acampamento, surgindo de todos
os lados, levantando poeira, correndo por uma pequena e descampada colina
em grande algazarra, quando a Belina 1987 do Incra cruzou a cancela da fazenda
recém-desapropriada.
— Êba, êba! O Incra chegou! O Incra chegou!O Incra chegou!
A meninada gritava e rodeava o carro, se empurrando em meio aos vira-latas
que, agitados com a gritaria, latiam sem parar, as crianças expressando com
naturalidade a ansiedade que os adultos tentavam conter.
Foi com essa recepção animada e barulhenta que cheguei ao acampamento
para iniciar mais uma missão: cadastrar as cerca de 50 famílias ali acampadas e
candidatas a beneficiárias no assentamento que logo seria criado.
O acampamento estava montado bem na entrada da fazenda, próximo à
estrada de acesso, já que naquela propriedade não havia nem mesmo uma casa
sede que pudesse servir de referência ou oferecer alguma comodidade àquelas
famílias. Assim, improvisando alguns caixotes como mesas e cadeiras, ajeitei-me
à sombra de uma árvore para atender às famílias.
Os coordenadores do acampamento, já prevendo o tempo que seria gasto
por uma única servidora para atender a tanta gente, esticaram uma lona para
além da sombra da árvore, de modo a garantir proteção contra a mudança da
posição do sol no decorrer do dia.
E foi detrás de um dos mastros que sustentavam o improvisado toldo de
lona preta que surpreendi, fixados em mim, cheios de admiração, os olhos muito
abertos e negros de Marta. Devolvi o olhar com um sorriso, mas, intimidada, Marta
escondeu depressa a carinha espantada atrás do mastro. Algumas vezes, me olhava
com um só olho, escondendo a outra metade do rosto. Cabelos muito lisos, a
franja exageradamente curta realçava a expressão de espanto dos olhos.
A cena se repetiu várias vezes: eu percebia que ela estava me olhando, retribuía o olhar, e de forma arisca e encabulada, ela voltava a esconder o rostinho.
E ali ficamos eu e a menininha curiosa e arisca, nos comunicando com os olhos
durante um bom tempo.
Foi quando se apresentou para o cadastro um homem forte, a pele avermelhada maltratada pelo sol, barba por fazer, rodando o chapéu pelas abas com
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Nead Especial 2
as mãos grossas de trabalhador rural, deixando à mostra a calva avançada e os
poucos cabelos já grisalhos. Como num passe de mágica, a menina sai de seu
esconderijo detrás do mastro e se cola às pernas do homem, que faz um carinho
distraído em sua cabeça.
— Essa é a Marta, minha filha caçula, informa o homem.
Estendo a mão sobre a mesa caixote, e aperto a mãozinha suada.
— Muito prazer, Marta!
Nesse momento, ela levanta o rosto, abre ainda mais os olhos, e diz com o
tom de voz de quem acaba de fazer a mais fantástica das descobertas:
— Pai, o Incra é muié!
Os que estão por perto começam a rir, e o pai constrangido, se apressa em
repreender a menina:
— Larga de ser boba, menina! O Incra é o carro que traz os homi e as muié pra
trabaiá!
Marta não se abala com a repreensão do pai. Pulando e correndo entre as
barracas do acampamento, vai repetindo, apregoando em tom de orgulho, a
sua extraordinária descoberta:
— O Incra é muié! O Incra é muié!
Final de tarde, atendidas boa parte das famílias, interrompi o trabalho que
iria terminar no dia seguinte.
Quando cheguei ao acampamento no outro dia, já mais relaxadas e acostumadas com a nossa presença, as crianças se dispersaram rapidamente após a
recepção ruidosa. Menos Marta. Os olhos grandes fixos em mim, já não demonstravam acanhamento nem timidez. Mal abri a porta do carro, foi me dizendo
com a convicção e a certeza que a gente só tem na infância: – Moça, quando
eu crescer, eu quero ser Inra que nem a senhora.
Respondi alguma coisa como “que legal!” surpreendida com aquela declaração explícita de identificação. Apenas sorri um tanto comovida, e me preparei
para terminar meu trabalho. Afinal, depois daquele, tinha outro e mais outro
acampamentos, e muitos outros trabalhos a serem feitos.
Desde esse episódio, percorri praticamente toda a trajetória de atividades
da criação à consolidação de muitos projetos de assentamento, em diferentes
regiões de Minas. Estive presente inúmeras vezes nas etapas que compreendem
o cadastro das famílias, o processo de seleção, o Sipra, as assembléias de legitimação, liberação de créditos. De acampamento a assentamento fui construindo
Memória Incra 35 anos
minha bagagem. Ouvi muitas histórias, causos, conheci muita gente, aprendi
muita coisa. Vivi situações cômicas, outras quase trágicas. Presenciei cenas tocantes, partilhei momentos de aflição, angústia, mas também muitos outros de
pura alegria e celebração. Mas jamais deixei de me lembrar dos grandes olhos
admirados de Marta e da convicção do seu desejo de ser Incra.
Foi nessa lida diária, que aos poucos fui assimilando a dimensão da surpresa
de Marta, que me pareceu ser a simples admiração de uma criança ao ver um
trabalho tão ansiado pela comunidade, ser realizado por uma mulher.
Tenho minhas raízes muito bem plantadas, e devo dizer, com muito orgulho, no sertão das Gerais. Mas faz tempo que lancei meus olhos, meus sonhos,
minhas buscas para além das veredas do sertão, e fui atrás da construção dos
meus anseios. Sei, até porque não há como deixar de saber, que se muitas coisas
mudaram na sociedade em relação às mulheres, outras permanecem arraigadas,
quase inabaladas. Basta olhar em volta: quantas são as mulheres que ocupam
cargos de decisão? Poucas? Muitas? Não sei quantas, não conheço estatística a
este respeito. Mas sei, com toda certeza, que seu número é muito, muito menor
do que o devido, se apenas a competência para isso, sem considerar diferença
de gênero, fosse requerida.
Em pleno século XXI, ainda há muitas portas fechadas, muito espaço que
não permite partilha com o modo próprio da mulher de ver e agir. E se nos espaços urbanos, as distâncias entre os gêneros são menos percebidas, ou mais
diluídas, no meio rural, são muitas vezes tão explícitas e drásticas, que dá para
duvidar se realmente alguma coisa mudou nos últimos séculos! E ainda mais:
se as mudanças ocorridas foram a favor ou contra as mulheres!
Não foram poucas vezes em que mulheres de todas as idades, em acampamentos e assentamentos, buscaram e buscam em mim e nas demais colegas
do Incra que trabalham no campo, a informação, o apoio, ou simplesmente o
ouvido cúmplice para falar de suas agruras e esperanças.
Fui percebendo que no imaginário daquela população dedicada ao pesado
e imprescindível trabalho rural, a representação do Incra extrapola o próprio
objetivo da instituição. Está para além e acima do braço do governo federal
encarregado de executar uma política tão ansiada, que por mais que se faça,
sempre parece pouco. Para os que esperam e os que acreditam, e até para os
que já estão cansados, o Incra não é uma instituição: é uma entidade. No sentido
místico da palavra! Com haveres, poderes próprios!
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Nead Especial 2
E dentro desse universo tão especial, a população feminina expressa com maior
veemência seu sentimento: o Incra, essa entidade mística, também é mulher!
Lá no campo, entre as barracas dos acampamentos ou as agrovilas dos
assentamentos, servidoras do Incra são mais que gestoras e/ou executoras de
uma política pública. Somos sempre chamadas a desempenhar múltiplos papéis.
De assessoras para assuntos administrativos e de organização comunitária, a
conselheiras sobre temas que vão das carências sociais aos desacertos afetivos.
Somos o Incra mulher, vistas assim, como aliadas, quase comadres.
As demandas e queixas dessas trabalhadoras rurais vão de reivindicações
pela solução de problemas relacionados com a saúde e educação dos filhos, ao
alcoolismo de familiares, brigas entre vizinhos, violência doméstica, a jornada de
trabalho sem começo, sem fim e sem pausa, a busca árdua e quase sempre nula
pelo acesso aos meios de produção e aos mercados onde oferecer o resultado
das muitas horas de trabalhos: nas roças, nos teares, nas cozinhas, nas agulhas
e linhas, nos currais. Tudo permeado de segredos culinários e dicas de beleza,
claro, já que ninguém é de ferro e beleza é fundamental.
E é assim, desse modo despojadamente feminino, que o Incra é despersonalizado como instituição governamental, ao mesmo tempo em que adquire outra
identidade menos formal e burocrática. Uma identidade somente compreendida
pelos que transitam nesse universo de resistência,esperanças, suor e sonhos que
agrega o povo que vive da lida na terra.
A partir de 2000, iniciativas e programas vêm sendo adotados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Incra, com foco na população
feminina. Em grande parte, diga-se por amor à verdade, por pressão das próprias
trabalhadoras rurais, por meio dos movimentos sociais.
Mas além de mulher, esse Incra sempre chamado a desempenhar múltiplos
papéis, também é plural. O que nos deixa, a nós servidoras numa situação paradoxal de compromisso e impotência.
Tudo isso, acaba por acarretar o risco de que nós, servidoras, sejamos tentadas
a nos responsabilizarmos demais, abarcarmos o mundo, e terminar incorporando
o mito, na tentativa vã de cobrir todos os furos ainda existentes nas políticas
sociais. Mas por outro, existe a certeza da possibilidade de se fazer um trabalho
que transforma, recria, resgata seus agentes e beneficiários num processo de
troca e construção conjunta.
Memória Incra 35 anos
Sei que estamos escrevendo junto com os trabalhadores e trabalhadoras rurais,
e os movimentos sociais que os congregam, um trecho marcante da trajetória
histórica do processo de construção da identidade da nação. E é assim, como
dizem os sertanejos, que vamos rompendo.
Em meu caso, a força para seguir rompendo, vem da convicção de poder
atuar num contexto de infinitas possibilidades humanas e também, da certeza
de que, com todas as suas falhas e precariedades, essa entidade Incra, é aquela
que consegue acender a luz nos olhos e despertar o sonho no coração limpo
de uma criança.
— Moça, quanto eu crescer, eu quero ser Incra. Eu responderia hoje: – Marta,
você já nasceu grande, só por fazer parte desse processo. E foi você quem
me fez crescer como eu nunca pensei que ainda poderia. Foi você Marta, que
nunca mais me deixou esquecer a minha dupla responsabilidade: eu sou Incra.
Eu sou mulher. Marta é um nome fictício, pois não pude obter em tempo hábil autorização da protagonista para
expor sua identidade. Pelo mesmo motivo, também não está identificado em qual dos muitos
assentamentos da região ela continua ( graças a Deus!) vivendo com a família.
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A saga e as glórias do
Incra nos seus 31 anos
NatÁ l i o B e l m i r o H e r l e i n
No texto a seguir, registraremos um pouco da história do Incra, para nós o
mais importante órgão público federal do Brasil. Como servidor do Incra, e
sendo jornalista, chefe da Assessoria de Imprensa do órgão, desde sua criação
em julho de 1970, até 1992, num total de 22 anos, conseguimos, nessas duas
décadas e pouco, concretizar nossos principais sonhos surgidos desde a juventude, quais sejam, conhecer praticamente todo o Estado do Rio Grande
do Sul e boa parte do Brasil.
E vamos a alguns itens referentes a nós. Fizemos nossos estudos primários,
todos, e até iniciarmos estudos superiores em nossa cidade natal, Uruguaiana-RS.
Isso, até 1947. A seguir, em 1948, prestamos o serviço militar. E logo, no início de
1949, fomos para a cidade de São Paulo, onde trabalhamos em oficinas gráficas
e à noite, continuamos nossos estudos superiores nos formando em jornalismo
em 1953, quando então retornamos para Uruguaiana.
No ano seguinte, viajamos para Porto Alegre, mais precisamente, em
24 de agosto de 1954, dia da morte do presidente Getulio Vargas. Na capital
gaúcha, onde residimos até o presente, passamos logo a escrever em jornais e
revistas locais. E participando do Movimento Tradicionalista Gaúcho, passamos
a escrever livros de contos gaúchos, anedotas e poemas, em estilo gaúcho
e universal.
Entramos no serviço público federal em junho de 1967, no Instituto Nacional
de Desenvolvimento Agrário (Inda) como chefe da Assessoria de Imprensa daquele órgão, que foi extinto, juntamente com o Instituto Brasileiro de Reforma
Agrária (Ibra) e o Grupo Executivo da Reforma Agrária (Gera) em 9 de julho de
1970, quando então foi criado o Incra.
Memória Incra 35 anos
No Incra, continuamos como chefe da Assessoria de Imprensa, viajando por
vários anos com os delegados do órgão por, praticamente, todos os municípios
onde houvesse agricultores assentados ou visitando áreas destinadas a esse fim.
De 1970 até 1992, quando nos aposentamos, viajávamos todos os anos a
Brasília, em janeiro ou fevereiro, onde participávamos de encontros de jornalistas
do Incra com o presidente do órgão, ministro da Agricultura e às vezes, com
senadores ou deputado federais.
Em 1980, quando o Incra festejou 10 anos, vencemos um concurso nacional,
com uma história sobre as atividades do órgão no Rio Grande do Sul durante
sua primeira década de existência. Como prêmio, viajamos por mais de um mês,
por esse Brasil adentro, visitando por alguns dias, em especial, Bahia, Amazonas
e Minas Gerais, passando pelo Rio de Janeiro, que já conhecíamos desde 1952,
quando estava em São Paulo.
Temos cerca de 20 livros editados, de contos gaúchos, poemas, anedotas,
vocabulário gaúcho e até crônicas políticas. Participamos ainda, em parceria
com outros autores, de outros 20 livros, em geral, antologias.
Agora, a seguir, os registros sobre o Incra, sua saga e suas glórias.
Incra (I)
Num país com as dimensões territoriais do Brasil a reforma agrária é uma prioridade impositiva gritante. A lógica afirmativa é repetida pela obviedade das
circunstâncias decorrentes de três fatores: a existência de vastas áreas de terras
improdutivas, o constante crescimento de habitantes e a conseqüente necessidade do aumento de produção agrícola, o importante setor primário.
Ninguém ignora: o terceiro fator é motivado pelo segundo. A duplicação de
habitantes de um local implica num inevitável e necessário maior consumo de
alimentos. O fato é o moto-contínuo de um círculo vicioso imutável, perpétuo.
Depreende-se do exposto que, se a reforma agrária é imprescindível no Brasil,
de igual forma, é o óbvio, se faz necessário a existência de um órgão específico
para tratar de tão importante setor. E, efetivamente – a maioria sabe- ele existe.
Trata-se do Incra.
Não são muitos, porém os que sabem da autêntica saga, ou seja, dos percalços
enfrentados pelo Incra ao longo da estrada de sua existência. Estrada essa mais
cheia de entraves do que pista esportiva de corrida com obstáculos.
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Nead Especial 2
Criado em julho de 1970, para promover e executar a reforma agrária, efetuando
o assentamento e o processo de colonização dos agricultores sem terras nas áreas
desapropriadas ou da União ou Estados, o Incra, além de unificar e assumir as atividades e funções de três órgãos, também absorveu os servidores dos mesmos. Os
três órgãos que, unificados, deram lugar ao Incra, foram o Ibra, o Inda e o Gera.
De início, o Incra ficou vinculado ao Ministério da Agricultura. Depois, passou
a órgão especial ligado diretamente à Presidência da República. Nessa situação
permaneceu por alguns anos, até que, com a criação, a 30 de abril de 85, do
Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad), o Incra, foi vinculado ao novo ministério.
Dois anos e meio depois, em outubro de 1987, por decreto-lei do presidente
José Sarney, o Incra foi extinto. Decreto-lei que, no entanto, ficou dependendo
da aprovação do Congresso Nacional. O Incra entrou em coma. E essa letargia
durou um ano e meio.
Praza a Deus que alguns doutos – e destemidos – integrantes do Congresso
Nacional, demonstrando um alto bom senso, na memorável sessão da noite de 28
de março de 1989, rejeitaram o Decreto-lei no 2.363, de José Sarney. Dessa forma, o
Incra, após um sofrimento que se estendeu do último trimestre de 1987 ao primeiro
trimestre de 1989, foi recuperado, voltou a existir, ou melhor, continuou a existir.
O fato foi motivo de comemoração em todo o Brasil, não só por funcionários
do Incra -milhares- como também de colonos agricultores sem-terra – outros
milhares – dos brasileiros de áreas diversas – também milhares – todos cientes
e seguros de que, visto ser necessário implantar a reforma agrária no país, primeiramente se impõe, por via de conseqüência lógica, a existência de um órgão
como o Incra, cujas funções são exclusivas do setor que lhe dá o nome.
Inegavelmente, porém, para que as funções do Incra, no âmbito de sua área
de ação, sejam viáveis e passíveis de êxito, falta uma complementação indispensável, que ainda e novamente só os integrantes do Congresso Nacional podem
criar e fornecer. Referimo-nos a leis que regulamentem, que possibilitem, que
facilitem, enfim, a execução rápida, efetiva e concreta da reforma agrária, e não
que a façam emperrar, que a dificultem ou praticamente a impossibilitem, como
tem ocorrido até o presente.
Mas, a reforma agrária que se deseja, deve ser concretizada através de procedimentos justos – leis idem- e pagamentos adequados aos valores das terras
desapropriadas, quando for esse o caso.
Memória Incra 35 anos
No dia 1o de agosto de 1989, quando o governo Federal, por meio do Ministério da Agricultura, destinou recursos num montante de NCz$4 milhões para
as áreas de reforma agrária em projetos de colonização e assentamento nos
estados do Nordeste, um orador local afirmou ser a medida, mais uma prova de
que o presidente Sarney estava dando todo o seu apoio à reforma agrária – e por
tabela ao Incra. Isso após convencer-se que tinha, interiormente, avaliado mal
a questão “terra para produção primária” e em conseqüência extinto os órgãos
encarregados de realizar a reforma agrária – Incra e Mirad. Ainda bem que, no
tocante ao Incra, o Congresso Nacional compreendeu a mal-avaliação e reparou
o lapso. Agora só falta a complementação já externada.
É lícito salientar que, sobre a saga do Incra, ainda há muito a registrar, sendo
o que faremos a seguir.
Incra (ΙΙ)
A odisséia 2001
No filme 2001 – Uma odisséia no espaço, a nave espacial robot, por sua perfeição,
tornou-se perigosa no espaço. Não queria retornar à terra. E por isso, foi matando
seus tripulantes, com exceção de um. O astronauta sobrevivente precisou conceber uma forma de liquidar com aquele engenho extraordinário. Passou, então,
a desligar, um por um, os dispositivos que, no todo, ligados, davam “vida”, força
e autocomando àquela máquina quase humana.
Dessa maneira, foi tirando os poderes, as atividades, a eficiência, a determinação e, por conseguinte, pouco a pouco, lentamente, foi “matando” a máquina,
até provocar sua extinção, ao menos como aeronave que se autodetermina.
Dessa mesma forma, no espaço do tempo, os homens dos governos do
Brasil têm procedido com as “máquinas” ou órgãos destinados a executar a reforma agrária no país. Em especial, assim vem ocorrendo com relação ao Incra.
Constatamos o porquê dessa afirmação.
Lento entrave
Das atribuições do Incra, ao ser criado em 1970, e fora a colonização e reforma
agrária, constava a cobrança de três tributos: Imposto Territorial Rural (ITR), Taxa
de serviços cadastrais e Contribuição Sindical Rural, e mais, implantação da
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Nead Especial 2
eletrificação rural, comando de tudo relacionado com as cooperativas e toda a
infra-estrutura dos projetos de assentamentos.
Mas o Incra já nasceu tendo vários inimigos, entre os quais três ministros
– da Agricultura, do Interior e da Fazenda – pela posse das verbas de tributos
rurais; os latifundiários, por motivos óbvios, e os próprios governos, por indecisão
política na execução da reforma agrária. O Incra passou a ser considerado, por
conhecidos setores, máquina perigosa.
Assim, a exemplo da nave espacial acima lembrada, a desativação do Incra
passou a ser efetuada, lenta, porém incessante. Pouco a pouco foram sendo
desligados os “dispositivos” de atividades: comando sobre cooperativas, comando
da eletrificação rural, também o da construção de açudes. E tudo foi parando,
emperrando, inclusive a reforma agrária. Por último, talvez para selar a paz com
aqueles citados ministros, foi “desligada” do Incra a competência de cobrar tributos
rurais. Os latifundiários estavam eufóricos.
Agora, para pressionar o governo a desligar o último dispositivo de vida do
Incra tornou-se fácil. Basta forjar-se um motivo e o governo desativa tudo de
vez, extingue a máquina criada para levar os sem-terra ao espaço dos sonhos
da verdadeira reforma agrária.
Crime e castigos
Oxalá o governo, nessa história toda perceba: a) que deve invalidar jogadas
sujas contra órgãos que visem a reforma agrária; b) se ex-dirigentes do Incra
praticaram “maracutaias” devem ser punidos, eles, não o órgão, que não se
autocomanda c) que, por leis justas conceda ao Incra a força que nunca teve
nem para cobrar o ITR nem para executar a reforma agrária. E já nosso aplauso
para um fato: agora o latifundiário paga alto preço pela terra nua, mas como
ele queria, não para o Incra.
Incra (ΙΙΙ)
Cinqüenta lotes no Distrito Federal há 30 anos
“O Incra possui 50 terrenos em Brasília, localizados nas regiões mais valorizadas
da cidade. Os lotes estão sem utilização há 30 anos. Foram comprados por exigência do governo, quando o Incra se transferiu do Rio de Janeiro para Brasília,
na instalação da nova capital (1960).”
Memória Incra 35 anos
Esta é a síntese da notícia publicada na Folha de S. Paulo, de 5/8/1990 e comentada no mesmo órgão por Josias de Souza, na edição de 10/9/1990. Tanto a
Folha, como o comentarista, basearam-se em informes de fontes consideradas
fidedignas. Portanto, nada contra o jornal ou o jornalista. Ao contrário, como
sempre, palmas para eles. Mas, informes incorretos provocam críticas idem.
Os fatos do affair
Em 1960 o Incra nem existia. Foi criado em 1970, e ficou centralizado no Rio de
Janeiro. Só transferiu-se em definitivo para Brasília em 1974. O órgão que fez
a compra dos lotes, tudo indica, foi o Serviço Social Rural (SSR), visto possuir
recursos, pois um dos seus objetivos era o de arrecadar impostos, para fazer o
que constava do seu nome. A compra foi efetuada a pedido do governo, que,
sendo democrático, não confiscava dinheiro de ninguém. A verba era necessária
para ultimar obras em Brasília.
O SSR foi criado em 1955, e extinto, junto como Instituto Nacional de Colonização e Imigração (Inic) em 1962, quando foi criada a Superintendência de
Política Agrícola (Supra), para quem passou a posse dos 50 lotes. Com a extinção
da Supra, em 1964, os lotes passaram para o Ibra. E, com sua extinção, em 1970,
os lotes passaram para o Incra.
Enigmas indecifráveis
Quanto às razões pelas quais os lotes não foram logo vendidos, também não
cabe culpa ao Incra, porque o órgão não se autodetermina, nem se autocomanda.
Sempre teve e tem o seu dirigente. E mesmo este, como se sabe, é subordinado
a poderes mais altos, superiores.
Então se pergunta: por que esses informes distorcidos sobre fatos de época em que o Incra nem existia? Acaso para justificar entraves ao órgão idem à
reforma agrária?
Segundo um boato, o informante seria alguém do próprio Incra. A ser verdade,
qual destas três hipóteses é a certa: a) será que os informes foram incorretos por
um lapso involuntário? b) ou foram incorretos por ordem superior, que também
podia estar com dados errôneos? c) – ou foram incorretos propositadamente, por
razões inimagináveis, significando, ainda, que o Incra tem inimigos na trincheira?
Enigmas….Enigmas….
A seguir: a verdade sobre os 500 porteiros para uma só portaria.
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Incra (ΙV)
Mais de 500 porteiros
“O Incra tem mais burocratas do que técnicos rurais.” A opinião é do ministro da
Agricultura, Antonio Cabrera. Ele disse que essas distorções funcionais só agora
foram levantadas, demonstrando que, no Incra, enquanto faltam técnicos do
setor rural, há excessos de agentes administrativos (2.454); de motoristas (689);
de procuradores (519) e o pior, excesso de porteiros (519), estes para atender
uma só portaria, segundo ele.
Essa a síntese de nota publicada no Correio Braziliense, de Brasília, edição de
6/6/1990 e logo transcrita em quase todos os grandes jornais do país, causando,
na opinião pública, um impacto altamente negativo para o Incra. Distorções
existem, em especial no último dado.
Detalhes meritórios
No Incra, a área funcional classificada como Agente de portaria, abrange não
só porteiros propriamente ditos, como um sem-número de outras profissões, a
saber: Faxineiros, office-boys, datilógrafos, telefonistas, secretários de gabinete,
assessores, assistentes sociais, copiadores, arquivistas, servidores de cafezinho,
ascensoristas, eletricistas, encanadores, jardineiros, mecânicos, motoristas, técnicos rurais, agrônomos e outros.
Centenas de pessoas – as 519 da relação – e muitas delas sem possuir especialização profissional, mas que, posteriormente, fizeram cursos para os cargos
que passaram a exercer, foram admitidas, e sempre por ordem superior, na
condição de Agentes de portaria, ou Porteiro, o que fica constando no livro de
ingresso. As alterações ou funções definitivas passam a constar de outros livros.
Então: por que omitiram esses detalhes ao ministro?
Enigmas persistentes
Além da sede em Brasília, o Incra possui superintendências em todos os estados da União. Assim, o ministro apenas esqueceu de esclarecer que isso de
“uma só portaria” significa “em cada unidade da Federação.” Quanto ao primeiro
item da questão, o do suposto excesso de porteiros, consta que a declaração
do ministro baseou-se em levantamento efetuado no próprio Incra. Portanto,
a ele, ministro, neste caso, não cabe culpa pelas conclusões e crítica emitidas.
Memória Incra 35 anos
Vale por isso externar as, mesmas três perguntas que serviram para outros fatos
prejudiciais ao Incra.
- Será que foi por um lapso, que os detalhes sobre “a questão porteiros” não
foram citados no levantamento entregue ao ministro? – ou não foram citados,
talvez, por julgá-los desnecessários? Persistentes enigmas.
Incra (V) final
Nos últimos 50 anos, os anteriores governos do Brasil fizeram com que o órgão
público federal encarregado da área que possui três setores interligados, imigração-colonização-reforma agrária, se constituísse no campeão da mudança
de nome. E por quê?
Por um desses motivos: não estar cumprindo metas, ou por irregularidades
(de dirigentes), ou então – o mais incrível – por estar tentando cumprir seus
objetivos…
Sempre transitórios
São já 12 órgãos criados para substituir um anterior e sempre para os mesmos fins:
tratar dos referidos setores interligados, imigração-colonização-reforma agrária.
Eis a sigla dessas instituições: DNI, DNA, ERT, Inic, SSR, Supra, Ibra, Inda, Mirad,
Mara e Incra. Dois ministérios estão incluídos nessa relação: Mirad e Mara. O primeiro foi criado pelo Decreto 91.214, de 30/4/1985 e extinto pela MP de15/1/1989.
O segundo, é o Ministério da Agricultura, que no governo Collor teve seu nome
acrescido das palavras ”e da Reforma Agrária.” Daí: Mara. Atualmente este órgão
é denominado Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A
seguir nome completo dos outros órgãos da relação.
DNE – Departamento Nacional da Imigração, DNA-Departamento Nacional
da Agricultura e ERT- Estabelecimento Rural do Tapajós, criado na década de
1940 e extinto no alvorecer da de 1950.
Inic – Instituto Nacional de Imigração e Colonização, criado pela Lei 2.163,
de 5/1/1954, e SSR- Serviço Social Rural, criado pela Lei 26.713, de 23/9/1955. Ambos extintos em outubro de 1962, para dar lugar a um só órgão que trataria da
reforma agrária: a Supra – Superintendência da Política Agrária, criada pela Lei
Delegada no 11, de 11/10/1962.
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Em seguida decidiram que um só órgão era pouco para incrementar a
reforma agrária. Assim, de conformidade com o Estatuto da Terra, Lei 4.504, de
30/11/1964, a Supra foi extinta para a criação de três novos órgãos: Ibra, Inda e
Gera, respectivamente, Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, Instituto Nacional
de Desenvolvimento Agrário e Grupo Executivo da Reforma Agrária.
Seis anos após, no entanto, voltaram atrás. Concluíram que três órgãos para
um mesmo fim era muito. Então, pelo Decreto-Lei no 1.110, de 9/7/1970, Ibra, Inda
e Gera foram extintos e foi criado o Incra.
Mudará a regra
Sabedores do destino de todo órgão que trata do problema agrário no Brasil,
os servidores do Incra, desde logo, na capital federal e em todos os estados, se
organizaram e criaram suas associações, que, em Brasília tem federação e confederação e até uma fundação. Tudo isso não os livrou das infindáveis angústias
pelas ameaças contra o órgão onde trabalham.
Pergunta: Diante das adversidades que enfrenta, conseguirá o Incra sobreviver? Resposta: Só se Lula não repetir erros dos seus antecessores, e, através
do ministro do setor, der força ao Incra para executar seu principal objetivo: a
reforma agrária; necessária, justa e legal.
No entanto, se se repetir a medida paliativa que vem se tornando regra punir
órgãos, com sua extinção, e não autores de erros – então só restará, no futuro,
a história, fora de série, autêntica saga de um órgão público, e, por tabela, dos
seus servidores: a saga do Incra.
Para concluir estes registros sobre o Incra e os seus 35 anos de existência,
completados em 9/7/2005, vale anexar que o Incra não é só para nós o mais
importante órgão público federal mas também para milhares de agricultores
que foram e ainda esperam ser assentados em terras onde possam trabalhar e
produzir alimentos para suas famílias, para o Brasil e para o mundo. 15
Sobre o meio ambiente
e a reforma agrária
A n d r é Lu i z Ba n h o s e S o u z a
Imbuídos do desejo de contribuir com a renovação de idéias e atitudes,traçamos
alguns comentários e observações sobre os temas acima,por julgá-los pertinentes
e fundamentais, visando principalmente a integração dos servidores do Incra
no desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Toda a vida existe numa fina camada que circunda o globo terrestre. É a
biosfera, que se estende desde as profundezas dos oceanos até o ponto mais
alto das montanhas.
Proporcionalmente, ela não é mais espessa do que o brilho de uma bola de
bilhar. A biosfera de nosso planeta é singular, bela e frágil, muito frágil. Apresentase como um mosaico de delicados e intrincados padrões da natureza. Dominado
pela água (mares, rios e outros mananciais, cerca de 70%) e gelo, sugerindo que
este é o planeta água, toda a vida origina-se nos oceanos, os quais ainda tornam
o planeta habitável, regulando seu clima e sustentando-o como um oásis no
deserto negro do universo.
Do espaço, pode-se ver como é pequena a quantidade de terra que sustenta
a vida humana. Os desertos cobrem grande parte do globo e cerca de um terço
da superfície terrestre é árida ou semi-árida. Outros 11% estão permanentemente
sob gelo; outros 10% são compostos de tundra, vegetação de solos rochosos
e frio intenso.
Na maior parte do que resta, o solo é muito fino, pobre ou úmido para ser
de alguma utilidade. Somente 11% da área total livre de gelo ( algo em torno
de 1,5 bilhões de hectares), não apresentam sérios obstáculos ao cultivo. Deste total, talvez mais 13% pudessem ser utilizados, à custa de muito esforço e
despesas.
186
Nead Especial 2
Entretanto, o mundo está perdendo terreno: a cada ano, cerca de 26 bilhões
de toneladas métricas de solo são erodidas da terra, em conseqüência de sua
má utilização pela humanidade. Um simples centímetro da camada superior do
solo pode levar até mil anos para se formar.
Nossa responsabilidade torna-se tanto maior quando lidamos com a interferência do Estado na estrutura fundiária do país, visando a melhor distribuição
das terras, pois estamos trabalhando não somente com o solo, mas também,
com um conjunto de ações e conseqüências complexas, que envolvem seres
humanos e todo o bioma.
De maneira que há de se pensar, planejar e executar as ações da reforma
agrária, a médio e longo prazos, jamais perdendo de vista que o ideal a ser alcançado é produtividade sustentável, ou seja, criar condições de vida digna aos
produtores rurais, sem depredação do meio ambiente, analisando a viabilidade
de alternativas econômicas, extrativistas e florestais, baseadas em princípios de
sustentabilidade.
A ocupação do espaço rural necessita ter um ordenamento, sempre dentro
da lei e da racionalidade. Neste contexto, devemos inserir a possibilidade da
destinação das terras agriculturáveis, de domínio da União, inclusive as localizadas
na Amazônia, a particulares, empresas, cooperativas etc. comprometidas com o
uso sustentável dos recursos naturais.
Se o princípio fundamental diz que a terra tem que ter função social, a floresta
não é exceção. Ambas coexistem. Manter intocados recursos naturais que significam dinheiro e trabalho é uma tolice e uma forma de perpetuar a pobreza.
Enquanto ecologistas do mundo inteiro e mesmo do Brasil denunciam
atentados ao bioma amazônico, os moradores das favelas do Rio de Janeiro,
por exemplo, aguardam com ansiedade quem tome providências sobre os
crimes contra a natureza humana que ali são uma constante. Os protestos são
importantes. É bom saber que tem gente de olho nos erros que são cometidos
em nome do lucro a qualquer preço.
Mais importante, contudo, é apresentar soluções. É possível criar uma política racional que equilibre preservação e extração de recursos suficientes para
combater a pobreza.
Os zoneamentos agro-socioeconômico e ecológico são talvez, o único caminho para o Brasil cuidar do meio ambiente sem descuidar da pobreza.Se cada
discurso feito pela preservação da Amazônia virasse um dólar, provavelmente já
Memória Incra 35 anos
teríamos juntado em um cofre dinheiro suficiente para pagar a dívida externa
do Brasil e de quebra, salvar a floresta.
A Amazônia é a segunda maior produtora mundial de madeira tropical,
perdendo apenas para a Indonésia. Em 2002, as exportações de produtos
madeireiros representaram cerca de R$1,7 bilhões. Entretanto, ao par de ser
atividade dinâmica, é também controversa, pois quando realizada de forma
predatória (na maioria das vezes), pode causar sérios danos ambientais e sociais, empobrecendo ainda mais, a longo prazo, a economia da região. Se for
adequadamente manejada pode conciliar geração de riqueza e conservação
dos recursos naturais.
O desafio, portanto, é a mudança do paradigma. Passar de uma indústria
extrativista, com baixo valor agregado, para a modernização do setor, buscando
a excelência no padrão de manejo dos recursos florestais, agregando mais valor
aos produtos, sempre com forte compromisso social e ambiental.
Não há negar, pois, que a não atuação dos organismos governamentais, traz
enormes prejuízos socioeconômico e ambientais à região, por permitir a ação
clandestina e predatória de pessoas e empresas, que em total desrespeito às leis
e ao meio ambiente, efetuam corte raso em nossas florestas, deixando atrás de
si, apenas o vazio tenebroso de sua inconsciência e da sua ganância.
Os solos amazônicos possuem, em sua maioria, baixa fertilidade natural e um
equilíbrio solo-planta-fauna-solo eficaz, porém tênue, frágil. O modelo agrícola
predominante utiliza técnicas de cultivo e insumos químicos que vão quebrar
essa harmonia, tornando a agricultura insustentável em pouquíssimo tempo.
A agricultura predominante consistentemente subordina a eficiência ecológica à econômica, por exemplo: usando máquinas que aumentam em muito
a produtividade do trabalho, às custas da erosão e compactação do solo, ou ao
plantar monoculturas para maior eficiência da produção,desconsiderando seus
efeitos ecológicos; a necessidade do emprego de insumos externos de alto custo
energético, antagônico a um modelo auto-suficiente em energia e à reciclagem
de nutrientes, ou seja, fertilizantes sintéticos ao invés de matéria orgânica reciclada,
como a natureza nos ensina; a tendência de empregar soluções paliativas para
problemas sistemáticos,por exemplo, aplicando agrotóxicos em escala crescente
de quantidade ou toxicidade, ou inundando o solo para evitar a salinização por
fertilizantes minerais; a busca de soluções universais para problemas específicos
locais.Um exemplo óbvio disto é a eliminação de variedades localmente adap-
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188
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
Nead Especial 2
tadas, em favor de uma única variedade de elite altamente produtiva, que se
supõe geograficamente neutra.
Fatores positivos para um assentamento ter sucesso:
Terra: De boa fertilidade natural, relevo não muito acidentado, com boa disponibilidade de água.
Clientela: Os assentados devem ter origem na agricultura familiar.
Entorno: O acesso à sede do município deve ser fácil, onde haja uma economia agrícola dinâmica, com presença de agroindústrias e um bom mercado consumidor.
Produção: A maior parte da produção deve ser voltada para o mercado consumidor e agroindústrias locais.
Relações: Os assentados devem manter boas relações com o poder público local
e contar com o apoio dos governos federal e estadual.
Organização: Os assentados devem ter associações fortes, atuantes, que ajudem
a organizar e escoar a produção.
Crédito: Todos devem ter acesso aos créditos para a reforma agrária e aplicá-los
corretamente.
Assistência técnica: Deve ser disponibilizada para todos os assentados.
Renda: Deve garantir não só a subsistência, mas também um excedente,oriundo
da venda das colheitas.
Um pouco de nossa história
Criado em julho de 1970, pela fusão de dois órgãos fundiários (Inda e Ibra), o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, nosso querido Incra, passou a ser responsável por todas as ações de colonização e reforma agrária, no
âmbito federal.
A ocupação do imenso vazio amazônico pela colonização oficial virou meta
de governo, inclusive trazendo agricultores do sul do País, de avião. Por decreto,
foi destinada imensa área de terras (mais de seis milhões de hectares) na região
da rodovia Transamazônica, para fins de colonização e reforma agrária, criando
o famoso Polígono Desapropriado de Altamira/PA.
A partir de 1977, com a regulamentação da Lei no6.383, teve início a discriminação de terras devolutas em todo o país, com a criação das Comissões Especiais
de Discriminação de Terras Devolutas, as quais são encarregadas de separar e
reconhecer possíveis domínios legítimos dentro de determinada gleba, matricu-
Memória Incra 35 anos
lando o restante da área em nome da União, com subseqüente reconhecimento
das posses de boa fé.
Em poucos anos, o Incra estava encarregado de destinar milhões de hectares de terras, arrecadados via discriminatória ou arrecadação sumária. Tarefa
hercúlea, tanto mais na Amazônia, ainda tão carente de infra-estrutura, até
de acesso.
Em meados dos anos 1980, o governo Federal voltou-se para a criação de
Projetos de Assentamento, como prioridade, com a implementação de diversos
programas de incentivo às famílias assentadas, em detrimento das ações de regularização fundiária. Passou-se então à obtenção de terras via desapropriação
ou aquisição (muitas vezes demoradas e onerosas) com vistas ao atendimento
da forte pressão dos movimentos sociais, demandando terra onde possam
produzir e viver com dignidade.
Passei a fazer parte da família Incra na ensolarada manhã do dia 20 de abril
de 1977, quando desembarcamos, meu colega agrônomo Júlio Bezerra Martins
e eu, no aeroporto de Altamira, recém-contratados pelo Projeto Fundiário de
Altamira, órgão zonal da autarquia. Naquela época fervilhavam as ações de
colonização, por meio dos PIC’s Altamira e Itaituba e a regularização fundiária,
tocada pelos projetos fundiários.
Vejo, com tristeza, que os colegas que lá estão hoje, continuam lutando
com as mesmas dificuldades, principalmente quanto às estradas e ramais de
acesso aos lotes rurais.
Perdi a conta de quantas vezes a viatura em que estava atolou ou “pregou”
em plena Transamazônica. Entretanto, uma delas ficou registrada especialmente
em minha memória. Fomos, o executor do Projeto, Francisco Antonio Costa e
eu, a um evento na Usina Abraão Lincoln-Pacal. No retorno, à tardinha, fomos
apanhados por uma das chuvas torrenciais,comuns na região. Viajando com
cautela, para não derrapar no verdadeiro “piso ensaboado” em que se transforma
aquela estrada quando chove, a certa altura nos deparamos com caminhões,
ônibus e outros veículos, parados. Ainda chovia muito e o jeito foi descermos para
saber o que tinha acontecido. Dois caminhões não conseguiram subir a ladeira
e estavam atravessados na pista, aguardando um trator chegar para puxá-los. A
noite chegou e nada de trator.
Então, resolvemos unir as forças de todos e tirar os caminhões no “muque.”
Ali pude comprovar o significado de “a união faz a força.” Molhados até os ossos,
189
190
Nead Especial 2
enlameados até os cabelos, desobstruímos a estrada e, de um a um, todos foram
passando e seguindo viagem.
Chegamos a Altamira no começo da madrugada, sujos e cansados e, de quebra,
apanhamos uma gripe “federal.” Logo entendi que havia de aprender a conviver
com as forças da natureza, onde nós humanos é que somos os “estranhos.” 16
Uma contribuição para o desenvolvimento
sustentável da reforma agrária no Rio
Grande do Sul: a experiência pioneira de
cooperação entre o Incra e a Embrapa
C l a r o Lu i z d e F r e i ta s
A reforma agrária, pela diversidade de interesses envolvidos e a complexidade
de execução, não pode ser tratada como uma questão posta apenas para os
governos. Sua execução exige o posicionamento e a participação de um amplo
conjunto de atores sociais que aspiram à construção de uma sociedade mais
democrática, solidária e igualitária.
A eleição de um governo Federal de matiz mais popular fez crescer a esperança de um grande impulso no campo da reforma agrária, semelhante
ao observado por ocasião da redemocratização do Brasil em 1985, quando foi
instituído o I PNRA da Nova República, que acabou tendo uma execução muito
aquém do esperado.
A posse do novo governo em 2003 pôs outra vez em movimento setores
sociais que demandavam a imediata formulação de um novo plano nacional e
planos regionais de reforma agrária, que orientassem as ações de governo e que
abrissem espaços para uma ampla participação da sociedade.
A elaboração do II PNRA, ainda que concluída com certo atraso, mobilizou
um número significativo de atores sociais interessados na questão, tanto nas
esferas governamentais como em entidades da sociedade civil e movimentos
sociais, nos seminários regionais para a elaboração dos PNRA’s.
Entre as diretrizes estabelecidas no II PNRA, consta conciliar os aspectos
quantitativo e qualitativo na execução da reforma agrária. Nesse sentido não
basta apenas distribuir terra para populações carentes desse recurso produtivo. É
fundamental que as famílias que recebem terra estejam capacitadas e organizadas, e recebam os apoios necessários para desenvolverem de forma sustentável
seus empreendimentos. Por isso, o II PNRA aponta, em outras diretrizes, para a
192
Nead Especial 2
necessidade de cooperação interinstitucional, expressa na participação orçamentária e operacional dos diversos ministérios e órgãos públicos federais, além
de contar com a participação dos governos estaduais, municipais, organizações
privadas e movimentos sociais.
Com base nessa orientação a Superintendência Regional do Incra no Rio
Grande do Sul (RS) buscou apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(Embrapa) Clima Temperado, de Pelotas visando desenvolver ações conjuntas na
busca da qualificação dos projetos de assentamento no Estado. A aproximação
entre os dois órgãos, que culminou com a assinatura de convênio, foi acompanhada desde o início por integrantes de movimentos sociais, que deram a
legitimidade necessária para o desenvolvimento das ações acordadas no interior
dos Projetos de Assentamento (PA).
O convênio entre o Incra/RS e a Embrapa Clima Temperado foi firmado em
24 de setembro de 2003 com um ano de vigência. O objetivo do convênio foi o
de “sistematizar, validar e disponibilizar tecnologias e conhecimentos” que visem
o objetivo Desenvolvimento sustentável de assentamentos da reforma agrária
no Rio Grande do Sul.
As atividades do convênio foram estruturadas em quatro subprojetos:
Subprojeto 1- Levantamento de dados para identificar e sistematizar processos
produtivos utilizados pelos agricultores assentados, buscando suprir suas carências
com informações já disponíveis ou que venham a ser geradas;
Subprojeto 2 – instalação e acompanhamento de rede de referência e experimentos para servir de pólo de validação e transferência de tecnologias para
apoiar o desenvolvimento técnico e econômico dos assentados;
Subprojeto 3 – capacitação de técnicos e de agricultores monitores que
possam atuar de forma complementar aos técnicos;
Subprojeto 4 – identificação e sistematização de dados e informações para
o estudo da malha fundiária nas regiões reformadas e prioritárias para reforma
agrária no Rio Grande do Sul.
Os resultados esperados da execução das atividades programadas nos quatro
subprojetos foram assim definidos:
Resultado 1 – Um banco de dados construído com informações sobre sistemas de produção e infra-estrutura nos assentamentos implantados nas seis
regiões reformadas;
Memória Incra 35 anos
Resultado 2 – uma rede de referência organizada com 18 unidades pedagógicas em PA nas seis regiões reformadas, onde serão desenvolvidas as atividades
de investigação, validação e transferência de tecnologias apropriadas, geradas
na Embrapa;
Resultado 3 – capacitados sessenta técnicos envolvidos com a assistência
técnica a assentados e cem agricultores assentados para desenvolverem a função
de monitores junto aos grupos de assentados, nas diversas regiões do Estado;
Resultado 4 – um banco de dados construído para inserção de informações
referentes à malha fundiária, condições de solo, capacidades de uso, vegetação e
infra-estrutura de cada região prioritária, além da sistematização das informações
sobre recursos naturais dos acervos do Incra e Embrapa.
Uma síntese das ações realizadas e dos resultados alcançados se constitui
no objeto do texto ora apresentado.
Regiões abrangidas pelas ações do convênio Incra/Embrapa
Os três subprojetos orientados para o apoio aos assentamentos desenvolveramse em seis regiões, definidas como regiões reformadas, assim denominadas pela
concentração de assentamentos. Conforme as diretrizes do Plano Regional de
Reforma Agrária as ações e investimentos para o estabelecimento de novos assentamentos ou para o desenvolvimento dos já existentes devem ser concentradas
nessas regiões para potencializar seus impactos. As regiões reformadas, no Rio
Grande do Sul, são: Missões, Tupanciretã, Porto Alegre, Piratini, Bagé e Santana
do Livramento, que englobam 50 municípios.
O universo dos PA’s criados no RS, sob a responsabilidade do Incra, compõe-se
de 155 unidades. A área é de 162.519 hectares, com capacidade de assentamento
para 7.025 famílias, conforme dados do banco de relatório de projetos de assentamentos/Sipra/Incra, 2005.
As atividades desenvolvidas no subprojeto 4 -estudos da malha fundiária,
abrangeram as áreas definidas pelo Incra/RS como prioritárias para a reforma
agrária. São assim definidas, ou por apresentarem forte concentração fundiária,
ou por já contarem com um número expressivo de assentamentos. No último
caso, se confundem com as regiões reformadas.
A área prioritária para obtenção dos recursos fundiários dentro do Plano Regional
de Reforma Agrária do Rio Grande do Sul é constituída por seis regiões, a saber:
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Nead Especial 2
1. região de São Gabriel (São Gabriel, Rosário do Sul, Cacequi, Santana do Livramento,
Dom Pedrito, Bagé, Hulha Negra, Candiota e Aceguá);
2. região de Uruguaiana (Uruguaiana, Alegrete, Barra do Quarai, Itaqui, Maçambará,
Manoel Viana e São Borja);
3. região de São Luiz Gonzaga (São Luiz Gonzaga, Santiago, Unistalda, Itacorubi,
Santo Antônio das Missões, São Nicolau, Bossoroca, Capão do Cipó, São Miguel
das Missões e Vitória das Missões);
4. região de Tupanciretã (Tupanciretã, Jarí, Júlio de Castilhos, Jóia, Boa Vista do Incra,
Cruz Alta, Santa Bárbara do Sul e Palmeira das Missões);
5. região de Piratini (Piratini, Herval, Pedras Altas, Pinheiro Machado, Encruzilhada
do Sul, Pântano Grande e Rio Pardo);
6. região de Pelotas (Pelotas, Santa Vitória do Palmar, Arroio Grande, Pedro Osório,
Cerrito, Capão do Leão, Turuçu, São Lourenço do Sul, Cristal, Camaquã, Arambaré
e Tapes).
O estudo aprofundado da malha fundiária ficou restrito aos 16 municípios
identificados em negrito na relação acima, cuja exploração agrícola está centrada na pecuária de corte extensiva, e onde, em larga escala, áreas de várzea são
arrendadas para a cultura do arroz.
Resultados alcançados
Resultado 1 – Banco de dados de sistemas de produção e infra-estrutura dos PA’s.
As ações do convênio identificaram, por intermédio de entrevistas nos PA’s, os
sistemas de produção e a infra-estrutura existente em 151 assentamentos, que
ocupam uma área de 160.432,5 hectares, onde estão assentadas 6.895 famílias,
conforme Tabela 1.
Memória Incra 35 anos
Tabela 1. Número, área e famílias assentadas nos PA’s que integram
o banco de dados do convênio, por região reformada
Região
reformada
Número
de PA’s
Área
total (ha)
Área média
dos PA’s/ ha
Famílias
assentadas
Bagé
21
23.349,3
1.111,9
963
Livramento
14
17.965,7
1.283,3
646
Piratini
46
47.206,2
1.026,2
1.724
Porto Alegre
15
23.996,4
1.599,8
1.026
Missões
21
12.736,0
606.5
Tupanciretã
34
35.178,9
1.034,7
1.927
151
160.432,5
1.062,5
6.895
TOTAL
609
Fontes: Banco de relatório de projetos de assentamentos/Sipra/
Incra, 2005 e banco de dados do convênio Incra/Embrapa.
Com as informações coletadas nos assentamentos foi construído um banco
de dados de sistemas de produção e infra-estrutura. Este banco visou contribuir
para sanar a carência de informações existentes no Incra, e que são relevantes
para a formulação de novos projetos e encaminhamento de ações para um
desenvolvimento sustentável nos assentamentos.
Os dados coletados em questionários, diretamente nos 151 assentamentos
pesquisados, foram incluídos num banco de dados no aplicativo Access, disponível
no acervo do Incra/RS. Como exemplo, apresentam-se, a seguir, alguns dados
que revelam aspectos da realidade da produção dos PA’s no Rio Grande do Sul.
Utilização da terra, produção e produtividade nos assentamentos no RS.
Os dados da pesquisa revelam diferenças marcantes no uso da terra nas regiões,
quando analisados por subsetor de atividades. Os subsetores foram definidos
como: lavoura temporária (agrupando todos os cultivos anuais); lavoura permanente (incluindo a fruticultura e outras atividades com ciclos superiores a
um ano); pecuária (especificando as áreas de pastagens nativas e cultivadas); e
florestal (discriminando matas nativas e matas cultivadas). Os dados permitem
195
196
Nead Especial 2
afirmar que há uma razoável adequação do uso da terra à aptidão agrícola dos
solos das regiões.
O cultivo da terra mostra-se bem mais intenso nas regiões que integram a
macro-região norte, especialmente as de Tupanciretã e das Missões, onde os solos
apresentam maior potencialidade. Nestas duas regiões destaca-se, sobremaneira,
a binômia soja/trigo. Já nas regiões do sul, onde existe maior limitação para o
cultivo da terra, grande parte das áreas dos assentamentos são utilizadas com
pastagens e matas nativas, particularmente nas regiões de Bagé e Piratini, onde
somam, respectivamente, cerca de 91% e 80% do total das áreas utilizadas.
Tabela 2 .Uso da terra por subsetor nos assentamentos, por
região reformada, em hectares, ano agrícola 2002/03
Região reformada
Uso da terra
por subsetor da
agricultura
Bagé
Piratini
Livramento
Porto
Alegre
Missões
Tupanciretã
Lavoura temporária
3.061
6.177
4.532
3.657
6.906
27.333
51.669
3
607
16
32
105
349
1.112
10.480
11.344
3.116
437
1.964
2.897
30.238
Pastagem cultivada
500
1.173
3.085
7
1.774
2.587
9.126
Mata nativa
752
6.573
611
780
1.021
2.402 12.139
3
150
136
528
98
Lavoura permanente
Pastagem nativa
Mata cultivada
512
Total
1.427
Fonte: Banco de dados do convênio.
A produção animal nos PA’s revela-se importante em todas as regiões, com
destaque para a pecuária leiteira. Mas a pecuária de corte também se destaca,
especialmente nos assentamentos das regiões de Livramento e Piratini, onde
supera a pecuária leiteira em número de animais. A produção de leite é considerada estratégica para os assentados, por assegurar renda mensal para as famílias
e por contribuir para a melhoria dos solos, especialmente pelo fato de que foi
definida como modelo a ser adotado a produção a pasto. Na tabela a seguir é
apresentada a existência de animais nos assentamentos.
Memória Incra 35 anos
Tabela 3. Existência de animais nos PA’s, classificados
por região. Ano agrícola 2002/03
Número de animais
Criação
Região
de Bagé
Região de
Livramento
Região
de Piratini
Região das
Missões
Região de
Porto Alegre
Região de
Tupanciretã
Bovinos
tração
517
468
1.640
572
448
950
Eqüinos
882
349
901
247
565
466
Suínos
1.791
965
5.887
2.840
4.593
10.459
Bovinos
carne
1.845
3.505
8.451
2.191
3.525
9.463
Vacas
de leite
3.022
1.469
5.911
3.883
1.584
9.526
Aves
9.523
15.060
38.750
18.030
416.665
325.615
Ovinos
295
257
Fonte: Banco de dados do convênio
Os dados de produção e produtividade das principais lavouras e criações,
apresentados nas tabelas a seguir, revelam, de um modo geral, resultados insatisfatórios, especialmente na macro-região sul, que devem merecer a devida
atenção dos atores sociais que participam do processo de reforma agrária.
Chama atenção o fato de que, diferente das demais regiões, em Bagé o plantio
de sementes varietais de milho supera largamente o plantio de sementes híbridas. Mesmo na região de Tupanciretã, onde predomina largamente o uso de
sementes híbridas, a produtividade do cereal situa-se pouco acima de 60 sacos
por hectare, insuficiente, se comparada com o potencial produtivo das sementes
disponíveis no mercado.
197
198
Nead Especial 2
Tabela 4. Produção e produtividade dos principais cultivos existentes
nos PA’s da macrorregião sul, no ano agrícola 2002/03
Região Bagé
Cultivo
Área
(ha)
Prod.
(t)
Região Livramento
Produti
vidade
(Kg/ha)
Milho
hib.
564
1.110
1.966
Milho
var.
1.574
1.885
1.200
Soja
Prod.
(t)
2.120
3.924
1.850
4.641 10.216
2.201
698 1.335
1.910
1.031
2.184
2.118
1.812
383
571
1.490
289
175
1.101
1.475
1.340
Sorgo
600
1.200
2.981
610
Fonte: Banco de dados do convênio.
Área
(ha)
Prod.
(t)
Produti
vidade
(Kg/ha)
Área
(ha)
1.645
Feijão
Produti
vidade
(Kg/ha)
Região Piratini
Memória Incra 35 anos
Tabela 5. Produção e produtividade dos principais cultivos existentes
nos PA’s da macrorregião norte, no ano agrícola 2002/03
Região Missões
Cultivo
Produti
vidade
(Kg/ha)
Área
(ha)
Prod.
(t)
Milho
hib.
1.559
3.805
2.440
Milho
var.
268
481
1.800
3.939
7.628
1.946
691
942
1.364
Soja
Trigo
Arroz
irrig.
Região P. Alegre
Região Tupanciretã
Produti
vidade
Kg/ha
Área
(ha)
575 1.112
1.934
3.111 11.026
167
1.368
Área
(ha)
Prod.
(t)
229
120
98
813
303
Mandioca
97
1.134
11.630
222
Produti
vidade
(Kg/ha)
3.540
774
3.580
19.618 53.549
2.730
4.264
8.077
1.894
1.540
532
553
1.040
2.916 13.105
523
4.625
8.844
2.266 10.994
Feijão
216
Prod
(t)
467
4.851
Fonte: Banco de dados do convênio.
Entre os produtos de origem animal, ao lado da produção de carne, ovos e
mel, destaca-se o leite, uma atividade presente em todos os PA e considerada
como estratégica para o desenvolvimento sustentável dos PA’s.
Chama a atenção a baixíssima produtividade leiteira nas regiões de Bagé,
Livramento e Piratini, em especial nas duas últimas, onde a produção diária
de vaca em lactação calculada ficou abaixo de quatro litros, de acordo com
os dados da tabela 6. Provavelmente a baixa produtividade está relacionadas
à predominância de animais de baixo nível zootécnico alimentados de forma
deficiente, com pastagens nativas em pastejo contínuo. Nos PA’s da macrorregião
norte a produtividade da atividade leiteira é bem mais alta. Ali a fonte principal
de alimento das vacas, as pastagens cultivadas, permitiu a introdução de vacas
de melhor nível zootécnico.
199
200
Nead Especial 2
Tabela 6. Produtividade de leite nos PA’s, por região.
Macrorregião norte. Ano agrícola 2002/03
Produtividade
Região
reformada
Produção de litros Produção de litros
de leite por vaca de leite por vaca
em lactação/ano em lactação/dia**
No vacas em
lactação*
Produção total,
em 1000 l
Bagé
2.025
3.447
3.447
5,7
Livramento
1.346
1.457
1.082
3,6
Piratini
4.842
5.414
1.118
3,7
Missões
2.608
5.802
2.224
7,4
Porto Alegre
1.235
3.583
2.901
9,7
Tupanciretã
6.382
7.027
3.272
10,9
*estimativa de vacas em lactação = 67% do total de vacas
** estimativa de lactação de 300 dias/vaca
Fonte: Banco de dados do convênio.
Resultado 2 –Rede de referência
Uma rede de referência significa “uma forma participativa de acompanhar o
desenvolvimento e o desempenho técnico-econômico das práticas dos agricultores, subsidiando o processo de intervenção da pesquisa ou da extensão
rural, através da coleta de informações agronômicas e socioeconômicas com
base em sistema de produção e tipologia de unidades produtivas,” conforme
definição do Programa RS Rural.
As ações no subprojeto foram executadas em duas etapas. A primeira se
desenvolveu no período de novembro de 2003 a março de 2004. Nesta etapa
as ações foram focadas na produção de sementes varietais. O programa de
produção de sementes varietais tem o objetivo de diminuir a dependência dos
agricultores de insumos externos à propriedade. A atividade abrangeu todas as
regiões reformadas.
A grande estiagem ocorrida no verão de 2003/04 prejudicou, enormemente, o
desenvolvimento das plantas, reduziu a produção e comprometeu o alcance dos
Memória Incra 35 anos
resultados esperados. Mesmo assim, foi possível obter um mínimo de produção
para iniciar sua multiplicação, levada a efeito na safra seguinte.
Na segunda etapa, iniciada em abril de 2004, as ações foram orientadas para
a instalação das 18 unidades pedagógicas representativas previstas. O primeiro
passo, após a seleção das unidades pedagógicas, feita em conjunto com as
coordenações dos PA’s, foi definir o perfil de entrada, sendo utilizado o questionário “Perfil do estabelecimento agrícola familiar.” adotado pelo Programa de
Consolidação de Assentamentos (PAC), do Incra.
Em seguida foi elaborado o plano de trabalho para cada unidade pedagógica,
envolvendo análise do solo, aquisição de insumos, preparo do solo, semeadura,
promoção de reuniões técnicas e cronograma de acompanhamento do desenvolvimento das ações.
Nas 18 unidades pedagógicas foram instalados experimentos com tecnologias do estoque da Embrapa, testando sua validade para adoção nos PA e como
referência nas atividades de capacitação dos agricultores e técnicos. As principais
inovações implementadas foram: manejo e conservação de solos; manejo de
sistemas de produção; demonstração de uso de máquinas para preparo do solo
e plantio apropriadas para agricultura familiar; manejo de arroz irrigado associado
com criação de marrecos e peixes; cultivo e manejo de amendoim-forrageiro, capim-elefante-anão, cana-de-açúcar, aveia-preta, ervilhaca, feijão-miúdo e lab-lab;
ensaios com diferentes cultivares de feijão e batatinha. Os ensaios com cultivares
de feijão e batatinha já permitiram, no primeiro ano, a identificação daquelas
de melhor desempenho nas diversas regiões, em condições adversas de clima.
Resultado 3 – Capacitação de técnicos e de agricultores
Pelo fato de ser, na atualidade, grande o número de beneficiários da reforma
agrária no RS constituído por famílias que residiam desde variados tempos em
áreas urbanas, é indispensável assegurar-lhes acesso a informações técnicas que
permitam sua capacitação para desenvolverem com sucesso suas novas atividades.
Da mesma forma, muitos técnicos que os assistem têm formação de nível médio e
pouca experiência. Sua capacitação é condição para que possam prestar serviços
com a qualidade exigida.
O convênio tinha como meta realizar oito cursos de caráter tecnológico,
sendo três para técnicos e cinco para agricultores assentados. Superando as
201
202
Nead Especial 2
metas, foram ministrados 31 cursos atingindo 577 agricultores assentados e
técnicos, de forma conjunta. Os ministrantes foram, em sua quase totalidade, os
pesquisadores da Embrapa Clima Temperado. Os cursos foram orientados pelo
enfoque de uma transição para agroecologia.
A seleção dos temas e os programas foram elaborados levando-se em conta
as demandas apresentadas pelas famílias assentadas e pelos técnicos locais.
Os temas abordados foram: alimentação, manejo e sanidade do gado leiteiro,
manejo ecológico do solo, produção de mel, produção de sementes de milho
e de feijão, alimentação, manejo e sanidade de suínos e conceitos e práticas de
agroecologia.
Resultado 4 – Banco de dados da malha fundiária
A criação de um banco de dados disponibilizando informações sobre a malha
fundiária das regiões prioritária para a reforma agrária no Rio Grande do Sul foi o
objetivo perseguido pela equipe que atuou no subprojeto 4 do convênio Incra/
Embrapa. Como resultado do trabalho realizado, foi construído o Sistema de Informações Geográficas (SIG), e criado o Banco de Dados Sigincra. O banco de dados
está no arquivo Sigincra e contém informações de três categorias diferentes:
1. Cadastrais – que inclui os objetos Ambiental, Assentamentos do Governo do
Estado, Assentamentos do Incra, Imóveis com mais de mil hectares e RS_CAD.
2. Imagens – RS_SOLOS_IMAGENS.
3. Temáticas- RS_SOLOS_TEMATICO.
O estudo da malha fundiária nas áreas prioritárias iniciou por uma pesquisa
no Sistema Nacional de Cadastro Rural, selecionando o universo dos imóveis com
superfície de área superior a mil hectares em municípios preferenciais dentro
dessas regiões. Por meio da consulta das DP’s obteve-se informações básicas.
As informações foram tabuladas por município e posteriormente transferidas
para o gerenciador do banco de dados do Spring, para a sua associação com a
respectiva informação espacial.
A localização espacial dos imóveis para o seu desenho sobre a imagem de
satélite (georreferenciada), foi feita com o uso da descrição constante na DP e
com o auxilio das Cartas Topográficas do Exército, plantas e croquis constantes
no acervo técnico do Incra. Nos casos onde foi possível somente uma localização
Memória Incra 35 anos
aproximada, o imóvel ficou representado por uma circunferência. No trabalho
foi usado o programa AUTO CAD map. Os perímetros dos imóveis identificados
foram transferidos para o programa Spring, onde foi feita a associação dos perímetros (espacial) com as informações e dados referentes ao imóvel.
Outros resultados – Foros de desenvolvimento da agricultura
camponesa nas metades norte e sul do estado.
O convênio Incra/Embrapa/Fapeg incentivou a formação de foros para o desenvolvimento da agricultura camponesa e da reforma agrária, visando a integração
dos PA’s na economia regional. Nesses foros abriram-se espaços democráticos
para discussões e encaminhamentos de soluções para os principais problemas
dos PA’s e de seu entorno.
Participam desses foros representantes de instituições governamentais, nãogovernamentais e de movimentos sociais organizados, envolvidos na luta pelo
fortalecimento da agricultura familiar.
Foram organizados dois foros, um na metade Sul e outro na metade norte.
Na metade sul a reunião de fundação ocorreu no dia 24 de junho de 2004, nas
dependências da Embrapa Clima Temperado, em Pelotas, com a presença de
representantes da Embrapa, Universidade Católica de Pelotas, Cooperativa Central
dos Assentados no RS (Coceargs), Cooperativa dos Prestadores de Assistência
(Coptec), lideranças dos PA’s e do MST.
Não ocorreu o esperado avanço das ações desse fórum, provavelmente
pelo paralelismo com o antigo e atuante Fórum da Agricultura Familiar da Região Sul, no qual todas as organizações e entidades acima citadas têm assento.
Observa-se um movimento no sentido de unificar os dois foros, dada a grande
convergência de interesses.
Na metade norte do Estado a fundação do fórum ocorreu no dia 30 de julho
de 2004, no município de São Luiz Gonzaga. Nessa reunião houve a participação
de um expressivo número de agricultores assentados, MST, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Pequenos Agricultores e de representações
de instituições governamentais e não-governamentais, entre as quais o Incra/RS,
Embrapa Clima Temperado, Embrapa Trigo, Emater, Gabinete da Reforma Agrária
e Cooperativismo do Governo do Estado (Grac), Coptec, secretários municipais
de Agricultura de municípios vizinhos e professores de universidades com
203
204
Nead Especial 2
atuação na região. Esse fórum já realizou várias reuniões, em diferentes locais,
mostrando-se muito ativo.
Conclusões
A análise dos resultados alcançados pressupõe a necessidade de algumas considerações preliminares. Em primeiro lugar cabe destacar o caráter de pioneirismo
do convênio. Pela primeira vez o Incra e a Embrapa decidiram atuar em conjunto
num processo que visou contribuir para o desenvolvimento sustentável da reforma
agrária. Cabe observar que a Embrapa, como instituição, tinha um relacionamento
pouco afinado com populações assentadas, o que tornou necessário promover
articulações objetivando maior conhecimento mútuo e aproximação.
Uma segunda referência para avaliação dos resultados diz respeito ao tempo
de duração do convênio. As ações do projeto foram orientadas para disponibilização de tecnologias visando à transição de uma agricultura convencional para
uma produção agropecuária baseada em princípios da agroecologia.
Buscava-se um desenvolvimento que combinasse alta produtividade no
processo produtivo com o bem-estar geral e a preservação ambiental, e que
favorecesse o empoderamento das famílias assentadas. Resultados concretos
para promover mudanças estruturais, como a pretendida, dependem do tempo
necessário para o acúmulo de novos conhecimentos e sua assimilação e valorização pela sociedade. Isso é particularmente lento num contexto de avanço do
agronegócio modernizado, atualmente tão valorizado pela mídia brasileira.
Cabe ainda considerar um terceiro elemento na análise dos resultados
alcançados. Trata-se da conhecida situação problemática de parte significativa
dos PA’s implantados no Rio Grande do Sul, onde são constatados problemas
de passivos de obras de infra-estrutura, de venda e arrendamento de terra, e de
níveis insatisfatórios de vida de famílias assentadas.
A permanência desse quadro de dificuldades por longo período tem o efeito
de levar famílias assentadas a buscarem outros caminhos, muitas vezes abandonando seus lotes. Outras famílias, mesmo permanecendo na área, revelam-se
desestimuladas para se envolverem em processos de mudanças que têm como
base a vontade de participar e o comprometimento com as decisões coletivas.
Considerando esses pressupostos (o pequeno espaço de tempo para a execução do projeto conveniado, as dificuldades enfrentadas pelo seu pioneirismo
Memória Incra 35 anos
e a complexa realidade dos assentamentos no Estado), os resultados foram
animadores. O Seminário Estadual realizado em Tupanciretã, no dia 29 de março
de 2005, para analisar os resultados do convênio Incra/Embrapa, concluiu que
o convênio foi exitoso e que a experiência realizada deve ter continuidade e ser
ampliada para outros PA’s. Além disso, foi reivindicada a participação das demais
unidades de pesquisa da Embrapa no Estado.
Ainda que não tenham sido palpáveis as mudanças pretendidas, indubitavelmente foram iniciados importantes processos de organização e de capacitação,
que poderão causar, em prazos pouco maiores, os impactos desejados. Ficou
claramente demonstrado o reconhecimento dos benefícios do trabalho pela
Embrapa. Primeiramente pelo envolvimento de mais uma de suas unidades
nas ações do convênio, o Centro Nacional de Pesquisas do Trigo. Em segundo
lugar, pelo comprometimento dos demais centros de pesquisa da Embrapa no
RS – Pecuária Sul, de Bagé e Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, de se integrarem
efetivamente ao novo convênio com o Incra, a ser firmado ainda em 2005. Por
último, pelo interesse de outros centros de pesquisa de conhecer melhor e, se
possível, reproduzir ações semelhantes em suas áreas de atuação. 205
17
Semear sonhos
Lu c a s M i l h o m e n s F o n s e c a
Final do século XIX e aquela princesa européia-tupiniquim, pressionada pelos
gringos anglo-saxões e sua industrialização capitalista decreta uma pseudolibertação dos povos negros escravizados no Brasil. Junto ao decreto a primeira
oportunidade abortada de se fazer uma reforma agrária no país: a famosa Lei
de Terras, que em uma de suas cláusulas vinculava o direito a terra somente a
elite abastada (entenda-se gigantesca minoria) que possuísse bens, dinheiro,
pois era necessário comprar a terra, e dinheiro era a última coisa que um negro
recém- liberto (e qualquer outro pobre mestiço ou branco) tivesse, o primeiro
erro de uma série das elites brasileiras para com o povo. E olha que nem citamos
as famigeradas capitanias hereditárias…
As décadas se passam e os personagens políticos, controvertidos, personalistas
e autoritários aparecem, Getúlio Vargas foi o maior deles. Em seu Estado Novo
poderia ter ousado, mas seu vínculo dúbio entre uma Alemanha nazista e um
feroz capitalista, os Estados Unidos, só o empurrou para a opressão, abafando as
manifestações populares e uma antiga idéia de divisão igualitária de terras.
A primeira metade do século chega ao fim com uma segunda guerra mundial
no meio do caminho. Enquanto a Europa estava devastada, os EUA enriquecidos
e o mundo numa guerra fria nuclear.
No Brasil o meio camponês começa a se organizar, reivindicar seus direitos,
lutar pelo justo, eis que surgem as Ligas Camponesas, e o nobre Francisco
Julião, grande líder que mobilizou as massas, do litoral ao sertão nordestino. E
com “palmos medida” a terra de cada dia formava uma nova oportunidade de
transformar este país em uma nação, e o porta-voz seria João Goulart, o Jango.
O discurso foi feito, e atormentou o status quo:
Memória Incra 35 anos
Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da Supra (Superintendência da Reforma Agrária). Assinei-o, meus patrícios, com meu pensamento voltado para a tragédia do irmão
brasileiro que sofre no interior de nossa pátria. Ainda não é aquela reforma agrária por
qual lutamos. Ainda não é a reformulação do nosso panorama rural empobrecido. Ainda
não é a carta de alforria do camponês abandonado. Mas é o primeiro passo: uma porta
que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro…espero que dentro de
menos de sessenta dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas,
os latifúndios ao lado das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo,
ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação. E, feito isto, os
trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais
sentida e justa reivindicação, aquela que lhes dará um pedaço de terra para cultivar…
Os dias foram mais do que os 60 imaginados por Jango e a oportunidade da
reforma agrária mais uma vez abortada: os emissários do retrocesso tocavam as
trombetas da ditadura. Ela veio sombria, mordaz e cruel. Punindo com a prisão e
morte os lutadores do povo brasileiro. Muitos, desterrados e banidos, tiveram que
fugir para outras paragens, outros países. Os que ficaram precisaram se encobrir
no véu do anonimato, alguns empunhando armas no interior da Amazônia, às
margens do Araguaia…
No campo, os movimentos populares abafados, se dissipam com a investida
militar, de coturno e boina. Logo após a derrocada de Jango não se pensava
que surgiria uma lei que tratasse do tema, mas ela veio. O Estatuto da Terra, de
1964, apareceu como uma legislação moderna, até progressista, mas no mundo
real e cotidiano autoritário se configurou como instrumento estratégico não
para mexer na estrutura fundiária do país, mas para controlar as lutas sociais e
desarticular os conflitos por terra.
Anos se passam e os golpistas sabem que é preciso consolidar seu poderio,
nas cidades e no meio rural. É preciso criar formas para desbravar o imenso país,
dar “unidade” ao continente Brasil, principalmente a região amazônica, tão inóspita
e esquecida. Eis que, em 1970, num sopro de conservadorismo e progresso (sob
a égide de leis incrivelmente avançadas para seu tempo, pelo menos no Brasil),
e da fusão de dois órgãos anteriores – Inda e Ibra –, surge o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária – o Incra.
A grandeza do instituto não é maculada pela torpeza de seus criadores, tanto
que sobrevive a eles (com idas e vindas, é verdade!). Os primeiros anos do Incra
207
208
Nead Especial 2
são priorizados em apenas uma palavra que compõe seu significado: a colonização. Mais que qualquer outra coisa ela foi ponto principal das ações iniciais
do órgão. Como um de seus resultados, a criação de várias cidades, colonizadas,
literalmente, por seus servidores. Principalmente na região norte do país.
Os anos se passam e a redemocratização do Brasil se configura como uma
fatalidade irreversível, finda os anos 1970. Aqui, permitam-me leitores, abro parênteses para o ano de 1978, onde começam as primeiras manifestações pré-abertura
política (via metalúrgicos do ABC) e confesso que alegremente, também é o ano
de nascimento do escriba que vos redige esta reflexão agrária: eu.
A alvorada dos anos 1980 se transforma em um laboratório de possibilidades
democráticas. A sociedade civil começa a se organizar nas suas infinitas frentes,
e a camponesa é uma das mais fortes. O Incra passa por grandes transformações e, logo após a primeira eleição (indireta, é verdade…) de um não-militar, é
concebido, pelas forças progressistas – incluídas aí parte do Estado e sociedade
–, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que visava massificar a
reforma agrária no país.
Mas, antes de avançar um pouco mais na história, é preciso ressaltar a importância dos movimentos sociais do campo nesse processo de redemocratização,
incluindo aí os avanços no próprio Incra.
Não fosse a pressão dos movimentos, muitas vezes criminalizados por
setores da elite brasileira (impossível não lembrar dos grandes veículos de
comunicação que compõem a mídia nacional), que sempre abominaram a
idéia de reforma agrária.
A letargia poderia ter comprometido totalmente as iniciativas do Estado sobre
a questão, coisa que infelizmente, em alguns momentos, aconteceu. É preciso
que tenhamos hombridade para dizê-la. Até porque, na dialética dos tempos,
nem só de fatos aparentemente positivos é feita a história, principalmente a
história agrária brasileira. Muitas mortes e uma incessante luta entre o latifúndio
e trabalhadores rurais sem-terra manchou (e ainda mancha) os anais de nosso
país. O Incra é peça fundamental para cessar tais iniqüidades, mas, como bem
sabemos, não é o único. Sociedade organizada é sinônimo de Estado fortalecido,
de políticas públicas palpáveis, de democracia real.
Com o PNRA muito do que era esperado há décadas começou a tomar forma
palpável, o ambiente de redemocratização do país também favorecia tal cenário
que, com o passar do tempo, se modificou. O final da década de 80 e começo
Memória Incra 35 anos
dos anos 90 não foi nada positivo para o Incra, o processo de globalização
neoliberal com o viés privatizante atingiu em cheio o órgão responsável pela
reforma agrária no país. Uma das medidas iniciais do primeiro presidente eleito
diretamente pelo povo no Brasil foi extinguir, gradativamente, as funções do
Incra, desrespeitando sua história e o que é pior, o processo de reforma agrária
que ora se encaminhava.
Mais alguns anos e o desmonte era iminente. O número de servidores diminuía e a infra-estrutura básica de funcionamento também diminuta e escassa.
Pouca gente, poucas salas, poucos computadores, poucas viaturas e muito,
muito desânimo. O Incra estava prestes a se transformar em uma agência (ou
coisa parecida), em uma sombra do que foi outrora, mais alguns anos nesse
ritmo e pronto, iríamos ver a extinção da instituição responsável pela reforma
agrária no Brasil.
Um pequeno salto na história, quando o vento sopra novamente favorável à
questão agrária em nossas terras tropicais. Após um grande refluxo de iniciativas
positivas, em novembro de 2003 é lançado o II PNRA, e com ele uma série de
iniciativas que visavam reestruturar e recuperar o órgão que passara por tanta
indiferença e descaso.
No ano seguinte é lançado o edital do primeiro concurso do Incra depois
de muitos anos com o jejum de novos servidores. Na nova safra de jovens (e
experientes) que adentraram no órgão, eu me incluo solícito. Em breve outros
novos servidores também farão parte dessa jornada, agora no maior processo
seletivo que o Incra já pensou em realizar.
Tenho cá com meus botões algumas convicções, dentre elas, a de que a reforma agrária é fundamental para a democracia brasileira, para o fim de uma série
de desigualdades existentes em nosso país. E dentro das contradições incranas,
eu, uma peça na estrutura, prefiro encará-la com o desejo de transformação
radical da sociedade, onde mais do que dar terras e créditos para trabalhadores
rurais que encontram sua oportunidade na reforma agrária, possamos, também,
semear sonhos no chão da dura realidade brasileira. 209
18
Nós fazemos a
reforma agrária
E l i n e y P e d r o s o Fau l s t i c h
Inicio esta reflexão expressando o desejo da maioria daqueles que trabalham
ou trabalharam no Incra; deram à causa da reforma agrária grande parte de suas
vidas, seja na sede em Brasília, nas superintendências regionais, que já foram
coordenadorias, seja nos projetos de assentamento, de colonização; enfim, na
cidade ou no campo, está mais do que na hora de deixarmos de ver estampada
nos jornais ou veiculada na mídia falada e televisada declarações de políticos ou
de segmentos da sociedade brasileira, ou de organizações não-governamentais
e até de estrangeiros, de que a reforma agrária não está sendo feita no país ou,
pior que isto, que ainda não se fez reforma agrária em terras brasileiras.
Contra fatos não há argumentos, diz um dito popular, utilizado até na esfera
da justiça. Por isso afirmamos: Nós fazemos a reforma agrária.
Antes mesmo de falar das realizações, é oportuno citar a afirmação do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, aos servidores do Incra, por
ocasião do 35o aniversário do órgão:
Todos se perguntarão se, ao longo dos últimos 35 anos, o Incra ajudou ou não a construir
um País mais inclusivo e democrático. Para nós, esta é uma pergunta de fácil resposta. Em
três décadas e meia, como instituição civilizatória que é, o Incra assentou mais de 550 mil
famílias, criando uma nova perspectiva de paz e prosperidade no campo. Destas, 117 mil foram
assentadas nos últimos dois anos numa área somada de 9 milhões de hectares. Repartiu
terra e cidadania. Tornou, portanto, mais justo um país ainda profundamente injusto.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária comemora, 35 anos
de existência, mas não há como falar da reforma agrária – uma forma de distri-
Memória Incra 35 anos
buição de terras – somente a partir da criação deste órgão. É preciso rememorar
a história do Brasil para, então, sentirmos a importância de que se reveste a ação
desse instituto para a sociedade brasileira e, sobretudo, para o Brasil.
Ocupação territorial
Com apenas 505 anos de existência nosso país, relativamente novo, tem muita
história, mas pouquíssimos registros. Chegamos ao ponto de termos registros
e documentos históricos em países como Estados Unidos, Inglaterra, França e
até mesmo Portugal sobre os quais nos era negada consulta.
Ocupado pelos índios, espalhados pelo imenso território totalmente desconhecido dos primeiros habitantes brancos, o país começou a ser ocupado e
explorado pelo litoral onde foram sendo construídas aldeias, vilas, povoados e
finalmente, cidades.
Portugal imaginava a grandeza territorial da sua colônia, mas não encontrava adesões suficientes para uma melhor ocupação territorial. Pouquíssimos
eram os portugueses que ousavam abandonar a vida na Corte, em Lisboa, e
aventurar-se além-mar.
Foi assim que D João III, rei de Portugal, de 1534 a 1536, resolveu dividir o paíscontinente em 14 regiões administrativas intituladas capitanias hereditárias.
Eram grandes faixas de terras que iam do litoral até a linha do Tratado de Tordesilhas a quem, por carta de doação, o monarca português nomeava donatário
com o privilégio de administrar a terra e, por meio de forais, determinava-se os
direitos e seus deveres como donatário.
A esses poderosos donos de terras competia fundar vilas e cidades; cobrar
impostos; fazer concessão parcial de terras (sesmarias): explorar por tempo
determinado um pedaço de terra. Em contrapartida tinham por obrigação, ou
dever, atender aos pedidos da metrópole, administrar e povoar o território.
O sistema não deu certo pela grande distância da metrópole, pela falta de
comunicação entre as capitanias, ataques dos índios e péssimos administradores.
O insucesso do sistema redundou com a extinção da última capitania, em 1759,
por ato do Marquês de Pombal.
O regime de capitanias hereditárias mostrou-se frágil e efêmero, pois ele
destinava-se simplesmente a garantir a Portugal, a posse do país, mas em se
tratando de sistema de posse e uso da terra ele não teve grande significado ou
211
212
Nead Especial 2
importância. Durante esse período, dado o fracasso do sistema, proliferaram as
doações de terras a portugueses e seus descendentes na forma de Sesmarias cujo
instituto marcou de modo definitivo a nossa estrutura fundiária. Estas doações
resultaram no surgimento dos primeiros minifúndios e latifúndios.
Em síntese, a Carta de sesmaria, era a doação de terra ao sesmeiro para que
o mesmo a fizesse produzir e quando a terra não era aproveitada conforme a
intenção dos reis de Portugal isto é, por inadimplência ao contrato, a posse da terra
retornava à coroa portuguesa. Estas terras recuperadas ou devolvidas, e também
terras que não haviam sido doadas foram classificadas de terras devolutas.
Foi também nesse período que ocorreram as primeiras transações imobiliárias,
de início com a autorização da Corte em Portugal e, posteriormente, com a instalação do reinado no Brasil, passaram a ser feitos em nossos primeiros cartórios
os registros de terras. A proliferação de latifúndios continuou com o crescimento
e conquista do território nacional pelos nossos bravos bandeirantes.
Em 1822, com o advento da independência do Brasil, por decisão do príncipe
regente D. Pedro I, ocorreu o encerramento do período sesmarial. Este período
foi consolidado por ato dando posse de terras a um posseiro e suspendendo
as Cartas de sesmarias que estavam para serem doadas até que ocorresse a
convocação de Assembléia Geral Constituinte e Legislativa.
O decreto de D. Pedro I registrou: “… fique o suplicante na posse das terras
que tem cultivado e suspendam-se todas as sesmarias futuras, até a convocação
da Assembléia …”
Este período durou 28 anos até que, em 28 de setembro de 1850, foi editada
a Lei no 601, quando, segundo os historiadores, pela primeira vez tratou-se com
o devido respeito e propriedade o instituto das terras devolutas.
Pelo ato do imperador garantiu-se a legitimação das posses mansas e pacíficas;
ao Império ficou reservada a faixa de fronteira; autorizou-se o governo a vender
terras públicas; foi instituído o registro paroquial; previu-se a discriminação de
terras e proibiu-se a aquisição de terras devolutas por outro título que não fosse
a posse por compra. A Lei de Terras privilegiou quem tinha poder econômico,
que pudesse adquirir a terra através da compra e do registro em cartório.
A grande extensão das terras devolutas, a dificuldade de acesso a elas e a falta
de recursos para sua demarcação e fiscalização demonstraram que a União não
tinha condições de cumprir a própria lei, portanto persistiu o problema.
Memória Incra 35 anos
Em 1891, já constituída a república, a nova Constituição transferiu as minas
e as terras devolutas para posse dos estados cabendo à União, apenas as faixas
de fronteira e os terrenos de marinha.
Vimos até aqui que a questão fundiária, com a preocupação do social não
ocorreu de maneira significativa, se ocorreu, talvez tenha sido subliminarmente.
A ênfase foi a colonização oficial visando a economia, o crescimento do país para
alargamento de fronteiras de exportação dos nossos produtos agrícolas. Já no
final do Império foram criados os primeiros núcleos coloniais onde os colonos
eram, na maioria, imigrantes europeus, exemplo seguido no início da República,
a maioria deles fadada ao fracasso.
Uma segunda fase de criação dos núcleos de colonização foi levada a
termo, pelo presidente Getúlio Vargas, que instituiu em 1930 o projeto Marcha
para o Oeste, com o objetivo de ocupar o oeste brasileiro com assentamento
de agricultores brasileiros (colonos) para, em Mato Grosso, produzir alimentos
ocupando dessa forma, espaços vazios do nosso território. Esta ação se resumia
como sendo a expansão do Brasil dentro de suas próprias fronteiras, pelo cultivo
do solo; o brasileiro dominando a natureza, conhecendo sua terra e ficando cada
vez mais integrado nela.
No projeto ocupacional com a criação de várias colônias agrícolas federais
privilegiou-se o agricultor sulista, pois Getúlio, também sulista, via aquele trabalhador como alguém de visão de prosperidade. O colono tinha a promessa
da posse definitiva da terra após três anos de ocupação e trabalho nela, mas
infelizmente o resultado final desse processo foi uma forte especulação das terras.
Os que não tiveram progresso venderam suas glebas para os que venciam na
terra, daí vingando a proletarização da sua mão-de-obra. No entanto, a partir
desses núcleos coloniais surgiram algumas cidades, entre elas, Dourados.
Entre as constituições de 1891 e 1934 a aquisição de terras já não se caracterizou em função da morada habitual, isto é, pela sua real ocupação e exploração
efetiva e sim por requerimentos. Não havia dispositivo legal que limitasse as
dimensões de terras; muitas foram adquiridas em tamanho superior às sesmarias.
Assim, formavam-se latifúndios improdutivos pelo ajuntamento de propriedades
que, em grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro eram negociados
a preços elevados.
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Nead Especial 2
O despertar dos camponeses
Em meados da década de 1940 surgiram em quase todos os estados brasileiros,
com o apoio e sob dependência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), as Ligas
Camponesas, mais precisamente por volta de 1945, num forte e significativo
movimento de organização política dos camponeses que resistiam à expulsão
da terra e à expropriação, sobretudo esses trabalhadores do campo recusavam
o regime salarial.
O descontrole na concessão de terras, um verdadeiro abuso, durou até
o fim do Estado Novo e a reação dos camponeses à política fundiária estava
cada vez mais forte. Assim, em 5 de setembro de 1946, foi editado o DecretoLei 9.760, que disciplinou as formas de acesso às terras públicas e passou a
regular a discriminação de terras. Mas, a reação persistia e considerando a
posição do PCB à retaguarda do movimento campesino, em 1947, o governo
decretou a ilegalidade do Partido e com a repressão generalizada, as ligas foram
violentamente reprimidas pela polícia do governo, bem como pelos próprios
fazendeiros e seus jagunços.
Apesar da repressão, as ligas ressurgiram em 1954, inicialmente em Pernambuco. O movimento continuou ganhando força principalmente nos estados
nordestinos. Na clandestinidade, ainda naquele ano, o Partido Comunista criou
a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (Ultab) organizando os camponeses em todo o Brasil.
Além da Liga Camponesa e da Ultab, outros movimentos surgiram no país
entre os quais o Movimento dos Agricultores sem-Terra (Master), com apoio do
PTB; o Serviço de Assistência Rural, o Serviço de Orientação Rural e a Frente Agrária
Gaúcha, (movimentos da ala conservadora da igreja católica) e o Movimento de
Educação de Base, representando a ala progressista da igreja, tendo a frente a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A criação de um órgão federal que concentrasse a atribuição de cuidar da
imigração, colonização e reforma agrária (embora muito tímida) ocorreu por
ato de Getúlio Vargas, em 5 de janeiro de 1954. Com a finalidade de absorver as
atribuições do Conselho de Imigração e Colonização – ligado ao Departamento
Nacional de Imigração, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio –, e da
Divisão de Terras e Colonização – vinculada ao Ministério da Agricultura. Foi criado
o Instituto Nacional de Imigração e Colonização (Inic). No ano seguinte, em 23 de
Memória Incra 35 anos
setembro de 1955, Café Filho, que sucedeu Getúlio Vargas criou o Serviço Social
Rural (SSR), uma autarquia ligada ao Ministério da Agricultura.
Como defesa contra as organizações campesinas, tentando acalmar o grito
do campo, em 1956, o governo editou a Lei 3.081 disciplinando o processo
discriminatório para terras federais, estaduais e municipais, mas isso não foi a
solução.
O movimento no campo cresceu até que em 1962 encontros e congressos
foram realizados para criar uma consciência nacional em favor da reforma agrária. Pensava-se ou sonhava-se com uma reforma agrária radical com luta para
erradicação do monopólio de classe sobre a terra. Os camponeses resistiram e
começaram a ocupar terras.
Novamente o governo se sentiu em cheque e em 11 de outubro de 1962
criou a Superintendência de Política Agrária (Supra), absorvendo as atribuições
do Inic e do SSR.
Estatuto da Terra
Até agora, somente na rápida introdução deste artigo e na breve referência à
organização e luta dos camponeses, nós citamos a reforma agrária brasileira.
Este era um grito forte que se ouvia no campo onde os agricultores estavam
se organizando em ligas camponesas, desde 1945 para pressão contra o Estado
Novo e aos governos que o sucederam, até repercutir de forma explosiva no
Congresso Nacional e no próprio Palácio do Planalto.
A situação política no país após a renúncia de Jânio e a ascensão de Jango
com amplo apoio da Liga Camponesa, sindicatos e movimentos sociais provocaram forte reação dos militares que, em março de 1964, assumiram o poder, na
conhecida revolução brasileira.
A par das cassações políticas, perseguições que ocorreram naquele início de
governo ditatorial essa mobilização e organização e sua motivação finalmente
vingaram, digamos, foram consideradas pelo governo militar que nomeou um
grupo de trabalho para cuidar do assunto.
Em 30 de novembro de 1964 o governo brasileiro sancionou a Lei 4.504,
instituindo o Estatuto da Terra regulando os direitos e obrigações concernentes
aos bens imóveis rurais, para fins de execução da reforma agrária e promoção
da política agrícola do Brasil.
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Nead Especial 2
O Estatuto da Terra consagrou o princípio do uso da propriedade rural condicionando-o à sua função social deliberando:
A propriedade da terra desempenha a sua função social quando simultaneamente: a)
favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labuta, assim como
de suas famílias; mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação
dos recursos naturais renováveis; d) observa as disposições legais que regulam as justas
relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam.
Com o advento do Estatuto da Terra, lei que definiu os direitos e obrigações
concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da reforma agrária
e promoção da política agrícola. (art. 1o) o governo se viu na necessidade de criar
órgãos para promover a Política Agrícola mediante o emprego de medidas que
proporcionasse a harmonização das atividades agropecuárias com o processo
de industrialização para o fortalecimento da economia rural, citada no segundo
item do mesmo artigo. Com esta intenção criou o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda) e o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) que
trabalharam lado a lado, de maneira bastante deficitária, durante seis anos.
Ao final desse período, o governo reconheceu que ambos não tinham
recursos materiais e humanos para cumprirem sua finalidade, isto é, executarem as atividades a serem desenvolvidas no setor agrário pelo poder público.
Decidiu-se, então, pela criação de um órgão com atribuição, competência e
responsabilidade para expandir-se de forma gradual, em função de legislações
que adviriam e que já estavam em fase de elaboração como o Plano Nacional
de Desenvolvimento (PND).
Assim, pelo Decreto-lei 1.110, de 9 de julho de 1970, fundiu-se o Inda e o Ibra
criando-se o Incra, hoje comemorando 35 anos de atuação e realizações.
A reforma agrária
O próprio Estatuto da Terra, no Item 1o, do Capítulo I – Princípios e Definições,
define a questão reforma agrária da seguinte forma: “Considera-se Reforma
Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da
terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender
aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.”
Memória Incra 35 anos
Críticos afirmam que não se fez reforma agrária no Brasil. Ignora-se, principalmente o período de 1964-1985, da edição do Estatuto da Terra à data da
instalação da considerada Nova República e até mesmo o passado recente
-1985-1995- período encerrado com a instalação do governo neoliberal.
Essa crítica é para a maioria dos que trabalharam e trabalham no Incra,
totalmente descabida, pois desrespeita o trabalho dispensado por todos e os
resultados até então obtidos. É uma crítica que procura apagar uma parte da
história do povo brasileiro e de suas instituições oficiais. Apagar exatamente parte
da nossa história, que foi muito prejudicada com registros falhos ou distorcidos
e com o extravio ou desaparecimento de documentos-registros importantes,
localizados em outros países como citamos anteriormente.
O Incra
Como é sabido ainda hoje persiste uma aberração do nosso sistema fundiário, a
existência do latifúndio improdutivo, uma minoria de brasileiros sendo detentores
de grandes proporções de terra, muitas vezes mantida para fins de especulação
imobiliária e econômica, sem a exploração devida, sem cumprir sua função social:
produzir, manter empregos, gerar renda…
Quando o Incra foi criado esse fato já incomodava toda a sociedade brasileira, em particular os trabalhadores do campo e até o governo. O êxodo rural
era uma constante, inchando as periferias das grandes cidades. Com tanta terra
disponível e mão-de-obra em quantidade para trabalhar no campo, estávamos
a importar cada vez mais alimentos. Em verdade as terras não consistiam apenas
no latifúndio improdutivo e especulativo, mas também milhões de hectares de
terras devolutas.
Com fundamentação no Estatuto da Terra, o governo Federal utilizando-se do
Incra o executor da política de reforma agrária – aliado à necessidade de ocupar
grandes vazios demográficos – optou por duas linhas de ação: a regularização
fundiária, daí, legalizando em ampla escala as propriedades ocupadas, de maneira
mansa e pacífica, utilizando o usucapião. A segunda, assentar colonos em projetos
a exemplo dos de colonização. Neste caso criou Projetos Fundiários (PF), Projetos
de Assentamento Dirigido (PAD) e Projetos Integrados de Colonização (PIC).
Uma das filosofias usada foi a de integrar “os homens sem terra do Nordeste
com as terras sem homens da Amazônia.” Na prática, verificou-se que a maior
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Nead Especial 2
parte das famílias deslocadas para a região procederam do sul do país, (RS e SC)
e não do Nordeste. Estudos posteriores demonstraram que o custo do programa
foi alto, o número de famílias beneficiadas reduzido e o impacto sobre a região
insignificante.
Avaliação de estudiosos consideram que os projetos de desenvolvimento
implantados pelos governos militares levaram ao aumento da desigualdade
social. Suas políticas aumentaram a concentração de renda, conduzindo a
imensa maioria da população à miséria, intensificando a concentração fundiária e promovendo o maior êxodo rural da história do Brasil. Sob a retórica da
modernização, os militares aumentaram os problemas políticos e econômicos,
e quando deixaram o poder, em 1985, a situação do país estava extremamente
agravada pelo que fora chamado de “milagre brasileiro.”
Consideram, ainda, que o avanço do capitalismo no campo aumentou a
miséria e provocou a concentração e acumulação de riqueza, transformando
o meio rural pela modernização tecnológica de alguns setores da agricultura,
com a mecanização e a industrialização. Isso acabou por expropriar e expulsar
os trabalhadores rurais da terra, causando o crescimento do trabalho assalariado
e produzindo um novo personagem da luta pela terra e na luta pela reforma
agrária: o bóia-fria.
Curiosamente, grande parte dos que defendem esta tese, ao que parece,
ainda pensam no Brasil dividido apenas em pequenas e médias propriedades
rurais com os trabalhadores rurais, sejam camponeses, sejam campesinos, sejam
agricultores, apenas trabalhando a terra na base das ferramentas rudimentares e
utensílios como o arado manual ou por tração animal. Nada de arados mecânicos, semeadeiras, colheitadeiras. Afirmam: “Em seu pacto tácito, os militares e a
burguesia pretendiam controlar a questão agrária, por meio da violência e com a
implantação de seu modelo de desenvolvimento econômico para o campo, que
priorizou a agricultura capitalista em detrimento da agricultura camponesa.”
Esta não foi e não é a interpretação da maioria dos funcionários do Incra que
trabalharam pelo homem do campo desde a criação do instituto há 35 anos e
também daqueles que assumiram mais tarde seus empregos e executaram o
programa de reforma agrária do governo durante o período militar até chegar
à Nova República, em 1985.
Não se pode ignorar os antigos territórios federais do Acre e de Rondônia
que ascenderam à condição de estado com o crescimento e com o desenvol-
Memória Incra 35 anos
vimento proporcionados pelos projetos de reforma agrária naquelas regiões
de onde surgiram uma série de municípios; os imensos espaços vazios foram
ocupados e para garantia da segurança nacional ocuparam-se de forma segura
as fronteiras com o Peru e Bolívia. Entre estas cidades lembramos Xapuri, Cruzeiro
do Sul, Sena Madureira, Guajará-Mirim, Alta Floresta, Vilhena e Jaru.
Os que repudiam a atuação do Incra, consideram o órgão incompetente,
cabide de emprego e responsável pelo caos que se sucedeu no campo em razão
de seguidos insucessos de políticas governamentais. Fazem questão de ignorar
ou não considerar uma gama de resultados positivos. Ignoram que a reforma
agrária, dos sonhos e anseio nacional, não só dos agricultores e dos membros
do Movimento Nacional dos Trabalhadores sem-Terra (MST), não foi viabilizada
em razão das políticas econômicas e pela fraca atuação de muitos governos.
É importante destacarmos que em 1985 no período intitulado Nova República,
o presidente José Sarney elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA)
editado pelo Decreto no 97.766, de 10 de outubro de 1985, conforme preconizava
o Estatuto da Terra, com metas ambiciosas: destinar 43.000.000 hectares de terras
para assentamento de 1.400.000 famílias, ao longo de cinco anos. Para alcançar
a meta criou o Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e a Reforma
Agrária (Mirad). No final desse período, porém, foram assentadas apenas 89.950
famílias numa área dez vezes menor que a sonhada.
Foi nessa ocasião que surgiu a União Democrática Ruralista (UDR), organização dos latifundiários criada para defender seus privilégios e interesses. Em 1988,
essa organização conseguiu minar a criação de uma lei de reforma agrária no
processo Constituinte e inviabilizou a solução para a questão agrária.
Os agricultores na oportunidade, também expandiam o processo de territorialização do MST. Nas periferias das cidades, os sem-terra com o apoio da igreja
católica, dos sindicatos de trabalhadores rurais e de partidos políticos, reunindo
famílias para refletirem sobre suas vidas e as perspectivas de vida e trabalho, ao
passo que faziam levantamentos das realidades da luta pela terra nos municípios,
analisavam as conjunturas políticas por meio da construção de conhecimentos
e tomavam decisões para mudar os seus destinos.
O número acanhado e frustrante de quase 90 mil assentamentos refletia, à
época, o forte embate político e ideológico que se travava na Assembléia Nacional
Constituinte em torno da reforma agrária. Foi também na mesma ocasião, em
1987, que o governo que tinha meta tão ambiciosa e por que não dizer utópica,
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Nead Especial 2
contrariamente ao próprio discurso, ao invés de dar força à reforma agrária, em
um ato injustificável extinguiu o Incra órgão que estava a serviço da nobre causa.
Transferiu a maioria de seus funcionários para o Ministério da Agricultura, ao qual
atribuiu a execução da reforma agrária. Uma parcela bem menor de funcionários,
principalmente os procuradores foram alocados no Inter, criado na ocasião.
Mas, o governo Federal não contava com a organização dos funcionários
do Incra constituídos na Confederação Nacional das Associações de Servidores
do Incra (Cnasi) e nas suas 43 Assincras, associações afiliadas. Esses servidores
uniram-se a entidades, partidos políticos, segmentos da sociedade e parlamentares pró-reforma que atuaram dia e noite no Congresso Nacional que, por meio
de decreto parlamentar, em 29 de março de 1989 rejeitou o decreto-lei que
extinguiu o Incra. No entanto, a falta de respaldo político e o irrisório orçamento
mantiveram a reforma agrária semi-estagnada.
Somente a partir da edição de Lei Agrária (Lei no 8.629/93) que regulamentou
dispositivos da Constituição de 1988 referentes à reforma agrária, o Incra tomou
novo impulso com a busca da transformação das terras obtidas em projetos de
assentamento.
Para a desapropriação por interesse social, a partir dos instrumentos legais
instituídos com a promulgação da nova Lei Agrária e da Lei Complementar no
76/93, o Incra adotou como diretriz a priorização das ações nas regiões mais
críticas em termos de concentração fundiária, da existência de terras ociosas
– aproveitáveis para a agricultura – da incidência de tensão ou conflito social,
da maior proximidade dos centros consumidores e de significativa demanda
social por terras.
A partir de 1994, com Fernando Henrique Cardoso, a reforma agrária torna-se
uma política mais visível a partir dos novos tipos de projetos de assentamentos
rurais, de acordo com a territorialização da luta pela terra e, também, com a regularização das terras de posseiros nas áreas de fronteira da Amazônia. Entretanto
a ampliação da política neoliberal, implantada desde o governo Collor, a crise da
agricultura ficou cada vez mais aguda, transformando muitos agricultores antes
empregados ou trabalhando na terra como meeiros, em sem-terra.
Em 29 de abril de 1996 o Incra foi vinculado ao Ministério Extraordinário de
Política Fundiária ficando a política de reforma agrária vinculada diretamente à
Presidência da República; em 14 de janeiro de 2000, o Decreto no 3.338, criou o
Ministério do Desenvolvimento Agrário e, mais recentemente, em novembro de
Memória Incra 35 anos
2003 o governo Lula lançou o II PNRA com meta de assentar 400.000 famílias;
regularizar a posse de 500.000 famílias e beneficiar 150.000 famílias com o crédito
fundiário. Estas metas são para 2003-2006.
Em contraponto à afirmação de que não se realiza a reforma agrária no
Brasil, apresentamos os dados do Incra que podem ser divididos em quatro
períodos distintos O primeiro vai da criação da autarquia ao fim do governo
militar (1970-1984); o segundo vai da Nova República ao governo Itamar Franco
(1985-1994); o terceiro abrange o período neoliberal de Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002) e o quarto que é o do período atual (2003-2005) o governo
Lula, cujas raízes o identificam com o movimento dos trabalhadores rurais e
movimentos de base.
A ação do Incra
Eis o resultado da ação do Incra, executando a reforma agrária sob ordem dos
vários governos e sob pressão dos movimentos sociais e sociedade brasileira.
No retrato acanhado do que foi a reforma agrária em 35 anos, serão apresentados dados em relação a assentamento, discriminação de terras, titulação e
desapropriação.
Assentamento de famílias de trabalhadores rurais
No período 1970-1984, foram assentadas 166.189 famílias numa média de 11.870
famílias/ano. No período seguinte 1985-1994, o total de famílias assentadas
chegou a 150.138 com média de 15.013 famílias/ano. De 1995-2002, foi registrado
um grande salto: atingindo 524.080 famílias com média anual de 65.510 (aqui
registramos os dados reconhecidos atualmente pelo Incra e MDA constantes
do II PNRA); No último período de 2003-2005 foram assentadas 117.555 famílias.
Total: 957.962 famílias assentadas.
Considera-se no primeiro período que os agricultores foram assentados
em PF’s, PAD’s e PEC’s, num total de 131.317 famílias; e o Proterra e convênios
assentaram 34.317 famílias.
Discriminação de terras
O processo de discriminação de terras consiste na separação das terras devolutas
das privadas, promovendo-se daí, a arrecadação de terras em nome da União,
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com seu registro em cartório. De 1970-1984, o procedimento discriminatório era
mais utilizado, para atender à diretriz de se ocupar espaços vazios no processo de
colonização oficial tendo sido discriminados 124.198.306 hectares. Nos períodos
seguintes, esse processo passou a ser menos utilizado, em virtude da ênfase
dada ao processo de desapropriação por interesse social em terras ociosas, que
não cumpriam sua função social. Assim, de 1984 a 1985 foram discriminados
6.966.922 hectares de 1995 a 1999, 3.439.106 hectares.
Total: 134.604.329 hectares discriminados.
Titulação de terras
Quanto à titulação de propriedades há que se destacar que ela pode ser definitiva ou provisória. E havia uma particularidade nos projetos de colonização
onde também foram também tituladas áreas urbanas e para-rurais. Fato ocorrido no período de 1970-1984 quando foram outorgados 1.032.532 documentos,
numa área de 61.987.741 hectares, estando aí contabilizadas emissões de títulos
federais, estaduais e municipais pelos órgãos que atuavam no setor fundiário.
Em 1985-1994 foram expedidos 221.506 documentos, em uma área de 5.347.781
hectares. Em 1995-1999 foram expedidos 47.790 documentos, em uma área de
3.169.844 hectares.
Totais gerais: 70.505.366 hectares titulados e 1.301.828 propriedades tituladas.
Desapropriação de terras
Em relação à desapropriação de terras, no período 1970-1984, foi desapropriada
uma média de 1,6 milhão de hectares.totalizando 23.365.519 hectares; o período
seguinte, de 1985-1994, apresentou uma média de 1.415.489 hectares/ano, totalizando 12.739.407 hectares, fato que registra a menor atenção dada à reforma
agrária e já de 1995-1999, essa média foi ligeiramente superior e ficou em 1,7
milhão de hectares totalizando 8.725.844 há; finalmente de 2003-2005 foram
desapropriados 869.721 hectares.
Total geral: 45.700.491 hectares desapropriados.
Criação de Projetos de Assentamento
Uma vez que os projetos de assentamento começaram a ser criados apenas a
partir de 1995 dentro da nova linha de ação determinada pelo governo neoliberal.
Registra-se que o relatório daquele governo (1995-2002) aponta a criação de
Memória Incra 35 anos
9.034 projetos de assentamento, número fortemente questionado e o governo
atual (2003-2004) criou 441 projetos de assentamentos.
Total: 9.475 projetos de assentamento.
Relacionamos apenas cinco itens referentes à ação do Incra, que fazem parte
do amplo processo que classificamos como a reforma agrária. Abaixo destacamos
três deles, a discriminação, a titulação e a desapropriação que totalizam 2.508.102
quilômetros quadrados. Este resultado é mais do que significativo, para contestar
a afirmação de que no Brasil não é feita a reforma agrária. Vejamos :
Discriminação de terras – Total: 134.604.329 ha = 1.346.043 km2
equivalente aproximadamente às áreas dos estados BA + MG + SC + PE
Titulação de terras – Total: 70.505.366 ha titulados = 705.055 km2
Equivalente a aproximadamente às áreas dos estados a AC + RO + RR + RJ + ES
Desapropriação de terras – Total: 45.700.491 ha = 457.004 km2
Equivalente aproximadamente às áreas dos estados CE + SE + RN + PB+ AP +
AL + DF
Observe-se que há áreas que estão em mais de um dos itens acima, o que
não invalida a equiparação de áreas com os tamanhos dos estados citados.
Encerrando a contestação, quanto aos resultados do órgão, destacamos
algumas contradições: o ministro do Desenvolvimento Agrário citou mais de
550 mil assentados contando os 117 mil assentados pelo atual governo; o II PNRA
aponta para 524.080 famílias somente naquele governo, entretanto, Fernando
Henrique Cardoso chegou a divulgar quase duas vezes este número, dados que
não consideramos. Há que se considerar, ainda, cerca de 316 mil assentados até
antes de iniciar o governo neoliberal.
O somatório dos totais que consideramos totalizam um universo de cerca
de 958 mil famílias assentadas. Considerando que um casal brasileiro do campo
ou do interior tem cerca de 2 ou 3 filhos número que reconhecidamente é bem
maior na maioria delas podemos considerar que, na média as famílias dos agricultores devem ter cinco membros. Isto representa que o programa de reforma
agrária assentou um universo de aproximadamente 4.780.000 brasileiros e con-
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Nead Especial 2
siderando a titulação de cerca de um milhão de propriedades os beneficiários
diretos da reforma agrária nestes 35 anos deve dobrar dentro da mesma linha
de interpretação.
Assim, quase 10 milhões de brasileiros podem ser contabilizados como
beneficiários do programa de reforma agrária. Se todos continuam no campo,
trabalhando a terra ou se mantêm suas propriedades só um estudo mais profundo da realidade fundiária brasileira Além destas ações, lembramos que o
órgão e seus funcionários foram responsáveis pela execução de um sem par de
atividades de programas.
Os projetos que antecederam os atuais projetos de assentamento tinham
em sua maioria, escolas e postos de saúde com professores, enfermeiros e até
mesmo médicos contratados pelo Incra, assistência técnica e rural. Para viabilização dos assentamentos, as propriedades precisaram de vistorias, demarcação
com árduos trabalhos dos nossos técnicos de cadastro, topógrafos, engenheiros
e trabalhadores auxiliares.
Durante esses anos muito se investiu nestes projetos. Foram construídas casas, centros comunitários, armazéns, silos, açudes, tanques, sistema de irrigação,
redes hidráulica e de energia elétrica. Milhares de assentados – agricultores e os
familiares – têm participado de programas como o Pronera, Escola para todos e
outros. Alguns têm sido beneficiados com o Programa Nacional de Agricultura
Familiar (Pronaf ).
Os beneficiários da reforma agrária e aqueles que se candidatam ao programa
vem contando com uma série de benefícios que lhes proporciona uma melhor
condição de cidadania a começar pelo período em que ainda estão acampados
na luta pela sua terra. Recebem assistência jurídica, participam do Fome Zero
e têm seus filhos incluídos no programa educacional. Encerrando este artigo
destacamos as ações e programas que atualmente estão em execução:
recuperação da capacidade produtiva e a viabilidade econômica dos assentamentos;
criação de 2.075.000 postos permanentes de trabalho no setor;
implementação do cadastramento georreferenciado do território nacional
regularização de 2,2 milhões de imóveis rurais;
reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de comunidades quilombolas;
garantir o assentamento dos ocupantes, não-índios, de áreas indígenas;
promover a igualdade de gênero na reforma agrária;
Memória Incra 35 anos
• garantir1assistência técnica e extensão rural;
• garantir capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas as famílias;
• universalizar o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas
reformadas.
Continuamos convictos de que nós fazemos a reforma agrária e que – segundo o ministro Rosseto, o Incra ajudou a construir um país mais inclusivo
e democrático. Além de assentar os milhões de agricultores, repartiu terra e
cidadania tornando mais justo um país ainda profundamente injusto.
Sim… nós fazemos a reforma agrária ! No Brasil estamos fazendo a reforma
agrária. 225
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Além da reforma agrária
G e r a l d i n o G u s tav o d e Q u e i r o z T e i x e i r a
Sempre se ouve a voz dos contrários à reforma agrária. Afinal, estão geralmente
habitando os melhores lugares das cidades, alguns são donatários de grandes porções de terra, que nem sempre cultivam, outros clamam pela simples
desinformação. Eles têm voz, têm contatos influentes, e têm medo do efetivo
cumprimento da função social da propriedade.
Fixam sua razão nos erros da reforma agrária refletidos nos altos índices de
evasão nos assentamentos, no ocasional fracasso de algumas famílias que não
lograram êxito nos seus empreendimentos. Não percebem que o assentamento
para muitos foi a única real oportunidade que tiveram na vida e que o insucesso,
nesses casos, merece inclusive ser comemorado. Ora! Quantos brasileiros morrem
todos os dias sem ter oportunidade semelhante?
A reforma agrária com todos os seus problemas de execução ainda é o
melhor caminho para a inclusão social. A falta desta informação conduz ao
paradoxo que leva, muitas vezes, trabalhadores rurais com-terra, minifundistas,
a filiarem-se no sindicato patronal, engajando-se na luta anti-reforma agrária.
Têm medo de perder a pouca terra protegida a largos esforços do assédio do
latifúndio, e não querem para si a alcunha depreciativa de trabalhador rural, que
revela um parentesco próximo dos sem-terra, tão atacados na mídia. Querem
ser fazendeiros e ficar perto dos “grandes”, gozando das suas docilidades, desde
que fiquem nos seus devidos lugares: subservientes.
Os acampados às margens das estradas mostram não somente a carência
da reforma agrária, mas revelam a necessidade de se promover um programa
verdadeiro de combate à exclusão social. Afinal, quem levaria sua família para
morar debaixo de uma lona preta, à margem da rodovia, na esperança de que
um dia, o governo, com toda a sua burocracia, lhe conceda uma área de terra?Só
quem realmente precisa, aceita essa condição.
Memória Incra 35 anos
Sob a sombra da lona preta se oculta o retrato mais primitivo da luta pela
sobrevivência:- “aquele que se morre de velhice antes dos trinta e de fome um
pouco por dia.” Lá residem ilusões e desesperos cotidianos, instantes de felicidade
regados a gole de cachaça e gritos mudos de socorro que chegam aos tímpanos
de uma sociedade acostumada e indiferente.
Alguns, realmente, não são adaptados à realidade rural, mas querem uma
oportunidade, apareça ela onde for. No meio deles existem uns poucos picaretas,
os aproveitadores, mas esta espécie está disseminada por todos os lugares, faz
parte do gênero humano.
Os resultados da reforma agrária devem ser aferidos por quem vive e não
somente por quem observa. São bem maiores que os milhões de quilos produzidos pela agricultura familiar que abastece a maior parte da mesa do brasileiro.
Vão além, estão traduzidos em terra, moradia, escola, crédito, assessoria técnica
e social, enfim, perspectivas de dignidade para quem nunca teve a esperança
de ter plenamente nada.Não encerra em si mesma, vai além, é um instrumento
de inserção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento humano.
O público assentado tem muito que reclamar dos serviços da reforma agrária, afinal, o governo se desdobra para agradar a agricultura patronal voltada
à exportação, porque precisa dos dólares e ao mesmo tempo, fazer a reforma
agrária, porque também precisa combater a injustiça social. No antagonismo
das escolhas, perde-se o foco e padece o mais fraco.
Mesmo assim, temos avançado. A reforma tem chegado a milhares de
famílias a cada ano, levando os seus benefícios, realizando sonhos, avançando
além do ordenamento fundiário. É agrária porque no campo é seis vezes mais
barato gerar um emprego que na cidade, e a agricultura familiar, frente a patronal,
necessita de oito vezes menos área para gerar uma vaga empregatícia:- é mais
competente em emprego e renda/hectare.
No universo das razões para aprofundar a reforma agrária estão os resultados
dos 35 anos de criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), cuja atividade no período demonstra o íntimo das prioridades dos governos, mas que ao longo do tempo avançou sob as pressões dos movimentos
sociais e pela boa vontade do corpo funcional que se esforça para conceder a
muitos brasileiros o direito de vislumbrar horizontes de oportunidades, que quase
sempre se encontram invisíveis no país da desigualdade. 227
20
Reforma agrária como
exercício de liberdade
G i l b e r to Bamp i
O presente trabalho visa contribuir com o concurso Memória Incra 35 anos, uma
vez que se insere na perspectiva de reconstituição da memória do Incra não só
como instituição, mas também de registro das experiências dos servidores que
fazem parte, historicamente, da vida da própria instituição.
Por esta razão, a exposição foi dividida em três partes.
O item II trata da periodização da existência do Incra, como instituição do
estado brasileiro, encarregada da execução da reforma agrária no país. O item
III trata da abordagem de dois temas indissociáveis, ou seja, de reforma agrária e
democracia. O item IV trata dos novos desafios, colocados pela conjuntura, cujo
enfrentamento significa a ampliação dos espaços democráticos da sociedade,
representados pelos assentamentos, entendendo a massividade da reforma
agrária como um imperativo para transformar o campo brasileiro, cada vez mais,
em espaço de exercício da liberdade no país.
A periodização da existência do Incra
Inicialmente, cabe assinalar o que se pode considerar como a missão do Incra,
fazendo uma espécie de periodização da vida da instituição, ao longo desses
35 anos de sua existência.
Sob o ponto de vista geral, pode-se entender que o Incra tem uma missão,
como um organismo de Estado que intervém na questão agrária, no sentido de
democratizar o acesso à terra no país.
A história do Incra inicia-se em 1970, com a fusão do Ibra e do Inda. Estas foram
duas instituições que resultaram do intenso processo de mobilização política
Memória Incra 35 anos
da sociedade brasileira, na década de 1960, que resultou no golpe de estado de
1964, tendo sido criadas pelo Estatuto da Terra, em novembro de 1964.
O Estatuto da Terra, por sua vez, foi fruto da intensa reivindicação dos
movimentos sociais do campo, quando o estado autoritário deu sua resposta
a esses movimentos, sem, contudo, implementá-lo, até o advento da redemocratização do país.
Em 1985, com o processo de redemocratização, a missão do Incra pôde,
finalmente, se realizar, iniciando-se o processo de reforma agrária, apesar de seu
alcance limitado, sem a massividade que a sociedade brasileira exigia e exige.
No período de 1964 até 1985, basicamente as atividades do Incra se restringiram às ações nas áreas de cadastro e tributação, de regularização fundiária e de
colonização, seja ela oficial ou particular. Somente a partir de 1985 verificou-se
efetivamente, a implementação de um programa de reforma agrária no país,
com o advento do I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA).
Ao proceder uma periodização das ações do Incra, observa-se o período
que se estende de 1964 a 1985, com ênfase nas ações acima citadas e, a partir de
1985, quando se completa o processo de redemocratização do país, criaram-se as
condições para que, efetivamente, se implantasse, gradativamente, aquilo que
tinha sido proposto no Estatuto da Terra, isto é, a extinção gradual do minifúndio
e do latifúndio.
O que é fundamental perceber nesse processo de mudanças pelas quais
passaram as políticas públicas no Brasil voltadas à questão agrária? É evidente
que a questão da missão do Incra sempre esteve voltada para a colonização, no
período anterior, antes da redemocratização, sofrendo uma inflexão fundamental
após 1985, iniciando-se o processo de reforma agrária no país.
São dois períodos absolutamente claros, bem demarcados na história do Incra,
e que refletem a correlação de forças política da sociedade brasileira, que permitiu
o cumprimento efetivo da sua missão institucional somente a partir de 1985.
É curioso verificar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que implementa o processo de reforma agrária, a partir de 1985. Por que isso? Porque o
processo histórico no Brasil leva a reconhecer o país como sendo um dos que apresentam a maior desigualdade na distribuição da terra e da renda no mundo.
Dados recentes mostram que o Brasil é o segundo país de maior desigualdade
no mundo na questão da distribuição da renda e também, o país com a maior
desigualdade regional do mundo.
229
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Nead Especial 2
A questão da reforma agrária se coloca como uma necessidade da sociedade
brasileira de promover a redistribuição da propriedade da terra, o que vai implicar,
necessariamente, na redistribuição da renda, tanto em termos pessoais como em
termos regionais. E, o que é mais importante, a redistribuição de poder político,
na medida em que a reforma agrária significa democratizar o acesso à terra e criar
espaços de liberdade, representados pelos assentamentos da reforma agrária.
Isso tem, evidentemente, toda uma concepção teórica por trás, que coloca
a necessidade de aprofundar a discussão sobre a visão dos dois tipos de vias de
desenvolvimento capitalista na agricultura: a primeira, a via autoritária, baseada na
grande propriedade e, a segunda, a via democrática, representada pela reforma
agrária e pelo fortalecimento da agricultura familiar.
Reforma agrária e democracia
A via autoritária de desenvolvimento capitalista na agricultura é aquela que,
infelizmente, se verificou, historicamente no Brasil.
No Brasil, o processo de concentração da propriedade sempre esteve presente
ao longo de sua história, desde as capitanias hereditárias, porque a apropriação
do espaço no campo brasileiro sempre foi uma fonte de poder, principalmente
no âmbito do modo de produção colonial escravista, que predominou na formação econômico-social até quase o final do século XIX.
Essas especificidades do desenvolvimento capitalista no Brasil marcaram, indelevelmente, a origem da sociedade de classes no país, tendo sido o último país
do mundo a abolir a escravidão, nódoa que as elites brasileiras jamais apagarão
de sua história, uma vez que se articulavam com as elites dos países centrais, as
quais (pasmem), recriaram o modo de produção escravista, durante o processo
de acumulação primitiva do capital em nível mundial.
O desenvolvimento e expansão da grande propriedade no campo no Brasil,
primeiro com a plantation da cana-de-açúcar, em Pernambuco e em São Paulo, em
seguida com o “ciclo do ouro”, em Minas Gerais, e, após, com a expansão do café,
em São Paulo, todas inseridas no modo de produção colonial escravista, resultado
do processo de acumulação primitiva do capital em nível mundial, é uma marca
e uma especificidade do desenvolvimento capitalista autoritário no Brasil.
É, precisamente, ao longo da segunda metade do século XIX que se verifica,
no Brasil, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, com a imigração de
Memória Incra 35 anos
colonos europeus, principalmente para a parceria do café, em São Paulo, tendo
a Lei de Terras de 1850, representado aquilo que Antônio Cândido caracterizou
como sendo a transição de um modo de produção com “terras livres para homens
cativos,” para um outro, com “homens livres para terras cativas.”
O longo período histórico, que se encerra na segunda metade do século XIX,
marcou, indelevelmente, a constituição da sociedade de classes no Brasil, em
que a terra concentrada em poucas mãos configurou as classes sociais que nela
tinham a sua fonte de poder político, de corte nitidamente autoritário.
Não é para menos que os especialistas em desenvolvimento econômico e
social comparado desenvolveram a concepção de que a democracia e a ditadura
têm suas origens sociais no modo em que, historicamente, se constituíram as
classes sociais em sociedades de base agrícola, o que reafirma a tese de que
quanto mais concentrada a terra, maior a concentração do poder político, o
que explica grande parte da história brasileira, marcada, profundamente, pela
predominância dos regimes autoritários.
Portanto, a história política do Brasil, até o final do século XIX, é uma história
de períodos de regimes autoritários, apesar de, nos países de industrialização
originária, como a França, por exemplo, a democracia burguesa se tenha consolidado desde a Revolução Francesa, em 1789, cujo traço fundamental foi a
democratização do acesso à terra pelos camponeses, sob o impulso das forças
produtivas da Revolução Industrial, que transformou a França, por esta razão, no
país campeão mundial da agricultura familiar.
A França é o país mais democrático do mundo, graças à sua base produtiva desconcentrada no campo, que já fez sua reforma agrária, há mais de
duzentos anos, o que por esta razão, torna aquele país campeão mundial
da liberdade.
Quanto ao Brasil, mesmo ao longo do século XX, é um país que viveu poucos
períodos democráticos, mesmo de democracia representativa, de alcance limitado,
com liberdades democráticas e direitos civis absolutamente limitados.
Ao se reconstituir a história percebe-se que, basicamente, a experiência do
Brasil é uma experiência marcada pela vigência de regimes autoritários, graças
à configuração de suas classes sociais, mesmo durante a transição de uma sociedade de base agrícola para uma de base industrial, que, curiosamente, dá um
salto de qualidade justamente na grande depressão do capitalismo central, em
1929, quando a Revolução de 30 explode no país, marcando o fim da República
231
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Nead Especial 2
Velha e a reorganização da sociedade civil, bem como o rearranjo de sua base
produtiva e de sua reinserção na divisão internacional do trabalho, como um
país que se industrializa rapidamente.
A Revolução de 30, considerada por alguns autores como a revolução
burguesa no Brasil, que marca a transição de uma sociedade de base agrícola
para uma de base industrial, nada mais foi do que um pacto de elites, em que
o Estado tomou à frente do processo de industrialização, face à fragilidade da
burguesia industrial emergente.
Isto corrobora a tese de muitos autores, de que quanto mais retardatária,
ou tardia, a industrialização de um país, mais o Estado intervém na atividade
econômica, dado o caráter do desenvolvimento desigual e combinado de que
se reveste o desenvolvimento desses países.
Evidentemente que o caso do Brasil é um caso de industrialização tardia, que
se verifica apenas na primeira metade do século XX, considerado, por alguns
autores, como país de quarta geração.
Apesar do extraordinário crescimento industrial do país, ao logo do período
de 1930 a 1945, ao nível político, o país foi marcado pela ascensão de regimes
autoritários, especialmente do Estado Novo, que visava manter sob controle os
trabalhadores emergentes da indústria, que experimentou um segundo salto
de industrialização após a Segunda Guerra mundial, que, curiosamente, se dá
no momento de fragilidade do capitalismo central.
O período de maior prosperidade industrial se deu, exatamente no período
de 45 a 64, marcado pela vigência da democracia representativa, que se encerra,
com a agudização da questão agrária no Brasil, por um período de 20 anos, de
64 a 85, pela emergência dos movimentos sociais organizados no campo brasileiro, reivindicando, por um lado, uma reforma agrária massiva, que se traduz
no Estatuto da Terra, e, por outro, o reconhecimento dos direitos trabalhistas do
campo, que se revela na promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural.
Mas por que, no caso brasileiro, a questão agrária só aflora na década de
1960, depois de 30 anos de industrialização tardia? Porque o Brasil – por ser
considerado um país de industrialização tardia, que transita de uma sociedade
de base agrícola para uma de base industrial, tão-somente na década de 1930
– não resolveu a questão da distribuição extremamente desigual da terra, que,
curiosamente, se concentrou ainda mais com o processo de industrialização
do próprio campo. E porque não resolveu a questão agrária, somente em 1960
Memória Incra 35 anos
é que vão se agudizar os conflitos, impulsionados pela organização crescente
dos movimentos sociais no campo.
Nesse contexto, o que é a história do Incra, a missão do Incra, senão a de
um organismo do Estado brasileiro, no sentido de promover a democratização
do acesso à terra, de promover diferentes formas de apropriação democrática
da terra, na medida em que os conflitos se agudizam?
E ainda mais, quando a questão agrária foi enfrentada, a partir de 1985, se
assiste à ascensão das forças reacionárias do campo, representadas pela União
Democrática Ruralista (UDR), que se opõe ao Movimentos dos Trabalhadores
sem-Terra (MST), assim como, de forma mais moderada, ambas representando
interesses antagônicos, se opõem a Confederação Nacional da Agricultura (CNA)
e a Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag).
Neste sentido, a tese que aqui é defendida se traduz no enfrentamento cada
vez mais agudo entre os representantes da agricultura familiar, de um lado, com
os interesses da agricultura patronal, de outro.
Até mesmo o Estado brasileiro se encontra dividido, refém da agudização dos
conflitos sociais no campo, tendo sido necessária a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), no início do século XXI, para atender às reivindicações
do MST e da Contag, enquanto a agricultura patronal se organiza em torno do
Ministério da Agricultura, atendendo às reivindicações da UDR e da CNA.
Neste sentido, o Estado brasileiro está diante de um dilema de difícil solução, pois apesar de ter sido inaugurada uma fase de democracia representativa
no Brasil, a partir de 1985, é cada vez mais forte a tensão entre estes dois pólos
de disputa de poder no campo, com o MST impulsionando as transformações
necessárias para democratizar o acesso à terra no país.
Vale dizer, a questão agrária no Brasil ainda não está resolvida, razão pela qual
cresce a responsabilidade do Estado brasileiro, no sentido de dirimir conflitos,
mas ao mesmo tempo, impulsionar as transformações que a sociedade deseja.
Mesmo assim, o governo democrático e popular do presidente Lula tem
conseguido avanços significativos, na disputa de recursos públicos, seja para
implementar o II PNRA, seja para fortalecer a agricultura familiar.
Estes avanços, no entanto, devem continuar a ser perseguidos, pois a legislação
agrária do país, curiosamente, tem avançado nas últimas décadas, tendo sido a
reforma agrária insculpida num Capítulo da Constituição Federal de 1988, apesar
de alguns retrocessos localizados, relativos à legislação infraconstitucional.
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Nead Especial 2
O problema que permanece é que a questão agrária não está resolvida, demandando mais ousadia por parte do governo, no sentido das transformações
que a sociedade está a exigir.
E o incra se coloca no olho do furacão, tendo a consciência, por um lado,
de seu papel estratégico nestas transformações, mas cujo avanço é, constantemente, emperrado pelos opositores de transformações mais profundas. Nesse
sentido, nada mais oportuno que identificar as necessidades de avanço, tanto
da reforma agrária, quanto da agricultura familiar, no sentido de impulsionar a
via democrática de desenvolvimento do capitalismo no campo, papel central
do Incra nessa conjuntura.
Em outras palavras, trata-se de concentrar esforços nas ações consideradas
estratégicas para a reforma agrária, pois a conjuntura política do país, em particular, e da América Latina, em geral, apontam nesta direção.
A missão do Incra, portanto, que é fruto da correlação de forças políticas da
sociedade, só se pode desenvolver plenamente na medida em que esta correlação de forças favoreça a implementação de uma política pública capaz de
dar conta da expansão da via democrática de desenvolvimento da agricultura,
procurando romper com o seu passado histórico, pois este passado sempre levou
à concentração da propriedade, da renda e do poder no campo.
A reforma agrária vai, portanto, exatamente, no sentido oposto do processo
histórico verificado no Brasil, isto é, no sentido da sua redistribuição.
Portanto, o papel histórico do Incra tem sido o de implementar a via democrática de desenvolvimento capitalista no campo brasileiro, ora com ênfase em
um instrumento, ora com ênfase em outro.
Ao se recuperar a história do Incra, um de seus momentos mais extraordinários
ocorreu, precisamente, com o advento da redemocratização, através da implementação, ainda que modesta, do I Plano nacional de Reforma Agrária (I PNRA).
E os funcionários que sempre se identificaram com o projeto de reforma agrária
e não de colonização, realmente, nesse momento, sentiram-se muito estimulados
a participar. Foi um momento de ampla participação dos servidores e um salto
de qualidade no engajamento dos próprios servidores nesse processo.
Ou seja, um momento de dar apoio ao I PNRA, participar da sua formulação e
da sua implementação, representando uma inflexão histórica dentro do Incra.
O segundo momento, mais extraordinário ainda, ocorreu com o advento
do II PNRA, quando a sua formulação se deu de forma participativa, não só com
Memória Incra 35 anos
os servidores, mas com os representantes dos movimentos sociais, que foram
ouvidos e dele participaram.
Nesse sentido, o II PNRA marca uma diferença de qualidade, inaugurando as
formas participativas de exercício da democracia, na formulação e implementação
de políticas públicas. Apesar de todos os avanços obtidos no governo Lula, dois
novos desafios permanecem, o que se traduz na abordagem a seguir.
Reforma agrária como exercício da liberdade – novos desafios
Dois novos desafios permanecem ao Incra, durante o governo Lula, no sentido
de dar respostas adequadas às reivindicações dos movimentos sociais, que
visam ampliar os espaços de liberdade representados pelos assentamentos da
reforma agrária no país.
O primeiro desafio diz respeito à ampliação e requalificação dos quadros
técnicos do Incra, dedicados à vistoria, à avaliação e à perícia judicial de imóveis rurais, aí entendida a sua maior capacitação, visando baratear e acelerar o
processo de reforma agrária no país.
Trata-se, portanto, de ações estratégicas para a reforma agrária, razão pela qual
essa questão da perícia judicial, bem como a questão das vistorias e da avaliação
na fase administrativa, cuja aceleração se constitui numa das principais demandas
das famílias acampadas no país, são essenciais para aumentar a velocidade e a
qualidade do processo de reforma agrária no Brasil.
O segundo desafio, mais complexo, diz respeito à revisão dos índices de
rendimento, que informam o conceito de propriedade produtiva.
Como este é um outro assunto estratégico para o Incra, a sua redefinição
vai significar a ampliação do estoque de terras desapropriáveis, significando a
redefinição, também, dos. rumos da reforma agrária no Brasil.
Por que? Primeiro, porque a atualização desses índices está previsto em Lei,
pois o art. 11 da Lei no 8.629/93 propõe que, periodicamente, sejam ajustados os
índices, de acordo com o desenvolvimento científico e tecnológico da agricultura
e o desenvolvimento regional; em segundo, porque – com o desenvolvimento
do agronegócio nos últimos anos, principalmente no agronegócio ligado à
exportação – está muito claro que esses índices, fixados com base no censo de
1975, tem, praticamente, trinta anos de grande defasagem.
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Nead Especial 2
Faz-se urgente a atualização, não só no que diz respeito aos produtos do
agronegócio, da lavoura empresarial, enfim, dos produtos chamados produtos
vegetais, mas também, e especialmente, da pecuária, porque, no caso dos produtos vegetais trata-se de índices que vão dar a possibilidade de simplesmente
não beneficiar e nem prejudicar o agronegócio, pois a tarefa da reforma agrária
não é atingir a propriedade produtiva, mas sim a propriedade improdutiva.
A atualização dos índices para produtos vegetais é uma espécie de neutralização dos efeitos do agronegócio na agricultura brasileira. Então, não vai nem
beneficiar e nem prejudicar os proprietários de terra se houver a atualização
desses índices.
No caso da pecuária, o Incra tem de fazer uma proposta ousada. Ousada
porque se a política pública de reforma agrária é uma política de geração de
emprego e renda, não há dúvida de que, na agricultura patronal, o setor mais
pernicioso à economia do país é aquela representada pela pecuária tradicional,
com baixos índices de produtividade. No caso, o Incra deve fazer um ajuste para
cima dos índices atualmente observados, utilizando o Potencial Demográfico
como variável fundamental, que indica o estágio de desenvolvimento científico e tecnológico da agropecuária e o seu desenvolvimento regional. Por que?
Porque é uma forma de provocar a transferência de terras do latifúndio pecuário
tradicional, atrasado, para a agricultura familiar.
O Brasil tem 170 milhões de hectares ocupados com pastagens, sejam elas
nativas ou plantadas. Essa é a grande fronteira agrícola de expansão da agricultura familiar no Brasil.
Evidentemente, se existem duas vias de desenvolvimento do capitalismo na
agricultura, deve-se optar entre a via da modernização conservadora, como se
observou nas últimas décadas na economia brasileira (da agricultura voltada para
a exportação, da lavoura empresarial), ou, então, optar pela via democrática de
desenvolvimento capitalista no campo, representada pela expansão da agricultura
familiar, que deveria se expandir nos espaços ocupados pela pecuária tradicional.
O grande salto de qualidade que se pode ter, em termos de geração de
emprego e renda na agricultura, não há dúvida, é a apropriação destes espaços
– voltados para a pecuária tradicional, com baixos índices de produtividade, com
baixos índices de lotação – pela agricultura familiar. Aí há um imenso potencial
de desenvolvimento da agricultura brasileira, mediante o estímulo, por meio do
Memória Incra 35 anos
programa de reforma agrária – tarefa do MDA e do Incra – à criação de unidades
familiares, que proporcionem até 50 vezes mais empregos do que a pecuária
tradicional, pois a expansão da lavoura empresarial, nestes espaços, vai proporcionar, tão-somente, quatro ou cinco vezes mais empregos.
Pretende-se que sejam 50 vezes mais, porque as condições de desenvolvimento do capitalismo no Brasil traz consigo o problema do desemprego estrutural,
como uma das principais tragédias do modelo de desenvolvimento brasileiro.
Esse desemprego estrutural só pode ser combatido (e deve ser combatido
intensamente) com um programa ambicioso e massivo de reforma agrária, que
gere emprego e renda. E, claro, como é tarefa do MDA e do Incra, este novo modelo deve estimular e fortalecer a agricultura familiar, porque não há dúvida de
que essa é a forma mais adequada para a sociedade brasileira, pois impulsiona a
via democrática de desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, dando
conta das especificidades do desenvolvimento capitalista no Brasil.
Propondo esse modelo de desenvolvimento democrático na agricultura,
estar-se-á criando, não só novas e substanciais oportunidades de geração de
emprego e renda, mas também gerando um país mais igualitário e democraticamente sustentável, pois, quanto mais baseado o desenvolvimento capitalista
na agricultura familiar, mais democrático o país. Quanto mais desenvolvido na
base da grande propriedade, mais autoritário o seu regime político, pois as experiências internacionais em desenvolvimento econômico e social comparado
apontam nesse sentido.
E como aprendeu-se (e aprendeu-se a duras penas) o que seja viver sob
um regime autoritário, o resgate da democracia tem que ser o resgate do
fortalecimento da agricultura familiar e do programa de reforma agrária, pois
democracia e reforma agrária são duas vertentes absolutamente indissociáveis,
razão pela qual todos os que lutam por justiça social devem se empenhar para
o aprofundamento deste processo.
Essa é a convicção mais profunda que devem ter os militantes da reforma agrária,
no sentido de aprofundar, massivamente, a redistribuição de terras no País.
Por outro lado, o fortalecimento da agricultura familiar, cujo financiamento,
felizmente, passou de dois bilhões de reais, em 2002, no último ano do governo de Fernando Henrique para nove bilhões no governo Lula, se constitui em
programa estratégico de geração de emprego e renda para o país.
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Nead Especial 2
Portanto, a reforma agrária e o fortalecimento da agricultura familiar significam, fundamentalmente, a redistribuição de poder político e a ampliação dos
espaços democráticos da sociedade brasileira.
A geração de 1968 – que sofreu todo esse processo imposto por governos
autoritários, que resultaram na concentração da propriedade, da renda e do
poder, e que dedicaram os melhores anos de suas vidas ao combate à tirania
dos regimes autoritários – sabe muito bem o que isto significa.
Uma reforma agrária massiva e um maior apoio ao fortalecimento da agricultura familiar significam ampliar os espaços de democracia e de liberdade na
sociedade brasileira. 21
Fragmentos históricos do Incra
e da reforma agrária no Brasil
O r i va l p r a z e r e s
A criação do Incra: avanço ou retrocesso da reforma agrária
A reforma agrária no Brasil, desde a nossa Independência, já se constituía em
tema de discussão, um assunto ainda impreciso e indefinido para os anseios e
aspirações da época. Em diversos momentos no início da República, a história
registra a celebração de atos legislativos de intervenção na propriedade da terra
para fins de formação de colônias de agricultores e repressão à grilagem de terras,
através de ações de legitimação de posses, para regularizar a situação das terras
públicas e incentivar a colonização e a imigração.
No entanto, é a partir de 1950 que o problema agrário recrudesce e começa
a ser enfrentado com maior decisão pelo governo brasileiro, inicialmente com
a constituição de Comissões Nacionais de Política Agrária, embora estas não
tenham conseguido sair dos embates teóricos do jurisdicismo, uma marca de
nossa administração pública. Nessa época tramitaram no Congresso Nacional
mais de uma centena de projetos sobre Reforma Agrária, alcançando em 1959 a
marca de 213 projetos, apresentados entre 1946 e 1958. Em decorrência de tantas
proposições, foram criados em diferentes momentos, o INIC – Instituto Nacional
de Imigração e Colonização (5 de janeiro de 1954) e o Serviço Social Rural.
Destaco o SSR – Serviço Social Rural, criado pela Lei no 2.613, de 23 de setembro
de 1955, mas somente implantado tempos depois, voltado exclusivamente para
a implementação de programas de desenvolvimento e organização de comunidades rurais. Sua atuação nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul começou em dezembro de 1960. Embora extraordinário em seus objetivos
e métodos operacionais, a atuação do SSR não correspondia aos anseios de
240
Nead Especial 2
modificação e transformação da estrutura fundiária do país – e assim do sistema
e condições de posse e uso da terra em seus aspectos econômico e social.
A criação da SUPRA – Superintendência de Política Agrária – Lei Delegada no
11, de 11 de outubro de 1962, que também extingue o INIC, Estabelecimento Rural
de Tapajós e o SSR, aconteceu num momento nacional marcado por conflitos e
ocorrências de forte clamor popular em várias regiões do país, nos centros urbanos, sob o comando dos sindicatos e União Nacional dos Estudantes – UNE, e em
regiões críticas de tensão social no meio rural, com destaque para as invasões de
terras no Paraná (Cascavel e Maringá) e às ações das Ligas Camponesas em Pernambuco e Paraíba. Em Santa Catarina, entre 1962 e 1964, a SUPRA, sob o comando
do Delegado Regional Benjamim Ferreira Gomes, de Joinville, teve suas atividades
especialmente voltadas para a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores
rurais no Estado, com algumas intervenções em casos pontuais relacionados à
posse e uso da terra, em Tubarão e Papanduva. Desde logo, no entanto, se verificou a manifesta incapacidade do governo em formular uma estratégia para a
reforma agrária, como instrumento de desenvolvimento econômico e paz social.
O Brasil, finalmente, teve em 1964, sob o regime militar, a sua lei de reforma
agrária – O Estatuto da Terra, Lei no 4.504, de 30 de novembro de 1964, que cria o
Ibra – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, como seu órgão executor. Atendia,
assim, o regime militar não apenas a compromissos internacionais – Conferência de
Punta del Este, promovida pela OEA, mas principalmente a um compromisso maior
com o povo brasileiro e o desenvolvimento do país. O governo do presidente
Castelo Branco assumia, então, um histórico desafio que se transformava, naquela
fase da vida nacional, em ameaça concreta à ordem social e política do país. As
justificativas apresentadas ao Congresso Nacional para aprovação do Estatuto
da Terra demonstram com clareza e coragem as contradições e desigualdades
da estrutura agrária do Brasil à época, identificando os angustiantes problemas
do uso e posse da terra com a crescente industrialização do país, assinalando o
constrangimento do mercado interno, a marginalização das populações rurais,
o baixo nível da produtividade agrícola, a situação vexatória do trabalhador rural
submetido às mais injustas condições de trabalho, classificando, enfim, a Reforma
Agrária como tarefa prioritária.
O Ibra, em cumprimento à sua missão institucional, desde logo desenvolveu
seus trabalhos em duas grandes linhas de ação: primeiro, o cadastramento dos
imóveis rurais em todo o país – previsão de 4 milhões, objetivando conhecer a
Memória Incra 35 anos
realidade agrária do Brasil, como ponto de partida; segundo, a definição das áreas
prioritárias de reforma agrária e aplicação do instrumento da desapropriação
por interesse social.
A implantação do Cadastro Rural, desencadeado em todo o território nacional
durante a operação denominada Semana da Terra, durante o mês de dezembro
de 1965, foi sucesso absoluto. Em SC, a operação ocorreu entre 06 e 13 de dezembro. Finalmente, conhecia-se, agora, a situação de posse e uso da terra no
país, ponto de partida para a reforma agrária brasileira, através dos instrumentos
da tributação progressiva e da desapropriação por interesse social.
Com as informações colhidas no cadastramento, o Ibra passou a cumprir o
dispositivo constitucional de lançamento e cobrança do Imposto Territorial
Rural – ITR (até então de responsabilidade dos municípios), um poderoso instrumento de reforma agrária, na medida em que sobre o valor básico do ITR
incidiam índices de progressividade e regressividade, segundo o uso atual e a
potencialidade de uso da área do imóvel .
Também com base nos dados cadastrais, o imóvel rural passou a ter uma
classificação que o identificava no conjunto da estrutura fundiária do país – Minifúndio (MIN), Latifúndio por Exploração (LXP), Latifúndio por Dimensão (LDM)
ou Empresa Rural (EMR), informação cujos dados são importantíssimos para
fins de tributação e eventual desapropriação por interesse social para fins de
reforma agrária.
Para administrar o processo de reforma agrária no Brasil o Ibra adotou duas
estruturas de execução em âmbito estadual e regional: uma, nas capitais e pontos
estratégicos em todos os estados, dirigida exclusivamente para o desenvolvimento e manutenção do cadastro de imóveis e tributação territorial rural, e outra
em cada uma das cinco grandes áreas prioritárias no país (Rio de Janeiro, Recife,
Fortaleza, São Paulo e Porto Alegre), estruturada para as ações de intervenção
na propriedade da terra, com funções de desapropriação por interesse social e
implantação de projetos de reforma agrária.
Contudo, o compromisso governamental pela opção capitalista da reforma
agrária, assegurada no Estatuto da Terra, não impediu que fortes setores de opinião,
defensores do latifúndio e do vigente modelo agrário brasileiro, em especial o
pessoal da CNA-Confederação Nacional da Agricultura e suas afiliadas no Rio
Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais, sustentassem
campanhas de descrédito de seus dirigentes, na tentativa de desestabilizar o
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Nead Especial 2
processo de mudança em curso. Em menos de quatro anos de existência, o Ibra
– apesar da falta de continuidade administrativa, das crises internas e da patente
incompreensão de alguns setores de opinião – pôde, ao mesmo tempo em que
assentava os fundamentos da Reforma Agrária, proceder a todo um trabalho de
revisão crítica dos processos de atuação, transformando muitas experiências em
positivos fatores de correção.
Nos processos de desapropriação por interesse social, a questão do preço das
terras constituía-se no grande entrave à agilização dos procedimentos de intervenção
na propriedade. Eram intermináveis as discussões no âmbito do Poder Judiciário,
ficando o órgão executor da reforma agrária tolhido em sua missão de implantar
seus projetos de assentamento e colonização. Consciente da magnitude do problema agrário brasileiro e da necessidade de serem adotados instrumentos capazes de
proporcionar respostas mais prontas e efetivas, o governo baixou o Decreto-Lei no
554, de 25 de abril de 1969, dispondo sobre a desapropriação por interesse social
de imóveis rurais, um passo à frente do governo no árduo caminho da execução
da Reforma Agrária postulada no Estatuto da Terra.
A nova lei garantia ao Ibra, nos atos de desapropriação por interesse social, a
imediata imissão na posse do imóvel por sentença judicial, no prazo de 72 horas.
O mérito do ato expropriatório somente era examinado pelo juiz após concluída
a imissão de posse pelo Ibra. Rito sumário, o interesse social era atendido na sua
plenitude com a simples propositura da ação, juntando-se a ela o ato declaratório
de interesse social para fins de desapropriação e o documento comprovante
do depósito em títulos da dívida agrária para resgate em 20 anos. Depósitos em
dinheiro somente para quitação de benfeitorias úteis e necessárias, descontados
os eventuais débitos do ITR incidentes sobre o imóvel. Procedimento ágil e definitivo, utilizado somente nas situações em que não fosse possível o ACORDO
entre o Ibra e o expropriado.
Com tantos poderes, o Ibra cada vez mais tornou-se alvo da insatisfação dos
grandes proprietários de terras e setores reacionários da política nacional, com
influência junto ao governo militar, sob a presidência do Marechal Arthur da Costa e
Silva. No Rio Grande do Sul, a reação era comandada pela FARSUL, presidida por Luiz
Fernando Cirne Lima, mais tarde elevado ao cargo de Ministro da Agricultura.
Atendendo exposição de motivos do então Ministro da Agricultura, Ivo Pereira Arzua, indicado para o cargo pelas forças conservadoras da agricultura do
Paraná, com apoio da CNA, o presidente da República assinou em 23 de junho
Memória Incra 35 anos
de 1968 o Decreto de Intervenção no Ibra, surpreendendo dirigentes, técnicos
e servidores em todo o país, levando o presidente da Autarquia, Engenheiro
Doutor César Cantanhede a responder, em Carta Aberta, a uma missiva recebida
do ministro da Agricultura, no mesmo dia, à noite, no Aeroporto de Brasília, das
mãos do Secretário-Geral do Ministério, adiante transcrita:
Por imperativo de ordem legal S.Exa. o Senhor Presidente da República vem de decretar
intervenção no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, do que não poderia eu, òbviamente,
fazer antecipada comunicação a V.Sa. Venho, pois, na oportunidade, trazer o fato ao seu
conhecimento, cumprindo-me apresentar-lhe meu agradecimento pela colaboração até
hoje prestada naquele importante Órgão da Administração Indireta.
A Carta Aberta dirigida ao Ministro da Agricultura, publicada nos grandes
jornais da época, em especial o Jornal do Brasil, mostrou como o Gabinete do
Ministro articulou a realização de inquéritos, fruto de calúnias, intrigas e mentiras
sobre atos de gestão administrativa, absurdamente irresponsáveis conforme demonstrado através de documentos em que comprovavam terem sido praticados
por deliberação unânime do Conselho Diretor da Autarquia. Na Carta Aberta diz
ainda o presidente César Cantanhede ao Ministro:
Ao dispensar o General Saraiva Martins, de um cargo de confiança, por ter sido condenado
pela Justiça, logo comuniquei a V.Sa . que, no dia seguinte, seria iniciada uma campanha
contra mim, como de fato se iniciou. Da mesma forma tive oportunidade de, há meses,
comunicar, não só a V.Sa., como a altas autoridades militares do Governo, que a ação
contra o Presidente do Ibra iria se ativar, pois já não se tratava mais da pessoa do Presidente do Ibra,mas, sim, de modificar toda a administração, pois que a campanha pessoal
provocada por frustrados e decepcionados e alimentada por quem deveria resguardar a
instituição a que serviria, estava sendo substituída por outra campanha de maior poder
econômico e maiores interesses políticos.
E, num último e resignado gesto de aceitação do fato, mas extravasando sua
repugnância, o presidente afastado conclui em sua carta:
O mundo em que os homens vivem, Dr. Arzua, apresenta duas faces distintas: uma, em
que vivem e labutam aquêles que cultivam a verdade, que usam sempre de lealdade, que
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Nead Especial 2
veneram a honestidade e que primam pela elegância de atitudes; e de outra, onde estão
os que amam a inverdade, que se comprazem com a deslealdade, que não conhecem
atitudes e gestos delicados e que, pela malícia e má-fé, pactuam com a desonestidade.
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Como resultado da intervenção no Ibra entre 1968 e 1970, período em que
esteve sob o comando do General Luiz Carlos Pereira Tourinho, o governo militar
do presidente da República Arthur da Costa e Silva criou o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – Incra, através do Decreto-Lei no 1.110, de 9 de
julho de 1970, autarquia federal vinculada ao Ministério da Agricultura, extinguindo
e incorporando os órgãos criados pelo Estatuto da Terra, o Ibra e o Inda. Para a
presidência da nova Autarquia, o governo trouxe de Pernambuco o advogado
José Francisco de Moura Cavalcanti, mais tarde Ministro da Agricultura e, em
seguida, eleito Governador de Pernambuco, e para o Ministério da Agricultura
o pecuarista Luiz Fernando Cirne Lima, ex-presidente da FARSUL – Federação da
Agricultura do Rio Grande do Sul.
A nova autarquia assumiu a responsabilidade de gerir as atividades constitucionalmente atribuídas aos órgãos extintos, inclusive absorver os servidores de
seus respectivos quadros funcionais, alguns com vínculos ao Estatuto dos Servidores Civis da União, conhecidos como estatutários e a maioria regidos pela CLT,
remanescentes do INIC e SSR e, agora, também, os dos extintos Inda e Ibra .
As diretrizes traçadas no Regulamento Geral do Incra (Decreto no 68.153,
de 1o de fevereiro de 1971), para estruturação da autarquia, foram estabelecidas
segundo os seguintes objetivos centrais da Reforma Administrativa do governo,
expressa no Decreto-Lei no 200/67, sob a coordenação do Ministério da Desburocratização:
descentralização executiva;
fortalecimento do planejamento e coordenação;
desburocratização administrativa;
dinamização da atividade técnica;
fortalecimento e sistematização dos mecanismos de controle.
Do ponto de vista de sua missão institucional – colonização e reforma agrária,
a prioridade da ação da nova autarquia foi dada pelo governo à colonização e à
regularização fundiária, envolvendo as terras situadas na Amazônia Legal e faixa
de 150km ao longo das fronteiras do Brasil com os países limítrofes e em ambas
Memória Incra 35 anos
as margens das rodovias federais implantadas e a construir na região, em cumprimento ao Programa de Integração Nacional – PIN, entre as quais, a rodovia
Transamazônica, a partir de Estreito, em Pernambuco, até Humaitá, na BR em
construção no Amazonas, ligando Porto Velho em Rondônia à cidade de Manaus.
Durante todo o período dos governos militares, a partir da criação do Incra
e até o início da redemocratização do país em 1985, a política de desenvolvimento nacional esteve sempre direcionada para a ocupação da Amazônia Legal,
formada pelos atuais Estados do Acre, Rondônia, Amazonas, Roraima, Amapá,
Pará, Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão, com grandes investimentos
governamentais em estradas e em incentivos fiscais às empresas industriais e
agropecuárias, através de programas como o PIN e Poloamazônia, através do
Banco da Amazônia e do então BNDE.
A colonização na Amazônia Legal marcou profundamente a ação do Incra
no cumprimento de sua missão institucional. A implantação de projetos de assentamento e colonização em terras públicas multiplicaram-se, a maioria terras
devolutas transcritas em nome da União Federal, através de procedimentos
sumários de arrecadação ou de discriminação administrativa, na forma da lei,
implantados nas faixas de 100km em ambos os lados das rodovias na Amazônia
Legal (as agrovilas em Altamira, Marabá e Itaituba, no Pará; os projetos Ouro
Preto, Ariquemes, Vilhena em Rondônia; projeto Boca do Acre e Humaitá no
Amazonas, e outros no Sul do Pará, Maranhão e Mato Grosso. De todas as partes
do território nacional migraram para a Amazônia milhares de famílias gaúchas,
catarinenses, paranaenses, capixabas e do nordeste, principalmente do Maranhão,
demonstrando coragem e patriotismo, em muitos casos. Algumas centenas de
famílias foram levadas pelo Incra, de avião ou por terra. Grande parte, porém, por
seus próprios meios. Uma epopéia vivida por muitos brasileiros, muitos deles
surpreendidos com a morte pela malária, ainda presente nos dias atuais em toda
a Amazônia Ocidental, principalmente.
As atividades de legitimação e regularização de terras na Amazônia e Faixa de
Fronteiras, através dos procedimentos de titulação, nos casos de posse mansa e
pacífica, constituíram-se também em eficientes instrumentos de ação do governo
em seu propósito de garantir a ocupação de imensos vazios demográficos e de
aumentar a produção pelo avanço da fronteira agropecuária. As ações de titulação
de terras pelo Incra, integradas às atividades de assentamento de agricultores em
projetos de colonização nos estados da Amazônia Legal, tiveram sustentação nos
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procedimentos de discriminação e arrecadação de terras devolutas realizados
pela autarquia, que permitiram à União reaver ao seu patrimônio imobiliário
dezenas de milhões de hectares, numa época em que a grilagem de terras e as
fraudes nos cartórios imperavam na região.
Na verdade, com a extinção do Ibra, a reforma agrária deixou de ser prioridade,
embora tenha havido algumas importantes ações de desapropriação de terras
no país durante o período militar, após a criação do Incra. Essas ações ocorreram no Pará, com a desapropriação do polígono de Altamira, que segundo
informações, constituiu-se na maior área desapropriada em todos os tempos no
Brasil, ou em Rondônia em 1975, duas áreas com mais de 1 milhão de hectares
cada, e mesmo em São Paulo, na região do Paranapanema ou em Pernambuco
e outros estados. Em algumas situações, como em São Paulo e Pernambuco, a
intervenção do governo se deu em decorrência de conflitos pela posse e uso
da terra, justificando a medida por força de grave tensão social. Na maioria dos
casos, contudo, a desapropriação atendeu outras exigências ou necessidades de
interesse social, como construção de barragens para hidrelétricas, implantação
de reservas biológicas, áreas indígenas ou de proteção ambiental, etc.
Aqui cabe uma reflexão. Coincidência ou não, somos levados a crer que o
episódio da extinção do Ibra e a criação do Incra como seu sucessor, era parte
da estratégia de permanência dos militares no poder, uma decisão já tomada
com a decretação do AI-5 em 1968, período em que o Ibra já começa a sofrer
pesadas pressões de setores da agricultura, comandada pela FARSUL, afiliada da
CNA no Rio Grande do Sul, principalmente. Na época, a reforma agrária passou
a ser odiada pelos detentores da grande propriedade no Brasil, mesmo considerando a afirmação de sua concepção capitalista, assegurada no Estatuto da
Terra ao estabelecer a empresa rural como paradigma a ser alcançado. Assim, a
reforma agrária foi substituída pelo Programa de Integração Nacional, cabendo ao
Incra a construção de um de seus principais pilares: a regularização fundiária das
terras públicas localizadas na Amazônia Legal e Faixa de Fronteira e a colonização
ao longo das rodovias implantadas e a implantar na região, como objetivos de
integração nacional.
A retomada do processo de reforma agrária deu-se, portanto, a partir do restabelecimento do estado de direito democrático no Brasil, em 1985, com a eleição
de Tancredo Neves e José Sarney à Presidência e Vice-Presidência da República,
respectivamente, quando o governo da Nova República aprovou o 1o PNRA
Memória Incra 35 anos
– Plano Nacional de Reforma Agrária, bem como planos estaduais de reforma
agrária na maioria dos estados brasileiros, após estudos e debates envolvendo
toda a sociedade. Foram criadas áreas prioritárias para fins de reforma agrária em
diversas regiões do País, com definições de princípios e diretrizes para as ações
a nível central e regional. Presidiu o Incra nessa nova fase o engenheiro José
Gomes da Silva, renomado estudioso da reforma agrária e integrante da equipe
que elaborou o Estatuto da Terra em 1964. Naquela época José Gomes atuava na
Unicamp, em Campinas/SP, onde morava. Ardoroso defensor da reforma agrária
no Brasil, José Gomes foi o grande responsável pela conceituada publicação
Reforma Agrária, sendo o seu principal editor.
Agora, no limiar de 2005, em vias de aprovação do Segundo Plano Nacional de
Reforma Agrária, não nos esqueçamos, que o mesmo governo civil que aprovou
o 1o PNRA em 1985, dois anos após, num disparate sem precedente, extinguiu o
Incra, consoante o Decreto-Lei no 2.363, de 21/10/1987. Felizmente, os servidores
com o apoio das instituições e entidades comprometidas com a reforma agrária
levaram a Câmara dos Deputados a rejeitar o famigerado Decreto-lei, restabelecendo o Incra em toda a sua plenitude, numa sessão histórica daquela Casa do
Congresso Nacional, consoante o Decreto Legislativo no 2, de 24/03/1989, sob a
presidência do grande Deputado Ulisses Guimarães. Para orgulho de todos nós
servidores, o Incra, com esse ato, passa a se constituir no ente público dos mais
legítimos da esfera do Poder Executivo, ao ter sua missão institucional restabelecida pela representatividade popular do Congresso Nacional.
O livro fundiário do Incra
O que consiste o Livro Fundiário do Incra. Qual sua finalidade e importância. Qual
sua relação com a reforma agrária. Por que?
É possível que nos dias de hoje, com os avanços contínuos das tecnologias
da informação, muitos já indaguem – para que livros …? Interessante !!! Realmente, é possível que já se possa dispensá-los! Afinal, o computador conectado à rede
Internet nos permite acessar o mundo dos livros em tantas bibliotecas existentes no
mundo…Será?… Bem, parece haver razões para dúvidas sobre a necessidade de se
manter custosos espaços físicos para armazenar livros…Será mesmo? Mas, afinal,
o que é o Livro Fundiário do Incra ? Será que todos os servidores do Incra sabem
de sua existência e em que consiste o Livro Fundiário ?
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Nead Especial 2
1975. Presidia o Incra o Engenheiro Agrônomo Lourenço Tavares Vieira da Silva,
nomeado em 1974 para o cargo por influência do conhecido político maranhense,
Vitorino Freire. Para a Diretoria de Recursos Fundiários, o governo trouxe de Minas
Gerais o então Coordenador Regional da Autarquia, Cristiano Machado Neto, engenheiro agrônomo de Viçosa, indicado pelo Ministro da Agricultura, Alysson Paulinelli,
também mineiro e engenheiro agrônomo, formado em Lavras, ex-Secretário da
Agricultura de Minas no governo de Rondon Pacheco. Remanescente do quadro
do extinto Ibra, onde exerceu em Curitiba e Porto Alegre, no período de 1966 a
1970, importantes funções de coordenação geral da execução dos projetos de
Cadastro e Tributação nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
Cristiano Machado assumiu a Diretoria de Recursos Fundiários do Incra em 1974,
nos primeiros dias do governo militar do presidente Garrastazu Médici.
Comprometido inteiramente com as causas da instituição e profundo
conhecedor de sua máquina administrativa, tendo colaborado com a equipe
na estruturação do Incra em 1970, Cristiano Machado marcou sua passagem na
Diretoria do Incra pela organização e ordenamento das ações sob a sua responsabilidade, instituindo, atualizando e reunindo sob a forma de sistemáticas,
manuais e rotinas de trabalho, toda a metodologia operacional de discriminação
administrativa, legitimação e regularização de terras devolutas da União, desapropriação por interesse social e titulação de posses, lotes e parcelas, em assentamentos e projetos de colonização, ratificação de títulos na faixa de fronteira,
etc., inspirado nos princípios de desburocratização e reforma administrativa do
governo. O trabalho em equipe, a adoção de novas práticas gerenciais e a gestão
por projetos, sempre nortearam sua administração no Ibra e no Incra, sendo por
isso reconhecido por todos com os quais atuou em Curitiba, Porto Alegre, Belo
Horizonte e Brasília, com respeito e admiração merecidos.
O Livro Fundiário do Incra, instituído em sua gestão em 1975, consoante
Norma-dft/ft-1, é revelador do seu estilo dinâmico e inovador, ao produzir uma
metodologia de controle de outorga dos documentos de titulação de terras
do Incra e da União, de responsabilidade da instituição, por força da legislação
de terras vigente.
Até então, praticava-se no Incra um sistema idêntico ao usado nos Cartórios
de Notas, Registros de Imóveis e Títulos e Documentos, em todo o país – imensos livros, com encadernação dura e pesada, geralmente em cor preta, com
dimensões em torno de 60x90cm. Em uso, abertos para registros ou consultas,
Memória Incra 35 anos
sua largura era em torno de 1,20m. A planta topográfica era aplicada em local
próprio da folha, onde se registrava, manualmente, o teor do memorial descritivo,
confrontações, identificação dos outorgantes e demais informações constitutivas
do ato. Pode-se imaginar quão lento era o processo de expedição e outorga de
títulos de terras no Brasil, desde o Império, a República e até o ano de 1975.
É importante registrar que, na época, os documentos de titulação emitidos
pelo Incra, como de resto os estados no Brasil, já eram compostos segundo uma
matriz pré-impressa, em off-set, em diferentes modelos, conforme as especificidades de cada situação jurídico-administrativa, para complementação datilográfica
individual. Os registros oficiais demonstram saltos significativos nos números
de titulações outorgados pelo Incra entre 1974 e 1980. A partir das experiências
em 1982-1983 com o Projeto de Regularização Fundiária do Nordeste – Projeto
Incra-BID, em parceria com os Estados da Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Alagoas
e Bahia, e 1984-1987 com o Projeto de Desenvolvimento do Nordeste-Incra/BIRD,
numa ação integrada com os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais/polígono das
Secas, o Incra em cooperação com o SERPRO desencadeou um novo processo
de desenvolvimento tecnológico na emissão de plantas, memoriais descritivos
e respectivos títulos de terras, no contexto de um complexo sistema interativo
de dados cadastrais, com base em informações obtidas inicialmente por aerofotogrametria e depois por imagens-satélite, de alta resolução e atualidade,
chegando até os dias de hoje no Brasil.
Portanto, nos tempos de 1975, praticavam-se no Incra os modelos de emissão de títulos de terras possíveis para as limitações da época, mas incentivando
pesquisas e o desenvolvimento de novas tecnologias, de modo a alcançar a
qualidade e eficácia dos procedimentos de titulação em programas de regularização fundiária e de reforma agrária no país, em cumprimento ao Estatuto da
Terra e legislação aplicável.
Assim, com a experiência de quem trabalhou durante bom tempo como
Oficial no Cartório de Notas de seu pai, em Viçosa/MG, respeitado escrivão da
comarca e região da Zona da Mata em Minas, Cristiano Machado decidiu por
dar nova forma ao vetusto Livro Fundiário do Incra, organizado e mantido pela
Divisão de Terras Públicas, da diretoria sob o seu comando. Uma equipe técnica
foi constituída sob a coordenação do Chefe da DFT, Engo Agro Mário Nogueira,
e integrado por vários servidores, dos quais destacamos o Major Moreira, o servidor
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Valdir, o assessor do Gabinete, Inimá do Nascimento Silva,o advogado Barata e outros,
com o objetivo de estudar e desenvolver o novo Livro Fundiário do Incra, com
a função de ordenar e controlar a emissão de títulos da União e da Autarquia,
outorgados aos usuários de terras públicas, em assentamentos oficiais ou em
áreas devolutas ocupadas de boa-fé, em todo o território nacional.
A ocupação da Amazônia e sua integração ao desenvolvimento nacional
constituíam programas prioritários do governo. Era intensa a motivação do Incra
que exercia um papel fundamental através dos seus programas de discriminação,
arrecadação e regularização de terras devolutas, inclusive na recuperação de terras
públicas em mãos de grileiros e empresários inescrupulosos em toda a região
amazônica, em especial, Mato Grosso, Rondônia e Sul do Pará. A ProcuradoriaGeral do Incra em conjunto com as Procuradorias Regionais da autarquia nos
estados, apoiada pelos técnicos da Diretoria de Recursos Fundiários, em Brasília
e nas unidades descentralizadas nos estados, recuperou milhões de hectares ao
patrimônio público nacional.
A questão da regularização dominial da propriedade do imóvel ocupado
constituía-se em aspiração de milhares de ocupantes de boa-fé, originários de
todas as regiões e estados brasileiros, que se deslocavam para a região amazônica atraídos pelos governos federal e estaduais, interessados em ampliar as
atuais fronteiras agrícolas e agropecuárias, criando as condições estratégicas
indispensáveis para o seu desenvolvimento.
As exigências político-administrativas do momento fizeram com que o grupo
de trabalho constituído pelo Diretor do DF, e sob sua orientação, apresentasse
em poucos dias o projeto do novo Livro Fundiário do Incra, que consistia em um
sistema de livros encadernados, cor azul marinho, apropriados para juntada de
documentos de titulação de imóveis, em folhas soltas, no formato A-4, com numeração seqüencial de 1 a 100 (um número por imóvel/título), confeccionados
especificamente para esse fim. Cada livro continha uma identificação própria, segundo o sistema alfabético, iniciando pela letra A até a letra Z, e sucessivamente, de
AA até AZ, e assim, indefinidamente, tantas as combinações alfabéticas necessárias.
O sistema, a princípio, foi centralizado na Divisão de Terras Públicas-DFT, subordinada à Diretoria de Recursos Fundiários-DF, integrante da estrutura orgânica
do Incra, autarquia federal com sede nacional em Brasília. A descentralização do
sistema para os órgãos estaduais do Incra dependeria do interesse, necessidade
e oportunidade, a serem definidos pela administração pública.
Memória Incra 35 anos
Em suma, conceitualmente, o Livro Fundiário do Incra é o repositório onde
são armazenados e mantidos, sob guarda e controle, as cópias de todos os documentos oficiais de titulação, outorgados pela autarquia aos beneficiários de
parcelas, lotes ou áreas em projetos de reforma agrária, colonização, regularização
e legitimação de terras públicas da União e do Incra, segundo os dispositivos
constitucionais e legislação complementar aplicáveis.
É, pois, um acervo de grande valor histórico, a espera de novas tecnologias
de informação a serviço da sociedade e de suas origens, nas sesmarias e capitanias hereditárias. Referências
Estatuto da Terra – Lei no 4.504, de 30/11/1964
Caderno “Ibra – Reforma Agrária e Desenvolvimento Agrícola”, 1969/1970
“Carta Aberta do presidente do Ibra ao Sr. ministro da Agricultura”, 1968
S i lv e i r a , Lourival Patrocínio. Economista – Princípios da Reforma Administrativa
adotados na estruturação do Incra.
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Educação no campo:
perspectiva
de uma
educação rural diferenciada R o s a n e R o d r i g u e s d a S i lva “A frente de batalha da educação é tão importante quanto a da ocupação de um latifúndio […] A nossa luta é para derrubar três cercas:
a do latifúndio, a da ignorância e a do capital.”
João Pedro Stédile
Este artigo tem como proposta apresentar a construção da concepção de um
processo educacional diferenciado aos povos do campo e da floresta, que os
teóricos denominam de educação do campo, tendo como base metodológica
a Educação Popular alimentada pela Pedagogia Libertadora de Paulo Freire,
demonstrado através de práticas inovadoras em Rondônia e executado com
recursos federais, através do Incra, em parceria com os movimentos sociais e
instituições de ensino superior, na perspectiva de uma construção coletiva do
conhecimento.
Palavras-chave: Educação do campo; povos do campo; educação popular;
construção coletiva; parcerias.
Artigo apresentado como concorrente ao concurso Memória Incra 35 anos, novembro de 2005.
Professora, graduada em ciências – Licenciatura curta pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia
em Nova Friburgo/RJ e graduada em direito pela Faculdade de Ciências Exatas, Letras e Humanas
de Rondônia.
Povos do Campo na concepção dos estudiosos da Educação do Campo são todos aqueles que vivem
no campo e na floresta: assentados, acampados, meeiros, agregados, pescadores, índios, quilombolas,
seringueiros e outros.
Memória Incra 35 anos
A construção da concepção de um processo educacional para os povos
do campo avança com as práticas educacionais que estão sendo aplicadas e
vivenciadas em todo o Brasil, por meio do Programa Nacional da Educação na
Reforma Agrária (Pronera), executado pelo Incra, em parceria com as instituições
de ensino superior e os movimentos sociais.
Baseados na pedagogia libertadora de Paulo Freire trabalham a construção
coletiva do processo educacional junto aos sujeitos dessa educação, os agentes
sociais e as instituições governamentais.
Os objetivos deste trabalho são demonstrar que as práticas educacionais
vêm constituindo um espaço de formação político-social-cultural, diferenciado
e engajado na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Apresentaremos as duas experiências em Rondônia, Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA) nos assentamentos e acampamentos de reforma agrária
e o curso de graduação em pedagogia da terra, ambos em parceria com os
movimentos sociais e executados pela Universidade Federal de Rondônia com
recursos do Pronera.
A primeira fase do processo educacional é o diagnóstico, construído por todos
os parceiros, a fim de identificar a demanda, na área de atuação dos diversos
agentes, a estrutura física local onde funcionarão as turmas, as vias de acesso, a
produção e a diversidade de povos a serem contemplados.
A segunda fase é a elaboração coletiva do projeto educacional a ser apresentado para aprovação no Incra e liberação dos recursos; neste projeto já deve estar
contemplado a equipe que irá atuar na execução do projeto e as planilhas de custos.
A terceira e quarta fases diferenciam-se dependendo do curso objeto do
projeto: no caso de alfabetização de jovens e adultos, é a formação das turmas,
a identificação dos monitores e coordenadores locais, a capacitação dos monitores – que será realizada por professores da universidade, orientando a teoria,
o método e a técnica a ser utilizada por estes monitores, utilizando-se a teoria
libertadora de Paulo Freire – e a escolarização daqueles que não tenham o 1o
grau, visitas de instalação das turmas.
Em se tratando do curso de pedagogia, as fases seguintes à apresentação
do projeto são, a seleção para o vestibular, a realização do vestibular e demais
ações obrigatórias para ingresso no nível superior.
Difere-se também a quinta fase: da avaliação que, no caso da alfabetização
ocorre durante as etapas de capacitação e visitas as salas de aula pelos alunos
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bolsistas e coordenadores dos projetos e no caso do curso de pedagogia da
terra, ocorre normalmente no encerramento de cada etapa.
O acompanhado do projeto desde sua apresentação até sua conclusão é
realizado por todos os parceiros nele envolvido.
A história da educação do campo
A história da educação do campo se dá no bojo da evolução da luta pela reforma agrária e de como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem-Terra (MST)
desenvolve esta luta.
O MST é fruto do processo histórico de resistência dos camponeses brasileiros que tiveram a oportunidade de socializar as suas experiências e ousaram
unirem as suas forças em uma luta comum.
O enfrentamento do problema educacional vivido pelos trabalhadores nas
áreas de reforma agrária extrapolava a necessidade das famílias que queriam o
acesso à escola para seus filhos. As famílias já entendiam que a educação é um
direito. Na concepção de Stédile (2003): “Um direito que se dá em duas linhas:
na linha política a luta pelo direito e pelo acesso à alfabetização de jovens e
adultos; e na linha pedagógica com o processo de uma proposta própria de
educação do MST.”
Assim, iniciam-se encontros do movimento com educadores e educadoras
do campo, formados e em formação, para discutirem as práticas e as medidas
a serem adotadas para difundirem a educação diferenciada aos trabalhadores
rurais (ou do campo).
Em julho de 1995 é publicado o Programa de Reforma Agrária do MST que
entre as características da reforma agrária necessária indica “o desenvolvimento
social e nele a alfabetização de todos, jovens e adultos” (Caderno de formação
no 23, p.26).
É realizado em julho de 1997, o 1o Encontro Nacional dos Educadores e das Educadoras da Reforma Agrária (Enera), no campus da Universidade de Brasília (UnB).
No encontro houve uma socialização de experiências sendo a EJA discutida como
Sem-terra oriundos de vários estados se reúnem em Cascavel, PR, e fundam o MST em janeiro de
1984.
João Pedro Stédile é líder nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
Memória Incra 35 anos
uma das grandes bandeiras de luta do movimento. Os frutos colhidos do Encontro
foram uma série de convênios firmados com Ministério da Educação (MEC), Unesco,
Unesp, Unijui, Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos). A proposta de um fundo
governamental para financiar a educação nas áreas da reforma agrária.
É realizada em julho de 1998 a Conferência Nacional por uma Educação Básica
do Campo, promovida pelo MST, CNBB, UnB, Unesco e Unicef; na Conferência
reafirmou-se que o campo existe e que é legítima a luta por políticas públicas
específicas e por um projeto educativo próprio para quem vive nele, oficialmente
é implementado o Pronera, com recursos para projetos educacionais em parceria com as instituições de ensino superior, escolas agrotécnicas federais, Escola
Família Agrícola.
Educadores e educadoras dos movimentos sociais e das universidades se
juntam constituindo um espaço permanente de debate sobre a educação básica
do campo, na Articulação Nacional por uma Educação do Campo.
O 1o Encontro Nacional de Educadores e Educadoras de Jovens e Adultos,
com o objetivo de aprofundar a proposta de EJA no MST articulado à construção
de um projeto popular para o Brasil, aprofundou a discussão relativa à educação
que se desejava e a compreensão de que não se podia repetir nas escolas do
campo a educação convencional aplicada nas cidades.
Neste encontro definiu-se que “a linha teórica da educação do campo na
pedagogia libertadora de Paulo Freire, deve estar vinculada a um projeto de
desenvolvimento do campo, onde está incluída a reforma agrária e, um projeto
popular de desenvolvimento do Brasil.” (Caderno de educação no 11, p. 26).
A identidade dos sujeitos do campo
Quem são os sujeitos do campo e o que trazem de novo para a agenda nacional
do governo? Por que não se aceita mais falar em educação para o meio rural?
O que difere a educação rural da educação do campo?
Essas e outras reflexões irão constituir a identidade dos sujeitos do campo,
que vêm sendo desenhada a partir da compreensão de que a luta do movimento
por uma educação do campo é por políticas públicas que garantam o seu direito
à educação e a uma educação que seja no e do campo. No dizer da professora
Roseli Salete Caldart “No – o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive;
Do setor de Educação do MST e da Articulação Nacional por uma Educação do Campo.
255
256
Nead Especial 2
Do – o povo tem direito a uma educação pensada desde seu lugar e com a sua
participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais.”
Os sujeitos da educação do campo são os sujeitos do campo, a perspectiva
da educação do campo é educar o povo para que se articulem, se organizem e
assumam a condição de sujeitos da direção de seus destinos.
Trata-se de políticas públicas educacionais feitas dos e não para os sujeitos
do campo, construídas com os próprios sujeitos dos direitos que as exigem.
O campo brasileiro vem sendo tratado pelos vários governos como um espaço
diferenciado em oportunidades, reproduzem a escola da cidade nos campos
brasileiros, reafirmam a máxima de que se deve “estudar para sair da roça, ou sair
da roça para estudar,” colocando sempre o espaço do campo como sendo do
atraso, da pobreza, reforçando a dicotomia campo X cidade; quando na realidade
sabemos que ambos se complementam, um não existe sem o outro.
Os sujeitos do campo são aqueles que enfrentam e sentem na própria pele
os efeitos dessa realidade e não se conformam com ela. São os ribeirinhos, os
meeiros, os pescadores, os seringueiros, acampados, assentados, colonos, quilombolas, povos indígenas, pequenos agricultores, povos da floresta, roceiros,
bóias-frias e outros grupos mais.
Embora os traços entre os diversos povos sejam bastante diferentes, tais
diferenças, entretanto, não apagam a identidade comum de que todos são brasileiros que vivem no campo e que historicamente têm sido vítima da opressão,
da discriminação, quer seja econômica, política ou cultural.
A consciência das diferenças e das diversas identidades e culturas construídas
em séculos de história, não enfraquecem o movimento, ao contrário, torna-o
mais forte, a perspectiva deve ser sempre a do diálogo e do respeito às diferenças,
tornando o movimento por uma educação do campo, um movimento plural
em suas expressões e em seus movimentos.
Alfabetização de jovens e adultos em Rondônia
Os primeiros projetos de alfabetização de jovens e adultos na linha da educação
do campo são apresentados ao Incra em 2000 para execução em 2001, pela
Universidade Federal de Rondônia, tendo as parcerias dos movimentos sociais
e a coordenação geral de professores da universidade:
Memória Incra 35 anos
[…] nesse primeiro projeto buscamos enfatizar a construção política ideológica do
papel dos agentes sociais envolvidos no processo educacional que se quer desenvolver
e a pratização da teoria freireana aos trabalhadores do espaço do campo. Já tínhamos a
experiência da educação popular de Paulo Freire, entretanto na cidade, o enfrentamento
foi aplicar a mesma prática no campo. (M i r a n d a , Marilsa, 2001)
Os projetos atendiam um total de mil e seiscentos trabalhadores rurais em
assentamentos nos municípios de Theobroma e Rolim de Moura, tendo sido
montadas 80 turmas e envolveu uma equipe de cem) pessoas.
Os maiores problemas foram a evasão, a maioria por dificuldades visuais e
de acesso (estradas), o atraso no repasse dos recursos pelo governo Federal e
a mobilização do povo que vive no campo, com suas diferentes identidades e
organizações.
Não obstante todos os desafios enfrentados atingiram-se a meta dos projetos, oitenta por cento dos alunos conseguiram se alfabetizar e ampliaram-se
os limites do ser desses indivíduos, que agora que descobriram o mundo das
letras, querem continuar seus estudos.
Em 2002 para execução em 2003, foi apresentado novo projeto ao Incra, cujo
objeto foi a alfabetização de jovens e adultos, tendo como diferencial a ausência
da parceria com os movimentos sociais organizados (MST), a proposta de parceria
apresentada neste projeto envolviam as associações de produtores rurais, outra
novidade trazida no bojo deste projeto era o atendimento aos assentados do
Incra na área ribeirinha.
O projeto contemplava a alfabetização mil alunos e a escolarização (elevação
da escolaridade) de 50 monitores ou educadores populares.
Os maiores entraves na execução deste projeto estiveram no acompanhamento das turmas, já que se espalharam pelo Estado todo, e sem a parceria do
MST, teve dificuldade de discutir e implementar a pedagogia freireana, ficando
mesmo no processo educacional de alfabetização tradicional, ou seja, o “Ivo
continuou vendo a uva.”
Enfrentaram-se outras dificuldades, como o acesso (agora com o complicador da área ribeirinha), a falta de energia elétrica nas salas de aula, e o atraso
no repasse dos recursos, porém superou-se o entrave da dificuldade visual, já
que ocorreram alterações nas normas de execução e aplicação dos recursos,
autorizando a aquisição de óculos.
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Nead Especial 2
Apesar de todas as dificuldades os alunos, agora alfabetizados, manifestaram
desejo de continuar a estudar, e após a realização do Encontro Estadual por uma
Educação do Campo e o Encontro do Campo e da Floresta da Região Norte, em
que estiveram presentes alunos, monitores, coordenadores, movimentos sociais e
instituições governamentais, constitui-se um espaço de discussão das diferenças
da região norte e de suas peculiaridades, resultando em várias alterações nas
orientações sobre a execução dos projetos.
Novamente em 2003, a universidade apresentou projeto de alfabetização
para execução em 2004, atendendo mil alunos nos municípios de Alta Floresta, Alto Alegre, Alvorada do Oeste, Cacaulândia, Candeias do Jamari, Campo
Novo, Governador Jorge Teixeira, Montenegro, Nova Mamoré, Porto Velho,
Presidente Médice, Theobroma, Vale do Anari e Urupá. Desta vez, já atendendo reivindicações, o atendimento pôde ser estendido aos trabalhadores em
acampamentos.
Esse projeto está em execução, porém algumas das dificuldades de ordem
estrutural estão sendo superadas, não acontecem mais atrasos nos repasses dos
recursos federais, que já são disponibilizados no início de cada exercício; entretanto o desafio da educação do campo permanece, há uma resistência muito
grande pelos pedagogos, pelos educadores e pelos próprios alfabetizandos
de implementarem a práxis da pedagogia libertadora, a democratização dos
conteúdos, o ensinar a aprender e o professor progressista-libertador.
Pedagogia da terra
Além dos projetos educacionais de ensino fundamental e médio, emerge uma
demanda maior que é a de formação em nível superior dos educadores e educadoras do campo.
Nessa perspectiva as universidades federais por meio do Pronera passaram a
desenvolver projetos, incluindo a agenda da educação do campo nos sistemas
federais de ensino superior, apresentando cursos específicos aos educadores do
campo, os chamados cursos de pedagogia da terra.
Os cursos de pedagogia da terra foram inicialmente implantados nos Estados:
RS, MT, ES, PA, RN.
Em Rondônia, por ocasião do I Seminário por uma Educação do Campo em
Rolim de Moura (2003), após várias reuniões envolvendo os diversos parceiros,
Memória Incra 35 anos
Incra, UNIR, MST, MPA, e outros, decidiu-se pela apresentação do primeiro curso
de pedagogia da terra.
O projeto foi apresentado junto ao Incra, aprovado na coordenação pedagógica nacional do Pronera e implantado a partir de janeiro de 2004.
O curso foi pensado em etapas, que acontecem nos meses de janeiro e fevereiro, junho e julho, no Campus da Universidade Federal de Rondônia em Rolim
de Moura e atende a um número de sessenta alunos/assentados oriundos de
vários assentamentos do Incra no Estado, indicados pelos movimentos sociais
que já atuam como educadores e educadoras do campo.
O processo de seleção obedece aos procedimentos legais do MEC e a carga
horária é a mesma dos cursos de graduação, sendo que os alunos durante as
etapas estudam manhã, tarde e noite. Os alunos ficam hospedados no campus,
o que facilita o acontecer das aulas.
A metodologia aplicada é a da concepção educacional de Paulo Freire,
“combinando estudo com trabalho, com cultura, com organização coletiva, com
postura de transformar o mundo, dialogando com a realidade mais ampla e
com as grandes questões da educação, da humanidade” (Educação do campo:
Identidade e políticas públicas, vol. 4, p.35).
A formação desses pedagogos da terra para trabalhar a educação do campo, nas escolas do campo, irá fortalecer o processo educacional diferenciado
aos povos do campo. É, sobremaneira, um grande passo na busca de políticas
públicas de educação do campo.
Conclusão
Apresentamos neste artigo, de forma bastante sucinta, as discussões que vêm
acontecendo sobre o movimento por uma educação do campo concebido pelos
movimentos sociais organizados que pleiteiam uma educação diferenciada aos
povos do campo.
As experiências apresentadas em Rondônia e desenvolvidas em todo o Brasil,
pelo Pronera e de outras na mesma linha, constatam a viabilidade de se incluir na
agenda governamental a transformação desses programas em políticas públicas
de educação do campo.
Só podemos conceber um processo real de formação, se realizado a partir
e com os sujeitos nele envolvidos, de tal sorte que, a educação do campo irá
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260
Nead Especial 2
revolucionar a idéia arcaica e ultrapassada do campo como um lugar de atraso
e subdesenvolvimento.
São grandes os esforços dos envolvidos para que os avanços educacionais
aconteçam.
São grandes também os desafios colocados e o principal deles é o envolvimento de maior número de professores dentro da universidade federal à frente
de projetos inovadores e revolucionários como este, na busca de um novo
modelo de desenvolvimento e de ampliar os espaços do campo.
É preciso se desafiar em transformar o conhecimento em ação. Colocar em
prática, vivenciar valores, conteúdos e reflexões, contribuindo para o processo de
organização do povo que vive no campo, para a construção de um modelo de
desenvolvimento e de um novo papel para o campo neste modelo, repensando
e redesenhando o desenvolvimento territorial brasileiro. Referências
Caderno de Educação- Deliberações do I Enera. Brasília: abril 2003.
Caderno de formação- Programa de reforma agrária do MST. Brasília: 2003.
M ULLER , Mary Stela; C ORNELSEN , Julce Mary. Normas e Padrões para teses, dissertações e monografias. 5a ed. atualizada. São Paulo: Eduel, 2004, 155p.
K OLLING , Edgar Jorge: C ERIOLI , Paulo Ricardo; C A LD A RT , Roseli Salete. (Orgs).
Por uma educação do campo. Educação do Campo: Identidade e políticas públicas.
Coleção por uma educação do campo, no. 4. Brasília: 2002.
23
O Incra e as ações de reforma
agrária brasileira surpreendem
e impressionam o mundo
E loy A lv e s F i l h o
Múltiplas são as formas e as cores que um olhar pode captar através da lente
de um caleidoscópio… A cada impacto novas formas e combinações de cores
produzem-se e compõem um mosaico de 35 anos de uma história vitoriosa.
O presente texto tem por principal objetivo trazer à tona, a partir de um
olhar particular, fragmentos colhidos de diferentes momentos em que a minha
trajetória profissional, como professor e pesquisador, se conecta e interpenetra
com a história desta autarquia que comemora seu 35o aniversário.
Aceitar o desafio de escrever sobre a implementação do Programa de Reforma
Agrária no Brasil sob os auspícios do Incra resulta das análises que venho fazendo,
há cerca de vinte anos, sobre os aspectos que a caracterizam, o sistema de poder
e as políticas públicas que contribuem ou inviabilizam a geração de emprego e
de renda para uma parcela da população que vive no campo.
Sob esse enfoque, trata-se de um esforço pessoal de inscrever minhas reflexões
nos atuais debates que visam compreender as transformações macroestruturais
que vêm ocorrendo nas sociedades, desde o final do século XX. Após anos de
estudos sobre temas como ação coletiva, movimentos sociais, reforma agrária
e a rica oportunidade de atuar como superintendente regional do Incra sinto
renascer em mim, e na sociedade em geral, a esperança de ver surgirem ações
que revitalizam ideais sobre a imprescindibilidade do Incra e de um programa
nacional de reforma agrária.
Ressalto que, indiscutivelmente, à frente da formulação e da execução dessa
empreendedora política pública se encontra o Incra, órgão inúmeras vezes criticado, política e socialmente, mas inabalável em seus princípios, gerados de sólidos
alicerces fundados na justeza de seus objetivos e retidão de seus métodos.
262
Nead Especial 2
Cabe, porém, ressaltar que, na atualidade, a globalização hegemônica e
neoliberal apregoa o Estado mínimo, ou melhor, defende a tese de que cada vez
menos responsabilidades sociais devem ser assumidas pelo Estado, tendo como
um de seus principais efeitos a diferenciação social, a crescente marginalização de
certas parcelas da população e a gradual destruição das solidariedades sociais.
Sabe-se, no entanto, que o modo como a globalização produz esses efeitos não
é linear, tal como não o é a própria globalização, entendida aqui como um conjunto
de processos movidos tanto por influências políticas como econômicas.
O fenômeno é muito complexo, uma vez que ocorre no âmbito de uma tensão dialética entre a integração de novos espaços sociais, necessária à expansão
das oportunidades no mercado global, e a fragmentação dos grupos sociais,
conseqüente da diferente dotação de recursos para aproveitar essas oportunidades. Porém, o aproveitamento dessas oportunidades está condicionado pela
disponibilidade de recursos materiais e tecnológicos desigualmente repartidos
pelos grupos sociais.
A questão agrária brasileira, nesse contexto, não pode aparecer como questão
agrária, mas apenas residualmente como problema social. Sob esse enfoque,
ela se manifesta não como irracionalidade para o desenvolvimento capitalista,
mas como problema de emprego, trabalho e sobrevivência para as populações
carentes e que o próprio caráter capitalista da propriedade cria ao se modernizar
e se desenvolver.
Nesse âmbito, as ações empreendidas pelo Incra, tanto na elaboração como
na implementação de um programa de reforma agrária vêm, admiravelmente,
conquistando, a cada ano, maior reconhecimento e legitimidade junto à sociedade e aos movimentos sociais, seja por sua capacidade para administrar e
manter um profícuo diálogo com os trabalhadores rurais seja pelo respeito que
vêm demonstrando à luta pelo direito à concessão de um pedaço de terra, fonte
de trabalho e sustento de tantas famílias brasileiras.
Geralmente, programas sociais de tipo estruturante, isto é, que buscam
promover a inserção, de forma mais duradoura, de excluídos, de injustiçados
e de discriminados socialmente, têm vida curta, tanto por questões políticas e
ideológicas quanto por seus elevados custos. Surpreende, e é ao mesmo tempo
motivo de orgulho, que o Programa Nacional de Reforma Agrária capitaneado
pelo Incra venha se revelando, nas últimas três décadas, como um dos raros
programas sociais eficientes, contínuo e abrangente.
Memória Incra 35 anos
Contabiliza-se, na atualidade, a implantação de milhares de projetos de
assentamentos, o investimento de bilhões de reais gastos para assentar milhares de famílias. Apesar da enorme carência de técnicos, de equipamentos e
das dificuldades enfrentadas para atender a imensa demanda, o modo como
o Incra vem conduzindo o Programa Nacional de Reforma Agrária revela a
fibra dos servidores dessa autarquia e a força política dos trabalhadores rurais
brasileiros para verem cumpridos os compromissos para com essa parcela de
excluídos.
As vozes dos trabalhadores rurais ecoaram de todos os recantos do Brasil
e foram ouvidas em todo mundo. As reivindicações por terra para trabalho,
produção, cidadania e respeito ao meio ambiente foram entendidas pela
sociedade e os produtos da reforma agrária ultrapassaram nossas fronteiras,
repercutindo no mercado internacional. A reconstrução da estrutura familiar
em um mesmo local de vida e trabalho, produção, emprego e, também, reprodução familiar, onde os valores culturais, sociais, religiosos e ambientais
foram resgatados, são alguns dos aspectos essenciais que caracterizam a
reforma agrária brasileira.
Essas, entre outras razões, têm estimulado cientistas sociais e economistas de
várias partes do mundo a realizarem estudos sobre as características similares de
ação e de subordinação de trabalhadores rurais, em diversos momentos históricos,
às políticas e programas que os têm como principais beneficiários, na perspectiva
de que a socialização de conhecimentos, experiências, saberes e expectativas
desses contingentes populacionais dêem visibilidade às diferentes “vozes do
campo” e somem esforços na direção de contribuir para um desenvolvimento
rural integrado e sustentável em favor dos pobres.
Considerando os imperativos que visam a emancipação social, ressalto a
pertinência de pensar e de discutir sobre o futuro de comunidades rurais brasileiras, especialmente as suas relações sociais internas e o acesso aos recursos
necessários para ultrapassarem uma histórica pobreza estrutural.
Engajado no esforço para ampliar a compreensão que se tem sobre os modos
de organização e o cotidiano das vidas de trabalhadores rurais, na perspectiva
de contribuir na criação de alternativas que viabilizem a transformação social,
política, econômica e cultural necessária tanto à promoção de uma vida mais
digna e feliz como à garantia dos direitos àqueles que vivem no e do campo, me
dediquei, no último ano, a investigar e conhecer o processo de reforma agrária
263
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Nead Especial 2
implementada em Portugal, sem deixar, porém, de a considerar como um fato
histórico e, nestes termos, datado e determinado pela história social, cultural,
econômica e política de cada país.
As imagens de futuro que trarei para o espaço deste texto, mesmo que seja
de um futuro que já nos sentimos percorrer, é sempre o produto de uma síntese
pessoal embebida na imaginação, no meu caso, na imaginação sociológica.
O estudo sobre a experiência portuguesa estará aqui referido como forma de,
mais uma vez, ressaltar a importância da criação dessa autarquia brasileira que
vem, sábia e articuladamente, desempenhando a nobre tarefa que lhe coube.
Começo destacando a forma como os dois espaços geográficos se inseriram
no movimento em favor da reforma agrária, as políticas que adotaram, as especificidades e as recorrências entre os dois casos em questão: o caso brasileiro e
o caso português.
O estudo pautou-se tanto por uma análise das ações governamentais e dos
movimentos sociais em favor de uma reorganização da estrutura fundiária, de
geração de emprego e inclusão social, no Brasil e em Portugal, como pela identificação de pontos convergentes e divergentes entre os saberes produzidos e
acumulados pelos trabalhadores rurais dos dois países.
As formas como, em 1834, os latifundiários portugueses arremataram as terras
da igreja e os princípios que nortearam a Lei de Terras de 1850, no Brasil, além da
proximidade temporal, que não é mera coincidência, têm muito em comum.
O impasse político e a crise social e econômica que caracterizavam as duas
sociedades rurais, acentuaram uma crise de todo um modelo de desenvolvimento que ofereceu as condições fundamentais para que se desencadeassem
processos de reforma agrária nos dois países.
O amplo debate suscitado pela sociedade brasileira e o envolvimento de
outros países sul-americanos com o programa de reforma agrária, deixou o
novo governo do Regime de Exceção sem alternativa senão manter a questão
dentro das ações prioritárias do plano de governo. Para viabilizar as ações, iniciou um processo de criação de mecanismos legais que facultavam à União o
poder de desapropriar terras, por interesse social, para fins de reforma agrária,
mediante o pagamento de prévia e justa indenização com títulos especiais da
dívida pública.
O governo militar estimou que a criação tanto do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) como do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda)
Memória Incra 35 anos
pudessem, então, garantir os meios para executar a reforma agrária. Porém, os
resultados econômicos, sociais, culturais e ambientais das ações desses órgãos
foram desastrosos para a sociedade.
Na perspectiva de reverter esse quadro, criou-se em 9de julho de 1970, por
meiodo Decreto no 1.110, o Incra, resultado da fusão do Ibra e do Inda. Vários
programas especiais de desenvolvimento regional foram implementados, mas
os impactos ou os resultados foram pequenos em relação às propostas e os
recursos disponibilizados.
Em razão do não atendimento às demandas dos trabalhadores rurais semterra, da baixa eficiência na alteração da estrutura fundiária brasileira, do agravamento dos problemas sociais, do início do processo de redemocratização do
país, a questão da reforma agrária voltou à discussão, em todos os níveis e nos
mais diversos fóruns, nos primeiros anos da década de 1980.
Cruzam-se, mais uma vez, as histórias dos dois países. Em meados das décadas
de 1970 e 1980, respectivamente Portugal e Brasil, superaram longos e desastrosos
regimes ditatoriais. A abertura política liberou anseios democráticos e permitiu
que as categorias sociais, até então excluídas, se organizassem e reivindicassem
alguma forma de inclusão e de emancipação social.
A mobilização social para resgatar a democracia, a institucionalização de um
governo civil e as graves questões sociais existentes no país, levou às formações,
no início dos anos de 1980, de diversos movimentos de trabalhadores rurais. Essa
mobilização, a organização social de outros movimentos e a formalização do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em 1984, foram fatores
cruciais para a inclusão, na Constituição Federal de 1988, de dispositivos que
permitissem a desapropriação de terras que não estivessem cumprindo a sua
função social. Os movimentos sociais foram, e continuam sendo, como o MST, a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e outras siglas
regionais, um contínuo fator de pressão social sobre os poderes constituídos
pelo avanço da reforma agrária no Brasil.
O decreto do governo no 97.766, de 10de outubro de 1985, determinou, após
ampla e complexa discussão com a sociedade, a elaboração de um ambicioso
Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que coube ao recém-criado Ministério
Extraordinário para o Desenvolvimento e Reforma Agrária (Mirad) implementar
com a meta utópica de assentar 1,4 milhão de famílias em quatro anos e desapropriar 43 milhões de hectares de terras.
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Nead Especial 2
As diferenças entre as metas propostas e os resultados obtidos refletiram-se
no intenso debate político e ideológico sobre as questões orçamentárias, os
entraves jurídicos e a baixa capacidade operacional dos Órgãos responsáveis
pela reforma agrária resultaram na extinção do Mirad e do Incra em 1987.
No período entre 1987, ano da extinção do Incra, até sua recriação em 1989,
o Ministério da Agricultura ficou responsável pela reforma agrária no país. Desde
então, a política e as ações de Reforma Agrária sofreram profundas alterações,
seja com dotações orçamentárias crescentes seja com importantes alterações
legislativas e metodológicas que deram condições ao Incra agir na direção de
consolidar sua missão institucional.
Por seu lado, a revolução de 1974 trouxe consigo o prenúncio de uma nova
era em Portugal. No período de 1975 a 1978, ocorreram ocupações de mais de um
milhão de hectares e a criação de centenas de Unidades Coletivas de Produção
(UCP’s), gerando emprego para milhares de trabalhadores rurais. A reforma agrária
portuguesa teve apoio das Forças Armadas e do Partido Comunista Português,
uma das razões para que tenha se caracterizado como um movimento regional,
circunscrito ao Alentejo, não contando com nenhum outro tipo de apoio, nem
mesmo dos pequenos proprietários.
Neste sentido, em ambos os países, os trabalhadores rurais, desprovidos do
capital necessário à exploração da terra, organizaram-se, transformando-se em um
dos mais fortes movimentos sociais surgidos no final do século XX, com duração
mais efêmera em Portugal, mas que ainda continua agindo ativamente no Brasil.
Tanto no Brasil como em Portugal a abrangência da reforma agrária parece
corresponder ao tamanho, à força política e à organização do movimento social
que a reivindica. No caso português, os movimentos sociais em favor de uma
transformação na estrutura fundiária ficaram restritos ao Alentejo.
Os movimentos sociais de luta pela terra, no Brasil, vêm se transformando em
exemplos de organização e de mobilização social, o que nos faz pensar que as
reservas de possibilidade histórica das populações rurais representam, e muito,
sua capacidade para reinventar o mundo e se reinventar no mundo. São, também,
exemplares as relações que o Incra mantém com todos os movimentos sociais,
agindo com cordialidade, primando pela igualdade de direitos e de tratamento,
independentemente da corrente ideológica do movimento social.
Os trabalhadores rurais, tanto na experiência brasileira como na experiência
portuguesa, entendem a reforma agrária como uma alternativa pertinente ao
Memória Incra 35 anos
processo de redemocratização da sociedade, no sentido de ter como finalidade
máxima a garantia do acesso à terra àqueles que dela retiram a renda necessária
para sua subsistência. Porém, tal alternativa é significada de modos diferentes
em cada cultura.
Outro aspecto interessante que difere da noção corrente no Brasil e que
merece ser ressaltado é o significado da terra. A terra, para todos os trabalhadores
rurais portugueses, inclusive para os que se envolveram e lutaram em favor da
reforma agrária, é tida como um espaço de trabalho, nunca entendida como
passível de se tornar propriedade privada.
Por sua vez, no Brasil, a maioria dos trabalhadores rurais almeja a propriedade individual da terra, enquanto algumas lideranças e intelectuais defendem
a nacionalização e a desapropriação privada da terra, sendo o Estado seu fiel
guardião, cedendo seu adequado uso aos que nela trabalhem.
Destaca-se, nesse contexto, uma diferença significativa quanto ao grau de
autonomia e de independência que trabalhadores rurais portugueses e brasileiros puderam vivenciar, em decorrência dos processos de reforma agrária nos
dois países.
Os trabalhadores rurais, em Portugal, saíram, na sua maioria, da condição
de desempregados ou empregados temporários para a condição de proletários, pois eram empregados das UCPs, não desfrutando, assim, de um maior
grau de autonomia, mantendo-se subjugados às ordens das direções das
cooperativas.
No caso dos trabalhadores brasileiros, considera-se que, apesar das inúmeras
dificuldades enfrentadas no cotidiano de suas vidas, a condição de proprietário
de seu lote de terra lhes garante um maior grau de autonomia e espaço para
criação de ações emancipatórias.
Porém, respeitadas as diferenças de espaço e de tempo em que se deram
as experiências de reforma agrária nos dois países, ambos os grupos de trabalhadores enfrentam, na atualidade, dificuldades similares para sobreviverem e
retirarem do trabalho da terra seu sustento e de sua família.
A principal diferença, em termos de expectativas futuras na transformação
das condições de vida dos trabalhadores rurais nos dois países está, exatamente,
na possibilidade de que os trabalhadores rurais brasileiros, diferentes do que
ocorre na realidade portuguesa, podem contar com o apoio imprescindível e
institucional do Incra.
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Cabe ressaltar que o Incra não mede esforços para atender as demandas dos
trabalhadores rurais e, também, diversifica suas atividades na busca por atender
os agricultores beneficiários da reforma agrária de forma integral e abrangente. A
Autarquia entendeu, desde o início, que apenas a terra era insuficiente para garantir
a sustentabilidade do programa e ampliou suas ações. Vem sendo indispensável
para o sucesso do programa de reforma agrária brasileiro, mesmo que ainda em
número insuficiente, as obras de infra-estrutura, os créditos para habitação, produção, assistência técnica e ambiental. Esse conjunto de ações, não implementadas
em Portugal, confirma o acerto na elaboração do Programa de Reforma Agrária
levado a termo pelo Incra e a eficiência desta autarquia na sua condução.
Embora possa considerar-se que tanto a formulação como a execução de
políticas públicas seja papel do Estado e, especialmente, no caso da reforma
agrária, seja de sua competência a criação do Programa de Desenvolvimento
Rural Sustentável, reconhece-se, igualmente, que um programa de reforma agrária
deve, além de garantir o desenvolvimento, a consolidação da agricultura familiar
e o fortalecimento da economia camponesa, representar uma forma de favorecer tanto a inclusão social do homem do campo e/ou de seus beneficiários no
mercado de trabalho e no processo produtivo como favorecer a sua participação
em espaços nos quais se definem as diretrizes de ação, estimulando, assim, a
preservação da cultura e dos valores daqueles que constituem a comunidade
que coabita nos projetos de assentamentos.
O Incra, apesar de sua juventude, já é parte integrante e inesquecível da
história brasileira, seja como um órgão público responsável pela fiscalização e
normatização do território nacional seja como planejador e executor de um dos
maiores programas de inclusão social em andamento.
Diferentemente de Portugal, onde a reforma agrária teve uma duração
muito curta, o Incra tem conduzido, desde sua criação, uma reforma agrária de
âmbito nacional, independentemente do tamanho continental do Brasil e de
sua diversidade social, econômica, política, étnica e cultural.
A consolidação do Incra como autarquia deu-se graças à dedicação dos
servidores que, em alguns casos, arriscam a própria vida enfrentando a violência
de latifundiários inconformados com o processo de desapropriação pelo não
cumprimento da função social da terra. A soma desses esforços constitui-se na
base de um patrimônio moral admirado no mundo inteiro. O acúmulo de inúmeras
experiências bem sucedidas, o apoio e o reconhecimento tanto por parte dos
Memória Incra 35 anos
movimentos sociais como por parte da sociedade em geral é que garantem à
autarquia a respeitabilidade necessária para sua continuidade. A cada dia o papel
reservado ao Incra se torna mais importante e abrangente, pois, além da reforma
agrária, agora está conduzindo magistralmente o re-ordenamento territorial
brasileiro, ação de suma importância para toda sociedade brasileira.
A reforma agrária portuguesa, por seu lado, caracterizou-se pela falta de
apoio político, para haver maior abrangência nas ações que visavam promover
a reforma agrária em todo o território nacional, pela descontinuidade e pela
inexistência de créditos e de assistência técnica. Enfim, a ausência de um órgão
como o Incra, lamentavelmente, inviabilizou a reforma agrária condenada a uma
vida curta, ou seja, a chama da esperança para milhares de trabalhadores rurais
apagou-se em cinco anos.
No Brasil, embora as medidas de desapropriação de terras permaneçam como
instrumentos básicos para angariar recursos fundiários para assentar famílias
com perfil de trabalhador rural, o Incra utiliza-se de alternativas para ampliar ao
máximo a obtenção de áreas rurais, tal como o uso de terras públicas e daquelas
disponibilizadas por aquisição, diferentemente do que significaram em outros
períodos, as regularizações fundiárias se constituem hoje na possibilidade de
inclusão de posseiros pobres ao cenário da agricultura familiar.
Certamente concorda-se com aqueles que reconhecem que há muito que
fazer ainda em termos, especialmente, de ressocialização dessas populações
para perspectivas que se abrem e, também, que essas não dependem apenas
da regularização fundiária, mas da participação efetiva de agentes de mediação
e beneficiários.
Estima-se que o cumprimento do que prevê o artigo 86 da Constituição
Federal de 1988, ou melhor, que a mobilização dos trabalhadores imponha que a
função social da propriedade seja tomada como referência na definição de ações
integradas e articuladas entre os trabalhadores rurais e o Incra, os ministérios do
Desenvolvimento Agrário, da Agricultura, da Saúde, da Educação, do Trabalho, do
Meio Ambiente e ainda da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
pois, só assim, um programa de reforma agrária pode, de fato, se constituir como
um instrumento político de desenvolvimento social, cultural e econômico para
transformar a realidade da sociedade rural do Brasil.
Tenho a expectativa de que a força dos movimentos sociais não se arrefeça e
faça avançar a reforma agrária em detrimento do injusto latifúndio improdutivo
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Nead Especial 2
e em favor dos trabalhadores rurais sem ou com pouca terra. A democracia não
é algo assegurado automaticamente. Ela é, sim, decorrente de uma ação coletiva
que viabiliza a negociação e a instauração de acordos públicos.
Estimo que a sociedade civil, os movimentos sociais, os intelectuais e os
setores progressistas continuem reconhecendo e oferecendo o apoio necessário para que o Incraconclua de maneira adequada a impostergável a reforma
agrária brasileira.
Encerro minhas reflexões lembrando um pensamento com o qual concordo
plenamente. Na atualidade, “se anuncia um conceito alternativo de cidadania
para o século XXI, uma revisão da idéia ilustrada de tolerância e uma ampliação
da idéia tradicional dos direitos humanos.” 24
Nossa parcela de contribuição para
auxiliar no resgate de sua memória
A l i n i o R o s a S o a r e s e S i lva
Trinta e cinco anos atrás, num dia nove de julho,
o Brasil deu mais orgulho e esperança ao seu matuto.
Ao ser criado o Instituto, cuja causa humanitária de fazer
reforma agrária produziu emprego e renda
amenizando a fazenda da contenda fundiária.
Como Instituição, o nosso Incra surgiu quando um
decreto fundiu o Ibra, o Gera e o Inda.
Nesse tempo a Nação brinda, no futebol, grande ato da
seleção no estrelato, que a gente lembra e comenta
que o Incra nasce em setenta, em pleno tricampeonato.
Para resgatar sua história o Incra fez um concurso convocando
ao discurso cada um, em verso ou prosa.
Esta causa tão honrosa enaltece o funcionário, que depõe
nesse cenário, pois teve um papel em cena.
E, por certo, vale a pena ouvir seu documentário.
O primeiro desafio do Órgão, em seu roteiro, foi agir
de timoneiro da integração nacional.
Num País continental, com Amazônia devoluta, valeu
a fé resoluta do Incra e do seu colono
que não largou no abandono os tantos anos de luta.
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Nead Especial 2
Do período militar ao fim dos anos oitenta o colono
representa nosso principal emblema.
Porém, mais tarde um problema ganha mais notoriedade:
o acesso à propriedade através das invasões,
atraindo multidões inquieta a sociedade.
Com isso a Reforma Agrária muito mais nos foi cobrada, com
tanta gente acampada, pelos confins do Brasil.
O trabalhador servil, não se fez mais de rogado: quis o seu
quinhão dobrado, cobrando o lote e o fomento.
O Incra nesse momento não se furtou ao legado.
Os anos noventa vêm acarretando mudanças que influíram
nas finanças e atribuições do instituto.
O ITR era um tributo no cadastro arrecadado, porém, foi determinado,
que por ser imposto, o tal, na Receita Federal seria centralizado.
Diante da nova ordem, o órgão, então, recorre à vocação
que decorre da força do próprio nome.
O Incra não se consome enquanto lembrar reforma, postada
por sobre a norma para assim, ser respeitado.
O bem em prol do Assentado é a melhor coisa que informa.
Tal como tantos cadastros, e tantos assentamentos! Tal
como tantos fomentos e tantas habitações!
Não obstante invasões, tem superado os impasses, convidando
sempre as classes, a por as cartas na mesa.
Nosso Incra, com certeza, coopera para os enlaces.
O Incra chegou assim, ao final século vinte cumprindo
a lei com requinte e atento à causa rural.
O Empreendedor Social, no ano de dois mil, criado, foi um programa pensado.
Para ser linha de frente, no campo, tal como um agente do Incra para o assentado.
Memória Incra 35 anos
E nessa missão de ponta, como um dos protagonistas,
fizemos muitas visitas em áreas de atuação.
Checando a situação de cada assentamento pro seu
desenvolvimento, na produção, dia a dia.
Levar a cidadania foi nosso contentamento.
Nós, da Superintendência do Rio Grande do Norte, queremos
um Incra forte, como forte é o sertanejo.
E haverá maior festejo, para nós, seus servidores, quando
além de agricultores, os atuais assentados,
na educação, formados, consigam ser vencedores.
Nossas congratulações pelo Incra e sua história, deixamos
como memória por estas linhas gravadas.
As vitórias conquistadas sobrepujam desenganos. Pelos projetos e planos que
todo o país aprova, desejamos vida nova por mais trinta e cinco anos.
O Incra surge na história do Brasil como uma conquista do povo brasileiro para
trazer a terra à sua função social como agente pacificador dos conflitos agrários, na
condição de parceiro dos sem-terra e dos assentados na revolução do campo.”
Revolução do campo
A história do Brasil constará nos seus anais os movimentos
sociais que hoje lutam por terra.
Quase num clima de guerra surge a tal revolução que põe fim à relação
de senhor e agregado na figura do assentado com seu pedaço de chão.
Desde os tempos medievais que o pequeno camponês
pela terra espera a vez para melhorar sua renda.
Quem vivia na fazenda dando duro, anos a fio, à mercê do senhorio,
não tendo prosperidade, supera a mediocridade lutando com honra e brio.
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Nead Especial 2
Fez valer-se Cidadão, o agricultor servil que vivia no Brasil no cabresto do curral.
O Instituto Nacional, dito Incra, soletrado, tendo o Brasil parcelado,
ao fazerr agrária, fez-se força libertária aliada ao assentado.
A injustiça social emperra a democracia. Nosso Incra
aguarda o dia que aja paz entre irmãos.
Nem todos somos cristãos; nem todos são muçulmanos.Mas, todos, seres humanos,
qual flores de um mesmo jarro.A mão que amassa o barro merece melhores anos…
O Incra administrando conflitos agrários – O fazendeiro e o sem-terra simulam,
num diálogo, os conflitos entre classes que o Incra, através dos seus servidores tem testemunhado ao longo da fase mais crítica das pressões sociais, nos
últimos dez anos.
O fazendeiro e o sem-terra
No Brasil sempre ocorreu o conflito social, desde os
tempos de Cabral, que a injustiça, o campo vê.
E com o MST, movimento proletário, no meio do espaço agrário,
surge um clima de guerra do trabalhador sem-terra contra o latifundiário.
Para mostrar esse fato, eu convido a um desafio, se um
lado tem pavio, o outro o isqueiro tem
Prá falar o que convém, o espaço aqui é dado, se um quer ser assentado,
O outro não quer dar a terra, fala a verdade não erra quem for melhor no dobrado…
— Eu vou me apresentar, o meu nome é Severino, desde
os tempos de menino que eu tiro da terra o pão.
Pelo pedaço de chão, eu pego inté no machado, prá quem quer ser assentado
não tem que fazer escolha, forro minha cama com folha só pra ficar acampado
— Agradeço por ser dada a palavra a um fazendeiro, me
chamam João boiadeiro por ter muito boi no pasto
Memória Incra 35 anos
Eu tava seguindo o rastro de uma criação perdida e ao ver minha terra invadida
eu fiquei desconsolado, todo esse povo acampado onde eu dediquei minha vida
— Você dedicou sua vida, mas, o chão num é meu nem
teu, se você não for ateu, vai lembrar que o Criador
É o mesmo que criou acampado e fazendeiro, se hoje um tem mais dinheiro
e anda montado em carro, os dois são do mesmo barro, cavado pelo coveiro.
— Cavado pelo coveiro, eu lhe meto no buraco, se
você insistir no ato de ficar nessa invasão
Qualquer um me dá razão se eu lhe meter uma bala, você vai perder a fala
se continuar na intriga, pra não sair dessa briga, eu pago até uma boiada.
— Eu pago inté uma boiada – você diz isso blefando, a
cobra num tá fumando, mas ainda vai fumar
Aqui vou continuar, e daqui ninguém me tira, eu tenho comigo uma embira
para lhe amarrar no mato, posso lhe cortar o saco se zombar desse caipira.
— Quem vai zombar do caipira será mesmo a polícia, vai
haver uma perícia na minha propriedade.
Produtiva, na verdade, ela será declarada, e a posse reintegrada
pelo juiz, cedo ou tarde, é aí que o coro arde numa pisa nessa cambada
— Cambada sei que não somos, você tenha mais respeito!
Nós também temos direito de lutar por essa terra.
E quando o cabrito berra é a fome que lhe aperta, fizemos a coisa certa
Pior é ficar parado e ver o filho, coitado, com fome de boca aberta.
— A boca aberta com fome, a vocês eu não desejo, a
solução que eu vejo, é o Incra comprar a terra
A nossa disputa encerra com Incra entrando no meio, assim não tenho receio.
Se eu for indenizado, você termina assentado e eu com meu bolso cheio!
— Você com seu bolso cheio, e eu com o meu vazio, mesmo
assim eu negocio pra depois recuperar.
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Nead Especial 2
Quando o Pronaf chegar, então tiro o meu atraso: compro bezerros com prazo,
fiado, por muitos anos, e se der certo meus planos está resolvido o caso.
— Está resolvido o caso, brindemos com uma cachaça, nós
vamos beber de graça que o Incra pagou a conta.
Agora a mesa está pronta, já assinei meu contrato e estou enchendo meu prato,
você pode encher o seu, mas não diga que sou eu o que foi bobo de fato.
Os servidores do Incra presenciam o seu dia-dia dilemas de sem-terra, especialmente nos últimos quinze anos.
Nas linhas a seguir, analisaremos o estado de ansiedade psíquica que ocasionalmente condiciona o comportamento de um trabalhador sem-terra, envolto
em meio a uma sociedade da qual, o quinhão que lhe cabe, não lhe permite
usufruir as condições decentes e básicas de vida, o que o impele a sobreviver
deixando constantemente transparecer o seu inconformismo e revolta que o expõe
à situações que afloram ao limite da sua resistência em manter-se dentro de um
comportamento social racional e civilizado. Este é o campo onde atuará, dentro
do seu subconsciente, dois entes antagônicos, ou seres que representam o bem
e o mal, os quais lhes enviarão mensagens para sugerir o seu modo de agir dentro
de determinadas situações a que ficará exposto no seu dia-dia. Estes dois entes
mitológicos, anjo e demônio darão bons e maus conselhos ao sem-terra que, no
decorrer do episódio contenderá ainda com sua própria mulher, a qual, a princípio,
não engole bem a idéia de ir viver no meio de acampados invasores, mesmo sob
a promessa futura de conseguir um lote para morar, mas, no final reconhece na
assistência do Incra a melhor opção para o conforto de sua família.
Dilema de um sem-terra
Para quem nunca pisou num pedaço de chão seu, e
que ainda não morreu, vale a pena lutar
para poder conquistar, enquanto esperança tem, um pouquinho mais além
do que ver passar a banda, se pra frente é que se anda, sonhar num atrasa ninguém.
Memória Incra 35 anos
Mas sair do calabouço onde se nasce metido nem sempre
é permitido, nem sempre é conquistado.
E em cada degrau galgado há de se ver o suor, quando não é o pior
-o sangue que é derramado, na terra – um bem sonhado por quem espera o melhor.
Quando na mesa o pão falta, falta também paciência, e
pra fazer penitência, é preciso vocação.
Tendo arroz com feijão, muita gente se conforma, mas se for de outra forma,
tendo a barriga vazia, qualquer homem, qualquer dia pula por cima da norma.
[…]
E lá vai nosso sem-terra, por esse mundo selvagem
marcando sua viagem com destino imprevisível.
Seu desejo irresistível de tornar-se independente faz ocupada sua mente
em sonhos de liberdade pelo acesso à propriedade pra ter uma vida decente…
Segue os pensamentos do Sem-terra, com intervenções
do anjo, demônio e de sua mulher…
Sempre fui home de bem, cumpridô dos meus devê, mas no
mundo a gente vê que nem sempre isso adianta
Quando um home se levanta pelas três da madrugada, sai que nem alma penada
numa terra que num é dono e trabaia inté com sono, inda ganha quase nada.
O homem deve confortar-se com aquilo que ele tem, pois
na vida o que convém é portar-se com decência,
E é preciso paciência e agir com honestidade, não se iluda com a vaidade,
se você é pobre ou rico, isso é o que lhe testifico, tudo em nome da verdade!
— Tudo em nome da verdade – essa conversa é antiga – ele
quer que você diga que será bem comportado
Sempre agüentando calado o acocho do patrão sem ter um lote de chão
onde ganhe muito dinheiro farreando o ano inteiro – veja bem que eu tenho razão!
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Sei que tenho que escuiê no mei dessa incruziada, dum
lado é a invernada que leva a vaca pro brejo;
do outro, parêço um tejo quando infrenta a cascavé, e precisa dar no pé,
para pudê iscapá, por isso vou me arribá junto cons fi e muié.
Muié! Nós vamo parti, assim mermo, de arribada, lá pras
famia acampada na mata grande do ipê
Onde o MST invadiu no mês passado. Foi lá que eu deixei montado
nosso barraco de paia, ande, ajunte logo as traia que o jumento tá selado.
Home, tu cria juizo – tu parece um abiscoitado! Como é
que uns gato pingado vão enfrentar a polícia?
Eu já soube da nutícia que lá o tempo tá quente, e uns pobre que nem a gente
vão tratar que nem cachorro, se é pra ir pra lá eu morro, perto aqui dos meus parente.
Não escute essa mulher que além de abusada é burra, se não
for, meta-lhe uma surra que pra não ser tão teimosa.E tem mulher
mais fogosa por aí, melhor que a tua, beba cachaça na rua
que é pra ficar mais esperto, e assim dá tudo certo e tua vida continua.
José, não dê atenção aos conselhos do demônio, pois
sagrado é o matrimônio e honrada é tua mulher.
E não esqueça, José, que fizeste um juramento de cumprir o sacramento.
Pense bem nos filhos teus, isso é um conselho que Deus, recomenda em mandamento.
E não se entregue ao vício, cachaça, fumo ou baralho. Se envolva só no trabalho,
nas lidas de agricultor. Até se fosse um doutor, também
pra ele diria: fuja bem do que vicia,
de briga, esteja onde esteja, e reze um credo na igreja, Padre Nosso Ave Maria!
- Padre Nosso e Ave Maria – isso é ladainha pura! Esse
anjo te esconjura porque tu queres vencer,
pensando que dá pra ter dessa terra o teu pedaço, como no PA Barbaço,
onde muita gente enrica e você, pobre, só fica dando credo a estardalhaço.
Memória Incra 35 anos
Minha cabeça tá zonza, minha mulera tá quente, comigo
ninguém intente me mandá o que fazê.
Hoje num quero sabê de anjo de inferno ou diabo. Tô
liso que nem quiabo, precisando de dinheiro
Vou xafurdá num terrêro – é dessa vez que me acabo!
Já cansei de trabaiá pro’souto dando na impreita, na meia
minha colhêta, ficando com caldo e osso.
Se tô no fundo do poço, não me resta aqui mais nada, eu boto o burro na estrada
com muié ou sem muié. Vou viver que nem Migué – comendo pelas berada!
Já convenci a muié, e ela foi se aproxegando, dispois
vieram contando qual foi seu convencimento.
É que tem um documento que o Incra dá prá assentada, se ela tem uma barrigada
recebe quato salário, porque já tá no berçário nossa fia Anunciada.
Eu encerro a história aqui, onde o bem, ao mal derrota. E antes de mudar minha rota,
vou, deixando um “até breve!”- do colega aqui que escreve e que criou esta lenda,
pra quem lê, por certo entenda que, se a realidade é crua,
vale a fantasia sua que realce a nossa agenda.
Lamentos de um ex-assentado – Retrata os problemas que enfrenta um agricultor
Ex-assentado, com baixo grau de instrução, quando vende o seu lote pensando
em galgar ascensão econômica fora do assentamento, na vida urbana. O fracasso
da aventura lhe revela a falta de opções de emprego e de melhoria de vida e a
desilusão com a cidade grande. Daí, ele se arrepende, ao recordar o seu tempo
como assentado, quando tinha acesso às benesses do Incra.
Lamentos de um ex-assentado
Meus senhores e senhoras, sei que vai passando as horas, peço a vossa permissão
Pode ser que o meu caso sirva como exemplo dado, me escutem com atenção
É que eu já fui assentado, ganhei lote cadastrado no programa federal
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Do que é bom ninguém se esquece, mas o corpo é
quem padece se a cabeça pensa mal
Pra contar a minha história, vou lembrar da fase inglória do tempo que fui meeiro
Vivi como agregado, trabalhei duro, dobrado ganhando pouco dinheiro
Daí eu parti pra guerra, no movimento Sem Terra eu lutei como acampado
Pelo pedaço de chão, portando foice na mão, até que fui assentado
Com a desapropriação, veio a demarcação sendo o Incra o mandatário
Recebi investimentos, ferramentas e alimentos como beneficiário
Eu tava ínté bem vida, com Maria Aparecida, vivendo um bom matrimônio
No lote fiz um cercado, vivia todo animado, zelando meu patrimônio
Eu tinha quatro carneiro, dois bode, pai de chiqueiro, muitas cabras no aprisco
Meu lote dava feijão, muito milho e algodão, bastava qualquer chuvisco.
Na roça, o ditado manda, que cobra que muito anda, no coro, lodo não cria
E eu fiquei abestalhado, vendendo um bem conquistado, meu lote por ninharia.
Os meus planos nesse dia era com minha famia morar na grande cidade
Então fui motorizado, num carro velho montado, pra viver uma novidade
Com o dinheiro ajuntado montei um bar equipado, com muita mercadoria
Um ano logo se passa, eu vendi muita cachaça, mas não tive melhoria
Enquanto tinha dinheiro, meu bar era o paradeiro de quem se dizia amigo
Foi na conta do fiado que logo fui tapeado com merecido castigo
O meu bar não deu em nada, e a coisa tá enrolada mais do que fumo no rolo
Lembro que fui assentado, se hoje tô fracassado, eu me considero um tolo
Hoje moro de aluguel, vivendo de déu em déu, porque deixei minha casa
Mas quem tem a vida à toa, é formiga que avoa quando inventa criar asa
Já perdi a mocidade nos costumes da cidade não me dou com agitação
Tenho saudade de fato da terra fresca e do mato, como dói meu coração!
Minha fia Cleonice viveu sua meninice quando eu era assentado
Hoje sai com a sacola, não sei se vai pra escola, ou pra ver o namorado
Memória Incra 35 anos
Eu olhei seu boletim e só tinha nota ruim e eu fiquei desconfiado
Me dizem coisa medonha, que o cara fuma maconha e eu vivo preocupado
A Maria Aparecida se sente compadecida, com tudo, também, pudera,
pois, a nossa penitência começou com a desistência do lote que nosso era.
Diz que nossa vida outrora comparada com a de agora era de rei e rainha
Se pudesse nessa hora voltava, sem mais demora pro cantinho que a gente tinha.
Noutro dia, quinta ou sexta, soubemos que havia cesta pelo Incra distribuída.
E como a coisa era pouca, ficamos de água na boca e num beco sem saída
Agora não tem mais jeito, nós já não temos mais direito, pois não sou mais assentado
Hoje tudo que mais quero é aguardar o Fome Zero pra sair desse imprensado.
Voltar pro assentamento, não tem mais consentimento, eu assumo minha burrada
Hoje eu sou cabra da peste, lá no Banco do Nordeste, minha conta tá encerrada
Pra quem plantava na horta, hoje vê bater à porta, vez por outra um cobrador
Por tudo que sou cobrado, meu carro velho quebrado, alguém de mim carregou.
Se alguém da reforma agrária falar uma coisa contrária, meu amigo, eu tomo as dores.
Nela eu fiz um pé de meia, e se a coisa aqui tá feia, num é culpa dos doutores.
Quem tiver lote, segure, e faça um jeito, procure cultivar a produção
Que a ilusão da cidade nunca trás prosperidade para quem veio do sertão!
Recordando as RBs do Sipra – Em 13 de fevereiro de 2004, homenageamos os
Franciscos dos assentamentos, por ser um dos nomes mais freqüentes nas
relações de beneficiários…
Chicos de assentamentos
Quem fizer uma relação de Francisco em assentamento não
vai achar cem por cento porque metade é Maria.
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Viajando um certo dia eu fui parar num PA, onde quem
mora por lá Se não for Maria é Chico
e eu pensei, como é que fico se o nome deles errar?
Eu peguei a relação de seus beneficiários e antes dos
meus comentários, eu comecei a chamada
Na reunião marcada, chamei Francisco de Assis, dizendo que sempre quis
Conhecê-lo pessoalmente – muito prazer, Presidente, mas o tal então me diz…
…Eu sou Francisco de Assis, mas não sou o presidente, e
me levou ao presente chefe da Associação.
Ele até me deu razão por haver me atrapalhado, ao ter seu nome trocado
por outro de Assis, “Vieira”,o seu era “de Oliveira” e assim fui desculpado.
Fui chamando outro de Assis, mas este era “Sobrinho”,
depois Francisco Marinho, e o Francisco Morais.
E no meio de outros tais, tinha Francisco José e Francisco Canindé,
das Chagas, tinha mais três, ora vejam só vocês, tinha Chico a dar com o pé!
Houve uma substituição de um lote por abandono, e o
Francisco, o antigo dono, era o Francisco Raimundo
que saiu no meio do mundo, sem dizer o paradeiro, mas o Francisco, pedreiro,
pro seu lugar indicado, desistiu e foi trocado pelo Francisco Trigueiro…
…Cabra de peia, birrento, causador de muito atrito, foi querer
ganhar no grito uma briga com outro Chico.
Mas quem fez calar seu bico foi Zé Francisco Pereira que andou dizendo besteira
para Francisco Clemente e a coisa ficou mais quente, do que boca de caieira…
…Francisco, tu só é home, na casa de tuas nega, eu tô
lhe dizendo, chega de agir na covardia!
Por ter respeito à Maria, de quem tu és afilhado num dou num pobre coitado,
- Vai cuidar do teu aprisco, cria juízo, Francisco, deixa de ser atentado!
Memória Incra 35 anos
Saí desse assentamento e fui no outro seguinte onde
tinha mais de vinte Francisco relacionado.
E num lugar reservado, li na Carta de Anuência, desde a Francisca Inocência
Ao Francisco Valdomiro, me despachei, em retiro, terminada a penitência.
Eu dou o caso por encerrado, pra não dizer outros
tantos, Francisco, no meio dos santos
tem seu nome espalhado. Quando ocorre um batizado,
entre outros tantos mil, esse nome tão gentil
pode estar na certidão como José, Pedro ou João, nos confins do meu Brasil!
Os assentamentos do Incra como inspiração poética (PA,s corridos pelo autor,
nos anos de 1999 a 2005):
Criamos, numa alegoria à Canção de exílio de Gonçalves Dias, a Canção
dos assentamentos do RN. Nos versos, os nomes dos assentamentos estão
destacados em negrito.
Canção dos assentamentos do RN
Minha terra tem Palheiros, Monte Alegre e Trapiá!
Jamais houve assentamentos noutras terras como cá!
— Não há tal como Barbaço; nem há tal como Casinhas;
E outros tantos decantados entre os versos destas linhas.
Minha terra tem Casqueira, Bela Vista e Gravatá.
Onde há Superintendências, não se assenta como cá.
Nossas vilas tem Jurema; nossos campos, Colorado.
Nossas terras, Águas Vivas; nossas serras, Lajeado.
Minha terra tem Rosado, parcelado à beira-mar!
As terras que outros parcelam, não parcelam como cá!
Nossos lotes tem Modelo; nossas matas, Petrolina;
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Nossas áreas, mais Recreio; nossas Santas, Ursulina.
Em minha terra, tão Formosa, fui até Caracaxá.
Fiz a Ronda com Três Voltas, volta e meia em Paraná.
Passei no Canto das Pedras, em Cavaco e Sussuarana.
Depois de Aurora da Serra, voltei no fim de semana.
Quero estar em Maravilha, qualquer dia de manhã!
Quero ver o sol poente sobre as serras de Acauã!
E adentrar-me em Catingueira e no Rancho do Pereiro
Ou na Baixa do Novilho, Soledade e Umarizeiro.
O Bom Trabalho feito, com Boa Fé, não se acaba.
De Olho D’Água da Escada até Baixa da Quixaba
Com um e dois Eldorados, Três Corações “Vivará”.
Com saudades de Santana, Cordão de Sombra e Xoá.
Com as contas do Rosário de Antonio Conselheiro
Faço procissões, Milagres, por Favela e por Sombreiro.
Guarapes, Serra Verde, Santa Rita e Encruzilhada,
Chegarão ao Paraíso pelo Portal da Chapada.
Minha terra tende orgulho desses campos, desses ares!
- Do teu Cabelo de Negro; do Quilombo dos Palmares;
- Do céu de Umburanas, de Pau D’Arco e de Lorena!
- Em teu seio, oh Liberdade!- Sede amada, Madalena!
Boa Sorte, Arizona, Bom Futuro e Logradouro;
Jerusalém, Terra Nova e também Brinco de Ouro!
Pedra Branca, Jatuarana, Santa Clara e Palestina,
Todos com Vale do Lírio reinarão na Paz Divina…
O Incra, em 35 anos como agente de difusão da caprinocultura, vem através deste
servidor, prestar homenagem ao bode, por ser um animal robusto, adaptado ao
Memória Incra 35 anos
semi-árido e amplamente difundido nos assentamentos, já que é normalmente
recomendado para aquisição nos projetos do Pronaf encaminhados pelo órgão
em benefício dos assentados…
Sua Majestade, o bode!
Ninguém cumprimenta o bode, no mundo dos racionais.
Entre tantos animais, o bode tem seu valor.
No mundo qualquer doutor, com branco no colarinho, tem honras pelo caminho
mesmo que não seja honesto, por isso é que manifesto ao bode o meu carinho!
II
Pela caatinga espalhado com vigor de sertanejo pedindo
pouco manejo, o bode segue sua sina.
E se “Pade Ciço” ensina, tratem bem a natureza!, peço com delicadeza,
respeite, não incomode, Sua Majestade, o Bode, merece chamar-se Alteza!
III
Salve o caprino guerreiro! Eita bichinho astuto! amigo
bom do matuto,vagante montês, garboso.
O seu prato é saboroso que nem carne de gazela A
cabra, sua donzela, vive toda envaidecida,
ao bode foi prometida no aprisco do pai dela.
IV
Ao bode, pai de chiqueiro, é reservado um harém, pela
vontade que tem, pela vontade do dono.
Sentado, posto num trono, o Bode reprodutor, dando
uma de doutor, examinando as cabras,
monta as gordas, e monta as magras, pra lucro do agricultor.
V
O Bode é patrimônio de toda humanidade, e desde ’Antigüidade dele se faz escultura.
E na caprinocultura, é animal estudado. Tem bode
pronunciado, valendo “corpo” em inglês,
imaginem então vocês, doutor em Bode, formado.
VI
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Nead Especial 2
Já houve uma eleição pra eleger vereador, que um bode
preto ganhou no interior de Pernambuco.
Acharam o povo maluco, porque o Bode venceu, mas, a posse não se deu,
um homem foi empossado, pensem no bicho honrado que o município perdeu!
VII
Sai dos confins do sertão, as raças valorizadas, para as
festas animadas das feiras dos animais.
E no meio dos currais, se escolhe o preferido, que está ali pra ser vendido,
Se é caro, compra quem pode, um bom exemplar de bode, vale o dinheiro investido.
VIII
Se o retrato do sertão um dia fosse tirado, de um modo
que revelado mostrasse com exatidão
a vida lá no sertão, tão dura no seu trabalho, digo a verdade, não falho,
que a tal fotografia, com certeza exibiria um bode usando chocalho.
O histórico dos 35 anos do Incra pode se fazer representar em 3.500 anos de história,
desde a Antiguidade, numa simbologia, na qual sugerimos sete assentamentos
como sendo As sete maravilhas do mundo antigo na SR-19 – RN.
Consideramos como os mais célebres, assentamentos do Rio Grande do Norte,
sobre os quais paira a mística de se contarem feitos ou características peculiares
dignas de pesquisa arqueológica e da curiosidade turística. Temos uma crônica
a respeito, cujo tema e espaço, infelizmente não cabem aqui, mas, fazemos um
convite aos que lerem este documento, para venham conhecer no RN.
…A estátua de Zeus – PA Hipólito – Mossoró; o Mausoléu de Helicarnasso – PA
Arapuá – Ipanguaçu; o Templo de Artemis – deusa da caça – PA Casinhas – Japi;
As pirâmides de Gizé – Pirâmides do Egito – PA Serrote/Serra Branca – São Rafael;
o Farol de Alexandria – PA Frei Damião – na estrada de Mossoró – Apodi; o Colosso
de Rodhes – PA Zabelê – Touros e Os jardins suspensos da Babilônia – PA RosadoAreia Branca.
A vida dura do acampado, que sob ação benéfica do Incra evolui para assentado, pode ser retratada na figura do seu principal animal de estimação – o
cachorro, fiel companheiro nas agruras dessa evolução…
Memória Incra 35 anos
Vida de cachorro de assentamento
Tentei me comunicar, ao longo de tantos anos, mas, na
língua dos humanos eu nunca pude falar.
Posso até sinalizar usando o som do latido, com isto, me faço ouvido,
mas, não me faço entender. Sofri com meu padecer, por não ser compreendido.
Mas, minha sorte chegou, acabando a minha agonia. Foi
quando num belo dia, que me deu contentamento,
surgiu no assentamento, ouvindo sons e sinais, conversando com animais,
e entendendo minha mensagem, um tradutor com bagagem de sentir até meus ais!
E é por seu intermédio que aqui falo o que sinto. Conto a
verdade, não minto. Pois bicho num esconde nada.
Não levem na cachorrada, se a estas letras recorro. Senão com desgosto eu morro
sem contar a minha estória. Seja posto como glória alguém falar por cachorro.
Sempre fui cachorro pobre, desde os tempos de criança.
Guardo ainda na lembrança o dia em que fui parido.
Minha mãe deu um gemido depois que nasceram três. Imaginem só vocês,
que depois que veio o quarto, veio quinto e neste parto, eu fui o número seis!
A ninhada se espalhou, como papel solto ao vento. Vim parar
num assentamento, mas antes fui acampado.
Qualquer cachorro criado por trabalhador sem-terra, seja no campo ou na serra,
no meio da rua ou na mata, um cachorro vira-lata tem que estar pronto pra guerra.
Quando vim numa mudança trazido numa carroça, fui com
meu dono pra roça, sem comer nada, em jejum.
Só me deram jerimum, as cinco e meia da tarde. Pimenta, dizem, não arde,
nos olhos que não são nossos. Mesmo distante dos ossos, eu comi, sem muito alarde.
Um dia aqui no projeto algumas cestas trouxeram, mas
nada delas me deram que abrisse meu apetite.
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Nead Especial 2
Eu peguei até bronquite por causa de minha fraqueza. Eu sei que minha magreza
me faz esperto no mato, mas eu queria, de fato, viver gordo, na riqueza!
No sertão, ao meio dia, o sol esquenta a caatinga. A mãe
dos outros não xinga, cachorro de apartamento.
Mas quem for de assentamento, como eu, não se contém, logo reclama pra alguém,
mandando pra’aquele canto. Confesso que não sou santo, porém, não mordo ninguém.
Um dia eu vi uma cena passada numa novela, na qual
tinha uma cadela mimada pela madame.
Eu tava comendo inhame, enquanto ela, filé. Cobrei do meu dono Zé,
reclamando o mesmo trato. Mesmo sabendo que o prato nem ele sabe o que é.
Cachorro rico é dengoso e também cheio de frescura.
Nunca comeu tanajura nem nunca caçou tatu.
Come carne de zebu e até ração importada e não conhece a jornada
de um cão de assentado, vendo o seu dono agarrado sempre no cabo da enxada.
Agradeço ao tradutor que transmitiu meu enredo – é
homem que não tem medo de rirem de sua cara.
Não é qualquer um que encara a missão de um tal recado. Seja o tal condecorado
Com uma medalha “Cão Nobre!” pelo que fez por um pobre cachorro de assentado!
A criação do programa empreendedores sociais pelo
Incra em 2000 e a nossa participação.
Criado o programa, o Incra realizou o concurso e treinou os servidores aprovados,
colocando-os em ação no período de 2001 a 2003. Estivemos entre os 17 classificados no Estado do RN. O programa serviu para dar assistência aos assentados,
cujo modelo era de extensão rural do órgão, havendo, ao nosso ver, apresentado
resultados satisfatórios, tanto para o Incra quanto, especialmente para os assentados. A nossa participação em tal atividade, na condição de um dos quinhentos
atuantes em nome do órgão no território nacional, trabalhando em duas regiões
Memória Incra 35 anos
do médio e alto oeste do Rio Grande do Norte, foi para nós motivo de orgulho.
Esse orgulho deixamos expresso na composição da letra e música do hino:
Hino dos empreendedores sociais
I
Uni-vos já! empreendedores sociais
Porque pra ser capaz, bastante é só querer fazer
Segui o lema que encerra a missão primaz:
Trazer ao campo a paz, e ao assentado o bem viver!
É o Incra quem ordena a vossa lida
Ter a missão cumprida será vosso galardão
Sereis empreendedores!
Sereis executores da reforma agrária em nossa nação!
II
Empreendedores sociais vossa batalha
É o campo e quem trabalha Deus ajuda e faz vencer!
É nos assentamentos vossa luta por quem trava disputa para lá sobreviver!
Se fores fortes, sereis multiplicadores e articuladores entre as classes envolvidas.
Seja na agricultura, seja na pecuária, a reforma agrária espera por vocês!
Incra – Uma bela história feita em belas paisagens – Uma das mais belas vistas
entre os Assentamentos do Incra, no RN, quiçá no Brasil, pode ser considerada
a que se vislumbra no PA Rosado, em Areia Branca. Eis o nosso registro poético
que usamos como um palco final de comemoração deste documentário, no momento histórico em que o ministro do Desenvolvimento Agrário, o presidente do
Incra, superintendentes de todas as unidades da Federação, agrônomos, técnicos,
servidores em geral e aposentados do órgão, presidentes de sindicatos rurais,
assentados, representantes de cooperativas agrícolas, empresas de assistência
técnica e as demais ligadas à reforma agrária celebram o Incra, em seus 35 anos.
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Nead Especial 2
Monumento rosado
Luzes solenes irrompem dos umbrais do firmamento.
Mormente o sol, descortinado ao breu da matutina.
Que a face ondulada do mar espumado bolina.
E faz do matiz rosado da falésia, um monumento.
Ao pino do sopé emoldurado pelo vento escorraceiro,
É visto no horizonte, o vasto e morno mar azulado.
E o fogaréu de areia traz a tona um tom encarnado.
Que se funde ao cinza esverdeado de um coqueiro.
A brisa fresca, em assobio, beija a onda mansa.
E o eremita transeunte a escuta como um canto
Que corre todo o oráculo com tamanho encanto
Que a mata, num farfalho, incontinente, dança!
Quisera poder sempre de regresso, ver o céu rosado!
Quisera, em pé descalço, novamente descer a ladeira!
E andar, surrando as pernas, sem sentir canseira.
Somente por saber que na marola serei refrescado! Um novo projeto de desenvolvimento para o país passa pela transformação do
meio rural em um espaço com qualidade de vida, acesso a direitos, sustentabilidade social e ambiental.
Ampliar e qualificar as ações de reforma agrária, as políticas de fortalecimento
da agricultura familiar, de promoção da igualdade e do etno-desenvolvimento
das comunidades rurais tradicionais. Esses são os desafios que orientam as ações
do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead), órgão do Ministério do Desenvolvimento Agrário (mda) voltado para a produção e a difusão
de conhecimento que subsidia as políticas de desenvolvimento rural.
Trata-se de um espaço de reflexão, divulgação e articulação institucional
com diferentes centros de produção de conhecimento sobre o meio rural, nacionais e internacionais, como núcleos universitários, instituições de pesquisa,
organizações não-governamentais, centros de movimentos sociais, agências
de cooperação.
Em parceria com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura
(iica), o Nead desenvolve um projeto de cooperação técnica intitulado “Apoio às
Políticas e à Participação Social no Desenvolvimento Rural Sustentável,” que abrange
um conjunto diversificado de ações de pesquisa, intercâmbio e difusão.
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Nead Especial 2
Eixos articuladores
• Construção de uma rede rural de cooperação técnica e científica para o desen•
•
•
•
•
volvimento
Democratização ao acesso às informações e ampliação do reconhecimento
social da reforma agrária e da agricultura familiar
O Nead busca também
Estimular o processo de autonomia social
Debater a promoção da igualdade
Analisar os impactos dos acordos comerciais
Difundir a diversidade cultural dos diversos segmentos rurais
Projeto editorial
O projeto editorial do Nead abrange publicações das séries Estudos Nead, Nead
Debate, Nead Especial e Nead Experiências, o Portal Nead e o boletim Nead
Notícias Agrárias.
Publicações
Reúne estudos elaborados pelo Nead , por outros órgãos do
mda e por organizações parceiras sobre variados aspectos
relacionados ao desenvolvimento rural.
Inclui coletâneas, traduções, reimpressões, textos clássicos,
compêndios, anais de congressos e seminários.
Apresenta temas atuais relacionados ao desenvolvimento
rural que estão na agenda dos diferentes atores sociais
ou que estão ainda pouco divulgados.
Difunde experiências e iniciativas de desenvolvimento
rural a partir de textos dos próprios protagonistas.
Memória Incra 35 anos
Portal
Um grande volume de dados é atualizado diariamente na página eletrônica www.
nead.org.br, estabelecendo, assim, um canal de comunicação entre os vários setores interessados na temática rural. Todas as informações coletadas convergem
para o Portal NEAD e são difundidas por meio de diferentes serviços.
A difusão de informações sobre o meio rural conta com uma biblioteca virtual
temática integrada ao acervo de diversas instituições parceiras. Um catálogo on line
também está disponível no Portal para consulta de textos, estudos, pesquisas, artigos
e outros documentos relevantes no debate nacional e internacional.
Boletim
Para fortalecer o fluxo de informações entre os diversos setores que atuam no meio
rural, o NEAD publica semanalmente o boletim Nead Notícias Agrárias. O informativo é distribuído para mais de dez mil usuários, entre pesquisadores, professores,
estudantes, universidades, centros de pesquisa, organizações governamentais e
não-governamentais, movimentos sociais e sindicais, organismos internacionais
e órgãos de imprensa.
Enviado todas as sextas-feiras, o boletim traz notícias atualizadas sobre estudos
e pesquisas, políticas de desenvolvimento rural, entrevistas, experiên­cias, acompanhamento do trabalho legislativo, cobertura de eventos, além de dicas e sugestões
de textos para fomentar o debate sobre o mundo rural.
Visite o Portal www.nead.org.br
Telefone: (61) 3328 8661
E-mail: [email protected]
Endereço: SCN, Quadra 1, Bloco C, Ed. Brasília Trade Center, 5o andar, Sala 506
Brasília/DF CEP 70711-901
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O texto deste livro foi composto em Myriad Pro e DIN Schablonierschrift,
e impresso sobre papel offset em dezembro de 2006.
Nead Especial
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