1 CENÁRIOS DA MEMÓRIA E IDENTIDADE GOIANA: O CASO DE JARAGUÁ 2 Lúcia Gonçalves de Freitas (Org.) Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte Dulce Madalena Rios Pedroso Daura Rios Pedroso Hamú Cristiane Eunisse Fonseca Maria Lícia dos Santos CENÁRIOS DA MEMÓRIA E IDENTIDADE GOIANA: O CASO DE JARAGUÁ Goiânia, GO 2004 3 7 CONSELHO ACADÊMICO DA UEG – UnU JARAGUÁ Presidente Maria das Graças Langsdorff Coord. Administrativa Iraí Cordeiro Guerra Silva Secretária Acadêmica Márcia Alves Carlos Santos Coords. de Curso Ana Keila Alberto Moreira Marcela Inácia de Souza Silvano Moreira Damasceno Suely da Conceição Pereira Barros Coord. de Pesquisa Lúcia Gonçalves de Freitas Coord. de Extensão Kátia Braga Arruda Coord. de Biblioteca Patrícia Machado de Souza Docentes Adevane da Silva Pinto Ilma Maria Gonçalves Lázara L. da Costa Mendonça Osmar Domingos de Barros Rosa Míria Correia L. Moreira Sandra Fátima S. Araújo Dicentes Adriana Marques de Siqueira Silvia Dias Barbosa Lima GRUPO DE ESTUDOS DE JARAGUÁ: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E IDENTIDADE Líder Lúcia Gonçalves de Freitas Pesquisadores Cristiane Eunisse Fonseca Daura Rios Pedroso Hamú Dulce Madalena Rios Pedroso Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte Maria da Graças Langsdorff Maria Lícia dos Santos Mariângela Ricardo Alves Moreira Marly Aparecida de Souza Suely Ferreira Alunos Ana Paula Pinagé Soares Cristiane Possas de Fonseca Hosana Quintino de Oliveira Ivam Pereira de Morais Lílian Marta Gonçalves Garcia Márcia Andrade Vicente Lucas Rafaela Calixto de Oliveira PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO Pró-Reitor Ricardo Caetano Rezende Assessor do Pró-Reitor Plínio Lázaro Faleiros Naves Coord. Geral de Pesquisa Mirley Luciene dos Santos REITORIA Reitor José Izecias de Oliveira Assessor de Gabinete Adilton José Ferreira Secretário Geral Clodoveu Reis Pereira 4 © 2004 by Lúcia Gonçalves de Freitas Editora da AGEPEL Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira Rua 82, Palácio Pedro Ludovico, Setor Sul. Primeiro Andar. Goiânia – GO CEP: 74033-010 Telefone /Fax 201 5123 Comissão Técnica Editoração Eletrônica Produção de Arte Gráfica e Capa Dados para catalogação ISBN Impresso no Brasil Printed in Brazil 2004 5 Notas da organizadora O presente livro surgiu como resultado dos trabalhos do grupo de pesquisa da UEG Unidade de Jaraguá intitulado ―Grupo de Pesquisa de Jaraguá: Educação, Memória e Identidade‖. O mesmo foi criado em 2003 com o intuito de implementar a área de pesquisa da Unidade, visando prioritariamente a beneficiar o curso de Pedagogia. Dessa forma, a principal área temática deveria ser a educação no município de Jaraguá, pois, assim, as pesquisas desenvolvidas pelo grupo poderiam retornar em forma de benefícios para as próprias comunidades pesquisadas, no caso, as escolas da região, e, obviamente, o curso de Pedagogia da Unidade. Na ocasião, procurou-se reunir pesquisadores que já tivessem alguma experiência acadêmica e cujos trabalhos girassem em torno de um tema comum. Dessa forma, seis professoras foram contatadas para integrar o grupo numa primeira fase. Todas elas eram profissionais que já vinham atuando há algum tempo no ensino superior, algumas dentro da própria UEG, e que possuíam trabalhos de cunho científico. A maioria desses trabalhos eram dissertações de mestrado ou teses de doutorado sobre temas relacionados a Jaraguá já previamente aprovadas por instituições com peso acadêmico como UFG, UCG, USP e UnB. Todos eles versavam sobre questões de cunho histórico e social sobre o município, sendo a memória e a identidade os temas mais recorrentes. Embora os trabalhos estivessem muito mais vinculados ás áreas de história e ciências sociais que á área de educação propriamente, que, afinal, deveria ser o alvo das pesquisas do Grupo, considerou-se que os estudos das seis pesquisadoras reunidas constituiriam um projeto valioso, pois, juntos, formavam uma espécie de compilação da produção científica sobre Jaraguá. Assim, a opção foi estender o campo de investigação do Grupo, que se configurou em torno de duas linhas de pesquisas, uma voltada a aspectos educacionais do município, a qual deve contribuir com trabalhos sobre metodologias pedagógicas e áreas afins, e a outra sobre aspectos histórico-sociais de Jaraguá, á qual devem afiliar-se pesquisadores que se interessam sobre questões como as já mencionadas, memória, identidade etc. Foi dessa forma que a Unidade da UEG de Jaraguá criou seu primeiro Grupo de Pesquisas, propriamente cadastrado no Diretório de Grupos do CNPq, reunindo trabalhos de Educação, Memória e Identidade sobre o município. 6 Uma vez que o Grupo, após um ano de sua criação, encontra-se agora numa nova fase, desenvolvendo inclusive novos projetos, desta vez integrando professores e alunos do curso de Pedagogia da Unidade, a proposta deste livro vem como uma prova da consolidação desse trabalho. Aqui, encontram-se reunidos os textos das seis pesquisadoras que constituíram o Grupo inicialmente com o intuito de dar-lhe uma base acadêmica de peso. Esperamos que esta obra seja o marco inicial de toda uma série de trabalhos acadêmicos sérios e comprometidos dentro de nossa Unidade e que possa servir de exemplo a outras esferas da UEG, como prova de que é possível realizar trabalhos dessa natureza, a despeito de todas as adversidades por que tem que passar uma instituição tão nova como a Universidade do Estado de Goiás. Profa. Lúcia Gonçalves de Freitas. 7 Sobre as autoras Lúcia Gonçalves de Freitas é Coordenadora de Pesquisa da UEG-Jaraguá desde 2003 e professora do curso de Pedagogia da mesma Unidade ainda na época da anterior FAECIHEJA. Também atua em outras unidades da UEG como professora em cursos de especialização. É formada em Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade Federal de Goiás. Possui título de especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade de Educação da mesma instituição de onde também vem seu título de mestra em Letras e Lingüística. Atualmente está cursando o Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade de Brasília no nível de doutorado. [email protected] Cristiane Eunisse Fonseca é professora de Sociologia e História da UEG desde de 1999. Trabalhou na Unidade de Jaraguá no curso de Pedagogia regular. É professora de Atividades Complementares da UEG - Pólos de Trindade e Goiânia e professora de História e Sociologia do Ensino Médio em Goiânia. É graduada e Pós-graduada em Ciências Sociais pela Associação Educativa Evangélica e mestra em História Social e das Idéias pela UnB. Atualmente é também Coordenadora do curso de Psicopedagogia da UEG - UnU Ceres. [email protected] Daura Rios Pedroso Hamú é professora adjunta de Desenho Técnico e de Arquitetura da Faculdade de Artes Visuais e Escola de Engenharia Elétrica da UFG. É Mestra em Gestão do Patrimônio Cultural pela UCG. Integrante do Grupo de Estudos sobre Jaraguá. [email protected] Dulce Madalena Rios Pedroso tem Licenciatura Curta em Estudos Sociais pela Universidade Católica de Goiás e Licenciatura Plena em História pela mesma universidade. Possui duas espacializações, uma em Etnolingüística, pela Universidade Federal de Goiás e outra em Antropologia e Etnologia pela Universidade Católica de Goiás. É Mestra em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás. Atua como professora na Universidade Católica de Goiás, onde também tem desenvolvido vários projetos de pesquisa. [email protected] Maria Lícia dos Santos é professora da Universidade Estadual de Goiás das Unidades de Jaraguá e Ceres, e professora de História e Sociologia da Escola Agrotécnica Federal de Ceres. É graduada em História pela UFG; tem especialização em Metodologia do Ensino Superior pela UEG e é mestra em História Social e das Idéias pela UnB. [email protected] 8 Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte tem Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais, é Mestra em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo, é professora do curso de Sociologia da Universidade Federal de Goiás em Goiânia, onde atua como professora e em grupos de pesquisa. 9 SUMÁRIO 1- IDENTIDADE E TRADIÇÃO EM JARAGUÁ: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte 2- MEMÓRIA DE MIGRAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS ENTRE ÍNDIOS E COLONIZADORES EM GOIÁS NO SÉCULO XIX. Dulce Madalena Rios Pedroso 3- O LUGAR DO PADRE SILVESTRE NA MEMÓRIA DE JARAGUÁ Daura Rios Pedroso Hamú 4- SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA ... REPRESENTAÇÕES DA EXPERIÊNCIA ESCOLAR EM JARAGUÁ (1927/1947) Maria Lícia dos Santos 5- CORONELISMO, MEMÓRIA, IDENTIDADE E IMAGINÁRIO: JARAGUÁ 1920-1940 Cristiane Eunisse Fonseca 6- CONEXÃO JARAGUÁ-DANBURY: IDENTIDADES MIGRANTES Lúcia Gonçalves de Freitas 10 1 IDENTIDADE E TRADIÇÃO EM JARAGUÁ: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte A forma de utilização da terra e o estabelecimento de uma estrutura fundiária influenciam na conformação das estruturas políticas, econômicas e sociais, dando elementos para a análise do povoamento, da constituição da sociedade e do desenvolvimento econômico. Podemos supor uma estreita ligação entre a propriedade da terra, o poder político e a formação da identidade de um povo. Na região de Jaraguá, isto teria sido sedimentado desde os primórdios da instalação do município, no período aurífero, particularmente a partir do esgotamento dos metais preciosos e da ocorrência do processo de ruralização da sociedade. Dessa forma, podemos iniciar a caracterização da identidade de Jaraguá buscando os condicionantes da propriedade da terra na estruturação fundiária que se implanta na região. 1- Antecedentes da estrutura fundiária A estrutura fundiária de Jaraguá começou a se definir ainda no século XVIII, no período mineratório. O arraial que se formou nessa época conseguiu sobreviver ao declínio do ouro. A terra utilizada para desenvolver a pecuária ou a produção agrícola era simplesmente ocupada ou legalizada como sesmaria. Os dados disponíveis sobre a ocupação da terra em Jaraguá, até meados do século XIX, resumem-se aos obtidos através dos ―Registros Paroquiais‖, realizados entre 1856 e 1860. As informações dos imóveis são muito precárias, principalmente quanto às áreas declaradas. A 11 demarcação das terras foi prevista pelo Decreto 1.318, de 1854, com a finalidade de discriminar as terras públicas das propriedades privadas1. Entretanto, as dificuldades para se estabelecer a área precisa dos imóveis eram enormes. Faltavam agrimensores e a medição das terras era um processo muito caro. Como as terras praticamente não tinham valor, não compensava o trabalho de medi-las. As declarações do Registro Paroquial eram fornecidas ao vigário. A Igreja Católica era a única instituição organizada, presente em toda a Província e com estrutura e pessoal para fazer esta anotação. O próprio analfabetismo que prevalecia na época era empecilho para a realização desses registros. Como os padres eram letrados e mantinham contato permanente com as populações, a tarefa de registrar as terras acabou ficando na competência da Igreja. Esse registro, entretanto, não tinha valor oficial, no sentido de conferir o título de propriedade ao declarante. Era apenas uma forma encontrada pelo Império para separar terras públicas das privadas e possibilitar o cumprimento da Lei 601. Na falta de medidas exatas, os marcos de delimitação das propriedades foram acidentes geográficos (rios, montanhas, morros, córregos), marcos físicos como árvores, plantações e até mesmo construções como casas, cercas de fulano, etc. Em Jaraguá, o vigário que fez as anotações para o Registro Paroquial foi o Pe. Silvestre Álvares da Silva. Jaraguá, em meados do século XVIII, fazia parte do município de Goiás, que, à época, incluía 12 paróquias: Santana de Goiás, Nossa Senhora do Rosário da Barra, Nossa Senhora do Pilar de Ouro Fino, São José de Mossâmedes, Rio Bonito, Nossa Senhora da Abadia de Curralinho, São Francisco de Anicuns, São Sebastião do Alemão, Nossa Senhora das Dores do Rio Verde, Santa Rita, Nossa Senhora da Penha de Jaraguá e Nossa Senhora da Penha do Pilar.2 No livro de registro da Paróquia de Nossa Senhora da Penha de Jaraguá foram declaradas 291 propriedades. Segundo o registro, estas propriedades foram adquiridas das seguintes formas: 7 posses, sem data específica; 26 compras; 1 compra e posse (parte); 1 1 Para a regulamentação da estrutura fundiária do Brasil e de Goiás, durante o século XIX , foi estabelecida uma legislação sobre a terra que teve importância não só para aquele período, mas também pela influência que exerceu sobre as políticas voltadas para a terra, mesmo durante o século XX. Em 18 de setembro de 1850 foi promulgada a lei nº 601, que se destinava a regularizar a situação das terras no Brasil. Quatro anos mais tarde esta lei foi regulamentada pelo Decreto nº 1318, de 30 de janeiro de 1854. 2 Citado por ALENCAR, Maria Amélia Garcia de, Estrutura Fundiária em Goiás. Goiânia. GO., Ed. UCG, 1993, p. 65. 12 compra e herança (parte); 2 heranças de posses; 2 sesmarias; 2 doações; e 6 entre outras formas. 230 não esclarecem a forma de aquisição.3 Para viabilizar o Registro Paroquial e ao mesmo tempo possibilitar o aproveitamento de seus dados, foi criada a Repartição Geral das Terras Públicas. A finalidade desse órgão era o estabelecimento de uma burocracia que facilitasse o cumprimento das leis nº 601 (1850) e 1.318 (1854). Para as províncias, foram criadas as Repartições Especiais de Terras Públicas. A centralização de poder, que caracterizou o Segundo Reinado no Brasil, impediu estas Repartições Especiais de funcionarem. A responsabilidade ficou nas mãos do Imperador que, indiretamente, controlava o órgão. Em 1860, a Repartição Geral foi absorvida pela Secretaria do Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.4 A base para o estabelecimento de uma estrutura fundiária para Jaraguá foi dada pelo Registro Paroquial. Os nomes das localidades registradas coincidem com os nomes de muitas fazendas existentes até hoje. Muitos dos declarantes de terras registradas junto à Igreja, constituem antepassados reconhecidos pelos sobrenomes de famílias que detêm ou detiveram terras e poder em Jaraguá. Assim é que o próprio Pe. Silvestre, da família Álvares da Silva, que se transferiu para Jaraguá ainda no século XVIII, aparece com cinco diferentes glebas de terra registradas em seu nome. A família Ribeiro de Freitas, que havia se transferido de Traíras para Jaraguá na segunda metade do século XIX, registrou quatro glebas, sendo duas em nome do Padre Manoel Ribeiro de Freitas. Diógenes Gomes Pereira da Silva teve uma gleba registrada. Sua família participou nos círculos de poder durante os séculos XIX e XX. Ele próprio foi Presidente da Câmara de Vereadores de Jaraguá. Ele e seus descendentes, tradicionalmente foram donos de Cartório no município. Francisco Policarpo de Amorim teve duas glebas registradas em seu nome. Ele foi Presidente da Câmara de Vereadores, no final do século XIX e Vice-Intendente de Jaraguá em 1915. Foram registradas duas glebas de terra em nome de Antonio Félix de Souza. A família Félix de Souza teve participação política em Jaraguá 3 Arquivo do Patrimônio Público Imobiliário da Procuradoria Geral de Goiás. Livro nº 8: Registro Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Penha da Vila de Jaraguá. Abertura em 20 de agosto de 1856 e fechamento em 2 de abril de 1860. 4 Sobre o assunto, ver: ALENCAR, Maria Amélia. Op. cit., pp. 31 e 45, nota 28. 13 durante os séculos XIX e XX. Um de seus descendentes, Mário Félix de Souza, foi Intendente de Jaraguá em 1915.5 Antonio Manoel de Barros foi o primeiro a registrar terras na localidade de Calção de Couro, pertencente a Jaraguá, que mais tarde se tornaria município de Goianésia. Este registro foi feito em 1857, abrangendo uma área correspondente a 5.000 alqueires goianos.6 O fato de essas terras terem sido registradas pela Igreja fez com que essas anotações acabassem adquirindo legitimidade frente à população. No caso específico de Jaraguá, em primeiro lugar devido ao respeito e à credibilidade que a população conferia ao padre Silvestre, que foi o encarregado do Registro Paroquial. Ora, a Igreja era a instituição com maior credibilidade no seio da sociedade. Pelo fato dessa anotação ter sido feita pela Igreja, conferiu à mesma uma legitimidade perante a população. Isso resultou na aceitação do registro como documento legal. Por outro lado, os sacerdotes também eram interessados na validade do documento já que registraram glebas de terra em seu nome e no de suas famílias. Não foram encontradas evidências de que essas terras teriam sido imediatamente legalizadas, a partir da vigência das leis nº 28, de 1893 e 134, de 1897. 7 Como a regularização fundiária exigia a medição das terras, tudo indica que as pessoas com mais recursos foram as que conseguiram registrar suas terras nos cartórios locais. No Cartório de Registro Imobiliário de Jaraguá, o livro mais antigo, específico para essa finalidade, foi aberto em 1911 e encerrado em 1920.8 Antes dele, anotações de terras e escravos foram feitas pelo 1º Tabelionato de Notas. Não constituía livro de registros, com 5 Informações sobre a família Félix de Souza foram retiradas de entrevistas realizadas com Joaquim Militão, em 23/05/97; Manoel de Amorim Félix de Souza, em 23/02/97 e com Dª Iracema Félix de Souza Longo, em 17/03/97. 6 IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro, IBGE, Vol. XXXVI, 1958. No Cartório de Família, Sucessões e 1º do Cível de Jaraguá, há a notificação do Inventário de Antonio Manuel de Barros. Inventário nº 163. Notificação à folha 11. Livro do Tombo para registro dos feitos, que correm pelo Cartório. Escrivão de Órphãos do Termo e Comarca de Jaraguá. Abertura do livro: 29 de julho de 1943. É assinado pelo juiz de Direito Elísio Taveira. 7 Especificamente para Goiás foi estabelecida a Lei nº 28, de 19 de julho de 1893, que versava sobre vendas de terras no Estado. A Lei nº 134, de 23 de junho de 1893, sobre terras devolutas, veio substituir a de nº 28. 8 Trata-se do Livro de Inscripção de hypothecas legais nº 2 e Transcripção de Immóveis nº 3. Esse livro contém, em uma única encadernação, os livros 2 e 3. Não há, no Cartório, o nº 1. O Cartório, atualmente, é denominado Cartório de Registro Imobiliário – Títulos e Documentos – Oficial de Protestos. 14 validade legal. Entretanto, nele foram anotadas transações de terras desde os anos 60 do século XIX. O 1º livro do 1º Tabelionato de Notas foi assinado pelo juiz Antonio Félix de Souza e aberto em 20 de maio de 1834. Nele foram encontradas anotações de compra, venda e alforria de escravos. O livro 2 iniciou-se em 1856. Nesse livro há o primeiro registro de transação de terras, datado de 1865. Observa-se, pela data em que as anotações de terra aparecem, que elas só foram feitas depois da exigência do Registro Paroquial. Não foram encontrados registros de terras em cartórios antes de 1865, mesmo existindo o 1º Tabelionato desde 1834. Esse fato mostra que a preocupação com a legalização das terras só ocorreu depois de aprovada a Lei de Terras e a sua regulamentação em 1854. Mesmo com as tentativas feitas pelo Império, de só permitir o usufruto da terra pela compra, a forma de aquisição das terras nas regiões mais antigas foi, inicialmente, a ocupação ou posse. Posteriormente, a divisão por herança e a venda. Terras devolutas, durante o século XIX, foram sistematicamente ocupadas através do apossamento. Esta foi a forma normal de abertura das grandes propriedades em Goiás. Uma vez apossadas as terras, seus ocupantes utilizavam-se de expedientes diversos a fim de legalizá-las. Na região de Jaraguá, o isolamento imposto pela falta de alternativas econômicas, durante o século XIX, restringia a produção agropecuária ao consumo local. A vinculação com um mercado externo era fraca. No final do século, o movimento migratório levou tropeiros para Jaraguá. Oriundos da antiga região da Farinha Podre9, em Minas Gerais, no tocante à terra, os tropeiros já compartilhavam de uma visão mais mercantilizada. As terras, em Jaraguá, não tinham valor, o que facilitava a simples ocupação e a compra por preços baixos. Nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, grandes glebas foram apropriadas pelas famílias Castro Ribeiro e Ferreira Rios. Através do desenvolvimento agropecuário, sobretudo a partir do início do século XX, Jaraguá passou a integrar, ainda que de maneira tímida, um mercado mais amplo. O crescimento econômico da agropecuária não representou grandes alterações nos setores secundário e terciário da economia. O comércio restringia-se à venda do gado e de alguns produtos agrícolas e à compra de artigos que não eram produzidos localmente. O setor 9 A região da Farinha Podre corresponde, atualmente, ao chamado Triângulo Mineiro, cujas terras já pertenceram à Goiás. 15 secundário, caracterizado pela transformação da matéria-prima em produto acabado, era constituído de uma produção artesanal, voltada para o consumo local. A produção da rapadura, como subproduto da cana-de-açúcar, a produção de farinha de mandioca ou de milho e o beneficiamento de folhas de fumo, para comercialização, eram os poucos produtos que passavam por rudimentos de transformação, antes de serem exportados de Jaraguá para outras localidades.10 2- Concentração de Poder em Jaraguá Goiás foi palco da atuação de grupos oligárquicos, constituídos com base em famílias patriarcais. A ascensão dos coronéis locais, disseminados pelo interior de Goiás, ajuda na compreensão das estruturas políticas que se formaram no Estado. O cenário político, econômico e social que se delineou em Jaraguá a partir do início do século XX foi resultado das movimentações que tiveram lugar nos séculos XVIII e XIX. As marcas do período mineratório ficaram registradas não apenas nas edificações mas na mentalidade da população. As primeiras Igrejas e a religiosidade da população, por exemplo, foram forjadas ainda junto das minas. Goiás foi habitado, no início do seu processo de povoamento, principalmente por portugueses (emboabas) e paulistas, por escravos negros e por índios, fartamente referidos na documentação de época. 11 A elite que ocupou o poder em Jaraguá, em parte constituiu-se nos idos da mineração e em parte foi resultante das migrações do século XIX. Elementos políticos, econômicos, sociais e culturais podem ser detectados na fase aurífera dessas sociedades. Considero que a base da sociedade goiana está assentada, justamente, no período mineratório. O ouro iniciou o povoamento de Goiás. Os mapas das minas do século XVIII estampam núcleos de povoamento desde o extremo sul até o extremo norte. Apesar da instabilidade das populações que migravam constantemente dentro da própria 10 11 Idem. Referências aos indígenas são encontradas em documentos diversos, relatos, cartas régias e também são conservados através da memória popular. Silva e Souza refere-se a oito grupos indígenas que teriam vivido em Goiás, à época da mineração: Caiapós, Xerente, Goyazes, Crixás, Araés, Canoeiros, Apinagés, Capepuxis. SILVA E SOUZA, Luiz Antonio da. Memória sobre o Descobrimento, Governo, População e Coisas mais Notáveis da Capitania de Goiás. Goiânia, Ed. Oriente, 1978. pp. 126/7. A reprodução do texto constitui o anexo nº 4, no final do trabalho. Citado em PALACIN, Luis, GARCIA, Ledonias Franco e AMADO, Janaína, op. cit. pp. 13-15. 16 Capitania, as populações atraídas pelo ouro foram as que formaram o embasamento do povo goiano. A assimilação de elementos da cultura negra e indígena foi um processo natural já que eles estavam na base da própria sobrevivência. Elementos indígenas e negros foram naturalmente formadores de um processo cultural. Alimentação, vocábulos, concepções de mundo foram simplesmente disseminados na população dos séculos XVIII e XIX. A herança cultural, tanto negra como indígena proliferou por todos os segmentos da sociedade. A influência mais pontuada foi a do português. Ocupando as mais elevadas posições em um sistema de hierarquia social, era portador de uma cultura mais elaborada. Geralmente letrado, iniciado nas ciências, trazia uma bagagem cultural que não era facilmente assimilada por todos os componentes da sociedade. A cultura do europeu, tomado no sentido de seus modos de fazer, sentir e pensar, ficou mais restrita às camadas mais ricas da sociedade. As estruturas burocráticas implantadas em Goiás foram herdadas de Portugal, o que implicou também na implantação de uma estrutura de classes, apoiada em valores vigentes na Metrópole. Mesmo reconhecendo que a base das classes não é dada por valores, regras, normas, mas por um pertencimento efetivo em um processo de produção, considero que um sistema de status, que por sua vez se originara das classes sociais, foi transplantado para o Brasil. O pertencimento dos governadores a uma nobreza portuguesa influenciou na construção dos modelos de status em Goiás, o que, de certa forma perdurou, mesmo com a decadência da produção aurífera. Os laivos de requinte que alguns historiadores relatam são um pouco a expressão do ―ser nobre‖. E foram conservados pela população, se bem que restritos a poucas camadas da sociedade. As elites que se constituíram em Jaraguá, no período mineratório, priorizaram alguns elementos como essenciais para que o indivíduo participasse dos círculos de poder: a ascendência portuguesa; a vinculação à Religião Católica, enquanto instituição e o saber; a erudição. Esses elementos se impuseram como diferenciadores em um processo de estratificação social. O século XIX deu continuidade ao processo de construção da sociedade goiana e, por extensão, da jaragüense. Procurando a sobrevivência, uma vez esgotado o ouro, a população 17 desenvolveu uma incipiente atividade agrícola e pecuária, que garantiu a permanência e o aumento demográfico. Jaraguá situou-se entre os municípios que tiveram maior incremento populacional entre os anos de 1872 e 1890. Vejamos os dados: Morrinhos: 207,3%, Pouso Alto (atual Piracanjuba): 201,6%, Curralinho (atual Itaberaí): 85,1%, Rio Verde: 72,4%, Entre Rios (atual Ipameri): 66,2%, Jataí: 62,5% e Jaraguá: 53,3%.12 Podemos enquadrá-lo como um antigo centro minerador que sobreviveu, diferenciando-se de tantos outros que desapareceram completamente. Podemos constatar, na História de Jaraguá, durante o século XIX, duas correntes migratórias que ajudaram a engrossar a população daquela localidade e formaram parte significativa da elite que deteve o poder durante todo o século XX. Uma primeira oriunda de antigos centros mineradores os quais, entrando em decadência, não conseguiram se recuperar. Estabeleceu-se em dois momentos: em fins do século XVIII e em meados do século XIX. Uma segunda corrente migratória originária das regiões de povoamento mais recente, situadas ao sul, sudeste e sudoeste de Goiás ou do Triângulo Mineiro, em Minas Gerais, teve lugar nas últimas décadas do século XIX. Através de casamentos, mesclaram-se famílias oriundas da elite local com elementos que fizeram parte dessas correntes migratórias e/ou com seus descendentes. A análise dos inventários de diversas famílias (e a seleção dos mais significativos, em termos de acumulação de bens) permitiu a elaboração de uma listagem das famílias que conseguiram se sobressair economicamente. Por outro lado, a partir de entrevistas, conseguimos levantar, através da memória popular, indicações de pessoas ou famílias que exercem o poder na região. Cruzando as duas informações, traçamos um perfil das famílias e/ou indivíduos que tiveram poder econômico e exerceram influência política na vida da localidade. A transferência entre antigos centros mineradores foi procedimento comum já que alguns arraiais sobreviveram e outros acabaram por completo. Documentos mostram que teve significação para Jaraguá, a vinda de pessoas oriundas da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Traíras. Os Álvares da Silva eram originários daquele antigo centro minerador. 12 Fonte: FRANÇA, M. de S. Povoamento do Sul de Goiás: 1872-1900; estudo da dinâmica da ocupação espacial. Goiânia, UFG, mimeografado p. 89. Citado por ALENCAR, M. Amélia Garcia de Estrutura Fundiária de Goiás: Consolidação e Mudanças (1850-1910). Goiânia, Ed. UCG, 1993, p. 52. 18 O Padre Silvestre transferiu-se para Jaraguá no final do século XVIII.13 Nasceu no arraial de Cocal, filial da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Traíras, localizado ao norte de Goiás, em 1773. Filho do Capitão Manuel Álvares da Silva e de D. Francisca Machado Ferreira. Era filho ilegítimo e, posteriormente, foi reconhecido pelo pai.14 Foi conduzido por este a Jaraguá, ainda no século XVIII. Preparou-se para o sacerdócio no Rio de Janeiro e voltou a Jaraguá onde trabalhou ininterruptamente desde o início do século XIX até próximo à sua morte que ocorreu em 1864. Exerceu uma influência decisiva sobre os habitantes de Jaraguá, o que pode ser percebido pela religiosidade do jaragüense, até meados do século XX. Os relatos sobre ele tratam-no como uma pessoa inteligente e culta. Saint-Hilaire hospedou-se em sua casa em 1819, e fez elogio ao seu preparo intelectual. 15 Entre 1805 e 1834, o padre Silvestre assinou as certidões de batismo e de óbitos como capelão. A partir de 1834 passa a assinar como vigário. Em 1822 foi eleito deputado constituinte pela Província de Goiás. Seguiu para o Rio de Janeiro, colocando-se ao lado de Álvaro José Xavier, José Rodrigues Jardim, Inácio Soares de Bulhões, Padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury e outras figuras da política goiana. Retornou a Goiás em 1824, reassumindo, em Jaraguá, as suas funções junto à população. 13 As pesquisas que resgataram a pessoa do Padre Silvestre e a sua importância para Jaraguá foram realizadas primeiramente por Joaquim Militão, morador de Jaraguá . Posteriormente outros estudos foram desenvolvidos por Dulce Madalena Pedroso e por Fabiano de Castro. Maria Helena Romacheli publicou, recentemente, um livro sobre Jaraguá que, segundo ela, foi fruto de 20 anos de pesquisas. Este também resgata a figura do Padre Silvestre. Trata-se do livro: ROMACHELI, Maria Helena de Amorim. História de Jaraguá. Goiânia, Ed. Kelps, 1998. Foram encontradas assinaturas do Pe. Silvestre em todos os Registros Paroquiais realizados em Jaraguá entre 1856 e 1860. Arquivo do Patrimônio Público Imobiliário da Procuradoria Geral de Goiás. Registro Paroquial da Paróquia de Nossa Senhora da Penha da Vila de Jaraguá, livro nº 8. Abertura em 20 de agosto de 1856 e fechamento em 2 de abril de 1860. 14 ―Eram o Padre Manoel Álvares da Silva e seus irmãos, segundo o maior genealogista que Goiás já teve até o presente – Jarbas Jayme – filhos ilegítimos do português Manuel Álvares da Silva e de sua escrava, negra da nação Mina, Francisca Machado. O português, porém, originário da freguesia de Alvarenga, arcebispado de Braga, residente em Cocal, onde lhe nasceram os filhos mulatos lá pelos idos de 1770, cuidou da educação dos filhos, dois deles formados padres, o Manoel, que recebeu Pohl em Traíras e o Padre Silvestre Álvares da Silva, também mulato, vigário nessa época do arraial de Jaraguá, que (...) ali recebeu o francês Auguste de SaintHilaire... [nesse mesmo ano de 1819]‖ BERTRAN, Paulo, História de Niquelândia. Do Distrito do Tocantins ao Lago de Serra da Mesa. Brasília, Verano Editora, 1998, p. 88. 15 ―Eu já tinha ouvido falar dele no Rio de Janeiro, onde era conhecido por seu pendor para Matemática. Fizera seus estudos nessa cidade e, além de sua ciência favorita, aprendera um pouco de Grego e Filosofia. Sabia também Francês e tinha em sua biblioteca, alguns livros de nossos autores.‖ SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1779-1853) Viagem à província de Goiás. Tradução de Regina Regis Junqueira. Apresentação de Mário Guimarães Ferri, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São Paulo, Ed. da USP, 1975.p. 43. 19 Na avaliação de um estudioso sobre Jaraguá, Joaquim Militão, o Padre Silvestre teria exercido o comando político e social de Jaraguá até à sua morte.16 O padre Silvestre não deixou descendentes e nem foram encontrados documentos que tratam de algum envolvimento seu com mulheres, diferentemente do comportamento de vários padres que o sucederam, em Jaraguá. Esse fato talvez possa ser traduzido em uma dedicação maior à causa religiosa. O padre Manoel Álvares da Silva era irmão do Padre Silvestre. Não encontrei evidências de que ele tivesse se transferido para Jaraguá para exercer a função de sacerdote. Talvez tenha se mudado para lá, já mais idoso e permanecido anônimo. Seus pais, no início do século XIX viviam em Jaraguá com o Pe. Silvestre. No início da década de 40 do século XIX, transferiu-se para Jaraguá, também oriunda de Traíras, uma grande família que viria a ter uma participação política significativa na vida daquela cidade: os Ribeiro de Freitas. Eram de origem portuguesa, pertencentes às camadas brancas e escravocratas da sociedade. A família migrou seguindo o Padre Manoel Ribeiro de Freitas Machado. Deslocaram para Jaraguá toda a escravaria que lhes restara do tempo da mineração. 17A saída dessas famílias de Traíras agravou a situação de decadência em que ela se encontrava. Pela Lei Provincial n.º 506 de 23 de julho de 1863, foi Traíras, incorporada ao município de São José do Tocantins.18 Presume-se que a família Ribeiro de Freitas chegou a Jaraguá, mais ou menos em 1840. O primeiro registro de batismo assinado pelo Padre Manuel Ribeiro de Freitas, como reverendo coadjutor do Padre Silvestre, data de 25 de outubro de 1841.19 Como ele já exercia o sacerdócio em Traíras, conforme atesta Paulo Bertran, deve ter iniciado suas funções religiosas logo que chegou a Jaraguá. O Padre Manuel Ribeiro levou consigo muitos parentes para Jaraguá e um grande número de escravos. Além disso, ele próprio constituiu família e deixou uma grande 16 Entrevista concedida por Joaquim Militão, em 23/05/97. ―Mais tarde encontramos como vigário (1819), o Padre Manoel Álvares da Silva [irmão do padre Silvestre] e como seu coadjutor o Padre Manuel Ribeiro de Freitas...―Esses padres, verdadeiros sustentáculos da comunidade de Traíras (como nô-lo atesta o Dr. Pohl), mudaram-se depois para Jaraguá, levando consigo grande parte dos moradores; entre os quais os Álvares e os Freitas, donos desse pedaço do mundo, até a chegada dos Castro e Rios, em fins do século XIX.‖BERTRAN, Paulo. História de Niquelândia... p. 68. 18 Idem. p. 69. 19 Documento do Arquivo Paroquial, conservado por Joaquim Militão. Registro de Batismo. Livro B-8. 17 20 descendência. Apoderaram-se de terras na região e passaram a exercer influência naquela localidade.20 A família Freitas passou a fazer parte das camadas dominantes desde que se instalou em Jaraguá.21 Durante todo o século XX, seus descendentes disputaram o poder naquela localidade. A transferência de um antigo centro de mineração que decaía para outro que conseguia sobreviver, não representava mudanças significativas nas concepções de mundo e nas expectativas com relação à vida, pois as populações das duas localidades se equiparavam. Nesse sentido, os antigos sonhos de riqueza, as lendas acerca do ouro certamente foram reforçados na população que chegava e na que acolhia. Era a troca dos sonhos, o compartilhar das lendas, uma consciência coletiva, forjada nos idos da mineração e compartilhada pela população desses centros mineradores. Se essa corrente migratória representou para os habitantes de Jaraguá e os que chegaram, a possibilidade de uma vivência cultural intensa, não significou a aquisição de elementos novos, alheios à sua cultura. As origens da população, de um e do outro lugar, eram semelhantes. Certamente as experiências de vida, devido à atividade econômica comum que predominou nas duas localidades, se equiparavam. No final do século XIX, transferiram-se para Jaraguá, tropeiros, oriundos de Minas Gerais, principalmente de Uberaba. As correntes migratórias do final do século XIX tiveram uma origem diversa das anteriores. Foram oriundas da região da antiga Farinha Podre, quando tropeiros chegam a Jaraguá, buscando terras para expandir a criação de gado. 20 Foram encontradas quatro glebas em nome da família Ribeiro de Freitas: propriedade Capão e propriedade Raizama, ambas de Antonio de Freitas Machado; Tapera Bernardo Lemes e uma chácara, ambas pertencentes a Manoel Ribeiro de Freitas. Registros Paroquiais da Paróquia de N. S. da Penha de Jaraguá., Livro nº 8. 21 O inventário de Antonio Ribeiro de Freitas, mostra que ele deixou, entre outros bens, imóveis, gado, ouro e numerosas mercadorias para comercialização como: peças de tecidos, fazendas de cores e padronagens diversas, ferragens (argolas, freios para animal, ganchos de metal), estribos de prata, chumbo, xícaras, utensílios de cobre, etc. Tudo indica que também era comerciante. Deixou numerosa descendência, destacando-se Baltazar de Freitas, que conduziu uma facção política em Jaraguá, até meados dos anos 30, quando faleceu. Fonte: Inventário de Antonio Ribeiro de Freitas, datado de 1º de dezembro de 1875. Juízo de Órphãos, Villa de Jaraguá. Inventariante: a viúva Pacífica Soares de Camargo Freitas. O processo não é numerado e está arquivado no Cartório de Família, Sucessões e 1º do Cível, de Jaraguá. 21 Tendo ainda em suas concepções, a valorização da riqueza aurífera, a população de Jaraguá via com desprezo o trabalho desses tropeiros.22 Como herança dos idos da mineração, a agricultura e a pecuária eram encaradas como atividades de pouco prestígio. Entretanto, esses migrantes oriundos de Minas Gerais, trouxeram uma mentalidade um pouco diferente da que prevalecia nessas antigas regiões mineradoras. Provenientes de áreas que mantinham uma articulação maior com os centros dinâmicos da economia, tinham uma visão diferente a respeito do trabalho na lavoura e na pecuária. Dentre os que migraram, um constituiu-se em elemento formador de uma família que, mais tarde, conquistou o poder econômico e político em Jaraguá. Chamava-se Antônio de Castro Ribeiro, que deve ter chegado a Jaraguá entre 1870 e 1875, contraindo núpcias com D. Josefa Gomes Pereira da Silva23. O primeiro documento encontrado, referente a Antonio de Castro Ribeiro, foi a certidão de nascimento de seu filho Diógenes, registrada em 03 de abril de 1879. A data de nascimento era 10 de outubro de 1878. A determinação de enriquecer, desse tropeiro, transformou-o, dentro de alguns anos, em proprietário rural. O inventário de Antonio de Castro Ribeiro, aberto em 20 de abril de 1900, mostrou que o inventariado deixou uma grande quantidade de bens móveis, imóveis e gado.24 Os bens foram avaliados num total de 117:739$808, que constituía grande soma para a época. 25 O inventariado deixou, entretanto, uma quantidade muito grande de dívidas, principalmente em forma de empréstimos contraídos a juros, totalizando-se 98:496$742. Entre 22 Nas entrevistas realizadas com antigos moradores de Jaraguá, quando perguntados sobre a origem de Diógenes de Castro Ribeiro ou Tubertino Ferreira Rios, eles respondiam em um tom baixo de voz, quase sussurrando, que eram tropeiros ou filhos de tropeiros. Um indisfarçável desprezo, principalmente se os entrevistados eram filhos de famílias mais antigas, oriundas do período da mineração. Para evitar possíveis constrangimentos, omitiremos os nomes dos entrevistados. 23 Josefa Gomes Pereira da Silva era viúva de Manuel Ribeiro de Freitas Machado, filho do Padre Manuel Ribeiro de Freitas. Com esse primeiro marido, ela teve um filho em 1873, chamado Evaristo e outro em 1875, chamado Manuel. Ela ficou viúva e contraiu novas núpcias com Antonio de Castro Ribeiro entre 1875 e 1878. Portanto, o tropeiro deve ter chegado a Jaraguá um pouco antes desse período. Certidões de Batismo do Arquivo Paroquial de Jaraguá, copiados e preservados por Joaquim Militão. Folhas 28 e 28-a. 24 Bens móveis: carros de boi, armas, foices, barras de ferro, etc. Semoventes: 107 vacas paridas, 220 vacas solteiras, 86 bois, 27 garrotes, 49 bezerras, 42 bezerros, 1 burro, 1 besta, e 1 cavalo. Bens de raiz: 4 fazendas, 2 sítios, 12 tratos de terra em locais diversos, várias casas na cidade, lotes e pastos próximos à cidade. Fonte: Inventário de Antonio de Castro Ribeiro, datado de 20 de abril de 1900. Responsável: Desembargador Olympio da Silva Costa. Arquivado no Cartório de Famílias, Sucessões e 1º do Cível de Jaraguá. 25 Para se ter uma idéia do valor dos bens deixados, pode-se comparar o total, quase 118 contos de réis, com alguns itens do inventário. A fazenda mais cara, denominada Bonifácia, foi avaliada em 5:000$000 e as 107 vacas paridas em 4:280$000. Fonte: Inventário já citado. 22 seus credores, o inventário relacionou os filhos de Antonio José Caiado e Francisco Leopoldo Rodrigues Jardim (Presidente de Goiás, entre 1895 e 1899), moradores da capital. Os herdeiros de Antonio José Caiado (este havia falecido recentemente) recorreram à justiça, solicitando aos inventariantes que os bens fossem a leilão e que os credores fossem pagos em dinheiro. A ação foi ganha, mas após a realização de três leilões os bens não foram vendidos. Os credores concordaram, então, em receber a dívida em forma de bens móveis ou imóveis. A análise desse inventário nos mostra que a economia de Jaraguá era pouco mercantilizada, já que a Justiça não conseguiu converter os bens em dinheiro a fim de saldar as dívidas deixadas. Outra conclusão, que podemos retirar dos dados do inventário, é que Antonio Ribeiro de Freitas acumulou muitos bens, mas, devido às dívidas, não deixara fortuna tão significativa. Para a esposa, Josefa Gomes de Castro, coube 8:656$033 e cada filho recebeu de herança apenas 1:442$672. Um de seus filhos, Diógenes de Castro Ribeiro, aumentou muito a herança deixada pelo pai. Tornou-se pecuarista, possuidor de enormes glebas de terra. Ocupou o cenário político de Jaraguá em 1910 e reinou absoluto até 1930. A partir dessa época, disputou o poder com outra família, os Freitas, por cerca de 30 anos. Outro negociante de gado, que chegou a Jaraguá no final do século XIX, foi Tubertino Ferreira Rios, nascido em Uberaba, em 1855. Casou-se com Maria Ignácia Macedo, filha de tradicional família jaragüense. Adquiriu muita terra em Jaraguá e vizinhanças, transformandose, em poucos anos, numa figura respeitada e temida na região. Seu inventário, feito nos anos 30, arrola uma quantidade muito grande de bens móveis e imóveis, incluindo dezenas de fazendas e tratos de terra, os quais foram adquiridos, de pouco a pouco, desde que ele se transferiu para Jaraguá.26 Para compreendermos como esses antigos tropeiros ascenderam ao poder em Jaraguá é necessário encarar as condições objetivas da época. A terra, em regiões mais isoladas, tinha muito pouco valor. O preço era baixo, havendo ainda a possibilidade de apossamento de 26 A escritura do testamento do Cel. Tubertino Ferreira Rios foi registrada no Livro de Notas nº 86, fls. 87v a 88v., 1º traslado, por Argemiro P. de Amorim, Tabelião do 2º Ofício da Comarca da Capital do Estado de Goyaz. Atualmente está arquivada no Cartório de Família, Sucessões e 1º do Cível, de Jaraguá. 23 terras. As leis que se propunham à regulamentação da estrutura fundiária não tiveram vigência para Goiás.27 O modo costumeiro de se apoderar da terra, em Goiás, principalmente através da posse, teria facilitado a esses tropeiros que chegaram a ocupação de enormes extensões de terras. As famílias que se transferiram para Jaraguá em meados e no final do século XIX, ao lado de outras já instaladas se constituíram nas camadas dominantes na região: os Félix de Souza, Amorim, Carvalho, Gomes Pereira da Silva, Rios, Fonseca, Barbo de Siqueira, Camargo e outras. O poder político ficou polarizado em grupos formados por essas famílias mas dirigidos efetivamente pelos Castro, ou pelos Ribeiro de Freitas. Muitas vezes, o poder executivo esteve preenchido por elementos alheios a essas duas famílias, o que não significou o alijamento delas, do poder. Foi fenômeno comum, para o início do século XX, não só em Goiás mas no Brasil, a constituição das ―oligarquias‖ nos Estados e a presença de ―coronéis‖ em âmbito local. O fenômeno intitulado pacto ―oligárquico-coronelístico‖ implicou na arregimentação de grupos que mantiveram o poder, estabelecendo uma política de trocas entre poder local e estadual. O grupo de apoio ao ―coronel‖, extrapolava os membros da família, congregando os correligionários. A exemplo do que ocorria em outras localidades de Goiás, Jaraguá vivenciou a presença dos ―coronéis‖. A emergência do poder em Jaraguá, nos primórdios do século XX esteve relacionado e dependente dos grupos que fortaleceram e assumiram o poder Estadual, a partir da Proclamação da República. O fazendeiro que já despontava no município de Jaraguá, como grande proprietário de terras, era Diógenes de Castro Ribeiro (Castrinho) o qual adquiriu poder político na região. Em Jaraguá, a cidade manteria o mesmo perfil até os anos 40. A enorme quantidade de terras que esteve nas mãos da família Castro e de outras não resultou em melhorias no ensino, 27 A Lei n.º 601, de 1850, a chamada Lei de Terras havia instituído a compra como única forma de acesso legal à terra. As antigas sesmarias, pelo texto da Lei, seriam passíveis de confirmação e as posses, ocupadas antes de 1850, poderiam ser validadas. O regulamento que criou as condições de aplicabilidade da Lei de Terras foi decretado em 1854, como a Lei n.º 1318. Foi instituído o ―Registro Paroquial‖ com o fim de possibilitar ao Império um levantamento da situação das terras. Através desse registro, pretendia-se estabelecer quais eram as terras particulares e públicas já ocupadas, separando-as das terras devolutas. Estas poderiam ser vendidas pelo governo, sendo a sua renda destinada à medição das terras e ao financiamento da transferências de migrantes europeus para trabalharem nas lavouras de exportação, no Brasil, principalmente a cafeeira. 24 na saúde e nem transformações urbanas. Foi utilizada em benefício dos Castro e seus correligionários e em nada ou muito pouco mudou o perfil do município. A família Ribeiro de Freitas, que tinha prestígio desde a chegada de seus antepassados de Traíras, indispôs-se com os Castro por ocasião da chamada ―Revolução Rubra‖, de 1909. O elemento mais combativo, Baltazar de Freitas, uma vez vitoriosa a Revolução, teve que deixar a cidade às pressas. Fugiu para Bonfim (atual Silvânia) com a família e toda a criadagem, herdada do tempo da escravidão. Posteriormente voltou a Jaraguá. Estava criado o antagonismo político entre duas famílias (os Castro e os Ribeiro de Freitas), que passaram a disputar o poder em Jaraguá, até recentemente. A relação dos Intendentes de Jaraguá, no período posterior à Proclamação da República, até os anos 30 não contempla, necessariamente, essas duas famílias. É que, até 1910, o seu poder ainda não estava estabelecido. Mesmo após 1910, outros elementos participarão desses núcleos de poder, integrando um sistema coronelístico-oligárquico mais amplo. Da segunda metade do século XIX aos primórdios do século XX, a ocupação das terras teve continuidade, de modo a possibilitar a ocorrência do fenômeno político resultante de uma forma específica de ocupação da terra, que denominamos coronelismo e que deu sustentação aos governos oligárquicos. O poder em Jaraguá foi fortemente marcado por este fenômeno. A população goiana, nessa época, era predominantemente rural. O proprietário de terras detinha o controle da maioria dos empregos disponíveis na sociedade. Ao mesmo tempo em que monopolizava as oportunidades de trabalho, o fazendeiro mantinha uma clientela à sua volta. O domínio econômico assegurava a manipulação das pessoas e conferia poder político aos chefes locais. Diógenes de Castro Ribeiro, chefe político de Jaraguá, a partir de 1910, aliou-se aos Caiado. Através do domínio da terra, assegurou poder econômico e político, estabelecendo-se como chefe local. Transformou-se em grande proprietário de terras no município e em áreas circunvizinhas. Comercializava seu próprio gado e o de seus vizinhos, exportando-o principalmente para Barretos (SP), através das estradas boiadeiras. Fazia comércio também através da Estação Ferroviária de Roncador, exportando principalmente o arroz.28 28 Informações obtidas em entrevista realizada com o Sr. Joaquim Militão, em 23/05/97. À época o entrevistado estava com 87 anos. Seu Arquivo são anotações esparsas, entremeadas de cópias de documentos. 25 3- Tradição e Identidade A Revolução de 30, em Goiás, teve pouca repercussão sobre as relações sociais, de maneira geral, em Jaraguá. A economia manteve-se assentada no setor primário e o grupo político que detinha o poder durante a Primeira República estabeleceu alianças políticas para manter o domínio do município, no período pós-30. Não ocorreram grandes mudanças no interior da sociedade e, para utilizar uma linguagem durkheimiana, mantém-se uma consciência coletiva herdada dos idos da mineração e dos tempos difíceis da decadência do ouro. O entrosamento econômico com outras regiões do país, propiciado pelo gado que se auto-transportava, não quebrara o relativo isolamento daquela localidade. O passado manifestava-se fortemente na vida da população, informando os comportamentos a serem seguidos. A presença da Igreja Católica mantinha a população fiel aos preceitos tradicionais. As dificuldades de comunicação com outros centros condicionavam, através dos anos, uma vida social e cultural muito peculiar. As festas eram momentos privilegiados de expressão de uma consciência coletiva. Ao mesmo tempo em que propiciavam momentos de lazer para a população, representavam um reforço de atitudes habituais da comunidade e assim estabeleciam-se os elos do passado com o presente. As festas constituíam-se em momentos de reafirmação da própria história. E esta mantinha-se profundamente influenciada pela Igreja Católica. Não é por acaso que as celebrações religiosas eram os temas recorrentes das festas da cidade. “As festas de tradição do município são: de São Sebastião, que se realiza a 20 de janeiro; do Divino Espírito Santo [sem data fixa] e de Nossa Senhora da Penha, a 8 de setembro. “São todas elas bastante animadas, movimentando a cidade. “Vem os habitantes da zona rural e, nesta ocasião, fazem-se casamentos, batizados e crismas. Antigamente a Festa do Divino, cheia de tradição, era famosa e concorridíssima. Celebravam a cavalhada, dança ritual de cavaleiros. Estes possuíam vestes próprias e a Festa transcorria na maior animação possível. Hoje, já um tanto modificada, e mesmo modernizada pelo correr dos tempos, não possui o brilho que lhe davam aquelas cerimônias.”29 Este texto do IBGE foi divulgado em 1958 e mostra que nessa época as festas já faziam parte de um passado, apesar da maioria delas ainda serem celebradas. Esse ―brilho‖, ao qual o 29 IBGE. Enciclopédia dos Municípios..., op. cit. p. 26 texto se refere, era o resultado de um momento importante de confraternização e encontro daquela população. As festas religiosas constituíam-se nos momentos em que a população encontrava a sua própria história e ajustava as contas com a sua tradição. Eram momentos para os quais a população toda se preparava. Era a reafirmação da própria identidade (religiosa e tradicional), assentada nos costumes herdados ainda dos idos da mineração. Constituíam momentos importantes de reafirmação da própria trajetória. Informava, novamente, a cada um, o seu papel, a sua importância, a sua significação naquele meio social. Por isso, as festas religiosas possuem também suas hierarquias. Elas reproduzem a sociedade que é hierarquizada. As festas constituíam, para a sociedade, momentos de explicitação de si mesma. Era, por excelência, a ocasião em que os padres reafirmavam a sua condição de pastores, de condutores da consciência. Elementos da elite assumiam a condução material das celebrações. Geralmente os ―festeiros‖ eram recrutados entre os proprietários rurais. Muitas vezes, havia disputas entre os chefes políticos locais para a condução das cerimônias. Um exemplo ilustrativo desse fato nos foi narrado por Clotário de Freitas: Jaraguá teve duas bandas de música, durante as primeiras décadas do século XX. Uma banda denominada Santa Cecília era formada por Baltazar de Freitas, descendente da família Freitas, oriunda de Traíras. Os integrantes da outra banda eram ligados ao chefe político local, Diógenes de Castro Ribeiro. Este nada entendia de música, mas dava apoio aos integrantes da banda. As rivalidades políticas se acirravam, por ocasião das festividades ou comemorações em Jaraguá. Cada uma das facções políticas queria se sobressair mais do que a outra. Era comum, nas palavras de Clotário, que uma banda se posicionasse no início de uma procissão e a outra no final. E cada uma tocava uma ―retreta‖ diferente, ao mesmo tempo. Às vezes, era necessário o sacerdote intervir, para dar continuidade à cerimônia religiosa.30 Se os anos 30 significaram, para Jaraguá, a continuidade da sua própria história, consideramos que os anos 40 apresentaram rupturas com o passado e sua tradição. Não que tenha havido um rompimento total da sociedade com a sua própria trajetória. É que os anos 40 forçaram uma maior integração com outras regiões do país. 30 Entrevista concedida à autora, por Clotário de Freitas, em 25/02/97. 27 4- Mudanças. O município de Jaraguá passou por mudanças econômicas, políticas e sociais significativas, durante os anos 40. Nessa década, como reflexo da política da Marcha para Oeste e do avanço da economia que se processava desde os anos 20, a região incorporou-se a uma economia mais ampla. O município sofreu alterações fundiárias, percebidas através dos dados fornecidos pelo IBGE. Sua produção alterou-se substancialmente, voltando-se mais para o mercado, enquanto ocorria a regressão de atividades voltadas ao consumo local, em especial a produção artesanal que quase desapareceu. O vetor fundamental de mudanças teria sido a proximidade com a área de construção da CANG – Colônia Agrícola Nacional de Goiás31. Essa proximidade fez com que os funcionários contratados para trabalhar na burocracia da CANG se instalassem, primeiramente, em Jaraguá. O coordenador desse projeto de instalação da Colônia Agrícola, Bernardo Saião Carvalho de Araújo, relacionou-se muito bem em Jaraguá e ali constituiu residência, bem como outros funcionários, nos primeiros meses de instalação da CANG. Bernardo Saião era a própria encarnação do discurso de Getúlio Vargas. Otimista, quanto às possibilidades de desenvolvimento do país, Saião acreditava em um projeto de integração nacional, através da construção de estradas e da integração de diferentes comunidades. Partilhando da visão de Vargas, de aproveitar elementos regionais para construir a unidade da nação, esse engenheiro encantava as pessoas pelo seu otimismo e crença na construção de um Brasil forte e economicamente integrado. Saião enxergava nos habitantes dessas localidades, dispersas pelo Brasil, os construtores de um processo de integração do país. Todos se tornavam co-autores desse empreendimento. Essa visão de Bernardo Saião, em harmonia com o discurso de Vargas, não privilegiava a existência das classes sociais. O empreendimento era coletivo, visando ao desenvolvimento social e assentava-se no trabalho compartilhado. É por isso que, na construção da CANG, Bernardo Saião estabeleceu uma direção e uma execução do projeto, voltados para uma construção em conjunto. Nas duas primeiras décadas da construção da 31 A CANG - Colônia Agrícola Nacional de Goiás, atual cidade de Ceres-Go., foi criada na ―Região do Mato Grosso de Goiás‖, dentro do município de Goiás. A sede situava-se a 725 m de altitude e a região, como um todo, em média, a 600 m. À época da criação da CANG, em 1941, a Região do Mato Grosso de Goiás localizava-se no centro-sul do Estado de Goiás. Depois do desmembramento do estado do Tocantins, ao norte, a zona do Mato Grosso localiza-se no centro do Estado de Goiás. 28 Colônia Agrícola, a direção entrava com os recursos e com as diretrizes gerais. Os funcionários e a população de colonos implantavam, através de ações conjuntas, os projetos de viabilização da CANG. Engenheiros ou colonos, todos trabalhavam intensamente no sentido de criar uma nova realidade, em um trabalho conjunto, compartilhado. O próprio Saião, enquanto dirigia o empreendimento com mão forte, era um funcionário ativo e engajado na ação em comum.32 Essa ideologia da crença em um processo de integração, da possibilidade de uma construção conjunta, foi absorvida pelas elites de Jaraguá, principalmente pelos que se encontravam na oposição política. Uma das mudanças políticas que Jaraguá conheceu após a Revolução de 1930, foi o fortalecimento de uma oposição ao grupo de poder liderado por Diógenes de Castro Ribeiro. Grupos de oposição, nos anos 40, põem em prática um discurso visando à possibilidade do desenvolvimento, sensibilização da juventude, mobilização para a construção. O slogan da cidade passou a ser: ―Avante, juventude‖. O único jornal que Jaraguá editou, até meados daquele século, foi criado nessa época. Denominou-se ―Avante‖ e era dirigido por um jovem intelectual, ex-seminarista, Eloy de Faria Mello. Era filho de mineiros que se dirigiram para o Mato Grosso de Goiás, atrás de terras. O jornal, que circulou em 1946, expressava o momento vivido pela cidade. Herdeiro do otimismo de Getúlio Vargas e Bernardo Saião, procurava fazer uma leitura da realidade na qual estava inserido e apontava caminhos para transformações de ordem política, econômica e social. Foi criado nesta época o primeiro colégio com ensino ginasial, que representou um grande avanço para a cidade. Criou-se também o hospital maternidade, que passou a servir às regiões circunvizinhas. O que ocorreu desde o início dos anos 40 foi que a população de Jaraguá entrou em contato com os integrantes da ―Caravana da Colônia‖. Por outro lado, a notícia dos projetos de colonização atraía migrantes, principalmente de Minas Gerais, para essa região do Mato Grosso de Goiás, colocando em contato a população com pessoas vindas de diferentes lugares, com uma intensidade ainda não experimentada. Jaraguá sofreu o impacto de influências vindas de fora. Alterou-se a vida política e social da população. Mudanças econômicas, que se processavam, provocaram inclusive 32 Sobre a implantação da CANG foram realizadas entrevistas com Alberto José Longo, em 24/04/93 e com Alberto Longo, em 25/04/93. 29 alterações físicas, tanto na estrutura fundiária quanto na configuração do próprio município. Antigos distritos, antes pertencentes a Jaraguá, cresceram e muitos sobrepuseram ao município de origem. Entre os distritos que se emanciparam, podemos destacar a localidade de Calção de Couro, que deu origem ao atual município de Goianésia. 4.1- Caracterização e Desmembramentos do Município de Jaraguá Jaraguá originou-se do antigo povoado de Nossa Senhora da Penha de Jaraguá e se transformou em Vila pelo Decreto nº 8, de 1º de julho de 1833, desmembrando-se do município de Meia Ponte (hoje Pirenópolis). Foi elevada à categoria de cidade pela Lei Provincial nº 666, de 29 de julho de 1882, recebendo o nome de Jaraguá.33 O município de Jaraguá teve sua conformação modificada ao longo dos séculos XIX e XX. Por ter um povoamento muito antigo e ter sido região aurífera, englobava uma vasta área, até fins do século XIX. Durante o século XX foi, gradativamente, perdendo povoações e localidades, que se constituíram em distritos e depois em municípios. Já pertenceram a Jaraguá os atuais municípios de São Francisco de Goiás, Petrolina, Uruana, Goianésia, Itaguaru, Rianápolis, Rialma e Santa Isabel. Alguns eram povoados muito antigos, como São Francisco das Chagas (hoje São Francisco de Goiás) e Petrolina. Muitos dos antigos distritos foram criados nos anos 30 e 40 do século XX e foram emancipados depois de 1940. A sede, Jaraguá, é o núcleo mais antigo, tendo surgido no início do processo de povoamento de Goiás. São Francisco das Chagas surgiu por volta de 1740 e em 1911 já aparece como distrito de Jaraguá.34 Somente nos anos 50 foi elevado à categoria de município. Emancipou-se de Jaraguá pela Lei Estadual nº 768, de 8 de setembro de 1953, com o nome de São Francisco de Goiás. Petrolina de Goiás surgiu por volta de 1919, quando Teolino Pedro e sua mulher, Maria Pedro, doaram terras para a formação do Patrimônio. Pelo Decreto nº 59, de 8 de junho de 1932, elevou-se a distrito, integrando o município de Jaraguá. Pelo Decreto-Lei Estadual nº 8.305, de 31 de dezembro de 1943 passou o distrito a denominar-se Goialina. Pela Lei 33 34 IBGE. Enciclopédia dos Municípios..., op. cit. p. 255. Idem, pp. 405/7. 30 Estadual nº 153, de 8 de outubro de 1948, foi elevado à categoria de município, com o nome de Petrolina de Goiás, sendo Termo de Comarca de Jaraguá. Elevou-se à categoria de Comarca pela Lei Estadual nº 698, de 14 de novembro de 1952.35 Uruana foi fundada por José Alves Toledo, em 1938. A localidade desenvolveu-se junto e por força da CANG. José Toledo, em 20 de janeiro de 1940, doou 10 alqueires de sua fazenda à Arquidiocese de Goiás, para a edificação do Patrimônio. Em 31 de dezembro de 1943, a Lei Estadual nº 8.305 criou o distrito de Uruana. Em setembro de 1948 foi elevado a município pela Lei Estadual nº 132, passando a constituir Termo da Comarca de Jaraguá. Em 14 de novembro de 1952 foi elevado à Comarca, também pela Lei Estadual de nº 708.36 Rialma foi criada por volta de 1940, juntamente com a CANG. Surgiu como a ―cidade livre‖ da Colônia, recebendo o excesso de migrantes que procuravam terras junto à coordenação do projeto de colonização. Estando fora da área de assentamento dos colonos, não se submetia às rígidas normas impostas por Bernardo Saião e que vigoravam no interior do projeto. Rialma foi elevada à categoria de Distrito pela Lei Municipal (de Jaraguá) nº 11, de 21 de agosto de 1948. Foi elevada a município pela Lei Estadual nº 753, de 16 de julho de 1953. Em 1958 era Termo da Comarca de Ceres.37 Goianésia era denominada Calção de Couro.38 Foi povoada a partir de 1920, quando uma neta de Antonio Manuel de Barros, casada com Ladislau Mendes Ribeiro, mudou-se para essas terras, que eram conhecidas até então como ―Calção de Couro‖. Manuel de Barros havia feito o Registro Paroquial de cerca de 5.000 alqueires goianos, em 1857. Esta localidade foi a que mais se desenvolveu dentro do município de Jaraguá. Itaguaru e Rianápolis, que hoje são emancipados, aparecem na publicação do IBGE, de 1958, como distritos de Jaraguá.39 No Censo de 1960 já aparecem como municípios. 35 Idem, p. 337. Idem, p. 438. 37 Idem, p. 385. 38 Informação fornecida em 22/05/99, pelo Dr. Cornélio de Amorim, Juiz de Direito aposentado e residente no município de Jaraguá. Contida também em IBGE, Enciclopédia dos Municípios, op. cit. 39 De acordo com a Enciclopédia dos Municípios, em 1958 pertenciam a Jaraguá os seguintes distritos: Itaguaru, Alvelândia, Cirilândia, Colônia São José, Lavrinhas de São Sebastião, Mirilândia, Monte Castelo, Rianápolis, Terra Vermelha e Santa Isabel. No Censo de 1980, destes distritos, somente Itaguaru e Rianápolis aparecem como municípios. Consequentemente, os demais continuaram como distritos de Jaraguá. Nos mapas elaborados após a divisão do estado de Goiás, em 1988, com a criação do estado do Tocantins, Cirilândia aparece como distrito do município de Santa Isabel e Castrinópolis como parte do município de Rialma. Fontes: IBGE. VII Recenseamento Geral do Brasil. Série Regional, vol. II, Tomo XIV, 2ª Parte, 1960; Censo Demográfico. Dados 36 31 Estes municípios citados já passaram por transformações perdendo parte de seu território na constituição de novos municípios como Jesúpolis e outros. 4.2- Transformações e Permanências. As mudanças de ordem econômicas que o município de Jaraguá vivenciou, durante os anos de 40, refletiram-se na política e na vida do município, de maneira geral. A transferência da família Machado de Siqueira para a localidade de Calção de Couro teve reflexos em Jaraguá. O Dr. Jales Machado era engenheiro e foi contratado por um rico negociante jaragüense, Diony Gomes Pereira da Silva, para construir uma hidrelétrica de pequeno porte, no rio Pari, nas proximidades da cidade. Diony Gomes havia vendido as terras para Dr. Jales abrir a fazenda Itajá, onde se localiza a atual cidade de Goianésia. A usina foi inaugurada em 1941, no mesmo ano em que Bernardo Saião se instalara em Jaraguá, para iniciar a abertura da BR-014 e começar a construção da CANG. Quando a caravana chegou à Jaraguá, a cidade já estava servida por energia elétrica. O escritório da Colônia Agrícola foi montado em Jaraguá. Toda a burocracia veio transferida do Rio de Janeiro. Os dirigentes e os funcionários de escritório, na maioria cariocas, se instalaram com suas famílias na cidade. Iniciava-se uma movimentação visando à instalação da CANG. O resultado, para Jaraguá, foi a dinamização de seu comércio e dos serviços. Há um interessante relato sobre essa fase da vida da cidade: “... vieram de Pirenópolis duas lojas de tecidos: uma do Cel. Chico de Sá e outra de João Basílio de Oliveira. Vieram várias pensões como a de João Francisco, Géla, seu Vicente de Melo e outras. Clóvis Miranda montou um bar com sorveteria. Bili Camargo montou padaria e rádio-amplificador. Vieram vários barbeiros. Diony [Diony G. Pereira da Silva] montou mais uma loja e um armazém na cidade, loja em São Francisco, Petrolina, Uruana, Castrinópolis. Pôs máquina de beneficiar arroz em Jaraguá. Comprou caminhão e comprava os cereais produzidos na região. Pôs cinema e construiu várias casas para alugar. Nos loteamentos novos comprou muitos lotes e dizia que não gostava do progresso porque este era inimigo dos homens do lugar. E foi uma realidade. O homem tinha uma visão incrível!”40 Distritais. Recenseamento Geral do Brasil – 1980. Vol. 1, Tomo 3, nº 23, Rio de Janeiro, 1982; Mapa do Estado de Goiás (Rodoviário, Político e Educativo) com os novos municípios. Goiânia, s/d (pós 1988 40 Trecho da entrevista com Joaquim Militão, em 23/05/97. 32 Percebe-se claramente, pelo relato acima, o desenvolvimento do comércio local, aproveitando-se da movimentação propiciada pela passagem da ―caravana da Colônia‖ por Jaraguá. A direção do projeto dispunha da maquinaria necessária para o início dos trabalhos. Durante o tempo em que residiu em Jaraguá, Bernardo Saião utilizou-se das máquinas para promover os trabalhos de abertura de estradas, terraplanagem e até a construção de uma pista de pouso de avião, com hangar. A BR-014 passava a pouco mais de um quilômetro da cidade. Saião levou a rodovia até o centro. Preparou terrenos para loteamentos e alterou o aspecto físico da cidade. As pessoas da comitiva que acompanhava Saião, composta pelos funcionários da colônia com suas famílias, passaram a vivenciar o cotidiano de Jaraguá. Participavam de festas, solenidades religiosas, visitas aos moradores. Algumas famílias que faziam parte dessa ―caravana‖ permaneceram na cidade, mesmo depois da saída de Bernardo Saião, fixando ali residência definitiva. Essa passagem da comitiva foi um momento marcante na vida daquela população. Não foram apenas os serviços, o comércio e os aspectos físicos da cidade que se alteraram. A convivência da população com pessoas oriundas de outro meio, com uma mentalidade diferente, com outros valores, tudo isso provocou um deslocamento nas concepções de mundo daquela população. A antiga ―Vila de Jaraguá‖ foi retirada de seu cotidiano e deslocada para um universo diferente, ainda não vivenciado por seus moradores. E o discurso mais bem preparado, era o de Saião, levando adiante as propostas de Vargas. O entusiasmo pelo desbravamento, a proposta de integração nacional, foram assimilados pelas elites locais, principalmente pelas que faziam uma certa oposição à política tradicional, assentada no poder dos antigos coronéis. A família Freitas, tradicionalmente de oposição aos Castro Ribeiro, relacionara-se muito bem com o Dr. Saião desde que ele se instalara em Jaraguá. Particularmente Clotário de Freitas, que era o representante político da família. “Saião era homem de muita ação. Correto, honesto. Trabalhador demais. E entusiasmado com o seu trabalho. Ele pegava dinheiro para empregar na estrada, pacotes de dinheiro e me pedia para guardar no cofre. Ele não contava e nem eu. Às vezes eu falava:- „Leva a chave‟. Ele respondia: - „Não, não tem necessidade‟. Ele confiava muito em mim. Então ficava lá esse 33 dinheiro, meses e meses, sem ele precisar. Depois ele vinha até minha farmácia, pra conversar, e na saída dizia: - „Me dá um pouco do dinheiro.‟ E eu insistia com ele pra contar e ele só dizia: - „Até logo, até logo‟. Mas era correto. Muito boa pessoa. Muito meu amigo. Senti muito a sua morte.”41 É interessante lembrar que os Castro Ribeiro eram proprietários de terras e chefes políticos locais exercendo forte poder sobre a população, de 1910 a 1930. A Revolução de 30 em Goiás, com a ascensão de Pedro Ludovico ao poder estadual, havia abalado as antigas oligarquias de Jaraguá. Elas foram temporariamente afastadas do comando político em 1930, mas retornaram três anos após, tendo conseguido o apoio político do Interventor federal. Entre 1934 e 1945, a prefeitura de Jaraguá foi ocupada por Antonio de Castro Ribeiro, irmão de Diógenes de Castro Ribeiro, chefe político inconteste, em Jaraguá, desde 1910 até sua morte em 1938. Entre 1945 e 1946 foi prefeito municipal o Sr. Diony Gomes Pereira da Silva, descendente de tradicional família jaragüense. Aliado dos Castro, era sobrinho de Dª Isaura Rios de Castro, esposa do Cel. Diógenes Ribeiro. A partir de 1945, com o fim do ―Estado Novo‖, os partidos políticos organizaram-se nacionalmente. Seguindo a tendência nacional, Goiás começou a definir um quadro partidário. O Partido Social Democrático (PSD) foi formado em Goiás, congregando partidários políticos do ex-interventor, Dr. Pedro Ludovico Teixeira, o qual se tornou presidente do Diretório Estadual do PSD. Este partido teve o seu registro no Tribunal Regional de Goiás, em outubro de 1945. Na mesma época, organizou-se a União Democrática Nacional (UDN), congregando opositores, dissidentes e ex-colaboradores do Dr. Pedro Ludovico. A definição política em Goiás tinha como parâmetro o apoio ou a oposição a Pedro Ludovico. Os dois partidos nasceram inimigos entre si. Formada também em 1945, a UDN teve como primeiro presidente, Domingos Neto Velasco, antigo colaborador e aliado político de Pedro Ludovico, desde antes da Revolução de 30. Dissidências políticas levaram os dois homens públicos a se tornarem inimigos. Posteriormente, Domingos Velasco deixa a UDN para formar a Esquerda Democrática. Quem passou a ocupar então a presidência da UDN foi o engenheiro e fazendeiro Jales Machado Siqueira, proprietário de terras em Jaraguá. A Esquerda Democrática, em Goiás, depois das eleições estaduais de 1947, integrou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). 41 Entrevista concedida por Clotário de Freitas, em 04/02/97. 34 Também o Partido Comunista Brasileiro (PCB) se fez presente no estado, naquele momento, com diretórios em 37 municípios goianos. Obteve o registro do Diretório Estadual em 1945. Em Jaraguá, acompanhando a tendência do estado, formaram-se os dois partidos: o PSD e a UDN. O PCB também criou um núcleo comandado pelo Dr. Paulo Alves. Este candidatou-se nas eleições de 19 de janeiro de 1947, pelo PCB, à Assembléia Legislativa. Ficou como suplente e assumiu o cargo por ocasião do afastamento do deputado Afrânio Francisco de Azevedo, em 14 de março de 1947. Os Castro Ribeiro, que tinham o apoio político do Dr. Pedro Ludovico, desde 1934, aderiram de imediato ao PSD. Os Ribeiro de Freitas que faziam oposição aos Castro se aliaram à UDN. Em 1930, o trio político formado por Baltazar de Freitas, Elias Fonseca e Tubertino Ferreira Rios havia conseguido a ascensão à prefeitura de Jaraguá. Só conseguiram permanecer no poder até 1934. Tubertino Ferreira Rios deixou a oposição e se aliou novamente aos Castro até sua morte, em 1936. O herdeiro da oposição política em Jaraguá foi o filho de Baltazar de Freitas, Clotário de Freitas que formou um núcleo local da UDN, em 1945. Em 1946, Manoel Demóstenes Barbo de Siqueira, genro de Diógenes de Castro Ribeiro candidatou-se a um cargo eletivo na Assembléia Legislativa, pela UDN. A família Castro Ribeiro, apesar de comandar o PSD em Jaraguá, emprestou apoio político a Manuel Demóstenes, naturalmente pelos laços de parentesco.42 Os Ribeiro de Freitas, mais uma vez, viram o seu espaço político invadido pelos Castro. Iniciaram uma série de intrigas junto ao Dr. Pedro Ludovico com o objetivo de criar uma tensão entre o presidente do Diretório estadual do PSD e a família Castro. Conseguiram, não só indispor o Dr. Pedro Ludovico com os Castro mas também se apoderarem da sigla do PSD e passaram a apoiar a sua política no estado. “Eles traíram o Dr. Pedro Ludovico e votaram todos no Manoel Demóstenes, que era da UDN. Deixaram o PSD lá à míngua. Então o Dr. Pedro mandou lá uma comissão composta pelo Paulo Fleury, Albatênio de Godoy e tinha um terceiro nome que não me lembro. E disse a eles que procurassem o pessoal dos Freitas para ver se eles aceitavam ficar com o Diretório. “O Dr Pedro propôs aliança conosco: eu, Peixoto da Silveira, Eloy de Faria Mello, Dr. Paulo Alves. Afastou o grupo todo dos Castro Ribeiro. O Dr. 42 Acontecimentos relatados em entrevista com o Sr. Manuel Demóstenes Barbo de Siquiera, em 09/05/97. 35 Paulo declarou: - eu sou comunista. Mas acho bom vocês participarem. Eu colaboro com vocês, mas por fora do partido. Então nós aceitamos. E ele realmente colaborou.”43 Em contrapartida, Pedro Ludovico, como presidente do Diretório Estadual do PSD, interferiu junto ao interventor federal em Goiás, General Felipe Antonio Xavier de Barros 44 para que fosse nomeado o médico Dr. José Peixoto da Silveira como prefeito de Jaraguá. Dr. Peixoto era casado com uma sobrinha de Clotário de Freitas, portanto, integrante dessa família e teve todo o seu apoio político. Perdendo o apoio de Pedro Ludovico, que mesmo afastado do governo estadual continuava sendo o político com maior força no estado, a família Castro Ribeiro apropriou-se da sigla da UDN, no município de Jaraguá, então comandada, no estado, por Jales Machado. Este havia sido Secretário de Obras Públicas no governo de Alfredo Lopes de Moraes (19291930), ainda na era Caiado. Entretanto, era um político independente e, na época, dera apoio à Aliança Liberal. Lutou em Minas Gerais, na Revolução de 30 e, indiretamente, apoiou a ascensão de Pedro Ludovico ao poder em Goiás. Porém, posteriormente tornou-se um dos maiores inimigos políticos de Pedro Ludovico. Jales Machado tinha sido amigo pessoal de Diógenes de Castro Ribeiro. As famílias Machado de Siqueira e Castro Ribeiro mantinham estreitos laços de amizade. Não foi difícil aos Castro, no início de 1946, apoderarem-se da sigla da UDN, já que nessa ocasião, Jales Machado era atuante membro desse partido tendo sido escolhido, logo em seguida o seu presidente. Jaraguá vivia ainda a euforia da construção da CANG, em suas proximidades. O entusiasmo pela abertura do projeto contagiava os habitantes da antiga vila mineradora. O slogan que tomou conta da população de Jaraguá foi: ―Avante Jaraguá!‖. Data dessa época a construção do primeiro hospital e do primeiro Ginásio e de uma Escola Municipal. Um artigo na primeira página do primeiro número do jornal ―Avante‖ reflete esse momento vivido por Jaraguá. O título do artigo foi ―Novos Horizontes‖, escrito pelo Dr. Peixoto da Silveira. A própria criação de um jornal, em uma cidade que nunca tivera um órgão de imprensa, é ilustrativa dessa euforia: 43 Entrevista com Dr. Clotário de Freitas, em 04/02/97. Interventor federal em Goiás entre 18 de fevereiro a 4 de agosto de 1946 e entre 18 de agosto a 19 de setembro do mesmo ano. 44 36 “Na plenitude do entusiasmo criador e encarnado no talento brilhante de Elói de Faria Mello, a mocidade fundou este jornal. E pediu-me um escrito inaugural. O tempo (meu) é pouco. O espaço (do jornal) também. Mas que vos preciso dizer? Considerada por Carlyle como o quarto poder, realmente a imprensa é um expoente de vitalidade. Reflete, como um espelho animado, as realizações do presente e, mais ainda, orienta como bússola democrática, as diretrizes do futuro. Estamos, pois, de parabéns. Abrem-se novos horizontes. Velhos sonhos se realizam. Jaraguá não quer ficar na retaguarda do progresso extraordinário, que invade o nosso Estado. Continuando a obra gigantesca e revolucionária de Pedro Ludovico Teixeira, o General Felipe Xavier de Barros veio (...) trazer venerandas reservas de energia ao seu estado natal (...) E Jaraguá não quer ficar dormindo a noite do empirismo enquanto lá fora canta a serenata do Progresso. E fundou-se o „Avante‟. (...)”45 É uma visão ufanista que retratava a predisposição da população para com o momento vivido pela cidade de Jaraguá. Ainda nesse primeiro número do jornal, uma coluna enaltecia a obra de construção do Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, que estava sendo finalizado. A autora do artigo agradecia ao Bispo de Goiás, D. Emanuel Gomes de Oliveira pela realização da obra. No entanto, fora a comunidade de Jaraguá, que se havia se mobilizado para encaminhar à Igreja Católica as providências no sentido da construção da escola. Era uma escola arquidiocesana.46 Uma carta de um leitor, ao jornal ―Avante‖, o coloca como um empreendimento do porte da Rodovia BR-014 e da construção da hidrelétrica recém construída na cidade. “São diversas as causas predominantes do desenvolvimento ostensivo de Jaraguá, nestes últimos tempos. Uma delas foi, não há dúvida, a grande estrada federal, construída pelo competente engenheiro Dr. Bernardo Saião, nosso grande amigo. Outra, sem dúvida nenhuma, a instalação da luz elétrica que veio espantar as trevas dessas noites soturnas e melancólicas de outrora. Hoje, com que alegria perambula por essas ruas brilhantes e fulgurosas, essa mocidade tão 45 Artigo de 1ª página do jornal ―Avante‖. Órgão Informativo Noticioso e Literário. Ano 1. Jaraguá (Goiaz), 9 de junho de 1946. Nº 1, p. 1. 46 Informação conseguida em entevista com Clotário de Freitas. 37 descuidada e prazenteira, fazendo saudades àqueles que já se descambam para o ocaso! Agora surgiu mais um farol luminoso de progresso para os jaragüenses. Refiro-me ao “Avante”, tão pequenino mas cheio de vigor (...).”47 Da mesma forma que via com entusiasmo o crescimento de Jaraguá, o jornal retratava a evolução da CANG. Por ocasião da inauguração do Distrito de Ceres, sede da Colônia, que ocorreu em 13 de outubro de 1946, o jornal ―Avante‖ publicou parte do discurso pronunciado pelo Dr. Peixoto da Silveira. “Vamos agora contemplar, apenas, o despontar desta vila, cheia de vitalidade, plena de brasileirismo. Aqui estão homens de quase todos os Estados do Brasil, nesse agrupamento simbólico, plasmando, talvez, um novo tipo étnico, forjando sem dúvida o progresso de Goiaz (...). Em parte, sem dúvida, é uma consequência do desenvolvimento ascencional de todo o Estado. São cidades que se remoçam. Vilas que crescem num desejo progressista de se tornarem cidades. Povoados que surgem com casinhas que têm ainda a frescura da mão-de-obra e o instantâneo de um desenho animado. É o amanhecer de uma nova civilização, distante do litoral. Vai-se afastando o sertão. O mapa vai ficando pontilhado. E o Brasil vai crescendo (...). Mas, aqui, no feliz ensejo deste batismo cívico de Ceres, o fato que inauguramos é mais importante ainda. Porque se trata de uma séde de uma Colônia Agrícola. Porque Ceres é a séde deste magnífico sistema de fixação do nosso homem à terra... Somente proporcionando justa oportunidade e assistência digna aos agricultores, conseguiremos despertar energias que dormem no seio da terra, enriquecendo o Brasil e valorizando o sertanejo ...”48 Posicionando-se claramente ao lado do PSD, o editorial do primeiro número do jornal ―Avante‖ ataca sutilmente o poder econômico e político que dominara a vida de Jaraguá, durante toda a República Velha e que, a partir de 1946, tomara conta da sigla UDN. “Não foi obra do acaso ou mero capricho do destino o aparecimento deste jornal. Necessidades prementes o exigiram. O desenvolvimento de nossa cidade, o progresso enfim, que começa a envolver com seu manto este pedaço de Brasil, dantes dormitando o sono rotineiro de uma evolução tolhida pelas garras de uma política retrogradante, pedia um porta-voz para bradar aos quatro ventos os anseios e realizações do povo jaragüense. 47 48 Jornal ―Avante‖, Ano 1, nº 3, de 16 de julho de 1946. Trecho do discurso pronunciado pelo Dr. Peixoto da Silveira, na inauguração do novo Distrito goiano de Ceres, sede da CANG. ―Avante‖, Ano 1, nº 8, Jaraguá, 24 de novembro de 1946. 38 Propusemo-nos a satisfazer a esta necessidade (...) com a finalidade de alcançar a meta desejada. Resolutos, porém, tomamos o nosso bordão e, de peito erguido, havemos de marchar e lutar veronilmente, tendo por arma o Direito, por escudo, a Justiça e por ideal, o Progresso de Jaraguá.”49 A situação política em Jaraguá, a partir de 1946, até 1966, esteve polarizada em torno das famílias Ribeiro de Freitas, que mantinha o domínio da sigla PSD e os Castro Ribeiro, partidários da UDN. Com relação a todo o entusiasmo vivido nos anos 40, com o desenvolvimento econômico do município e a euforia da construção da CANG, os Ribeiro de Freitas conseguiram canalizá-lo para um projeto político próprio, da própria família. Aproveitando-se do apoio político do Dr. Pedro Ludovico, o PSD jaragüense conseguiu se fortalecer e aumentar sua influência em todos os distritos de Jaraguá e nos municípios próximos, localizados mais ao norte, como Uruaçu. “Jaraguá era muito ligado com os que foram distritos dele. Era muito ligado com Uruana e com Goianésia, tanto que Jaraguá era a porta de entrada do Vale do São Patrício. Nós é que dominávamos a política nesse tempo. Eu e o Peixoto. Eles queriam escolher candidatos a prefeito lá em Uruaçu, por exemplo e vinham até aqui para perguntar que candidato deveriam apoiar. E a gente ia até lá e resolvia o problema. Acertava tudo, certinho. Jaraguá era a porta de entrada da política. Agora não. Hoje Ceres está maior do que Jaraguá. Eu acho que Goianésia também. Já passaram Jaraguá muitas vezes, em população e tudo.”50 O jornal ―Avante‖, que foi publicado entre 9 de junho a 25 de dezembro de 1946, teve nove números. Deu continuidade ao ideário desenvolvimentista contido nos discursos de Vargas. Assimilou o discurso de articulação das regiões economicamente dispersas, de integração nacional e do papel das elites locais como tendo parte da responsabilidade nesse empreendimento. Combateu a antiga oligarquia dos Castro e promoveu a ascensão política dos Freitas ao poder. Entusiasmou a juventude com o slogan ―Avante Jaraguá!‖ e perpetuou esse ano de 1946 na memória dos contemporâneos como uma marca forte e sinônimo de progresso e desenvolvimento econômico. 49 50 Trecho do Editorial redigido por Eloy de Faria Mello. Jornal ―Avante‖, nº 1, p. 1. Entrevista com Clotário de Freitas, que em 1946 era o presidente do Diretório Municipal do PSD. 39 O jornal Avante acompanhou a administração do Dr. Peixoto da Silveira nos poucos meses em que ele ocupou a Prefeitura de Jaraguá. Canalizou o momento de otimismo transmitido pela passagem da colônia e por todas as alterações econômicas que o município vivia e a transmitiu, de maneira competente e entusiástica, à população. A resposta veio nas urnas. Dr. Peixoto da Silveira deixou a prefeitura em 10 de outubro de 1946, entregando o cargo ao Dr. Belarmino Cruvinel, então Interventor Federal em Goiás. No mesmo dia o Dr. Clotário de Freitas, então Presidente do Diretório Municipal do PSD, foi conduzido para o cargo de prefeito. Peixoto da Silveira se desencompatibilizou do cargo para se candidatar à Assembléia Legislativa do Estado. Foi eleito para a 1ª Legislatura da Assembléia em 19 de janeiro de 1947, para o período de março de 1947 a 31 de janeiro de 1951.51 O jornal Avante teve uma curta duração, mas o suficiente para contribuir para uma alternância de poder em Jaraguá, rompendo o equilíbrio de forças que se impuseram desde os primórdios do século XX. Os Freitas continuaram na política de Jaraguá, revezando com os Castro até meados dos anos 90. Além de manter o poder político em Jaraguá, os Freitas lançaram-se à política no âmbito estadual. Sebastião Gonçalves de Almeida, primo de Clotário de Freitas e apoiado pelo clã, elegeu-se à Assembléia Legislativa em outubro de 1950, para o quatriênio seguinte. Clotário de Freitas foi eleito, por três mandatos consecutivos, à Assembléia Legislativa. Foi Secretário do Interior e Justiça no governo de Mauro Borges (31/01/61 a 26/11/64). O Dr. Peixoto foi candidato, pelo PSD, ao governo de Goiás, em 1965, para o mandato de 1966 a 1971. Perdeu as eleições para seu concorrente, Dr. Otávio Lage, da coligação UDN/PSP/PTB. Os Castro Ribeiro permaneceram na política de Jaraguá até recentemente. Nelson de Castro Ribeiro elegeu-se em outubro de 1958 para Deputado Estadual, pela UDN. Reelegeuse, pela ARENA, em 1970, cumprindo seu mandato até 1975. Na antiga localidade de Calção de Couro, onde formou-se o distrito de Goianésia (posteriormente município), instalaram-se inúmeros grupos econômicos, abrindo empreendimentos cafeicultores e de colonização. Entretanto, eram grupos de fora, 51 CAMPOS, Francisco Itami e DUARTE, Arédio Teixeira. O Legislativo em Goiás. Goiânia, Assembléia Legislativa de Goiás, 1996,p. 103. (Volume 1 – História e Legislaturas). 40 principalmente de paulistas e cariocas, que mantinham um gerenciamento à distância. Seus proprietários não se mudaram para a localidade, entregando a direção a administradores. O primeiro político a ocupar o poder local em Goianésia foi seu fundador, Laurentino Martins Rodrigues. Porém, a família que reuniu as condições necessárias para assumir a política local, foi a dos Machado de Siqueira. Aliados de Laurentino, esta família ficou com sua herança política. Laurentino era candidato a vice-prefeito em uma chapa encabeçada por Otávio Lage de Siqueira, quando foi assassinado.52 A família Lage e os outros grandes proprietários da região abandonaram o plantio do café, em meados dos anos 50 e passaram a criar gado. Algumas propriedades dedicaram-se ao cultivo da cana-de-açúcar. Bem mais tarde, a família Siqueira montou uma usina de álcool, de grandes proporções, proporcionando empregos à população. Uma empresa pernambucana montou outra usina de menor porte. Seguindo a tendência dos grandes cafeicultores, pequenos e médios proprietários destruíram seus cafezais e voltaram-se à produção de gêneros de subsistência e de gado. Algumas propriedades passaram a produzir cana-de-açúcar em sistema de parceria com as usinas. Nas pequenas propriedades, formadas a partir dos projetos de colonização particular, estava a reserva de mão-de-obra para os empreendimentos de açúcar e álcool. A estrutura fundiária manteve-se praticamente inalterada, desde os anos 50. A família Siqueira lançou seu candidato a governador de Goiás, Otávio Lage de Siqueira, filho de Jales Machado. Disputou com o clã dos Freitas, de Jaraguá, na pessoa do candidato Dr. Peixoto da Silveira. Otávio Lage se elegeu, para o período de janeiro de 1966 a março de 1971. Goianésia conseguiu dar o salto e se integrar a uma economia mais ampla. Metade da produção de açúcar, proveniente dos empreendimentos dos Siqueira é exportada para outros países. Em entrevista, Otávio Lage assegurou que eles poderiam enviar para fora do Brasil toda sua produção de açúcar, mas, é estratégia da empresa fornecer a um mercado local, a metade da produção. O pequeno proprietário dos projetos de colonização transformou-se no operário das usinas de açúcar e álcool. Constituiu-se em reserva de mão-de-obra para as necessidades de expansão do capital. 52 Informação conseguida em entrevistas realizadas com o Sr. João Carneiro de Mendonça (22/07/98) e com o Dr. Otávio Lage de Siqueira (18/02/99). 41 Ceres permaneceu tutelada pelo governo federal até 1959. Essa presença prolongada da administração federal dificultou a criação de um espaço político próprio dos lavradores da CANG e trabalhadores do município, de maneira geral. As pequenas colônias, uma vez transformadas em propriedades privadas, começaram a se descaracterizar. As previsões de Speridião Faissol53 se concretizaram. O esgotamento do solo e a inviabilidade do empreendimento levaram a um processo gradativo de concentração da terra. O poder que emergiu, nasceu dos primeiros colonizadores. A exemplo de Jaraguá, duas famílias, os Mendes e os Melo, revezam no poder, há mais de duas décadas. O que restou para Jaraguá? “Diony... comprou lotes nos loteamentos novos, comprou muitos lotes e dizia que não gostava do progresso porque este era inimigo dos homens do lugar. E foi uma realidade. O homem tinha uma visão incrível!”54 “Hoje Ceres está muito maior do que Jaraguá. Eu acho que Goianésia também. Já passaram Jaraguá muitas vezes, em população e tudo.”55 Restou a estrutura fundiária antiga e a política tradicional. Apesar de alcançado pela frente pioneira, Jaraguá permaneceu o mesmo. Ele se desfez de seus distritos, deu as costas para as possibilidades de alterações tecnológicas e recusou as transformações nas relações de trabalho. Mas, esta não foi uma recusa voluntária. Foi o seu passado que não permitiu. Jaraguá era um núcleo tão singular, tão voltado para suas próprias entranhas, tão debruçado sobre seu próprio passado, que sua população preferiu perder a corrida do desenvolvimento econômico do que descaracterizar-se enquanto antiga localidade aurífera. Preferiu manter o apoio a seus antigos líderes políticos. Oportunidades Jaraguá teve. Sua elite dominante confundiu-se com a elite cafeicultora, que se instalara no Distrito de Goianésia. A família Castro mantinha estreito relacionamento com os Machado de Siqueira. O outro grupo político de Jaraguá, os Freitas, chegou a defender publicamente a produção do café como a salvação de Goiás. 53 Sobre o assunto, pode-se consultar: FAISSOL, Esperidião. ―O Problema do Desenvolvimento Agrícola do Sudoeste do Planalto Central do Brasil‖. Revista Brasileira de Geografia. Ano XIX n.º 1 e ―FAISSOL, Speridião. O Mato Grosso de Goiás. Rio de Janeiro, IBGE/Conselho Nacional de Geografia, 1952. Biblioteca Geográfica Brasileira. Publicação n.º 9 da série A ―Livros‖. 54 55 Entrevista com Joaquim Militão. Entrevista com Clotário de Freitas. 42 Um dos mais brilhantes discursos já feitos na Assembléia Legislativa de Goiás foi de um político saído de Jaraguá, Dr. Peixoto da Silveira56, em defesa da produção do café. De nada adiantou. O seu passado não permitira a organização da população, dos trabalhadores, em um projeto próprio. As necessidades da população, como um todo, foram sempre as necessidades das elites. As elites mineradoras, e depois as agrárias, construíram habilmente suas bases de sustentação nos laços de parentesco, de compadrio e de amizade. A Igreja Católica ofereceu o suporte para a concórdia, a subserviência e o entendimento da população. Jaraguá continuou com sua pachorra, sua vida simples, sua economia pouco articulada com um mercado, mas garantindo a sobrevivência de uma geração após outra. As lendas em torno do ouro foram mais fortes. O chamamento da ―Tereza Bicuda‖ manteve o encantamento do povo. 57 A exemplo de outras sociedades tradicionais, Jaraguá acionou mecanismos de defesa contra atitudes de mudanças e de alterações no status quo. Só mais tarde, quando reverteu-se o quadro de população rural/população urbana no Brasil, quando a pressão demográfica forçou o crescimento, mesmo das pequenas cidades, foi que Jaraguá perdeu sua inocência. Cresceu, descaracterizou-se. Os moradores deixaram de ser parentes uns dos outros, mas, em determinados momentos, nas festas, nas comemorações religiosas, o passado volta. A consciência coletiva se explicita. Os mitos, as lendas de Tereza Bicuda povoam novamente a cidade. E ela se encontra com o seu próprio passado. Referências ALENCAR, M. A. G. Estrutura Fundiária em Goiás. Goiânia: UCG, 1993. BERTRAN, P. História de Niquelândia. Do Distrito do Tocantins ao Lago de Serra da Mesa. Brasília: Verano, 1998. 56 SILVEIRA, Peixoto da. Goiás e a Cafeicultura. Discurso pronunciado na Sessão d dia 5 de outubro de 1949, na Assembléia Legislativa do Estado de Goiás. Goiânia, Tip. e Enc. da Escola Técnica de Goiânia, 1950. 57 ―Tereza Bicuda‖ é uma lenda de Jaraguá. Ver VALADARES, Ione Maria de Oliveira e LIMA, Nei Clara de. Histórias Populares de Jaraguá. Tereza Bicuda. Goiânia, Centro de Estudos de Cultura Popular, ICHL/UFG, 1983. 43 CAMPOS, F. I.; DUARTE, A. T. O Legislativo em Goiás. (Volume 1 – História e Legislaturas).Goiânia: Assembléia Legislativa de Goiás, 1996. DUARTE, L. E. A. M. O Poder e a Estrutura nos Municípios de Ceres e Jaraguá-Go: uma análise comparativa. Tese apresentada à Faculdade de Filsofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1999. IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, Vol. XXXVI, 1958. IBGE. VII Recenseamento Geral do Brasil. Série Regional, vol. II, Tomo XIV, 2ª Parte, 1960. Jornal ―Avante‖. Órgão Informativo Noticioso e Literário. Ano 1.Nº 1 a 9. Jaraguá (Goiaz), 1946. PALACIN, L. ; GARCIA, L. F.; AMADO, J. História de Goiás em Documentos I. Goiânia: Ed. da UFG, 1995. ROMACHELI, M. H. A. História de Jaraguá. Goiânia: Kelps, 1998. SAINT-HILAIRE, A. (1779-1853) Viagem à província de Goiás. Tradução de Regina Regis Junqueira. São Paulo: USP, 1975. SILVA E SOUZA, L. A. Memória sobre o Descobrimento, Governo, População e Coisas mais Notáveis da Capitania de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978. Fontes documentais: Arquivo do Patrimônio Público Imobiliário da Procuradoria Geral de Goiás. Livro nº 8: Registro Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Penha da Vila de Jaraguá. Abertura em 20 de agosto de 1856 e fechamento em 2 de abril de 1860. Cartório de Registro Imobiliário – Títulos e Documentos – Oficial de Protestos. Livro de Inscripção de hypothecas legais nº 2 e Transcripção de Immóveis nº 3. Livros 2 e 3. Jaraguá – Goiás. 44 2 MEMÓRIA DE MIGRAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS ENTRE ÍNDIOS E COLONIZADORES EM GOIÁS NO SÉCULO XIX. Dulce Madalena Rios Pedroso Este é um estudo de caso sobre as relações interétnicas entre colonizadores e índios em Goiás, na primeira metade do século XIX e apoia-se em documentação histórica sobre um ataque dos índios avá-canoeiro ao Engenho Nossa Senhora da Conceição, na freguesia de Traíras, em uma região na bacia do alto Rio Tocantins, antiga província de Goiás. Esse ataque indígena redundou na migração da família atingida para a região sul de Goiás, mais precisamente para a vila de Jaraguá. Nesta ocasião, no norte de Goiás ainda havia grupos indígenas como xavante, xerente e avá-canoeiro que impunham resistência à colonização. As atividades econômicas eram modestas e estavam restritas a criação de gado e a agricultura de subsistência, o 45 povoamento era reduzido e os fazendeiros se encontravam distantes um dos outros e assim, tornavam-se vulneráveis às incursões indígenas. Jaraguá recebeu migrantes em diferentes períodos da história do povoamento de Goiás. Apesar da modesta economia agropastoril, o arraial situava-se numa posição privilegiada no cenário econômico da província. No início do século XIX, Jaraguá se encontrava entre os prósperos arraiais de Goiás (Pedroso, 1999). Esta região promissora, próxima à Capital e das estradas para os arraiais do norte, do caminho oficial para São Paulo e ainda se encontrava próxima das estradas que seguem para a Bahia e Pernambuco (Bertran, 1996), tornou-se um centro de atração de migrantes. Esse fenômeno já era observado por Burchell desde 1826, quando visitou o arraial e foi estudado por Elizabeth Duarte (1999) em sua pesquisa sobre Jaraguá. A autora argumenta que o arraial do Córrego de Jaraguá foi um antigo centro minerador que sobreviveu, ao contrário de tantos outros arraiais de mineração que extinguiram-se. A autora destaca Jaraguá como núcleo populacional que resistiu, apresentando modestos traços de urbanidade, o que não permitiu a ruralização completa dos costumes (Duarte, 1999). Assim, Jaraguá passou a receber migrantes de várias localidades que vieram a contribuir para a vida econômica, social e política daquela localidade. Elizabeth Duarte observou que no século XIX, duas correntes migratórias impulsionaram o crescimento populacional de Jaraguá, sendo que, a mais antiga, os migrantes eram provenientes de antigos centros de mineração que entraram em progressiva decadência. O deslocamento da população daquelas localidades para Jaraguá ocorreu em dois momentos: fins do século XVIII e em meados do século XIX. A segunda corrente migratória, que se deu nas últimas décadas do século XIX em direção a Jaraguá, eram oriundas de regiões do sul de Goiás, além do Triângulo Mineiro e Minas Gerais. A corrente migratória que nos interessa no momento é aquela proveniente de antigos centros mineradores em decadência que convergiam para Jaraguá. Duarte destaca em seu trabalho, a intensa movimentação interna da população goiana. Esse fato também pode ser observado na obra de Jarbas Jayme, Famílias Pirenopolinas - ensaios genealógicos em que o autor, ao descrever as genealogias, mostra a grande mobilidade da população movimentandose entre Jaraguá, Pirenópolis, Vila Boa, Itaberaí, Trahíras entre outros arraiais e vilas. 46 Um exemplo de migração para Jaraguá ocorrida em fins do século XVIII, foi da família Álvares da Silva, cujo genearca é o português Manuel Álvares da Silva, nascido na freguesia de Alvarenga, Bispado de Braga, fora buscar no arraial de Cocal, freguesia de Traíras, riquezas advindas do ouro, que afloravam naquele solo. Este arraial fundado, segundo Cunha Mattos, em 1751, recebeu grande contingente populacional, relacionando 1.400 homens brancos entre europeus, paulistas e mineiros. Tal português amasiou-se com sua escrava da nação Mina, Francisca Machado (esta personagem intrigante se encontra na memória dos habitantes do povoado do Cocal, atual município de Niquelândia; a professora da UCG, Adélia Freitas está realizando um trabalho sobre ela) e teve com ela vários filhos. Entre eles, havia dois que se tornaram bem conhecidos no cenário político e cultural de Goiás daquele tempo – os padres Silvestre Álvares da Silva, vigário de Jaraguá e Manuel Álvares da Silva, vigário em Traíras e Barra. O português Manuel Álvares possuía outros filhos, sabe-se que também havia Antônio, Félix, Bento (Acervo de documentos da família Álvares da Silva) e Pedro (Cunha Mattos), porém não se conhece, ao certo, quantos filhos ele gerou durante sua vida. (Pedroso, 1999) No final do século XVIII, Manuel Álvares transferiu-se para o arraial do Córrego de Jaraguá. Era próspero comerciante, deixou várias posses para seus filhos. Entre eles o que mais se sobressaiu foi o padre Silvestre. Ele foi deputado eleito pela província de Goiás para elaborar, juntamente com outros, a primeira constituição brasileira. Era um homem culto, rico e de espírito superior.(Pedroso, 1999) Um dos irmãos do padre Silvestre era o Capitão Antônio Álvares da Silva, vivendo muitos anos em Jaraguá, deixou alí grande descendência, contudo, retornou para Traíras, visando a cuidar de suas propriedades e negócios, anos depois (Carta de Antônio Álvares da Silva). Outro exemplo de família que migrou para a vila de Jaraguá, proveniente de centros mineradores em decadência foi o casal Maria Ribeiro da Silva Aranha e seu esposo o tenente-coronel Francisco Antônio Rodrigues Ferreira. O lugar de origem desse casal é discutido; Jarbas Jayme (1973, vol. II, p.298) informa que eram provenientes de Trahíras; porém, descendentes do casal asseguram que eles vieram de Pilar. A documentação histórica sugere que o casal possuía propriedades. O registro de batismo da Paróquia Nossa Senhora da Penha de Jaraguá apresenta o casal sendo padrinhos de uma criança em 1846 (Registro de Batismo). Tiveram vários filhos, enumerando apenas alguns, podemos citar Maria Ignácia de 47 Macedo Rios (casou-se com o Cel. Tubertino Ferreira Rios), Ana Carolina Gomes (casou-se com Lourenço Gomes de Souza), Bárbara (casou-se com Saturnino Pereira Vilarinho) Herculano Rodrigues Aranha (casou-se com Maria Firmino da Costa), José Aranha (casou-se com Ana de Souza) e, o mais famoso de seus filhos Manuel Rodrigues Suzano. Segundo a memória oral da família Ribeiro de Freitas, este senhor foi em seu tempo um dos homens mais ricos de Goiás; possuía várias propriedades, era comerciante e ia ao Rio de Janeiro vender e comprar mercadorias. Ele construiu um sobrado semelhante ao hotel Globo, local onde se hospedava enquanto permanecia na então capital do Brasil. O sobrado durou pouco, pois fora construído em local inapropriado mas, informantes já falecidos conheceram alguns vestígios do tal sobrado relatando que a parede era coberta de papel decorado e as maçanetas das portas eram de prata. Até 25 anos atrás existia ainda a casa de sua mãe e uma outra casa conhecida pela população por casarão, que pertenceu a Suzano, como era mais comumente chamado. Toda essa área urbana foi destruída para a construção da Prefeitura e Câmara Municipal, contudo leva o nome da praça de Manuel Rodrigues Suzano. Na atualidade, esta área urbana de Jaraguá encontra-se totalmente descaracterizada, sua antiga configuração permanece na memória dos jaragüenses e em algumas imagens. Outro exemplo de família que migrou para Jaraguá na primeira metade do século XIX, proveniente de Trahíras foi a família Ribeiro de Freitas. A motivação desse deslocamento não foi por razões econômicas mas sim, em virtude dos confrontos com os índios daquela região que se encontravam em guerra declarada contra os colonizadores que invadiram suas terras tradicionais de ocupação. Os conflitos entre os índios avá-canoeiro e os colonos tomaram grandes proporções durante toda a primeira metade do século XIX. Acredita-se que o objetivo dos indígenas era intimidar os colonos, com o fim de mantê-los fora de seus territórios tribais. Assim, durante algumas décadas, os índios obstaram a ocupação de novas áreas dentro de seus territórios tribais, além de terem contribuído para o despovoamento de terras que estavam sob o domínio do branco. Pode-se dizer que o medo que os colonos sentiam das hostilidades indígenas contribuiu para o despovoamento de áreas ameaçadas pelos avá-canoeiro, sendo que os conflitos tomavam grandes proporções na medida que os núcleos populacionais eram pequenos e despovoados em virtude da decadência da produção aurífera e da dispersão da 48 população na vida rural. Além do que, as fazendas e os sítios de lavouras eram distantes uns dos outros, ficando estes locais, de certo modo, isolados (Pedroso, 1994). Passemos a conhecer essa intrigante história que apoia-se na memória da respectiva família, bem como na documentação histórica escrita. Em uma dessas guerras empreendidas pelos avá-canoeiro, com vistas à desocupação de seus territórios de ocupação, atingiu o engenho de cana-de-açúcar Nossa Senhora da Conceição, pertencente à família Ribeiro de Freitas, na freguesia de Trahíras. Uma das evidências a respeito da incursão indígena ao engenho encontra-se sob forma de crônica; a autora, Yêda Rios Brandão, é descendente da família atingida por esse acontecimento, para eles traumático, transmitido oralmente ao longo de cinco gerações, até ser registrado por escrito na década de 1950. Um documento histórico oficial é uma correspondência do presidente da província de Goiás solicitando permissão ao governo imperial para formar recrutas a fim de combater os índios avá-canoeiro que atacaram várias fazendas dos distritos de Trahíras, Carmo, São Félix e Amaro Leite. O documento arrola, ainda, a localização de cada uma dessas propriedades, bem como o nome dos fazendeiros e aparece o nome da proprietária do engenho, a ancestral da família. Ela e seus filhos transmitiram a seus descendentes esse evento, tantas vezes recordado e contado e que provocou a mudança dessa família para uma outra vila. O encontro entre as duas fontes históricas de natureza distinta indicando um só evento enriquece a reconstituição histórica permitindo uma compreensão mais abrangente do próprio acontecimento. O relato oral, em forma de crônica, e o documento oficial formam elos de transmissão de um mesmo fato. Em vários aspectos a narrativa que se baseia em informação oral e o documento histórico apresentam pontos em comum. Em outros, observa-se que a crônica foi mais além, pois, como relato de um testemunho subjetivo e falado, apresenta detalhes do evento e acrescenta outros novos, que possivelmente até nem existiram, o que ocorre porque a memória não se cristaliza. Ela acompanha o movimento do indivíduo, das massas e da cultura com os quais o indivíduo se relaciona. Por meio da linguagem, a memória é socializada e unificada, aproximando os sujeitos e limitando suas lembranças sobre os acontecimentos vividos no mesmo espaço histórico e cultural. Ao longo de mais de cem anos que separam as cinco gerações, mesmo mantendo a informação essencial, essa 49 história foi várias vezes recontada, reinterpretada e atualizada, e está repleta de lembranças, mas também de revisões, de recuperações, de reinterpretações atualizadas do passado (Kenski,1997). O relato oral é criativo e imaginativo e a esse aspecto, o pesquisador deve ficar atento, pois o relato está sujeito a variações, quando mudam as necessidades sociais e os valores de seus narradores e ouvintes, por exemplo, quando a memória é atualizada, conforme a influência social do meio em que vivem narradores e ouvintes. O relato oral está sempre comprometido pelo contexto no qual foi transmitido. É uma evidência social, mas deve-se estar alerta para a subjetividade contida no relato. Comparando as duas fontes históricas, observa-se que na crônica se operou a chamada memória ficcional, extremamente imaginativa, que reinterpretou fatos, criou outros, enfim, o atualizou à medida que o tempo passava e, no imaginário do colono, impera a ideologia do colonizador, exagerando o relato em determinados momentos e mostrando outras nuances que, em um documento escrito formal, dificilmente acontece. Halbwachs (apud Kenski, 1997) ensina que a memória é um trabalho de reconstrução alterada do passado, de acordo com os valores e as referências culturais do grupo social ao qual o sujeito da memória pertence na atualidade. Thompson (1992) destaca que o processo da memória depende não apenas da capacidade de compreensão do indivíduo, mas também de seu interesse sobre determinado assunto. Ele acredita que é muito mais provável que uma lembrança seja precisa, quando há interesse ou alguma necessidade social. Ainda assimila que é necessário indagar como surgiu determinada evidência. Neste sentido, convém esclarecer a respeito da autora da crônica que relata essa história transmitida pela memória. A autora, Yêda Rios Brandão, nasceu na década de 1920 em Jaraguá-GO. Foi educada em colégio interno em Silvânia, antiga Bonfim, Goiás. É casada, mãe de 11 filhos e dona de um cartório no interior. Yêda Brandão aprecia a leitura de bons romances e sempre gostou de escrever. Seu passatempo predileto era colecionar histórias de famílias e histórias antigas de sua terra natal. O seu interesse ia além de ouvir antigas histórias. Ela buscava nos cartórios e nos registros paroquiais de sua cidade as informações de seu interesse. A crônica que ela assina apresenta a luta de seus antepassados 50 pioneiros no trabalho da terra e a disputa dessa terra com os índios habitantes daquela região. Tal conflito provocou a migração de sua família para a vila de Jaraguá. Mostrando a trajetória percorrida pela memória da família até alcançar a quinta geração, na qual a autora se insere, ao final de sua história, Brandão (1950, p.8) escreve: ―Esta história contou-me minha mãe, cujo pai Balthazar, era filho de Antônio que tinha por mãe Laura‖. Laura é a ancestral da família que se defendeu do ataque indígena de maneira originalíssima. Yêda Brandão registra essa história, em forma de testemunho oral, mais de 111 anos após ter ocorrido. Deve-se esclarecer um dos aspectos que possivelmente motivaram a retenção na memória de histórias como essa. Nas cidades do interior de Goiás, em séculos passados, poucas novidades havia para entreter seus habitantes. Assim, ocorriam reuniões em família para ler e contar estórias e enredos de romances, e também muito se falava sobre a história da família ou personagens interessantes que viveram no passado. Contos, estórias, narrativas eram contadas e recontadas; ainda era um tempo em que ouvir e contar estórias era prazeroso.(Ver ainda sobre lendas de Jaraguá: Lima e Valadares, 1983a e b). Em 1983, a autora datilografou a crônica que escrevera e distribuiu uma cópia para os seus familiares, difundindo, desse modo, essa interessante e reveladora história de sua família. A documentação histórica oficial possui elementos originais em relação à crônica. Essa documentação encontra-se entre os informes de guerra, em ofício do presidente da província de Goiás, Pe. Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, ao Ministro dos Negócios do Império, datado de 3 de setembro de 1839, informando-o dos ataques dos índios avá-canoeiro às várias fazendas dos distritos de Trahíras, Carmo, São Félix e Amaro Leite1 e dos prejuízos deles decorrentes. Escreve o presidente: ― em 3 de julho o gentio Canoeiro surpreendeu dois escravos de D. Laura Innocência Furtado e os matou a flechada em um canavial a três léguas distante da Vila de Trahiras.‖ O texto do documento oficial que se refere ao ataque indígena é sucinto, porém, no contexto social da primeira metade do século XIX, é bastante revelador sobre a situação da colonização no norte de Goiás. Com o advento da exploração aurífera em Goiás, várias 1 Ofício do Presidente da Província Luiz Gonzaga de Camargo Fleury para o Ministro dos Negócios do Império. N 136 – 3/9/1839, p. 20. In: 1838-1845: Ofícios da Presidência da Província para os Minist´rios do Império, Marinha e Estrangeiros. Arquivo Histórico Estadual de Goiás – A.H.E.GO 51 povoações foram fundadas ao longo do rio Maranhão/Tocantins para a exploração das jazidas, entre as décadas de 1730 a 1750. Essas frentes pioneiras de exploração fixaram-se, desse modo, em territórios de ocupação indígena, obrigando-os a migrarem para outras áreas. No final do século XVIII a decadência das minas provocou o despovoamento de vários núcleos populacionais que se sustentavam graças à atividade mineradora. Esses povoados encontravam-se, muitas vezes, isolados uns dos outros, e seus habitantes, dispersos na vida rural, tornavam-se frágeis e expostos às represálias indígenas. A documentação histórica aponta que a partir de então, acirraram-se os conflitos armados entre índios e colonizadores, em razão da disputa pela posse da terra, sobretudo no norte da província de Goiás, onde a produção aurífera esgotou-se mais cedo. Os índios que habitavam aquela região eram os Canoeiros, assim designados por navegarem o caudaloso Maranhão/Tocantins em canoas (a partir da década de 1970, eles passaram a ser chamados de avá-canoeiro). Esse grupo indígena possuía seus territórios de ocupação em uma extensa região ao longo do alto Rio Tocantins, em ambas as margens e ilhas desse rio, desde a foz do Rio Santa Tereza, ao norte (atualmente estado do Tocantins), até a foz do Rio das Almas, um dos formadores do Rio Maranhão/Tocantins, limite meridional das terras de movimentação indígena. A fixação de contingentes populacionais para a exploração das minas de ouro provocou a migração dos avá-canoeiro para a margem esquerda do rio; contudo, os índios ainda se movimentavam em toda aquela região que, gradativamente, foi sendo ocupada pelos colonizadores (Pedroso, 1994) A crônica de Brandão (1950, p. 2) apresenta-se com um outro olhar - a versão do colonizador que sofre o ataque. Como evidência histórica, a informação oral, por meio da linguagem transforma-se em memória do vivido. Pedroso (1994) em seu estudo sobre os avácanoeiro nos séculos XVIII e XIX, informa que os colonos tinham verdadeiro pavor dos índios, cultivado em décadas de lutas e enfrentamento entre ambos. O medo e o ódio, aliado ao preconceito, criaram um imaginário completamente desfavorável ao indígena. Entretanto, no centro da discórdia, residia a questão da exploração da terra e da utilização da mão-deobra nativa. A crônica de Brandão (1950, p.2) inicia-se mostrando o convívio compulsório entre índios e colonizadores em uma região disputada por ambos. 52 “Era no tempo, em que os homens movidos de ambição ou sequiosos de aventuras se reuniam em grupos chamados bandeiras e se afundavam no sertão. Em seus rastros surgiam povoados, cidades. Rios, serras e chapadões iam sendo vistos e batizados. Índios e feras acuados cediam lugar ao invasor. Traíras nasceu sob o império do ouro tendo a seus pés o rio do mesmo nome. Em seus arredores viveram Laura e o capitão Joaquim Ribeiro de Freitas2. Possuía o casal propriedade com lavoura, engenho de cana e bom número de escravos. A fazenda progredia, o ouro encontrado era secado em couro de bois. Porém os índios, que antes mantinham com os fazendeiros relações amistosas em contacto com os brancos se tornaram espertalhões e buliçosos, começando a fazer-lhes freqüentes visitas. Amarravam a cauda dos animais umas as outras para em seguida afugentálos, paravam o monjolo, enchiam o pilão de esterco, desviavam o curso de rego d‟água, roubavam os porcos e aves.” De acordo com o relato oral, o capitão Joaquim Ribeiro de Freitas e sua família possuía boa situação econômica (Brandão, 1950). Essa situação é confirmada pela documentação histórica oficial referindo-se ao mesmo Capitão-Mor3, como um proprietário abastado em Trahíras, e sua fazenda consta na relação de engenhos de Trahíras em 18234. Freitas foi um dos fundadores da Sociedade de Comércio de Trahíras, criada em 1806, para incentivar a navegação e comércio entre as capitanias de Goiás e do Pará, pelo Rio Tocantins5. Na documentação escrita além de seu nome, encontram-se os de outros proprietários da região de Trahíras, Niquelândia e Pilar que solicitavam a D. Francisco de Assis Mascarenhas, governador da capitania de Goiás, providências urgentes para possibilitar a navegação pelo Rio Maranhão, impedida pelas hostilidades dos índios avá-canoeiro que habitavam às suas margens6. A crônica de Brandão (1950) informa que os indígenas manifestavam abertamente sua indignação, usando de artimanhas para amedrontar o colonizador. Brincadeiras e travessuras eram relativamente comuns em locais de movimentação dos avá-canoeiro no 2 Nota da autora da crônica – Em 1760 e 1785 em Trahíras Goiás, nasceram os protagonistas desta história: Joaquim Ribeiro de Freitas e Laura Innocência Guedes Furtado. 3 Relação dos Officiais de Ordenanças desta Província que se Achão Registrados nas patentes do livro da Comarca da Província. A.H.E.GO 4 Mapa Geral da população e número de cazas e propriedades da Vila de Trahíras e seu Distrito. In: Relação da População da Província de Goiás, Correspondência e Mapas dos Comandantes das Ordenanças: 1823-1824. A.H.E.GO. 5 Correspondência Oficial de D. Francisco de Assis Mascarenhas com a corte:1804-1807. Códice 9.4.2. Doc 188, Of. n3, p. 58 e 59. Sessão de Manuscritos da Biblioteca Nacional/RJ 6 Idem. 53 território goiano, que estava sendo ocupado pela expansão da atividade agropastorial, como informam a documentação histórica (Pedroso, 1994) e os depoimentos orais dos regionais que viviam nessas áreas, até por volta da década 19507. Vale informar que os índios avácanoeiro dividem-se em duas comunidades distante uma da outra e, foram contatados pela Funai em 1973 e 1983, encontrando-se em número bastante reduzido nos estados de Goiás e Tocantins. Os dois grupos são pequenos grupos familiares que sobreviveram à violência das frentes de ocupação colonizadora em Goiás. A memória da família reteve detalhes coincidentes com as fontes escritas a respeito do contato interétnico entre índios e conquistadores. A documentação oficial informa que o ataque ao engenho ocorreu no dia 3 de julho de 1839, e na crônica, em determinados momentos, a memória se apresenta nítida, precisa, com extrema sensibilidade pela ambientação. A emoção vivenciada permaneceu na memória e foi transmitida ao longo do tempo, como neste trecho (Brandão, 1950, p.2): ―Certa noite estava toda família reunida. Em junho, as noites são frias e na varanda agrupava-se em torno de um tacho com brasas, que montes de sabugos atirados em intervalos conservavam vivas‖. Na memória, a sensibilidade marcou a temperatura baixa do mês de junho, dias antes do ataque indígena, que aconteceu no início do mês seguinte, conforme atesta o documento arrolado. A lógica da emoção desencadeia, em determinados momentos, sentimentos e sensações (Kenski, 1997). É interessante discutir a fidedignidade do relato oral, apontado por Thompson (1992) e Kenski (1997). Cada pessoa é única em sua capacidade de relembrar os fatos. O interesse em lembrar pontua, em certa medida, a fidedignidade do relato e a razão para ser contado diversas vezes é porque havia um significado para quem lembra e conta histórias. Kenski (1997) reconhece que a memória depende das características pessoais das pessoas dispostas a lembrar e daquelas que se sentem mobilizadas a ouvir as histórias. Como um ato voluntário de recordar fatos passados, de reviver a emocionalidade daquele momento pela linguagem oral, repete-se cada detalhe passado, filtrando a imaginação e a emoção. A memória é livre e espontânea e obedece às regras da emocionalidade. 7 Ver PEDROSO, D.M.R. Os índios Avá-canoeiro. In: MOURA, M.C.O (org.) Os índios de Goiás. Goiânia: Ed. UCG (no prelo) 54 A narrativa mostra também a apreensão daquela família, com receio da presença indígena que revelava sinais de hostilidade. Os habitantes da fazenda estavam preocupados e receosos, quando uma noite, furtivamente, os índios aventuraram a aproximar-se da casa grande, e misteriosamente, um índio foi morto. Brandão (1950, p.3) escreve a reação dos presentes: “O capitão, de pé, com os braços para traz, mãos ajuntadas com força mostrava o seu desagrado. Ele dera ordens para ninguém reagir, esperando que se cansassem de tão extravagantes brincadeiras. (...) Pelas fendas das portas podia-se ver os selvagens alí mesmo, debaixo da limeira da Pérsia. Com o luar seus corpos cobertos de garatujas bizarras, (...). O pensamento de todos ficou parado com enorme estampido ecoado longamente na noite do sertão, a gritaria e o tropel dos selvícolas em disparada. O capitão avançou a porta, reforçada com trancas de madeira. Os filhos mais velhos e os escravos correram a ajudá-lo e ante o desespero das mulheres foram ao acontecido. Junto a limeira jazia um índio. Todos se quedaram horrorizados! Quem contra as ordens do capitão ousara matá-lo? Deram pressa em enterrá-lo antes que os outros notassem que um dos seus alí ficara.” Algum tempo se passou sem que os índios dessem sinal algum, porém, em dado momento surpreenderam os colonizadores com um ataque: “Várias vezes o sol sumiu e apareceu sem que os índios voltassem. Aliviados os fazendeiros julgavam que o tiro amedrontando-os conservavaos a distância. A vida tomou de novo o rítimo normal, acalmaram-se os ânimos. Certa manhã, como não precisassem ficar de guarda, seguiram os negros para as plantações. Em casa ficaram as mulheres, crianças e os escravos mais idosos. Eis, que em meio ao silêncio costumeiro ladra um cão. Outro, mais outro, (...). Justino! Justino! Gritaram todos de uma vez, olha o Justino! De uma trilha na mata vinha um negro em disparada: - Sinhá, fecha a casa sinhá, aí vem eis, tapui! - Laura correu ao sino e puxou-o. De cada canto do grande terreiro surgiram negras com os filhos. Todos entraram e Justino cansado e sem forças foi puxado para dentro da casa. Portas e janelas fechadas, pesadas trancas vieram reforçá-las. O escravo com esforço foi contando: - Tapui matô os nego tudo e eu escapô subino num coqueiro. Não acabara de falar e já a algazarra tenebrosa dos índios enchia o terreiro aproximando-se da casa. Paus e pedras eram atirados as portas e janelas, 55 que estavam sendo forçadas. Na casa foi grande a confusão, quando uma negra apontou para o telhado gritando: - Oia alí sinhá, eis tira as teia e vai entrá! Laura correu para a cozinha: -Aticem o fogo do sabão (...). Clemente, ó Clemente, Maria, Tereza peguem a cuia e atira-lhes sabão. As negras musculosas munidas de grandes vasilhas correram à tacha e tomando o líquido preto e fervente iam jogando nos selvagens. (...) O ataque as portas e telhados recomeçaram mais intensos, quando um tiroteio se fez ouvir. (...) Os atacantes atiraram-se nas matas em correria. (...)” A autora evidencia a figura de sua ancestral, Laura Innocência Furtado, pois ela se encontrava no engenho durante o ataque e seu marido o capitão Joaquim estava ausente naquele momento difícil. Foi Laura quem deu as ordens aos filhos e escravos durante a incursão indígena. Ela sugeriu jogar sabão quente para o alto, a fim de afugentar os atacantes. Quanto à presença de Laura Innocência no engenho, durante o ataque indígena e à ausência de seu marido, o capitão Joaquim, pode ter ocorrido uma condensação na memória sobre eventos distintos. Como assinala Thompson (1992), esta confusão é relativamente comum, e segundo o autor, mostra a reorganização da memória e como se constrói a consciência de uma pessoa. Ao contar essa história e outras sobre a própria família, certamente falou-se no capitão Joaquim pois, ele era marido de Laura e pai de seus filhos. Possivelmente uma compreensão equivocada situasse o capitão na história, que assim foi transmitida por meio da oralidade e chegou a ser fixada na crônica. A própria Yêda Brandão, em uma conversa, formulou a suspeita de que ele não participara da luta, por já haver falecido, o que é corroborado por análise da documentação oficial. Se ele nascera em 1760, como informa Yêda Brandão, ele teria em 1839, ano em que ocorreu o ataque indígenas, 79 anos de idade. Contudo, o ofício do presidente da província relatando a incursão indígena ao engenho refere-se ao nome de Laura como proprietária da fazenda. Por que não constava o nome do capitão? Mais uma razão para considerar que ele já havia falecido. Laura e seus filhos saíram da freguesia de Trahíras para residir em Jaraguá, possivelmente por que seu filho Alexandre vivia naquela vila (Fonseca, 1999, p.67). A família abandonou o engenho, como aponta o documento sobre terras no município de Niquelândia (antiga São José do Tocantins), localizado a seis quilômetros de distância da antiga Vila de Trahíras (na atualidade, é apenas um povoado com ruínas à vista). O 56 documento de terras8 se encontra no cartório de registro de imóveis em Niquelândia, datado de 1858, informa que ―o padre Manuel Ribeiro de Freitas possui um sítio, que se acha em tapera, denominado Engenho N. S. da Conceição que recebeu de sua mãe falecida (...)‖. Se o engenho era uma tapera, significa que fora abandonado. O documento de terras informa que o padre recebera aquelas terras como herança, após a morte de sua mãe, e nomeou um procurador em Trahíras para vender aquela propriedade. Supõe-se que Laura Innocência Furtado não demorou a se transferir com sua família para Jaraguá pois, nesta mesma vila, aparece seu nome nos registros de batismos da paróquia N. S. da Penha, em 1841, como madrinha de uma criança9. Essa foi uma das famílias que migraram para outras regiões temendo as incursões indígenas. A documentação histórica oficial refere-se à questão do despovoamento em determinadas áreas no médio norte de Goiás, na primeira metade do século XIX, em virtude das hostilidades dos índios (Pedroso, 1994). Na primeira metade do século XIX os avácanoeiro desencadearam uma guerra contra o conquistador, visando a impedir a fixação de estabelecimentos rurais naqueles territórios e os colonos dalí se afastavam temerosos dos ataques indígenas. De acordo com Brandão (1950, p6), ― os índios mataram os negros das plantações, só escapando Justino, que escondido na copa de alto coqueiro avistara toda tragédia. (...) Os prejuízos representavam anos de luta com o mato bruto, índios e feras‖. A documentação oficial e o relato oral reproduzido na crônica contradizem-se quanto ao número de escravos mortos pelos índios. O imaginário do colonizador é permeado pelas relações interétnicas conflituosas. O exagero na informação oral é até certo ponto comum, e essa distorção também se apresenta na documentação oficial no relato sobre os prejuízos causados pelos indígenas, justificando, assim, as expedições em represália contra eles (Pedroso, 1994). A população goiana criou um imaginário a respeito dos índios que se mostrou muito criativo ao longo do tempo. A crônica é composta de dois momentos significativos: um na 8 Cartório do primeiro Ofício, do Judicial e Notas, da Comarca de Niquelândia, Estado de Goiás, na forma da lei.Doc. 3, pasta 33-72, fls.20. Vila de Trahíras em 18/9/1858. Assina o escrivão Teófilo José Taveira, Niquelândia, outubro de 1959. 9 REGISTRO DE BATIZADOS:1840-1849. Arquivo da Paróquia N. S. da Penha de Jaraguá-GO. 57 freguesia de Trahíras apresentando o confronto com os índios e depois, um outro momento, em Jaraguá. Como informa a autora [1950, p.6]: ― Dias se passaram e a fazenda do capitão era um lugar de morte. (...) Decidiram mudar-se. Eles não temiam a floresta nem os animais, mas o índio sabiam-no vingativo e cruel. Perseguiria seus descendentes em muitas gerações‖. Um dos traços do imaginário dos regionais10 refere-se à perseguição dos índios a quem lhes fazem mal, em uma atitude de vingança. Na segunda parte do conto, a família já estava em Jaraguá e a autora refere-se a uma negrinha escrava, muito afeiçoada a Laura e que desaparecera subitamente, reaparecendo misteriosamente dias depois, relatando a sua convivência com os indígenas, durante o tempo em que ficara ausente. Tal acréscimo na crônica pode ser um resquício do medo de perseguições, criado pelo imaginário e que faça sentido, misturando elementos de um tempo glorioso que se passou. A Vila de Traíras foi um arraial aurífero muito populoso, e um dos mais esplendorosos da capitania de Goiás no período colonial e acredita-se que, ainda no século XVIII, superava a então capital da província de Goiás, Vila Boa (Bertran, 1998). Em Trahíras, também era tocada música sacra de excelente qualidade, como em Mariana, Minas Gerais (Pinto, 2002). Aos poucos, a vila cedeu lugar a um pequeno povoado em ruínas. Vale dizer que os moradores de Niquelândia, na década de 1940, demoliam e vendiam materiais dos prédios em decadência em Trahíras (Niquelândia, 1943). A autora [1950, p.7 e 8] questiona a ruína completa de Trahíras assim se expressando: ―Da florescente Trairas, hoje só resta em pé uma casa. Vê-se nas ruínas o valor de seu passado. (...) O que teria sido? O ouro esgotou? Foram (sic.) o sofrimento dos presos clamando contra a cidade maldita? Por que bateram num padre? Foram os índios? Sim, para muitos foram eles que em desespero pelo que lhes fora usurpado, procuraram afastar para bem longe o conquistador, alquebrando espíritos bravos como os de meus antepassados.‖ A crônica [Brandão, 1950] analisada reflete a memória de longa duração que guarda elementos originais do que se passou, corroborados pela documentação oficial. Por outro 10 Este estudo está sendo realizado por PEDROSO, D.M.R. Projeto Memória e Imaginário: relações interétnicas entre colonizadores e uma comunidade tupi no Brasil Central. Goiânia: Universidade Católica de Goiás/IGPA, 2003. 58 lado, como expressão de relato oral é criativa, imaginativa e condicionada ao grupo social em que o sujeito vive. Referências BERTRAN, P. História de Niquelândia: do Distrito do Tocantins ao Lago de Serra da Mesa. Brasília: Verano Editora, 1998. BRANDÃO, Y. R. Crônica, escrita em Jaraguá na década de 50. Goiânia: trabalho datilografado, 1983. CARTA de Antônio Álvares da Silva e sua esposa Benedita Francisca a seu filho Manoel Álvares da Silva (residente em Jaraguá), em Trahíras, a 27 de julho de 1859. Acervo de documentos da família Álvares da Silva de Jaraguá. CARTÓRIO do primeiro Ofício, do Judicial e Notas, da Comarca de Niquelândia, Estado de Goiás, na forma da lei. Doc. 3, pasta 33-72, fls. 20. Vila de Trahíras em 18/9/1858. Assina o escrivão Teófilo José Taveira, Niquelândia, outubro de 1959. CORRESPONDÊNCIA oficial de D. Francisco de Assis Mascarenhas com a corte: 18041807. Códice 9.4.2. Doc. 188, Of. N. 3, p. 58 e 59. Sessão de manuscritos da Biblioteca Nacional/RJ. DUARTE, L. E. A. O poder e a estrutura agrária nos municípios de Ceres, Jaraguá – GO: uma análise comparativa. São Paulo: Tese de doutorado defendida na USP, 1999. FONSECA, L. Tradição e modernização em Jaraguá. Goiânia: Dissertação de Mestrado defendida na UFG, 1999. JAYME, J. Famílias Pirenopolinas – ensaios genealógicos. Pirenópolis/GO: 1 edição póstuma, 1973. Vol I a VII. LIMA, N. C. ; VALADARES, I. M. O. Histórias Populares de Jaraguá. Goiânia: Cecup/ICHL/UFG, 1983a. 59 ___________ Histórias Populares de Jaraguá: Tereza Bicuda. Goiânia: Cecup/ICHL/UFG, 1983b. KENSKI, V. M. Sobre O Conceito de Memória. In: FAZENDA, Ivani (Org.) A pesquisa em educação e as transformações do conhecimento. 2ªed. Campinas, SP: Papirus, 1997 (Coleção Práxis). MAPA Geral da população e número de cazas e propriedades da Vila de Trahíras e seu distrito. Relação da população da província de Goiás, correspondências e mapas dos comandantes das ordenanças: 1823-1824. Arquivo Histórico Estadual de Goiás. OFÍCIO do presidente da província Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, para o Ministro dos Negócios do Império. N. 136 em 3/9/1839 p. 20. (1838-1845: Ofícios da Presidência da Província para os Ministérios do Império, Marinha e Estrangeiros. Arquivo Histórico Estadual de Goiás.) PEDROSO, D. M. R. O povo invisível – a história dos avá-canoeiro nos séculos XVIII e XIX. Goiânia: Ed. UCG, 1994. ___________ Jaraguá: a formação de um povoado. In: Revista de Divulgação científica/IGPA. Goiânia: Ed. UCG, 1999. v. 3. ___________ Breve relato sobre a vida do músico e maestro Manuel Marcelino Álvares da Silva. Goiânia: texto escrito por ocasião das comemorações do dia de Santa Cecília (22/11/1998) padroeira do canto e da música. Homenagem ao músico jaragüense/GO; trabalho digitado, 1998. ___________ Histórias de Jaraguá – a casa do padre Silvestre Álvares da Silva. Goiânia: ―O Popular‖ em 9/07/1999. ___________ Os índios avá-canoeiro. In: MOURA, Marlene C. O. de. Os Índios de Goiás. Goiânia, Ed. UCG, 2003 (no prelo) PINTO, Marshal G. Da missa ao Divino Espírito Santo ao Credo de São José do Tocantins. Dissertação de Mestrado apresentada na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2002. NIQUELÂNDIA-GO. Edital datado de 1943 do prefeito municipal de Niquelândia-GO José Vieira Filho. Centro Cultural Antônio Ermírio de Moraes. 60 RELAÇÃO dos officiais de ordenanças desta província que se achão registrados nas patentes do livro da comarca da província. Arquivo Histórico Estadual de Goiás. REGISTRO DE BATIZADOS – 1840. Arquivo da Paróquia Nossa Senhora da Penha de Jaraguá-GO. THOMPSON, P. A voz do passado: história Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 61 Anexo Em 1760 em Trairas – Goiás, nasceram os protagonistas desta história: Joaquim Ribeiro de Freitas e Laura Innocência Guedes Furtado. Para Marina, que no suceder de gerações descende de dois rebentos deste casal oferece a vovó, Yêda. Escrito em Jaraguá na década de 50. Goiânia, novembro de 1983. * * * * Era no tempo, em que os homens movidos de ambição ou sequiosos de aventuras se reuniam em grupos chamados bandeiras e se afundavam no sertão. Em seus rastros surgiam povoados, cidades. Rios, serras e chapadões iam sendo vistos e batizados. Índios e feras acuados cediam lugar ao invasor. Trairas nasceu sob o império do ouro, tendo a seus pés o rio do mesmo nome. Em seus arredores viveram Laura e capitão Joaquim Ribeiro de Freitas. Possuía o casal propriedades com lavoura, engenho de cana e bom número de escravos. A fazenda progredia, o ouro encontrado era secado em couro de bois. Porém os índios, que antes mantinham com os fazendeiros relações amistosas em contacto com os brancos se tornaram espertalhões e buliçosos, começando a fazer-lhes freqüentes visitas. Amarravam a cauda dos animais umas as outras para em seguida afugentá-los, paravam o monjolo, enchiam o pilão de esterco, desviavam o curso de rego d‘água, roubavam os porcos e aves. Certa noite estava toda família reunida. Em junho, as noites são frias e na varanda agrupava-se em torno de um tacho com brasas, que montes de sabugos atirados em intervalos conservavam vivas. O capitão, de pé, com os braços para traz, mãos ajuntadas com força mostrava o seu desagrado. Ele dera ordens para ninguém reagir, esperando que cansassem de tão extravagantes brincadeiras. Dezenas de olhos encaravam-no buscando uma decisão. O que 62 esperava? Por que tardava tanto em dar jeito? Depois de vários dias com as mulheres reclamando, e as crianças chorando medrosas, eles queriam uma providência, urgia tomá-la. Por seu lado o capitão conjecturava; larga experiência mostrava-lhe, que os índios sempre vingativos, não se brinca. Pelas fendas das portas podia-se ver os selvagens alí mesmo, debaixo da limeira da Pérsia. Com o luar seus corpos cobertos de garatujas bizarras, assustavam as aves empoleiradas, obrigando-as a soltarem penosos e lúgubres cocoricós. O pensamento de todos ficou parado com enorme estampido ecoado longamente na noite do sertão, a gritaria e o tropel dos selvícolas em disparada. O capitão avançou a porta, reforçada com trancas de madeira. Os filhos mais velhos e os escravos correram a ajudá-lo e ante o desespero das mulheres foram ao acontecido. Junto a limeira jazia um índio. Todos se quedaram horrorizados! Quem contra as ordens do capitão ousara matá-lo? Deram pressa em enterrá-lo antes que os outros notassem que um de seus alí ficara. Várias vezes o sol sumiu e apareceu e sem que os índios voltassem. Aliviados os fazendeiros julgavam que o tiro amedrontado-os, conservava-os a distância. A vida tomou de novo o ritmo normal, acalmaram-se os ânimos. Certa manhã, como não precisassem ficar de guarda, seguiram os negros para as plantações. Em casa ficaram as mulheres, crianças e os escravos mais idosos. Eis, que em meio ao silêncio costumeiro ladra um cão. Outro, mais outro, junta o seu granir ao latido angustioso do companheiro. De todas as janelas surgem cabeças curiosas. Alguém estava em perigo? Que fera fazia os cães assim tão temerosos? - Justino! Justino! Gritaram todos de uma vez, olha o Justino! De uma trilha na mata vinha um negro em disparada: - Sinhá, fecha a casa Sinhá, aí vem eis, tapui! Laura correu ao sino e puxou-o. De cada canto do grande terreiro surgiram negras com os filhos. Todos entraram e Justino cansado e sem forças foi puxado para dentro da casa. Portas e janelas fechadas, pesadas trancas vieram reforçá-las. O escravo com esforço foi contando: - Tapui matô os nego e eu escapô subindo num coqueiro. 63 Não acabara de falar e já a algazarra tenebrosa dos índios enchia o terreiro aproximando-se da casa. Paus e pedras eram atirados as portas e janelas, que estavam sendo forçadas. Na casa foi grande a confusão, quando uma negra apontou para o telhado gritando: Oia alí Sinhá, eis tira as teias e vai entrá! Laura correu para a cozinha: Aticem fogo do sabão, vamos mostrar a estas pestes. Mulher de pioneiro estava acostumada a tomar resoluções inesperadas. Ela trazia nas veias de mistura com sangue português uma fusão de raças estranhas e se fora prudente, não era por temê-los e queria mostrar-lhes. Clemente, ó Clemente, Maria, Tereza peguem da cuia e atira-lhes sabão. As negras musculosas munidas de grandes vasilhas correram à tacha e tomando o líquido preto e fervente iam jogando nos selvagens. Laura, de pé no batente da porta que ligava a varanda à cozinha comandava seu estranho exército. Atirado o sabão, os atacantes rolavam de lá de cima aos gritos e a cada nova investida o líquido subia aos jatos. Os escravos temerosos voltavam os olhos para a linda senhora que alí estava corajosa e a exigir-lhes ação. Mais água e fogo foram levados ao tacho e Laura mantinha os selvagens a distância anciosamente esperando a vinda de seu marido, que fora a vila e não devia tardar. O ataque as portas e telhados recomeçaram mais intensos, quando um tiroteio se fez ouvir. Os de casa gritaram saudando o socorro que chegava. Os atacantes atiraram-se nas matas em correria. Laura salvara os seus, mostrando ser uma autêntica companheira dos vanguardeiros, que com ousadia e coragem conquistaram o sertão. Sobrevindo a calma o capitão pôde contar tudo a mulher. De volta da cidade passara pelas roças e encontrando o sinistro voltou a procura de auxílio. As badaladas aflitas dos sinos da igreja acudiu o povo satisfeito de poder valer-se naquela apertura. Os índios mataram os negros das plantações, só escapando Justino, que escondido na copa de alto coqueiro avistara toda tragédia. As cabeças dos escravos foram espetadas nos tocos e cercas de roças, as plantações queimadas. A consternação foi enorme, pois muitos deixavam mulheres e filhos. Os prejuízos representavam anos de luta com o mato bruto, índios e feras. Os meses seguintes foram de intensa vigília. Voltariam os índios em bando ou em manhosas ciladas? Ninguém ousava sair sozinho. Se algum animal escapava, se uma vaca 64 dava cria no mato, nenhum homem queria buscá-los. Se alguém mais valente ensaiava um passeio não raro aparecia morto. Dias se passaram e a fazenda do capitão era um lugar de morte. Ficaram todos nervosos, desconfiados. A noite, qualquer ruído diferente punha-os em sobressalto. Decidiram mudar-se. Eles não temiam a floresta nem os animais, mas o índio sabiam-no vingativo e cruel. Perseguiria seus descendentes em muitas gerações. E, em um dia qualquer, do mês que se perdeu no século passado, deixaram para trás a fazenda transferindo-se para a Vila Nossa Senhora da Penha de Jaraguá, onde adquiriram a fazenda Motuca. Passaram-se um ano, dois, quando a negrinha favorita da Sinhá lavando roupa alí mesmo no riacho desaparecera. Foram dadas várias buscas mal sucedidas quando se lembraram dos selvagens. Seria possível? De que valera deixar seus implacáveis perseguidores a tantas léguas de jornada? Na certeza do acontecimento Laura definhava, quando um dia, alegre como se estivesse chagando duma agradável viagem aparece a menina. Fora apenas um grande susto. Ela trazia consigo uma concha de árvore cheia de ouro, presente dos selvícolas a Laura. Leva isso sinhora. Dona Laura muié boa, coroné home mau! Da florescente Trairas, hoje só resta em pé uma casa. Vê-se nas ruínas o valor de seu passado. De sua cadeia a mais temida de Goiás, pode-se ver os escombros. Um preso incendiou-a com os bagaços de cana, pacientemente acumulados para este fim. A igreja está caída em parte. O calçamento de pedras ainda atinge o rio, mostrando os restos de um passado laborioso, que não se ajustou ao ritmo da vida presente. O que teria sido? O ouro esgotou? Foram o sofrimento dos presos clamando contra a cidade maldita? Por que bateram num padre? Foram os índios? Sim, para muitos foram eles que em desespero pelo que lhes fora usurpado, procuraram afastar para bem longe o conquistador, alquebrando espíritos bravos como os de meus antepassados. Esta história contou-me minha mãe, cujo pai Balthazar, era filho de Antônio que tinha por mãe Laura. Yêda Rios Brandão 65 3 O LUGAR DO PADRE SILVESTRE NA MEMÓRIA DE JARAGUÁ Daura Rios Pedroso Hamú A presente capítulo tem por objetivo mostrar um estudo sobre a casa oitocentista que pertenceu ao sacerdote Silvestre Álvares da Silva, figura ímpar que se destacou não só no cenário do arraial de Jaraguá como também na província de Goiás, no período em que se deu o início do Império. O trabalho aqui apresentado é o resumo da dissertação de mestrado, oferecido pela UCG, através do IGPA (Instituto Goiano de Pré – história e Antropologia). Estudar a casa do século XIX ressalta o conhecimento da história dos homens na complexidade do seu cotidiano, do seu comportamento, das práticas da época e suas influências, assim como das manifestações quanto às técnicas e materiais construtivos. A casa do padre Silvestre, símbolo cultural de um tempo histórico, se inseriu num momento de profundas transformações políticas e culturais no país, identificadas com a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil e as conseqüentes mudanças de hábitos e padrões culturais introduzidas na sociedade. Apoiamo-nos nas fontes bibliográficas sobre a história da Jaraguá, nos documentos primários localizados nos Arquivos Históricos de Goiás e nos depoimentos de pessoas que 66 guardam na memória a história oral que a sociedade de Jaraguá construiu sobre o padre Silvestre e o significado cultural da sua casa. Foram buscadas as inéditas documentações manuscritas do seu acervo de família, que trouxeram contribuições quanto à exatidão de datas importantes que na historiografia atual não se mostram muito precisas. Apresentamos o contexto histórico de Jaraguá no século XIX, quando se deu o início do seu povoamento através da exploração aurífera, a origem do nome Jaraguá, seu desenvolvimento e a composição de sua sociedade. Destacam-se a presença marcante do negro escravo e sua participação na sociedade jaragüense, a composição da família no período mineratório e um breve histórico sobre a introdução do clero no período colonial. Em seguida, desenvolvemos a história de vida do padre Silvestre, o local do seu nascimento, a situação de seus pais na sociedade daquela época, quem foram seus irmãos, etc. Faz-se um estudo da genealogia da família Álvares da Silva em Jaraguá. O padre Silvestre foi um homem rico, erudito e político atuante, destacando-se como membro da primeira constituinte de 1823. Também é relacionada parte das obras de arte sacra que se encontram sob a guarda da família e que compunham o oratório que lhe pertenceu, juntamente com outros objetos que fizeram parte de seu cotidiano. Finalmente, a casa é estudada como símbolo da história de Jaraguá, ressaltando as influências que sofreu da arquitetura colonial, a herança portuguesa, e toda a sua composição arquitetônica, que envolve não só o seu partido arquitetônico, como também o seu programa de necessidades, o processo construtivo, os materiais utilizados e sua apropriação. Compreende-se que, através do espaço doméstico, é possível realizar uma leitura histórica que reconstitui parte da vida de seu ilustre morador. O objetivo último da pesquisa é propor o tombamento da casa do padre Silvestre como forma de preservação e contribuição no resgate de uma relíquia histórica que faz parte não só do patrimônio regional como também do nacional. Realizar ainda um trabalho educativo que possibilite ao cidadão jaragüense tornar-se um indivíduo sensível à questão da preservação do patrimônio cultural. 67 Jaraguá – Breve histórico Jaraguá nasceu da exploração das minas de ouro, na terceira década do século XVIII, durante o processo de exploração das jazidas auríferas de Goiás, assim como outros municípios deste período. Nos primeiros séculos da colonização do Brasil, várias expedições de caráter oficial percorreram parte do território de Goiás com o objetivo de explorar o interior e buscar riquezas minerais. Os desbravadores das terras goianas que formaram a bandeira de 1722 foram os três paulistas de Santana de Parnaíba: Bartolomeu Bueno da Silva, João Leite da Silva Ortiz e Domingos Rodrigues do Prado (principais sócios). Bueno ocupou a região do Rio Vermelho, seus córregos e afluentes, dando início à prospecção do ouro que veio marcar o surgimento dos primeiros arraiais de povoamento de Goiás. Os arraiais foram se formando e, às margens do Rio Vermelho, fundou-se, em 1727, o Arraial de Sant‘Ana, depois chamado Vila Boa, mais tarde cidade de Goiás, que veio a ser a capital da Capitania e assim permaneceu por 200 anos. Nas margens dos córregos e rios das proximidades de Sant‘Ana, foram surgindo outros centros de garimpo que se transformaram em arraiais: Anta, Barra, Ferreiro, Ouro Fino, Santa Rita, etc. As minas de ouro em Jaraguá, segundo Silva e Souza (1967), foram descobertas por negros faiscadores em 1737. Essa hipótese é também confirmada por Saint-Hilaire (1975,p.43): “Alguns negros que tinham ido procurar ouro nos córregos descobriram, em 1736, a região onde está situado o Arraial de Jaraguá. As riquezas encontrada ali não tardaram a atrair gente para o local e em breve se formou um povoado onde, pouco tempo antes, só existia uma região desértica.” Várias descobertas auríferas foram encontradas por escravos, já práticos em socavações. Contam-se, além de Jaraguá, as minas de Tesouras, Pilar e Cocal. Os escravos podiam comprar ou ganhar a alforria de seus senhores, devido aos seus achados (Salles, 1983, p.90-91). 68 Jaraguá era um pequeno arraial. Concomitante à exploração das minas, algumas sesmarias foram solicitadas ao governo para implantação de engenhos de açúcar e outras culturas de subsistência da população, o que proporcionou um considerável crescimento agrícola do arraial em fim do século XVIII. O ouro constituía uma atividade econômica ainda que a produção fosse pequena. Chegou a ser explorado durante todo o século XIX, e em várias décadas do século XX, por faiscadores eventuais. A distribuição populacional se apresentava escassa no Norte – Nordeste, havendo maior concentração no Centro – Sul. Os vazios de povoamento colonizador se encontravam na região dos rios Araguaia – Tocantins. A ocupação dos territórios se dava de maneira acanhada, desigual com frágil economia, dificuldades na comunicação, isolamento, e refletiam diretamente sobre a administração, educação, usos e costumes. Jaraguá recebeu primeiramente migrantes de outros centros decadentes de mineração e ainda daqueles que desapareceram. Documentos históricos apontam a vinda de pessoas oriundas da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Traíras para Jaraguá. No final do século XVIII, os Álvares da Silva vieram desse antigo centro minerador, realizando importante atuação em Jaraguá, principalmente através da figura do padre Silvestre Álvares da Silva. Num segundo momento, recebeu tropeiros em busca de novas terras para expandir a criação de gado. A partir deles, foram constituídas as famílias que tiveram participação significativa na vida política e social da cidade. Ao lado das famílias instaladas, outras se constituíram no decorrer do século XIX nas camadas dominantes na região: os Félix de Souza, Amorim, Rios, Gomes Pereira da Silva, Fonseca, Carvalho, Barbo de Siqueira e outras. (Duarte, 1999) A mão de obra escrava foi imprescindível nos primeiros tempos de Goiás, pois constituía a base do trabalho na mineração e em outras atividades. Por esse motivo, o negro constituiu a maioria da população durante o primeiro século de povoamento. Apesar de muitos bandeirantes terem trazido esposas ou famílias constituídas, um grande número veio desacompanhado de mulheres brancas, contribuindo para o crescimento da miscigenação. No início do século XIX, esse crescimento se acentuou, trazendo para a sociedade uma situação de desconforto, pois o bastardo, negro ou escravo, era visto com 69 hostilidade pela população branca, por estar associado a filhos ilegítimos de escravos com seus patrões. Em Goiás, o modelo de família apresentado no período colonial entre o final de século XVIII até a primeira metade do XIX ficou marcado pela transição de duas atividades econômicas distintas: mineração e agropecuária, atividades definidoras dos modelos familiares que contribuíram para a compreensão da história da família em Goiás, segundo Nunes (2001), que se apoiou nos relatos elaborados pelos viajantes europeus. A partir desses relatos, a autora esclarece que, no período, 1722 a 1850, predominaram as relações familiares instáveis. Foi quando se deu o início da exploração do ouro, seu declínio e a necessidade de se reativar a agropecuária. Por outro lado, grande parte dos valores e da vida social da capitania girava em torno da religião. Os padres se ocupavam das atividades centrais nos arraiais. Estavam eles na camada mais culta da sociedade, pois, na sua maioria, dominavam ou tinham noções gerais de teologia, filosofia, gramática, retórica e direito; alguns possuíam uma sólida cultura humanística. Em Jaraguá, as atividades paroquiais se encontravam sob a responsabilidade do sacerdote Silvestre Álvares da Silva. Figura ímpar, que se destacou na província de Goiás de maneira brilhante e honrosa no início do século XIX e que, diferentemente de outros padres da época, não constituiu família e pela sua notoriedade se tornou o motivo fundamental do nosso estudo. Memória – Histórica do Padre Silvestre A história da vida do padre Silvestre foi reconstruída a partir de documentos oficiais, dos relatos dos viajantes estrangeiros que passaram por Jaraguá e dos relatos orais fornecidos pela população atual de Jaraguá. Padre Silvestre Álvares da Silva nasceu na capela de São Joaquim do Cocal, filial da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Traíras, no dia 31 de Dezembro de 1773, filho do português Manuel Álvares da Silva, abastado proprietário e negociante, e de Francisca Machado Ferreira, preta da nação ―Mina‖, batizada na Matriz de Nossa Senhora da Conceição 70 de Traíras (Lobo, 1974). Manuel, de origem portuguesa, nasceu na freguesia da Alvarenga, Bispado de Braga, foi para o arraial de Cocal, freguesia de Traíras, em busca de riquezas advindas da exploração aurífera. Nesse arraial, instalou-se por volta de 1765, período em que se iniciou a família Álvares da Silva, construída nos moldes das famílias do período colonial minerador, que, via de regra, como já vimos, eram famílias instáveis. Através do trabalho de pesquisa de Adélia Freitas da Silva58, em andamento, é possível afirmar que Francisca Machado, conhecida no que restou do Arraial de Cocal como Chica Machada, não foi apenas mais uma escrava que se amasiou com seu dono. Mais que isso, de acordo com a tradição oral de Cocal, ela se transformou num mito que o cocalense faz questão de lembrar como elemento referencial formador de sua identidade. A memória coletiva aqui se cristaliza porque existiu-lhe um fundamento ―aparentemente histórico: a existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem.‖ (Le Goff, 1984, p.14). Capitão Manuel e Francisca Machado tiveram vários filhos, dentre eles: Silvestre, Manuel, Pedro e Antônio. Possivelmente tiveram outros ainda sujeitos a averiguação, inclusive um caso de irmão unilateral59, hipótese que só poderá ser confirmada através da documentação história de Cocal60, atualmente na Cúria de Uruaçu, não disponível aos pesquisadores. Sabe-se também por meio da pesquisa de Adélia Silva, apoiada na história oral, que os filhos de Francisca Machado lhe foram tirados ainda pequenos. Esse levantamento confirma as considerações de Lobo (1974), quando menciona sobre o padre Silvestre: ―Sendo filho ilegítimo, foi criado em companhia de sua progenitora até a idade de sete anos, quando foi reconhecido por seu progenitor e trazido para sua companhia.‖ Segundo esse mesmo autor, padre Silvestre, quando criança, se destacou entre seus colegas do curso primário devido à sua vivacidade e inteligência. Sob a proteção paterna, foi enviado ao Rio de Janeiro para realizar seus estudos no Seminário Archiepiscopal de são José. Esse seminário, fundado por Dom Frei Antônio de 58 Adélia Freitas da Silva é aluna do Mestrado em Sociolinguística, do Departamento de Estudos Literários e Lingüísticos da Faculdade de Letras da UFG 59 De acordo com as suposições do escritor Jarbas Jayme, padre Silvestre teve um irmão unilateral que também se tornou sacerdote – padre Manuel da Silva Álvares. 60 Esses documentos estão na Diocese de Uruaçu, não sendo permitida a consulta ao público. As poucas informações são transmitidas pela Senhora Salomé, pessoa responsável pelos arquivos. 71 Guadalupe, por provisão de 5 de setembro de 1739, sobreviveu até o ano de 1904. ―O velho edifício do Seminário de São José desapareceu, com a abertura da avenida Rio Branco.‖ Recebeu a 18 de Maio de 1799 as ordens de presbítero do hábito de São Pedro ministradas pelo bispo Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco. A carta de ordem foi expedida em 29 de agosto do mesmo ano. (Santos, 1914) A pesquisa realizada por Fonseca e Silva (1948) na cúria do Rio de Janeiro, no período de julho a agosto de 1948, aponta importantes questões que apresentam o rigor da época, quando se tratava da ordenação principalmente de um homem de cor. Padre Silvestre, por ser mulato, na ocasião dos registros de suas gradativas ordenações, teve os seus dados anotados da seguinte forma: “Silvestre Álvares da Silva: natural da comarca de Traíras, capitania de Goiás, filho natural de Manuel Álvares da Silva e de Francisca Machada. Dispensado da ilegitimidade e defeito de cor. A primeira tonsuras e ordens menores ele a recebeu em 28 de março de 1798, o subdiaconato a 29 de março de 1798, o diaconato a 22 de setembro de 1798 e o presbiterado a 18 de maio de 1799.” (Fonseca e Silva, 1948) De acordo com Lobo (1974), padre Silvestre dedicou-se aos estudos sem se dar conta de que sua saúde se encontrava debilitada por problemas pulmonares. Por isso, a conselho médico, retornou a Jaraguá. De volta a Goiás, tornou-se coadjutor em Meia-Ponte, atual Pirenópolis (Jayme, 1971). Posteriormente, foi designado coadjutor da freguesia de Santa Cruz, com residência na filial do Bonfim com o Cônego José Caetano Ferreira de Aguiar. Mas, antes de entrar nesse exercício, foi removido como capelão para Jaraguá pelo sucessor do Cônego José Caetano, o visitador Roque da Silva Moreira. Desempenhou com dedicação o seu trabalho a serviço da Igreja, revelando cuidados estéticos, o que chamou a atenção de Cunha Mattos quando observou que, na Igreja Nossa Senhora da Penha de Jaraguá, os três altares estavam bem cuidados, pois tinham sido recém – reformados e decorados pelo Vigário. Seu testamento, elaborado dez anos antes de seu falecimento (1853), nos fornece com exatidão o ano em que, como capelão, seguiu para essa cidade. Assim está colocado: 72 “Declaro que sou morador nesta cidade Villa de Jaraguá desde mil oitocentos e três, servindo de Capellão do lugar até, o ano de mil oitocentos e trinta e quatro em que tendo sido elevada à freguesia de natureza collativa, me opuz e obtive o ser Vigário Collado até o presente.” Este documento foi aprovado e assinado pelo Escrivão da Câmara Eclesiástica, padre José Militão Xavier de Barros. Padre Silvestre tomou posse como vigário em Jaraguá a partir de sua nomeação, que se deu no dia 3 de abril de 1834, depois de ter sido criada a freguesia de Nossa Senhora da Penha de Jaraguá, através do decreto nº 67, de 17 de outubro de 1833. Essa freguesia foi criada em conseqüência do decreto nº 8 de julho de 1833, que elevava o arraial de Jaraguá à categoria de Vila. Mesmo estando claramente definidas as datas das funções de capelão e de Vigário atribuídas ao Padre Silvestre em Jaraguá, nota-se, através da historiografia e nos livros dos registros de batismo e de óbito da Igreja Nossa Senhora da Penha, que, na prática, o termo Vigário lhe foi atribuído muito antes de sua oficialização. A primeira capela construída nessa cidade foi aberta aos fiéis em 1740, com a assistência do padre Manuel Pereira de Souza, sob a invocação de ―São José do Córrego de Jaraguá.‖ Teve, em abril de 1743, seu primeiro capelão residente, padre Manuel Francisco. Em 1748, a essa capela referiam-se os fiéis como São José de Nossa Senhora da Penha. A partir de 1757, passou a se chamar apenas Nossa Senhora da Penha. (Fonseca e Silva, 1948). Dentre os irmãos do padre Silvestre, dois ficaram conhecidos na história: Antônio Álvares da Silva, por ter sido o único irmão a quem destinou toda a sua fortuna; e o também sacerdote, padre Manuel da Silva Álvares. Vale citar que o padre Silvestre, quando elaborou seu testamento em 1853, já se encontrava com a avançada idade de 80 anos. Nesse sentido, podemos presumir que Antônio possivelmente seria o seu único irmão vivo com descendentes. O coronel Antônio Álvares da Silva, como cita o testamento, residia em Traíras, mas já havia vivido em Jaraguá, onde deixou os atuais descendentes. Teve uma numerosa família que migrou para Niquelândia e Jaraguá. Nessa última, os Álvares da Silva se expandiram, participando ativamente da sociedade jaragüense. O político Manuel Marcelino ( viveu de abril de 1896 a julho de 1984), mais conhecido como Manuel Frederico (sobrinho bisneto do padre Silvestre) foi um deles, tornou-se homem largamente estimado, deixando valiosa 73 contribuição no trabalho realizado como maestro da Banda Santa Cecília61. Teve vários irmãos, dentre eles o Sr. Silvestre Álvares da Silva. Com sua esposa Rosa Moreira de Pina e seus filhos Manuel, Ana, Francisca, Vanilda, Frederico, Maria e Elci ( na ordem cronológica) foram os últimos descendentes da família Álvares da Silva a residir no imponente casarão que pertenceu ao padre Silvestre. Sobre seu outro irmão, padre Manuel da Silva Álvares, consta sua importante atuação no relato do viajante austríaco Johann Emanuel Pohl em sua passagem por Goiás no ano de 1819: “ Depois de légua e meia, finalmente chegamos fatigados a Traíras, onde pensávamos passar algum tempo, especialmente porque, no dia seguinte, 30 de maio, começava a festa de Pentecostes. Há dois meses já aqui me esperava o Padre Manuel da Silva Álvares. Havia sido à minha disposição uma casa espaçosa, assobradada, com numerosos quartos. Tive de prometer ao Vigário que faria as minhas refeições diariamente com ele; a minha gente ele enviou, como mantimento, um quarto de boi. Este sacerdote, também vigário da Barra era um mulato, homem muito instruído, respeitado em toda a capitania, erudito e rico, e, ao mesmo tempo, homem muito cortês. Eu próprio não sei como agradecer as amabilidades com que me cumulou, tornando agradável a minha permanência em Traíras.” (Pohl 1976, p.192) Bertran (1994) informa que padre Manuel primeiramente foi Vigário em São Félix no período de 1805 a 1807. Depois, Vigário de Traíras e Barra. Sobre ele escreveram também em seus estudos sobre Goiás Americano do Brasil (1982) e Jarbas Jayme (1971). Mediante os documentos analisados e depoimentos colhidos dos parentes do Padre Silvestre, foi possível delinear parte da genealogia da família Álvares da Silva (fig. 1). Seguramente estaria mais elaborada, se tivesse sido possível o acesso aos arquivos da Cúria de Uruaçu. É interessante observar na genealogia que o nome Manoel se tornou presente em todas as gerações da família. Os Silvestre e Frederico também foram comuns entre as gerações que se seguiram. No testamento, além de deixar toda a sua fortuna para seu irmão Antônio, determinou a liberdade de vários de seus escravos. Fez também algumas recomendações para que seu corpo 61 Dulce Pedroso apresenta um interessante trabalho sobre a vida deste maestro: Breve relato sobre a vida do músico e maestro Manuel Marcelino da Silva Álvares. Goiânia: trabalho digitado, escrito por ocasião das comemorações do dia de Santa Cecília em Jaraguá, 1998. 74 fosse envolto em seu hábito juntamente com as vestiduras sacerdotais, e ainda deixou especificada uma quantia em dinheiro para que se realizassem missas pela sua alma. Constam na relação de seus bens, além de pratas, sítio, terras minerais e gado. Figura 1- Genealogia da Família do Padre Silvestre 75 Padre Silvestre faleceu no dia 20 de maio de 1863 e seu corpo foi sepultado na capela – mor da Igreja Nossa Senhora da Penha, hoje Igreja Matriz de Jaraguá. (Jayme, 1971). Os viajantes e cronistas que passaram por Goiás e principalmente estiveram em Jaraguá em contato com o padre Silvestre registraram suas impressões e ressaltaram suas virtudes. Saint – Hilaire, em 1819, hospedou-se na casa do padre Silvestre e conheceu suas habilidades. Revela que já tinha ouvido falar do padre Silvestre no Rio de Janeiro, “ Onde era conhecido por seu pendor pela matemática. Fizera seus estudos nessa cidade, e além de sua ciência favorita, aprendera um pouco de grego e de filosofia. Sabia também francês e tinha em sua biblioteca alguns livros de nossos autores. Seja como for, as pessoas que naquelas regiões têm algum estudo, como o capelão de Jaraguá, acabam por reverter à ignorância, por constituírem uma minoria insignificante. Quando um homem instruído se vê atirado a um dos arraiais da Província de Goiás, não encontra ninguém com quem possa compartilhar seus gostos e suas ocupações favoritas. Se encontra alguma dificuldade, não achará ninguém que o ajude a sobrepuja-la, e não terá nunca a emulação para sustentar-lhe o ânimo. Pouco a pouco irá perdendo o gosto pelos estudos, que tanto apreciara, e acabará por abandona-los inteiramente, passando a levar uma vida tão vegetativa quanto a das pessoas que o cercam.” (1975, p.43) Padre Silvestre não perdeu o ânimo pelos estudos, como presumia Saint-Hilaire. Em 1823, foi eleito deputado constituinte e teve uma participação ativa, ―defendendo os interesses de Goiás e da Nação‖. Nesse período em que atuou como Deputado, permaneceu no Rio de Janeiro. Quando regressou a Jaraguá em 1824, reassumiu as funções paroquiais do arraial. Com suas experiências políticas, teve grande influência no desenvolvimento de Jaraguá. Cunha Mattos retrata seu empenho na reconstrução das pontes sob os rios Uru e Almas: “ A ponte do rio das Almas no arraial de Meia – Ponte acha-se intransitável; a setentrional do Uru e a do Rio das Almas, pouco distante do córrego de Jaraguá, há de ser reedificada no ano de 1825 com excelentes madeiras que se acham prontas: deve-se isto aos esforços do reverendo padre Silvestre 76 Álvares da Silva, que o requereu no ano de 1823 sendo deputado desta província na Assembléia Constituinte.” (1980, p.43) Pohl (1976, p.118), quando passou por Jaraguá em Janeiro de 1819, fez o seguinte relato a respeito do Padre Silvestre: “ ...tive, na casa de um mulato, um aposento bastante cômodo (...) e, na minha sala, separada do quarto de dormir por uma cortina adornada de grã, havia cadeiras, mesa, etc. As almofadas da cama eram bordadas de flores e guarnecidas de largas rendas. Eu comia com talheres de prata, bebia em copo de prata e sobre a mesa ardiam velas de cera em castiçais do mesmo metal.” Passando por Jaraguá numa outra ocasião (novembro de 1819), Pohl fez outras observações: “... depois de andarmos errando por uma hora, resolvemos ir ainda até Córrego do Jaraguá. Lá chegamos pelas 5 horas da tarde, depois de termos feito seis léguas e meia e acamparmos no rancho destinado aos viajantes. Eu tinha umacarta de meu digno amigo, o Vigário de Traíras, para entregar ao seu irmão, Vigário Local. Este queria a todo custo que eu ficasse em sua casa, mas recusei, porque de manhã cedo eu pretendia continuar a viagem. Ele enviou-nos várias iguarias para o jantar.” (1976, p.285). Padre Silvestre fez parte da primeira comissão de deputados para estabelecer a Constituinte do Brasil Império. Um dos mais votados, padre Silvestre e o Sargento - mor Joaquim Alves de Oliveira foram consequentemente escolhidos para representarem a Província de Goiás na Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa do Brasil. Padre Silvestre seguiu com destino ao Rio de Janeiro para exercer suas funções de deputado, enquanto o Sargento – mor Joaquim Alves de Oliveira logo em seguida deu entrada a pedido de dispensa. Através dos diários da Câmara, foi possível fazer um levantamento da participação do padre Silvestre nas sessões realizadas, e também no que se refere à província de Goiás. 77 Participou da elaboração do projeto da constituição, registrado nas sessões de setembro de 1823, que discutiram sobre a sua revisão e aprovação. No ano seguinte, a Assembléia Constituinte e Legislativa do Brasil foi dissolvida pelo Imperador D. Pedro I. Segundo Lobo (1974, p.58), depois de dissolvida a Assembléia, os amigos do padre Silvestre tentaram convencê-lo a que permanecesse no Rio de Janeiro. Mas a esses respondeu: ―tenho saudades até da relva que cobre as ruas de Jaraguá.‖ Retornando a Jaraguá, reassumiu suas atividades de sacerdote. Introduziu nessa comunidade a organização da Irmandade do Santíssimo Sacramento em 5 de junho de 1838, para mostrar o valor do sacramento da Eucarística e organizar celebrações e festejos. Depois da implantação da Irmandade, dedicou-se à elaboração de seu regulamento, que foi aprovado pelo promotor religioso de Vila Boa, Joaquim Vicente de Azevedo. A Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila de Jaraguá teve no seu fundador o seu primeiro presidente. Por volta de 1840, padre Silvestre teve como coadjutor o padre Manoel Ribeiro de Freitas. Em trabalho conjunto, conseguiram estabelecer em Jaraguá alguns dos principais festejos que contribuíram para a integração social da comunidade jaragüense – festa de São Sebastião e do Divino Espírito Santo, que continuam sendo realizadas até os dias atuais. Padre Manoel foi também o responsável pela criação da primeira banda de música de Jaraguá, sendo reverendado como o ―pai‖ dos músicos da cidade. (Fonseca, 1999). Em trabalho de pesquisa com a história oral, que se apoiou também na reconstituição da memória coletiva, foram utilizados relatos de membros da família do padre e da comunidade, para contribuir com a historiografia, com a documentação histórica do arquivo de família e outras fontes. Esses relatos definiram ―os lugares da memória‖ por meio da arquitetura que consolidou-se na casa colonial do padre Silvestre, tornando-se assim testemunha de um tempo vivido pelo ilustre goiano. Através de Halbwachs (1990), podemos dizer que a bagagem de lembranças históricas do padre Silvestre foi ampliada através da conversação e da leitura. E que ela pode ser analisada como uma ―memória emprestada‖, pois é memória histórica e não se refere à memória de um tempo presente. 78 Marieta de Morais Ferreira (1994, apud Chaul, 1998) destaca duas linhas de abordagem no trabalho com a história oral. A primeira se volta para os estudos das elites, das políticas públicas e da trajetória dos excluídos, cujas fontes são especialmente precárias. A segunda privilegia os estudos das representações, elegendo em papel principal as relações entre memória e história. A pesquisa se apoiou nessa segunda abordagem, de acordo com a justificativa de Chaul (1998): “ ...A preparação da entrevista não se fundamentou na checagem das informações ou nos levantamentos de provas ou contraprovas. Isso não altera o caráter trabalho enquanto estudo de história. Ao contrário, reafirma-o ampliando esse conceito e o objeto. Aliás, citando Paul Thompson (1992, p.184), „os boatos não sobrevivem a não ser que façam sentido para as pessoas.‟ Aqui também não se ignoram os desafios tanto acadêmicos quanto pessoais na realização do trabalho com fontes orais.” Explorando a compreensão dos mecanismos da memória, trabalhamos com a memória da família do padre e com relato de pessoas idosas no que se refere à sua história e à de sua casa, que se tornou uma edificação símbolo em Jaraguá. De um lado, padre Silvestre foi uma figura tão ilustre na cidade que é comum muitos jaragüenses cujas famílias se estabeleceram em Jaraguá no séc. XIX deterem certo conhecimento acerca do sacerdote; de outro lado, a edificação onde residiu é quase a única a resistir ao tempo e aos impulsos da ―modernidade‖. Dessa forma, a ela foi atribuída a tarefa de transmitir ao cidadão jaragüense as histórias passadas que fizeram parte da construção de sua identidade. O presente lança um olhar sobre o passado, ―atribuindo-lhe funções que justificam situações e inquietações do momento‖. (Rodrigues, 1998, p. 84) A casa do padre Silvestre é um elemento arquitetônico – patrimônio cultural – que se faz presente na leitura histórica. E, como documento histórico, é um dos recursos possíveis para o entendimento da construção histórica. A memória está presente na vida cotidiana do homem dentro da história. Dessa forma, utilizando-se da memória, refaz-se a casa e, por conseguinte, o cotidiano. 79 Quando se pensa na casa, as pessoas não se prendem somente à matéria, mas descrevem sobre o que ocorreu naquele espaço. Bosi (1998), em seu trabalho ―Memória e Sociedade‖, visualiza a casa como um dos espaços da memória. A casa torna-se tradutora de experiências vividas e atualizadas na memória individual ou de grupos. As experiências vividas na casa reconstituem parte da vida do Padre Silvestre. E muitas memórias foram revistas, selecionadas e transmitidas através das gerações. Inicialmente, foram colhidos alguns depoimentos dos parentes do padre Silvestre, pessoas conhecidas na cidade. No decorrer das entrevistas, foram surgindo indicações que apontaram nomes de pessoas que poderiam prestar valiosas informações, pessoas idosas e que gostam de história, como o historiador autodidata Joaquim Militão, que, apesar dos seus 91 anos de idade, ainda se encontra em perfeitas condições para transmitir fatos antigos e relevantes de Jaraguá. Os depoimentos dos mais velhos remetem às considerações de Bosi (1994, p.74): “ ... sem os velhos, a educação dos adultos não alcança plenamente: o reviver do que se perdeu, de histórias tradições, o reviver dos que já partiram e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o poder que os velhos tem de tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles ainda ficou alguma coisa em nosso hábito de sorrir, de andar. Não se deixam para trás essas coisas, como desnecessárias. Esta força, essa vontade de revivescências, arranca do que passou seu caráter transitório, faz com que entre de modo constitutivo no presente.” Dessa forma, foram surgindo os relatos que selecionamos de acordo com nossos questionamentos para maior significado de nossa proposta de trabalho. Dentre os entrevistados, havia aqueles que nada sabiam mencionar sobre o padre Silvestre, mas faziam um breve comentário sobre sua importância e sobre sua casa. Sobre a memória dos jaragüenses relacionadas ao padre Silvestre, Pedroso escreve: “ Segundo informações orais, o padre Silvestre era um homem santo, cheio de virtudes e tinha o dom de intuir acontecimentos. Conta-se que certa vez, uma de suas vacas paridas corria perigo e ele, pressentindo o local em que 80 ela se encontrava, mandou um de seus empregados busca-la. Conta-se, ainda, que o padre Silvestre foi um homem virtuoso, não teve mulher nem filhos, uma exceção entre muitos sacerdotes de seu tempo, como, por exemplo, os padres Manuel Ribeiro de Freitas (natural de Traíras) e Luiz Carlos Fonseca ( Itaberaí), que deixaram grande descendência em Jaraguá.” (1997, p.3) Contudo, muitos idosos descendentes de várias gerações de jaragüenses, pessoas que gostam de histórias, já ouviram falar de algumas passagens da vida do padre Silvestre e as guardaram na memória. Através desses depoimentos, torna-se possível entender o olhar que a memória coletiva tem sobre a casa e seu ilustre proprietário. Essa leitura, através da oralidade, se apresenta também em forma de representação simbólica do imaginário e do sobrenatural. O jaragüense Fabiano Luiz de Castro (32 anos) relata que, através de seu avô, conheceu passagens da vida do padre Silvestre. Conta que este, morando em uma casa alta, olhava através de uma luneta o trabalho dos camaradas em suas terras ao pé da serra de Jaraguá. Por isso sabia ―quem trabalhava, quem dava um escamotiadinha‖. Esse fato possivelmente contribuiu para o que a sociedade jaragüense sempre leu como premonições do padre. A sociedade, de alguma forma, produz os meios de lembrar e reviver seus mitos para fugir do fantasma do esquecimento. Ainda Fabiano de Castro, apoiando-se nas lembranças que fazem parte da memória coletiva, representa simbolicamente o imaginário e o sobrenatural, quando diz que ―o padre Silvestre tinha uma afinidade com a sua vaca, que ele até andava em cima dela‖. A história sobre ―a vaca misteriosa do padre Silvestre‖ é um conto que se encontra em trabalho realizado pelos pesquisadores do Centro de Estudos da Cultura Popular (CECUP – 1982). Esse conto descreve a história de uma vaca, pertencente ao padre Silvestre e dada como morta, que reapareceu no enterro do pároco em Jaraguá. Elabora representações sociais da morte, do enterro, da religiosidade e da personificação simbólica de um ser sobrenatural. Segundo Le Goff, o primeiro domínio da memória coletiva é o mito. O mito, nesse sentido, é sempre reconstituído e está totalmente ligado às configurações da morte e da eternidade. A história, quando transmitida pela oralidade, se constrói permitindo à memória 81 mais liberdade e possibilidades criativas, considerando o seu papel central à dimensão narrativa e à história cronológica dos acontecimentos. Le Goff (1984) Outro relato sobre a vida do padre Silvestre está na fala de Diva Álvares da Silva (59 anos), parente. Acrescenta que ele era um homem bom e muito religioso. Possuía vários escravos a seu serviço e na exploração do ouro em suas terras. Na fazenda ao pé da serra, o ouro foi prospectado, deixando remotos vestígios no solo. Conta Diva Álvares que o padre Silvestre comia com talheres de prata por ser este um meio de detectar se a comida se encontra envenenada. Mesmo considerado um homem bom, possivelmente tinha desafetos entre seus escravos. A declarante refere-se a um oratório cheio de imagens de santos, que atualmente se encontra na casa da prima Elenir Álvares, em Goiânia. As imagens foram aos poucos distribuídas entre os familiares e algumas foram vendidas. Sabe-se que, da época do padre, alguns móveis foram conservados. Tem-se conhecimento de um grande oratório do banco da varanda e de duas escrivaninhas iguais, algumas colheres de prata e louças, e uma bacia de tomar banho, vendida para a jaragüense Dª. Dalila Machado. Mas parte da memória coletiva de Jaraguá não é reproduzida somente pelos habitantes mais velhos da região. Existe uma hierarquia de valores e tradições mantidos pela cultura popular que, se não repassados pela figura dos moradores mais velhos, ao mesmo tempo agem como fonte de sabedoria popular valorizada e transmitida também pelos habitantes mais jovens. (Castro, 1998) Para o Engº. Eugênio Alano Machado de Freitas, fazendeiro e empresário, exprefeito da cidade, o conhecimento sobre a vida do sacerdote foi adquirido de seu pai, que também foi um político atuante e pertenceu a uma das famílias tradicionais de Jaraguá. Comentou que o padre possuía uma luneta e que, a partir dela, controlava o trabalho de seus escravos. Dessa forma, sem conhecer esse recurso tecnológico, as pessoas acreditavam veementemente que o padre possuía o dom de ―saber tudo‖ o que se passava em sua propriedade. Vale esclarecer que o Pe. Silvestre tinha, entre suas propriedades, uma grande parte do pé da serra de Jaraguá, o que justifica os relatos que mencionam a luneta, pois a casa estaria situada numa posição estratégica. 82 Dr. Alano (como é conhecido) fala de sua atuação como prefeito, quando comenta ter realizado o tombamento da casa do padre Silvestre em âmbito municipal. Fala do descaso dos atuais governantes e das dificuldades financeiras do município para um empreendimento de grande envergadura na restauração do casarão oitocentista. Elenir Álvares Ribeiro da Costa (55 anos) é também parente do Padre Silvestre. Ela é guardiã do oratório e de algumas das imagens que fazem parte de todo o acervo. Conta Elenir que seu avô, Frederico Augusto Álvares da Silva, herdou do padre muitos dos seus pertences e os presenteou aos seus filhos. Ela se tornou a guardiã dos objetos que lhe foram passados pelo seu pai, Manoel Marcelino, que se preocupou em preservar e conservar objetos e documentos escritos da família. As peças estão sob seus cuidados e necessitam de restauração. As fotos apresentadas foram emprestadas para reprodução. As imagens revelam os objetos que se encontram disponíveis para comércio no mercado. Vale lembrar que essas peças, de acordo com o Decreto Lei Federal nº 4.845, de novembro de 1965, estão proibidas de deixar o país, por serem obras de arte do período colonial, possivelmente do início do século XIX. As fotos dos objetos foram identificadas pelo arquiteto e historiador Rogério Tadeu de Salles Carvalho62. Dessa forma foi possível fazer uma descrição sobre cada obra. As figuras (2 e 3) apresentam parte desta obra. Figura 2 – Crucifixo – Cruz de madeira, esplendor em prata e sítio em cobre. Possui policromia e aplicações com anjos. Foto: Acervo da Família Álvares da Cunha Figura 3 – Nossa Senhora das Dores - coroa em ouromanto pintado em ouro decorado com rosas de malabar – manto esgrafiado. Fonte: Acervo da família Álvares da Silva. 62 Rogério Tadeu de Salles Carvalho é responsável pela manutenção e elaboração do Banco de Bens Culturais Procurados – BCP no DID/IPHAN/Min C – Departamento de Identificação e Documentação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da Cultura. 83 O relato do Sr. Frederico de Pina Álvares (63 anos, conhecido como Dirico) confirmou as declarações de sua irmã Maria Álvares sobre as alterações da cozinha, acrescentando no seu depoimento lembranças de seu tempo de menino, em que a grande cozinha permanece como um cenário importante. No seu interior, um fogão à lenha compunha o quadro. Ao lado, um quartinho para guardar os mantimentos e, mais adiante, uma cisterna, que se encontrava protegida por uma pequena cobertura. São elementos que fizeram parte do casarão e que hoje se encontram apenas na memória de seus antigos moradores. Outro fato importante mencionado pelo Sr. Frederico esclarece questões relacionadas aos escravos: uma parte do lote que fazia a composição da área residencial do casarão foi vendida para acertos de inventário (na segunda metade do século XX). Nesse local, havia um pequeno casebre de pau-a-pique onde residiam dois negros idosos, remanescentes de escravos. Parece provável que ali se encontrava a senzala que abrigou os escravos de propriedade do padre Silvestre. O Sr. Frederico fala com toda segurança sobre a bengala de padre Silvestre. Segundo ele, ela não apresentava apenas o cabo em marfim mas em toda a sua estrutura. Complementando, citou detalhes elaborados em ouro nas suas extremidades. Afirma também que alguns objetos de prata que pertenceram ao padre ainda estão sob a guarda da família. Estes relatos nos permitem analisar e interpretar um passado que se manifesta num conjunto de valores que têm suas raízes no período colonial brasileiro. São temas de natureza étnica, política, econômica, religiosa e sócio-cultural relacionados à vida do padre Silvestre e resgatados pela memória – história. A Casa do Padre Silvestre A cidade de Jaraguá está entre as vilas do período colonial que foram construídas sem planejamento prévio, apresentando como característica principal a irregularidade delineada na sua conformação urbana. A arquitetura residencial brasileira desse período, mesmo tendo desenvolvido particularidades regionais, apresentou em todo território uma feição semelhante herdada da casa portuguesa. Essa semelhança veio por imposição da Coroa, divulgada pela Carta Régia de 84 11 de Fevereiro de 1736, que determinava para as residências das vilas uma mesma fachada, deixando o seu interior de acordo com as necessidades de cada morador. Em decorrência dos estreitos terrenos de pequena testada, as residências mantiveram uma mesma distribuição de compartimentos no seu interior. Essas edificações, unidas nos seus limites laterais, tipo ―parede – meia‖, com suas coberturas de duas águas caindo para a rua e para o quintal, colocadas lado a lado, determinavam os limites das vias públicas, criando uma seqüência de aberturas nas fachadas e definindo o conjunto cheio/vazio. Apesar da simplicidade, notam-se com clareza as influências paulistas e portuguesas não só em relação à técnica utilizada como também na definição do espaço (Lemos, 1989) Esse modelo padrão que se repetiu nas fachadas deixou transparecer (podemos assim dizer) a preocupação do colonizador em dar para as vilas e cidades uma aparência de cidade portuguesa levando Paulo Santos a chamar nossas cidades de ―cidades portuguesas do Brasil‖ (apud Coelho, 1997) As construções residenciais desse período demonstram a influência popular, o saberfazer local, e apresentam na sua composição o adobe e o pau-a-pique. A taipa-de-pilão foi empregada com maior freqüência em construções religiosas mais requintadas. (Coelho, 1996). Transpondo tais conceitos para Goiás, especificamente Jaraguá, pode-se afirmar que, nos dias atuais, Jaraguá apresenta o seu núcleo urbano inicial bastante alterado no que se refere à arquitetura edificada. Grande parte de suas construções antigas foram substituídas e outras tantas tiveram suas fachadas totalmente descaracterizadas. Raras são as edificações que conseguiram resistir ao tempo. A casa do padre Silvestre foi uma delas. (Fig. 4) Figura 4 – Casa do padre Silvestre. Foto: Silvio Bragato, 2002. 85 Construída no final do século XVIII ou início do século XIX, ainda preserva sua característica inicial. Apontada pelo escritor Jarbas Jayme (1971) como uma relíquia a ser preservada, foi citada por Cunha Mattos (1985) em sua passagem por Jaraguá como sendo ―a única casa digna de nota‖. Sua característica se enquadra nas características da casa colonial goiana apresentadas por Coelho. Esse estudo estabelece modelos-padrões da casa em questão, colocando à parte suas particularidades (por ser uma casa de esquina, consequentemente sofreu variações importantes). Construída a partir da duplicação de um lanço, atendia às necessidades de seus moradores e mantinha na distribuição de seus espaços a mesma forma de estrutura familiar existente no período. A edificação foi elaborada a partir de uma estrutura autônoma de madeira, obedecendo à prática das construções da época. Suas paredes externas em adobe e as internas, de acordo com o levantamento do INDUR63, foram elaboradas em taipa de sebe, diferentemente da prática comum que normalmente apresentava as paredes internas de pau-a-pique. No reboco, o barro, cal e areia. A taipa de pilão, segundo Coelho (1996), era utilizada em geral apenas nas fachadas, talvez para demonstrar, a partir da imponente residência, a importância ou a riqueza de seu proprietário. Mais ainda, o uso da taipa nas fachadas permitia um beiral mais acentuado e este também estava relacionado à riqueza do dono. A casa é um produto da cultura, cujos espaços se organizam de acordo com as funções que a ele foram atribuídas e que se tornam diretamente relacionadas com os hábitos, costumes e modos de vida da família que neles se instala. A casa colonial mantém um significado simbólico muito forte, quando a lembrança é dos negros- escravos. Encontramos nessa o que chamamos de ―memória silenciada‖. Porque são memórias de que não se quer lembrar. Mas o negro ausente deixou impregnadas suas marcas, pois sem ele a casa colonial teria se tornado ―inabitável‖. Nas palavras de Lúcio Costa: 63 Este levantamento foi realizado pelo INDUR através do projeto Preservação do Patrimônio Ambiental do Estado de Goiás. 86 “Era ele quem fazia a casa funcionar: havia negro para tudo – desde negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era esgoto, era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e botão de campanhia; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era lavador automático.” (Apud Oliveira, 1999, p.177) A casa em questão estabelece em sua fachada um equilíbrio entre o cheio e o vazio, fazendo das janelas um importante elemento estético. Utilizando a madeira como material fundamental no emolduramento e na vedação das aberturas, de vergas arqueadas, as janelas não se encontram mais com suas características iniciais. Através de fotos antigas e análise ―in loco‖, percebem-se vestígios da janela original, como nas dobradiças que ainda hoje permanecem nas esquadrias, sendo possível afirmar que elas trabalhavam em conjunto com venezianas e folhas de guilhotina pelo lado externo. As guilhotinas eram feitas com caixilhos, vedados com lâminas de malacacheta encontrada em grande quantidade na região jaragüense. As lâminas de malacacheta substituíam o vidro, que era um material de difícil acesso. Atualmente, as venezianas e folhas de guilhotina foram substituídas por apenas duas folhas cegas de madeira. As varandas das casas coloniais, segundo alguns historiadores de arquitetura como Lúcio Costa e Júlio Roberto Katinsky, (apud Oliveira, 1999, p. 182), eram espaços multifuncionais que traziam influências da cultura indígena, pois, como as ocas, reuniam seus moradores num único e amplo espaço. Na casa do padre, a comunicação com os ambientes se fazia (e ainda se faz) por meio de um corredor central, que se inicia na frente da casa, estendendo-se até a varanda. Nesse corredor, existem duas portas, uma que dá acesso ao setor social da casa e está sempre aberta; e outra, que se comunica diretamente com a parte íntima da residência e por isso permanece constantemente fechada. Esse corredor permite a comunicação entre a rua e o quintal, sem precisar de acesso aos ambientes. A edificação do padre Silvestre, cuja cozinha se mostra pequena, não havendo vestígios de nenhuma área destinada aos serviços mais pesados, abre uma possibilidade aventada por Coelho. “Supõe-se que, à moda dos índios, que representavam o grosso da mão-deobra escrava dos habitantes dessa região, essa atividade fosse realizada em 87 uma trempe coberta de palha, do lado de fora da construção, o que justificaria o fato de não haver qualquer sinal que indique sua existência”. (Coelho, 1997, p.197) Através do depoimento de Maria Álvares de Pina e Silva, sabe-se que a cozinha da casa foi remanejada de uma lateral para a outra, para o alargamento da via pública. Atualmente, a cozinha funciona na antiga varanda e os espaços que anteriormente eram despensa e cozinha se transformaram em instalações sanitárias dos atuais e simplórios moradores, numa improvisação recente e mal resolvida. Numa análise da casa do padre Silvestre, podemos dizer que o partido arquitetônico foi elaborado dentro dos padrões, sem novidades estéticas, admitindo a vernacularidade, pois as residências eram construídas segundo o saber-fazer local. ―A mão-de-obra, os materiais construtivos e as técnicas construtivas passavam pelo domínio popular, imprimindo-lhes uma estética despida de anseios originais e personalistas.‖ (Oliveira, 1999, p.284) Torna-se, portanto, importante buscar nas práticas imediatas do construtor vernáculo ―a harmonização de sua obra com o meio ambiente, a noção de casa nascida ao lado das manifestações culturais e folclóricas, o elo que não pode ser perdido em meio ao apelo das inovações técnicas e das mudanças de comportamento.‖ (Morais, 1999, p.92) A casa nº 117 da rua Vigário Álvares da Silva é uma edificação que está ligada a importantes fatos da história da Jaraguá. Contém informações sobre o seu desenvolvimento tecnológico, abrindo possibilidades para maior conhecimento sobre materiais e técnicas construtivas de sua época, como a taipa-de-pilão, o adobe, o pau-a-pique, formas de estruturação do edifício. Mais ainda, expressa o modelo de organização social, econômico e religioso do período, fazendo com que o seu estudo se torne um elemento básico na contribuição do desenvolvimento da arquitetura contemporânea. (Coelho, 2001) A história que se constrói por meio do estudo da casa, associada a elementos que com ela se entrelaçam, traz significados importantes que exprimem o caráter brasileiro e apresentam a continuidade social. Segundo Freyre: 88 “Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos noscompletar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou à nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos: um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos. Isto é, claro, quando se consegue penetrar na intimidade mesma do passado; surpreendê-lo nas suas verdadeiras tendências, no seu à vontade caseiro, nas suas expressões mais sinceras.” (Freyre, 1998, p.65) Por outro lado, cabe à arqueologia a importante tarefa de complementar o estudo sobre a vida do padre Silvestre, juntamente com documentações históricas e tradições orais, fornecendo informações sobre aspectos do comportamento dos grupos domésticos que ocuparam a residência, principalmente aqueles relacionados especificamente ao cotidiano do ilustre sacerdote. A história construída em torno da casa tem de ser capaz de dizer o que ela é e o que ela significa para a sociedade onde está inserida, pois os padrões culturais envolvidos não são gerais e sim específicos. Para cada grupo social, o valor simbólico está ligado a uma ordem, a uma organização e seu significado. Tomamos por base a casa conhecida como a casa do padre Silvestre, que constitui um bem cultural que a sociedade jaragüense identifica como testemunho dos antigos modos de vida da comunidade. Mas ao mesmo tempo, ela presta um serviço ao presente, buscando uma maneira de ser utilizada pelos habitantes da cidade como casa de cultura ou museu. Finalmente, resgata a história como elemento formador da identidade jaragüense que se encontra quase toda encoberta pela ―modernização‖ que consolidou a destruição de significativas obras arquitetônicas. Com a recuperação do objeto arquitetônico refaz-se a leitura histórica. Considerações finais A realização deste trabalho, desenvolvido na perspectiva das abordagens no campo da historiografia e da tradição oral, envolveu entrevistas e ainda análises de documentações manuscritas de particulares relacionados à figura ímpar do homem religioso, político e erudito 89 – padre Silvestre Álvares da Silva. O símbolo de sua história se encontra também expressado no casarão oitocentista. Analisando a casa, pôde-se perceber que, apesar da simplicidade do partido arquitetônico expressado pelo saber – fazer popular, houve preocupação na riqueza dos detalhes, como o acabamento apresentado no forro ―tipo gamela‖ com pintura elaborada no ambiente da sala. A mão-de-obra escrava, as técnicas e os materiais construtivos utilizados representavam o que se encontrava no momento sob o domínio popular. O estudo dos espaços apontou as influências das várias culturas que ali conviveram e que se manifestaram através da continuidade na disposição dos compartimentos da casa e dos meios de composição dos ambientes. A casa do padre Silvestre representa para a sociedade jaragüense uma referência cultural simbolizada, construída ao longo da história de Jaraguá e compartilhada por toda a população goiana. Portanto, um instrumento suficientemente capaz de sustentar toda uma justificativa, necessária para se pretender um tombamento. Dessa forma, com a realização do tombamento, encontra-se a maneira adequada de se fazer respeitar o caráter único e insubstituível de uma edificação que pertence ao passado histórico, portanto um elemento formador da identidade que está associado ao direito à memória. Sem pretender congelar ou imobilizar o casarão, a idéia de transformá-lo em um museu ou casa de cultura é uma aspiração antiga de parte da comunidade, possibilitando assim sua conservação e função adequadas a serviço dos habitantes da cidade. Indispensavelmente, deve ser mantida a sua parte externa sem alteração, fazendo-se as adaptações necessárias e com critério apenas em sua parte interna, supervisionadas por profissional qualificado, para manter intocáveis os detalhes e as pinturas decorativas do teto. A pesquisa teve como eixo de estudos a historiografia goiana, a tradição oral e os documentos particulares da família Álvares da Silva de Jaraguá. As informações sistematizadas, permitiram a instrução do seu processo de tombamento, em andamento, colocando a casa e os conhecimentos adquiridos à disposição da sociedade jaragüense. 90 Referências AMERICANO DO BRASIL. Súmula de História de Goiás. Edição anotada por Humberto Crispim Borges, 3ª ed. Goiânia: Unigraf, 1982. BERTRAN, P. 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Acervo de documentos da família Alvares da Silva de Jaraguá. -Livros de Registros de óbitos (1828 a 1832) e de batismo (1824 a 1832) de Jaraguá assinados pelo padre Silvestre Alvares da Silva, IPEHBC/SGC, Goiânia. - Assembléa Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil — 1823. Sessão em primeiro e 10 de setembro de 1823. Diários da Câmara. Biblioteca do Senado, Brasília. Entrevistas Realizadas - Diva Álvares da Silva - Jaraguá - fevereiro/2002; - Elenir Álvares da Costa - Goiânia - outubro/2002; - Eugênio Alano Machado de Freitas - Jaraguá - outubro/2002; - Fabiano Luis de Castro - Jaraguá - fevereiro/2002; - Frederico de Pina Álvares - Jaraguá - novembro/2002; - Joaquim Militão - Jaraguá - fevereiro/2002; - Maria Álvares de Pina e Silva - Jaraguá - fevereiro/2002; 93 4 SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA ... REPRESENTAÇÕES DA EXPERIÊNCIA ESCOLAR EM JARAGUÁ (1927/1947) Maria Lícia dos Santos Cada geração assimila, à sua maneira, a herança cultural dos antepassados, ao mesmo tempo em que estabelece projetos de mudança. Por isso, é importante, sobretudo na prática historiográfica, estudar um objeto considerando-se o contexto que o engendra, de forma a tornar possível observar sua construção concomitantemente à do sistema social do qual é parte constitutiva. Considerando a proposta apresentada pela chamada nova história que, segundo Burke (1990), aponta para a perspectiva de que ―tudo tem uma história‖,64 propus realizar uma pesquisa que tomasse, como plano de observação, as experiências de alunos e professores de duas instituições de ensino de Jaraguá, no período de 1927 a 1970. A delimitação temporal 64 Peter Burke. ―Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro‖ in A Escrita da História – Novas Perspectivas.Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1990. 94 proposta deveu-se ao marco histórico da fundação do Grupo Escolar Ruy Barbosa (1927), à construção do Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá-Go (1947), à destruição desse último, em 1970. Quanto às fontes documentais, tanto os registros escritos, hoje distribuídos nos arquivos das duas primeiras escolas, quanto os depoimentos de antigos alunos e professores das mesmas. Também um conjunto de fotografias será utilizado como material empírico. Sobretudo às fontes orais, dirigi a disposição de investigar como o trabalho da memória constrói sentidos sobre as experiências vividas naquelas instituições no período indicado e como, neste processo, a memória subsidia a construção permanente das identidades. Esta proposta partiu do pressuposto de que observar as mudanças ocorridas nesses mais de 70 anos de história da educação formal em Jaraguá permitiria apreender como foram construídas as relações (entre elas, as relações de poder) que definiam, afirmavam ou redesenhavam os contornos daquelas práticas. Alguns questionamentos ajudaram a elucidar os caminhos que esta pesquisa percorreu para enfrentar o problema proposto. O Grupo Escolar Ruy Barbosa - o qual, ao que tudo indica, foi a primeira escola estadual de Jaraguá - rompeu com uma longa tradição de ensino, até então exclusivamente nas mãos de religiosos. Sabe-se que uma das práticas mais recorrentes do poder coronelista era a manipulação de cargos do serviço público como forma de controle e exercício do poder. A nomeação de parentes e aliados dos governantes para os cargos de direção dessas instituições foi uma constante. Os depoimentos preliminares indicavam, entre outras coisas, a construção de uma memória que tendia à exaltação do passado, principalmente quando se considerava a destruição do Ginásio Arquidiocesano, em 1970. Em função disso, outras questões foram sendo colocadas: quais as representações que davam suporte à experiência desses ex-alunos e ex-professores? Que sentidos a iniciativa municipal de destruir o ginásio ganhou nesses depoimentos? Esses questionamentos formularam-se como iniciativa no sentido de definir o objeto de estudo, assim como uma perspectiva de análise pertinente com os objetivos propostos. Restava ir em frente, pôr mãos à obra e verificar se essas indagações iniciais encontrariam respaldo na documentação a ser trabalhada. Foi isso que busquei realizar. 95 O Grupo Escolar Ruy Barbosa e seu passado (quase sempre) idílico O primeiro Grupo Escolar de Jaraguá foi construído em terreno do Município, doado ao Estado, no intuito de atender à demanda escolar da época, segundo documento de doação consultado. Neste documento observa-se uma preocupação em não permitir que o espaço viesse a ser ocupado, no futuro, com outro objetivo senão o educacional. Inclusive revela uma disposição em garantir um certo desenho em relação ao futuro da educação em Jaraguá, como se pode observar no trecho abaixo: O Estado somente poderá fazer uso desse prédio para o fim acima mencionado, ou para a installação de qualquer outro estabelecimento de instrucção secundária ou superior de ordem pública.65 Como nos conta Lyra Machado Gomes, ex-diretora da instituição e filha do prefeito que doou o terreno à época da construção do Grupo: A criação desse estabelecimento contribuiu muito para a cultura e o progresso de Jaraguá, pois reuniu em um só prédio as diversas escolas isoladas, isto é, todos os estudantes dessa cidade, com ótimas professoras, todas elas normalistas, ou seja, com o curso completo de magistério.66 Foi, portanto, atendendo aos anseios de alguns segmentos da sociedade jaragüense, e respondendo ao contexto da criação dos Grupos Escolares em algumas das principais cidades do Estado de Goiás, que o intendente municipal Cel. Manoel Ribeiro de Freitas Machado, representado pelo Coletor Estadual da cidade de Jaraguá, Major Bernardo Antonio Machado, decidiu doar ao Estado de Goiás o prédio que viria sediar o primeiro Grupo Escolar da cidade. Assim a doação é descrita no documento de batismo da escola: O Cel. Manoel Ribeiro de Freitas Machado decide] fazer doação, sem nenhum constrangimento, de um prédio sito à Rua do Rosário e de propriedade do poder municipal, ao Estado de Goyaz, de acordo com a lei municipal número sessenta e oito, de dez de março de mil novecentos e vinte 65 Escritura Pública de Doação, Jaraguá, 1927. Este documento encontra-se no arquivo da Escola Estadual Manuel Ribeiro de Freitas. 66 Lyra Machado Gomes. Biografia de Manuel Ribeiro de Freitas Machado. Jaraguá: s/d, (manuscrito). (grifos meus) 96 e sete, para nele ser installado um Grupo Escolar Estadual, prédio este com valor estimado em quarenta contos de reis.67 Desta forma, tem início o processo de um sistema articulado de educação na cidade de Jaraguá, objetivando atender a uma demanda de estudantes das zonas urbana e rural, à época composta aproximadamente por dezoito mil habitantes.68 Graciema Machado, parenta do doador, foi nomeada pelo poder público municipal para ocupar o cargo de direção, conforme nos indica a assinatura da mesma no primeiro livro de Termos de Compromissos, de acordo com artigo 24 de regulamento baixado pelo Decreto 8538, de 12 de fevereiro de 1925.69 No mesmo documento, usando de suas atribuições, a diretora Graciema Machado nomeia, através de Portaria, ―a senhorita Éster de Campos para reger a cadeira não preenchida da regência da quarta classe”. No mesmo ato nomeia também ... as professoras normalistas, senhorita Dulce T. da Silva e Alice Santiago para regerem respectivamente a terceira e primeira classes, ficando a directora incumbida da 2ª classe, nos termos da letra “o” do artigo 136 do regulamento dos Grupos Escolares do Estado.70 Dando continuidade à formação do quadro de pessoal do Grupo Estadual, a diretora nomeia ―o cidadão João de Freitas Machado para as funcções do cargo de porteiro do Grupo Escolar desta cidade‖. O Grupo Escolar representou, segundo a opinião de Dona Lyra Machado ―a melhor obra do intendente Manoel Ribeiro de Freitas Machado‖, por atender às necessidades de estudos das crianças jaragüenses à época.71 A mesma depoente conta que antes da criação do Grupo Escolar havia em Jaraguá escolas em casas particulares, gratuitas para os alunos, mas pagas pelo município. Para as meninas e as moças havia a Escola de Dona Luiza Augusta Machado, auxiliada por Dona Nicota e, mais tarde, a Escola Dona Sinhá, de Venância Velasco. As duas escolas para os 67 Escritura Pública de Doação, Jaraguá, 1927, Op. cit. Valor estimado a partir dos dados encontrados na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XXXVIJaneiro 1958. p.258 69 Livro de Termo de Compromissos. Arquivo da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas Machado. 70 Idem. p. 01. 71 Cf. Lyra Machado. Op.Cit. 68 97 meninos e rapazes foram: a primeira, pertencente a João Machado, e a segunda, ao professor João de Brito.72 Confirmando a impressão de Dona Lyra Machado, outro entrevistado, Dr. Wilson Barbo de Siqueira, estudante do Grupo Escolar até o exame de admissão, é de opinião que moravam em frente à escola, participavam com freqüência, juntamente com a elite jaragüense.73 Encontramos endosso aos elogios conferidos ao estabelecimento de ensino também nos registros da maioria dos inspetores de ensino que passaram pelo Grupo Escolar. O primeiro deles afirmava à ocasião que Qualquer pessoa, por mais exigente que seja, receberá da visita ao Grupo Escolar de Jaraguá, forte e agradável impressão sobre a ordem e disciplina do estabelecimento, o que atesta (...) a capacidade de sua diretora, a gentil senhorita Graciema Machado e suas dignas auxiliares.74 O esmero da administração da escola em relação aos métodos pedagógicos aparece, desde a preocupação com a organização do material, até a orientação de como receber os alunos nos primeiros dias de aula, assim como com o embasamento pedagógico. Também a forma de ministrar as matérias – aritmética e leitura oral e escrita – é motivo de constante preocupação. A tudo isso se soma um discurso marcado pela necessidade de firmar parâmetros que garantissem o que entendiam configurar sensibilidade e psicologia no trato com as crianças, Para o espírito imitativo da creança, que se impressiona e procura copiar as scenações desenvolvidas ante os seus olhos e ouvidos a Escola constitui um 72 73 Idem. Depoimento concedido por Wilson Barbo de Siqueira, ex-aluno do Grupo Rui Barbosa, em 1943. Advogado e assessor jurídico da Câmara Municipal de Jaraguá.(09/09/2001). Registro meu pesar pelo falecimento de Dr. Wilson Barbo de Siqueira, ocorrido em maio de 2002, na certeza de que a cidade de Jaraguá, consternada, lamenta a perda de um grande intelectual. 74 Livro de registro de fiscalização do Grupo Escolar de Jaraguá. 1927. Arquivo da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas Machado. 98 exemplo vivo.(...) A irritação, a ociosidade, a impaciência, as palavras rudes e offensivas, os gestos violentos devem ser evitados pelo mestre.75 Também o compromisso com o bom aproveitamento afetivo e cognoscitivo do aluno, assim como a preocupação com o estímulo ao estudante, além de uma especial atenção ao ensino, principalmente de aritmética, que deveria ser o mais concreto possível, visando a despertar o interesse e facilitar o aprendizado, são ressaltados, como indicado no trecho abaixo: Concretizado o mais que for possível, deve ser o ensino. Apresentar quadro de gravuras e fazerem à classe perguntas sobre elle. Se uma creança formula uma boa phase, o professor a acceitará e ordenará aos alunos a escreveremna (...)isto para que o menino que por felicidade a pronunciou se enthusiasme pela gloria de ter dito alguma cousa de aproveitável.76 Os primeiros dias de aula eram tema de orientação por parte da direção, como se apreende do seguinte fragmento: As creanças, quando vão para a Escola teem della uma péssima impressão, comunicada pelos Paes que lh‟a promettem por meio de correção. Assim o trabalho da professora nos primeiros dias se resumirá em captar-lhes a sympatia.77 Era a escola atenta à necessidade de apagar a impressão, ao que parece comum, de associá-la ao castigo que deveria ser aplicado àqueles a quem não se conseguia corrigir. Portanto, pelo menos nos primeiros dias, tudo deveria ser só simpatia. O Grupo Escolar de Jaraguá mantém esta denominação até 1933, data em que passa a se chamar Grupo Escolar Ruy Barbosa, evidência encontrada na documentação consultada. Em documento datado de 10 de abril de 1933, nenhuma alusão existe acerca da mudança para a nova denominação. É o primeiro, porém, que traz em seu cabeçalho o novo nome. Este mesmo documento trata da nomeação da nova diretora do Grupo, Maria Madalena de Freitas Rios, nomeação esta feita a partir do decreto do Interventor Federal do Estado, de nº 3.215. No documento atesta-se que 75 Documento avulso e sem data encontrado nos arquivos da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas Machado. 76 Idem. 77 Idem, Ibdem. 99 (...) a mesma apresentou o seu título de normalista ao senhor Luiz Gonzaga de Farias, diretor em exercício, (...) prestando perante o mesmo o compromisso legal de com consciência e critério, bem zelar dos interesses da Instrucção. 78 O depoimento de Dona Yara Machado, assim como o de Dona Maria Agripina, exestudantes do Grupo Escolar, são unânimes em enfatizar que as professoras, todas normalistas, formadas na escola normal da cidade de Goiás, Colégio Santana, ―eram de uma competência sem igual‖(Dona Maria Agripina) O ensino era muito bom. Eu falo que o primário que eu fiz vale mais que o 2º grau de hoje. Era muito bom o ensino. Eram menos alunos, mas, quando a gente tinha dificuldades, o professor levava a gente até pra casa, para orientar, dar um reforço.(Dona. Yara Machado) Comparo o meu primário ao 2º grau de hoje, tamanha foi a sua importância para minha formação. As matérias estudadas, Português, Matemática, História, eram muito boas. As professoras, todas elas normalistas, formadas na escola normal da cidade de Goiás, eram de uma competência sem igual. (Dona. Maria Agripina) Em documento datado de 26 de agosto de 1936, percebe-se nova mudança na denominação do Grupo, que passa a chamar-se Grupo Escolar Manoel Ribeiro de Freitas Machado, certamente uma homenagem ao intendente municipal que doou o terreno ao Estado para a construção do Grupo, em 1927. Este é, também, um indício da existência de uma prática política, bastante disseminada na cidade, de nomear prédios públicos com os nomes de políticos e seus familiares, em geral pessoas associadas aos antigos coronéis que, em Jaraguá, pertenciam, principalmente, a duas famílias: Os Castro e os Freitas. Manoel Ribeiro de Freitas Machado, por exemplo, que nasceu no dia 6 de abril de 1875 e faleceu dois anos após a doação, em 9 de outubro de 1929, com 54 anos de idade, era representante da família Castro. Com a destruição do antigo prédio, criou-se uma Escola Estadual, também ela batizada com o nome do antigo intendente municipal. 78 Livro de termo de Compromisso. 1933, p. 06 – Arquivo da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas Machado. 100 A documentação consultada indica que, desde a criação do Grupo, o mesmo recebia, anualmente, visitas de um agente fiscal do Estado para certificar e garantir a qualidade de funcionamento. De modo geral, os inspetores são coincidentes em suas apreciações sobre o estabelecimento e não deixam de mencionar a gentileza com que foram recebidos pela direção e pelos funcionários. O relato que em 1928 o inspetor Gerson Espírito Santo faz de sua visita ao Grupo Escolar é bastante representativo do tom que predominava: Qualquer pessoa, por mais exigente que seja, receberá da visita ao Grupo Escolar de Jaraguá, forte e agradável impressão sobre a ordem e disciplina do estabelecimento, o que atesta (...) a capacidade de sua diretora, a gentil senhorita Graciema Machado e suas dignas auxiliares.79 No ano seguinte, 1929, em visita de rotina, o fiscal Osório Artiaga também deixa registrada sua opinião acerca da qualidade do Grupo Escolar de Jaraguá. Notei que os alunos estão bem adiantados, que as professoras são bastante esforçadas e carinhosas, tudo enfim demonstra que a infância de Jaraguá está muito bem servida.80 Porém, nem sempre o tom foi esse. Em fiscalização datada de 07.10.1931 e assinada por Dauton Raul, por exemplo, este atesta que deixará registrado o ―fruto da verdade‖ sobre o que viu. Iniciando seu relatório pelos já esperados elogios à competência e esforço do corpo docente, afirma, entre outros elogios, que ―nesse estabelecimento de ensino [se] bebe a sagrada luz do saber‖. Subitamente, entretanto, introduz comentários desconcertantes frente à monótona retórica que prevaleceu até então nos relatórios dos colegas que o precederam. Em frase aparentemente fora de contexto, se comparada aos relatórios anteriores, Dauton Raul afirma que, infelizmente, 79 Livro de registro de fiscalização do Grupo Escolar de Jaraguá. Datado de 1927. Arquivo da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas Machado. p. 2. O livro, aberto em 1927, contém os registros das visitas realizadas até 1932. 80 Idem, p. 3. 101 ... essa casa de instrução acha-se desprovida dos requizitos indispensáveis e preponderantes para que seja uma realidade e não um mito.81 Dando continuidade às críticas, enfatiza que Primeiro, a „auzencia‟ absoluta de compêndios, como cartas geográficas, cadernos de caligrafia e „dezenho‟, sem o que torna-se „quazi‟ impraticável a adoção do ensino. Segundo, o mobiliário de que dispõe o Grupo Escolar de Jaraguá, deixa muito a desejar, pois o número de carteiras é insuficiente e sem o menor conforto, deixando também de oferecer a higiene necessária a uma casa onde quotidianamente reúne dezenas de crianças.82 Na seqüência, verificamos que nos dias 06 e 07 de novembro do mesmo ano, o mesmo fiscal Osório Artiaga, que deixara registradas suas impressões por ocasião de inspetoria realizada dois anos antes, volta à escola, mas, dessa vez, para endossar o discurso do colega anterior. Mantendo o padrão dos outros relatórios, o seu inicia por calorosos elogios à atenção da Diretora, ―Sta. Dulce Gomes‖. Mais adiante, porém, descrevendo uma ligeira visita que fez às salas de aula, verifica ter observado ... grande acanhamento por parte das crianças, [julgando] necessário a promoção de festas escolares em que os pequenos tomarão parte desempenhando papéis fáceis, em teatrinhos infantis, recitativos, monólogos, etc.83 Outra crítica apresentada por Artiaga é quanto ao número insuficiente de alunos em sala de aula, concluindo que: Urge, pois, que se trabalhe no sentido de aumentar [o número de alunos] pois não convém em absoluto ao Estado conservar um grupo com tão pequena freqüência.84 81 Livro de fiscalização de 08 de setembro de 1927 p. 06 – Arquivo da Escola Manoel Ribeiro de Freitas Machado. 82 Idem. p. 6. 83 Idem, Ibdem p. 7. 84 Idem, p. 07. 102 O que a documentação parece indicar é que os ―tempos dourados‖ do Grupo teriam ficado para trás, dando lugar, nos relatórios de inspetoria, a críticas quanto ao desempenho da escola. A questão da baixa freqüência, explicitada pelo último inspetor citado, por exemplo, sugere que o Grupo – que era uma instituição pública – cuja função deveria ser abrigar um número considerável de alunos sem condições de estudar fora da cidade, não vinha respondendo a esse desafio. Em 1945, na gestão da diretora Lyra Machado Gomes e Sousa, que também ocupou a chefia desse estabelecimento de ensino em data anterior (1934-1943), numa clara demonstração de reconhecimento da necessidade de preservação da memória histórica da escola, a direção decide deixar lavrados, em livros de Atas, os registros dos festejos realizados no Grupo Escolar, atendendo, quem sabe, à sugestão dada pelo fiscal Osório Artiaga, quatorze anos antes. Na primeira festividade, realizada em frente ao Grupo Escolar, estiveram presentes, como explicita a ata, a ―nata‖ da sociedade jaragüense: o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito, Antônio Diurivê Ramos Jubé; o Exmo.Sr. Prefeito Municipal, Nelson de Castro Ribeiro, a diretora Lyra Machado Gomes e Souza, assim como as professoras daquele estabelecimento. As solenidades iniciaram-se com o desfile dos alunos perante as autoridades presentes, ao som da ―Canção do Soldado‖, que os mesmos entoaram. Em seguida, a aluna Yolda Pinto de Oliveira falou, ―enaltecendo‖ as figuras heróicas de ―Caxias, Barroso e Tamandaré.‖ O aluno Sebastião Rodrigues recitou ―Heróis do Brasil‖, poesia do Dr. Augusto Rios.85 ―Nosso Brasil‖, de Olavo Bilac, foi a poesia declamada pela aluna Angelina Locatelli. A menina Leila Pereira declamou: ― A Bandeira”, do autor Léo Fontes. “A terra brasileira”, de autoria de Augusto de Lima, foi a poesia recitada pela aluna Isabel Borges. Com o Hino Nacional, entoado por todas as ―creanças‖ do Grupo Escolar, finalizaram-se os festejos do dia.86 Rangel evidencia que as representações sociais se veiculam através da comunicação, utilizando-se de uma linguagem comum ao grupo, o que possibilita compartilhar do 85 Dr Augusto Rios foi importante intelectual na cidade de Jaraguá, advogado e poeta. Cf. Romacheli. Op.cit p. 111. 86 Livro de Atas dos festejos realizados no Grupo Escolar. 1948. p.1 103 conhecimento cotidiano ―representado pelos sujeitos que o explicam por conceitos e imagens adotadas coletivamente.‖87 Os festejos escolares criavam a oportunidade para empreender-se o esforço no sentido de configurar-se uma espécie de união das identidades, composta por um cenário representado por autoridades que, através das encenações levadas a cabo pelos alunos, afirmavam o caráter heróico das personagens homenageadas, reforçando, ao mesmo tempo, as representações que dão sentido à imagem dos grandes heróis, consagrando seus grandes feitos, justificando e perpetuando as representações de mundo dos grupos dominantes, por meio da educação escolar. Eram as autoridades ali presentes os herdeiros dessa geração de ―heróis‖ que, desde pequenos, os alunos aprendem a respeitar. Neste contexto, argumenta Silva quando escreve sobre a questão da identidade e diferença. É também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. (...) Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação.88 Diante dos dados apresentados sobre o primeiro Grupo Escolar de Jaraguá, podemos detectar algumas evidências que deixam claro que, desde o momento de sua inauguração, o estabelecimento de ensino se manteve subordinado a pessoas que representavam a elite jaragüense. A afirmativa busca respaldo na observação e análise dos sobrenomes das pessoas que ocuparam o cargo de direção e funcionários responsáveis pelo ensino. O fato não é difícil de ser compreendido, uma vez que Jaraguá sempre esteve nas mãos de fortes líderes políticos, representados pelas famílias Machado, Castro e Freitas; não por acaso, as mesmas que forneceram o maior quadro de profissionais para a escola. 87 Rangel, Mary.”Bom aluno”: real ou ideal? O quadro teórico da representação social e suas contribuições à pesquisa. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997. p. 33. 88 Tomaz Tadeu da Silva. A produção social da identidade e da diferença. In: Tomaz Tadeu da Silva (org.). Identidade e Diferença ... Op. cit., p.89. 104 Essa evidência não passou despercebida a alguns depoentes. Seu Tentorino Julião de Amorim, por exemplo, afirma que ... no Grupo, claro que havia ingerência. Dona Lyra mesmo era companheira [política] dos Castro e por isto ficou tanto tempo na direção.89 Mas vejamos que outras imagens da experiência escolar no Grupo rondam o trabalho de memória dos depoentes. O Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá: 1947-1968 O Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, de caráter religioso, foi criado em 1947, num contexto de intenso crescimento populacional, fruto da política nacional desenvolvimentista que ofereceu os contornos da chamada ―Marcha para o Oeste‖.90 Cassiano Ricardo foi um dos ideólogos da política de ocupação do interior do País. Em obra intitulada ―Marcha para o Oeste‖, esse intelectual buscou justificar a política de colonização proposta por Getúlio Vargas, usando, entre outros recursos, a retórica do heroísmo, exemplificada na construção que aproxima os movimentos da ―Marcha‖ à saga dos bandeirantes. O intuito da ―Marcha‖ seria ocupar as terras desabitadas, ou pouco habitadas, e esse feito caberia aos desbravadores, verdadeiros heróis, como nos mostra a autora: Um empreendimento dessa envergadura não caberia a homens, mas a heróis. Vargas precisava enfeixar em suas mãos o poder, através do qual estaria representado cada brasileiro. Ele não seria o homem Vargas mas o chefe da Nação que trazia em si a aspiração, a esperança e a certeza da realização coletiva. A construção de uma identidade nacional passava pela ação do bandeirismo. Essa identidade nacional estaria personificada em Getúlio, mito que estava fadado a empreender uma nova marcha rumo ao desconhecido, que iria alargar os horizontes da Nação, expandindo as possibilidades de trabalho, o desbravamento da natureza e o amansar da 89 Entrevista com Seu Tentorino Julião de Amorim, contabilista, empresário, ex-estudante do Grupo Escolar de Jaraguá. Concedida no dia 28 de janeiro de 2002. 90 Segundo Luciano da Fonseca, ―O município de Jaraguá acumulou um efetivo populacional neste período [1940/50] , que praticamente dobra sua população‖. Impactos da Marcha para o Oeste no Município de Jaraguá. Monografia Final de Graduação. Goiânia, UFG, 1998, p. 27. Sobre esse tema consultar ainda: Nasr Nagib Fayad Chaul. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Ed. da UFG, 1997. 105 terra. Esse homem abriria caminho para a construção de uma vida nova em uma terra prometida. 91 Foi nesse processo que ocorreu o movimento migratório em direção ao Estado de Goiás, sobretudo entre as décadas de 1920 e 1950. Jaraguá não ficou fora dessa política. No período indicado, o município acumulou um efetivo populacional que praticamente dobrou o número de habitantes, passando de 7.038 pessoas em 1920, para 14.030 habitantes no censo de 1940.92 Em 1923, D. Emanuel Gomes de Oliveira assumia o bispado de Goiás, em substituição a D. Prudêncio, que havia falecido. Segundo Bretãs (1991), D. Emanuel Gomes de Oliveira ficara conhecido como ―Arcebispo da instrução‖, por tudo o que demonstrou em termos de iniciativa e capacidade no campo educacional.93 Segundo bibliografia consultada, a iniciativa de fundar o espaço escolar que dará lugar ao Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, entretanto, caberá a um leigo. Trata-se do Dr. José Peixoto da Silveira, que em 1938 chega a Jaraguá, proveniente de Minas Gerais, onde inicia o exercício da medicina. Além de médico, o Dr. José Peixoto da Silveira estendia suas atividades às esferas da educação, do comércio imobiliário e da agricultura. Em 1944 funda a ―Escola General Curado‖, que posteriormente será transformada no ―Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá”, que ajuda a instalar e do qual foi Professor-Fundador, tendo para isso prestado concurso de Professor Secundário exigido pelo Ministério da Educação.‖94 Em seu depoimento, porém, Sr. Tentorino Julião trouxe outros dados sobre o episódio. Segundo contou, a iniciativa do Dr. José Peixoto da Silveira não resultou na criação de uma escola, mas de um curso secundário, ministrado à noite, no prédio do antigo Grupo Escolar Ruy Barbosa. Portanto, não teria existido uma ―Escola General Curado‖, antecessora ao Arquidiocesano, e sim, um curso que recebeu esta denominação. Polêmicas à parte, a instalação do Ginásio Arquidiocesano em Jaraguá foi um importante acontecimento para os seus habitantes que ansiavam pela continuidade do ensino, uma vez que na cidade contava-se apenas com escolas primárias. 91 Cassiano Ricardo. Marcha para Oeste. Rio de janeiro. Ed. da USP e José Olympio, 1970. Apud Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte. O Poder e a estrutura agrária nos municípios de Ceres e Jaraguá. Op. cit. p.187-188. 92 Cf. Luciano da Fonseca, Os Impactos da “Marcha para o Oeste‖ no Município de Jaraguá. Dissertação de Pós-Graduação. UFG. Goiânia, 1997. 93 Genesco Ferreira Bretas. História da Instrução pública em Goiás. Op. cit. p.532. 94 Silveira PX (org.) José Peixoto da Silveira – O gentil-homem.Gráfica Centauro, Goiânia, 1987, p. 5. 106 No imaginário de meus depoentes, o ensino administrado por padres parece ter lugar privilegiado, pois não foram poucos aqueles que associaram a qualidade do ensino que ali se encontrava com o fato do ginásio estar nas mãos dos religiosos. O ginásio atraiu grande número de estudantes da zona rural e de cidades circunvizinhas, como pude constatar na lista de estudantes, que contava, por exemplo, com nomes de dois importantes médicos da cidade de Petrolina: Dr. Dalton de Siqueira e Dr. Nelson Pereira de Vasconcelos. Sr. Valdir Alves da Costa, filho de Dona Clotildes Machado Alves, conhecida na cidade como Dona Tide, conta-nos que sua mãe fez a doação do terreno para a construção do Ginásio Arquidiocesano como forma de garantir a educação de seus 10 filhos: Mamãe fez a doação do terreno para a Construção do Colégio, em troca dos estudos dos filhos, que eram 10 ao todo. Meus irmãos estudaram no Colégio, mas depois fomos para Goiânia. Passados uns 10 anos, voltamos para Jaraguá, aí então eu estudei no Colégio. Eu fui o último a ir estudar lá. A família era muito grande e minha mãe temia não dar conta de estudar todos os filhos, por isso fez a doação de aproximadamente um alqueire de terra para a cúria, mas acho que sem nenhuma documentação, só de boca. A cúria posteriormente doou para o Estado, para a construção do Ginásio de Esportes de Jaraguá.95 Também Dona Maria Agripina do Patrocínio conta como se deu a fundação do Arquidiocesano, assim como a primeira formação do corpo discente: O Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá teve início em março de 1947, sendo construído pela diocese, especificamente pelo bispo Dom Emanuel que doou um crucifixo de ouro para ser vendido e construído o colégio com o dinheiro arrecadado.O primeiro diretor foi o padre Cleto Autue. Teve no quadro de professores: Prof. João de Aquino, Dona Emicenia Machado de Freitas, Dr. Fayad Neto (promotor), Dr. Antônio Jubé (juiz), Cassilda Rios de Freitas, Dona Esmeralda e Omar Belote.96 Como se vê, Dona Maria Agripina ―apaga‖ de suas lembranças o nome do Dr. José Peixoto da Silveira, suposto membro fundador do ginásio. Na construção memorialista de sua experiência, porém, há lugar de destaque para o papel desempenhado pelo bispo de então, 95 Depoimento concedido por Valdir Alves da Costa, funcionário aposentado das Centrais Elétricas de Goiás. Maio de 2002. 96 Depoimento concedido por Dona Maria Agripina Patrocíneo, professora aposentada, ex-aluna da primeira turma do Colégio Arquidiocesano, em julho de 2001. 107 Dom Emanuel, e seu ato de desprendimento – a doação do crucifixo de ouro para a construção do futuro prédio.97 ―Terei muito prazer em relembrar os momentos vividos no Arquidiocesano”98Assim o Dr. Sebastião Machado, hoje de volta a Jaraguá depois de muitos anos morando no Rio de Janeiro, recebeu-me para a entrevista. Formado em Direito pela Universidade de Belo Horizonte, ele foi estudante da primeira turma do Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá. Segundo contou, das boas lembranças que guarda daqueles momentos, muito se deve ao modelo de ensino que o caracterizava: O Colégio Arquidiocesano foi um modelo de ensino em Jaraguá. A disciplina dos padres professores era rigorosa, o ensino porém era de primeiro nível. Quando me formei no Ginásio e fui para Goiânia, não encontrei nenhuma dificuldade de me ingressar no Liceu de Goiânia. Retrospectiva, a memória tende a configurar as experiências passadas em parâmetros que possivelmente só encontrem sentido no presente. A qualidade do ensino, passaporte para a futura carreira, é que será lembrada quando se interroga o que fazia aquele Colégio ser um lugar de boas lembranças. Nada de brincadeiras, bagunças, namoros, coisas de infância e juventude. Prevalece uma perspectiva pragmática (adulta), muito mais associada ao presente do depoente que à experiência passada. A infância e a juventude, com todos os sentimentos conflitantes que as caracterizam, são solenemente apagadas. O mesmo mecanismo é encontrado no depoimento de Dona Maria Agripina, ao descrever o que para ela eram as maravilhas do Colégio: O colégio era maravilhoso, o melhor que Jaraguá já possuiu. As aulas eram separadas para meninas e meninos, no início da primeira turma. (...) Não se perdia um único dia de aula; tínhamos aulas de latim, francês e inglês. A disciplina era rigorosa, porém não existiam castigos corporais. 97 Há um longo discurso do Dr. José Peixoto da Silveira, registrado em um livreto pertencente à Professora Dulce Madalena Rios, proferido por ocasião da formatura da turma do Arquidiocesano de 1958, da qual foi paraninfo. Nesse documento há menção à passagem do médico como professor por aquela instituição. ―Visito este Educandário com a satisfação confortadora e enternecida de quem vê uma exuberante árvore que ajudou a plantar e assistiu crescer, pela fecunda colaboração dos poderes públicos, dos esforços particulares e da Cúria Metropolitana.‖ p.7. 98 Entrevista concedida pelo Sebastião Machado, advogado, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano, em 1947. Jaraguá agosto de 2001. 108 Todos os alunos obtinham sucesso em sua carreira escolar, quando de lá saiam. Meninas para um lado, meninos para o outro; nada de gazetear; latim, francês e inglês; disciplina rigorosa; sucesso na ―carreira‖ escolar: aí estavam as maravilhas do Colégio. Mas, Dona Maria Agripina não se contentou em apenas contar suas lembranças. Foi dela a iniciativa de mostrar-me o álbum de formatura da primeira turma do Colégio. Os alunos eram todos egressos do Grupo Escolar Manoel Ribeiro de Castro, antigo Grupo Ruy Barbosa, onde concluíram o estudo primário. Feita a seleção do exame de admissão, formaram a primeira turma do Ginásio.99 A iniciativa de Dona Maria do Patrocínio chamou minha atenção para o uso documental que as fotografias poderiam ter neste trabalho.Devo a ela essa dica. A depoente prossegue seu relato sobre as experiências comuns que permaneceram unindo essa primeira turma muitos anos depois: A formatura se deu no dia 03 de dezembro de 1950. Todos nós fizemos o álbum de fotografias e o guardamos com muito zelo. Após 40 anos, a turma voltou a se reunir em Jaraguá para uma festa comemorativa, com a participação da grande maioria dos colegas que não mediram esforços para vir de outros Estados, como o caso de Sebastião Machado, que veio do Rio de Janeiro para participar da festa. Na memória do Dr. Wilson Rios Barbo de Siqueira, as aulas de teatro, assim como as de canto orfeônico, são lembranças que não se apagaram. Ele lembra com emoção o dia em que recitou o poema ―Navio Negreiro‖: Prestei exame de admissão e fui para o Arquidiocesano onde encontrei um corpo de competentes professores, com excelente nível de ensino. Estudávamos, além de outras matérias básicas, o latim e o francês. A escola oferecia também oportunidade de estudos literários, onde acontecia a sessão literária, declamação de poesias, onde inclusive, tive oportunidade de recitar 99 Álbum de formatura de Maria Agripina Patrocínio, Jaraguá, 1950. Consta da fotografia um grupo de 19 alunos. São eles: Maria Agripina Patrocínio, Sebastião Machado, Agripina Moreira, Maria da Glória Machado, Maura de Freitas, Amintas de Freitas, Emílio Nilton de Aquino, Benedito Rodrigues de Andrade, José Leopoldo de Siqueira, Ernane Henrique Salgado, Maria Antonieta R. Jubé, Maria Josefina R. Jubé, Maria Machado de Freitas, Pirineus Gomes Pereira da Silva, Olira Oliveira, Odília Tavares dos Santos, Luís Pereira da Rocha Neto, Teonil Antonio Batista, Manoel Elias Campos. 109 a poesia Navio Negreiro, e afundei em lágrimas, tamanha comoção. A disciplina era severa, porém não havia utilização de castigos corporais.100 Para Dona Terezina Rodrigues de Castro Ribeiro, as lembranças do Colégio Arquidiocesano estão ligadas, sobretudo, ao sentimento de gratidão pelo diretor Padre Cleto que lhe possibilitou oportunidade de retornar aos seus estudos: Sempre gostei muito de estudar. Terminei a 4a. série em 46 e papai ficou sem ajudante para trabalhar com ele. Então, deixei os estudos e fui embora para a fazenda para ajudá-lo. Dava recados, abria porteira e outros serviços desta natureza, pois era muito pequena e não conseguia fazer muita coisa. Meu irmão Dito era estudante do Colégio Arquidiocesano e comentou com o padre Cleto, diretor do Colégio, que tinha uma irmã, em idade escolar, que gostava muito de estudar. Ele mandou me buscar, elaborou um exame de admissão, fora de época, mês de maio, e me matriculou no colégio. Sou profundamente grata a ele. 101 Memória feita de nomes. Também assim vai sendo tecida a história dos ex-alunos. É Seu Tentorino Julião Amorim quem agora fala. Seu trabalho de memória lembra passagens, não apenas positivas, de sua experiência: Dona Emicenia [professora do ginásio] era rigorosa, mas muito educada, mas o padre Belote era grosseiro e meu pai não aceitava e entrou em atrito com ele. Ele era diretor, mas meu pai desafiou ele. Teve muita gente que apanhou lá. Esse Aroldo, por exemplo, apanhou lá, e o padre Belote deu um tapa na orelha dele, mas esse era atrevido demais, o professor Fayad ameaçou mandar prender ele. O Colégio tinha muito prestigio, tanto é que pode observar os uniformes, realmente lá não estudava gente pobre. Marcavam o chão das praças com giz para melhor delimitar os espaços nos dias de desfile, tinha as marchas boas, tudo de muito bom gosto e disciplina. Dona Emicenia era muito querida, assim como todos que lá trabalhavam e estudavam. A cidade prestigiava enormemente o Colégio que era uma coisa fora de série dentro de Jaraguá. Nunca tínhamos falado francês aqui e começamos a estudar francês, além do inglês. A cidade possuía em torno de 5 mil habitantes, hoje está em torno de 30 mil. A cidade, nesse tempo, quando começou o Ginásio, lá era uma floresta, não 100 Depoimento concedido pelo Dr. Wilson Barbo de Siqueira, 66 anos, assessor jurídico da Câmara Municipal de Jaraguá, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano, em 1948. Jaraguá, 4 de setembro de 2001. 101 Entrevista concedida por Dona Terezina Rodrigues de Castro Ribeiro, 69 anos, pedagoga, aposentada, exaluna do Ginásio Arquidiocesano em 1948. Novembro de 2001. 110 tinha casas nas suas proximidades, mas mesmo assim era bem procurado, pois o Colégio mais próximo era o de Silvânia, que ficava a 6 a 8 dias de viagem.102 De um depoente para outro, os personagens vão ganhando contornos mais complexos. O mesmo padre Belote, temido pelo rigor e grosseria no tratamento com os alunos, povoa também a lembrança do Dr. Suzano, irmão de Dona Terezina. Entretanto, para ele, o padre era exemplo de professor: A lembrança do tempo de estudante é a da melhor escola que eu já freqüentei, incluindo a faculdade, que fiz em Uberlândia. O ginásio era espetacular, hoje não tenho dificuldades de escrever, falar em público, redigir qualquer documento ou discurso. Tudo, tudo, devo ao colégio Arquidiocesano. Padre José Belote era um monstro em Português. Ele metia o português dentro da cabeça da gente. A maneira dele ensinar, não tinha quem não aprendia. Ele tinha uma facilidade para nos fazer entender, de abrir um clarão na cabeça da gente, alegre, brincalhão. Ele tinha uma corrente que ele batia em nós, mas com atitude de brincadeira. Ele nos ensinava a ler, a ter entonação de voz. Ele fazia uns gráficos no quadro para mostrar quando devíamos subir ou descer a voz no momento da leitura. Aquilo entrava na cabeça da gente. Ele nos punha a ler gibi para despertar interesse, gosto e o prazer da leitura para depois melhor a qualidade dos textos lidos.103 Dona Terezina lembra ainda que para estudar no Ginásio teve que contar com outra ajuda, pois não dispunha de condição financeira adequada aos padrões dos demais alunos. Para estudar no Colégio, papai ganhou a bolsa de estudos, pois era pago e nós não tínhamos como pagar. Quando eu fiz Normal, já trabalhava como funcionária do Banco Estadual de Goiás e, com meu salário, consegui pagar meus estudos. Dona Emicenia Maria de Barros, lembrada no depoimento de seu ex-aluno, Sr. Tentorino, foi professora do Colégio Arquidiocesano (de 47 a 49). Hoje morando em Brasília, 102 Entrevista concedida por Seu Tentorino Julião de Amorim, 67 anos, economista e empresário, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano em 1948. Janeiro de 2002. 103 Entrevista concedida por Suzano Rodrigues Filho, advogado, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano em 1952. Jaraguá, maio de 2002. 111 Dona Emicenia recebeu-me para a entrevista com certo temor, pois, vítima de um aneurisma, não acreditava ser possível dar sua colaboração à pesquisa. Entretanto, depois de algum tempo de conversa e observação de algumas fotografias, ela já expressava “... muita satisfação de poder ajudar em um trabalho deste porte, apesar da doença, que me queimou uma porção de lâmpadas em minhas lembranças.‖ 104 Saída da escuridão do esquecimento pelo primeiro contato com o passado, afloram as lembranças do tempo em que, numa atitude arrojada para a época, a jovem professora veio morar em Jaraguá para trabalhar como professora. D. Emanuel Gomes de Oliveira – arcebispo da Diocese de Goiás – convidoume para ir trabalhar em Jaraguá. Eu era solteira e tinha 18 anos. Fundou o curso de admissão, por volta de 1940, antes da construção do Arquidiocesano. Era composto por excelentes alunos e funcionava no sobrado da Guida. [Construção que não existe mais]. Posteriormente, com a construção inacabada do Arquidiocesano, já comecei a trabalhar lá mesmo. O Colégio foi uma expansão da instrução de cunho religioso. Lá lecionei Português, Estudos Sociais, Canto Orfeônico. Criei o Grêmio Literário de Lazer e estudo de canto. O ensino era muito bom, e durante 5 a 6 anos lecionei no Colégio. Formei-me no curso normal de Formosa. Minha ida para Jaraguá foi um passo ousado para a época. Morei primeiramente em casa de família, depois fui morar no Hotel Freitas. Mas neste tempo, também lá moravam Esmeralda (também professora) e o professor Aquino. Em 1949 , casei-me e fui para Barranca (hoje Rialma), mas ficou-me a lembrança do pouco tempo em que residi em Jaraguá, bons tempos em que fui a respeitada professora do Colégio Arquidiocesano de Jaraguá. Mais animada, Dona Emicenia mostra-me um álbum de fotografias presenteado por sua amiga Cacilda Terezinha Rios. Nele, fotografias do Ginásio e dos alunos que, carinhosamente, subscritaram fotos para a professora, em sinal de apreço pela querida mestra. Por sua vez, assim a amiga dedicou-lhe o presente: Emicenia, os retratos são recordações valiosas dum passado remoto. Quase sempre podem nos lembrar a mocidade no batizado, no primeiro aniversario 104 Entrevista concedida por Dona Emicenia Maria de Barros, ex-professora do Ginásio Arquidiocesano, em 1947. Brasília, novembro de 2001. 112 e no dia de noivado. Lembra-nos também fisionomias queridas que deixaram de existir. Neste álbum você trará muitos retratos de alunos e pessoas que lhe são caras. No futuro, quando todas as creaturas, aqui retratadas, trouxerem no rosto a marca indelével do tempo, lembrará você da Tereza? Salve 26/5/47. Logo às primeiras páginas do álbum, encontramos uma fotografia das duas primeiras turmas de estudantes e dos primeiros professores do Colégio Arquidiocesano. Os alunos postados de um lado da escadaria do Colégio e as alunas do outro, tendo na parte central os professores, dentre eles, Dona Emicenia. Lá estava, entre outros, Dona Terezina. Ao mostrar-lhe as fotografias, pude testemunhar o efeito que as imagens tiveram em minha depoente. Puro entusiasmo, ela trata rapidamente de identificar-se, assim como aos demais colegas: Turbilhão de imagens. Dona Terezina literalmente “passa a limpo” aquele saudoso passado: Olhe eu, aqui! eu era até bonitinha. Professor Aquino! Olhe como eu era bonitinha, pena que eu olhei pra baixo. Olhe aqui Suzete, minha amiga, aqui Alexandre e Urbano. Urbano era comunista e naquele tempo ser comunista era crime, ele teve que fugir. Aqui Yara, era tão bonita! Passado que, pela força das imagens, parece querer pular as barreiras do tempo. Emocionada, oferece um testemunho que bem define o efeito alcançado pela imagem no processo de construção da memória: Ao ver estas fotos, as lembranças descem como tempestade, desencadeando uma emoção que sufoca. A escola era a minha vida. Como eu não participava de nenhuma atividade social, era na escola que eu me realizava. É muito agradável ver estas imagens do meu tempo estudantil, mas, por outro lado, as lembranças são tão profundas que chega a magoar. Na vida, vivemos vários momentos importantes, casamento, filhos, mas nada se compara a experiência da escola na vida de uma jovem. Para mim, a escola é algo que me marcou para a vida inteira. Eu sinto uma gratidão imensa ao meu pai e a padre Cleto por terem me proporcionado condições de estudar. Eu sempre fui doida para saber, para conhecer as coisas. Tem horas em que estas lembranças, essa saudade vem de forma suave, mas em determinados momentos vêm de forma avassaladora, como uma 113 avalanche. Não tem nada como a infância e a adolescência. Se eu for analisar a minha vida, tenho muito mais problemas do que momentos de realização, de felicidade, de tranqüilidade. Mas eu sou teimosa, faço do limão uma limonada. Aqui em Jaraguá, toda a minha vida girava em torno do colégio, minhas amigas, meus professores, padre Cleto, padre Belote. Padre Belote foi meu amigo mesmo, de tentar me orientar na vida. Outra fotografia mostra um desfile cívico dos alunos do Ginásio. Em fila, por ordem de tamanho e uniformizados, desfilam pela rua principal da cidade ainda sem asfalto. A foto mostra que a iluminação pública sustentava-se ainda em postes de madeira. À frente, alguns alunos carregando a Bandeira do Brasil e a Bandeira de Goiás. Os meninos vestem roupa de gala, terno branco, cinto e quepes pretos. Vêem-se também os casarios antigos, que já não existem mais na cidade. Crianças, moradoras da cidade, correm descalças à frente do desfile juntamente com um cão. As pessoas param para assistir ao desfile, trajando ternos de cor clara e gravatas, demonstração de dia de festa. Outra imagem bastante interessante registra o momento em que a praça central da cidade transformava-se em palco das demonstrações de atletismo. As aulas eram ministradas por padre Cleto que, segundo enfatiza Dona Emicenia, ministrava ―as aulas (...) com muito rigor”. As garotas vestiam o uniforme comum, saia pregueada e camisa de mangas longas, os rapazes já vestiam trajes mais leves, calças longas e camisetas cavadas. O chão era traçado com cal branco para marcar as evoluções. As pessoas chegavam para assistir as demonstrações dos alunos. Padre Cleto era o professor. Rigoroso com as normas e a disciplina, se algum deslize acontecesse durante as apresentações, o aluno ganhava a maior bronca quando chegava ao colégio. Percebemos, pelas fotografias, a preocupação com a simetria dos movimentos. Os alunos fazem movimentos que exigem equilíbrio, formando verdadeiras pirâmides humanas. Demonstração de civismo, a bandeira brasileira aparece no topo da pirâmide, erguida pelo aluno ou aluna que estivesse em seu ápice. Utilizo-me do pensamento de Benjamin que, refletindo sobre a construção da memória histórica, de forma pontual enfatiza que: 114 Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo, “tal como ele propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal qual ela cintilou ...105 A experiência adquirida ao longo do trabalho desenvolvido com os depoimentos corrobora essa afirmativa de Benjamin. A história que os depoimentos trazem não é mesmo “tal como ela propriamente foi”. Ela passa pelo processo seletivo implícito no trabalho de memória. Entretanto, fazer uso das fotografias como fonte documental permitiu apreender que, frente à imagem, esse trabalho tende a fluir muito mais ―solto‖, com menos ―censura‖ do presente. Desde as primeiras iniciativas voltadas à coleta de depoimentos, chamou-me a atenção o fato de ter encontrado freqüentes referências à destruição do Ginásio. Esta parecia ser a imagem mais lembrada pelos entrevistados quando instigados a falarem sobre suas experiências escolares naquela instituição. De fato, em 1970, o prédio que abrigava o Ginásio fora destruído pelo poder municipal. Dois anos antes do evento da destruição, o ginásio havia sido desativado e os alunos transferidos para a Escola Estadual Diógenes de Castro Ribeiro. Os depoimentos acenam em direção a diversas explicações sobre o evento. Dona Maria Agripina Patrocínio, ex-aluna da primeira turma do Ginásio, por exemplo, assim explica o ocorrido: ... parou de funcionar porque o povo achava longe e, com a construção do Colégio Diógenes, os alunos foram se transferindo e o Arquidiocesano foi desativado. Outro entrevistado, Dr. Wilson Barbo de Siqueira, ex-aluno tanto do Grupo Escolar Ruy Barbosa quanto do Ginásio Arquidiocesano, tem outra explicação para a desativação do ginásio: O motivo da escola ir se degenerando foi devido a problemas de ordem pessoal em que os padres, professores da escola, um deles inclusive foi 105 Walter Benjamin. Apud Maria do Pilar de Araújo Vieira e outros. A Pesquisa em História. São Paulo: Ática,1992, p. 29. 115 diretor, se envolveram em casos amorosos tendo que se afastar da escola e da cidade. A essa, outras explicações vêm se somar e, segundo o mesmo depoente, Outra causa foi o fato dos alunos de melhor poder aquisitivo saírem em busca de estudos em outros Estados (São Paulo e Minas), como também o fato do ensino religioso começar a ficar fora de moda. As diferentes versões para o episódio, longe de significarem incoerência, demonstram o que vários estudiosos do fenômeno da memória não cansam de reiterar, e que Ulpiano (1992, p.12) assim define: A elaboração da memória se dá no presente e para responder às solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo tanto quanto as condições para se efetivar.106 A esse dado, soma-se a perspectiva sempre singular que cada personagem imprime às experiências vividas. Fruto, portanto, da junção de valores singulares e coletivos, a memória é sempre miríade de imagens/representações. Assim Bosi (1994, p.333) percebe esse fenômeno: Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo.107 Portanto, o que se vê é a construção de uma memória sobre aquela experiência que apela tanto para os laços coletivos, que tendem a unificar as versões, quanto para a percepção pessoal de cada depoente que, a seu modo, ―passa a limpo‖ aquela história. Com o fim do Arquidiocesano, arquivos e biblioteca do antigo Ginásio foram transferidos para a nova Escola Estadual Diógenes de Castro Ribeiro. A destruição do prédio do Ginásio Arquidiocesano é, até hoje, inaceitável para a maioria dos moradores da cidade, o que se pode apreender nos depoimentos coletados. Considerado pelos depoentes um prédio de excelente estrutura, expressa, por exemplo, na 106 Ulpiano Bezerra Menezes. ―A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais?‖ in: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. nº 34, São Paulo: 1992, p.12. 107 Ecléia Bosi. Memória e Sociedade. Op. cit., p.333. 116 dificuldade que representou sua derrubada, além de um belo exemplar arquitetônico, essa ação política é construída nos depoimentos como desnecessária e injustificável. Essa postura se expressa, por exemplo, no depoimento de Dona Maria Agripina, para quem A estrutura do prédio era espetacular, as salas eram amplas e ventiladas, uma construção que jamais poderia ter sido destruída, pelo seu valor histórico e arquitetônico. Elabora a memória desse acontecimento: ... foi destruído na gestão do prefeito José de Melo, com o intuito de construir escolas na zona rural, com o material que sobrou da demolição. Foi falta de competência do prefeito [que não percebeu] a importância e o valor da construção mas, principalmente, por não ser de Jaraguá, não deu valor nas coisas que eram importantes para o povo. (grifos meus) Identificando a atitude do suposto prefeito responsável pela derrubada do prédio, como fruto da ação de alguém representado como estranho aos valores do povo do lugar, alguém que não era de Jaraguá e, portanto, apartado de sua história, a depoente constrói uma explicação calcada no processo de construção das identidades que, como nos mostram os estudos sobre essa temática, ao se construir, institui o outro (o diferente) como dado constitutivo da identidade do grupo. E é dentro desse contexto que Silva108 enfatiza que, É também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. È por isso que a representação ocupa um lugar tão central na teorização contemporânea sobre identidade e nos movimentos sociais ligados à identidade. Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação. Se, para Dona Maria Agripina é no governo do prefeito José de Melo que se deve buscar a responsabilidade pela destruição do prédio do Arquidiocesano, para o Dr. Wilson, 108 Tomaz Tadeu da Silva. ―A produção social da identidade e da diferença‖in Tomaz Tadeu da Silva (org.). Identidade e diferença. Op. Cit. p.91. 117 foi no governo anterior que a decisão fora tomada e parcialmente concretizada. Segundo seu relato, fora o prefeito Silvio de Castro Ribeiro quem decidira pela demolição do prédio, com o intuito de construir em seu lugar ―um ginásio de esportes‖. Seu depoimento ilustra o jogo de poder que procura instaurar uma verdade para o ocorrido, no caso, uma verdade diferente daquela construída no depoimento anterior, demonstrando que o trabalho da memória é, entre outras coisas, uma forma de se forjar verdades e identidades: [Na gestão de Silvio de Castro Ribeiro], encontrei-me com D. Epaminondas, bispo da Diocese da Anápolis, a qual pertencia Jaraguá, e comentei (...) se não havia interesse da Diocese em vender o prédio do antigo colégio (...). D. Epaminondas mostrou-se bastante interessado, uma vez que o prédio estava abandonado, sendo alvo de depredação por parte da população. (...) Procurei então pelo prefeito (...) e sugeri que a Prefeitura adquirisse o prédio para futuras instalações universitárias, o que para o prefeito foi motivo de recusa e veemente contestação, alegando que não pretendia formar estudantes que não o apoiariam, uma vez que tinha consciência que estudantes universitários jamais votariam em um tabaréu, com resquícios de coronel.(grifos meus) De acordo com o depoente, cuja memória sobre o episódio não descuida de constituilo/representá-lo como sujeito ativo dos acontecimentos, o prefeito, cuja representação assentase na imagem do ―tabaréu‖, termo que significa ―indivíduo que pouco sabe de seu ofício‖, segundo definição do Aurélio, foi insensível às necessidades tão bem acenadas na proposta do depoente. Constrói-se assim, nesse discurso, o contraponto ideal para marcar a diferença que ajuda a configurar a identidade do ―sujeito-suporte‖109 desse discurso, num processo que, como visto anteriormente, implica a construção concomitante do outro, ao mesmo tempo em que o diferencia de um passado coronelista. Se a um prefeito faltou sensibilidade para entender as necessidades da população, afinal, tratava-se de um ―estrangeiro‖, pois não era de Jaraguá (depoimento de Dona Maria Agripina), ao outro, faltou competência (depoimento de Dr. Wilson), pois se tratava de um ―tabaréu‖. De uma forma ou de outra, a memória em torno do Colégio Arquidiocesano procura 109 Ao refletir sobre o sujeito do discurso, Orlandi esclarece que ―o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer.‖ Com isso a autora quer dizer que o sujeito discursivo não está na origem do que diz; ele deve ser pensado como ―lugar‖, pois ―é a posição que deve ocupar todo o indivíduo para ser sujeito do que diz.‖ Daí a noção, em Análise do Discurso, de sujeito-suporte. A respeito do conceito de ―sujeitosuporte‖ ver, ainda: Dominique Mainqueneau. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas/ São Paulo: Pontes/Ed. Unicamp, 1989. 118 definir o destino do mesmo (sua destruição) pela interferência, sempre inapta, do poder político local. Ao reportar-se ao fim do Ginásio, Sr. Tentorino Julião Amorim diz acreditar que “O que derrubou o Colégio foi o tempo e a falta de manutenção. Ficou abandonado e, durante o governo de Silvio de Castro, o Colégio já estava desativado”. Eu gosto de história, mas não valorizo muito essa preservação exagerada de coisas velhas, tem preservacionismo que não tem cabimento. A escola realmente valorizou Jaraguá, pois naquela época o Colégio mais próximo ficava muito distante. Meu irmão mais velho estudou em Silvânia e era uma dificuldade tremenda para chegar lá. As pessoas que quisessem estudar tinham que ir para Araguari ou Silvânia. O Colégio deu status pra a cidade pois as pessoas vinham das cidades circunvizinhas para aqui estudar. Vale salientar que, no tocante à destruição do prédio do Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, considero que o episódio tem significação especial por ter se transformado numa espécie de registro da memória popular. Halbwachs evidencia a importância da memória coletiva quando afirma que. (...) Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastantes pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.110 Se há um fundamento comum que ajuda a configurar uma memória sobre a experiência escolar compartilhada por meus depoentes no Ginásio Arquidiocesano, este passa necessariamente pela demolição do prédio que o abrigava. Por sua vez, este evento remete os depoimentos, recorrentemente, aos jogos políticos típicos do cotidiano daquela cidade. Ninguém pode ser universal fora de seu quintal. Minha história é o meu quintal. É este o pão que reparto com aqueles que seguem uma trilha similar. (Vinícius de Moraes) 110 Maurice Halbwachs. Op. cit., p. 34. (grifos meus) 119 Faço minhas, as palavras do poeta. Tenho a convicção de que este trabalho só foi possível de ser realizado por ter dado vazão ao forte desejo de falar sobre um tema que está intimamente ligado ao meu dia-a-dia, a algo que concebo como um dos fatores que promovem o crescimento do ser humano. Concluindo Meu intuito foi falar da educação, não no sentido restrito e comumente praticado – centrado, por exemplo, em seus aspectos político-pedagógicos – mas sim, ousando mais. O que quis foi falar da história que circunda e atravessa as escolas, das representações que se constroem sobre as práticas que ali se engendram – por onde passam as noções do vivido e do concebido – do poder simbólico que a constrói e da memória que une e mantém vivos os seres que dela participaram, conferindo-lhes uma identidade. Anseio que o diálogo desenvolvido ao longo das partes de que se compõe esta pesquisa possa, de alguma maneira, e não obstante suas lacunas, trazer elementos para um ―olhar‖ sobre as práticas escolares, na perspectiva por mim selecionada para nortear as tramas dessa história que resolvi contar. Referências BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. 3ª ed., São Paulo: Cia das Letras, 1994. BRETAS, Genesco Ferreira. História da Instrução pública em Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1991. BURKE, Peter. ―Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro‖ in A Escrita da História – Novas Perspectivas.Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1990. FONSECA, Luciano da. Os Impactos da “Marcha para o Oeste‖ no Município de Jaraguá. Dissertação de Pós-Graduação. UFG. Goiânia, 1997. HALBWACHS Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos Tribunais, 1990. MAINQUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas/ São Paulo: Pontes/Ed. Unicamp, 1989. 120 MENEZES, Ulpiano Bezerra. ―A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais?‖ in: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. nº 34, São Paulo: 1992. RANGELl, Mary.”Bom aluno”: real ou ideal? O quadro teórico da representação social e suas contribuições à pesquisa. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997. SILVEIRA PX (org.) José Peixoto da Silveira – O gentil-homem. Gráfica Centauro, Goiânia, 1987. 121 5 CORONELISMO, MEMÓRIA, IDENTIDADE E IMAGINÁRIO: JARAGUÁ 1920-1940. Cristiane Eunisse Fonseca Ciente da dificuldade de se realizar um estudo quando se é parte integrante da realidade estudada – o que a faz parecer por demais familiar, deixando uma impressão de facilidade, pois tudo parece ser conhecido, óbvio – percebo neste trabalho um desafio, que é o de (Da Matta: 1987, p.157) ―transformar o familiar em exótico‖, para ficar num exemplo bem à moda de uma leitura etnográfica. Defino como objeto específico de estudo, a memória que se constrói, ainda hoje, sobre o coronelismo na cidade de Jaraguá, investigando nos discursos as representações e o imaginário criado em torno do tema, enfocando também as construções feitas sobre a cidade à luz do poder de mando dos coronéis, entendido tanto em seu caráter concreto, quanto simbólico. Faço, portanto, da categoria ―memória‖, o principal objeto desta proposta, com o objetivo de compreender como se formula, ainda hoje, em Jaraguá, uma memória sobre o coronelismo, isto é, a memória será trabalhada como produtora de significados, sendo, portanto, um instrumento fundamental para a construção da história. 122 Ecléia (Bosi: 1994 p.55) lembra-nos, por intermédio de Halbwach, importante estudioso do fenômeno da memória, que: ...a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. Entende-se com isso que a memória é um trabalho que se realiza no presente. Ela não é um dado pronto a ser recuperado tal qual aconteceu. É uma construção daquele que a produz. Vista assim, temos consciência de que a memória não dá conta do passado em suas múltiplas dimensões e desdobramentos, mas ela é, com certeza, o elo de impressão fundamental para rememorar o passado. Conforme Ulpiano, (Menezes,1992) ...na voz corrente, a memória aparece como enraizada no passado que lhe fornece a seiva vital e ao qual ela serve, restando-lhe, quanto ao presente, transmitir-lhe os bens que já tivera acumulado. Ora, (...)_ a memória enquanto processo subordinado à dinâmica social desautoriza seja a idéia de construção no passado seja a de uma função de almoxarifado desse passado. A elaboração da memória se dá no presente e para responder as solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar. As reminiscências do passado foram buscadas considerando-se algumas observações de Thompson .( 1992, p.17) a respeito do documento oral. Para esse autor, esse trabalho ...possibilita novas versões da história ao dar voz a múltiplos e diferentes narradores. Esse tipo de projeto propicia, sobretudo fazer da história uma atividade mais democrática, a cargo das próprias comunidades, já que permite construir a história a partir das próprias palavras daqueles que vivenciaram e participaram de um determinado período, mediante suas referências e também seu imaginário. O método da História Oral possibilita o registro de reminiscências das memórias individuais (...), pois qualquer um de nós é uma personagem histórica. 123 O que se propôs, portanto, foi compreender, através das fontes orais, como a sociedade jaragüense constrói, hoje, uma memória sobre o período marcado pelo mandonismo local, pelo banditismo, pelas rixas políticas e, de modo geral, como isso interfere na cultura desse povo, logo, na construção de sua identidade. Para tanto, entrevistei pessoas idosas da cidade de Jaraguá, cujas histórias foram marcadas pela experiência de viverem sob a ordem coronelística, procurando verificar que imagens surgem daquela experiência. Sabendo que as experiências adquiridas ao longo de suas vidas, se não se manifestam, não se transformam em dados para a história, creio que, ao propor um trabalho que considere a perspectiva da memória oral, colaboro para a desconstrução dessa lógica, contribuindo para revelar a riqueza que representa a experiência dos mais velhos. As marcas da violência, do banditismo, das perseguições sofridas por aqueles que tiveram de enfrentar o poder dos coronéis, são as grandes e permanentes referências dessa memória coletiva que vai sendo tecida pelos depoimentos. Nesse processo de registros históricos da memória popular, os indivíduos atuam demonstrando valores específicos, com os quais a sociedade se organiza. São valores morais, éticos, religiosos, políticos, típicos da sociedade estruturada à sombra do coronelismo, e explicitados, como se verá, nos depoimentos trabalhados. Por tudo o que foi dito, minha proposta de estudo considerou que a reconstrução da memória sobre o coronelismo define-se como um trabalho que se volta à dimensão do presente. Estarei trabalhando, portanto, com a memória. Ouvir os antigos moradores da cidade e outras pessoas, que direta ou indiretamente estavam ligadas a Jaraguá, significa retornar ao passado, operação possível de se realizar pela via do lembrar, mas, também considerar como o processo de construção das identidades continua sendo formulado, à medida que essas pessoas retornam as suas histórias. Nesta discussão sobre a memória, fenômeno que permite (re)criar o passado, é possível vislumbrar que a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a sua família, com a classe social, com a escola, com a religião, com a profissão, enfim, com os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. Esse é mais um dado que atende às particularidades do meu objeto de estudo. 124 Na coleta de dados, utilizei-me, principalmente, da conversa direta com os depoentes, realizando visitas e entrevistas abertas, que permitiram apreender as representações que os entrevistados constroem a respeito do tema proposto. A delimitação temporal do objeto desta pesquisa considera a dupla temporalidade na qual o mesmo se inscreve. O corpus documental principal que a sustenta (fontes orais) remete tanto às experiências dos depoentes no início do século, quando se estruturou e consolidou o poder coronelístico na cidade (aproximadamente 1920–1940), quanto ao tempo presente, momento de construção de suas memórias. Trabalhar a memória sobre o coronelismo em Jaraguá, portanto, exige que se considere a condição de produção dos discursos que, seguramente, darão novos contornos às representações sobre o tema, visto que (re)lembrar significará (re)colocar aquela experiência dentro de um novo ―quadro‖ temporal-espacial. O que se coloca então é a possibilidade de entender a linguagem como discurso que se constrói dentro de certas condições de produção, num contexto histórico específico, produzindo sujeitos e sentidos que só podem ser apreendidos na história. Daí a definição de discurso (Orlandi, 2001, p.21): ―o discurso é efeito de sentidos entre locutores‖. Deste modo, o poder dos discursos imbrica-se com a crença na legitimidade daqueles que o pronunciam. Assim, podemos entender o discurso como prática pela qual os sujeitos se mobilizam, constituindo uma realidade baseada nas representações que reproduzem. Os discursos são constituídos por relações de poder que delineiam o que é certo e o que é errado, o que pode ser dito e o que não pode, exprimindo ou rebelando-se contra o poder estabelecido. A figura do coronel, entre suas práticas e representações, demonstrava o poder a que muitos deviam temer e poucos ousavam desafiar. Esse poder pode ser analisado segundo o esquema apresentado por Bourdieu (2001,p.14) para elucidar o que vem a ser o poder simbólico: O poder simbólico [é o] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. 125 Ora, sabendo que esse comportamento não se explica mais pelo apelo a um poder efetivo dos antigos coronéis, penso que uma forma de entender essa prática seja remetê-la ao campo do simbólico, do imaginário. Como lembra Pesavento, (1995, p.24) o imaginário: ... é pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação de ser e parecer. Logo, uma pesquisa como esta, que se propõe seguir as trilhas do imaginário, deveria preocupar-se com toda espécie de prática/discursos, tenham eles uma lógica aparente ou não, pois todos significam formas de se conceber a realidade. Essa prática me faz refletir, por exemplo, como o imaginário é utilizado como instrumento para conferir poder, crenças, enfim, para construir as identidades, pois, segundo Woodwa (2000,p.17), ... É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.(...) os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar... A construção desta identidade demonstra a necessidade das pessoas em buscar um passado no qual se espelhar. Jaraguá, ainda hoje, é também conhecida como ―Lendária Terra‖, representação que permeia o imaginário de seus moradores. O estudo do imaginário revela, também, estruturas familiares à comunidade estudada, por isso, nesta pesquisa procurou-se captar, igualmente, as fantasias da população de Jaraguá à época do coronelismo que se mantém presente nos depoimentos coletados. Atenta à importância da dimensão do imaginário para o entendimento de meu objeto, parti do princípio de que nada deveria ser desprezado. Refiro-me, especialmente, a passagens de alguns depoimentos que se revestem de um caráter aparentemente fantasioso. Entendo que esses ―fantasmas‖ estão para além da simples fantasia. Acredito ser possível captar, através dessas imagens, muito do que configurou e ajuda a configurar os sentidos que os depoentes dão àquela realidade social. Como lembra Pesavento(Op Cit,p. 15) 126 ...no domínio da representação, as coisas ditas, pensadas e expressadas têm outro sentido além daquele manifesto. Enquanto representação do real, o imaginário é sempre ausência de um “outro” ausente. O imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explicita o não presente. Sabendo que quem detém o imaginário detém o poder, Baczko (1985: p,298-299) lembra que o poder é, também, fazer crer, logo, ... exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potência real, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio... Em Bourdieu,(Op. Cit p.11) é possível compreender como os sistemas simbólicos duplicam e reforçam o poder. Creio que a análise da dimensão simbólica do poder coronelista elucida a forma como aquela prática se impunha, dominando e se fazendo crível: (...) É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados‖. Temos, assim, um estudo que vem complementar a historiografia sobre o coronelismo pela via do estudo das representações sociais, buscando, a partir da memória que se constrói sobre o tema, compreender como se organiza, no discurso, a percepção do processo histórico goiano, do cotidiano da cidade e como se constroem as representações sobre aquele passado. E quais as representações que hoje são construídas sobre o coronelismo em Jaraguá, nas primeiras décadas do século XX? Como se constrói essa memória? 127 Construindo a memória do coronelismo em Jaraguá Ao realizar um trabalho voltado à apreensão de como se configura, ainda hoje, o trabalho da memória sobre o coronelismo na cidade de Jaraguá, procurei trabalhar as fontes orais, buscando, sobretudo, compreender as representações que o presente constrói quando evoca as lembranças daquelas experiências passadas. O trabalho de memória comporta, necessariamente, tanto recordar quanto esquecer. Lembranças que incomodam por remeter a experiências desagradáveis, a humilhações, derrotas, perturbações, desamores tendem a ser ―apagadas‖ dos registros/experiências. Isso ocorre por um mecanismo muitas vezes imperceptível à consciência. Este fenômeno não tem passado despercebido aos estudiosos de outras áreas de conhecimento, como é o caso do médico Ivan Izquierdo, o qual, em recente entrevista, afirmou que tanto quanto recordar, esquecer também é preciso, pois muitas vezes é necessário ocultar certas lembranças para manter uma vida mental saudável. Apesar de involuntário, o esquecimento está relacionado ao fato de que, sobretudo os velhos, ―escolhem‖ suas memórias, pois é preferível lembrar os episódios da infância e da juventude, e mesmo da vida madura, que correspondem ao tempo da felicidade, em que se era saudável, forte, ágil, com toda uma vida pela frente, plena de possibilidades, àqueles que remetem a situações desagradáveis. Essa talvez seja a diferença mais essencial entre a fonte oral e as demais, pois trabalhála significa estar frente a uma fonte viva, visto que ela representa um processo em contínua construção: ela é memória. Nela, o passado vai se configurando à medida que o trabalho avança, podendo (re) viver a cada esforço que se faz no sentido de construi-lo como memória. Daí a profunda associação que se faz entre o trabalho de memória e o processo de construção da identidade, processo esse também marcado pela constante prática de apropriação e recriação do passado. Processo em constante movimento, a construção identitária exige um diálogo permanente com o passado – construindo-o como memória – de onde retira grande parte do material que a constitui. Mas, vejamos como meus depoentes vão construindo a memória do coronelismo em Jaraguá. 128 A memória consolidada Quando buscam (re)viver as lembranças sobre as práticas coronelistas, algumas imagens/representações construídas por meus depoentes parecem dialogar com os sentidos que os estudos voltados ao tema do coronelismo vêm fixando ao longo dos anos. Vejamos que imagens são essas. As paixões humanas Recorrente entre os depoentes é, por exemplo, a remissão às divergências políticas entre os Castro e os Freitas – sempre atravessadas por questões que envolvem o universo da subjetividade humana – para explicar a história de Jaraguá, representação também presente na ainda pequena literatura existente sobre o tema. O depoimento do Seu Gregório(84) não só corrobora essa perspectiva, como também mostra o quanto essas inimizades estavam atravessadas por questões familiares que marcaram o cenário político de Jaraguá: (Os Castro e os Freitas) não tinham relação amigável e todos eram parentes um do outro. A briga era porque um queria mandar e o outro também queria (...) a briga deles era por causa da política. Em trabalho onde reflete sobre a dimensão cotidiana do poder político, Maffesoli (1997) mostra que, nesse campo, há uma tendência à polarização que mais parece responder a relações de afeto que à lógica. Vimos que os estudos sobre o coronelismo enfatizam a característica ―familiar‖ daquela estrutura de poder, alicerçada em ―contratos‖ de amizade e favor e, ao mesmo tempo, marcada por rompimentos bruscos, mudanças no sistema de alianças, que facilmente rompiam esses contratos. Isso ocorre por esta estrutura de poder estar informada por relações movidas, como diria Maffesoli (1997), pelas paixões humanas que constroem a história. A política é o campo das explosões apaixonadas e o coronelismo parece ter sido uma prática política que levou ao limite essa característica. 129 O atraso deliberado Outra representação freqüente nos depoimentos que procuram construir a memória do coronelismo em Jaraguá remete à imagem de uma política deliberadamente voltada a imprimir na cidade relações marcadas pelo repúdio ao ―progresso‖, como se pode observar, por exemplo, no depoimento de Seu Joaquim Militão(90): O Castrinho era inimigo do Dr. Augusto Rios [Juiz de Direito, intelectual e poeta]. Ele era contra o desenvolvimento [e também] contra pessoas intelectuais. Esse povo [referindo-se aos coronéis] não queria nada com o desenvolvimento, com o progresso... A mesma representação tem um outro depoente, Seu Salvador de Freitas, para quem, com os Castro não houve progresso: ―O progresso começou em Jaraguá, depois que os Freitas ganharam a política.‖ No depoimento de Seu Zé Chagas(89), a cidade é construída pela oposição com o hoje, e o sentido que a atravessa é o do atraso deliberado, pois assim se podia garantir o poder em mãos dos coronéis. Segundo o depoente, com o fim do império dos Castro: A cidade melhorou tudo. Essa praça aí, da matriz, não tinha,... era chão. Corria cavalhada era aí, não tinha nada. A cidade era até onde tá a igreja, o resto era pasto.(...) tinha um sobrado onde é hoje o Banco do Brasil... Essa percepção dos depoentes corrobora as análises que alguns estudiosos do fenômeno do coronelismo vêm realizando. Não são poucos os que se referem a uma deliberada política levada a cabo pelos coronéis, empenhada em manter um quadro de ―atraso‖ que servia plenamente aos seus interesses. Essa seria uma forma, consagrada inclusive pela academia, para definir as relações próprias ao coronelismo. A violência dos jagunços e os desmandos dos coronéis Recorrente é, também, a representação da violência física como associada às práticas coronelistas, muito embora essa violência, em geral efetive-se, nos depoimentos, pela ação dos jagunços. Seu Gregório da Conceição Macedo, por exemplo, garante que Castrinho não 130 andava sem a companhia de três ou quatro jagunços, tanto para garantir sua proteção pessoal, quanto para impor uma certa ―banca de brabo‖. Para Seu Joaquim Militão, por exemplo, o coronel é quem mandava em tudo, mas isso era garantido pelo fato dele ter muitos jagunços. No caso do coronel Castrinho, Militão lembra quem eram seus mais famosos jagunços: ―era o Aprígio, o Dilhermano, o Cidino, o Serrate”. Ainda Joaquim Militão quem mostra como a violência dos jagunços, sempre a mando dos coronéis, não conhecia limites. Referindo-se a um determinado episódio, o depoente conta, por exemplo, que ... eles [os jagunços] mataram ele e trouxeram a orelha do sujeito (...) para o coronel Castrinho. É a lembrança da violência, em sua dimensão mais cruel, que vai configurando a memória que o depoente tem daqueles tempos. O mesmo depoente lembra, ainda, o importante papel exercido pelos jagunços que, com sua presença sempre ameaçadora, garantia a fidelidade dos eleitores: ... aqueles jagunços, a pedido do coronel, na sala de votação, vigiavam os eleitores, quem votasse contra, o sujeito denunciava e o coronel perseguia. Mas, se a imagem da violência física é freqüentemente associada à ação dos jagunços, a que parece prevalecer sobre os coronéis é a do desmando. Evidentemente, a ela está associada a do poder que se impõe também de forma violenta. Mas, é principalmente o desmando que parece informar a memória sobre essa prática quando o coronel é que está sendo construído. Essa é uma imagem que os depoimentos não deixam esquecer. Sempre lembrado pelos estudos dedicados ao tema, o desmando parece mesmo ter sido uma marca das práticas dos coronéis. Em Jaraguá, não foi diferente. As pesquisas sobre o tema vêm mostrando uma história marcada pela presença inconteste desses chefes políticos que, entre outras coisas, controlavam jornais, delegados, juízes, fazendo imperar sua lei. Os jornais da época, por exemplo, serviam como instrumento que alimentava as rixas entre grupos inimigos, fazendo circular as versões de cada um para os episódios de desmando que freqüentemente ocorriam e eram protagonizados por esses chefes locais. As brigas verbais muitas vezes desdobravam-se para a contenda armada. Em Jaraguá, os opositores do coronel 131 Castrinho faziam uso do jornalzinho ―O Parafuso‖. Sobre esse periódico, muitos depoentes comentam que era um instrumento de ―provocação‖, responsável inclusive por algumas mortes. No depoimento do Seu Zé Chagas, O responsável por estas coisas que andaram acontecendo aqui era um tal jornalzinho “O Parafuso”. Esse jornalzinho era fogo. O diretor dele era o senhor Geraldo de Freitas. Como se vê, mais uma vez a eterna rixa entre Castro e Freitas. Outras passagens do depoimento de Seu Joaquim Militão ajudam a entender como se exerciam esses desmandos. Relatando um caso ocorrido durante o julgamento de um jagunço do coronel Castrinho, o depoente conta que, num determinado momento, tendo-se instaurado uma discussão no tribunal, o coronel interferiu de forma bastante significativa. Nas palavras do depoente, em meio ao bate boca que se instalara no tribunal, ―... o coronel Castrinho entrou e disse: - Que balbúrdia é essa ai! Acaba com isso ai!‖, ignorando a presença das autoridades e fazendo valer ―sua‖ ordem. Essa era a forma como os coronéis conduziam-se perante um tribunal, onde aparentemente ninguém ousava contestá-los. Polícia ou bandido? Aos desmandos dos coronéis, somava-se a inoperância da polícia, assim como das demais autoridades. Que fazer quando os interesses dos coronéis colocavam-se entre a lei e a vontade dos primeiros? E, quando quem deveria garantir a lei, trabalhava para o coronel? No depoimento de Seu Zé Chagas sobre o episódio há pouco relatado, este afirma que ―no fórum, na hora do julgamento, não tinha uma polícia‖. O mesmo episódio narrado por Seu Joaquim Militão ilustra esse tipo de situação, ao que tudo indica, nada incomum. Ainda durante o julgamento, tendo havido reação de um opositor de Castrinho (tratava-se de meu outro depoente, Seu Salvador de Freitas) à forma como estavam sendo encaminhados os trabalhos (tudo fazia crer que o jagunço seria inocentado), coube ao sargento Brígio que, segundo Joaquim Militão ―também era jagunço, (...) era soldado e jagunço‖, dar ordem de prisão ao opositor. 132 Aí, o sargento Brígio rancou o revólver e falou para Salvador de Freitas [opositor de Castrinho]: _ Teje preso, meu filho; teje preso, meu filho. Salvador respondeu: _ Não vem não, nego! (...) Ficaram os dois com o revólver cara a cara. Enquanto o Sargento dizia: _ Teje preso, meu filho. Salvador respondia: _ Não entra não, senão morre! Dono de um poder aparentemente incontestável, a lei nada representava para o coronel. E, quem teimasse em desafiá-lo, seria perseguido, preso, expulso da cidade ou até mesmo morto. Ainda aludindo ao depoimento de Seu Joaquim Militão, vemos que: No tempo do coronel Castrinho, a polícia obedecia ao coronel, se não obedecesse, ele telegrafava, ou mandava o soldado para rua, ou até ia preso, mas esse tempo eu era muito criança, tinha medo de soldado. Soldado e bandido confundiam-se na cabeça do menino Joaquim, que, coerente, percebia, já àquele tempo, não haver diferença significativa entre um e outro, num mundo dominado pelos coronéis. Quando é preciso esquecer Mas, se alguns se referem a esses episódios como forma de marcar a memória daquela experiência, a outros esses dados parecem bloqueados por um interdito intransponível. Em alguns casos, é preciso deliberadamente ―esquecer‖. No depoimento de Seu Zé Chagas, foi possível perceber que esses episódios violentos envolvendo as tradicionais famílias jaragüenses ainda estão presentes em suas lembranças, afinal, ele foi um espectador ativo dessa trama – à época, era motorista do coronel Castrinho, tendo, portanto, presenciado vários fatos. Entretanto, meu depoente não quis falar sobre eles. Quando começo a questionar sobre os casos de violência, o depoente tenta esquivar-se do assunto e diz que o povo falava muitas ―bobagens‖ sobre Castrinho. Segundo ele: ―O povo 133 falava coisa pesada dele, eu não posso reclamar dele...‖. Quando volto a insistir sobre o que exatamente o povo falava, que bobagens eram estas, ele responde: Deixa isso pra lá, não pode tá falando não. Isso é perigoso viu? A gente tem que segurar viu? Até hoje essas terras aqui é perigosa. Aqui é quase uma família só, Castro, Rios, Freitas... Por que, apesar de passado tanto tempo, quando muitos atores envolvidos nesses episódios já se foram, ainda há resistência em falar? De onde vem o receio? É ainda Maffesoli(Op Cit, p. 29) quem acena para uma possível compreensão acerca desse procedimento. Afinal, como afirma esse estudioso, nada mais conservador que o campo político. O político, mais que qualquer outra dimensão do social, perdura em suas estruturas, mesmo se organizando de forma sempre diferente. O que o depoimento de seu Zé Chagas deixa entrever é que o campo político jaragüense não mudou tanto a ponto de se poder falar qualquer coisa. Como ele diz: ―não [se] pode tá falando não‖. O medo A exemplo da experiência dos depoentes com as práticas dos coronéis, em Jaraguá, os atos de outros coronéis também remetem à sensação de medo que essas práticas despertavam na população. No depoimento do Seu Joaquim Pereira(101), há lugar também para que se construa a memória de outro coronel: o poderoso Brasil Ramos Caiado. Pintada com cores bem mais brandas que aquelas as quais construíram a imagem de Castrinho, ainda assim, a representação em torno de Brasil Ramos Caiado não deixa de se contaminar pelo medo que invocava: Lembro dele até hoje, até senti a morte dele. O povo não gostava dele não, mas eu até gostava, pois ele tinha a mesma profissão que eu tinha [ele referese ao fato de gostar de caça, como o coronel]. Ele era assim... Se falava na família de Caiado o povo assombrava. 134 É o mesmo Seu Joaquim Pereira quem continua a relatar: ... o povo dos Caiado eram muito mal, matava os outros e ninguém dava parte, podia ver os outros matando, ninguém dava parte, tinha medo deles, eles eram matadores demais. Totó Caiado mandava matar. O filho dele era ruim demais, queria até mandar serrar um homem na serralheria da fazenda.111 O que essa memória constrói é a imagem de uma experiência marcada pelo medo, fruto dos desmandos e da impunidade que cercavam aqueles coronéis. Uma relação marcada pela tensão Mas, se a memória sobre as práticas coronelistas remetem a traços tão violentos, característicos daquela experiência, como tão bem mostrou e mostra a literatura especializada, ela também se constrói remetendo a uma outra dimensão desse fenômeno que não passou despercebida a essa mesma literatura. Trata-se das relações entre o coronel e seus aliados, sem os quais seu poderio não poderia se manter. O depoimento de Dona Terezina de Castro Ribeiro(70) corrobora a tese da existência de relações extremamente camaradas entre os coronéis e seus aliados. Assim ela sintetiza as bases sob as quais essas relações se fundamentavam: O Castrinho quando era amigo, de quem ele era realmente amigo, ele era verdadeiro amigo. Referindo-se a um episódio que envolveu seu pai e o coronel Castrinho, assim Dona Terezina constrói a imagem que define essa relação: Eu não posso dar uma imagem só negativa das pessoas. No caso de papai [Suzano Rodrigues], o Castrinho emprestou dinheiro para papai comprar a fazenda, mas quando papai quis pagar (...) ele não quis receber e Castrinho dizia: 111 Creio que não há apenas coincidência entre a prática narrada por Seu Joaquim, atribuída aos ―homens de Brasil Caiado‖, e a recente descoberta de que o ex-deputado Idelbrando Pascoal mandava serrar seus opositores na serra elétrica de sua fazenda. Como diria Maffesoli, o campo político é, de fato, muito conservador. 135 - não, pode trabalhar mais – papai tava ficando bem na fazenda – não precisa pagar agora não! Papai era afilhado do coronel Tubertino. Entretanto, a bibliografia sobre o tema também mostra como as alianças desfaziam-se de acordo com mudanças de rumo próprias daqueles jogos de poder. Foi o que ocorreu com Suzano Rodrigues. Sua ruptura com Castrinho deu-se em função do fim da aliança entre este e o padrinho de Seu Suzano, o coronel Tubertino, que, como vimos no capítulo anterior, era sogro de Castrinho. E Dona Terezina continua tecendo os fios de sua memória: Parece que nessa briga política entre Tubertino e Castrinho, como papai era afilhado do Tubertino e afilhado do Dr. Augusto... Aí o Castrinho perseguiu papai e tomou a fazenda. Vimos com Janotti (1992) que, aos privilégios de que desfrutava o coronel, correspondia, como contrapartida, uma série de obrigações que este deveria prestar junto a seus dependentes, aos demais proprietários, assim como aos outros coronéis, sob o risco de, não correspondendo a essa expectativa, sua clientela deslocar-se para outras posições, engrossando o apoio aos coronéis adversários. Deste modo, segundo lembra a autora, ―o coronel devia constantemente se esforçar para não diminuir sua capacidade em arranjar empregos, e atender a reivindicações‖.Janotti, Op Cit, p. 62) Por outro lado, nunca é demais lembrar a passagem já citada do trabalho de Leal (1997, p.61), quando resume tão bem a tensão que marcava essas relações: ―a outra face do filhotismo é o mandonismo, que se manifesta na perseguição aos adversários: para os amigos, pão; para os inimigos, pau.‖ A memória que Dona Teresina constrói de sua experiência parafraseia as sentenças desses dois grandes estudiosos. Mas, se o trabalho de memória de Dona Teresina encontra espaço para falar de coisas ―positivas‖, como ela fez questão de frisar, a de seu marido, Seu Antônio de Castro Ribeiro Filho, mais conhecido como Seu Ribeirinho, parece deixar espaço para que aflorem apenas os traços negativos desse passado. Motivo de crítica de sua esposa, pois, para ela, 136 Isso, [os traços ―positivos‖ de Castrinho] Ribeirinho não conta, ele só conta caso de miséria, ele só tem na memória o que é negativo na vida dele e das pessoas, nada de positivo! Em seu depoimento, Seu Ribeirinho(74) fala daquele tempo como alguém que viu o avô materno sofrer toda sorte de perseguição, pagando alto preço por estarem do lado oposto ao de Castrinho: ... tinha as pessoas que devia para ele né [referindo-se ao coronel Castrinho], tomava gado, tomava terra, tomava tudo. Tinha riqueza imensa, a maior parte acabou tudo, os filhos não têm nada, são poucos que têm (...) o meu pai já foi prefeito aqui. Ocê já entrou na prefeitura nova? Lá tem o retrato do pai. O pai, no tempo da guerra, era prefeito aqui. Ele teve nove ou dez anos de prefeitura.(...) o Castrinho perseguia muito meu avô na política, o Dr. Augusto Rios. Meu avô Augusto Rios foi juiz. Foi nesse tempo... tinha muita perseguição. O controle das eleições ou o voto de cabresto Já vimos, no capítulo anterior, que um dos principais objetivos do coronel era o controle do voto. Essa é também uma imagem muito freqüente nos depoimentos. Pelo ―voto de cabresto‖, ele garantia para seus candidatos o apoio dos que lhe deviam favores, assim como daqueles que o temiam.Conforme o depoimento de Seu Joaquim Militão, as características do voto a bico de pena em Jaraguá seguiam os rituais comuns aos praticados no restante do País, à época: A primeira eleição que eu acompanhei, ainda era assim: aqueles jagunços, a pedido do coronel, na sala de votação, vigiavam os eleitores, quem votasse contra, o sujeito denunciava e o coronel perseguia. O coronel Castrinho tinha a maioria dos fazendeiros. Outra depoente, Dona Honorata Eunisse (80), elucida as tramas envolvidas no jogo de poder que constituía a prática eleitoral na cidade, no período estudado. A depoente refere-se à perseguição da qual foi vítima seu marido, Joaquim da Costa, quando o coronel Castrinho suspeitou que ele o teria traído, votando no candidato da oposição: 137 Quando ele [o coronel Castrinho] pegou no colarinho da camisa do Joaquim, deu um safanão nele, assim, e falou: - eu te mato marvado! Ocê votou contra eu. Aí o [...] o delegado falou: - o que é isso aí? Esse homem aqui é muito bom, ocê não vai fazer nada com ele não, ele é uma pessoa ótima, ele não merece isso não, ocê larga ele. Aí ele largou. Outro a evocar lembranças das eleições à época foi Seu Joaquim Pereira: Nas eleições, naquele tempo, votava era na vista, falava o voto, era em público, hoje o voto é secreto nesse tempo o voto era aberto. O coronel e o “juiz poeta” Se o desmando é uma representação sempre associada ao coronel, assim como o medo que suas práticas suscitavam, e ainda a idéia de que sua vontade não sofria contestação, nem sempre são essas as imagens que prevalecem nos depoimentos. Os mesmos depoentes que reforçam a representação do desmando desmedido dos coronéis, acenam para a existência de atitudes de resistência a essa prática. Afinal, nem sempre as autoridades rezavam na mesma cartilha dos coronéis. Seu Joaquim Militão, por exemplo, revela a existência de uma rixa entre Castrinho e o juiz de direito Augusto Rios. Segundo o depoente, Castrinho, aliado dos Caiados, família que controlava o poder estadual em Goiás, teria colocado o juiz Augusto Rios ―para fora daqui, mandou ele para Pirenópolis‖. Ainda segundo o depoente, Rios ―era tão preparado que levou [com ele] também a Comarca‖. A mesma lembrança ajudou outro depoente, seu Salvador de Freitas – o mesmo que escapou à perseguição do coronel Castrinho, executada pelas mãos do sargento/jagunço Brígio – a compor a memória sobre esse mesmo episódio: O juiz Augusto Rios teve um tempo que ele foi contra o Castrinho. Ele (Castrinho) perseguia tanto Jaraguá, que teve que mudar a comarca daqui. Ele queria tirar o juiz e juiz ninguém tira, é garantido pela lei, não pode transferir juiz e nem exonerar. Então, suspenderam a comarca daqui, pois o Castrinho perseguia o juiz. A comarca daqui passou a pertencer a Pirenópolis. Isso, não lembro muito, mas foi antes da década de trinta.O juiz 138 era muito inteligente, foi poeta, era muito preparado, tanto que às vezes ele dava a sentença em francês. Era poeta, né? Um juiz poeta e que ditava sentenças em francês é, na memória de Seu Salvador, o contraponto perfeito à truculência atribuída a Castrinho. É também a justificativa ―perfeita‖ para a suposta oposição dos dois. Diferente de outros opositores que sucumbiam, vítima dos desmandos do coronel, o que o depoimento de Seu Salvador, assim como o de Seu Joaquim Militão sugerem é que a inteligência do Juiz era a arma com que esse combatia a brutalidade do coronel. Pesquisando os arquivos de jornais da época, encontrei um exemplar do Jornal A Voz do Povo(14/11/1930) que registra a reação de resistência do Juiz, frente aos desmandos dos coronéis. Perseguido, assim Rios se manifestou sobre os acontecimentos, no periódico aludido: Os Caiados Com seis processos vis me perseguiram Os homens, que em Goyaz eram Caiados; Vi meu nome e conceito apedrejados Por elles, pois em tudo me feriram! Muitas vezes de mim elles se riram, Julgando-me o maior dos desgraçados; Em preterir-me a tantos magistrados Muitas vezes também já me illudiram! Sabendo-me juiz honesto e altivo E nunca me podendo subornar; Lançaram sobre mim um fogo vivo! 139 Comarca e meus direitos vi perdidos, Meu nome só não poude se alterar, Ao passo que Caiados vi Caídos ! Como se vê, havia também espaço para a resistência ao mandonismo local. E pela pena de um poeta. Na última estrofe, mesmo sem o saber, o juiz/poeta parafraseia Foucault (1998), quando este lembra que o poder circula, não é uma coisa, é um exercício que exige uma luta constante. Como disse esse estudioso, onde há poder, há resistência. O poder simbólico As construções sobre a experiência coronelista nem sempre remetem a episódios que poderíamos chamar de fatos ―concretos‖. Muitas vezes, o que emerge do trabalho de memória são imagens/representações que mais parecem saídas das páginas de contos fantásticos. Nem mais verdadeiras nem mais falsas que as outras. Essas imagens também ajudam a configurar um conhecimento sobre o tema, pois remetem à força da dimensão simbólica inscrita naquelas práticas, esclarecendo sobre seu valor e alcance. Em outras palavras, elas são tão ―concretas‖ quanto quaisquer outras imagens/representações presentes nos depoimentos, pois respondem igualmente pela construção e manutenção de um imaginário sobre o coronelismo, informando as práticas que o construíram e constroem. Alguns depoentes revelaram ―ouvir‖ passos dos coronéis, hoje mortos, em seus antigos casarões. Segundo Dona Judith (81), por exemplo, ―a gente ouvia barulho assim no assoalho, as vasilhas caía no chão, ia olha não via nada‖. Da mesma forma, foi possível constatar que o fato desses coronéis já não morarem mais nesses casarões não impede que, em épocas de eleições, os atuais moradores sejam visitados por curiosos querendo saber em quem devem votar. Diria que fatos como esses revelam que a presença ou, no caso, para ser mais precisa, a ausência física dos coronéis, pouco importa. Aqui o que de fato vale é a força do poder simbólico de que eram depositários esses chefes políticos, forte o bastante para fazê-los temidos ainda depois de mortos. Como afirmei antes, acredito que, através de imagens como essas, pode-se compreender, e muito, como se configurou e configura os sentidos que os depoentes deram e continuam dando àquela realidade social. 140 Baczko (1985, p.298-299) lembra que, quem detém o controle do imaginário detém o poder e, indo além, informa que o poder é, também, fazer crer. Esse fazer crer associa-se, preferencialmente, não à imposição da vontade pela força física, mas, sobretudo, ao poder simbólico, capaz, nas palavras desse autor, de ―duplicar e reforçar a dominação efetiva...‖ Portanto, essa noção de imaginário distancia-se muito de outras que o vêem como uma espécie de engodo, pura fantasia, no sentido de falsidade. Barbier (1994, p.15) bem resume essas posições: Para uns, o imaginário é tudo o que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade dura e concreta. Para outros, o imaginário é uma produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas. Mais coerente com a maneira como aqui o imaginário está sendo trabalhado, outro entendimento do que vem a ser essa dimensão da realidade também é oferecido por esse mesmo autor: Alguns representam o imaginário como o resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Outros o vêem apenas como uma manifestação (...) fundamental para a constituição identitária do indivíduo. O depoimento que Seu Benedito Carreiro (Seu Dito,90) concedeu junto com sua esposa, Dona Judith, é testemunho da força desse imaginário. Referindo-se à recorrente afirmação que corre pela cidade, dando conta de que o coronel Castrinho ainda hoje pode ser ―visto‖, ―andando‖ em seu fordinho, pelos lados de suas antigas propriedades, o casal lembra ter sido testemunha de algumas dessas aparições. Vejamos como essa memória vai sendo tecida: Eles [o povo] via ele... a luz do carro ... numa fazenda que tem o nome de Gambá. Ali o povo escutava ele chegar lá apitando e o povo olhava não tinha ninguém. Aqui na Boa Vista era a mesma coisa. (Dito) Eu mesmo vi o carro, via só aquele farolão, eu disse: uai, numa hora dessa! Ouvia o barulho lá fora, ia ver, tava tudo no mesmo lugar. (Judith) Escutava abrir cancela. Era assombrado. Mas, vejamos como Dona Judith ―explica‖ esses passeios noturnos do falecido coronel Castrinho: 141 (...) quando ele morreu, o túmulo dele ficou chorando, podia ser na seca, ocê podia ir lá que estava escorrendo. Ocê sabe aquela água de sal? Onde passa fica branquinho. E aí ficava assim chorando... aquela água branquinha, onde passava ficava branquinha, nas gretas ... a água saía lá de dentro. O povo falava que era lágrima das pessoas que ele mandava matar (...). Aí o pessoal dele garrou a fazer penitência. Rezaram muito no túmulo dele, fez promessa, aí acabou. A gente vai lá não vê mais nada, mas podia ser na seca, a gente ia lá que tava escorrendo água. Agora, da onde vinha essa água? Dentro do cemitério? Creio que o que Dona Judith faz é remeter a explicação do fenômeno à representação popular inscrita na figura da ―alma penada‖, a qual, sem conseguir expiar os males causados em vida, tampouco encontra sossego depois de morto. Nesse pequeno fragmento ―fantástico‖, produz-se uma severa crítica às práticas características do mandonismo local, sem que seja necessário apelar-se às representações próprias da memória ―consolidada‖. Arriscaria dizer que, nesse caso, a aproximação maior é com o universo da literatura. Memória e espaço Falar da memória sobre o coronelismo é falar também do espaço em que aquelas práticas operavam, ou seja, das representações do espaço urbano e/ou rural onde tudo aconteceu: a cidade de Jaraguá. Como mostra Pesavento (1995 p.279), espaço e tempo também são reconstruídos no trabalho de memória: A combinação da memória/lembrança com a sensação/vivência reapresenta algo distante no tempo e no espaço e que se coloca no lugar do ocorrido. Deste modo, entender como se processa o fenômeno do coronelismo na memória daqueles que viveram esse período, remete à necessidade de observar como é construído o espaço onde os fatos ocorreram. A cidade de Jaraguá é o cenário onde se desenrolam os eventos dessa aventura humana. Suas ruas, prédios, igrejas, praças, escolas, ajudam a configurar essa história. 142 Assim, quando os depoentes lembram episódios que se relacionam ao coronelismo, eles o fazem citando como era a cidade naquele período. Entretanto, o parâmetro é sempre o presente. No depoimento do senhor Salvador de Freitas, a cidade ―daquela época‖ é assim construída: Nesse tempo, Jaraguá era da Casa da Lavoura pra cá. Pra lá, tudo era mato. As casas eram quase tudo desse jeito que tá aí, só o sobrado que demoliram. né?. Esse sobrado foi construído pela família Félix de Souza.(...) A vida em Jaraguá, naquele tempo, era normal, pouco serviço, que não tinha indústria nenhuma, tinha a pecuária. Como todo trabalho de memória, este também se formula pela comparação com o presente. Jaraguá, hoje, não possui as mesmas características do passado. Muitas de suas edificações construídas no período do ouro já foram demolidas. Os poucos casarões que restaram estão quase todos em estado de total abandono. Somente algumas das melhores casas passaram por reformas. A primeira Igreja Matriz foi totalmente demolida e em seu lugar foi construída outra, cuja característica é apresentar um suposto ar de modernidade. Quanto às outras duas Igrejas, a do Rosário e a da Conceição, passaram por restaurações, graças ao empenho de um grupo que se formou no intuito de zelar pelo patrimônio histórico de Jaraguá. Mas, malgrado as mazelas de um presente pouco preocupado com o passado, seguindo as pistas deixadas por Seu Salvador, o passado marcado pelos desmandos dos coronéis encontrava-se emoldurado por um cenário que lembra os inícios marcados pela precariedade: ―Pra lá tudo era mato‖, ―pouco serviço”, “não tinha indústria nenhuma”. Tempo em que tudo ―era normal‖, fazendo parecer que tudo era parado, estagnado. É outra vez a imagem do ―atraso‖, agora emoldurando a cidade de antigamente. Segundo os depoimentos, Jaraguá teria permanecido assim: um lugar pacato, com ruas tortuosas, estreitas, sem asfalto. Pois, como dizem os depoentes, no tempo dos coronéis, ―a cidade não conhecia o progresso‖. Não possuía água encanada, luz elétrica, rede de esgoto. As casas eram próximas uma das outras, feitas de adobe, com chão batido. Poucas eram as edificações que sobressaíam e essas, obviamente, teriam a elite da cidade como proprietárias, representando toda sua imponência e poder econômico. 143 É com o fim do poder dos coronéis que a cidade ganha ares de ―progresso‖, pelo que conta Seu Zé Chagas: A cidade melhorou tudo. Essa praça aí da matriz não tinha... era chão, corria cavalhada era aí, não tinha nada. A cidade era até onde ta a igreja, o resto era pasto. No depoimento de Seu Gregório, sobre a cidade, estas foram as imagens que lhe pareceram significativas: Aqui não tinha asfalto, a iluminação. [Isso só] entrou aqui em 1936. O prefeito era... não lembro mais. A empresa que ligava a luz aqui era a Sociedade Anônima, e o maior acionista dela era Dioni Gomes P. da Silva e ele já foi prefeito aqui. A água encanada deve de ter 40 anos. Aqui não tinha água assim. A água aqui era cisterna. E ainda mais esta: a água era salgada depois que tirava ela. Furava cisterna 5, 6 metros e a água saía salgada. Só servia para lavar vasilha. Para beber tinha uma fonte de água, a fonte do Galvão, que fornecia água para o povo. Os depoimentos demonstraram, entretanto, que a memória construída sobre a cidade, pouco guarda da grandiosidade do poder que aquele ―lugar praticado‖ poderia ter representado. A cidade que emerge dos depoimentos é uma acanhada Jaraguá, que nem de longe lembra ter sido o centro de um poder que se alastrava por uma vasta região. Parece que prevaleceu no trabalho de memória a representação do atraso, do subdesenvolvimento, forte o bastante para apagar quaisquer marcas do poderio que a cidade poderia ter representado. Outra possível explicação é que o poder desses coronéis estava tão personalizado em suas figuras que não resvalou para a imagem da cidade, antes, sobre ela prevaleceu a imagem do atraso que a memória do grupo construiu como deliberadamente mantido pelo poder coronelista. Considerações finais Ao conjunto de representações que trabalhei aqui, atribuí a possibilidade de apreender os sentidos que meus depoentes procuraram dar à experiência de que foram sujeitos. Esses sentidos não foram sempre os mesmos. 144 Assim, uma ―memória consolidada‖ tratou de definir os contornos de um discurso memorialista que se pode denominar coletivo. Isso se deu por entender que, nela, o que se observa é a freqüência de certas imagens, comuns ao grupo de depoentes. A política como terreno das paixões humanas; o atraso deliberado próprio à estrutura coronelista; a violência dos jagunços e os desmandos dos coronéis; a indistinção entre polícia e bandido, fruto de uma realidade que ignorava as leis; o medo; a necessidade de esquecer; a tensão própria àquelas relações; o controle do jogo político pelo voto de cabresto. Estas foram as imagens que colocaram em diálogo meus depoentes. Por outro lado, a idéia de ―memória consolidada‖ remete, ainda, à coincidência verificada entre o trabalho de memória realizado por meus depoentes e as imagens/representações/sentidos consagrados nos estudos disponíveis sobre o tema, que repetem essas mesmas temáticas. Com isso não se está querendo sugerir nenhuma crítica à validade desses estudos, nem, tampouco, que essas representações não tenham valor positivo para o trabalho de construção de uma memória sobre o coronelismo. O que se deseja ressaltar é que a força dos discursos construídos pelos estudos dedicados ao tema ajuda a consolidar uma história do coronelismo que parece informar um ―lugar comum‖, um saber compartilhado e legitimado, para além dos centros acadêmicos, como a ―verdade‖ sobre o tema, definindo igualmente o que é importante lembrar para construir a memória do acontecimento. Trata-se do que, em Análise do Discurso, é chamado ―interdiscurso‖, ou ―memória discursiva‖. Embora muito provavelmente os depoentes não tenham tido qualquer contato com esses trabalhos, isso não invalida a hipótese desenvolvida. Considera-se aqui que a força do imaginário em torno do tema nutre-se também das soluções que os trabalhos, acadêmicos ou não, encontram para explicar o fenômeno, criando uma ―memória discursiva‖ sobre ele. É Halbwach(Op cit,54) quem mais uma vez ajuda a compreender como se processa esse fenômeno. Referindo-se à memória individual, o autor dirá que: Ela não está inteiramente isolada e fechada. Um homem, para evocar seu próprio passado, tem freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. [Para isso] Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. 145 Porém, paralela àquela memória, outra igualmente surgiu dos depoimentos. A ela denominei ―memória dissonante‖, por não compartilhar do interdiscurso que configura a ―memória consagrada‖. Logo, entendi que essa construção é embalada por um imaginário criador, instituinte, capaz de revestir aquela história de novos significados. Nos depoimentos, essa memória se expressa na imagem que opõe o coronel ao ―juiz poeta‖, ou mesmo, na construção que, fazendo apelo a um imaginário fantástico, calcado em crenças populares, faz surgir o papel significativo do poder simbólico na explicação do fenômeno estudado. A cidade, ―lugar praticado‖, é outra imagem recorrente nos depoimentos. Incapaz de rivalizar com o grande poder dos coronéis, ela é representada como um espaço acanhado, atrasado, demonstrando um descompasso entre esse lugar praticado – sede do poder estabelecido – e a imagem que a memória dele retém. Embora partícipes daquela história, em geral, os depoentes colocam-se ―fora‖ dela, como espectadores, construindo aquelas práticas como alheias a seu dia-a-dia. Era como se, para existir o coronelismo, não houvesse necessidade tanto de quem mandava, quanto de quem obedecia.O coronelismo é construído quase que exclusivamente ligado a quem mandava. Nessa operação, os depoentes vão construindo suas identidades, assim como a do outro. De um lado, os poderosos; de outro, suas vítimas. Nessa memória, o poder não é prática, não circula, não se alimenta dos acordos que tem de construir para se manter. Este me parece o maior de todos os esquecimentos que a memória sobre o coronelismo parece produzir. Espero que este trabalho tenha demonstrado a pertinência da proposta que aqui desenvolvi, privilegiando o estudo da memória como eixo central, em suas conexões com os processos identitários. Foi assim que compreendi ser possível trabalhar um velho tema com um novo olhar. Bibliografia consultada para a obra: ALMEIDA, N. A. Jaraguá – História e Memória. (Conferência pronunciada no Auditório do Palácio do Sol. Jaraguá: 18 de julho de 1982). BACZKO, B. ―Imaginação social‖. In Enciclopédia Einaudi. V. 5, Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 1985. BARBIER, R. Sobre o imaginário, tradução de Márcia Lippincott F. da Costa, Brasília, ano 14, n. 61, jan. /mar.1994. 146 BORGES, V. P. ―Anos trinta e política: história e historiografia‖. In Historiografia Brasileira em Perspectiva, Marcos C. de Freitas (org.) 3ªed. São Paulo: Contexto, 2000. BOSI, E. Memória e Sociedade. 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O depoimento foi concedido em seu estabelecimento comercial, no dia 05/07/02. Honorata Eunisse Sampaio, 80 anos. Nascida em Petrolina, em 1922. Agropecuarista. A entrevista foi realizada em sua residência, em Petrolina, no dia 16/08/01.(In Memória) Joaquim Militão, nascido em Jaraguá, em 1911. Funcionário Público Municipal, oficial de justiça, agente recenseador, comerciante, professor do MOBRAL, aposentado. O depoimento foi concedido em sua residência, dia 21/07/01. Joaquim Pereira Vasconcelos, 101 anos, nascido em São Francisco, em 1900. Fazendeiro aposentado. O depoimento foi concedido em sua residência em Petrolina, dia 15/10/01.(In Memória) José Chagas, nascido em Jaraguá, em 1915. Professor, motorista, mecânico, técnico em eletrônica, aposentado. A entrevista foi concedida em sua residência, no dia 14/07/02. 150 Judith Gonzaga da Cruz, nascida no Município de Jaraguá, em 1920. Dona de casa. O depoimento foi concedido em sua residência, no dia 18/12/01. Salvador Teodoro de Freitas, nascido em Jaraguá, em 1909. Cerealista, fazendeiro e contabilista, hoje aposentado. O depoimento foi realizado em sua residência, dia 14/02/02.(IN Memória) Sebastião de Siqueira Fraga, nascido em Jaraguá, em 1910. Lavrador, carpinteiro, aposentado. O depoimento foi concedido em sua residência, nos últimos dias de sua vida, em 06/04/02.(In Memória) Terezina Rodrigues de Castro, nascida em Jaraguá, em 1932. Professora aposentada. O depoimento foi concedido em sua residência, dia14/02/02. Vicente P. Costa, ex-vereador e ex-prefeito de Petrolina de Goiás, antigo distrito de Jaraguá, 85 anos. Nascido em Anápolis, em 1917. Fazendeiro aposentado. O depoimento foi realizado em sua residência, em Anápolis, no dia 18/01/02. Corpus Auxiliar Jornal A Voz do Povo. Goyaz, Capital, 14/11/1930. Jornal O Democrata, 09/04/1927. 151 6 CONEXÃO JARAGUÁ-DANBURY: IDENTIDADES MIGRANTES Lúcia Gonçalves de Freitas Jaraguá, juntamente com outras cidades goianas como Goiás, Pirenópolis, Pilar, entre outras, tem um perfil histórico que a torna um cenário propício a investigações sobre memória. Os próprios artigos deste livro concentraram-se mais especificamente neste tema. Contudo, agora ao final, este capítulo vai prender-se quase que exclusivamente ao outro tópico do eixo proposto, o pólo identidade. Isso porque questões sobre identidade têm se tornado uma temática bastante recorrente nos dias atuais. Como afirma Moita Lopes (2002), está em curso um grande repensar sobre quem somos, e não apenas nos meios acadêmicos, uma vez que os vários veículos da mídia deixam clara tal tendência diariamente. Esse interesse repentino e crescente com a questão da identidade aparece, justamente, em um momento em que o mundo globalizado está pondo em interconexão áreas diferentes do planeta e suas respectivas culturas, provocando mudanças sociais extremas. Uma dessas mudanças, cujos ecos se fazem sentir em Jaraguá fortemente, é o fenômeno da migração dos tempos atuais. Se, por um lado, os movimentos migratórios sempre existiram, não sendo esse advento, portanto, exclusivo do momento em que vivemos, por outro lado, há certos fatores que imprimem à realidade contemporânea um perfil particular. Como afirma Hall (2001, p.81), ―na era das comunicações globais, o ocidente está situado apenas à distância de uma passagem aérea‖, o que significa que, nesses tempos de 152 globalização, a facilidade com a qual as mensagens consumistas se propagam, de dentro dos centros de produção do mundo capitalista, em direção às chamadas ―periferias‖ do sistema, provoca um proporcional movimento inverso, ou seja, de pessoas vindas dessas mesmas periferias rumo ao centro, em busca dos tão propagados bens. Jaraguá é hoje bastante exemplar desse fenômeno mundial. Guardadas as devidas proporções, a cidade também tem se revelado como um pólo de migração rumo ao exterior. Com a dificuldade muito grande de se conseguir vistos para os EUA, começa a haver uma mudança de direção rumo a países da Europa como Bélgica, Espanha, Portugal e Inglaterra. Contudo, a ―América‖ continua sendo o destino preferencial dos jaragüenses, e mais especificamente, uma cidade particular no estado de Connecticut chamada Danbury. Jaraguá e Danbury têm, assim, constituído um eixo sobre o qual se sustenta um movimento de mão dupla. De um lado, uma corrente de informações e de pessoas que chegam constantemente de Danbury a Jaraguá, aludindo às muitas conquistas daqueles que se lançaram à jornada migratória rumo aos EUA, e, de outro lado, as filas de candidatos a se tornarem novos imigrantes. Homi Bhabha (1998) é um dos estudiosos da modernidade tardia que se dedicou ao tema das recentes migrações sob o ponto de vista das mudanças identitárias. Segundo ele, o movimento de pessoas pelas fronteiras do mundo atual tem provocado um proporcional movimento identitário, ao qual Bhabha chamou de ―deslocamento casa-mundo‖. Ele observa que as fronteiras entre essa casa e mundo se confundem, forçando uma visão que é tão dividida quanto desnorteadora. Os movimentos migratórios têm acirrado a pluralidade cultural e provocado inúmeros deslocamentos identitários. É justamente sobre esses deslocamentos de ordem identitária que este artigo se dedica. Analisar questões de identidade do grupo jaragüense dentro dessa moldura é caminhar sobre um terreno de discussões que se abrem acerca das configurações daquele eixo casa-mundo de que fala Bhabha (1998). Configurações a respeito, por exemplo, do significado para os sujeitos de uma suposta identidade nacional. Configurações sobre uma também suposta identidade regional, talvez a procurada goianidade, à qual se dedicam estudiosos como Chaul e Ribeiro et. al. (2001). Essas são questões que se prendem àquele pólo casa. No outro extremo, mundo, repousam os muitos desdobramentos sobre as pressões advindas da diferença e da alteridade, bastante salientes no contexto multiétnico acentuado em que vivem os sujeitos nos EUA. 153 Assim, minha proposta aqui será a de levantar as principais questões de cunho identitário do grupo de jaragüenses que se lançou mais destemidamente pelas vias da modernidade: os imigrantes de Danbury-CT. Vou listar os tópicos principais que me foram narrados pelos próprios sujeitos durante um trabalho de pesquisa para minha dissertação de mestrado. Na ocasião, julho de 2002, ouvi cinqüenta e três jaragüenses, entre adolescentes e adultos, sobre suas experiências como migrantes. Por se tratar de um estudo na área da lingüística, usei para as análises das entrevistas algumas teorias da Análise de Discurso Crítica (Fiarclough, 1991, 1992, 1995 2001; van Djik, 1998, 2000, 2002). Neste artigo coloco os resultados de uma forma mais simplificada, retirando termos e nomenclaturas próprias da área, a fim de facilitar a leitura. Dessa forma, a seguir serão levantadas as principais evidências identitárias detectadas nas entrevistas dos imigrantes. Jaraguá-Danbury: um salto gigante! Rua de Danbury no inverno Rua de Jaraguá no período das chuvas Vamos começar nos situando sobre o deslocamento Jaraguá-Danbury. Pensar a dimensão transposta entre os dois limites é imaginar, por exemplo, alguém que se despediu pela manhã de uma cidade que, a exemplo de tantas outras do interior do Brasil, ainda 154 conserva muito de seu passado colonial, e não só em suas feições urbanísticas, suas ruas e fachadas antigas, mas, também, no que seus habitantes chamam de ―tradição‖. É seguir imaginando essa pessoa se distanciando desse meio, marcado por um ruralismo que ainda insiste em lhe ser peculiar, a despeito de todo o surto de industrialização que tem tomado Jaraguá nas últimas décadas, mas que não tem sido capaz de mudar completamente, por exemplo, o estilo de vestir de seus homens, que circulam de chapéus, botas ou botinas de couro, alguns até de canivetes na cintura; nem o espírito provedor das mulheres que abastecem suas casas com guarnições de bolos, biscoitos de queijo e outras quitandas típicas, ambos num ato que os singulariza dentro de um contexto local específico. Todo esse contexto, que chamarei aqui de contexto doméstico, porque para o jaragüense se trata dos contornos que caracterizam a sua terra, ou a sua ―casa‖, é deixado para trás no ato da partida para os EUA, onde, uma vez aportado, começa sua incursão tão almejada pelas vias do primeiro mundo. Algumas hipóteses que têm sido levantadas sobre os resultados desses saltos gigantes propõem que, por um lado, muitas identidades se ressentem da perda de uma certa 'pureza' anterior e, por isso, tentam se recuperar, reforçando aquilo que concebem como "Tradição". Outras aceitam ou se resignam diante da evidência de que jamais serão as mesmas, que estão irremediavelmente sujeitas ao plano da história, da política, da diferença e, assim, submetemse a uma "Tradução" (Bhabha, 1998). O processo de "Tradução" seria, dessa forma, uma espécie de negociação cultural daquelas pessoas que atravessaram fronteiras naturais e se dispersaram de sua terra natal. Porém, o mundo atual tem se mostrado complexo demais, de forma que nele a "Tradução" não encontra terreno fértil regularmente, haja vista as muitas pressões, mundo afora, para restaurar a coesão, o fechamento e a "Tradição", frente ao hibridismo e à diversidade, como o nacionalismo e o fundamentalismo. Tendo em mente as polaridades Tradição-Tradução, proponho-me agora a um exame da situação jaragüense. Que vias identitárias estão trilhando os imigrantes em Danbury? Sob qual pólo está recaindo o peso maior dessa reconstrução, na Tradição ou na Tradução? Sabendo-se que a identidade não é fixa, e que, ao contrário, desloca-se constantemente, e ainda mais numa situação de grande alteridade como a do grupo investigado, qualquer resposta sobre esses deslocamentos precisa considerar que eles não podem ser compreendidos como absolutos, mas apenas dentro de um contexto local e temporal específico. Portanto, as 155 análises que traço não devem ser interpretadas como fixas e absolutas, compreendem apenas um estágio determinado. Tudo novo e tudo igual! Mais atrás, caracterizei a distância transposta entre Jaraguá e Danbury como um salto gigante. Tal designação, todavia, merece alguns comentários. Geograficamente os dois pólos, de fato, distam de aproximadamente dez mil quilômetros entre si. É um longo trajeto, e cuja sensação de distanciamento pode ser ainda mais intensificada por aqueles que se aventuram a percorrê-lo via México. As narrativas de quem enveredou por essas vias testemunham uma jornada, ás vezes, de mais de um mês, sem contar todos os percalços associados, que dificultam ainda mais a viagem, e tornam-na quase irrealizável. Porém, para um grupo cada vez mais restrito de pessoas, que conseguem visto e entram legalmente nos EUA, todo o percurso entre Jaraguá e Danbury pode ser vencido em menos de vinte e quatro horas, uma espécie de mágica, possível graças ao avanço tecnológico dos meios de transportes modernos. Como insinuei antes, alguns jaragüenses despedem-se de suas famílias à tardinha e, na manhã seguinte, já estão transitando pelas vias expressas da 112 Big Apple rumo a Danbury, aonde chegarão uma hora depois. É interessante pensar no impacto dessa chegada. Que impressões têm os jaragüenses ao se verem tão abruptamente alocados nesse novo espaço? E como isso se redefine à medida que eles vão se integrando à comunidade local? O recorte abaixo vai introduzir algumas respostas113: Primeiro que eu fiquei super decepcionada quando eu cheguei aqui... com as coisas, assim....porque eu esperava isso aqui...quando eu entrei em Danbury eu achei que isso aqui era uma fazenda, tudo escuro, sabe...mesmo aquelas áreas de mansão... ninguém usa energia... aquela economia...aquele negócio...eu falei_ “gente do céu!” , sabe? Brasil cê anda ...aquelas ruas todas claras, ruas largas, eu prefiro...eu tô aqui no fim do mundo (risos). (Emília, 34 anos, assistente de dentista) Essa alegação, análoga a tantas outras que colhi, surpreende pela desconsideração de fatores relevantes na mudança do Brasil para os EUA. Demonstra uma contraditória 112 Big Apple é como é chamda Nova York nos EUA. A fim de resguardar as identidades dos depoentes, todos os nomes aqui colocados são fictícios, não correspondendo aos dos verdadeiros sujeitos. 113 156 indiferença pela disparidade lingüística, cultural, arquitetônica, paisagística e até climática, que separa os dois países. Curiosamente, aliam-se a comentários desse tipo uma expressão constante, que pude detectar em vários depoimentos: ―normal, normal!‖. Tal expressão vinha sempre em resposta à pergunta de como era ser brasileiro nos EUA. ―Normal!‖. Era assim que mais comumente respondiam meus entrevistados, revelando uma falta quase total de sentimento de mudança: Não....não tem muita diferença, não, é normal! (Telma, faxineira, 38 anos) Normal, não tem nada de diferente. (Mário, 22 anos, vendedor) Eu acho que muda muito é pelo salário, dinheiro...(risos) só isso, porque o resto é normal, a família é a mesma os amigos são os mesmos. (Ana, 42 anos, faxineira) Esses comentários nos levam à sensação de que o ―salto‖ entre os dois contextos específicos não é tão gigante assim. Algumas hipóteses podem ser levantadas sobre a questão. Primeiro é que, na era da globalização, onde tudo está em toda parte, como afirma Hall (2001), não nos surpreendemos tanto com as mudanças, uma vez que elas são relativas. Assim, estar em Danbury ou em Jaraguá, nessa nova era, é estar igualmente cercado das mesmas informações, bens e serviços disponíveis em praticamente todo o mundo. Há, por um lado também, a questão de que as pessoas, ás vezes, tentam dissimular suas impressões, por uma série de razões, entre elas o medo da inferioridade, e, assim, procuram aparentar uma normalidade que evita rótulos indesejáveis como, deslumbradas, desinformadas etc. Mas, há por outro lado, uma justificativa mais palpável, a de que essa alegada ―normalidade‖ advém da profunda inserção dos jaragüenses na corrente étnica local, ou seja, a comunidade brasileira, cuja força os cega para os contornos exteriores. Os depoimentos a seguir corroboram para essa hipótese: ... vivem no meio de brasileiros, quando cê chega aqui, trabalha pra brasileiro, o primeiro emprego que conseguem é trabalhar pra brasileiro por 157 causa da língua, então como eles não falam inglês eles vão procurar a ajuda de brasileiro, aí convive com brasileiro, almoçam em restaurante de brasileiro, vai no supermercado é coisa de brasileiro, então, eles se sentem brasileiros! (Paula, 41 anos, assistente em consultório médico) Depois que ele chega aqui, que caiu a ficha, que passa aquela ilusão que oh! como tudo é diferente! como tudo é bonito! Depois que passa isso, e não demora a passar não! Tão logo ele entra naquela rotina alucinada de trabalho, isso passa, ele não vê mais aquelas coisas, e não diferencia mais, isso é dos EUA, estou em outro mundo! Ele não diferencia mais, aí ele passa a viver do mesmo jeito que ele vivia no Brasil. Ele acha que tá no Brasil, porque...aqui...essa rua, a Main Street, que aqui é uma cidade muito pequena, ele é a avenida principal, é uma avenida praticamente dominada por brasileiros, então ele fala português o tempo todo, ele assiste à Globo, os restaurantes...você vai por aí, você vê restaurante brasileiro à vontade! Então ele vive como brasileiro dentro dos EUA, ele se esquece de que ele tá em outro país... (Editor do jornal O Imigrante de Danbury) Fui muitas vezes testemunha e até vítima desse esquecimento durante a pesquisa, quando entrava em galerias comerciais inteiramente ocupadas por lojas de produtos e serviços brasileiros, onde me deparava com a movimentação dos funcionários e clientes fazendo suas transações em português. Da mesma forma, o som da música ―sertaneja‖ brasileira pelas ruas de Danbury, tanto vinda das muitas casas do centro, como dos carros que por lá circulavam, assim como as conversas em português que se ouve a toda hora. Tudo isso faz, de fato, com que cheguemos a nos esquecer de que estamos num país estrangeiro. Mais que nesses lugares, a sensação de se estar no Brasil, e, especificamente, de se estar em Jaraguá, é quase absoluta quando passamos a compartilhar um pouco da rotina das casas jaragüenses, nas quais visitas esporádicas de amigos e parentes são regadas a café e pão de queijo; onde, ao final da tarde, vizinhos sentam-se á porta para conversar; e nos fins de semana, para fazer churrasco e tomar cerveja. Tudo isso, que associo à inserção dos brasileiros em sua comunidade étnica, da qual os jaragüenses tomam parte, segmentando-se no grupo regional, faz com que o ―salto gigante‖ seja relativizado e perca sua força de impacto. É isso que explica a sensação de ―normalidade‖ expressa pelos sujeitos, que os faz, como afirmou o editor do jornal local, esquecer que estão num outro país. Meu diário de campo é cheio de 158 notas que dão testemunho dessa evidência, como a que coloco logo a seguir, colhida após a visita a uma família jaragüense, na qual acabara de nascer um bebê, motivo pelo qual muitas pessoas reuniram-se, numa tarde de visitas: ...o clima de festa desse dia me deu chance de ver um pouco do tipo de convívio social que as pessoas têm. (...) A cada hora chegava uma visita, trazendo um presentinho para o bebê. Todas pessoas de Jaraguá, é claro. Na mesa da cozinha, Meire havia preparado alguns bolos, deliciosos, por sinal, e as pessoas, naquele clima de vizinha e comadre, sentavam-se ao redor deles para conversar, beliscar uns pedacinhos.... Na sala, uma televisão bem grande (todas as pessoas possuem eletro eletrônicos de boa qualidade, vídeos, dvds, televisores enormes...) passava o programa Fama, da rede Globo, que, se não me engano, é simultâneo com o Brasil. Meire até comentou comigo sobre o mesmo, me dizendo que nesta segunda versão os participantes não estavam dedicando-se tanto quanto na primeira, um indício de que a Globo é a emissora que predomina na sua escolha de programação. Tem-se a sensação clara de se estar no Brasil. Parecia uma tarde de visitas em Jaraguá, não fosse pelo cenário tipicamente americano, com suas casas de estilo particular, que pra nós parecem„casas-de-boneca‟, sem muros, cercadas de verde e alguns pinheiros na frente, ninguém nas ruas e um cemiteriozinho lá no fundo... (Diário de campo de 17 de julho de 2002) Resistência Ainda no início deste artigo, citei Bhabha (1998), como um autor cujo trabalho sobre identidade de imigrantes, no contexto atual da globalização, é referencial para análises do tipo que estou propondo aqui. Minha pergunta inicial, sobre em que pólo recai o peso maior da reformulação identitária dos sujeitos, destacava dois caminhos, o da Tradição e o da Tradução. Para o autor, à Tradição recorrem aqueles que se ressentem das perdas de uma suposta ‗pureza‘ e, por isso, tentam se recuperar, reforçando aquilo que concebem como os pilares de sua cultura nativa. Outros aceitam as evidências das mudanças e, assim, submetem-se a uma ―Tradução‖, cujo processo seria uma espécie de assimilação. Essas pessoas carregariam traços das culturas, tradições, linguagens e histórias que as marcaram, mas o problema é que elas não conseguem mais se unificar em torno desses ―velhos‖ referenciais, pois são o produto de 159 várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a muitas ―casas‖. No caso dos jaragüenses, por ser um grupo migratório recente, e que, portanto, ainda não definiu propriamente sua condição dentro dos EUA, é prematuro estabelecer as vias identitárias que os sujeitos estão tomando, mesmo porque, como adverte Bhabha (1998), no processo de reformulação daqueles que atravessaram fronteiras naturais e se dispersaram de sua terra natal, há em jogo forças adversas que dificultam tanto o caminho da assimilação quanto o da tradição: Dividido entre um atavismo nativista, até nacionalista, e uma assimilação metropolitana pós-colonial, o sujeito da diferença cultural torna-se um problema que Walter Benjamin descreveu como a irresolução, ou liminaridade da‖ tradução‖, o elemento de resistência no processo de transformação, ―aquele elemento em uma tradução que não se presta a ser traduzido‖.(Bhabha, 1998 p. 308) Já mostrei que muitos foram os exemplos singulares nos depoimentos dos sujeitos que revelaram um apego forte ao seu contexto regional e às suas tradições locais, dando indícios de que há um tendência de manutenção dos vínculos com seu contexto original, favorecendo, portanto, a Tradição. Mas vou tratar agora de um aspecto ainda mais específico desse processo, aquilo a que Bhabha (1998) chamou de ―liminaridade da tradução‖, o elemento de resistência. Tomo emprestado o recorte abaixo como mote para minha argumentação: Agora a maior falta pra mim é lá do Rio do Peixe, todo sábado e domingo eu tava lá pescando... Mas povo que vem do Brasil... a gente não tem condições, né...de viver desse jeito. Aqui não, aqui eu saio cedo, volto à noite, depois, sábado costuma ir muita gente ao lago...vale a pena, né, mas a gente não esquece do Brasil, não, aquele é que é o nosso país, um dia a gente quer voltar mesmo. (Vilmar, 53 anos, empregado da construção civil) Há uma curiosa expressão de identidade na fala deste senhor que há quatro anos decidiuse por migrar para os EUA, sem ter visitado o Brasil desde então, e cujas perspectivas de retorno são indefinidas. Ao demonstrar um claro sentimento de perda em relação a uma prática tão popular na sua terra, a pescaria no Rio do Peixe, Vilmar afirma uma identificação de nível 160 regional. Mas, ele mal termina seu enunciado em que alude a essa regionalidade, já evoca uma situação de segmentação étnica: ―mas povo que vem do Brasil... a gente não tem condições, né...de viver desse jeito‖ (pescando). Ele expressa sua filiação ao grupo ―brasileiro‖, baseando esse pertencimento em seus referenciais locais, jaragüenses. Abaixo, Catarina vai explicar melhor tal situação evocando, mais um vez, o agrupamento dos jaragüenses dentro da comunidade brasileira local: ...principalmente no Dunkin‟ Donuts onde eu trabalho, nessa região em que o Paulo (marido) é manager, só tem jaragüense, é um ou outro paulista, o resto é só Jaraguá mesmo, então a gente é bem goianado mesmo. (Catarina, 41 anos, atendente em lanchonete) Já mencionei que em meu diário de campo registrei muitas notas sobre as relações que alguns jaragüenses costumam desenvolver em função de si mesmos e que, de certa forma, os isola em torno de metiês, para usar a mesma expressão do editor do jornal O Imigrante. São aqueles encontros informais de fim de tarde, visitas esporádicas às casas dos conterrâneos, churrascos de fim de semana e, principalmente, pela circulação constante de comentários sobre os acontecimentos mais evidentes em Jaraguá e dos indefectíveis fuxicos e fofocas sobre seus conterrâneos tanto no Brasil como nos EUA. A esses atavismos relaciona-se aquele apego de Vilmar aos seus hábitos em Jaraguá, onde o estilo rural ainda muito presente comporta o tipo de lazer ao qual ele se remete, a pescaria no Rio do Peixe. Apesar de viver num espaço urbano como o de Danbury, onde há toda uma facilidade de acesso aos serviços e opções de lazer oferecidas pelos grandes malls e shopping centers, com cinemas, teatros, restaurantes, lojas etc., Vilmar se recente da falta do embornal, das suas varas de pesca, anzóis e iscas naturais, com os quais se encaminhava nos fins de semana rumo ao Rio do Peixe em Jaraguá para sua pescaria habitual. E Vilmar, assim como alguns companheiros seus, não demonstra nenhum interesse maior por nada que sua realidade atual possa lhe proporcionar em termos de inovação. Ao contrário, muitos se queixam, como o próprio Vilmar (abaixo) da impossibilidade de manter nos EUA seus costumes locais: 161 O mais difícil aqui é... você tá na beira do lago, polícia chega, se não tiver licença (para pescar) vai preso, né... E eu não poderia deixar de mencionar o caso, que me foi narrado com muito entusiasmo, do grupo de jaragüenses que, na sua ânsia por preservar seu costume de fazer as suas tradicionais 114pamonhadas, descobriu uma variedade de milho cultivado nos EUA para o consumo bovino que se adequava como ingrediente básico da pamonha, e assim, tem conseguido perpetuar mais este hábito gastronômico. Dentro dessa perspectiva, penso que essas pessoas se revelam como exemplos do que os cientistas sociais chamam de ―sujeito pós-moderno‖, este ser naturalmente atravessado por antagonismos de tantas ordens. São pessoas que têm conseguido se articular por este mundo tão complexamente dividido e que nos fragmenta por inteiro. Um mundo no qual os elementos essenciais das nossas vidas, como os sentimentos, o trabalho, a família, o lazer, podem se alocar em pontos tão diferentes, de forma que é possível, a um só tempo, morar em Danbury, trabalhar em Nova York e ter o coração em Jaraguá. Explorando as identidades A partir de agora, vou me dedicar à exploração mais detalhada das pistas sobre identidade encontradas na fala dos jaragüenses em Danbury. A pergunta principal que gerou as reformulações foi ―como é ser brasileiro nos EUA?‖. A partir desse gancho, que impulsionou uma grande reflexão sobre a condição de brasileiro dentro de um outro país, ou seja, sobre a condição de imigrante, os jaragüenses acabaram se estendendo, revelando uma trama bastante intrincada sobre questões de identidade social, regional, étnica, nacional, de gênero etc. Aqui vou organizar esses dados por tópico, ou seja, por assunto, pois, ao me responderem a pergunta norteadora, as pessoas acabavam introduzindo vários assuntos, como o trabalho, o dinheiro, o cansaço, a desunião, a saudade, a depressão etc. Assim, disponho esses tópicos a seguir, ao mesmo tempo em que analiso as questões identitárias que neles se embutem. 114 A pamonhada, explica Suely Molina (Chaul e Ribeiro, 2001), é um ritual de comensalidade que tem um influente papel nas relações sociais em Goiás. Nele as famílias e amigos se encontram para saborear as famosas pamonhas, num momento catalisador da camaradagem, da intimidade e de estreitamento dos elos entre os participantes. 162 Trabalho, dinheiro e cansaço Os estudiosos das ciências sociais, que têm se ocupado dos imigrantes brasileiros nos EUA, afirmam que um dos marcadores positivos de identidade, que nossos conterrâneos tentam imprimir a seu grupo étnico, é a de que brasileiro é um povo ―trabalhador‖. Esse atributo surgiu, segundo Sales (1999), entre outros fatores, da necessidade de nosso grupo diferencia-se dos hispânicos, a quem se atrela o estigma de povo que não gosta de trabalhar. O interessante é que o atributo ―povo trabalhador‖ é um dos elementos constitutivos de um tipo de discurso muito presente nos EUA, e que se associa fundamentalmente à região da Nova Inglaterra, onde Danbury se situa, o discurso no qual o espírito empreendedor é um verdadeiro propulsor de progresso. Fichou (1990) menciona que desde Jefferson o americano do Norte já era visto como ―trabalhador‖, ―perseverante‖, ―interessado‖ e ―contestador‖, estereótipos que ainda persistem na sociedade americana. Esses atributos direcionam-se à imagem de um homem intrépido, capaz de lutar incessantemente por seus ideais, que tem no trabalho uma força progressista e que dificilmente se abate. Contudo, o que pude detectar na fala de meus sujeitos em termos desse atributo ―trabalhador‖, não se reveste de associações dessa natureza propriamente. Chego a essa observação por meio de uma análise mais crítica de como o termo trabalho aparece na fala dos jaragüenses, quase sempre encadeado na seqüência, trabalho, dinheiro e cansaço, como mostra o recorte a seguir: ....Eu tenho até vontade de aprender, mas assim...o cansaço...é tanta coisa...(...) É porque quando a gente chega aqui todo mundo tem o fim de ganhar dinheiro...(...) É porque, igual eu, tô trabalhando direto sete dias na semana, sabe? Todo dia é quatro horas da manhã, coisa que você chega aqui...cê vê a vida da gente não é ...aqui não tem esse negócio de tá arrumando casa, essas coisinhas de...mas todo dia cê tem a rotina da casa, é pegar menino na escola e quando já é tarde cê tá cansado, cê tá querendo mais nada (Catarina 41 anos, atendente no Dunkin‟ Donuts) Esse trinômio trabalho-dinheiro-cansaço se manifestou em grande parte das entrevistas como um encadeamento discursivo, embora não necessariamente nessa seqüência. Em alguns 163 casos, por exemplo, a própria palavra cansaço era depreendida de expressões como ―um corpo doído‖, o que acrescenta uma certa carga de dramaticidade. ...ela me disse que não fala inglês, apesar de já estar aqui há mais de seis anos. Ela atribui ao cansaço constante sua falta de ânimo para dedicar-se a aprender. Ela, assim como muitas outras pessoas em conversas informais, me disseram que chegam em casa com o corpo doendo, que o trabalho aqui parece ser mais penoso que no Brasil, pois, ela mesma trabalhava muito no Brasil, muitas vezes à noite, mas que aqui o cansaço parece maior... (Diário de campo 17 de julho de 2002) Aí, se eu tivesse vindo pra cá uns vinte anos atrás, aí eu tava mais tranqüilo, né...porque ás vezes a gente tá com vontade de trabalhar, sabe? Mas ás vezes o corpo né... não ajuda. A gente levanta cedo tá com o corpo todinho doendo, sabe...? mas tem que trabalhar... (Vilmar, 53 anos, trabalhador na construção civil) Esses encadeamentos em torno do trinômio trabalho-dinheiro-cansaço fazem com que as associações do atributo povo-trabalhador, que os cientistas sociais, anteriormente citados, detectaram como um marco identitário dos brasileiros nos EUA, divirjam conceitualmente desse mesmo atributo em relação, por exemplo, ao americano do norte e nordeste do país, os Yankees. Sobre estes últimos o atributo ―trabalhador‖ é revestido de associações de cunho positivo, em que uma ideologia progressista e otimista favorece uma imagem desses homens na figura de ―bravos‖ e ―fortes‖ trabalhadores. Já com relação aos brasileiros desta pesquisa, os nossos jaragüenses, esse predicado ―trabalhador‖ revela uma essência menos associada à bravura que à opressão. Essa sucessão de elementos, em que o trabalho se justifica quase que exclusivamente em função do dinheiro, e em que o cansaço é uma conseqüência da forma exaustiva com que esse fim é perseguido, muitas vezes ultrapassando os limites da própria força física do imigrante, por isso o ―corpo todo doído‖, liga-se invariavelmente a uma condição opressiva. Desunião 164 A desunião é uma marca negativa que pesa sobre a comunidade brasileira em geral. Foi um dos primeiros fatores detectados pela pesquisadora americana Margolis (1993), e volta e meia emerge nos textos de outros estudiosos da área. Neste trabalho, igualmente, a desunião é uma das principais queixas dos jaragüenses com relação a seus conterrâneos. Curiosamente, ao começar minhas entrevistas lá, senti uma certa falta de cooperação por parte dos sujeitos, pessoas a quem eu atribuía alguma amizade, mas que se recusavam ou evadiam furtivamente de participar da pesquisa. Foi quando percebi que havia uma dose de desconfiança quanto ao estudo divulgar imagens da comunidade que eram evitadas para seus parente e amigos em Jaraguá. Logo entendi que os sujeitos eram muito briosos de sua situação como imigrantes. De forma que, a atitude de manter distância tinha muito a ver com a necessidade de preservação de suas identidades de antes da migração. O próximo recorte ilustra a questão: Mas, um exemplo de porque que uma pessoa se importa com a outra, vergonha de se mostrar como tá vivendo? Tá, a gente junta latinhas de cerveja pra reciclar, cada latinha, cada montinho que faz na máquina, você pega três dólares e quarenta e cinco ou oitenta e cinco cents, não sei. Quando a gente encontra um jaragüense, eles quase morrem de vergonha da gente. Aí eu fico assim, eu morro de rir que eu falo, assim, eu que tinha que tá com vergonha, desculpa! Eu tô sendo assim até...um ....eu não quero mostrar que eu sou melhor, mas eu fico pensando assim, porque às vezes eu vejo pessoas lá que no Brasil eram assim...um...um...funcionário, não tinha nem um emprego, e eu como profissional liberal... (Eu) Doutora, você é doutora! Eu, doutora, com latinha pra reciclar! Assim... eu que tinha que tá com vergonha! Sabe o que as pessoas fazem? Elas põem a latinha no, no carrinho e somem! Pára no meio do caminho! Um dia eu encontrei uma menina, ela quase morreu, eu tava pondo as latinhas, e eu ria que só, eu acho que... assim, foi o pior dia da vida dela, ela pôs as latinhas com tanta pressa! (Paula, 40 anos, assistente de dentista) Essas evidências condicionam uma revisão mais cuidadosa sobre a questão da desunião. Evidentemente esse atributo não foi forjado apenas no plano discursivo, existem de fato atitudes entre os imigrantes que atestam falta de solidariedade, a exemplo dos casos de brasileiros que se aproveitam da fragilidade do novo imigrante, diante de muitas situações e acabam levando vantagem, cobrando para serem intérpretes, alugando vagas em suas 165 residências, enfim, toda uma prática inescrupulosa. Mas a questão discursiva não pode ser de todo ignorada, pois, a forma como os sujeitos dizem sua realidade nos dá muitas pistas dentro de um jogo que às vezes esconde o que não deve ser dito. Dessa forma, o que pude depreender sobre a alardeada desunião dos brasileiros, é que, sob este título, camuflam-se situações de vergonha, rebaixamento social e preservação de auto-estima, pois, curiosamente, além dos brasileiros se manterem muito próximos dentro daqueles cenários internos dos quais já me referi, o que contraria essa aludida desunião, é também pela aproximação com outros brasileiros que o imigrante consegue apoio para sua jornada migratória. É a ajuda de amigos e parentes, que já se estabeleceram nos EUA antes dele, que torna possível seu próprio estabelecimento naquele país. Vigilância O termo vigilância refere-se a um fator que pude depreender durante as entrevistas, que apareceu repetidas vezes dentro das reflexões dos jaragüenses sobre sua identidade brasileira nos EUA. Na realidade a palavra vigilância nem sequer é mencionada nesses depoimentos, mas eu a uso aqui deliberadamente por sua aproximação com uma atitude que me foi transmitida pelas pessoas por meio de uma série de frases, e que se insinua sob a uma expressão muito corriqueira nas entrevistas e observações: ―andar na linha‖. Abaixo, coloco um pequeno extrato da primeira entrevista que fiz, na qual coincidentemente, a expressão já aparece: Recorte da entrevista 1 (7 de julho de 2002): Eu Mas eu digo assim, você... por estar longe do Brasil, aqui, você se sente diferente? Ser brasileiro tem algo de diferente? Gaspar Uai, você tem que entrar... assim, na vida deles, né? Cê não pode ficar ai como brasileiro não, cê tem que cair na vida deles. Padrão de vida deles entendeu? Trabalhar muito...Andar na linha certa... Vilmar Obedecer a lei deles aqui. Se não obedecer... Gaspar É difícil ficar aqui. Vilmar Aqui pegou, leva na hora. 166 Gaspar Não tem dessa de ficar pra depois, não. Esse recorte insinua que a condição de obediência às leis é uma espécie de exigência incondicional para a adaptação do brasileiro no contexto americano. Como Gaspar argumenta, ser brasileiro nos EUA implica um deslocamento de postura no qual é preciso ―entrar na deles‖, ou seja, abrir mão de certas características supostamente brasileiras, e ―cair na vida deles‖, conseqüentemente, igualar-se a eles, pelo menos em alguns atributos, pois, não se pode ―ficar aí como brasileiro não‖, não se pode permanecer inalterado, sob a pena de ―ser pego e levado na hora‖, evidentemente, pego pela polícia e levado para a cadeia. Daí se depreende que o significado desse ―ficar aí como brasileiro‖ envolve um componente de transgressão e de desobediência a leis e autoridades, que é compreendido com um perfil comportamental do nosso povo. Eu acho que aqui você adquire uma responsabilidade maior, que cê tá ni outro país, tipo assim, você sabe que você tem que fazer seu futuro pra você ir embora, que...vamos supor, hoje, amanhã a lei pode mudar e todo mundo pode ser deportado, cê entendeu? Cê fica aqui dez anos, o quê que cê vai levar daqui? Entendeu? Cê tem que criar responsabilidade pra esse tipo de coisa, cê não pode correr riscos, e outra coisa, andar na linha. Porque no Brasil cê dá um jeitinho pra tudo, aqui não, aqui não tem esse negócio de jeitinho pra tudo não. Se você errou, errou, cê paga pelo seu erro. No Brasil não. O dinheiro paga tudo e aqui não. (Laura, 26 anos, faxineira) Este segundo recorte vem complementar as informações do primeiro, explicitando com o termo jeitinho, aquilo que já se insinuava no texto anterior, mas que agora, assinalado por ele, se mostra com total clareza: ser brasileiro nos EUA é ter que adquirir maior ―responsabilidade‖, como afirma Laura, algo que entra em choque com aquela tendência de burlar leis e normas, a tendência da ―malandragem‖ e da ―esperteza‖, que devem ser incondicionalmente deixadas para trás. Ferreira (2001) analisa, em um trabalho sobre clichês, que ―o jeitinho‖ é uma construção quase complementar do discurso da malandragem. Este se materializa sobre o clichê ―todo brasileiro gosta de levar vantagem‖, sendo que o primeiro 167 clichê, ―o jeitinho‖ está ainda muito mais impregnado na memória do brasileiro, como uma marca identitária: Quando se refere ―o jeitinho brasileiro‖, o efeito de sentido produzido não é exatamente o mesmo que ―levar vantagem em tudo‖. Com ―o jeitinho‖, o grau de adesão parece ser maior, há mesmo uma simpática tolerância e uma aceitação consentida para com esse modo de ser que identifica e distingue o brasileiro. (Ferreira, 2001, p.77) A exemplo do que já coloquei no tópico anterior sobre a questão do rebaixamento, percebe-se aqui mais uma vez, como a força da alteridade pressiona os indivíduos, colocando suas identidades em xeque. Se no Brasil já se percebe, mesmo que de forma difusa, uma espécie de indignação ética crescente contra o discurso da malandragem e contra os clichês que o vinculam, no contexto americano essas construções não encontram o menor respaldo, haja vista a própria intraduzibilidade da expressão ―jeitinho‖ para o inglês. Inevitáveis conflitos advêm dessa realidade. Sem poder atribuir ao certo até que ponto o discurso molda a prática social ou a prática social molda o discurso, o fato é que a condição de ilegalidade por que passam os brasileiros em algum momento de suas vidas como imigrantes, geralmente nunca menos de três anos, acaba por sujeitá-los durante esse período a uma série de problemas com as leis americanas, e a forma pela qual eles lidam com esses problemas envolve uma série de estratégias, táticas, maneiras, enfim, ―jeitinhos‖ de burlar as leis de imigração. Assim, forjam-se papéis, tiram-se documentos, conseguem-se carteiras de motoristas etc., num ato praticamente inconciliável com aquela expressão ―andar na linha‖. Sem uma alternativa para sua condição de ilegalidade no país, o jaragüense concilia o medo e o ―jeitinho‖, numa posição sempre alerta, e procura se manter, na medida do possível, dentro de uma ―linha‖ de conduta que o exima de maiores problemas. Aprendizagem A aprendizagem é um tópico também recorrente, mas que se incompatibiliza com aquelas referências já mencionadas, sobre o estado imperturbado dos brasileiros com relação à mudança para os EUA. Se, por um lado, há aqueles que acreditam se manter inalterados na sua condição de brasileiros, como mostraram aqueles recortes em que os sujeitos dizem ser ―normal‖ esta condição, mesmo que transposta para um outro país, há também aqueles que se 168 dizem afetados por mudanças irreversíveis, que se deram dentro de um processo que eles identificam como uma aprendizagem de vida. A minha experiência mudou em tudo, até como ser humano. Eu acho assim, eu era, eu não vi o mundo igual eu vejo agora, eu era, tipo assim, uma pedra bruta, na...o mais que eu aprendi em Goiânia, com minha família....mas, aqui cê aprende tudo, tudo...eu vejo uma pessoa na rua eu sei que ele tá precisando duma ajuda...chega uma pessoa estúpida pra morar comigo, assim...não é estúpida, chega aqui, não tem a ajuda de ninguém, então eu entendo tudo que ele tá passando, tudo, tudo, porque eu já passei. É o ditado mais certo, o mundo ensina a gente a viver, ensina a gente a compreender as pessoas, ensina a gente a ser frágil, muito frágil, em termos de saudade, né, da família... (Sandra, 40 anos, faxineira) Sandra percebe nesse processo um componente fragilizante. Mais uma vez se evidenciam as pressões forçosas a que se submetem os indivíduos expostos à diversidade cultural e às adversidades da jornada migratória. Na maioria dos depoimentos em que se aborda essa questão da aprendizagem de vida, ela é descrita em termos de um certo abalo emocional e cultural. Eu me sinto brasileira, eu nunca vou deixar de sentir brasileira, sabe?, mas, é como eu te falei aquela hora, sabe?..eu acho...se você tá aqui, se você tá aqui pra o que der e vier, eu acho que você tem que...se é pra você falar o inglês, mesmo errado você tem que falar o inglês, se você...não é pra entrar no boteco do jeito que o americano não gosta, então você deve...como ...a gente deve agir, certo? É como a sociedade, sabe?, assim...o americano não aceita o lixo no chão, sabe?, o brasileiro já aceita, né?, não tá nem aí, a gente aprende muita coisa de vir pra cá, sabe Lúcia? Aprende a amar mais a natureza, cê entende, e a respeitar mais assim, do jeito que, a gente tá aqui, o país não é nosso, então você tá vendo o que, que se cê tá tendo mais oportunidades, cê tem mais é que respeitar o que tá sendo dado pra você. Eu sinto muito brasileira...é isso que cê tá me perguntando? (Adriana, 36 anos atendente no Dunkin‟ Donuts) Falar da fragmentação identitária do sujeito pós-moderno já se tornou um lugar comum na academia. Mas, poucas vezes se dispõe de exemplos tão singulares como o que se mostra 169 neste recorte da fala de Adriana. Percebe-se que sua reação à pergunta sobre como é ser brasileira nos EUA é de defender essa identidade cultural, como se ela estivesse ameaçada. Ela começa se afirmando enfaticamente como brasileira, ―eu me sinto bem brasileira, nunca vou deixar de me sentir...‖, só que acrescenta um ―mas‖... que vai encadear a negação dessa brasilidade inalterada. E ela segue tentando se explicar, mas sempre hesitante, (sabe?, cê entende?), que por estar num outro país é preciso abrir mão de certos conceitos e crenças (falar inglês, adaptar-se ao estilo americano de freqüentar o ―boteco‖...). Aí vai transparecendo a questão que abordei no tópico anterior: ser brasileiro nos EUA demanda abrir mão daquelas marcas identitárias que se propagam no discurso da malandragem, do ―jeitinho‖. É preciso uma atitude de respeito, respeito às leis locais, às normas de conduta americana, que condenam veementemente qualquer tentativa de violação, enfim, demanda todo um processo re-educativo. É claro que essa ―reeducação‖ se processa de forma conflituosa, pois, demanda que o sujeito abra mão de certos valores associados à sua cultura, em função de novos valores do grupo ao qual ele deve se adequar. É uma adequação que provoca temor de traição ao seu grupo referencial, pois, a adoção de uma nova postura, demanda o rompimento com uma anterior. A questão da aprendizagem é, assim, um fator diretamente ligado com questões de adaptação, deslocamento identitário, reformulação de conceitos, dentro de um processo no qual a divisão e o conflito identitário são inevitáveis: Recorte da entrevista 1 (7 de julho de 2002): Vilmar: É difícil aqui porque, toda coisa tem que depender, né...cê tem que...levantar cedo, domingo, às vezes num feriado, cê tem que sair pra cuidar de alguma coisa, levar roupa pra lavar, né...num tem jeito de esperar ninguém pra fazer nada, então a gente vai aprendendo. José Isso aqui é uma escola, né.. Vilmar Eu já aprendi muita coisa aqui. José Aqui, cê quebra muito a crista. 170 Gaspar Pra falar a verdade, o que cê num faz no Brasil , aqui ocê tem que fazer. Porque aqui é onde o filho chora e a mãe também. Esse processo de (re)aprendizagem tem efeitos na questão identitária que se estendem até mesmo para o terreno das identidades de gênero. Observa-se que ―levar roupa pra lavar‖, que é um item mencionado por Vilmar dentro do seu rol de aprendizagem, parece se chocar com suas noções de papéis domésticos, pois, no Brasil, lavar roupa ainda é considerado em muitos meios sociais, como uma atividade predominantemente feminina. Um certo abalo estrutural se revela neste recorte, naquela menção de José: ―aqui, cê quebra muito a crista‖. É um desconsolo (―aqui é onde o filho chora e a mãe também‖) frente a inevitabilidade dos sujeitos de se confrontarem com essas adversidades. Saudade e depressão A saudade é um tópico constante e muito compreensível na condição do imigrante, e aqui ele aparece diretamente associado à instituição familiar. Como é ser brasileiro e morar aqui? Eu gosto muito, só porque a gente tem muita saudade, a gente fica muito dividido, ás vezes tem uma solidão muito grande, sabe? Uma depressão...saudade da família. Se a minha família estivesse aqui, nossa!.. eu acho que eu tava completamente feliz. Essa parte é mais ....é por causa da minha família... (Sandra, 40 anos, cozinheira) No Brasil a família é uma instituição de posição estratégica na sociedade, agindo diretamente em certos perfis culturais do brasileiro. Um desses perfis foi identificado por Margolis (1993) como sendo o fator mais decisivo na falta de articulação do grupo em torno da construção de uma comunidade mais sólida nos moldes daquelas estruturas sociais como clubes, associações etc. No Brasil, onde o lar e a família extensa protegem vigorosamente seus integrantes contra o exterior, as associações que não se baseiam em relações familiares são raríssimas. (...) Os brasileiros costumam morar perto dos 171 demais membros de sua família, muito mais do que os americanos, e passam grande parte de seu tempo livre com eles. (Margolis, 1993 p. 304) É dessa forma que a distância de suas famílias é fator de grande interferência na vida do imigrante brasileiro, sendo citado com freqüência como a principal causa de males emocionais como a depressão: porque aqui a depressão a solidão aqui é muita, muito mesmo, então a gente assim, apega muito nas pessoas. Todo final de semana a gente reúne a turma toda, trabalha... durante a semana, no final de semana a gente vai curtir, a casa é cheia, todo final de semana a minha casa é cheia de gente, sabe/ vem amigos, vem tudo.... (Ana, 42 anos, faxineira) Quando cê chega aqui, e sente que isso aqui é maravilhoso e acha que é bom demais, é muito difícil. Eu acho que só uma pessoa...a Natacha (sobrinha que mora no Brasil) veio pra qui ela achou maravilhoso, tanto é que ela vem embora ano que vem morar comigo. Mas, ocê chega...você fica isolada, cê mora sozinha...lá em casa...a minha casa era cheia de gente, todo dia, num tinha um dia que eu almoçava sozinha, sempre meus irmãos tava, sobrinho, vizinho, amigo...então, muita gente. Dá saudade. Cê chaga aqui, você fica sozinha, cê não conversa com ninguém. (Maria Rosa, 37 anos, gerente de lanchonete) Esses fatores de saudade e depressão têm uma influência decisiva no estabelecimento definitivo do brasileiro nos EUA ou na sua volta para o Brasil. No corpus de pesquisa que coletei ainda na fase anterior a minha ida a Danbury, quando entrevistei ex-imigrantes jaragüenses que já haviam retornado da experiência migratória, a principal causa dessa volta era justamente a necessidade de aproximação da família. De modo inverso, como a família é também a principal beneficiária das vantagens econômicas que os imigrantes procuram, é fundamentalmente por causa dela, ou pelo seu bem-estar, que eles se submetem a todas as dificuldades que a situação de imigrante lhes impõe. Discriminação e polidez 172 Vou terminar esta seção de análise dos principais tópicos da fala dos jaragüenses, abordando questões ligadas aos preconceitos e à discriminação. Como, curiosamente, esse tema apareceu associado a um outro assunto, o da polidez, vou aproveitar para analisá-los juntamente. Deixei também estes dois tópicos para o final, apesar de eles terem sido mais evidentes que outros anteriores, por terem sido, ao mesmo tempo, os mais controversos. A discriminação, por exemplo, foi um tópico que surgia na maioria das vezes em resposta àquela pergunta-chave ―como é ser brasileiro aqui?‖. Quando elaborei a questão, tinha em mente o deslocamento Brasil-EUA e as possíveis mudanças que ele traria para os sujeitos como indivíduos. Muitos parecem ter percebido a questão sob este mesmo ângulo, ao que respondiam, comentando sobre seus problemas com adaptação, por exemplo, como nos casos em que aquele ―andar na linha‖ era levantado como um desses fatores. Contudo, grande parte dos sujeitos recebeu a pergunta como que contendo um elemento a mais, do tipo: ―como é ser brasileiro, membro de uma minoria étnica discriminada, neste país?‖. Já sob este prisma, as respostas se dividiram basicamente em dois tipos: de um lado, os que se sentiam atingidos realmente por preconceitos e discriminações, e que prontamente começavam já a abordar as situações nas quais teriam sido vítimas dessas ações. Por outro lado, alguns sujeitos também se mostraram, de certa forma, injuriados com a hipótese de que eram discriminados, e reagiam imediatamente, demonstrando que tal suposição era fruto de uma espécie de formulação discursiva que não correspondia à realidade. Os dois recortes abaixo servem como exemplo dessas duas reações contrárias, ambos vieram em resposta àquela pergunta ―como é ser brasileiro aqui?‖: A gente sente discriminação, um pouco de discriminação, né...porque as pessoas não deixa de discriminar, né. Fala, ah..isso é brasileiro, né? (Érica, 36 anos, faxineira) Eu não sinto discriminada, eles tratam a gente normal como se a gente fosse americano, eles não...isso pra eles...cê num fazendo nada errado, nossa! Maravilha! pessoas muito educadas. (Ana, 42 anos, faxineira) 173 Percebe-se que Érica e Ana posicionam-se de forma diametralmente oposta. Enquanto a primeira delata prontamente uma situação de discriminação, a outra procura negá-la, embora que de uma forma um pouco duvidosa, pois, sua ressalva, ―cê num fazendo nada errado...‖, induz que deve haver limites para a ―educação‖ dos americanos e o estado de ―maravilha‖ da convivência entre esses e os brasileiros. Curiosamente, a ―educação‖ é mencionada por muitos sujeitos como sendo uma das grandes qualidades dos americanos, sendo inclusive uma argumentação constante contrária à existência de discriminação em relação aos brasileiros: Recorte da entrevista 17 (19 de julho de 2002): Nédio Tem americano que não gosta de qualquer espécie de imigrante, mas eles também... Eu Vocês já pegaram algum pela frente? Nédio Conheço um, trabalho junto com um que todas as pessoas que tão lá ... os brasileiros que tão lá, trabalhando nessa companhia há dose anos, sempre falou pra mim, certo...esse cara não gosta de imigrante, não gosta de imigrante. Mas, comigo mesmo eu nunca encontrei nenhuma...nada que me fizesse pensar isso a respeito dele, porque sempre me tratou com educação, com carinho, com brincadeira, com liberdade... (Nédio, 41 anos, empregado na construção civil) Observa-se que a ―educação‖ a que se refere Nédio é sinônimo de polidez, ou seja, a maneira cortês que os americanos teriam de tratar as pessoas de um modo geral. Essa polidez é apontada por alguns sujeitos como um dos itens de superioridade americana em relação a brasileiros, num tipo de associação em que, grosso modo, americanos são pessoas educadas em oposição aos brasileiros que são mal-educados. O depoimento de Emília demonstra que esse sentimento de ―falta de educação‖ é uma espécie de estigma dos brasileiros: 174 eu acho a gente muito mais inteligente e eu me orgulho muito de ser brasileira, eu tenho orgulho de falar que sou brasileira, não tenho nenhuma vergonha. Agora, a única coisa que ás vezes eu acho assim, que...a gente como brasileiro tinha que mudar...às vezes até eu tenho esse negócio...a gente fala mais alto (risos) a gente tem uma maneira assim que às vezes, dentro da educação foge um pouquinho. Mas eu acho que é justamente disso que a gente tem... aquela coisa natural da gente, sabe? De viver de conversar de sorrir...que às vezes eles chegam assim quietinho, fazem as coisas, sabe ...assim que você fica... ‗será que eu tô sendo tão mal-educada?‘ sabe...com a maneira da gente, né...(risos), mas eu acho que...eu tenho muito orgulho de ser brasileira. (Emília, 34 anos, assistente de dentista) Nota-se como a afirmação da superioridade brasileira e o orgulho dessa identidade são contraditos pelo sentimento de inferioridade no quesito polidez, que Emília identifica em relação aos americanos. Essa atribuída polidez dos americanos é um fator de conflito para os brasileiros, confundindo seus referenciais sobre até que ponto são realmente mal-educados ou apenas menos contidos. De um modo geral, os sujeitos demonstraram um sentimento de ambivalência sobre esta questão, como Emília, que se revela dividida entre o orgulho por ser brasileira, uma identidade que implica alegria natural e descontração, e uma contraditória vergonha por esses elementos envolverem um comportamento, como ela mesma diz, que ―foge‖ às regras de educação. Fairclough (2001) alerta que a polidez incorpora implicitamente relações de poder particulares e colaboram para a reprodução dessas mesmas relações. Dessa forma, o autor propõe que as pessoas podem usar a polidez tanto para serem amadas, compreendidas e admiradas, como para não serem controladas ou impedidas pelos outros. Isso implica que, essas pessoas quando estão sendo ―educadas‖ podem ter propósitos muitos distintos, podem estar querendo sinceramente envolver-se com o outro ou, ao contrário, apenas manter uma relação superficialmente cordial. É assim que a questão da polidez demanda uma análise mais crítica, coisa que apenas uns poucos sujeitos parecem estar sendo capazes de fazer: O pessoal aqui são muito diferente de brasileiro! Muito diferente! Não sei se a educação deles é mais do que a nossa ou se eles fazem aquilo porque eles foram criados pra falar aquilo, cê entendeu? Desde pequenininho cê vê que uma mãe chega com o filho, cê vê que desde pequenininho eles ensinam aquilo ali e o menino é obrigado 175 a falar aquilo. Nós não falamos... assim...cê dá assim..._ ah! Obrigada! Cê dá...eu não falo pro meu filho Sandro, fala obrigado! É muito difícil de cê falar isso. Agora, americano não! Eles exigem que ele fala obrigado, na hora que deu, ele tem que falar thank you, na hora. Excuse- me, sorry... só que, por um lado eu acho bom, mas por outro lado, eles arrota na maior altura, na sua cara „Arrrrrrrr!, excuse-me‟. Adiantou o quê? Nada. Nada, nada! E se ocê achar ruim eles acha pior ainda. Porque eles acha, se cê falou excuse-me, cabou! Já tirou, resolveu o problema! (risos) livrou a barra dele na hora! É muito engraçado! (Maria Rosa, 36 anos, gerente de lanchonete) Maria Rosa percebe o uso de expressões de polidez como 115thank you, sorry, excuse-me etc. como manifestações mecanicamente incorporadas ao discurso americano, mas que não necessariamente exprimem respeito e consideração propriamente. Com isso ela está criticando a superficialidade dessa polidez. Apesar de Maria Rosa ser uma das poucas pessoas a desconfiar declaradamente da superioridade dos americanos nesse quesito de polidez, as ―entrelinhas‖ das falas dos sujeitos acaba por revelar certas contradições: Recorte da entrevista 4 (12 de julho de 2002): Eduardo Eles trata a gente às vezes até melhor do que lá, pelo menos as pessoas que a gente convive assim com eles, eles são muito bacanas. Ana Eu já tenho quase quatro anos que eu faço uma casa eu vi a dona da casa um ano depois, o marido eu nunca vi. Eles têm uma confiança muito grande na gente. Por isso que eu falo pra você, aqui a gente não sente discriminado. Se eles confiar em você, eles são seus amigos. Eu chego, a casa...a porta tá aberta ou a chave tá lá pra mim, faço a limpeza saio, nunca mais vejo ninguém... Eduardo O pagamento é em cima da mesa lá. Deixa o dinheiro se não o cheque lá pra ela... 115 Obrigado, desculpe, com licença. 176 Estas linhas são a continuação daquele exemplo mais acima da fala de Ana, uma das entrevistadas que interpretou a questão de ser brasileiro pelo viés da discriminação e tratou logo de desfazer a associação. Ana e seu marido Eduardo dizem que não se sentem discriminados, que os americanos são pessoas muito educadas, uma maravilha! Contudo, fazem a ressalva ―cê num fazendo nada errado...‖ e, completam aqui, ―se eles confiar em você...‖. Em ambos os casos depreende-se que há uma certa imposição condicional para que os americanos gostem ou confiem nos brasileiros. O que é especialmente interessante na argumentação de Ana, em defesa da falta de discriminação dos brasileiros por americanos, é sua alegação sobre a confiança que estes últimos depositam nos primeiros, a ponto de entregarem suas casas inteiramente a eles sem nenhum receio (eu chego, a casa...a porta tá aberta ou a chave tá lá pra mim, faço a limpeza saio, nunca mais vejo ninguém...). O que Ana está alegando em última instancia é que se sente prestigiada por não ser alvo de suspeitas quanto à sua honestidade. Curioso também é observar que, quando seu marido diz ―eles tratam a gente até melhor do que lá‖, está se referindo a como são tratados aqui no Brasil os empregados que desempenham os mesmos tipos de funções que eles estão desempenhando nos EUA, como Ana que é faxineira. Sem perceber, Ana e Eduardo estão projetando os tipos de preconceitos que eles próprios já alimentavam no Brasil sobre profissões consideradas subalternas. Quando se surpreendem com a ―confiança‖ que os americanos têm nos brasileiros, o fazem em oposição à proporcional desconfiança que muitos patrões no Brasil têm em ralação a seus empregados, numa atitude em que os ecos dos tempos coloniais ainda se fazem ouvir, quando peões e escravos eram suspeitos de pequenos furtos nas propriedades de seus senhores e patrões (Freyre, 2000). Os jaragüenses parecem estar associando a discriminação a casos de repressão e intolerância explícitas, como se essas fossem as únicas formas de manifestação do problema, esquecendo-se de que a própria manutenção da assimetria social, entre esses grupos e o grupo majoritário anglo-americano, já é um sinal da posição discriminada que ocupam na sociedade local. Os membros das minorias são geralmente mais pobres que a média, e vistos como não completamente integradas à sociedade. O próximo recorte denuncia essa posição: ...por exemplo, eu vim pelo dinheiro mesmo, eu não vim por outra...eu sou aventureiro, eu sou... eu sempre tive um pouco de aventura, né , eu sempre 177 gostei bastante de aventura, mas não é por aí, eu vim pelo dinheiro mesmo, que já tinha informação que ganhava bem, né? Chegou aqui constatou que realmente ganha bem, e dediquei a trabalhar só, então pra você fazer algum dinherio aqui...que aqui a gente ganha menos que todos, cê sabe né? Abaixo do outro, abaixo do nível dos americanos, e a gente faz aquilo que eles não querem fazer, né, igual, por exemplo, se eu fizer... e falar o que que você, ah eu sou supervisour de house keeper, você não vai ter essa noção, então o que que é house keeper? É limpeza, a gente limpa merda mesmo! limpa tudo! (Tubertino, 47 anos, supervisor de limpeza) Tubertino não apenas procura deixar clara a condição de inferioridade que ocupa na sociedade americana, como ainda denuncia que o uso de termos em inglês, como house keeper, não exprime amplamente o significado dos tipos de trabalho a que se referem. Isso talvez esclareça o por quê de os sujeitos, de um modo geral, não usarem nomes em português para suas profissões nos EUA. As faxineiras, por exemplo, jamais usam esse termo para se referirem a seus trabalhos, preferem a denominação house cleaners, numa estratégia que abranda as associações indesejadas que possam se prender à palavra em português. Quando falo indesejadas, estou me referindo ao constrangimento que alguns sujeitos sentem, ao terem que revelar a inversão de papéis a que foram submetidos na mudança para os EUA. Este é o caso do próprio casal Eduardo e Ana, que em Jaraguá eram proprietários de um pequeno negócio, e que nos EUA viram suas posições se inverterem diametralmente para a de faxineira e pedreiro. Sem perceber que a discriminação está ligada às poucas chances que o imigrante tem de se relacionar com os americanos em condições de igualdade, no plano econômico e social, muitos sujeitos vão se deixando levar pela ilusão de que não são atingidos pelo problema. É assim que Ana não percebe que o simples fato de trabalhar há quatro anos para uma pessoa, tendo encontrado-a apenas uma ou duas vezes, já revela seu nível de isolamento em relação aos americanos. Parece haver uma compreensão limitada sobre o termo discriminação, que para muitos sujeitos implica maus-tratados. Ser vítimas de discriminação é ser exposto a atos mais explicitamente violentos. Como essas formas de tratamento não são tão constantes, e como a polidez faz parte das estratégias de fala dos americanos ao lidar como o imigrante de 178 um modo geral, este às vezes perde de vista as condições reais de seu enquadramento social na sociedade americana. Considerações finais Este capítulo diferiu-se substancialmente das demais partes deste livro, na medida em que me debrucei com maior afinco sobre um fenômeno atual. Embora tenha me prendido a um dos pólos propostos nesta obra já no título, a questão da identidade, o fiz sem percorrer as vias da memória, o outro pólo aqui tão explorado. Ao contrário, tratei de seguir o viés da contemporaneidade. Acredito que tal escolha tenha contribuído para dar a este trabalho um panorama mais completo sobre as questões sociais jaragüenses, que são, afinal, o nosso maior ponto de interesse. Da mesma forma, sendo Jaraguá um dos ricos cenários da memória e da identidade goiana, estudar as migrações internacionais no âmbito local nos dá pistas sobre essa mesma temática em outras esferas. Afinal, a migração jaragüense se insere no contexto mais amplo da Modernidade Tardia, e revela uma das muitas faces desse mesmo fenômeno em escala mundial. Muito embora os perfis que levantei neste estudo não sejam estáticos, pois estão em constante movimento e se transformam à medida que o imigrante refaz suas expectativas e sua forma de vida no exterior, eles nos dão as pistas de como se constituem os sujeitos neste momento em que o local e o global se entrecruzam, provocando uma grande fragmentação nas identidades. Aqui ficou evidente um processo identitário extremamente conflituoso. As confusões refletem-se na fala dos depoentes a todo o momento e a ambigüidade é uma marca em suas afirmações em diferentes planos. Este estudo, apesar de ter consumido muitos esforços de minha parte, não foi suficiente para esgotar o assunto. Assim, o tema da migração jaragüense permanece ainda em aberto para aqueles que, como eu, tenham interesse não apenas pelas causas jaragüenses, mas pelas muitas questões que nos afligem a todos nesses tempos atuais. Referências BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 1998. 179 CHAUL, N. F. ; Ribeiro, P. R. (org.) Goiás: identidade, paisagem, tradição. Goiânia: UCG. 2001. FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman. 1991. FAIRCLOGH, N. Language awareness : critical and non-critical approaches. In: FAIRCLOGH, N. et. al. Critical language awareness. New York: Longman. 1992. FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis. The critical study of language. London: Longman. 1995. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB.2001. FERREIRA, M. C. L. 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