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CENÁRIOS DA MEMÓRIA E IDENTIDADE
GOIANA: O CASO DE JARAGUÁ
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Lúcia Gonçalves de Freitas (Org.)
Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte
Dulce Madalena Rios Pedroso
Daura Rios Pedroso Hamú
Cristiane Eunisse Fonseca
Maria Lícia dos Santos
CENÁRIOS DA MEMÓRIA E IDENTIDADE
GOIANA: O CASO DE JARAGUÁ
Goiânia, GO
2004
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CONSELHO ACADÊMICO DA UEG – UnU JARAGUÁ
Presidente
Maria das Graças Langsdorff
Coord. Administrativa
Iraí Cordeiro Guerra Silva
Secretária Acadêmica
Márcia Alves Carlos Santos
Coords. de Curso
Ana Keila Alberto Moreira
Marcela Inácia de Souza
Silvano Moreira Damasceno
Suely da Conceição Pereira Barros
Coord. de Pesquisa
Lúcia Gonçalves de Freitas
Coord. de Extensão
Kátia Braga Arruda
Coord. de Biblioteca
Patrícia Machado de Souza
Docentes
Adevane da Silva Pinto
Ilma Maria Gonçalves
Lázara L. da Costa Mendonça
Osmar Domingos de Barros
Rosa Míria Correia L. Moreira
Sandra Fátima S. Araújo
Dicentes
Adriana Marques de Siqueira
Silvia Dias Barbosa Lima
GRUPO DE ESTUDOS DE JARAGUÁ: EDUCAÇÃO,
MEMÓRIA E IDENTIDADE
Líder
Lúcia Gonçalves de Freitas
Pesquisadores
Cristiane Eunisse Fonseca
Daura Rios Pedroso Hamú
Dulce Madalena Rios Pedroso
Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte
Maria da Graças Langsdorff
Maria Lícia dos Santos
Mariângela Ricardo Alves Moreira
Marly Aparecida de Souza
Suely Ferreira
Alunos
Ana Paula Pinagé Soares
Cristiane Possas de Fonseca
Hosana Quintino de Oliveira
Ivam Pereira de Morais
Lílian Marta Gonçalves Garcia
Márcia Andrade Vicente Lucas
Rafaela Calixto de Oliveira
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Pró-Reitor
Ricardo Caetano Rezende
Assessor do Pró-Reitor
Plínio Lázaro Faleiros Naves
Coord. Geral de Pesquisa
Mirley Luciene dos Santos
REITORIA
Reitor
José Izecias de Oliveira
Assessor de Gabinete
Adilton José Ferreira
Secretário Geral
Clodoveu Reis Pereira
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© 2004 by Lúcia Gonçalves de Freitas
Editora da AGEPEL
Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira
Rua 82, Palácio Pedro Ludovico, Setor Sul. Primeiro Andar. Goiânia – GO
CEP: 74033-010
Telefone /Fax 201 5123
Comissão Técnica
Editoração Eletrônica
Produção de Arte Gráfica e Capa
Dados para catalogação
ISBN
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2004
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Notas da organizadora
O presente livro surgiu como resultado dos trabalhos do grupo de pesquisa da UEG
Unidade de Jaraguá intitulado ―Grupo de Pesquisa de Jaraguá: Educação, Memória e
Identidade‖. O mesmo foi criado em 2003 com o intuito de implementar a área de pesquisa da
Unidade, visando prioritariamente a beneficiar o curso de Pedagogia. Dessa forma, a principal
área temática deveria ser a educação no município de Jaraguá, pois, assim, as pesquisas
desenvolvidas pelo grupo poderiam retornar em forma de benefícios para as próprias
comunidades pesquisadas, no caso, as escolas da região, e, obviamente, o curso de Pedagogia
da Unidade. Na ocasião, procurou-se reunir pesquisadores que já tivessem alguma experiência
acadêmica e cujos trabalhos girassem em torno de um tema comum. Dessa forma, seis
professoras foram contatadas para integrar o grupo numa primeira fase. Todas elas eram
profissionais que já vinham atuando há algum tempo no ensino superior, algumas dentro da
própria UEG, e que possuíam trabalhos de cunho científico. A maioria desses trabalhos eram
dissertações de mestrado ou teses de doutorado sobre temas relacionados a Jaraguá já
previamente aprovadas por instituições com peso acadêmico como UFG, UCG, USP e UnB.
Todos eles versavam sobre questões de cunho histórico e social sobre o município, sendo a
memória e a identidade os temas mais recorrentes.
Embora os trabalhos estivessem muito mais vinculados ás áreas de história e ciências
sociais que á área de educação propriamente, que, afinal, deveria ser o alvo das pesquisas do
Grupo, considerou-se que os estudos das seis pesquisadoras reunidas constituiriam um projeto
valioso, pois, juntos, formavam uma espécie de compilação da produção científica sobre
Jaraguá. Assim, a opção foi estender o campo de investigação do Grupo, que se configurou em
torno de duas linhas de pesquisas, uma voltada a aspectos educacionais do município, a qual
deve contribuir com trabalhos sobre metodologias pedagógicas e áreas afins, e a outra sobre
aspectos histórico-sociais de Jaraguá, á qual devem afiliar-se pesquisadores que se interessam
sobre questões como as já mencionadas, memória, identidade etc. Foi dessa forma que a
Unidade da UEG de Jaraguá criou seu primeiro Grupo de Pesquisas, propriamente cadastrado
no Diretório de Grupos do CNPq, reunindo trabalhos de Educação, Memória e Identidade
sobre o município.
6
Uma vez que o Grupo, após um ano de sua criação, encontra-se agora numa nova fase,
desenvolvendo inclusive novos projetos, desta vez integrando professores e alunos do curso de
Pedagogia da Unidade, a proposta deste livro vem como uma prova da consolidação desse
trabalho. Aqui, encontram-se reunidos os textos das seis pesquisadoras que constituíram o
Grupo inicialmente com o intuito de dar-lhe uma base acadêmica de peso. Esperamos que esta
obra seja o marco inicial de toda uma série de trabalhos acadêmicos sérios e comprometidos
dentro de nossa Unidade e que possa servir de exemplo a outras esferas da UEG, como prova
de que é possível realizar trabalhos dessa natureza, a despeito de todas as adversidades por que
tem que passar uma instituição tão nova como a Universidade do Estado de Goiás.
Profa. Lúcia Gonçalves de Freitas.
7
Sobre as autoras
Lúcia Gonçalves de Freitas é Coordenadora de Pesquisa da UEG-Jaraguá desde 2003 e
professora do curso de Pedagogia da mesma Unidade ainda na época da anterior FAECIHEJA.
Também atua em outras unidades da UEG como professora em cursos de especialização. É
formada em Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade Federal de Goiás.
Possui título de especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade de Educação
da mesma instituição de onde também vem seu título de mestra em Letras e Lingüística.
Atualmente está cursando o Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade de
Brasília no nível de doutorado.
[email protected]
Cristiane Eunisse Fonseca é professora de Sociologia e História da UEG desde de 1999.
Trabalhou na Unidade de Jaraguá no curso de Pedagogia regular. É professora de Atividades
Complementares da UEG - Pólos de Trindade e Goiânia e professora de História e Sociologia
do Ensino Médio em Goiânia. É graduada e Pós-graduada em Ciências Sociais pela
Associação Educativa Evangélica e mestra em História Social e das Idéias pela UnB.
Atualmente é também Coordenadora do curso de Psicopedagogia da UEG - UnU Ceres.
[email protected]
Daura Rios Pedroso Hamú é professora adjunta de Desenho Técnico e de Arquitetura da
Faculdade de Artes Visuais e Escola de Engenharia Elétrica da UFG. É Mestra em Gestão do
Patrimônio Cultural pela UCG. Integrante do Grupo de Estudos sobre Jaraguá.
[email protected]
Dulce Madalena Rios Pedroso tem Licenciatura Curta em Estudos Sociais pela Universidade
Católica de Goiás e Licenciatura Plena em História pela mesma universidade. Possui duas
espacializações, uma em Etnolingüística, pela Universidade Federal de Goiás e outra em
Antropologia e Etnologia pela Universidade Católica de Goiás. É Mestra em História das
Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás. Atua como professora na
Universidade Católica de Goiás, onde também tem desenvolvido vários projetos de pesquisa.
[email protected]
Maria Lícia dos Santos é professora da Universidade Estadual de Goiás das Unidades de
Jaraguá e Ceres, e professora de História e Sociologia da Escola Agrotécnica Federal de Ceres.
É graduada em História pela UFG; tem especialização em Metodologia do Ensino Superior
pela UEG e é mestra em História Social e das Idéias pela UnB.
[email protected]
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Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte tem Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais, é
Mestra em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e Doutora em História
Econômica pela Universidade de São Paulo, é professora do curso de Sociologia da
Universidade Federal de Goiás em Goiânia, onde atua como professora e em grupos de
pesquisa.
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SUMÁRIO
1-
IDENTIDADE E TRADIÇÃO EM JARAGUÁ: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS
Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte
2-
MEMÓRIA DE MIGRAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS RELAÇÕES
INTERÉTNICAS ENTRE ÍNDIOS E COLONIZADORES EM GOIÁS NO SÉCULO XIX.
Dulce Madalena Rios Pedroso
3-
O LUGAR DO PADRE SILVESTRE NA MEMÓRIA DE JARAGUÁ
Daura Rios Pedroso Hamú
4-
SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA ...
REPRESENTAÇÕES DA EXPERIÊNCIA ESCOLAR EM JARAGUÁ
(1927/1947)
Maria Lícia dos Santos
5-
CORONELISMO, MEMÓRIA, IDENTIDADE E IMAGINÁRIO: JARAGUÁ
1920-1940
Cristiane Eunisse Fonseca
6-
CONEXÃO JARAGUÁ-DANBURY: IDENTIDADES MIGRANTES
Lúcia Gonçalves de Freitas
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1
IDENTIDADE E TRADIÇÃO EM JARAGUÁ:
PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS
Lyz Elizabeth Amorim Melo Duarte
A forma de utilização da terra e o estabelecimento de uma estrutura fundiária
influenciam na conformação das estruturas políticas, econômicas e sociais, dando elementos
para a análise do povoamento, da constituição da sociedade e do desenvolvimento econômico.
Podemos supor uma estreita ligação entre a propriedade da terra, o poder político e a formação
da identidade de um povo. Na região de Jaraguá, isto teria sido sedimentado desde os
primórdios da instalação do município, no período aurífero, particularmente a partir do
esgotamento dos metais preciosos e da ocorrência do processo de ruralização da sociedade.
Dessa forma, podemos iniciar a caracterização da identidade de Jaraguá buscando os
condicionantes da propriedade da terra na estruturação fundiária que se implanta na região.
1- Antecedentes da estrutura fundiária
A estrutura fundiária de Jaraguá começou a se definir ainda no século XVIII, no
período mineratório. O arraial que se formou nessa época conseguiu sobreviver ao declínio do
ouro. A terra utilizada para desenvolver a pecuária ou a produção agrícola era simplesmente
ocupada ou legalizada como sesmaria.
Os dados disponíveis sobre a ocupação da terra em Jaraguá, até meados do século XIX,
resumem-se aos obtidos através dos ―Registros Paroquiais‖, realizados entre 1856 e 1860. As
informações dos imóveis são muito precárias, principalmente quanto às áreas declaradas. A
11
demarcação das terras foi prevista pelo Decreto 1.318, de 1854, com a finalidade de
discriminar as terras públicas das propriedades privadas1. Entretanto, as dificuldades para se
estabelecer a área precisa dos imóveis eram enormes. Faltavam agrimensores e a medição das
terras era um processo muito caro. Como as terras praticamente não tinham valor, não
compensava o trabalho de medi-las.
As declarações do Registro Paroquial eram fornecidas ao vigário. A Igreja Católica era
a única instituição organizada, presente em toda a Província e com estrutura e pessoal para
fazer esta anotação. O próprio analfabetismo que prevalecia na época era empecilho para a
realização desses registros. Como os padres eram letrados e mantinham contato permanente
com as populações, a tarefa de registrar as terras acabou ficando na competência da Igreja.
Esse registro, entretanto, não tinha valor oficial, no sentido de conferir o título de
propriedade ao declarante. Era apenas uma forma encontrada pelo Império para separar terras
públicas das privadas e possibilitar o cumprimento da Lei 601. Na falta de medidas exatas, os
marcos de delimitação das propriedades foram acidentes geográficos (rios, montanhas,
morros, córregos), marcos físicos como árvores, plantações e até mesmo construções como
casas, cercas de fulano, etc.
Em Jaraguá, o vigário que fez as anotações para o Registro Paroquial foi o Pe. Silvestre
Álvares da Silva. Jaraguá, em meados do século XVIII, fazia parte do município de Goiás,
que, à época, incluía 12 paróquias: Santana de Goiás, Nossa Senhora do Rosário da Barra,
Nossa Senhora do Pilar de Ouro Fino, São José de Mossâmedes, Rio Bonito, Nossa Senhora
da Abadia de Curralinho, São Francisco de Anicuns, São Sebastião do Alemão, Nossa Senhora
das Dores do Rio Verde, Santa Rita, Nossa Senhora da Penha de Jaraguá e Nossa Senhora da
Penha do Pilar.2
No livro de registro da Paróquia de Nossa Senhora da Penha de Jaraguá foram
declaradas 291 propriedades. Segundo o registro, estas propriedades foram adquiridas das
seguintes formas: 7 posses, sem data específica; 26 compras; 1 compra e posse (parte); 1
1
Para a regulamentação da estrutura fundiária do Brasil e de Goiás, durante o século XIX , foi estabelecida uma
legislação sobre a terra que teve importância não só para aquele período, mas também pela influência que exerceu
sobre as políticas voltadas para a terra, mesmo durante o século XX. Em 18 de setembro de 1850 foi promulgada
a lei nº 601, que se destinava a regularizar a situação das terras no Brasil. Quatro anos mais tarde esta lei foi
regulamentada pelo Decreto nº 1318, de 30 de janeiro de 1854.
2
Citado por ALENCAR, Maria Amélia Garcia de, Estrutura Fundiária em Goiás. Goiânia. GO., Ed. UCG,
1993, p. 65.
12
compra e herança (parte); 2 heranças de posses; 2 sesmarias; 2 doações; e 6 entre outras
formas. 230 não esclarecem a forma de aquisição.3
Para viabilizar o Registro Paroquial e ao mesmo tempo possibilitar o aproveitamento
de seus dados, foi criada a Repartição Geral das Terras Públicas. A finalidade desse órgão era
o estabelecimento de uma burocracia que facilitasse o cumprimento das leis nº 601 (1850) e
1.318 (1854). Para as províncias, foram criadas as Repartições Especiais de Terras Públicas. A
centralização de poder, que caracterizou o Segundo Reinado no Brasil, impediu estas
Repartições Especiais de funcionarem. A responsabilidade ficou nas mãos do Imperador que,
indiretamente, controlava o órgão. Em 1860, a Repartição Geral foi absorvida pela Secretaria
do Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.4
A base para o estabelecimento de uma estrutura fundiária para Jaraguá foi dada pelo
Registro Paroquial. Os nomes das localidades registradas coincidem com os nomes de muitas
fazendas existentes até hoje.
Muitos dos declarantes de terras registradas junto à Igreja, constituem antepassados
reconhecidos pelos sobrenomes de famílias que detêm ou detiveram terras e poder em Jaraguá.
Assim é que o próprio Pe. Silvestre, da família Álvares da Silva, que se transferiu para
Jaraguá ainda no século XVIII, aparece com cinco diferentes glebas de terra registradas em
seu nome. A família Ribeiro de Freitas, que havia se transferido de Traíras para Jaraguá na
segunda metade do século XIX, registrou quatro glebas, sendo duas em nome do Padre
Manoel Ribeiro de Freitas. Diógenes Gomes Pereira da Silva teve uma gleba registrada. Sua
família participou nos círculos de poder durante os séculos XIX e XX. Ele próprio foi
Presidente da Câmara de Vereadores de Jaraguá. Ele e seus descendentes, tradicionalmente
foram donos de Cartório no município. Francisco Policarpo de Amorim teve duas glebas
registradas em seu nome. Ele foi Presidente da Câmara de Vereadores, no final do século XIX
e Vice-Intendente de Jaraguá em 1915. Foram registradas duas glebas de terra em nome de
Antonio Félix de Souza. A família Félix de Souza teve participação política em Jaraguá
3
Arquivo do Patrimônio Público Imobiliário da Procuradoria Geral de Goiás. Livro nº 8: Registro Paroquial da
Paróquia Nossa Senhora da Penha da Vila de Jaraguá. Abertura em 20 de agosto de 1856 e fechamento em 2 de
abril de 1860.
4
Sobre o assunto, ver: ALENCAR, Maria Amélia. Op. cit., pp. 31 e 45, nota 28.
13
durante os séculos XIX e XX. Um de seus descendentes, Mário Félix de Souza, foi Intendente
de Jaraguá em 1915.5
Antonio Manoel de Barros foi o primeiro a registrar terras na localidade de Calção de
Couro, pertencente a Jaraguá, que mais tarde se tornaria município de Goianésia. Este registro
foi feito em 1857, abrangendo uma área correspondente a 5.000 alqueires goianos.6
O fato de essas terras terem sido registradas pela Igreja fez com que essas anotações
acabassem adquirindo legitimidade frente à população. No caso específico de Jaraguá, em
primeiro lugar devido ao respeito e à credibilidade que a população conferia ao padre
Silvestre, que foi o encarregado do Registro Paroquial. Ora, a Igreja era a instituição com
maior credibilidade no seio da sociedade. Pelo fato dessa anotação ter sido feita pela Igreja,
conferiu à mesma uma legitimidade perante a população. Isso resultou na aceitação do registro
como documento legal.
Por outro lado, os sacerdotes também eram interessados na validade do documento já
que registraram glebas de terra em seu nome e no de suas famílias.
Não foram encontradas evidências de que essas terras teriam sido imediatamente
legalizadas, a partir da vigência das leis nº 28, de 1893 e 134, de 1897. 7 Como a regularização
fundiária exigia a medição das terras, tudo indica que as pessoas com mais recursos foram as
que conseguiram registrar suas terras nos cartórios locais.
No Cartório de Registro Imobiliário de Jaraguá, o livro mais antigo, específico para
essa finalidade, foi aberto em 1911 e encerrado em 1920.8 Antes dele, anotações de terras e
escravos foram feitas pelo 1º Tabelionato de Notas. Não constituía livro de registros, com
5
Informações sobre a família Félix de Souza foram retiradas de entrevistas realizadas com Joaquim Militão, em
23/05/97; Manoel de Amorim Félix de Souza, em 23/02/97 e com Dª Iracema Félix de Souza Longo, em
17/03/97.
6
IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro, IBGE, Vol. XXXVI, 1958. No Cartório de
Família, Sucessões e 1º do Cível de Jaraguá, há a notificação do Inventário de Antonio Manuel de Barros.
Inventário nº 163. Notificação à folha 11. Livro do Tombo para registro dos feitos, que correm pelo Cartório.
Escrivão de Órphãos do Termo e Comarca de Jaraguá. Abertura do livro: 29 de julho de 1943. É assinado pelo
juiz de Direito Elísio Taveira.
7
Especificamente para Goiás foi estabelecida a Lei nº 28, de 19 de julho de 1893, que versava sobre vendas de
terras no Estado. A Lei nº 134, de 23 de junho de 1893, sobre terras devolutas, veio substituir a de nº 28.
8
Trata-se do Livro de Inscripção de hypothecas legais nº 2 e Transcripção de Immóveis nº 3. Esse livro contém,
em uma única encadernação, os livros 2 e 3. Não há, no Cartório, o nº 1. O Cartório, atualmente, é denominado
Cartório de Registro Imobiliário – Títulos e Documentos – Oficial de Protestos.
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validade legal. Entretanto, nele foram anotadas transações de terras desde os anos 60 do século
XIX. O 1º livro do 1º Tabelionato de Notas foi assinado pelo juiz Antonio Félix de Souza e
aberto em 20 de maio de 1834. Nele foram encontradas anotações de compra, venda e alforria
de escravos. O livro 2 iniciou-se em 1856. Nesse livro há o primeiro registro de transação de
terras, datado de 1865.
Observa-se, pela data em que as anotações de terra aparecem, que elas só foram feitas
depois da exigência do Registro Paroquial. Não foram encontrados registros de terras em
cartórios antes de 1865, mesmo existindo o 1º Tabelionato desde 1834. Esse fato mostra que a
preocupação com a legalização das terras só ocorreu depois de aprovada a Lei de Terras e a
sua regulamentação em 1854.
Mesmo com as tentativas feitas pelo Império, de só permitir o usufruto da terra pela
compra, a forma de aquisição das terras nas regiões mais antigas foi, inicialmente, a ocupação
ou posse. Posteriormente, a divisão por herança e a venda. Terras devolutas, durante o século
XIX, foram sistematicamente ocupadas através do apossamento. Esta foi a forma normal de
abertura das grandes propriedades em Goiás. Uma vez apossadas as terras, seus ocupantes
utilizavam-se de expedientes diversos a fim de legalizá-las.
Na região de Jaraguá, o isolamento imposto pela falta de alternativas econômicas,
durante o século XIX, restringia a produção agropecuária ao consumo local. A vinculação com
um mercado externo era fraca. No final do século, o movimento migratório levou tropeiros
para Jaraguá. Oriundos da antiga região da Farinha Podre9, em Minas Gerais, no tocante à
terra, os tropeiros já compartilhavam de uma visão mais mercantilizada. As terras, em Jaraguá,
não tinham valor, o que facilitava a simples ocupação e a compra por preços baixos. Nas
últimas décadas do século XIX e início do século XX, grandes glebas foram apropriadas pelas
famílias Castro Ribeiro e Ferreira Rios.
Através do desenvolvimento agropecuário, sobretudo a partir do início do século XX,
Jaraguá passou a integrar, ainda que de maneira tímida, um mercado mais amplo. O
crescimento econômico da agropecuária não representou grandes alterações nos setores
secundário e terciário da economia. O comércio restringia-se à venda do gado e de alguns
produtos agrícolas e à compra de artigos que não eram produzidos localmente. O setor
9
A região da Farinha Podre corresponde, atualmente, ao chamado Triângulo Mineiro, cujas terras já pertenceram
à Goiás.
15
secundário, caracterizado pela transformação da matéria-prima em produto acabado, era
constituído de uma produção artesanal, voltada para o consumo local. A produção da rapadura,
como subproduto da cana-de-açúcar, a produção de farinha de mandioca ou de milho e o
beneficiamento de folhas de fumo, para comercialização, eram os poucos produtos que
passavam por rudimentos de transformação, antes de serem exportados de Jaraguá para outras
localidades.10
2- Concentração de Poder em Jaraguá
Goiás foi palco da atuação de grupos oligárquicos, constituídos com base em famílias
patriarcais. A ascensão dos coronéis locais, disseminados pelo interior de Goiás, ajuda na
compreensão das estruturas políticas que se formaram no Estado.
O cenário político, econômico e social que se delineou em Jaraguá a partir do início do
século XX foi resultado das movimentações que tiveram lugar nos séculos XVIII e XIX.
As marcas do período mineratório ficaram registradas não apenas nas edificações mas
na mentalidade da população. As primeiras Igrejas e a religiosidade da população, por
exemplo, foram forjadas ainda junto das minas.
Goiás foi habitado, no início do seu processo de povoamento, principalmente por
portugueses (emboabas) e paulistas, por escravos negros e por índios, fartamente referidos na
documentação de época. 11
A elite que ocupou o poder em Jaraguá, em parte constituiu-se nos idos da mineração e
em parte foi resultante das migrações do século XIX.
Elementos políticos, econômicos, sociais e culturais podem ser detectados na fase
aurífera dessas sociedades. Considero que a base da sociedade goiana está assentada,
justamente, no período mineratório. O ouro iniciou o povoamento de Goiás. Os mapas das
minas do século XVIII estampam núcleos de povoamento desde o extremo sul até o extremo
norte. Apesar da instabilidade das populações que migravam constantemente dentro da própria
10
11
Idem.
Referências aos indígenas são encontradas em documentos diversos, relatos, cartas régias e também são
conservados através da memória popular. Silva e Souza refere-se a oito grupos indígenas que teriam vivido em
Goiás, à época da mineração: Caiapós, Xerente, Goyazes, Crixás, Araés, Canoeiros, Apinagés, Capepuxis.
SILVA E SOUZA, Luiz Antonio da. Memória sobre o Descobrimento, Governo, População e Coisas mais
Notáveis da Capitania de Goiás. Goiânia, Ed. Oriente, 1978. pp. 126/7. A reprodução do texto constitui o
anexo nº 4, no final do trabalho. Citado em PALACIN, Luis, GARCIA, Ledonias Franco e AMADO, Janaína, op.
cit. pp. 13-15.
16
Capitania, as populações atraídas pelo ouro foram as que formaram o embasamento do povo
goiano.
A assimilação de elementos da cultura negra e indígena foi um processo natural já que
eles estavam na base da própria sobrevivência. Elementos indígenas e negros foram
naturalmente formadores de um processo cultural. Alimentação, vocábulos, concepções de
mundo foram simplesmente disseminados na população dos séculos XVIII e XIX. A herança
cultural, tanto negra como indígena proliferou por todos os segmentos da sociedade.
A influência mais pontuada foi a do português. Ocupando as mais elevadas posições
em um sistema de hierarquia social, era portador de uma cultura mais elaborada. Geralmente
letrado, iniciado nas ciências, trazia uma bagagem cultural que não era facilmente assimilada
por todos os componentes da sociedade. A cultura do europeu, tomado no sentido de seus
modos de fazer, sentir e pensar, ficou mais restrita às camadas mais ricas da sociedade.
As estruturas burocráticas implantadas em Goiás foram herdadas de Portugal, o que
implicou também na implantação de uma estrutura de classes, apoiada em valores vigentes na
Metrópole. Mesmo reconhecendo que a base das classes não é dada por valores, regras,
normas, mas por um pertencimento efetivo em um processo de produção, considero que um
sistema de status, que por sua vez se originara das classes sociais, foi transplantado para o
Brasil.
O pertencimento dos governadores a uma nobreza portuguesa influenciou na
construção dos modelos de status em Goiás, o que, de certa forma perdurou, mesmo com a
decadência da produção aurífera. Os laivos de requinte que alguns historiadores relatam são
um pouco a expressão do ―ser nobre‖. E foram conservados pela população, se bem que
restritos a poucas camadas da sociedade.
As elites que se constituíram em Jaraguá, no período mineratório, priorizaram alguns
elementos como essenciais para que o indivíduo participasse dos círculos de poder: a
ascendência portuguesa; a vinculação à Religião Católica, enquanto instituição e o saber; a
erudição. Esses elementos se impuseram como diferenciadores em um processo de
estratificação social.
O século XIX deu continuidade ao processo de construção da sociedade goiana e, por
extensão, da jaragüense. Procurando a sobrevivência, uma vez esgotado o ouro, a população
17
desenvolveu uma incipiente atividade agrícola e pecuária, que garantiu a permanência e o
aumento demográfico.
Jaraguá situou-se entre os municípios que tiveram maior incremento populacional entre
os anos de 1872 e 1890. Vejamos os dados: Morrinhos: 207,3%, Pouso Alto (atual
Piracanjuba): 201,6%, Curralinho (atual Itaberaí): 85,1%, Rio Verde: 72,4%, Entre Rios (atual
Ipameri): 66,2%, Jataí: 62,5% e Jaraguá: 53,3%.12
Podemos enquadrá-lo como um antigo centro minerador que sobreviveu,
diferenciando-se de tantos outros que desapareceram completamente.
Podemos constatar, na História de Jaraguá, durante o século XIX, duas correntes
migratórias que ajudaram a engrossar a população daquela localidade e formaram parte
significativa da elite que deteve o poder durante todo o século XX. Uma primeira oriunda de
antigos centros mineradores os quais, entrando em decadência, não conseguiram se recuperar.
Estabeleceu-se em dois momentos: em fins do século XVIII e em meados do século XIX. Uma
segunda corrente migratória originária das regiões de povoamento mais recente, situadas ao
sul, sudeste e sudoeste de Goiás ou do Triângulo Mineiro, em Minas Gerais, teve lugar nas
últimas décadas do século XIX.
Através de casamentos, mesclaram-se famílias oriundas da elite local com elementos
que fizeram parte dessas correntes migratórias e/ou com seus descendentes. A análise dos
inventários de diversas famílias (e a seleção dos mais significativos, em termos de acumulação
de bens) permitiu a elaboração de uma listagem das famílias que conseguiram se sobressair
economicamente.
Por outro lado, a partir de entrevistas, conseguimos levantar, através da memória
popular, indicações de pessoas ou famílias que exercem o poder na região. Cruzando as duas
informações, traçamos um perfil das famílias e/ou indivíduos que tiveram poder econômico e
exerceram influência política na vida da localidade.
A transferência entre antigos centros mineradores foi procedimento comum já que
alguns arraiais sobreviveram e outros acabaram por completo. Documentos mostram que teve
significação para Jaraguá, a vinda de pessoas oriundas da Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição de Traíras. Os Álvares da Silva eram originários daquele antigo centro minerador.
12
Fonte: FRANÇA, M. de S. Povoamento do Sul de Goiás: 1872-1900; estudo da dinâmica da ocupação
espacial. Goiânia, UFG, mimeografado p. 89. Citado por ALENCAR, M. Amélia Garcia de Estrutura
Fundiária de Goiás: Consolidação e Mudanças (1850-1910). Goiânia, Ed. UCG, 1993, p. 52.
18
O Padre Silvestre transferiu-se para Jaraguá no final do século XVIII.13 Nasceu no arraial de
Cocal, filial da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Traíras, localizado ao norte de
Goiás, em 1773. Filho do Capitão Manuel Álvares da Silva e de D. Francisca Machado
Ferreira. Era filho ilegítimo e, posteriormente, foi reconhecido pelo pai.14 Foi conduzido por
este a Jaraguá, ainda no século XVIII. Preparou-se para o sacerdócio no Rio de Janeiro e
voltou a Jaraguá onde trabalhou ininterruptamente desde o início do século XIX até próximo à
sua morte que ocorreu em 1864. Exerceu uma influência decisiva sobre os habitantes de
Jaraguá, o que pode ser percebido pela religiosidade do jaragüense, até meados do século XX.
Os relatos sobre ele tratam-no como uma pessoa inteligente e culta. Saint-Hilaire hospedou-se
em sua casa em 1819, e fez elogio ao seu preparo intelectual. 15
Entre 1805 e 1834, o padre Silvestre assinou as certidões de batismo e de óbitos como
capelão. A partir de 1834 passa a assinar como vigário. Em 1822 foi eleito deputado
constituinte pela Província de Goiás. Seguiu para o Rio de Janeiro, colocando-se ao lado de
Álvaro José Xavier, José Rodrigues Jardim, Inácio Soares de Bulhões, Padre Luiz Gonzaga de
Camargo Fleury e outras figuras da política goiana. Retornou a Goiás em 1824, reassumindo,
em Jaraguá, as suas funções junto à população.
13
As pesquisas que resgataram a pessoa do Padre Silvestre e a sua importância para Jaraguá foram realizadas
primeiramente por Joaquim Militão, morador de Jaraguá . Posteriormente outros estudos foram desenvolvidos
por Dulce Madalena Pedroso e por Fabiano de Castro. Maria Helena Romacheli publicou, recentemente, um livro
sobre Jaraguá que, segundo ela, foi fruto de 20 anos de pesquisas. Este também resgata a figura do Padre
Silvestre. Trata-se do livro: ROMACHELI, Maria Helena de Amorim. História de Jaraguá. Goiânia, Ed. Kelps,
1998. Foram encontradas assinaturas do Pe. Silvestre em todos os Registros Paroquiais realizados em Jaraguá
entre 1856 e 1860. Arquivo do Patrimônio Público Imobiliário da Procuradoria Geral de Goiás. Registro
Paroquial da Paróquia de Nossa Senhora da Penha da Vila de Jaraguá, livro nº 8. Abertura em 20 de agosto de
1856 e fechamento em 2 de abril de 1860.
14
―Eram o Padre Manoel Álvares da Silva e seus irmãos, segundo o maior genealogista que Goiás já teve até o
presente – Jarbas Jayme – filhos ilegítimos do português Manuel Álvares da Silva e de sua escrava, negra da
nação Mina, Francisca Machado. O português, porém, originário da freguesia de Alvarenga, arcebispado de
Braga, residente em Cocal, onde lhe nasceram os filhos mulatos lá pelos idos de 1770, cuidou da educação dos
filhos, dois deles formados padres, o Manoel, que recebeu Pohl em Traíras e o Padre Silvestre Álvares da Silva,
também mulato, vigário nessa época do arraial de Jaraguá, que (...) ali recebeu o francês Auguste de SaintHilaire... [nesse mesmo ano de 1819]‖ BERTRAN, Paulo, História de Niquelândia. Do Distrito do Tocantins
ao Lago de Serra da Mesa. Brasília, Verano Editora, 1998, p. 88.
15
―Eu já tinha ouvido falar dele no Rio de Janeiro, onde era conhecido por seu pendor para Matemática. Fizera
seus estudos nessa cidade e, além de sua ciência favorita, aprendera um pouco de Grego e Filosofia. Sabia
também Francês e tinha em sua biblioteca, alguns livros de nossos autores.‖ SAINT-HILAIRE, Auguste de.
(1779-1853) Viagem à província de Goiás. Tradução de Regina Regis Junqueira. Apresentação de Mário
Guimarães Ferri, Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, São Paulo, Ed. da USP, 1975.p. 43.
19
Na avaliação de um estudioso sobre Jaraguá, Joaquim Militão, o Padre Silvestre teria
exercido o comando político e social de Jaraguá até à sua morte.16
O padre Silvestre não deixou descendentes e nem foram encontrados documentos que
tratam de algum envolvimento seu com mulheres, diferentemente do comportamento de vários
padres que o sucederam, em Jaraguá. Esse fato talvez possa ser traduzido em uma dedicação
maior à causa religiosa.
O padre Manoel Álvares da Silva era irmão do Padre Silvestre. Não encontrei
evidências de que ele tivesse se transferido para Jaraguá para exercer a função de sacerdote.
Talvez tenha se mudado para lá, já mais idoso e permanecido anônimo. Seus pais, no início do
século XIX viviam em Jaraguá com o Pe. Silvestre.
No início da década de 40 do século XIX, transferiu-se para Jaraguá, também oriunda
de Traíras, uma grande família que viria a ter uma participação política significativa na vida
daquela cidade: os Ribeiro de Freitas. Eram de origem portuguesa, pertencentes às camadas
brancas e escravocratas da sociedade. A família migrou seguindo o Padre Manoel Ribeiro de
Freitas Machado. Deslocaram para Jaraguá toda a escravaria que lhes restara do tempo da
mineração. 17A saída dessas famílias de Traíras agravou a situação de decadência em que ela
se encontrava. Pela Lei Provincial n.º 506 de 23 de julho de 1863, foi Traíras, incorporada ao
município de São José do Tocantins.18
Presume-se que a família Ribeiro de Freitas chegou a Jaraguá, mais ou menos em
1840. O primeiro registro de batismo assinado pelo Padre Manuel Ribeiro de Freitas, como
reverendo coadjutor do Padre Silvestre, data de 25 de outubro de 1841.19 Como ele já exercia
o sacerdócio em Traíras, conforme atesta Paulo Bertran, deve ter iniciado suas funções
religiosas logo que chegou a Jaraguá.
O Padre Manuel Ribeiro levou consigo muitos parentes para Jaraguá e um grande
número de escravos. Além disso, ele próprio constituiu família e deixou uma grande
16
Entrevista concedida por Joaquim Militão, em 23/05/97.
―Mais tarde encontramos como vigário (1819), o Padre Manoel Álvares da Silva [irmão do padre Silvestre] e
como seu coadjutor o Padre Manuel Ribeiro de Freitas...―Esses padres, verdadeiros sustentáculos da comunidade
de Traíras (como nô-lo atesta o Dr. Pohl), mudaram-se depois para Jaraguá, levando consigo grande parte dos
moradores; entre os quais os Álvares e os Freitas, donos desse pedaço do mundo, até a chegada dos Castro e
Rios, em fins do século XIX.‖BERTRAN, Paulo. História de Niquelândia... p. 68.
18
Idem. p. 69.
19
Documento do Arquivo Paroquial, conservado por Joaquim Militão. Registro de Batismo. Livro B-8.
17
20
descendência. Apoderaram-se de terras na região e passaram a exercer influência naquela
localidade.20
A família Freitas passou a fazer parte das camadas dominantes desde que se instalou
em Jaraguá.21 Durante todo o século XX, seus descendentes disputaram o poder naquela
localidade.
A transferência de um antigo centro de mineração que decaía para outro que conseguia
sobreviver, não representava mudanças significativas nas concepções de mundo e nas
expectativas com relação à vida, pois as populações das duas localidades se equiparavam.
Nesse sentido, os antigos sonhos de riqueza, as lendas acerca do ouro certamente foram
reforçados na população que chegava e na que acolhia. Era a troca dos sonhos, o compartilhar
das lendas, uma consciência coletiva, forjada nos idos da mineração e compartilhada pela
população desses centros mineradores.
Se essa corrente migratória representou para os habitantes de Jaraguá e os que
chegaram, a possibilidade de uma vivência cultural intensa, não significou a aquisição de
elementos novos, alheios à sua cultura. As origens da população, de um e do outro lugar, eram
semelhantes. Certamente as experiências de vida, devido à atividade econômica comum que
predominou nas duas localidades, se equiparavam.
No final do século XIX, transferiram-se para Jaraguá, tropeiros, oriundos de Minas
Gerais, principalmente de Uberaba.
As correntes migratórias do final do século XIX tiveram uma origem diversa das
anteriores. Foram oriundas da região da antiga Farinha Podre, quando tropeiros chegam a
Jaraguá, buscando terras para expandir a criação de gado.
20
Foram encontradas quatro glebas em nome da família Ribeiro de Freitas: propriedade Capão e propriedade
Raizama, ambas de Antonio de Freitas Machado; Tapera Bernardo Lemes e uma chácara, ambas pertencentes a
Manoel Ribeiro de Freitas. Registros Paroquiais da Paróquia de N. S. da Penha de Jaraguá., Livro nº 8.
21
O inventário de Antonio Ribeiro de Freitas, mostra que ele deixou, entre outros bens, imóveis, gado, ouro e
numerosas mercadorias para comercialização como: peças de tecidos, fazendas de cores e padronagens diversas,
ferragens (argolas, freios para animal, ganchos de metal), estribos de prata, chumbo, xícaras, utensílios de cobre,
etc. Tudo indica que também era comerciante. Deixou numerosa descendência, destacando-se Baltazar de Freitas,
que conduziu uma facção política em Jaraguá, até meados dos anos 30, quando faleceu. Fonte: Inventário de
Antonio Ribeiro de Freitas, datado de 1º de dezembro de 1875. Juízo de Órphãos, Villa de Jaraguá. Inventariante:
a viúva Pacífica Soares de Camargo Freitas. O processo não é numerado e está arquivado no Cartório de Família,
Sucessões e 1º do Cível, de Jaraguá.
21
Tendo ainda em suas concepções, a valorização da riqueza aurífera, a população de
Jaraguá via com desprezo o trabalho desses tropeiros.22 Como herança dos idos da mineração,
a agricultura e a pecuária eram encaradas como atividades de pouco prestígio.
Entretanto, esses migrantes oriundos de Minas Gerais, trouxeram uma mentalidade um
pouco diferente da que prevalecia nessas antigas regiões mineradoras. Provenientes de áreas
que mantinham uma articulação maior com os centros dinâmicos da economia, tinham uma
visão diferente a respeito do trabalho na lavoura e na pecuária.
Dentre os que migraram, um constituiu-se em elemento formador de uma família que,
mais tarde, conquistou o poder econômico e político em Jaraguá. Chamava-se Antônio de
Castro Ribeiro, que deve ter chegado a Jaraguá entre 1870 e 1875, contraindo núpcias com D.
Josefa Gomes Pereira da Silva23. O primeiro documento encontrado, referente a Antonio de
Castro Ribeiro, foi a certidão de nascimento de seu filho Diógenes, registrada em 03 de abril
de 1879. A data de nascimento era 10 de outubro de 1878.
A determinação de enriquecer, desse tropeiro, transformou-o, dentro de alguns anos,
em proprietário rural. O inventário de Antonio de Castro Ribeiro, aberto em 20 de abril de
1900, mostrou que o inventariado deixou uma grande quantidade de bens móveis, imóveis e
gado.24 Os bens foram avaliados num total de 117:739$808, que constituía grande soma para
a época. 25
O inventariado deixou, entretanto, uma quantidade muito grande de dívidas,
principalmente em forma de empréstimos contraídos a juros, totalizando-se 98:496$742. Entre
22
Nas entrevistas realizadas com antigos moradores de Jaraguá, quando perguntados sobre a origem de Diógenes
de Castro Ribeiro ou Tubertino Ferreira Rios, eles respondiam em um tom baixo de voz, quase sussurrando, que
eram tropeiros ou filhos de tropeiros. Um indisfarçável desprezo, principalmente se os entrevistados eram filhos
de famílias mais antigas, oriundas do período da mineração. Para evitar possíveis constrangimentos, omitiremos
os nomes dos entrevistados.
23
Josefa Gomes Pereira da Silva era viúva de Manuel Ribeiro de Freitas Machado, filho do Padre Manuel
Ribeiro de Freitas. Com esse primeiro marido, ela teve um filho em 1873, chamado Evaristo e outro em 1875,
chamado Manuel. Ela ficou viúva e contraiu novas núpcias com Antonio de Castro Ribeiro entre 1875 e 1878.
Portanto, o tropeiro deve ter chegado a Jaraguá um pouco antes desse período. Certidões de Batismo do Arquivo
Paroquial de Jaraguá, copiados e preservados por Joaquim Militão. Folhas 28 e 28-a.
24
Bens móveis: carros de boi, armas, foices, barras de ferro, etc. Semoventes: 107 vacas paridas, 220 vacas
solteiras, 86 bois, 27 garrotes, 49 bezerras, 42 bezerros, 1 burro, 1 besta, e 1 cavalo. Bens de raiz: 4 fazendas, 2
sítios, 12 tratos de terra em locais diversos, várias casas na cidade, lotes e pastos próximos à cidade. Fonte:
Inventário de Antonio de Castro Ribeiro, datado de 20 de abril de 1900. Responsável: Desembargador Olympio
da Silva Costa. Arquivado no Cartório de Famílias, Sucessões e 1º do Cível de Jaraguá.
25
Para se ter uma idéia do valor dos bens deixados, pode-se comparar o total, quase 118 contos de réis, com
alguns itens do inventário. A fazenda mais cara, denominada Bonifácia, foi avaliada em 5:000$000 e as 107
vacas paridas em 4:280$000. Fonte: Inventário já citado.
22
seus credores, o inventário relacionou os filhos de Antonio José Caiado e Francisco Leopoldo
Rodrigues Jardim (Presidente de Goiás, entre 1895 e 1899), moradores da capital. Os
herdeiros de Antonio José Caiado (este havia falecido recentemente) recorreram à justiça,
solicitando aos inventariantes que os bens fossem a leilão e que os credores fossem pagos em
dinheiro. A ação foi ganha, mas após a realização de três leilões os bens não foram vendidos.
Os credores concordaram, então, em receber a dívida em forma de bens móveis ou imóveis. A
análise desse inventário nos mostra que a economia de Jaraguá era pouco mercantilizada, já
que a Justiça não conseguiu converter os bens em dinheiro a fim de saldar as dívidas deixadas.
Outra conclusão, que podemos retirar dos dados do inventário, é que Antonio Ribeiro de
Freitas acumulou muitos bens, mas, devido às dívidas, não deixara fortuna tão significativa.
Para a esposa, Josefa Gomes de Castro, coube 8:656$033 e cada filho recebeu de herança
apenas 1:442$672.
Um de seus filhos, Diógenes de Castro Ribeiro, aumentou muito a herança deixada
pelo pai. Tornou-se pecuarista, possuidor de enormes glebas de terra. Ocupou o cenário
político de Jaraguá em 1910 e reinou absoluto até 1930. A partir dessa época, disputou o
poder com outra família, os Freitas, por cerca de 30 anos.
Outro negociante de gado, que chegou a Jaraguá no final do século XIX, foi Tubertino
Ferreira Rios, nascido em Uberaba, em 1855. Casou-se com Maria Ignácia Macedo, filha de
tradicional família jaragüense. Adquiriu muita terra em Jaraguá e vizinhanças, transformandose, em poucos anos, numa figura respeitada e temida na região. Seu inventário, feito nos anos
30, arrola uma quantidade muito grande de bens móveis e imóveis, incluindo dezenas de
fazendas e tratos de terra, os quais foram adquiridos, de pouco a pouco, desde que ele se
transferiu para Jaraguá.26
Para compreendermos como esses antigos tropeiros ascenderam ao poder em Jaraguá é
necessário encarar as condições objetivas da época. A terra, em regiões mais isoladas, tinha
muito pouco valor. O preço era baixo, havendo ainda a possibilidade de apossamento de
26
A escritura do testamento do Cel. Tubertino Ferreira Rios foi registrada no Livro de Notas nº 86, fls. 87v a
88v., 1º traslado, por Argemiro P. de Amorim, Tabelião do 2º Ofício da Comarca da Capital do Estado de Goyaz.
Atualmente está arquivada no Cartório de Família, Sucessões e 1º do Cível, de Jaraguá.
23
terras. As leis que se propunham à regulamentação da estrutura fundiária não tiveram vigência
para Goiás.27
O modo costumeiro de se apoderar da terra, em Goiás, principalmente através da posse,
teria facilitado a esses tropeiros que chegaram a ocupação de enormes extensões de terras.
As famílias que se transferiram para Jaraguá em meados e no final do século XIX, ao
lado de outras já instaladas se constituíram nas camadas dominantes na região: os Félix de
Souza, Amorim, Carvalho, Gomes Pereira da Silva, Rios, Fonseca, Barbo de Siqueira,
Camargo e outras. O poder político ficou polarizado em grupos formados por essas famílias
mas dirigidos efetivamente pelos Castro, ou pelos Ribeiro de Freitas. Muitas vezes, o poder
executivo esteve preenchido por elementos alheios a essas duas famílias, o que não significou
o alijamento delas, do poder.
Foi fenômeno comum, para o início do século XX, não só em Goiás mas no Brasil, a
constituição das ―oligarquias‖ nos Estados e a presença de ―coronéis‖ em âmbito local. O
fenômeno intitulado pacto ―oligárquico-coronelístico‖ implicou na arregimentação de grupos
que mantiveram o poder, estabelecendo uma política de trocas entre poder local e estadual. O
grupo de apoio ao ―coronel‖, extrapolava os membros da família, congregando os
correligionários. A exemplo do que ocorria em outras localidades de Goiás, Jaraguá vivenciou
a presença dos ―coronéis‖.
A emergência do poder em Jaraguá, nos primórdios do século XX esteve relacionado e
dependente dos grupos que fortaleceram e assumiram o poder Estadual, a partir da
Proclamação da República. O fazendeiro que já despontava no município de Jaraguá, como
grande proprietário de terras, era Diógenes de Castro Ribeiro (Castrinho) o qual adquiriu
poder político na região.
Em Jaraguá, a cidade manteria o mesmo perfil até os anos 40. A enorme quantidade de
terras que esteve nas mãos da família Castro e de outras não resultou em melhorias no ensino,
27
A Lei n.º 601, de 1850, a chamada Lei de Terras havia instituído a compra como única forma de acesso legal
à terra. As antigas sesmarias, pelo texto da Lei, seriam passíveis de confirmação e as posses, ocupadas antes de
1850, poderiam ser validadas. O regulamento que criou as condições de aplicabilidade da Lei de Terras foi
decretado em 1854, como a Lei n.º 1318. Foi instituído o ―Registro Paroquial‖ com o fim de possibilitar ao
Império um levantamento da situação das terras. Através desse registro, pretendia-se estabelecer quais eram as
terras particulares e públicas já ocupadas, separando-as das terras devolutas. Estas poderiam ser vendidas pelo
governo, sendo a sua renda destinada à medição das terras e ao financiamento da transferências de migrantes
europeus para trabalharem nas lavouras de exportação, no Brasil, principalmente a cafeeira.
24
na saúde e nem transformações urbanas. Foi utilizada em benefício dos Castro e seus
correligionários e em nada ou muito pouco mudou o perfil do município.
A família Ribeiro de Freitas, que tinha prestígio desde a chegada de seus antepassados
de Traíras, indispôs-se com os Castro por ocasião da chamada ―Revolução Rubra‖, de 1909. O
elemento mais combativo, Baltazar de Freitas, uma vez vitoriosa a Revolução, teve que deixar
a cidade às pressas. Fugiu para Bonfim (atual Silvânia) com a família e toda a criadagem,
herdada do tempo da escravidão. Posteriormente voltou a Jaraguá.
Estava criado o antagonismo político entre duas famílias (os Castro e os Ribeiro de
Freitas), que passaram a disputar o poder em Jaraguá, até recentemente.
A relação dos Intendentes de Jaraguá, no período posterior à Proclamação da
República, até os anos 30 não contempla, necessariamente, essas duas famílias. É que, até
1910, o seu poder ainda não estava estabelecido. Mesmo após 1910, outros elementos
participarão desses núcleos de poder, integrando um sistema coronelístico-oligárquico mais
amplo.
Da segunda metade do século XIX aos primórdios do século XX, a ocupação das terras
teve continuidade, de modo a possibilitar a ocorrência do fenômeno político resultante de uma
forma específica de ocupação da terra, que denominamos coronelismo e que deu sustentação
aos governos oligárquicos. O poder em Jaraguá foi fortemente marcado por este fenômeno.
A população goiana, nessa época, era predominantemente rural. O proprietário de
terras detinha o controle da maioria dos empregos disponíveis na sociedade. Ao mesmo tempo
em que monopolizava as oportunidades de trabalho, o fazendeiro mantinha uma clientela à sua
volta. O domínio econômico assegurava a manipulação das pessoas e conferia poder político
aos chefes locais.
Diógenes de Castro Ribeiro, chefe político de Jaraguá, a partir de 1910, aliou-se aos
Caiado. Através do domínio da terra, assegurou poder econômico e político, estabelecendo-se
como chefe local. Transformou-se em grande proprietário de terras no município e em áreas
circunvizinhas. Comercializava seu próprio gado e o de seus vizinhos, exportando-o
principalmente para Barretos (SP), através das estradas boiadeiras. Fazia comércio também
através da Estação Ferroviária de Roncador, exportando principalmente o arroz.28
28
Informações obtidas em entrevista realizada com o Sr. Joaquim Militão, em 23/05/97. À época o entrevistado
estava com 87 anos. Seu Arquivo são anotações esparsas, entremeadas de cópias de documentos.
25
3- Tradição e Identidade
A Revolução de 30, em Goiás, teve pouca repercussão sobre as relações sociais, de
maneira geral, em Jaraguá. A economia manteve-se assentada no setor primário e o grupo
político que detinha o poder durante a Primeira República estabeleceu alianças políticas para
manter o domínio do município, no período pós-30. Não ocorreram grandes mudanças no
interior da sociedade e, para utilizar uma linguagem durkheimiana, mantém-se uma
consciência coletiva herdada dos idos da mineração e dos tempos difíceis da decadência do
ouro. O entrosamento econômico com outras regiões do país, propiciado pelo gado que se
auto-transportava, não quebrara o relativo isolamento daquela localidade. O passado
manifestava-se fortemente na vida da população, informando os comportamentos a serem
seguidos. A presença da Igreja Católica mantinha a população fiel aos preceitos tradicionais.
As dificuldades de comunicação com outros centros condicionavam, através dos anos, uma
vida social e cultural muito peculiar. As festas eram momentos privilegiados de expressão de
uma consciência coletiva. Ao mesmo tempo em que propiciavam momentos de lazer para a
população, representavam um reforço de atitudes habituais da comunidade e assim
estabeleciam-se os elos do passado com o presente. As festas constituíam-se em momentos de
reafirmação da própria história. E esta mantinha-se profundamente influenciada pela Igreja
Católica. Não é por acaso que as celebrações religiosas eram os temas recorrentes das festas da
cidade.
“As festas de tradição do município são: de São Sebastião, que se realiza a
20 de janeiro; do Divino Espírito Santo [sem data fixa] e de Nossa Senhora
da Penha, a 8 de setembro.
“São todas elas bastante animadas, movimentando a cidade.
“Vem os habitantes da zona rural e, nesta ocasião, fazem-se casamentos,
batizados e crismas. Antigamente a Festa do Divino, cheia de tradição, era
famosa e concorridíssima. Celebravam a cavalhada, dança ritual de
cavaleiros. Estes possuíam vestes próprias e a Festa transcorria na maior
animação possível. Hoje, já um tanto modificada, e mesmo modernizada pelo
correr dos tempos, não possui o brilho que lhe davam aquelas cerimônias.”29
Este texto do IBGE foi divulgado em 1958 e mostra que nessa época as festas já faziam
parte de um passado, apesar da maioria delas ainda serem celebradas. Esse ―brilho‖, ao qual o
29
IBGE. Enciclopédia dos Municípios..., op. cit. p.
26
texto se refere, era o resultado de um momento importante de confraternização e encontro
daquela população. As festas religiosas constituíam-se nos momentos em que a população
encontrava a sua própria história e ajustava as contas com a sua tradição. Eram momentos para
os quais a população toda se preparava. Era a reafirmação da própria identidade (religiosa e
tradicional), assentada nos costumes herdados ainda dos idos da mineração. Constituíam
momentos importantes de reafirmação da própria trajetória. Informava, novamente, a cada um,
o seu papel, a sua importância, a sua significação naquele meio social. Por isso, as festas
religiosas possuem também suas hierarquias. Elas reproduzem a sociedade que é
hierarquizada. As festas constituíam, para a sociedade, momentos de explicitação de si mesma.
Era, por excelência, a ocasião em que os padres reafirmavam a sua condição de pastores, de
condutores da consciência. Elementos da elite assumiam a condução material das celebrações.
Geralmente os ―festeiros‖ eram recrutados entre os proprietários rurais.
Muitas vezes, havia disputas entre os chefes políticos locais para a condução das
cerimônias. Um exemplo ilustrativo desse fato nos foi narrado por Clotário de Freitas: Jaraguá
teve duas bandas de música, durante as primeiras décadas do século XX. Uma banda
denominada Santa Cecília era formada por Baltazar de Freitas, descendente da família Freitas,
oriunda de Traíras. Os integrantes da outra banda eram ligados ao chefe político local,
Diógenes de Castro Ribeiro. Este nada entendia de música, mas dava apoio aos integrantes da
banda. As rivalidades políticas se acirravam, por ocasião das festividades ou comemorações
em Jaraguá. Cada uma das facções políticas queria se sobressair mais do que a outra. Era
comum, nas palavras de Clotário, que uma banda se posicionasse no início de uma procissão e
a outra no final. E cada uma tocava uma ―retreta‖ diferente, ao mesmo tempo. Às vezes, era
necessário o sacerdote intervir, para dar continuidade à cerimônia religiosa.30
Se os anos 30 significaram, para Jaraguá, a continuidade da sua própria história,
consideramos que os anos 40 apresentaram rupturas com o passado e sua tradição. Não que
tenha havido um rompimento total da sociedade com a sua própria trajetória. É que os anos 40
forçaram uma maior integração com outras regiões do país.
30
Entrevista concedida à autora, por Clotário de Freitas, em 25/02/97.
27
4- Mudanças.
O município de Jaraguá passou por mudanças econômicas, políticas e sociais
significativas, durante os anos 40. Nessa década, como reflexo da política da Marcha para
Oeste e do avanço da economia que se processava desde os anos 20, a região incorporou-se a
uma economia mais ampla. O município sofreu alterações fundiárias, percebidas através dos
dados fornecidos pelo IBGE. Sua produção alterou-se substancialmente, voltando-se mais
para o mercado, enquanto ocorria a regressão de atividades voltadas ao consumo local, em
especial a produção artesanal que quase desapareceu.
O vetor fundamental de mudanças teria sido a proximidade com a área de construção
da CANG – Colônia Agrícola Nacional de Goiás31. Essa proximidade fez com que os
funcionários contratados para trabalhar na burocracia da CANG se instalassem,
primeiramente, em Jaraguá. O coordenador desse projeto de instalação da Colônia Agrícola,
Bernardo Saião Carvalho de Araújo, relacionou-se muito bem em Jaraguá e ali constituiu
residência, bem como outros funcionários, nos primeiros meses de instalação da CANG.
Bernardo Saião era a própria encarnação do discurso de Getúlio Vargas. Otimista,
quanto às possibilidades de desenvolvimento do país, Saião acreditava em um projeto de
integração nacional, através da construção de estradas e da integração de diferentes
comunidades. Partilhando da visão de Vargas, de aproveitar elementos regionais para construir
a unidade da nação, esse engenheiro encantava as pessoas pelo seu otimismo e crença na
construção de um Brasil forte e economicamente integrado. Saião enxergava nos habitantes
dessas localidades, dispersas pelo Brasil, os construtores de um processo de integração do
país. Todos se tornavam co-autores desse empreendimento.
Essa visão de Bernardo Saião, em harmonia com o discurso de Vargas, não
privilegiava a existência das classes sociais. O empreendimento era coletivo, visando ao
desenvolvimento social e assentava-se no trabalho compartilhado. É por isso que, na
construção da CANG, Bernardo Saião estabeleceu uma direção e uma execução do projeto,
voltados para uma construção em conjunto. Nas duas primeiras décadas da construção da
31
A CANG - Colônia Agrícola Nacional de Goiás, atual cidade de Ceres-Go., foi criada na ―Região do Mato
Grosso de Goiás‖, dentro do município de Goiás. A sede situava-se a 725 m de altitude e a região, como um todo,
em média, a 600 m. À época da criação da CANG, em 1941, a Região do Mato Grosso de Goiás localizava-se no
centro-sul do Estado de Goiás. Depois do desmembramento do estado do Tocantins, ao norte, a zona do Mato
Grosso localiza-se no centro do Estado de Goiás.
28
Colônia Agrícola, a direção entrava com os recursos e com as diretrizes gerais. Os
funcionários e a população de colonos implantavam, através de ações conjuntas, os projetos de
viabilização da CANG. Engenheiros ou colonos, todos trabalhavam intensamente no sentido
de criar uma nova realidade, em um trabalho conjunto, compartilhado. O próprio Saião,
enquanto dirigia o empreendimento com mão forte, era um funcionário ativo e engajado na
ação em comum.32
Essa ideologia da crença em um processo de integração, da possibilidade de uma
construção conjunta, foi absorvida pelas elites de Jaraguá, principalmente pelos que se
encontravam na oposição política. Uma das mudanças políticas que Jaraguá conheceu após a
Revolução de 1930, foi o fortalecimento de uma oposição ao grupo de poder liderado por
Diógenes de Castro Ribeiro. Grupos de oposição, nos anos 40, põem em prática um discurso
visando à possibilidade do desenvolvimento, sensibilização da juventude, mobilização para a
construção. O slogan da cidade passou a ser: ―Avante, juventude‖.
O único jornal que Jaraguá editou, até meados daquele século, foi criado nessa época.
Denominou-se ―Avante‖ e era dirigido por um jovem intelectual, ex-seminarista, Eloy de Faria
Mello. Era filho de mineiros que se dirigiram para o Mato Grosso de Goiás, atrás de terras. O
jornal, que circulou em 1946, expressava o momento vivido pela cidade. Herdeiro do
otimismo de Getúlio Vargas e Bernardo Saião, procurava fazer uma leitura da realidade na
qual estava inserido e apontava caminhos para transformações de ordem política, econômica e
social. Foi criado nesta época o primeiro colégio com ensino ginasial, que representou um
grande avanço para a cidade. Criou-se também o hospital maternidade, que passou a servir às
regiões circunvizinhas.
O que ocorreu desde o início dos anos 40 foi que a população de Jaraguá entrou em
contato com os integrantes da ―Caravana da Colônia‖. Por outro lado, a notícia dos projetos de
colonização atraía migrantes, principalmente de Minas Gerais, para essa região do Mato
Grosso de Goiás, colocando em contato a população com pessoas vindas de diferentes lugares,
com uma intensidade ainda não experimentada.
Jaraguá sofreu o impacto de influências vindas de fora. Alterou-se a vida política e
social da população. Mudanças econômicas, que se processavam, provocaram inclusive
32
Sobre a implantação da CANG foram realizadas entrevistas com Alberto José Longo, em 24/04/93 e com
Alberto Longo, em 25/04/93.
29
alterações físicas, tanto na estrutura fundiária quanto na configuração do próprio município.
Antigos distritos, antes pertencentes a Jaraguá, cresceram e muitos sobrepuseram ao município
de origem. Entre os distritos que se emanciparam, podemos destacar a localidade de Calção de
Couro, que deu origem ao atual município de Goianésia.
4.1- Caracterização e Desmembramentos do Município de Jaraguá
Jaraguá originou-se do antigo povoado de Nossa Senhora da Penha de Jaraguá e se
transformou em Vila pelo Decreto nº 8, de 1º de julho de 1833, desmembrando-se do
município de Meia Ponte (hoje Pirenópolis). Foi elevada à categoria de cidade pela Lei
Provincial nº 666, de 29 de julho de 1882, recebendo o nome de Jaraguá.33
O município de Jaraguá teve sua conformação modificada ao longo dos séculos XIX e
XX. Por ter um povoamento muito antigo e ter sido região aurífera, englobava uma vasta área,
até fins do século XIX. Durante o século XX foi, gradativamente, perdendo povoações e
localidades, que se constituíram em distritos e depois em municípios.
Já pertenceram a Jaraguá os atuais municípios de São Francisco de Goiás, Petrolina,
Uruana, Goianésia, Itaguaru, Rianápolis, Rialma e Santa Isabel. Alguns eram povoados muito
antigos, como São Francisco das Chagas (hoje São Francisco de Goiás) e Petrolina. Muitos
dos antigos distritos foram criados nos anos 30 e 40 do século XX e foram emancipados
depois de 1940.
A sede, Jaraguá, é o núcleo mais antigo, tendo surgido no início do processo de
povoamento de Goiás.
São Francisco das Chagas surgiu por volta de 1740 e em 1911 já aparece como distrito
de Jaraguá.34 Somente nos anos 50 foi elevado à categoria de município. Emancipou-se de
Jaraguá pela Lei Estadual nº 768, de 8 de setembro de 1953, com o nome de São Francisco de
Goiás.
Petrolina de Goiás surgiu por volta de 1919, quando Teolino Pedro e sua mulher, Maria
Pedro, doaram terras para a formação do Patrimônio. Pelo Decreto nº 59, de 8 de junho de
1932, elevou-se a distrito, integrando o município de Jaraguá. Pelo Decreto-Lei Estadual nº
8.305, de 31 de dezembro de 1943 passou o distrito a denominar-se Goialina. Pela Lei
33
34
IBGE. Enciclopédia dos Municípios..., op. cit. p. 255.
Idem, pp. 405/7.
30
Estadual nº 153, de 8 de outubro de 1948, foi elevado à categoria de município, com o nome
de Petrolina de Goiás, sendo Termo de Comarca de Jaraguá. Elevou-se à categoria de
Comarca pela Lei Estadual nº 698, de 14 de novembro de 1952.35
Uruana foi fundada por José Alves Toledo, em 1938. A localidade desenvolveu-se
junto e por força da CANG. José Toledo, em 20 de janeiro de 1940, doou 10 alqueires de sua
fazenda à Arquidiocese de Goiás, para a edificação do Patrimônio. Em 31 de dezembro de
1943, a Lei Estadual nº 8.305 criou o distrito de Uruana. Em setembro de 1948 foi elevado a
município pela Lei Estadual nº 132, passando a constituir Termo da Comarca de Jaraguá. Em
14 de novembro de 1952 foi elevado à Comarca, também pela Lei Estadual de nº 708.36
Rialma foi criada por volta de 1940, juntamente com a CANG. Surgiu como a ―cidade
livre‖ da Colônia, recebendo o excesso de migrantes que procuravam terras junto à
coordenação do projeto de colonização. Estando fora da área de assentamento dos colonos,
não se submetia às rígidas normas impostas por Bernardo Saião e que vigoravam no interior
do projeto. Rialma foi elevada à categoria de Distrito pela Lei Municipal (de Jaraguá) nº 11,
de 21 de agosto de 1948. Foi elevada a município pela Lei Estadual nº 753, de 16 de julho de
1953. Em 1958 era Termo da Comarca de Ceres.37
Goianésia era denominada Calção de Couro.38 Foi povoada a partir de 1920, quando
uma neta de Antonio Manuel de Barros, casada com Ladislau Mendes Ribeiro, mudou-se para
essas terras, que eram conhecidas até então como ―Calção de Couro‖. Manuel de Barros havia
feito o Registro Paroquial de cerca de 5.000 alqueires goianos, em 1857. Esta localidade foi a
que mais se desenvolveu dentro do município de Jaraguá.
Itaguaru e Rianápolis, que hoje são emancipados, aparecem na publicação do IBGE, de
1958, como distritos de Jaraguá.39 No Censo de 1960 já aparecem como municípios.
35
Idem, p. 337.
Idem, p. 438.
37
Idem, p. 385.
38
Informação fornecida em 22/05/99, pelo Dr. Cornélio de Amorim, Juiz de Direito aposentado e residente no
município de Jaraguá. Contida também em IBGE, Enciclopédia dos Municípios, op. cit.
39
De acordo com a Enciclopédia dos Municípios, em 1958 pertenciam a Jaraguá os seguintes distritos: Itaguaru,
Alvelândia, Cirilândia, Colônia São José, Lavrinhas de São Sebastião, Mirilândia, Monte Castelo, Rianápolis,
Terra Vermelha e Santa Isabel. No Censo de 1980, destes distritos, somente Itaguaru e Rianápolis aparecem
como municípios. Consequentemente, os demais continuaram como distritos de Jaraguá. Nos mapas elaborados
após a divisão do estado de Goiás, em 1988, com a criação do estado do Tocantins, Cirilândia aparece como
distrito do município de Santa Isabel e Castrinópolis como parte do município de Rialma. Fontes: IBGE. VII
Recenseamento Geral do Brasil. Série Regional, vol. II, Tomo XIV, 2ª Parte, 1960; Censo Demográfico. Dados
36
31
Estes municípios citados já passaram por transformações perdendo parte de seu
território na constituição de novos municípios como Jesúpolis e outros.
4.2- Transformações e Permanências.
As mudanças de ordem econômicas que o município de Jaraguá vivenciou, durante os
anos de 40, refletiram-se na política e na vida do município, de maneira geral.
A transferência da família Machado de Siqueira para a localidade de Calção de Couro
teve reflexos em Jaraguá. O Dr. Jales Machado era engenheiro e foi contratado por um rico
negociante jaragüense, Diony Gomes Pereira da Silva, para construir uma hidrelétrica de
pequeno porte, no rio Pari, nas proximidades da cidade. Diony Gomes havia vendido as terras
para Dr. Jales abrir a fazenda Itajá, onde se localiza a atual cidade de Goianésia. A usina foi
inaugurada em 1941, no mesmo ano em que Bernardo Saião se instalara em Jaraguá, para
iniciar a abertura da BR-014 e começar a construção da CANG.
Quando a caravana chegou à Jaraguá, a cidade já estava servida por energia elétrica. O
escritório da Colônia Agrícola foi montado em Jaraguá. Toda a burocracia veio transferida do
Rio de Janeiro. Os dirigentes e os funcionários de escritório, na maioria cariocas, se instalaram
com suas famílias na cidade. Iniciava-se uma movimentação visando à instalação da CANG.
O resultado, para Jaraguá, foi a dinamização de seu comércio e dos serviços.
Há um interessante relato sobre essa fase da vida da cidade:
“... vieram de Pirenópolis duas lojas de tecidos: uma do Cel. Chico de Sá e
outra de João Basílio de Oliveira. Vieram várias pensões como a de João
Francisco, Géla, seu Vicente de Melo e outras. Clóvis Miranda montou um
bar com sorveteria. Bili Camargo montou padaria e rádio-amplificador.
Vieram vários barbeiros. Diony [Diony G. Pereira da Silva] montou mais
uma loja e um armazém na cidade, loja em São Francisco, Petrolina,
Uruana, Castrinópolis. Pôs máquina de beneficiar arroz em Jaraguá.
Comprou caminhão e comprava os cereais produzidos na região. Pôs cinema
e construiu várias casas para alugar. Nos loteamentos novos comprou muitos
lotes e dizia que não gostava do progresso porque este era inimigo dos
homens do lugar. E foi uma realidade. O homem tinha uma visão incrível!”40
Distritais. Recenseamento Geral do Brasil – 1980. Vol. 1, Tomo 3, nº 23, Rio de Janeiro, 1982; Mapa do Estado
de Goiás (Rodoviário, Político e Educativo) com os novos municípios. Goiânia, s/d (pós 1988
40
Trecho da entrevista com Joaquim Militão, em 23/05/97.
32
Percebe-se claramente, pelo relato acima, o desenvolvimento do comércio local,
aproveitando-se da movimentação propiciada pela passagem da ―caravana da Colônia‖ por
Jaraguá.
A direção do projeto dispunha da maquinaria necessária para o início dos trabalhos.
Durante o tempo em que residiu em Jaraguá, Bernardo Saião utilizou-se das máquinas para
promover os trabalhos de abertura de estradas, terraplanagem e até a construção de uma pista
de pouso de avião, com hangar. A BR-014 passava a pouco mais de um quilômetro da cidade.
Saião levou a rodovia até o centro. Preparou terrenos para loteamentos e alterou o aspecto
físico da cidade.
As pessoas da comitiva que acompanhava Saião, composta pelos funcionários da
colônia com suas famílias, passaram a vivenciar o cotidiano de Jaraguá. Participavam de
festas, solenidades religiosas, visitas aos moradores. Algumas famílias que faziam parte dessa
―caravana‖ permaneceram na cidade, mesmo depois da saída de Bernardo Saião, fixando ali
residência definitiva.
Essa passagem da comitiva foi um momento marcante na vida daquela população. Não
foram apenas os serviços, o comércio e os aspectos físicos da cidade que se alteraram. A
convivência da população com pessoas oriundas de outro meio, com uma mentalidade
diferente, com outros valores, tudo isso provocou um deslocamento nas concepções de mundo
daquela população. A antiga ―Vila de Jaraguá‖ foi retirada de seu cotidiano e deslocada para
um universo diferente, ainda não vivenciado por seus moradores. E o discurso mais bem
preparado, era o de Saião, levando adiante as propostas de Vargas. O entusiasmo pelo
desbravamento, a proposta de integração nacional, foram assimilados pelas elites locais,
principalmente pelas que faziam uma certa oposição à política tradicional, assentada no poder
dos antigos coronéis.
A família Freitas, tradicionalmente de oposição aos Castro Ribeiro, relacionara-se
muito bem com o Dr. Saião desde que ele se instalara em Jaraguá. Particularmente Clotário de
Freitas, que era o representante político da família.
“Saião era homem de muita ação. Correto, honesto. Trabalhador demais. E
entusiasmado com o seu trabalho. Ele pegava dinheiro para empregar na
estrada, pacotes de dinheiro e me pedia para guardar no cofre. Ele não
contava e nem eu. Às vezes eu falava:- „Leva a chave‟. Ele respondia: - „Não,
não tem necessidade‟. Ele confiava muito em mim. Então ficava lá esse
33
dinheiro, meses e meses, sem ele precisar. Depois ele vinha até minha
farmácia, pra conversar, e na saída dizia: - „Me dá um pouco do dinheiro.‟ E
eu insistia com ele pra contar e ele só dizia: - „Até logo, até logo‟. Mas era
correto. Muito boa pessoa. Muito meu amigo. Senti muito a sua morte.”41
É interessante lembrar que os Castro Ribeiro eram proprietários de terras e chefes
políticos locais exercendo forte poder sobre a população, de 1910 a 1930. A Revolução de 30
em Goiás, com a ascensão de Pedro Ludovico ao poder estadual, havia abalado as antigas
oligarquias de Jaraguá. Elas foram temporariamente afastadas do comando político em 1930,
mas retornaram três anos após, tendo conseguido o apoio político do Interventor federal. Entre
1934 e 1945, a prefeitura de Jaraguá foi ocupada por Antonio de Castro Ribeiro, irmão de
Diógenes de Castro Ribeiro, chefe político inconteste, em Jaraguá, desde 1910 até sua morte
em 1938. Entre 1945 e 1946 foi prefeito municipal o Sr. Diony Gomes Pereira da Silva,
descendente de tradicional família jaragüense. Aliado dos Castro, era sobrinho de Dª Isaura
Rios de Castro, esposa do Cel. Diógenes Ribeiro.
A partir de 1945, com o fim do ―Estado Novo‖, os partidos políticos organizaram-se
nacionalmente. Seguindo a tendência nacional, Goiás começou a definir um quadro partidário.
O Partido Social Democrático (PSD) foi formado em Goiás, congregando partidários políticos
do ex-interventor, Dr. Pedro Ludovico Teixeira, o qual se tornou presidente do Diretório
Estadual do PSD. Este partido teve o seu registro no Tribunal Regional de Goiás, em outubro
de 1945. Na mesma época, organizou-se a União Democrática Nacional (UDN), congregando
opositores, dissidentes e ex-colaboradores do Dr. Pedro Ludovico. A definição política em
Goiás tinha como parâmetro o apoio ou a oposição a Pedro Ludovico. Os dois partidos
nasceram inimigos entre si. Formada também em 1945, a UDN teve como primeiro presidente,
Domingos Neto Velasco, antigo colaborador e aliado político de Pedro Ludovico, desde antes
da Revolução de 30. Dissidências políticas levaram os dois homens públicos a se tornarem
inimigos.
Posteriormente, Domingos Velasco deixa a UDN para formar a Esquerda Democrática.
Quem passou a ocupar então a presidência da UDN foi o engenheiro e fazendeiro Jales
Machado Siqueira, proprietário de terras em Jaraguá. A Esquerda Democrática, em Goiás,
depois das eleições estaduais de 1947, integrou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB).
41
Entrevista concedida por Clotário de Freitas, em 04/02/97.
34
Também o Partido Comunista Brasileiro (PCB) se fez presente no estado, naquele
momento, com diretórios em 37 municípios goianos. Obteve o registro do Diretório Estadual
em 1945.
Em Jaraguá, acompanhando a tendência do estado, formaram-se os dois partidos: o
PSD e a UDN. O PCB também criou um núcleo comandado pelo Dr. Paulo Alves. Este
candidatou-se nas eleições de 19 de janeiro de 1947, pelo PCB, à Assembléia Legislativa.
Ficou como suplente e assumiu o cargo por ocasião do afastamento do deputado Afrânio
Francisco de Azevedo, em 14 de março de 1947.
Os Castro Ribeiro, que tinham o apoio político do Dr. Pedro Ludovico, desde 1934,
aderiram de imediato ao PSD. Os Ribeiro de Freitas que faziam oposição aos Castro se
aliaram à UDN. Em 1930, o trio político formado por Baltazar de Freitas, Elias Fonseca e
Tubertino Ferreira Rios havia conseguido a ascensão à prefeitura de Jaraguá. Só conseguiram
permanecer no poder até 1934. Tubertino Ferreira Rios deixou a oposição e se aliou
novamente aos Castro até sua morte, em 1936. O herdeiro da oposição política em Jaraguá foi
o filho de Baltazar de Freitas, Clotário de Freitas que formou um núcleo local da UDN, em
1945.
Em 1946, Manoel Demóstenes Barbo de Siqueira, genro de Diógenes de Castro
Ribeiro candidatou-se a um cargo eletivo na Assembléia Legislativa, pela UDN. A família
Castro Ribeiro, apesar de comandar o PSD em Jaraguá, emprestou apoio político a Manuel
Demóstenes, naturalmente pelos laços de parentesco.42 Os Ribeiro de Freitas, mais uma vez,
viram o seu espaço político invadido pelos Castro. Iniciaram uma série de intrigas junto ao Dr.
Pedro Ludovico com o objetivo de criar uma tensão entre o presidente do Diretório estadual
do PSD e a família Castro. Conseguiram, não só indispor o Dr. Pedro Ludovico com os Castro
mas também se apoderarem da sigla do PSD e passaram a apoiar a sua política no estado.
“Eles traíram o Dr. Pedro Ludovico e votaram todos no Manoel Demóstenes,
que era da UDN. Deixaram o PSD lá à míngua. Então o Dr. Pedro mandou
lá uma comissão composta pelo Paulo Fleury, Albatênio de Godoy e tinha
um terceiro nome que não me lembro. E disse a eles que procurassem o
pessoal dos Freitas para ver se eles aceitavam ficar com o Diretório.
“O Dr Pedro propôs aliança conosco: eu, Peixoto da Silveira, Eloy de Faria
Mello, Dr. Paulo Alves. Afastou o grupo todo dos Castro Ribeiro. O Dr.
42
Acontecimentos relatados em entrevista com o Sr. Manuel Demóstenes Barbo de Siquiera, em 09/05/97.
35
Paulo declarou: - eu sou comunista. Mas acho bom vocês participarem. Eu
colaboro com vocês, mas por fora do partido. Então nós aceitamos. E ele
realmente colaborou.”43
Em contrapartida, Pedro Ludovico, como presidente do Diretório Estadual do PSD,
interferiu junto ao interventor federal em Goiás, General Felipe Antonio Xavier de Barros 44
para que fosse nomeado o médico Dr. José Peixoto da Silveira como prefeito de Jaraguá. Dr.
Peixoto era casado com uma sobrinha de Clotário de Freitas, portanto, integrante dessa família
e teve todo o seu apoio político.
Perdendo o apoio de Pedro Ludovico, que mesmo afastado do governo estadual
continuava sendo o político com maior força no estado, a família Castro Ribeiro apropriou-se
da sigla da UDN, no município de Jaraguá, então comandada, no estado, por Jales Machado.
Este havia sido Secretário de Obras Públicas no governo de Alfredo Lopes de Moraes (19291930), ainda na era Caiado. Entretanto, era um político independente e, na época, dera apoio à
Aliança Liberal. Lutou em Minas Gerais, na Revolução de 30 e, indiretamente, apoiou a
ascensão de Pedro Ludovico ao poder em Goiás. Porém, posteriormente tornou-se um dos
maiores inimigos políticos de Pedro Ludovico. Jales Machado tinha sido amigo pessoal de
Diógenes de Castro Ribeiro. As famílias Machado de Siqueira e Castro Ribeiro mantinham
estreitos laços de amizade. Não foi difícil aos Castro, no início de 1946, apoderarem-se da
sigla da UDN, já que nessa ocasião, Jales Machado era atuante membro desse partido tendo
sido escolhido, logo em seguida o seu presidente.
Jaraguá vivia ainda a euforia da construção da CANG, em suas proximidades. O
entusiasmo pela abertura do projeto contagiava os habitantes da antiga vila mineradora. O
slogan que tomou conta da população de Jaraguá foi: ―Avante Jaraguá!‖. Data dessa época a
construção do primeiro hospital e do primeiro Ginásio e de uma Escola Municipal. Um artigo
na primeira página do primeiro número do jornal ―Avante‖ reflete esse momento vivido por
Jaraguá. O título do artigo foi ―Novos Horizontes‖, escrito pelo Dr. Peixoto da Silveira. A
própria criação de um jornal, em uma cidade que nunca tivera um órgão de imprensa, é
ilustrativa dessa euforia:
43
Entrevista com Dr. Clotário de Freitas, em 04/02/97.
Interventor federal em Goiás entre 18 de fevereiro a 4 de agosto de 1946 e entre 18 de agosto a 19 de setembro
do mesmo ano.
44
36
“Na plenitude do entusiasmo criador e encarnado no talento brilhante de
Elói de Faria Mello, a mocidade fundou este jornal. E pediu-me um escrito
inaugural.
O tempo (meu) é pouco. O espaço (do jornal) também.
Mas que vos preciso dizer?
Considerada por Carlyle como o quarto poder, realmente a imprensa é um
expoente de vitalidade. Reflete, como um espelho animado, as realizações do
presente e, mais ainda, orienta como bússola democrática, as diretrizes do
futuro.
Estamos, pois, de parabéns.
Abrem-se novos horizontes.
Velhos sonhos se realizam.
Jaraguá não quer ficar na retaguarda do progresso extraordinário, que
invade o nosso Estado.
Continuando a obra gigantesca e revolucionária de Pedro Ludovico
Teixeira, o General Felipe Xavier de Barros veio (...) trazer venerandas
reservas de energia ao seu estado natal (...)
E Jaraguá não quer ficar dormindo a noite do empirismo enquanto lá fora
canta a serenata do Progresso. E fundou-se o „Avante‟. (...)”45
É uma visão ufanista que retratava a predisposição da população para com o momento
vivido pela cidade de Jaraguá.
Ainda nesse primeiro número do jornal, uma coluna enaltecia a obra de construção do
Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, que estava sendo finalizado. A autora do artigo agradecia
ao Bispo de Goiás, D. Emanuel Gomes de Oliveira pela realização da obra. No entanto, fora a
comunidade de Jaraguá, que se havia se mobilizado para encaminhar à Igreja Católica as
providências no sentido da construção da escola. Era uma escola arquidiocesana.46
Uma carta de um leitor, ao jornal ―Avante‖, o coloca como um empreendimento do
porte da Rodovia BR-014 e da construção da hidrelétrica recém construída na cidade.
“São diversas as causas predominantes do desenvolvimento ostensivo de
Jaraguá, nestes últimos tempos. Uma delas foi, não há dúvida, a grande
estrada federal, construída pelo competente engenheiro Dr. Bernardo Saião,
nosso grande amigo.
Outra, sem dúvida nenhuma, a instalação da luz elétrica que veio espantar as
trevas dessas noites soturnas e melancólicas de outrora. Hoje, com que
alegria perambula por essas ruas brilhantes e fulgurosas, essa mocidade tão
45
Artigo de 1ª página do jornal ―Avante‖. Órgão Informativo Noticioso e Literário. Ano 1. Jaraguá (Goiaz), 9 de
junho de 1946. Nº 1, p. 1.
46
Informação conseguida em entevista com Clotário de Freitas.
37
descuidada e prazenteira, fazendo saudades àqueles que já se descambam
para o ocaso!
Agora surgiu mais um farol luminoso de progresso para os jaragüenses.
Refiro-me ao “Avante”, tão pequenino mas cheio de vigor (...).”47
Da mesma forma que via com entusiasmo o crescimento de Jaraguá, o jornal retratava
a evolução da CANG. Por ocasião da inauguração do Distrito de Ceres, sede da Colônia, que
ocorreu em 13 de outubro de 1946, o jornal ―Avante‖ publicou parte do discurso pronunciado
pelo Dr. Peixoto da Silveira.
“Vamos agora contemplar, apenas, o despontar desta vila, cheia de
vitalidade, plena de brasileirismo. Aqui estão homens de quase todos os
Estados do Brasil, nesse agrupamento simbólico, plasmando, talvez, um novo
tipo étnico, forjando sem dúvida o progresso de Goiaz (...).
Em parte, sem dúvida, é uma consequência do desenvolvimento ascencional
de todo o Estado. São cidades que se remoçam. Vilas que crescem num
desejo progressista de se tornarem cidades. Povoados que surgem com
casinhas que têm ainda a frescura da mão-de-obra e o instantâneo de um
desenho animado.
É o amanhecer de uma nova civilização, distante do litoral. Vai-se afastando
o sertão. O mapa vai ficando pontilhado. E o Brasil vai crescendo (...).
Mas, aqui, no feliz ensejo deste batismo cívico de Ceres, o fato que
inauguramos é mais importante ainda. Porque se trata de uma séde de uma
Colônia Agrícola. Porque Ceres é a séde deste magnífico sistema de fixação
do nosso homem à terra... Somente proporcionando justa oportunidade e
assistência digna aos agricultores, conseguiremos despertar energias que
dormem no seio da terra, enriquecendo o Brasil e valorizando o sertanejo
...”48
Posicionando-se claramente ao lado do PSD, o editorial do primeiro número do jornal
―Avante‖ ataca sutilmente o poder econômico e político que dominara a vida de Jaraguá,
durante toda a República Velha e que, a partir de 1946, tomara conta da sigla UDN.
“Não foi obra do acaso ou mero capricho do destino o aparecimento deste
jornal. Necessidades prementes o exigiram. O desenvolvimento de nossa
cidade, o progresso enfim, que começa a envolver com seu manto este
pedaço de Brasil, dantes dormitando o sono rotineiro de uma evolução
tolhida pelas garras de uma política retrogradante, pedia um porta-voz para
bradar aos quatro ventos os anseios e realizações do povo jaragüense.
47
48
Jornal ―Avante‖, Ano 1, nº 3, de 16 de julho de 1946.
Trecho do discurso pronunciado pelo Dr. Peixoto da Silveira, na inauguração do novo Distrito goiano de Ceres,
sede da CANG. ―Avante‖, Ano 1, nº 8, Jaraguá, 24 de novembro de 1946.
38
Propusemo-nos a satisfazer a esta necessidade (...) com a finalidade de
alcançar a meta desejada. Resolutos, porém, tomamos o nosso bordão e, de
peito erguido, havemos de marchar e lutar veronilmente, tendo por arma o
Direito, por escudo, a Justiça e por ideal, o Progresso de Jaraguá.”49
A situação política em Jaraguá, a partir de 1946, até 1966, esteve polarizada em torno
das famílias Ribeiro de Freitas, que mantinha o domínio da sigla PSD e os Castro Ribeiro,
partidários da UDN.
Com relação a todo o entusiasmo vivido nos anos 40, com o desenvolvimento
econômico do município e a euforia da construção da CANG, os Ribeiro de Freitas
conseguiram canalizá-lo para um projeto político próprio, da própria família. Aproveitando-se
do apoio político do Dr. Pedro Ludovico, o PSD jaragüense conseguiu se fortalecer e aumentar
sua influência em todos os distritos de Jaraguá e nos municípios próximos, localizados mais ao
norte, como Uruaçu.
“Jaraguá era muito ligado com os que foram distritos dele. Era muito ligado
com Uruana e com Goianésia, tanto que Jaraguá era a porta de entrada do
Vale do São Patrício. Nós é que dominávamos a política nesse tempo. Eu e o
Peixoto. Eles queriam escolher candidatos a prefeito lá em Uruaçu, por
exemplo e vinham até aqui para perguntar que candidato deveriam apoiar. E
a gente ia até lá e resolvia o problema. Acertava tudo, certinho. Jaraguá era
a porta de entrada da política. Agora não. Hoje Ceres está maior do que
Jaraguá. Eu acho que Goianésia também. Já passaram Jaraguá muitas
vezes, em população e tudo.”50
O jornal ―Avante‖, que foi publicado entre 9 de junho a 25 de dezembro de 1946, teve
nove números. Deu continuidade ao ideário desenvolvimentista contido nos discursos de
Vargas. Assimilou o discurso de articulação das regiões economicamente dispersas, de
integração nacional e do papel das elites locais como tendo parte da responsabilidade nesse
empreendimento. Combateu a antiga oligarquia dos Castro e promoveu a ascensão política
dos Freitas ao poder. Entusiasmou a juventude com o slogan ―Avante Jaraguá!‖ e perpetuou
esse ano de 1946 na memória dos contemporâneos como uma marca forte e sinônimo de
progresso e desenvolvimento econômico.
49
50
Trecho do Editorial redigido por Eloy de Faria Mello. Jornal ―Avante‖, nº 1, p. 1.
Entrevista com Clotário de Freitas, que em 1946 era o presidente do Diretório Municipal do PSD.
39
O jornal Avante acompanhou a administração do Dr. Peixoto da Silveira nos poucos
meses em que ele ocupou a Prefeitura de Jaraguá. Canalizou o momento de otimismo
transmitido pela passagem da colônia e por todas as alterações econômicas que o município
vivia e a transmitiu, de maneira competente e entusiástica, à população. A resposta veio nas
urnas. Dr. Peixoto da Silveira deixou a prefeitura em 10 de outubro de 1946, entregando o
cargo ao Dr. Belarmino Cruvinel, então Interventor Federal em Goiás. No mesmo dia o Dr.
Clotário de Freitas, então Presidente do Diretório Municipal do PSD, foi conduzido para o
cargo de prefeito. Peixoto da Silveira se desencompatibilizou do cargo para se candidatar à
Assembléia Legislativa do Estado. Foi eleito para a 1ª Legislatura da Assembléia em 19 de
janeiro de 1947, para o período de março de 1947 a 31 de janeiro de 1951.51
O jornal Avante teve uma curta duração, mas o suficiente para contribuir para uma
alternância de poder em Jaraguá, rompendo o equilíbrio de forças que se impuseram desde os
primórdios do século XX.
Os Freitas continuaram na política de Jaraguá, revezando com os Castro até meados
dos anos 90.
Além de manter o poder político em Jaraguá, os Freitas lançaram-se à política no
âmbito estadual. Sebastião Gonçalves de Almeida, primo de Clotário de Freitas e apoiado
pelo clã, elegeu-se à Assembléia Legislativa em outubro de 1950, para o quatriênio seguinte.
Clotário de Freitas foi eleito, por três mandatos consecutivos, à Assembléia
Legislativa. Foi Secretário do Interior e Justiça no governo de Mauro Borges (31/01/61 a
26/11/64). O Dr. Peixoto foi candidato, pelo PSD, ao governo de Goiás, em 1965, para o
mandato de 1966 a 1971. Perdeu as eleições para seu concorrente, Dr. Otávio Lage, da
coligação UDN/PSP/PTB.
Os Castro Ribeiro permaneceram na política de Jaraguá até recentemente. Nelson de
Castro Ribeiro elegeu-se em outubro de 1958 para Deputado Estadual, pela UDN. Reelegeuse, pela ARENA, em 1970, cumprindo seu mandato até 1975.
Na antiga localidade de Calção de Couro, onde formou-se o distrito de Goianésia
(posteriormente
município),
instalaram-se
inúmeros
grupos
econômicos,
abrindo
empreendimentos cafeicultores e de colonização. Entretanto, eram grupos de fora,
51
CAMPOS, Francisco Itami e DUARTE, Arédio Teixeira. O Legislativo em Goiás. Goiânia, Assembléia
Legislativa de Goiás, 1996,p. 103. (Volume 1 – História e Legislaturas).
40
principalmente de paulistas e cariocas, que mantinham um gerenciamento à distância. Seus
proprietários não se mudaram para a localidade, entregando a direção a administradores.
O primeiro político a ocupar o poder local em Goianésia foi seu fundador, Laurentino
Martins Rodrigues. Porém, a família que reuniu as condições necessárias para assumir a
política local, foi a dos Machado de Siqueira. Aliados de Laurentino, esta família ficou com
sua herança política. Laurentino era candidato a vice-prefeito em uma chapa encabeçada por
Otávio Lage de Siqueira, quando foi assassinado.52
A família Lage e os outros grandes proprietários da região abandonaram o plantio do
café, em meados dos anos 50 e passaram a criar gado. Algumas propriedades dedicaram-se ao
cultivo da cana-de-açúcar. Bem mais tarde, a família Siqueira montou uma usina de álcool, de
grandes proporções, proporcionando empregos à população. Uma empresa pernambucana
montou outra usina de menor porte. Seguindo a tendência dos grandes cafeicultores, pequenos
e médios proprietários destruíram seus cafezais e voltaram-se à produção de gêneros de
subsistência e de gado. Algumas propriedades passaram a produzir cana-de-açúcar em sistema
de parceria com as usinas. Nas pequenas propriedades, formadas a partir dos projetos de
colonização particular, estava a reserva de mão-de-obra para os empreendimentos de açúcar e
álcool. A estrutura fundiária manteve-se praticamente inalterada, desde os anos 50.
A família Siqueira lançou seu candidato a governador de Goiás, Otávio Lage de
Siqueira, filho de Jales Machado. Disputou com o clã dos Freitas, de Jaraguá, na pessoa do
candidato Dr. Peixoto da Silveira. Otávio Lage se elegeu, para o período de janeiro de 1966 a
março de 1971.
Goianésia conseguiu dar o salto e se integrar a uma economia mais ampla. Metade da
produção de açúcar, proveniente dos empreendimentos dos Siqueira é exportada para outros
países. Em entrevista, Otávio Lage assegurou que eles poderiam enviar para fora do Brasil
toda sua produção de açúcar, mas, é estratégia da empresa fornecer a um mercado local, a
metade da produção.
O pequeno proprietário dos projetos de colonização transformou-se no operário das
usinas de açúcar e álcool. Constituiu-se em reserva de mão-de-obra para as necessidades de
expansão do capital.
52
Informação conseguida em entrevistas realizadas com o Sr. João Carneiro de Mendonça (22/07/98) e com o Dr.
Otávio Lage de Siqueira (18/02/99).
41
Ceres permaneceu tutelada pelo governo federal até 1959. Essa presença prolongada da
administração federal dificultou a criação de um espaço político próprio dos lavradores da
CANG e trabalhadores do município, de maneira geral. As pequenas colônias, uma vez
transformadas em propriedades privadas, começaram a se descaracterizar. As previsões de
Speridião Faissol53 se concretizaram. O esgotamento do solo e a inviabilidade do
empreendimento levaram a um processo gradativo de concentração da terra.
O poder que emergiu, nasceu dos primeiros colonizadores. A exemplo de Jaraguá, duas
famílias, os Mendes e os Melo, revezam no poder, há mais de duas décadas.
O que restou para Jaraguá?
“Diony... comprou lotes nos loteamentos novos, comprou muitos lotes e dizia
que não gostava do progresso porque este era inimigo dos homens do lugar.
E foi uma realidade. O homem tinha uma visão incrível!”54
“Hoje Ceres está muito maior do que Jaraguá. Eu acho que Goianésia
também. Já passaram Jaraguá muitas vezes, em população e tudo.”55
Restou a estrutura fundiária antiga e a política tradicional.
Apesar de alcançado pela frente pioneira, Jaraguá permaneceu o mesmo. Ele se desfez
de seus distritos, deu as costas para as possibilidades de alterações tecnológicas e recusou as
transformações nas relações de trabalho. Mas, esta não foi uma recusa voluntária. Foi o seu
passado que não permitiu. Jaraguá era um núcleo tão singular, tão voltado para suas próprias
entranhas, tão debruçado sobre seu próprio passado, que sua população preferiu perder a
corrida do desenvolvimento econômico do que descaracterizar-se enquanto antiga localidade
aurífera. Preferiu manter o apoio a seus antigos líderes políticos. Oportunidades Jaraguá teve.
Sua elite dominante confundiu-se com a elite cafeicultora, que se instalara no Distrito de
Goianésia. A família Castro mantinha estreito relacionamento com os Machado de Siqueira. O
outro grupo político de Jaraguá, os Freitas, chegou a defender publicamente a produção do
café como a salvação de Goiás.
53
Sobre o assunto, pode-se consultar: FAISSOL, Esperidião. ―O Problema do Desenvolvimento Agrícola do
Sudoeste do Planalto Central do Brasil‖. Revista Brasileira de Geografia. Ano XIX n.º 1 e ―FAISSOL,
Speridião. O Mato Grosso de Goiás. Rio de Janeiro, IBGE/Conselho Nacional de Geografia, 1952. Biblioteca
Geográfica Brasileira. Publicação n.º 9 da série A ―Livros‖.
54
55
Entrevista com Joaquim Militão.
Entrevista com Clotário de Freitas.
42
Um dos mais brilhantes discursos já feitos na Assembléia Legislativa de Goiás foi de
um político saído de Jaraguá, Dr. Peixoto da Silveira56, em defesa da produção do café. De
nada adiantou. O seu passado não permitira a organização da população, dos trabalhadores, em
um projeto próprio. As necessidades da população, como um todo, foram sempre as
necessidades das elites.
As elites mineradoras, e depois as agrárias, construíram habilmente suas bases de
sustentação nos laços de parentesco, de compadrio e de amizade. A Igreja Católica ofereceu o
suporte para a concórdia, a subserviência e o entendimento da população.
Jaraguá continuou com sua pachorra, sua vida simples, sua economia pouco articulada
com um mercado, mas garantindo a sobrevivência de uma geração após outra. As lendas em
torno do ouro foram mais fortes. O chamamento da ―Tereza Bicuda‖ manteve o encantamento
do povo. 57
A exemplo de outras sociedades tradicionais, Jaraguá acionou mecanismos de defesa
contra atitudes de mudanças e de alterações no status quo.
Só mais tarde, quando reverteu-se o quadro de população rural/população urbana no
Brasil, quando a pressão demográfica forçou o crescimento, mesmo das pequenas cidades, foi
que Jaraguá perdeu sua inocência. Cresceu, descaracterizou-se. Os moradores deixaram de ser
parentes uns dos outros, mas, em determinados momentos, nas festas, nas comemorações
religiosas, o passado volta. A consciência coletiva se explicita. Os mitos, as lendas de Tereza
Bicuda povoam novamente a cidade. E ela se encontra com o seu próprio passado.
Referências
ALENCAR, M. A. G. Estrutura Fundiária em Goiás. Goiânia: UCG, 1993.
BERTRAN, P. História de Niquelândia. Do Distrito do Tocantins ao Lago de Serra da Mesa.
Brasília: Verano, 1998.
56
SILVEIRA, Peixoto da. Goiás e a Cafeicultura. Discurso pronunciado na Sessão d dia 5 de outubro de 1949,
na Assembléia Legislativa do Estado de Goiás. Goiânia, Tip. e Enc. da Escola Técnica de Goiânia, 1950.
57
―Tereza Bicuda‖ é uma lenda de Jaraguá. Ver VALADARES, Ione Maria de Oliveira e LIMA, Nei Clara de.
Histórias Populares de Jaraguá. Tereza Bicuda. Goiânia, Centro de Estudos de Cultura Popular, ICHL/UFG,
1983.
43
CAMPOS, F. I.; DUARTE, A. T. O Legislativo em Goiás. (Volume 1 – História e
Legislaturas).Goiânia: Assembléia Legislativa de Goiás, 1996.
DUARTE, L. E. A. M. O Poder e a Estrutura nos Municípios de Ceres e Jaraguá-Go: uma
análise comparativa. Tese apresentada à Faculdade de Filsofia e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 1999.
IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, Vol. XXXVI, 1958.
IBGE. VII Recenseamento Geral do Brasil. Série Regional, vol. II, Tomo XIV, 2ª Parte, 1960.
Jornal ―Avante‖. Órgão Informativo Noticioso e Literário. Ano 1.Nº 1 a 9. Jaraguá (Goiaz),
1946.
PALACIN, L. ; GARCIA, L. F.; AMADO, J. História de Goiás em Documentos I. Goiânia:
Ed. da UFG, 1995.
ROMACHELI, M. H. A. História de Jaraguá. Goiânia: Kelps, 1998.
SAINT-HILAIRE, A. (1779-1853) Viagem à província de Goiás. Tradução de Regina Regis
Junqueira. São Paulo: USP, 1975.
SILVA E SOUZA, L. A. Memória sobre o Descobrimento, Governo, População e Coisas
mais Notáveis da Capitania de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978.
Fontes documentais:
Arquivo do Patrimônio Público Imobiliário da Procuradoria Geral de Goiás. Livro nº 8:
Registro Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Penha da Vila de Jaraguá. Abertura em 20
de agosto de 1856 e fechamento em 2 de abril
de 1860.
Cartório de Registro Imobiliário – Títulos e Documentos – Oficial de Protestos. Livro de
Inscripção de hypothecas legais nº 2 e Transcripção de Immóveis nº 3. Livros 2 e 3. Jaraguá –
Goiás.
44
2
MEMÓRIA DE MIGRAÇÃO:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS RELAÇÕES
INTERÉTNICAS ENTRE ÍNDIOS E COLONIZADORES
EM GOIÁS NO SÉCULO XIX.
Dulce Madalena Rios Pedroso
Este é um estudo de caso sobre as relações interétnicas entre colonizadores e índios
em Goiás, na primeira metade do século XIX e apoia-se em documentação histórica sobre
um ataque dos índios avá-canoeiro ao Engenho Nossa Senhora da Conceição, na freguesia de
Traíras, em uma região na bacia do alto Rio Tocantins, antiga província de Goiás. Esse
ataque indígena redundou na migração da família atingida para a região sul de Goiás, mais
precisamente para a vila de Jaraguá.
Nesta ocasião, no norte de Goiás ainda havia grupos indígenas como xavante,
xerente e avá-canoeiro que impunham resistência à colonização. As atividades econômicas
eram modestas e estavam restritas a criação de gado e a agricultura de subsistência, o
45
povoamento era reduzido e os fazendeiros se encontravam distantes um dos outros e assim,
tornavam-se vulneráveis às incursões indígenas.
Jaraguá recebeu migrantes em diferentes períodos da história do povoamento de
Goiás. Apesar da modesta economia agropastoril, o arraial situava-se numa posição
privilegiada no cenário econômico da província. No início do século XIX, Jaraguá se
encontrava entre os prósperos arraiais de Goiás (Pedroso, 1999). Esta região promissora,
próxima à Capital e das estradas para os arraiais do norte, do caminho oficial para São Paulo
e ainda se encontrava próxima das estradas que seguem para a Bahia e Pernambuco (Bertran,
1996), tornou-se um centro de atração de migrantes. Esse fenômeno já era observado por
Burchell desde 1826, quando visitou o arraial e foi estudado por Elizabeth Duarte (1999) em
sua pesquisa sobre Jaraguá. A autora argumenta que o arraial do Córrego de Jaraguá foi um
antigo centro minerador que sobreviveu, ao contrário de tantos outros arraiais de mineração
que extinguiram-se. A autora destaca Jaraguá como núcleo populacional que resistiu,
apresentando modestos traços de urbanidade, o que não permitiu a ruralização completa dos
costumes (Duarte, 1999). Assim, Jaraguá passou a receber migrantes de várias localidades
que vieram a contribuir para a vida econômica, social e política daquela localidade.
Elizabeth Duarte observou que no século XIX, duas correntes migratórias
impulsionaram o crescimento populacional de Jaraguá, sendo que, a mais antiga, os
migrantes eram provenientes de antigos centros de mineração que entraram em progressiva
decadência. O deslocamento da população daquelas localidades para Jaraguá ocorreu em dois
momentos: fins do século XVIII e em meados do século XIX. A segunda corrente migratória,
que se deu nas últimas décadas do século XIX em direção a Jaraguá, eram oriundas de
regiões do sul de Goiás, além do Triângulo Mineiro e Minas Gerais.
A corrente migratória que nos interessa no momento é aquela proveniente de antigos
centros mineradores em decadência que convergiam para Jaraguá. Duarte destaca em seu
trabalho, a intensa movimentação interna da população goiana. Esse fato também pode ser
observado na obra de Jarbas Jayme, Famílias Pirenopolinas - ensaios genealógicos em que o
autor, ao descrever as genealogias, mostra a grande mobilidade da população movimentandose entre Jaraguá, Pirenópolis, Vila Boa, Itaberaí, Trahíras entre outros arraiais e vilas.
46
Um exemplo de migração para Jaraguá ocorrida em fins do século XVIII, foi da
família Álvares da Silva, cujo genearca é o português Manuel Álvares da Silva, nascido na
freguesia de Alvarenga, Bispado de Braga, fora buscar no arraial de Cocal, freguesia de
Traíras, riquezas advindas do ouro, que afloravam naquele solo. Este arraial fundado,
segundo Cunha Mattos, em 1751, recebeu grande contingente populacional, relacionando
1.400 homens brancos entre europeus, paulistas e mineiros. Tal português amasiou-se com
sua escrava da nação Mina, Francisca Machado (esta personagem intrigante se encontra na
memória dos habitantes do povoado do Cocal, atual município de Niquelândia; a professora
da UCG, Adélia Freitas está realizando um trabalho sobre ela) e teve com ela vários filhos.
Entre eles, havia dois que se tornaram bem conhecidos no cenário político e cultural de Goiás
daquele tempo – os padres Silvestre Álvares da Silva, vigário de Jaraguá e Manuel Álvares
da Silva, vigário em Traíras e Barra. O português Manuel Álvares possuía outros filhos,
sabe-se que também havia Antônio, Félix, Bento (Acervo de documentos da família Álvares
da Silva) e Pedro (Cunha Mattos), porém não se conhece, ao certo, quantos filhos ele gerou
durante sua vida. (Pedroso, 1999)
No final do século XVIII, Manuel Álvares transferiu-se para o arraial do Córrego de
Jaraguá. Era próspero comerciante, deixou várias posses para seus filhos. Entre eles o que
mais se sobressaiu foi o padre Silvestre. Ele foi deputado eleito pela província de Goiás para
elaborar, juntamente com outros, a primeira constituição brasileira. Era um homem culto,
rico e de espírito superior.(Pedroso, 1999) Um dos irmãos do padre Silvestre era o Capitão
Antônio Álvares da Silva, vivendo muitos anos em Jaraguá, deixou alí grande descendência,
contudo, retornou para Traíras, visando a cuidar de suas propriedades e negócios, anos depois
(Carta de Antônio Álvares da Silva).
Outro exemplo de família que migrou para a vila de Jaraguá, proveniente de centros
mineradores em decadência foi o casal Maria Ribeiro da Silva Aranha e seu esposo o
tenente-coronel Francisco Antônio Rodrigues Ferreira. O lugar de origem desse casal é
discutido; Jarbas Jayme (1973, vol. II, p.298) informa que eram provenientes de Trahíras;
porém, descendentes do casal asseguram que eles vieram de Pilar. A documentação histórica
sugere que o casal possuía propriedades. O registro de batismo da Paróquia Nossa Senhora
da Penha de Jaraguá apresenta o casal sendo padrinhos de uma criança em 1846 (Registro de
Batismo). Tiveram vários filhos, enumerando apenas alguns, podemos citar Maria Ignácia de
47
Macedo Rios (casou-se com o Cel. Tubertino Ferreira Rios), Ana Carolina Gomes (casou-se
com Lourenço Gomes de Souza), Bárbara (casou-se com Saturnino Pereira Vilarinho)
Herculano Rodrigues Aranha (casou-se com Maria Firmino da Costa), José Aranha (casou-se
com Ana de Souza) e, o mais famoso de seus filhos Manuel Rodrigues Suzano. Segundo a
memória oral da família Ribeiro de Freitas, este senhor foi em seu tempo um dos homens
mais ricos de Goiás; possuía várias propriedades, era comerciante e ia ao Rio de Janeiro
vender e comprar mercadorias. Ele construiu um sobrado semelhante ao hotel Globo, local
onde se hospedava enquanto permanecia na então capital do Brasil. O sobrado durou pouco,
pois fora construído em local inapropriado mas, informantes já falecidos conheceram alguns
vestígios do tal sobrado relatando que a parede era coberta de papel decorado e as maçanetas
das portas eram de prata. Até 25 anos atrás existia ainda a casa de sua mãe e uma outra casa
conhecida pela população por casarão, que pertenceu a Suzano, como era mais comumente
chamado. Toda essa área urbana foi destruída para a construção da Prefeitura e Câmara
Municipal, contudo leva o nome da praça de Manuel Rodrigues Suzano. Na atualidade, esta
área urbana de Jaraguá encontra-se totalmente descaracterizada, sua antiga configuração
permanece na memória dos jaragüenses e em algumas imagens.
Outro exemplo de família que migrou para Jaraguá na primeira metade do século
XIX, proveniente de Trahíras foi a família Ribeiro de Freitas. A motivação desse
deslocamento não foi por razões econômicas mas sim, em virtude dos confrontos com os
índios daquela região que se encontravam em guerra declarada contra os colonizadores que
invadiram suas terras tradicionais de ocupação.
Os conflitos entre os índios avá-canoeiro e os colonos tomaram grandes proporções
durante toda a primeira metade do século XIX. Acredita-se que o objetivo dos indígenas era
intimidar os colonos, com o fim de mantê-los fora de seus territórios tribais. Assim, durante
algumas décadas, os índios obstaram a ocupação de novas áreas dentro de seus territórios
tribais, além de terem contribuído para o despovoamento de terras que estavam sob o
domínio do branco. Pode-se dizer que o medo que os colonos sentiam das hostilidades
indígenas contribuiu para o despovoamento de áreas ameaçadas pelos avá-canoeiro, sendo
que os conflitos tomavam grandes proporções na medida que os núcleos populacionais eram
pequenos e despovoados em virtude da decadência da produção aurífera e da dispersão da
48
população na vida rural. Além do que, as fazendas e os sítios de lavouras eram distantes uns
dos outros, ficando estes locais, de certo modo, isolados (Pedroso, 1994).
Passemos a conhecer essa intrigante história que apoia-se na memória da respectiva
família, bem como na documentação histórica escrita.
Em uma dessas guerras empreendidas pelos avá-canoeiro, com vistas à desocupação
de seus territórios de ocupação, atingiu o engenho de cana-de-açúcar Nossa Senhora da
Conceição, pertencente à família Ribeiro de Freitas, na freguesia de Trahíras. Uma das
evidências a respeito da incursão indígena ao engenho encontra-se sob forma de crônica; a
autora, Yêda Rios Brandão, é descendente da família atingida por esse acontecimento, para
eles traumático, transmitido oralmente ao longo de cinco gerações, até ser registrado por
escrito na década de 1950.
Um documento histórico oficial é uma correspondência do presidente da província de
Goiás solicitando permissão ao governo imperial para formar recrutas a fim de combater os
índios avá-canoeiro que atacaram várias fazendas dos distritos de Trahíras, Carmo, São Félix
e Amaro Leite. O documento arrola, ainda, a localização de cada uma dessas propriedades,
bem como o nome dos fazendeiros e aparece o nome da proprietária do engenho, a ancestral
da família. Ela e seus filhos transmitiram a seus descendentes esse evento, tantas vezes
recordado e contado e que provocou a mudança dessa família para uma outra vila.
O encontro entre as duas fontes históricas de natureza distinta indicando um só evento
enriquece a reconstituição histórica permitindo uma compreensão mais abrangente do próprio
acontecimento. O relato oral, em forma de crônica, e o documento oficial formam elos de
transmissão de um mesmo fato. Em vários aspectos a narrativa que se baseia em informação
oral e o documento histórico apresentam pontos em comum. Em outros, observa-se que a
crônica foi mais além, pois, como relato de um testemunho subjetivo e falado, apresenta
detalhes do evento e acrescenta outros novos, que possivelmente até nem existiram, o que
ocorre porque a memória não se cristaliza. Ela acompanha o movimento do indivíduo, das
massas e da cultura com os quais o indivíduo se relaciona. Por meio da linguagem, a
memória é socializada e unificada, aproximando os sujeitos e limitando suas lembranças
sobre os acontecimentos vividos no mesmo espaço histórico e cultural. Ao longo de mais de
cem anos que separam as cinco gerações, mesmo mantendo a informação essencial, essa
49
história foi várias vezes recontada, reinterpretada e atualizada, e está repleta de lembranças,
mas também de revisões, de recuperações, de reinterpretações atualizadas do passado
(Kenski,1997).
O relato oral é criativo e imaginativo e a esse aspecto, o pesquisador deve ficar
atento, pois o relato está sujeito a variações, quando mudam as necessidades sociais e os
valores de seus narradores e ouvintes, por exemplo, quando a memória é atualizada,
conforme a influência social do meio em que vivem narradores e ouvintes. O relato oral está
sempre comprometido pelo contexto no qual foi transmitido. É uma evidência social, mas
deve-se estar alerta para a subjetividade contida no relato.
Comparando as duas fontes históricas, observa-se que na crônica se operou a
chamada memória ficcional, extremamente imaginativa, que reinterpretou fatos, criou outros,
enfim, o atualizou à medida que o tempo passava e, no imaginário do colono, impera a
ideologia do colonizador, exagerando o relato em determinados momentos e mostrando
outras nuances que, em um documento escrito formal, dificilmente acontece. Halbwachs
(apud Kenski, 1997) ensina que a memória é um trabalho de reconstrução alterada do
passado, de acordo com os valores e as referências culturais do grupo social ao qual o sujeito
da memória pertence na atualidade.
Thompson (1992) destaca que o processo da memória depende não apenas da
capacidade de compreensão do indivíduo, mas também de seu interesse sobre determinado
assunto. Ele acredita que é muito mais provável que uma lembrança seja precisa, quando há
interesse ou alguma necessidade social. Ainda assimila que é necessário indagar como surgiu
determinada evidência.
Neste sentido, convém esclarecer a respeito da autora da crônica que relata essa
história transmitida pela memória. A autora, Yêda Rios Brandão, nasceu na década de 1920
em Jaraguá-GO. Foi educada em colégio interno em Silvânia, antiga Bonfim, Goiás. É
casada, mãe de 11 filhos e dona de um cartório no interior. Yêda Brandão aprecia a leitura de
bons romances e sempre gostou de escrever. Seu passatempo predileto era colecionar
histórias de famílias e histórias antigas de sua terra natal. O seu interesse ia além de ouvir
antigas histórias. Ela buscava nos cartórios e nos registros paroquiais de sua cidade as
informações de seu interesse. A crônica que ela assina apresenta a luta de seus antepassados
50
pioneiros no trabalho da terra e a disputa dessa terra com os índios habitantes daquela região.
Tal conflito provocou a migração de sua família para a vila de Jaraguá. Mostrando a
trajetória percorrida pela memória da família até alcançar a quinta geração, na qual a autora
se insere, ao final de sua história, Brandão (1950, p.8) escreve: ―Esta história contou-me
minha mãe, cujo pai Balthazar, era filho de Antônio que tinha por mãe Laura‖.
Laura é a ancestral da família que se defendeu do ataque indígena de maneira
originalíssima. Yêda Brandão registra essa história, em forma de testemunho oral, mais de
111 anos após ter ocorrido. Deve-se esclarecer um dos aspectos que possivelmente
motivaram a retenção na memória de histórias como essa. Nas cidades do interior de Goiás,
em séculos passados, poucas novidades havia para entreter seus habitantes. Assim, ocorriam
reuniões em família para ler e contar estórias e enredos de romances, e também muito se
falava sobre a história da família ou personagens interessantes que viveram no passado.
Contos, estórias, narrativas eram contadas e recontadas; ainda era um tempo em que ouvir e
contar estórias era prazeroso.(Ver ainda sobre lendas de Jaraguá: Lima e Valadares, 1983a e
b). Em 1983, a autora datilografou a crônica que escrevera e distribuiu uma cópia para os
seus familiares, difundindo, desse modo, essa interessante e reveladora história de sua
família.
A documentação histórica oficial possui elementos originais em relação à crônica.
Essa documentação encontra-se entre os informes de guerra, em ofício do presidente da
província de Goiás, Pe. Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, ao Ministro dos Negócios do
Império, datado de 3 de setembro de 1839, informando-o dos ataques dos índios avá-canoeiro
às várias fazendas dos distritos de Trahíras, Carmo, São Félix e Amaro Leite1 e dos prejuízos
deles decorrentes. Escreve o presidente: ― em 3 de julho o gentio Canoeiro surpreendeu dois
escravos de D. Laura Innocência Furtado e os matou a flechada em um canavial a três léguas
distante da Vila de Trahiras.‖
O texto do documento oficial que se refere ao ataque indígena é sucinto, porém, no
contexto social da primeira metade do século XIX, é bastante revelador sobre a situação da
colonização no norte de Goiás. Com o advento da exploração aurífera em Goiás, várias
1
Ofício do Presidente da Província Luiz Gonzaga de Camargo Fleury para o Ministro dos Negócios do Império.
N 136 – 3/9/1839, p. 20. In: 1838-1845: Ofícios da Presidência da Província para os Minist´rios do Império,
Marinha e Estrangeiros. Arquivo Histórico Estadual de Goiás – A.H.E.GO
51
povoações foram fundadas ao longo do rio Maranhão/Tocantins para a exploração das
jazidas, entre as décadas de 1730 a 1750. Essas frentes pioneiras de exploração fixaram-se,
desse modo, em territórios de ocupação indígena, obrigando-os a migrarem para outras áreas.
No final do século XVIII a decadência das minas provocou o despovoamento de vários
núcleos populacionais que se sustentavam graças à atividade mineradora. Esses povoados
encontravam-se, muitas vezes, isolados uns dos outros, e seus habitantes, dispersos na vida
rural, tornavam-se frágeis e expostos às represálias indígenas. A documentação histórica
aponta que a partir de então, acirraram-se os conflitos armados entre índios e colonizadores,
em razão da disputa pela posse da terra, sobretudo no norte da província de Goiás, onde a
produção aurífera esgotou-se mais cedo.
Os índios que habitavam aquela região eram os Canoeiros, assim designados por
navegarem o caudaloso Maranhão/Tocantins em canoas (a partir da década de 1970, eles
passaram a ser chamados de avá-canoeiro). Esse grupo indígena possuía seus territórios de
ocupação em uma extensa região ao longo do alto Rio Tocantins, em ambas as margens e
ilhas desse rio, desde a foz do Rio Santa Tereza, ao norte (atualmente estado do Tocantins),
até a foz do Rio das Almas, um dos formadores do Rio Maranhão/Tocantins, limite
meridional das terras de movimentação indígena. A fixação de contingentes populacionais
para a exploração das minas de ouro provocou a migração dos avá-canoeiro para a margem
esquerda do rio; contudo, os índios ainda se movimentavam em toda aquela região que,
gradativamente, foi sendo ocupada pelos colonizadores (Pedroso, 1994)
A crônica de Brandão (1950, p. 2) apresenta-se com um outro olhar - a versão do
colonizador que sofre o ataque. Como evidência histórica, a informação oral, por meio da
linguagem transforma-se em memória do vivido. Pedroso (1994) em seu estudo sobre os avácanoeiro nos séculos XVIII e XIX, informa que os colonos tinham verdadeiro pavor dos
índios, cultivado em décadas de lutas e enfrentamento entre ambos. O medo e o ódio, aliado
ao preconceito, criaram um imaginário completamente desfavorável ao indígena. Entretanto,
no centro da discórdia, residia a questão da exploração da terra e da utilização da mão-deobra nativa.
A crônica de Brandão (1950, p.2) inicia-se mostrando o convívio compulsório entre
índios e colonizadores em uma região disputada por ambos.
52
“Era no tempo, em que os homens movidos de ambição ou sequiosos de
aventuras se reuniam em grupos chamados bandeiras e se afundavam no
sertão. Em seus rastros surgiam povoados, cidades. Rios, serras e
chapadões iam sendo vistos e batizados. Índios e feras acuados cediam
lugar ao invasor. Traíras nasceu sob o império do ouro tendo a seus pés o
rio do mesmo nome. Em seus arredores viveram Laura e o capitão Joaquim
Ribeiro de Freitas2. Possuía o casal propriedade com lavoura, engenho de
cana e bom número de escravos. A fazenda progredia, o ouro encontrado
era secado em couro de bois. Porém os índios, que antes mantinham com os
fazendeiros relações amistosas em contacto com os brancos se tornaram
espertalhões e buliçosos, começando a fazer-lhes freqüentes visitas.
Amarravam a cauda dos animais umas as outras para em seguida afugentálos, paravam o monjolo, enchiam o pilão de esterco, desviavam o curso de
rego d‟água, roubavam os porcos e aves.”
De acordo com o relato oral, o capitão Joaquim Ribeiro de Freitas e sua família
possuía boa situação econômica (Brandão, 1950). Essa situação é confirmada pela
documentação histórica oficial referindo-se ao mesmo Capitão-Mor3, como um proprietário
abastado em Trahíras, e sua fazenda consta na relação de engenhos de Trahíras em 18234.
Freitas foi um dos fundadores da Sociedade de Comércio de Trahíras, criada em 1806, para
incentivar a navegação e comércio entre as capitanias de Goiás e do Pará, pelo Rio
Tocantins5. Na documentação escrita além de seu nome, encontram-se os de outros
proprietários da região de Trahíras, Niquelândia e Pilar que solicitavam a D. Francisco de
Assis Mascarenhas, governador da capitania de Goiás, providências urgentes para possibilitar
a navegação pelo Rio Maranhão, impedida pelas hostilidades dos índios avá-canoeiro que
habitavam às suas margens6.
A crônica de Brandão (1950) informa que os indígenas manifestavam abertamente
sua indignação, usando de artimanhas para amedrontar o colonizador. Brincadeiras e
travessuras eram relativamente comuns em locais de movimentação dos avá-canoeiro no
2
Nota da autora da crônica – Em 1760 e 1785 em Trahíras Goiás, nasceram os protagonistas desta história:
Joaquim Ribeiro de Freitas e Laura Innocência Guedes Furtado.
3
Relação dos Officiais de Ordenanças desta Província que se Achão Registrados nas patentes do livro da
Comarca da Província. A.H.E.GO
4
Mapa Geral da população e número de cazas e propriedades da Vila de Trahíras e seu Distrito. In: Relação da
População da Província de Goiás, Correspondência e Mapas dos Comandantes das Ordenanças: 1823-1824.
A.H.E.GO.
5
Correspondência Oficial de D. Francisco de Assis Mascarenhas com a corte:1804-1807. Códice 9.4.2. Doc
188, Of. n3, p. 58 e 59. Sessão de Manuscritos da Biblioteca Nacional/RJ
6
Idem.
53
território goiano, que estava sendo ocupado pela expansão da atividade agropastorial, como
informam a documentação histórica (Pedroso, 1994) e os depoimentos orais dos regionais
que viviam nessas áreas, até por volta da década 19507. Vale informar que os índios avácanoeiro dividem-se em duas comunidades distante uma da outra e, foram contatados pela
Funai em 1973 e 1983, encontrando-se em número bastante reduzido nos estados de Goiás e
Tocantins. Os dois grupos são pequenos grupos familiares que sobreviveram à violência das
frentes de ocupação colonizadora em Goiás.
A memória da família reteve detalhes coincidentes com as fontes escritas a respeito
do contato interétnico entre índios e conquistadores.
A documentação oficial informa que o ataque ao engenho ocorreu no dia 3 de julho
de 1839, e na crônica, em determinados momentos, a memória se apresenta nítida, precisa,
com extrema sensibilidade pela ambientação. A emoção vivenciada permaneceu na memória
e foi transmitida ao longo do tempo, como neste trecho (Brandão, 1950, p.2): ―Certa noite
estava toda família reunida. Em junho, as noites são frias e na varanda agrupava-se em torno
de um tacho com brasas, que montes de sabugos atirados em intervalos conservavam vivas‖.
Na memória, a sensibilidade marcou a temperatura baixa do mês de junho, dias antes
do ataque indígena, que aconteceu no início do mês seguinte, conforme atesta o documento
arrolado. A lógica da emoção desencadeia, em determinados momentos, sentimentos e
sensações (Kenski, 1997). É interessante discutir a fidedignidade do relato oral, apontado por
Thompson (1992) e Kenski (1997). Cada pessoa é única em sua capacidade de relembrar os
fatos. O interesse em lembrar pontua, em certa medida, a fidedignidade do relato e a razão
para ser contado diversas vezes é porque havia um significado para quem lembra e conta
histórias. Kenski (1997) reconhece que a memória depende das características pessoais das
pessoas dispostas a lembrar e daquelas que se sentem mobilizadas a ouvir as histórias. Como
um ato voluntário de recordar fatos passados, de reviver a emocionalidade daquele momento
pela linguagem oral, repete-se cada detalhe passado, filtrando a imaginação e a emoção. A
memória é livre e espontânea e obedece às regras da emocionalidade.
7
Ver PEDROSO, D.M.R. Os índios Avá-canoeiro. In: MOURA, M.C.O (org.) Os índios de Goiás. Goiânia: Ed.
UCG (no prelo)
54
A narrativa mostra também a apreensão daquela família, com receio da presença
indígena que revelava sinais de hostilidade. Os habitantes da fazenda estavam preocupados e
receosos, quando uma noite, furtivamente, os índios aventuraram a aproximar-se da casa
grande, e misteriosamente, um índio foi morto. Brandão (1950, p.3) escreve a reação dos
presentes:
“O capitão, de pé, com os braços para traz, mãos ajuntadas com força
mostrava o seu desagrado. Ele dera ordens para ninguém reagir, esperando
que se cansassem de tão extravagantes brincadeiras. (...) Pelas fendas das
portas podia-se ver os selvagens alí mesmo, debaixo da limeira da Pérsia.
Com o luar seus corpos cobertos de garatujas bizarras, (...). O pensamento
de todos ficou parado com enorme estampido ecoado longamente na noite
do sertão, a gritaria e o tropel dos selvícolas em disparada. O capitão
avançou a porta, reforçada com trancas de madeira. Os filhos mais velhos e
os escravos correram a ajudá-lo e ante o desespero das mulheres foram ao
acontecido. Junto a limeira jazia um índio. Todos se quedaram
horrorizados! Quem contra as ordens do capitão ousara matá-lo? Deram
pressa em enterrá-lo antes que os outros notassem que um dos seus alí
ficara.”
Algum tempo se passou sem que os índios dessem sinal algum, porém, em dado
momento surpreenderam os colonizadores com um ataque:
“Várias vezes o sol sumiu e apareceu sem que os índios voltassem.
Aliviados os fazendeiros julgavam que o tiro amedrontando-os conservavaos a distância. A vida tomou de novo o rítimo normal, acalmaram-se os
ânimos. Certa manhã, como não precisassem ficar de guarda, seguiram os
negros para as plantações. Em casa ficaram as mulheres, crianças e os
escravos mais idosos. Eis, que em meio ao silêncio costumeiro ladra um
cão. Outro, mais outro, (...). Justino! Justino! Gritaram todos de uma vez,
olha o Justino! De uma trilha na mata vinha um negro em disparada:
- Sinhá, fecha a casa sinhá, aí vem eis, tapui!
- Laura correu ao sino e puxou-o. De cada canto do grande terreiro
surgiram negras com os filhos. Todos entraram e Justino cansado e sem
forças foi puxado para dentro da casa. Portas e janelas fechadas, pesadas
trancas vieram reforçá-las. O escravo com esforço foi contando:
- Tapui matô os nego tudo e eu escapô subino num coqueiro. Não acabara
de falar e já a algazarra tenebrosa dos índios enchia o terreiro
aproximando-se da casa. Paus e pedras eram atirados as portas e janelas,
55
que estavam sendo forçadas. Na casa foi grande a confusão, quando uma
negra apontou para o telhado gritando:
- Oia alí sinhá, eis tira as teia e vai entrá! Laura correu para a cozinha:
-Aticem o fogo do sabão (...). Clemente, ó Clemente, Maria, Tereza peguem
a cuia e atira-lhes sabão. As negras musculosas munidas de grandes
vasilhas correram à tacha e tomando o líquido preto e fervente iam jogando
nos selvagens. (...) O ataque as portas e telhados recomeçaram mais
intensos, quando um tiroteio se fez ouvir. (...) Os atacantes atiraram-se nas
matas em correria. (...)”
A autora evidencia a figura de sua ancestral, Laura Innocência Furtado, pois ela se
encontrava no engenho durante o ataque e seu marido o capitão Joaquim estava ausente
naquele momento difícil. Foi Laura quem deu as ordens aos filhos e escravos durante a
incursão indígena. Ela sugeriu jogar sabão quente para o alto, a fim de afugentar os atacantes.
Quanto à presença de Laura Innocência no engenho, durante o ataque indígena e à ausência
de seu marido, o capitão Joaquim, pode ter ocorrido uma condensação na memória sobre
eventos distintos. Como assinala Thompson (1992), esta confusão é relativamente comum, e
segundo o autor, mostra a reorganização da memória e como se constrói a consciência de
uma pessoa. Ao contar essa história e outras sobre a própria família, certamente falou-se no
capitão Joaquim pois, ele era marido de Laura e pai de seus filhos. Possivelmente uma
compreensão equivocada situasse o capitão na história, que assim foi transmitida por meio da
oralidade e chegou a ser fixada na crônica. A própria Yêda Brandão, em uma conversa,
formulou a suspeita de que ele não participara da luta, por já haver falecido, o que é
corroborado por análise da documentação oficial. Se ele nascera em 1760, como informa
Yêda Brandão, ele teria em 1839, ano em que ocorreu o ataque indígenas, 79 anos de idade.
Contudo, o ofício do presidente da província relatando a incursão indígena ao engenho
refere-se ao nome de Laura como proprietária da fazenda. Por que não constava o nome do
capitão? Mais uma razão para considerar que ele já havia falecido.
Laura e seus filhos saíram da freguesia de Trahíras para residir em Jaraguá,
possivelmente por que seu filho Alexandre vivia naquela vila (Fonseca, 1999, p.67). A
família abandonou o engenho, como aponta o documento sobre terras no município de
Niquelândia (antiga São José do Tocantins), localizado a seis quilômetros de distância da
antiga Vila de Trahíras (na atualidade, é apenas um povoado com ruínas à vista). O
56
documento de terras8 se encontra no cartório de registro de imóveis em Niquelândia, datado
de 1858, informa que ―o padre Manuel Ribeiro de Freitas possui um sítio, que se acha em
tapera, denominado Engenho N. S. da Conceição que recebeu de sua mãe falecida (...)‖. Se o
engenho era uma tapera, significa que fora abandonado. O documento de terras informa que
o padre recebera aquelas terras como herança, após a morte de sua mãe, e nomeou um
procurador em Trahíras para vender aquela propriedade.
Supõe-se que Laura Innocência Furtado não demorou a se transferir com sua família
para Jaraguá pois, nesta mesma vila, aparece seu nome nos registros de batismos da paróquia
N. S. da Penha, em 1841, como madrinha de uma criança9.
Essa foi uma das famílias que migraram para outras regiões temendo as incursões
indígenas. A documentação histórica oficial refere-se à questão do despovoamento em
determinadas áreas no médio norte de Goiás, na primeira metade do século XIX, em virtude
das hostilidades dos índios (Pedroso, 1994). Na primeira metade do século XIX os avácanoeiro desencadearam uma guerra contra o conquistador, visando a impedir a fixação de
estabelecimentos rurais naqueles territórios e os colonos dalí se afastavam temerosos dos
ataques indígenas.
De acordo com Brandão (1950, p6), ― os índios mataram os negros das plantações, só
escapando Justino, que escondido na copa de alto coqueiro avistara toda tragédia. (...) Os
prejuízos representavam anos de luta com o mato bruto, índios e feras‖.
A documentação oficial e o relato oral reproduzido na crônica contradizem-se quanto
ao número de escravos mortos pelos índios. O imaginário do colonizador é permeado pelas
relações interétnicas conflituosas. O exagero na informação oral é até certo ponto comum, e
essa distorção também se apresenta na documentação oficial no relato sobre os prejuízos
causados pelos indígenas, justificando, assim, as expedições em represália contra eles
(Pedroso, 1994).
A população goiana criou um imaginário a respeito dos índios que se mostrou muito
criativo ao longo do tempo. A crônica é composta de dois momentos significativos: um na
8
Cartório do primeiro Ofício, do Judicial e Notas, da Comarca de Niquelândia, Estado de Goiás, na forma da
lei.Doc. 3, pasta 33-72, fls.20. Vila de Trahíras em 18/9/1858. Assina o escrivão Teófilo José Taveira,
Niquelândia, outubro de 1959.
9
REGISTRO DE BATIZADOS:1840-1849. Arquivo da Paróquia N. S. da Penha de Jaraguá-GO.
57
freguesia de Trahíras apresentando o confronto com os índios e depois, um outro momento,
em Jaraguá.
Como informa a autora [1950, p.6]: ― Dias se passaram e a fazenda do capitão era um
lugar de morte. (...) Decidiram mudar-se. Eles não temiam a floresta nem os animais, mas o
índio sabiam-no vingativo e cruel. Perseguiria seus descendentes em muitas gerações‖.
Um dos traços do imaginário dos regionais10 refere-se à perseguição dos índios a
quem lhes fazem mal, em uma atitude de vingança. Na segunda parte do conto, a família já
estava em Jaraguá e a autora refere-se a uma negrinha escrava, muito afeiçoada a Laura e que
desaparecera subitamente, reaparecendo misteriosamente dias depois, relatando a sua
convivência com os indígenas, durante o tempo em que ficara ausente. Tal acréscimo na
crônica pode ser um resquício do medo de perseguições, criado pelo imaginário e que faça
sentido, misturando elementos de um tempo glorioso que se passou.
A Vila de Traíras foi um arraial aurífero muito populoso, e um dos mais esplendorosos
da capitania de Goiás no período colonial e acredita-se que, ainda no século XVIII, superava
a então capital da província de Goiás, Vila Boa (Bertran, 1998). Em Trahíras, também era
tocada música sacra de excelente qualidade, como em Mariana, Minas Gerais (Pinto, 2002).
Aos poucos, a vila cedeu lugar a um pequeno povoado em ruínas. Vale dizer que os
moradores de Niquelândia, na década de 1940, demoliam e vendiam materiais dos prédios
em decadência em Trahíras (Niquelândia, 1943).
A autora [1950, p.7 e 8] questiona a ruína completa de Trahíras assim se expressando:
―Da florescente Trairas, hoje só resta em pé uma casa. Vê-se nas ruínas o valor de seu
passado. (...) O que teria sido? O ouro esgotou? Foram (sic.) o sofrimento dos presos
clamando contra a cidade maldita? Por que bateram num padre? Foram os índios? Sim, para
muitos foram eles que em desespero pelo que lhes fora usurpado, procuraram afastar para
bem longe o conquistador, alquebrando espíritos bravos como os de meus antepassados.‖
A crônica [Brandão, 1950] analisada reflete a memória de longa duração que guarda
elementos originais do que se passou, corroborados pela documentação oficial. Por outro
10
Este estudo está sendo realizado por PEDROSO, D.M.R. Projeto Memória e Imaginário: relações interétnicas
entre colonizadores e uma comunidade tupi no Brasil Central. Goiânia: Universidade Católica de Goiás/IGPA,
2003.
58
lado, como expressão de relato oral é criativa, imaginativa e condicionada ao grupo social em
que o sujeito vive.
Referências
BERTRAN, P. História de Niquelândia: do Distrito do Tocantins ao Lago de Serra da Mesa.
Brasília: Verano Editora, 1998.
BRANDÃO, Y. R. Crônica, escrita em Jaraguá na década de 50. Goiânia: trabalho
datilografado, 1983.
CARTA de Antônio Álvares da Silva e sua esposa Benedita Francisca a seu filho Manoel
Álvares da Silva (residente em Jaraguá), em Trahíras, a 27 de julho de 1859. Acervo de
documentos da família Álvares da Silva de Jaraguá.
CARTÓRIO do primeiro Ofício, do Judicial e Notas, da Comarca de Niquelândia, Estado de
Goiás, na forma da lei. Doc. 3, pasta 33-72, fls. 20. Vila de Trahíras em 18/9/1858. Assina o
escrivão Teófilo José Taveira, Niquelândia, outubro de 1959.
CORRESPONDÊNCIA oficial de D. Francisco de Assis Mascarenhas com a corte: 18041807. Códice 9.4.2. Doc. 188, Of. N. 3, p. 58 e 59. Sessão de manuscritos da Biblioteca
Nacional/RJ.
DUARTE, L. E. A. O poder e a estrutura agrária nos municípios de Ceres, Jaraguá – GO:
uma análise comparativa. São Paulo: Tese de doutorado defendida na USP, 1999.
FONSECA, L. Tradição e modernização em Jaraguá. Goiânia: Dissertação de Mestrado
defendida na UFG, 1999.
JAYME, J. Famílias Pirenopolinas – ensaios genealógicos. Pirenópolis/GO: 1 edição
póstuma, 1973. Vol I a VII.
LIMA, N. C. ; VALADARES, I. M. O. Histórias Populares de Jaraguá. Goiânia:
Cecup/ICHL/UFG, 1983a.
59
___________ Histórias Populares de Jaraguá: Tereza Bicuda. Goiânia: Cecup/ICHL/UFG,
1983b.
KENSKI, V. M. Sobre O Conceito de Memória. In: FAZENDA, Ivani (Org.) A pesquisa em
educação e as transformações do conhecimento. 2ªed. Campinas, SP: Papirus, 1997 (Coleção
Práxis).
MAPA Geral da população e número de cazas e propriedades da Vila de Trahíras e seu
distrito. Relação da população da província de Goiás, correspondências e mapas dos
comandantes das ordenanças: 1823-1824. Arquivo Histórico Estadual de Goiás.
OFÍCIO do presidente da província Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, para o Ministro dos
Negócios do Império. N. 136 em 3/9/1839 p. 20. (1838-1845: Ofícios da Presidência da
Província para os Ministérios do Império, Marinha e Estrangeiros. Arquivo Histórico
Estadual de Goiás.)
PEDROSO, D. M. R. O povo invisível – a história dos avá-canoeiro nos séculos XVIII e XIX.
Goiânia: Ed. UCG, 1994.
___________ Jaraguá: a formação de um povoado. In: Revista de Divulgação
científica/IGPA. Goiânia: Ed. UCG, 1999. v. 3.
___________ Breve relato sobre a vida do músico e maestro Manuel Marcelino Álvares da
Silva. Goiânia: texto escrito por ocasião das comemorações do dia de Santa Cecília
(22/11/1998) padroeira do canto e da música. Homenagem ao músico jaragüense/GO;
trabalho digitado, 1998.
___________ Histórias de Jaraguá – a casa do padre Silvestre Álvares da Silva. Goiânia:
―O Popular‖ em 9/07/1999.
___________ Os índios avá-canoeiro. In: MOURA, Marlene C. O. de. Os Índios de Goiás.
Goiânia, Ed. UCG, 2003 (no prelo)
PINTO, Marshal G. Da missa ao Divino Espírito Santo ao Credo de São José do Tocantins.
Dissertação de Mestrado apresentada na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo. São Paulo: 2002.
NIQUELÂNDIA-GO. Edital datado de 1943 do prefeito municipal de Niquelândia-GO José
Vieira Filho. Centro Cultural Antônio Ermírio de Moraes.
60
RELAÇÃO dos officiais de ordenanças desta província que se achão registrados nas
patentes do livro da comarca da província. Arquivo Histórico Estadual de Goiás.
REGISTRO DE BATIZADOS – 1840. Arquivo da Paróquia Nossa Senhora da Penha de
Jaraguá-GO.
THOMPSON, P. A voz do passado: história Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
61
Anexo
Em 1760 em Trairas – Goiás, nasceram os protagonistas desta história: Joaquim Ribeiro de
Freitas e Laura Innocência Guedes Furtado.
Para Marina, que no suceder de gerações descende de dois rebentos deste casal oferece a vovó,
Yêda.
Escrito em Jaraguá na década de 50.
Goiânia, novembro de 1983.
* * * *
Era no tempo, em que os homens movidos de ambição ou sequiosos de aventuras se
reuniam em grupos chamados bandeiras e se afundavam no sertão. Em seus rastros surgiam
povoados, cidades. Rios, serras e chapadões iam sendo vistos e batizados. Índios e feras
acuados cediam lugar ao invasor.
Trairas nasceu sob o império do ouro, tendo a seus pés o rio do mesmo nome. Em seus
arredores viveram Laura e capitão Joaquim Ribeiro de Freitas. Possuía o casal propriedades
com lavoura, engenho de cana e bom número de escravos. A fazenda progredia, o ouro
encontrado era secado em couro de bois. Porém os índios, que antes mantinham com os
fazendeiros relações amistosas em contacto com os brancos se tornaram espertalhões e
buliçosos, começando a fazer-lhes freqüentes visitas. Amarravam a cauda dos animais umas as
outras para em seguida afugentá-los, paravam o monjolo, enchiam o pilão de esterco,
desviavam o curso de rego d‘água, roubavam os porcos e aves.
Certa noite estava toda família reunida. Em junho, as noites são frias e na varanda
agrupava-se em torno de um tacho com brasas, que montes de sabugos atirados em intervalos
conservavam vivas.
O capitão, de pé, com os braços para traz, mãos ajuntadas com força mostrava o seu
desagrado. Ele dera ordens para ninguém reagir, esperando que cansassem de tão
extravagantes brincadeiras. Dezenas de olhos encaravam-no buscando uma decisão. O que
62
esperava? Por que tardava tanto em dar jeito? Depois de vários dias com as mulheres
reclamando, e as crianças chorando medrosas, eles queriam uma providência, urgia tomá-la.
Por seu lado o capitão conjecturava; larga experiência mostrava-lhe, que os índios sempre
vingativos, não se brinca.
Pelas fendas das portas podia-se ver os selvagens alí mesmo, debaixo da limeira da
Pérsia. Com o luar seus corpos cobertos de garatujas bizarras, assustavam as aves
empoleiradas, obrigando-as a soltarem penosos e lúgubres cocoricós.
O pensamento de todos ficou parado com enorme estampido ecoado longamente na
noite do sertão, a gritaria e o tropel dos selvícolas em disparada.
O capitão avançou a porta, reforçada com trancas de madeira. Os filhos mais velhos e
os escravos correram a ajudá-lo e ante o desespero das mulheres foram ao acontecido.
Junto a limeira jazia um índio. Todos se quedaram horrorizados! Quem contra as
ordens do capitão ousara matá-lo? Deram pressa em enterrá-lo antes que os outros notassem
que um de seus alí ficara.
Várias vezes o sol sumiu e apareceu e sem que os índios voltassem. Aliviados os
fazendeiros julgavam que o tiro amedrontado-os, conservava-os a distância. A vida tomou de
novo o ritmo normal, acalmaram-se os ânimos.
Certa manhã, como não precisassem ficar de guarda, seguiram os negros para as
plantações. Em casa ficaram as mulheres, crianças e os escravos mais idosos. Eis, que em
meio ao silêncio costumeiro ladra um cão. Outro, mais outro, junta o seu granir ao latido
angustioso do companheiro. De todas as janelas surgem cabeças curiosas. Alguém estava em
perigo? Que fera fazia os cães assim tão temerosos?
- Justino! Justino! Gritaram todos de uma vez, olha o Justino!
De uma trilha na mata vinha um negro em disparada: - Sinhá, fecha a casa Sinhá, aí
vem eis, tapui!
Laura correu ao sino e puxou-o. De cada canto do grande terreiro surgiram negras com
os filhos. Todos entraram e Justino cansado e sem forças foi puxado para dentro da casa.
Portas e janelas fechadas, pesadas trancas vieram reforçá-las. O escravo com esforço foi
contando:
- Tapui matô os nego e eu escapô subindo num coqueiro.
63
Não acabara de falar e já a algazarra tenebrosa dos índios enchia o terreiro
aproximando-se da casa. Paus e pedras eram atirados as portas e janelas, que estavam sendo
forçadas.
Na casa foi grande a confusão, quando uma negra apontou para o telhado gritando:
Oia alí Sinhá, eis tira as teias e vai entrá! Laura correu para a cozinha:
Aticem fogo do sabão, vamos mostrar a estas pestes.
Mulher de pioneiro estava acostumada a tomar resoluções inesperadas. Ela trazia nas
veias de mistura com sangue português uma fusão de raças estranhas e se fora prudente, não
era por temê-los e queria mostrar-lhes.
Clemente, ó Clemente, Maria, Tereza peguem da cuia e atira-lhes sabão. As negras
musculosas munidas de grandes vasilhas correram à tacha e tomando o líquido preto e fervente
iam jogando nos selvagens. Laura, de pé no batente da porta que ligava a varanda à cozinha
comandava seu estranho exército. Atirado o sabão, os atacantes rolavam de lá de cima aos
gritos e a cada nova investida o líquido subia aos jatos. Os escravos temerosos voltavam os
olhos para a linda senhora que alí estava corajosa e a exigir-lhes ação. Mais água e fogo foram
levados ao tacho e Laura mantinha os selvagens a distância anciosamente esperando a vinda
de seu marido, que fora a vila e não devia tardar.
O ataque as portas e telhados recomeçaram mais intensos, quando um tiroteio se fez
ouvir. Os de casa gritaram saudando o socorro que chegava. Os atacantes atiraram-se nas
matas em correria. Laura salvara os seus, mostrando ser uma autêntica companheira dos
vanguardeiros, que com ousadia e coragem conquistaram o sertão.
Sobrevindo a calma o capitão pôde contar tudo a mulher. De volta da cidade passara
pelas roças e encontrando o sinistro voltou a procura de auxílio. As badaladas aflitas dos sinos
da igreja acudiu o povo satisfeito de poder valer-se naquela apertura.
Os índios mataram os negros das plantações, só escapando Justino, que escondido na
copa de alto coqueiro avistara toda tragédia. As cabeças dos escravos foram espetadas nos
tocos e cercas de roças, as plantações queimadas. A consternação foi enorme, pois muitos
deixavam mulheres e filhos. Os prejuízos representavam anos de luta com o mato bruto, índios
e feras.
Os meses seguintes foram de intensa vigília. Voltariam os índios em bando ou em
manhosas ciladas? Ninguém ousava sair sozinho. Se algum animal escapava, se uma vaca
64
dava cria no mato, nenhum homem queria buscá-los. Se alguém mais valente ensaiava um
passeio não raro aparecia morto.
Dias se passaram e a fazenda do capitão era um lugar de morte. Ficaram todos
nervosos, desconfiados. A noite, qualquer ruído diferente punha-os em sobressalto. Decidiram
mudar-se. Eles não temiam a floresta nem os animais, mas o índio sabiam-no vingativo e
cruel. Perseguiria seus descendentes em muitas gerações. E, em um dia qualquer, do mês que
se perdeu no século passado, deixaram para trás a fazenda transferindo-se para a Vila Nossa
Senhora da Penha de Jaraguá, onde adquiriram a fazenda Motuca.
Passaram-se um ano, dois, quando a negrinha favorita da Sinhá lavando roupa alí
mesmo no riacho desaparecera. Foram dadas várias buscas mal sucedidas quando se
lembraram dos selvagens. Seria possível? De que valera deixar seus implacáveis perseguidores
a tantas léguas de jornada? Na certeza do acontecimento Laura definhava, quando um dia,
alegre como se estivesse chagando duma agradável viagem aparece a menina. Fora apenas um
grande susto. Ela trazia consigo uma concha de árvore cheia de ouro, presente dos selvícolas a
Laura.
Leva isso sinhora. Dona Laura muié boa, coroné home mau!
Da florescente Trairas, hoje só resta em pé uma casa. Vê-se nas ruínas o valor de seu
passado. De sua cadeia a mais temida de Goiás, pode-se ver os escombros. Um preso
incendiou-a com os bagaços de cana, pacientemente acumulados para este fim.
A igreja está caída em parte. O calçamento de pedras ainda atinge o rio, mostrando os
restos de um passado laborioso, que não se ajustou ao ritmo da vida presente.
O que teria sido? O ouro esgotou? Foram o sofrimento dos presos clamando contra a
cidade maldita? Por que bateram num padre? Foram os índios? Sim, para muitos foram eles
que em desespero pelo que lhes fora usurpado, procuraram afastar para bem longe o
conquistador, alquebrando espíritos bravos como os de meus antepassados.
Esta história contou-me minha mãe, cujo pai Balthazar, era filho de Antônio que tinha
por mãe Laura.
Yêda Rios Brandão
65
3
O LUGAR DO PADRE SILVESTRE NA MEMÓRIA DE
JARAGUÁ
Daura Rios Pedroso Hamú
A presente capítulo tem por objetivo mostrar um estudo sobre a casa oitocentista que
pertenceu ao sacerdote Silvestre Álvares da Silva, figura ímpar que se destacou não só no
cenário do arraial de Jaraguá como também na província de Goiás, no período em que se deu o
início do Império.
O trabalho aqui apresentado é o resumo da dissertação de mestrado, oferecido pela
UCG, através do IGPA (Instituto Goiano de Pré – história e Antropologia).
Estudar a casa do século XIX ressalta o conhecimento da história dos homens na
complexidade do seu cotidiano, do seu comportamento, das práticas da época e suas
influências, assim como das manifestações quanto às técnicas e materiais construtivos. A casa
do padre Silvestre, símbolo cultural de um tempo histórico, se inseriu num momento de
profundas transformações políticas e culturais no país, identificadas com a transferência da
Corte Portuguesa para o Brasil e as conseqüentes mudanças de hábitos e padrões culturais
introduzidas na sociedade.
Apoiamo-nos nas fontes bibliográficas sobre a história da Jaraguá, nos documentos
primários localizados nos Arquivos Históricos de Goiás e nos depoimentos de pessoas que
66
guardam na memória a história oral que a sociedade de Jaraguá construiu sobre o padre
Silvestre e o significado cultural da sua casa.
Foram buscadas as inéditas documentações manuscritas do seu acervo de família, que
trouxeram contribuições quanto à exatidão de datas importantes que na historiografia atual não
se mostram muito precisas.
Apresentamos o contexto histórico de Jaraguá no século XIX, quando se deu o início
do seu povoamento através da exploração aurífera, a origem do nome Jaraguá, seu
desenvolvimento e a composição de sua sociedade. Destacam-se a presença marcante do negro
escravo e sua participação na sociedade jaragüense, a composição da família no período
mineratório e um breve histórico sobre a introdução do clero no período colonial.
Em seguida, desenvolvemos a história de vida do padre Silvestre, o local do seu
nascimento, a situação de seus pais na sociedade daquela época, quem foram seus irmãos, etc.
Faz-se um estudo da genealogia da família Álvares da Silva em Jaraguá. O padre Silvestre foi
um homem rico, erudito e político atuante, destacando-se como membro da primeira
constituinte de 1823. Também é relacionada parte das obras de arte sacra que se encontram
sob a guarda da família e que compunham o oratório que lhe pertenceu, juntamente com
outros objetos que fizeram parte de seu cotidiano.
Finalmente, a casa é estudada como símbolo da história de Jaraguá, ressaltando as
influências que sofreu da arquitetura colonial, a herança portuguesa, e toda a sua composição
arquitetônica, que envolve não só o seu partido arquitetônico, como também o seu programa
de necessidades, o processo construtivo, os materiais utilizados e sua apropriação.
Compreende-se que, através do espaço doméstico, é possível realizar uma leitura histórica que
reconstitui parte da vida de seu ilustre morador.
O objetivo último da pesquisa é propor o tombamento da casa do padre Silvestre como
forma de preservação e contribuição no resgate de uma relíquia histórica que faz parte não só
do patrimônio regional como também do nacional. Realizar ainda um trabalho educativo que
possibilite ao cidadão jaragüense tornar-se um indivíduo sensível à questão da preservação do
patrimônio cultural.
67
Jaraguá – Breve histórico
Jaraguá nasceu da exploração das minas de ouro, na terceira década do século XVIII,
durante o processo de exploração das jazidas auríferas de Goiás, assim como outros
municípios deste período.
Nos primeiros séculos da colonização do Brasil, várias expedições de caráter oficial
percorreram parte do território de Goiás com o objetivo de explorar o interior e buscar
riquezas minerais.
Os desbravadores das terras goianas que formaram a bandeira de 1722 foram os três
paulistas de Santana de Parnaíba: Bartolomeu Bueno da Silva, João Leite da Silva Ortiz e
Domingos Rodrigues do Prado (principais sócios).
Bueno ocupou a região do Rio Vermelho, seus córregos e afluentes, dando início à
prospecção do ouro que veio marcar o surgimento dos primeiros arraiais de povoamento de
Goiás.
Os arraiais foram se formando e, às margens do Rio Vermelho, fundou-se, em 1727, o
Arraial de Sant‘Ana, depois chamado Vila Boa, mais tarde cidade de Goiás, que veio a ser a
capital da Capitania e assim permaneceu por 200 anos. Nas margens dos córregos e rios das
proximidades de Sant‘Ana, foram surgindo outros centros de garimpo que se transformaram
em arraiais: Anta, Barra, Ferreiro, Ouro Fino, Santa Rita, etc.
As minas de ouro em Jaraguá, segundo Silva e Souza (1967), foram descobertas por
negros faiscadores em 1737. Essa hipótese é também confirmada por Saint-Hilaire
(1975,p.43):
“Alguns negros que tinham ido procurar ouro nos córregos descobriram, em 1736, a
região onde está situado o Arraial de Jaraguá. As riquezas encontrada ali não
tardaram a atrair gente para o local e em breve se formou um povoado onde, pouco
tempo antes, só existia uma região desértica.”
Várias descobertas auríferas foram encontradas por escravos, já práticos em
socavações. Contam-se, além de Jaraguá, as minas de Tesouras, Pilar e Cocal. Os escravos
podiam comprar ou ganhar a alforria de seus senhores, devido aos seus achados (Salles, 1983,
p.90-91).
68
Jaraguá era um pequeno arraial. Concomitante à exploração das minas, algumas
sesmarias foram solicitadas ao governo para implantação de engenhos de açúcar e outras
culturas de subsistência da população, o que proporcionou um considerável crescimento
agrícola do arraial em fim do século XVIII. O ouro constituía uma atividade econômica ainda
que a produção fosse pequena. Chegou a ser explorado durante todo o século XIX, e em várias
décadas do século XX, por faiscadores eventuais.
A distribuição populacional se apresentava escassa no Norte – Nordeste, havendo
maior concentração no Centro – Sul. Os vazios de povoamento colonizador se encontravam na
região dos rios Araguaia – Tocantins. A ocupação dos territórios se dava de maneira acanhada,
desigual com frágil economia, dificuldades na comunicação, isolamento, e refletiam
diretamente sobre a administração, educação, usos e costumes.
Jaraguá recebeu primeiramente migrantes de outros centros decadentes de mineração e
ainda daqueles que desapareceram. Documentos históricos apontam a vinda de pessoas
oriundas da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Traíras para Jaraguá. No final do
século XVIII, os Álvares da Silva vieram desse antigo centro minerador, realizando
importante atuação em Jaraguá, principalmente através da figura do padre Silvestre Álvares da
Silva. Num segundo momento, recebeu tropeiros em busca de novas terras para expandir a
criação de gado. A partir deles, foram constituídas as famílias que tiveram participação
significativa na vida política e social da cidade. Ao lado das famílias instaladas, outras se
constituíram no decorrer do século XIX nas camadas dominantes na região: os Félix de Souza,
Amorim, Rios, Gomes Pereira da Silva, Fonseca, Carvalho, Barbo de Siqueira e outras.
(Duarte, 1999)
A mão de obra escrava foi imprescindível nos primeiros tempos de Goiás, pois
constituía a base do trabalho na mineração e em outras atividades. Por esse motivo, o negro
constituiu a maioria da população durante o primeiro século de povoamento.
Apesar de muitos bandeirantes terem trazido esposas ou famílias constituídas, um
grande número veio desacompanhado de mulheres brancas, contribuindo para o crescimento
da miscigenação. No início do século XIX, esse crescimento se acentuou, trazendo para a
sociedade uma situação de desconforto, pois o bastardo, negro ou escravo, era visto com
69
hostilidade pela população branca, por estar associado a filhos ilegítimos de escravos com seus
patrões.
Em Goiás, o modelo de família apresentado no período colonial entre o final de século
XVIII até a primeira metade do XIX ficou marcado pela transição de duas atividades
econômicas distintas: mineração e agropecuária, atividades definidoras dos modelos familiares
que contribuíram para a compreensão da história da família em Goiás, segundo Nunes (2001),
que se apoiou nos relatos elaborados pelos viajantes europeus. A partir desses relatos, a autora
esclarece que, no período, 1722 a 1850, predominaram as relações familiares instáveis. Foi
quando se deu o início da exploração do ouro, seu declínio e a necessidade de se reativar a
agropecuária.
Por outro lado, grande parte dos valores e da vida social da capitania girava em torno
da religião. Os padres se ocupavam das atividades centrais nos arraiais. Estavam eles na
camada mais culta da sociedade, pois, na sua maioria, dominavam ou tinham noções gerais de
teologia, filosofia, gramática, retórica e direito; alguns possuíam uma sólida cultura
humanística.
Em Jaraguá, as atividades paroquiais se encontravam sob a responsabilidade do
sacerdote Silvestre Álvares da Silva. Figura ímpar, que se destacou na província de Goiás de
maneira brilhante e honrosa no início do século XIX e que, diferentemente de outros padres da
época, não constituiu família e pela sua notoriedade se tornou o motivo fundamental do nosso
estudo.
Memória – Histórica do Padre Silvestre
A história da vida do padre Silvestre foi reconstruída a partir de documentos oficiais,
dos relatos dos viajantes estrangeiros que passaram por Jaraguá e dos relatos orais fornecidos
pela população atual de Jaraguá.
Padre Silvestre Álvares da Silva nasceu na capela de São Joaquim do Cocal, filial da
Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Traíras, no dia 31 de Dezembro de 1773, filho do
português Manuel Álvares da Silva, abastado proprietário e negociante, e de Francisca
Machado Ferreira, preta da nação ―Mina‖, batizada na Matriz de Nossa Senhora da Conceição
70
de Traíras (Lobo, 1974). Manuel, de origem portuguesa, nasceu na freguesia da Alvarenga,
Bispado de Braga, foi para o arraial de Cocal, freguesia de Traíras, em busca de riquezas
advindas da exploração aurífera. Nesse arraial, instalou-se por volta de 1765, período em que
se iniciou a família Álvares da Silva, construída nos moldes das famílias do período colonial
minerador, que, via de regra, como já vimos, eram famílias instáveis.
Através do trabalho de pesquisa de Adélia Freitas da Silva58, em andamento, é possível
afirmar que Francisca Machado, conhecida no que restou do Arraial de Cocal como Chica
Machada, não foi apenas mais uma escrava que se amasiou com seu dono. Mais que isso, de
acordo com a tradição oral de Cocal, ela se transformou num mito que o cocalense faz questão
de lembrar como elemento referencial formador de sua identidade. A memória coletiva aqui se
cristaliza porque existiu-lhe um fundamento ―aparentemente histórico: a existência das etnias
ou das famílias, isto é, dos mitos de origem.‖ (Le Goff, 1984, p.14).
Capitão Manuel e Francisca Machado tiveram vários filhos, dentre eles: Silvestre,
Manuel, Pedro e Antônio. Possivelmente tiveram outros ainda sujeitos a averiguação,
inclusive um caso de irmão unilateral59, hipótese que só poderá ser confirmada através da
documentação história de Cocal60, atualmente na Cúria de Uruaçu, não disponível aos
pesquisadores.
Sabe-se também por meio da pesquisa de Adélia Silva, apoiada na história oral, que os
filhos de Francisca Machado lhe foram tirados ainda pequenos. Esse levantamento confirma as
considerações de Lobo (1974), quando menciona sobre o padre Silvestre: ―Sendo filho
ilegítimo, foi criado em companhia de sua progenitora até a idade de sete anos, quando foi
reconhecido por seu progenitor e trazido para sua companhia.‖
Segundo esse mesmo autor, padre Silvestre, quando criança, se destacou entre seus
colegas do curso primário devido à sua vivacidade e inteligência.
Sob a proteção paterna, foi enviado ao Rio de Janeiro para realizar seus estudos no
Seminário Archiepiscopal de são José. Esse seminário, fundado por Dom Frei Antônio de
58
Adélia Freitas da Silva é aluna do Mestrado em Sociolinguística, do Departamento de Estudos Literários e
Lingüísticos da Faculdade de Letras da UFG
59
De acordo com as suposições do escritor Jarbas Jayme, padre Silvestre teve um irmão unilateral que também se
tornou sacerdote – padre Manuel da Silva Álvares.
60
Esses documentos estão na Diocese de Uruaçu, não sendo permitida a consulta ao público. As poucas
informações são transmitidas pela Senhora Salomé, pessoa responsável pelos arquivos.
71
Guadalupe, por provisão de 5 de setembro de 1739, sobreviveu até o ano de 1904. ―O velho
edifício do Seminário de São José desapareceu, com a abertura da avenida Rio Branco.‖
Recebeu a 18 de Maio de 1799 as ordens de presbítero do hábito de São Pedro ministradas
pelo bispo Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco. A carta de ordem foi
expedida em 29 de agosto do mesmo ano. (Santos, 1914)
A pesquisa realizada por Fonseca e Silva (1948) na cúria do Rio de Janeiro, no período
de julho a agosto de 1948, aponta importantes questões que apresentam o rigor da época,
quando se tratava da ordenação principalmente de um homem de cor. Padre Silvestre, por ser
mulato, na ocasião dos registros de suas gradativas ordenações, teve os seus dados anotados da
seguinte forma:
“Silvestre Álvares da Silva: natural da comarca de Traíras, capitania de
Goiás, filho natural de Manuel Álvares da Silva e de Francisca Machada.
Dispensado da ilegitimidade e defeito de cor. A primeira tonsuras e
ordens menores ele a recebeu em 28 de março de 1798, o subdiaconato a
29 de março de 1798, o diaconato a 22 de setembro de 1798 e o
presbiterado a 18 de maio de 1799.” (Fonseca e Silva, 1948)
De acordo com Lobo (1974), padre Silvestre dedicou-se aos estudos sem se dar conta
de que sua saúde se encontrava debilitada por problemas pulmonares. Por isso, a conselho
médico, retornou a Jaraguá.
De volta a Goiás, tornou-se coadjutor em Meia-Ponte, atual Pirenópolis (Jayme, 1971).
Posteriormente, foi designado coadjutor da freguesia de Santa Cruz, com residência na filial
do Bonfim com o Cônego José Caetano Ferreira de Aguiar. Mas, antes de entrar nesse
exercício, foi removido como capelão para Jaraguá pelo sucessor do Cônego José Caetano, o
visitador Roque da Silva Moreira. Desempenhou com dedicação o seu trabalho a serviço da
Igreja, revelando cuidados estéticos, o que chamou a atenção de Cunha Mattos quando
observou que, na Igreja Nossa Senhora da Penha de Jaraguá, os três altares estavam bem
cuidados, pois tinham sido recém – reformados e decorados pelo Vigário.
Seu testamento, elaborado dez anos antes de seu falecimento (1853), nos fornece com
exatidão o ano em que, como capelão, seguiu para essa cidade. Assim está colocado:
72
“Declaro que sou morador nesta cidade Villa de Jaraguá desde mil
oitocentos e três, servindo de Capellão do lugar até, o ano de mil oitocentos
e trinta e quatro em que tendo sido elevada à freguesia de natureza collativa,
me opuz e obtive o ser Vigário Collado até o presente.”
Este documento foi aprovado e assinado pelo Escrivão da Câmara Eclesiástica, padre
José Militão Xavier de Barros.
Padre Silvestre tomou posse como vigário em Jaraguá a partir de sua nomeação, que se
deu no dia 3 de abril de 1834, depois de ter sido criada a freguesia de Nossa Senhora da Penha
de Jaraguá, através do decreto nº 67, de 17 de outubro de 1833.
Essa freguesia foi criada em conseqüência do decreto nº 8 de julho de 1833, que elevava o
arraial de Jaraguá à categoria de Vila. Mesmo estando claramente definidas as datas das
funções de capelão e de Vigário atribuídas ao Padre Silvestre em Jaraguá, nota-se, através da
historiografia e nos livros dos registros de batismo e de óbito da Igreja Nossa Senhora da
Penha, que, na prática, o termo Vigário lhe foi atribuído muito antes de sua oficialização.
A primeira capela construída nessa cidade foi aberta aos fiéis em 1740, com a
assistência do padre Manuel Pereira de Souza, sob a invocação de ―São José do Córrego de
Jaraguá.‖ Teve, em abril de 1743, seu primeiro capelão residente, padre Manuel Francisco. Em
1748, a essa capela referiam-se os fiéis como São José de Nossa Senhora da Penha. A partir de
1757, passou a se chamar apenas Nossa Senhora da Penha. (Fonseca e Silva, 1948).
Dentre os irmãos do padre Silvestre, dois ficaram conhecidos na história: Antônio
Álvares da Silva, por ter sido o único irmão a quem destinou toda a sua fortuna; e o também
sacerdote, padre Manuel da Silva Álvares.
Vale citar que o padre Silvestre, quando elaborou seu testamento em 1853, já se
encontrava com a avançada idade de 80 anos. Nesse sentido, podemos presumir que Antônio
possivelmente seria o seu único irmão vivo com descendentes.
O coronel Antônio Álvares da Silva, como cita o testamento, residia em Traíras, mas já
havia vivido em Jaraguá, onde deixou os atuais descendentes. Teve uma numerosa família que
migrou para Niquelândia e Jaraguá. Nessa última, os Álvares da Silva se expandiram,
participando ativamente da sociedade jaragüense. O político Manuel Marcelino ( viveu de
abril de 1896 a julho de 1984), mais conhecido como Manuel Frederico (sobrinho bisneto do
padre Silvestre) foi um deles, tornou-se homem largamente estimado, deixando valiosa
73
contribuição no trabalho realizado como maestro da Banda Santa Cecília61. Teve vários
irmãos, dentre eles o Sr. Silvestre Álvares da Silva. Com sua esposa Rosa Moreira de Pina e
seus filhos Manuel, Ana, Francisca, Vanilda, Frederico, Maria e Elci ( na ordem cronológica)
foram os últimos descendentes da família Álvares da Silva a residir no imponente casarão que
pertenceu ao padre Silvestre.
Sobre seu outro irmão, padre Manuel da Silva Álvares, consta sua importante atuação
no relato do viajante austríaco Johann Emanuel Pohl em sua passagem por Goiás no ano de
1819:
“ Depois de légua e meia, finalmente chegamos fatigados a Traíras, onde
pensávamos passar algum tempo, especialmente porque, no dia seguinte, 30
de maio, começava a festa de Pentecostes. Há dois meses já aqui me
esperava o Padre Manuel da Silva Álvares. Havia sido à minha disposição
uma casa espaçosa, assobradada, com numerosos quartos. Tive de prometer
ao Vigário que faria as minhas refeições diariamente com ele; a minha gente
ele enviou, como mantimento, um quarto de boi. Este sacerdote, também
vigário da Barra era um mulato, homem muito instruído, respeitado em toda
a capitania, erudito e rico, e, ao mesmo tempo, homem muito cortês. Eu
próprio não sei como agradecer as amabilidades com que me cumulou,
tornando agradável a minha permanência em Traíras.” (Pohl 1976, p.192)
Bertran (1994) informa que padre Manuel primeiramente foi Vigário em São Félix no
período de 1805 a 1807. Depois, Vigário de Traíras e Barra. Sobre ele escreveram também em
seus estudos sobre Goiás Americano do Brasil (1982) e Jarbas Jayme (1971).
Mediante os documentos analisados e depoimentos colhidos dos parentes do Padre
Silvestre, foi possível delinear parte da genealogia da família Álvares da Silva (fig. 1).
Seguramente estaria mais elaborada, se tivesse sido possível o acesso aos arquivos da
Cúria de Uruaçu. É interessante observar na genealogia que o nome Manoel se tornou presente
em todas as gerações da família. Os Silvestre e Frederico também foram comuns entre as
gerações que se seguiram.
No testamento, além de deixar toda a sua fortuna para seu irmão Antônio, determinou a
liberdade de vários de seus escravos. Fez também algumas recomendações para que seu corpo
61
Dulce Pedroso apresenta um interessante trabalho sobre a vida deste maestro: Breve relato sobre a vida do
músico e maestro Manuel Marcelino da Silva Álvares. Goiânia: trabalho digitado, escrito por ocasião das
comemorações do dia de Santa Cecília em Jaraguá, 1998.
74
fosse envolto em seu hábito juntamente com as vestiduras sacerdotais, e ainda deixou
especificada uma quantia em dinheiro para que se realizassem missas pela sua alma. Constam
na relação de seus bens, além de pratas, sítio, terras minerais e gado.
Figura 1- Genealogia da Família do Padre Silvestre
75
Padre Silvestre faleceu no dia 20 de maio de 1863 e seu corpo foi sepultado na capela –
mor da Igreja Nossa Senhora da Penha, hoje Igreja Matriz de Jaraguá. (Jayme, 1971).
Os viajantes e cronistas que passaram por Goiás e principalmente estiveram em
Jaraguá em contato com o padre Silvestre registraram suas impressões e ressaltaram suas
virtudes.
Saint – Hilaire, em 1819, hospedou-se na casa do padre Silvestre e conheceu suas
habilidades. Revela que já tinha ouvido falar do padre Silvestre no Rio de Janeiro,
“ Onde era conhecido por seu pendor pela matemática. Fizera
seus estudos nessa cidade, e além de sua ciência favorita,
aprendera um pouco de grego e de filosofia. Sabia também
francês e tinha em sua biblioteca alguns livros de nossos autores.
Seja como for, as pessoas que naquelas regiões têm algum estudo,
como o capelão de Jaraguá, acabam por reverter à ignorância, por
constituírem uma minoria insignificante. Quando um homem instruído
se vê atirado a um dos arraiais da Província de Goiás, não encontra
ninguém com quem possa compartilhar seus gostos e suas ocupações
favoritas. Se encontra alguma dificuldade, não achará ninguém que o
ajude a sobrepuja-la, e não terá nunca a emulação para sustentar-lhe
o ânimo. Pouco a pouco irá perdendo o gosto pelos estudos, que tanto
apreciara, e acabará por abandona-los inteiramente, passando a
levar uma vida tão vegetativa quanto a das pessoas que o cercam.”
(1975, p.43)
Padre Silvestre não perdeu o ânimo pelos estudos, como presumia Saint-Hilaire. Em
1823, foi eleito deputado constituinte e teve uma participação ativa, ―defendendo os interesses
de Goiás e da Nação‖. Nesse período em que atuou como Deputado, permaneceu no Rio de
Janeiro.
Quando regressou a Jaraguá em 1824, reassumiu as funções paroquiais do arraial. Com
suas experiências políticas, teve grande influência no desenvolvimento de Jaraguá. Cunha
Mattos retrata seu empenho na reconstrução das pontes sob os rios Uru e Almas:
“ A ponte do rio das Almas no arraial de Meia – Ponte acha-se intransitável;
a setentrional do Uru e a do Rio das Almas, pouco distante do córrego de
Jaraguá, há de ser reedificada no ano de 1825 com excelentes madeiras que
se acham prontas: deve-se isto aos esforços do reverendo padre Silvestre
76
Álvares da Silva, que o requereu no ano de 1823 sendo deputado desta
província na Assembléia Constituinte.” (1980, p.43)
Pohl (1976, p.118), quando passou por Jaraguá em Janeiro de 1819, fez o seguinte
relato a respeito do Padre Silvestre:
“ ...tive, na casa de um mulato, um aposento bastante cômodo (...) e, na
minha sala, separada do quarto de dormir por uma cortina adornada de grã,
havia cadeiras, mesa, etc. As almofadas da cama eram bordadas de flores e
guarnecidas de largas rendas. Eu comia com talheres de prata, bebia em
copo de prata e sobre a mesa ardiam velas de cera em castiçais do mesmo
metal.”
Passando por Jaraguá numa outra ocasião (novembro de 1819), Pohl fez outras
observações:
“... depois de andarmos errando por uma hora, resolvemos ir ainda até
Córrego do Jaraguá. Lá chegamos pelas 5 horas da tarde, depois de termos
feito seis léguas e meia e acamparmos no rancho destinado aos viajantes. Eu
tinha umacarta de meu digno amigo, o Vigário de Traíras, para entregar ao
seu irmão, Vigário Local. Este queria a todo custo que eu ficasse em sua
casa, mas recusei, porque de manhã cedo eu pretendia continuar a viagem.
Ele enviou-nos várias iguarias para o jantar.” (1976, p.285).
Padre Silvestre fez parte da primeira comissão de deputados para estabelecer a
Constituinte do Brasil Império.
Um dos mais votados, padre Silvestre e o Sargento - mor Joaquim Alves de Oliveira
foram consequentemente escolhidos para representarem a Província de Goiás na Assembléia
Geral, Constituinte e Legislativa do Brasil.
Padre Silvestre seguiu com destino ao Rio de Janeiro para exercer suas funções de
deputado, enquanto o Sargento – mor Joaquim Alves de Oliveira logo em seguida deu entrada
a pedido de dispensa. Através dos diários da Câmara, foi possível fazer um levantamento da
participação do padre Silvestre nas sessões realizadas, e também no que se refere à província
de Goiás.
77
Participou da elaboração do projeto da constituição, registrado nas sessões de setembro
de 1823, que discutiram sobre a sua revisão e aprovação.
No ano seguinte, a Assembléia Constituinte e Legislativa do Brasil foi dissolvida pelo
Imperador D. Pedro I.
Segundo Lobo (1974, p.58), depois de dissolvida a Assembléia, os amigos do padre
Silvestre tentaram convencê-lo a que permanecesse no Rio de Janeiro. Mas a esses respondeu:
―tenho saudades até da relva que cobre as ruas de Jaraguá.‖
Retornando a Jaraguá, reassumiu suas atividades de sacerdote. Introduziu nessa
comunidade a organização da Irmandade do Santíssimo Sacramento em 5 de junho de 1838,
para mostrar o valor do sacramento da Eucarística e organizar celebrações e festejos. Depois
da implantação da Irmandade, dedicou-se à elaboração de seu regulamento, que foi aprovado
pelo promotor religioso de Vila Boa, Joaquim Vicente de Azevedo. A Irmandade do
Santíssimo Sacramento da Vila de Jaraguá teve no seu fundador o seu primeiro presidente.
Por volta de 1840, padre Silvestre teve como coadjutor o padre Manoel Ribeiro de
Freitas. Em trabalho conjunto, conseguiram estabelecer em Jaraguá alguns dos principais
festejos que contribuíram para a integração social da comunidade jaragüense – festa de São
Sebastião e do Divino Espírito Santo, que continuam sendo realizadas até os dias atuais. Padre
Manoel foi também o responsável pela criação da primeira banda de música de Jaraguá, sendo
reverendado como o ―pai‖ dos músicos da cidade. (Fonseca, 1999).
Em trabalho de pesquisa com a história oral, que se apoiou também na reconstituição
da memória coletiva, foram utilizados relatos de membros da família do padre e da
comunidade, para contribuir com a historiografia, com a documentação histórica do arquivo de
família e outras fontes. Esses relatos definiram ―os lugares da memória‖ por meio da
arquitetura que consolidou-se na casa colonial do padre Silvestre, tornando-se assim
testemunha de um tempo vivido pelo ilustre goiano.
Através de Halbwachs (1990), podemos dizer que a bagagem de lembranças históricas
do padre Silvestre foi ampliada através da conversação e da leitura. E que ela pode ser
analisada como uma ―memória emprestada‖, pois é memória histórica e não se refere à
memória de um tempo presente.
78
Marieta de Morais Ferreira (1994, apud Chaul, 1998) destaca duas linhas de
abordagem no trabalho com a história oral. A primeira se volta para os estudos das elites, das
políticas públicas e da trajetória dos excluídos, cujas fontes são especialmente precárias. A
segunda privilegia os estudos das representações, elegendo em papel principal as relações
entre memória e história.
A pesquisa se apoiou nessa segunda abordagem, de acordo com a justificativa de Chaul
(1998):
“ ...A preparação da entrevista não se fundamentou na checagem das
informações ou nos levantamentos de provas ou contraprovas. Isso não
altera
o caráter trabalho enquanto estudo de história. Ao contrário,
reafirma-o ampliando esse conceito e o objeto. Aliás, citando Paul Thompson
(1992, p.184), „os boatos não sobrevivem a não ser que façam sentido para
as pessoas.‟ Aqui também não se ignoram os desafios tanto acadêmicos
quanto pessoais na realização do trabalho com fontes orais.”
Explorando a compreensão dos mecanismos da memória, trabalhamos com a memória da
família do padre e com relato de pessoas idosas no que se refere à sua história e à de sua casa,
que se tornou uma edificação símbolo em Jaraguá. De um lado, padre Silvestre foi uma figura
tão ilustre na cidade que é comum muitos jaragüenses cujas famílias se estabeleceram em
Jaraguá no séc. XIX deterem certo conhecimento acerca do sacerdote; de outro lado, a
edificação onde residiu é quase a única a resistir ao tempo e aos impulsos da ―modernidade‖.
Dessa forma, a ela foi atribuída a tarefa de transmitir ao cidadão jaragüense as histórias
passadas que fizeram parte da construção de sua identidade. O presente lança um olhar sobre o
passado, ―atribuindo-lhe funções que justificam situações e inquietações do momento‖.
(Rodrigues, 1998, p. 84)
A casa do padre Silvestre é um elemento arquitetônico – patrimônio cultural – que se
faz presente na leitura histórica. E, como documento histórico, é um dos recursos possíveis
para o entendimento da construção histórica.
A memória está presente na vida cotidiana do homem dentro da história. Dessa forma,
utilizando-se da memória, refaz-se a casa e, por conseguinte, o cotidiano.
79
Quando se pensa na casa, as pessoas não se prendem somente à matéria, mas
descrevem sobre o que ocorreu naquele espaço. Bosi (1998), em seu trabalho ―Memória e
Sociedade‖, visualiza a casa como um dos espaços da memória. A casa torna-se tradutora de
experiências vividas e atualizadas na memória individual ou de grupos.
As experiências vividas na casa reconstituem parte da vida do Padre Silvestre. E muitas
memórias foram revistas, selecionadas e transmitidas através das gerações.
Inicialmente, foram colhidos alguns depoimentos dos parentes do padre Silvestre,
pessoas conhecidas na cidade.
No decorrer das entrevistas, foram surgindo indicações que apontaram nomes de
pessoas que poderiam prestar valiosas informações, pessoas idosas e que gostam de história,
como o historiador autodidata Joaquim Militão, que, apesar dos seus 91 anos de idade, ainda
se encontra em perfeitas condições para transmitir fatos antigos e relevantes de Jaraguá.
Os depoimentos dos mais velhos remetem às considerações de Bosi (1994, p.74):
“ ... sem os velhos, a educação dos adultos não alcança plenamente: o
reviver do que se perdeu, de histórias tradições, o reviver dos que já
partiram e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o
poder que os velhos tem de tornar presentes na família os que se ausentaram,
pois deles ainda ficou alguma coisa em nosso hábito de sorrir, de andar. Não
se deixam para trás essas coisas, como desnecessárias. Esta força, essa
vontade de revivescências, arranca do que passou seu caráter transitório, faz
com que entre de modo constitutivo no presente.”
Dessa forma, foram surgindo os relatos que selecionamos de acordo com nossos
questionamentos para maior significado de nossa proposta de trabalho. Dentre os
entrevistados, havia aqueles que nada sabiam mencionar sobre o padre Silvestre, mas faziam
um breve comentário sobre sua importância e sobre sua casa. Sobre a memória dos
jaragüenses relacionadas ao padre Silvestre, Pedroso escreve:
“ Segundo informações orais, o padre Silvestre era um homem santo, cheio
de virtudes e tinha o dom de intuir acontecimentos. Conta-se que certa vez,
uma de suas vacas paridas corria perigo e ele, pressentindo o local em que
80
ela se encontrava, mandou um de seus empregados busca-la. Conta-se,
ainda, que o padre Silvestre foi um homem virtuoso, não teve mulher nem
filhos, uma exceção entre muitos sacerdotes de seu tempo, como, por
exemplo, os padres Manuel Ribeiro de Freitas (natural de Traíras) e Luiz
Carlos Fonseca ( Itaberaí), que deixaram grande descendência em
Jaraguá.” (1997, p.3)
Contudo, muitos idosos descendentes de várias gerações de jaragüenses, pessoas que
gostam de histórias, já ouviram falar de algumas passagens da vida do padre Silvestre e as
guardaram na memória.
Através desses depoimentos, torna-se possível entender o olhar que a memória coletiva
tem sobre a casa e seu ilustre proprietário. Essa leitura, através da oralidade, se apresenta
também em forma de representação simbólica do imaginário e do sobrenatural.
O jaragüense Fabiano Luiz de Castro (32 anos) relata que, através de seu avô,
conheceu passagens da vida do padre Silvestre. Conta que este, morando em uma casa alta,
olhava através de uma luneta o trabalho dos camaradas em suas terras ao pé da serra de
Jaraguá. Por isso sabia ―quem trabalhava, quem dava um escamotiadinha‖.
Esse fato possivelmente contribuiu para o que a sociedade jaragüense sempre leu como
premonições do padre. A sociedade, de alguma forma, produz os meios de lembrar e reviver
seus mitos para fugir do fantasma do esquecimento.
Ainda Fabiano de Castro, apoiando-se nas lembranças que fazem parte da memória
coletiva, representa simbolicamente o imaginário e o sobrenatural, quando diz que ―o padre
Silvestre tinha uma afinidade com a sua vaca, que ele até andava em cima dela‖.
A história sobre ―a vaca misteriosa do padre Silvestre‖ é um conto que se encontra em
trabalho realizado pelos pesquisadores do Centro de Estudos da Cultura Popular (CECUP –
1982). Esse conto descreve a história de uma vaca, pertencente ao padre Silvestre e dada como
morta, que reapareceu no enterro do pároco em Jaraguá. Elabora representações sociais da
morte, do enterro, da religiosidade e da personificação simbólica de um ser sobrenatural.
Segundo Le Goff, o primeiro domínio da memória coletiva é o mito. O mito, nesse
sentido, é sempre reconstituído e está totalmente ligado às configurações da morte e da
eternidade. A história, quando transmitida pela oralidade, se constrói permitindo à memória
81
mais liberdade e possibilidades criativas, considerando o seu papel central à dimensão
narrativa e à história cronológica dos acontecimentos. Le Goff (1984)
Outro relato sobre a vida do padre Silvestre está na fala de Diva Álvares da Silva (59
anos), parente. Acrescenta que ele era um homem bom e muito religioso. Possuía vários
escravos a seu serviço e na exploração do ouro em suas terras. Na fazenda ao pé da serra, o
ouro foi prospectado, deixando remotos vestígios no solo. Conta Diva Álvares que o padre
Silvestre comia com talheres de prata por ser este um meio de detectar se a comida se encontra
envenenada. Mesmo considerado um homem bom, possivelmente tinha desafetos entre seus
escravos. A declarante refere-se a um oratório cheio de imagens de santos, que atualmente se
encontra na casa da prima Elenir Álvares, em Goiânia. As imagens foram aos poucos
distribuídas entre os familiares e algumas foram vendidas.
Sabe-se que, da época do padre, alguns móveis foram conservados. Tem-se
conhecimento de um grande oratório do banco da varanda e de duas escrivaninhas iguais,
algumas colheres de prata e louças, e uma bacia de tomar banho, vendida para a jaragüense Dª.
Dalila Machado.
Mas parte da memória coletiva de Jaraguá não é reproduzida somente pelos habitantes
mais velhos da região. Existe uma hierarquia de valores e tradições mantidos pela cultura
popular que, se não repassados pela figura dos moradores mais velhos, ao mesmo tempo agem
como fonte de sabedoria popular valorizada e transmitida também pelos habitantes mais
jovens. (Castro, 1998)
Para o Engº. Eugênio Alano Machado de Freitas, fazendeiro e empresário, exprefeito da cidade, o conhecimento sobre a vida do sacerdote foi adquirido de seu pai, que
também foi um político atuante e pertenceu a uma das famílias tradicionais de Jaraguá.
Comentou que o padre possuía uma luneta e que, a partir dela, controlava o trabalho de
seus escravos. Dessa forma, sem conhecer esse recurso tecnológico, as pessoas acreditavam
veementemente que o padre possuía o dom de ―saber tudo‖ o que se passava em sua
propriedade.
Vale esclarecer que o Pe. Silvestre tinha, entre suas propriedades, uma grande parte do
pé da serra de Jaraguá, o que justifica os relatos que mencionam a luneta, pois a casa estaria
situada numa posição estratégica.
82
Dr. Alano (como é conhecido) fala de sua atuação como prefeito, quando comenta ter
realizado o tombamento da casa do padre Silvestre em âmbito municipal. Fala do descaso dos
atuais governantes e das dificuldades financeiras do município para um empreendimento de
grande envergadura na restauração do casarão oitocentista.
Elenir Álvares Ribeiro da Costa (55 anos) é também parente do Padre Silvestre. Ela
é guardiã do oratório e de algumas das imagens que fazem parte de todo o acervo. Conta
Elenir que seu avô, Frederico Augusto Álvares da Silva, herdou do padre muitos dos seus
pertences e os presenteou aos seus filhos. Ela se tornou a guardiã dos objetos que lhe foram
passados pelo seu pai, Manoel Marcelino, que se preocupou em preservar e conservar objetos
e documentos escritos da família. As peças estão sob seus cuidados e necessitam de
restauração. As fotos apresentadas foram emprestadas para reprodução. As imagens revelam
os objetos que se encontram disponíveis para comércio no mercado. Vale lembrar que essas
peças, de acordo com o Decreto Lei Federal nº 4.845, de novembro de 1965, estão proibidas
de deixar o país, por serem obras de arte do período colonial, possivelmente do início do
século XIX. As fotos dos objetos foram identificadas pelo arquiteto e historiador Rogério
Tadeu de Salles Carvalho62. Dessa forma foi possível fazer uma descrição sobre cada obra. As
figuras (2 e 3) apresentam parte desta obra.
Figura 2 – Crucifixo –
Cruz de madeira, esplendor
em prata e sítio em cobre.
Possui policromia e
aplicações com anjos.
Foto: Acervo da Família
Álvares da Cunha
Figura 3 – Nossa Senhora
das Dores - coroa em ouromanto pintado em ouro
decorado com rosas de
malabar – manto esgrafiado.
Fonte: Acervo da família Álvares
da Silva.
62
Rogério Tadeu de Salles Carvalho é responsável pela manutenção e elaboração do Banco de Bens Culturais
Procurados – BCP no DID/IPHAN/Min C – Departamento de Identificação e Documentação do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da Cultura.
83
O relato do Sr. Frederico de Pina Álvares (63 anos, conhecido como Dirico)
confirmou as declarações de sua irmã Maria Álvares sobre as alterações da cozinha,
acrescentando no seu depoimento lembranças de seu tempo de menino, em que a grande
cozinha permanece como um cenário importante. No seu interior, um fogão à lenha compunha
o quadro. Ao lado, um quartinho para guardar os mantimentos e, mais adiante, uma cisterna,
que se encontrava protegida por uma pequena cobertura. São elementos que fizeram parte do
casarão e que hoje se encontram apenas na memória de seus antigos moradores.
Outro fato importante mencionado pelo Sr. Frederico esclarece questões relacionadas
aos escravos: uma parte do lote que fazia a composição da área residencial do casarão foi
vendida para acertos de inventário (na segunda metade do século XX). Nesse local, havia um
pequeno casebre de pau-a-pique onde residiam dois negros idosos, remanescentes de escravos.
Parece provável que ali se encontrava a senzala que abrigou os escravos de propriedade do
padre Silvestre.
O Sr. Frederico fala com toda segurança sobre a bengala de padre Silvestre. Segundo
ele, ela não apresentava apenas o cabo em marfim mas em toda a sua estrutura.
Complementando, citou detalhes elaborados em ouro nas suas extremidades. Afirma também
que alguns objetos de prata que pertenceram ao padre ainda estão sob a guarda da família.
Estes relatos nos permitem analisar e interpretar um passado que se manifesta num
conjunto de valores que têm suas raízes no período colonial brasileiro. São temas de natureza
étnica, política, econômica, religiosa e sócio-cultural relacionados à vida do padre Silvestre e
resgatados pela memória – história.
A Casa do Padre Silvestre
A cidade de Jaraguá está entre as vilas do período colonial que foram construídas sem
planejamento prévio, apresentando como característica principal a irregularidade delineada na
sua conformação urbana.
A arquitetura residencial brasileira desse período, mesmo tendo desenvolvido
particularidades regionais, apresentou em todo território uma feição semelhante herdada da
casa portuguesa. Essa semelhança veio por imposição da Coroa, divulgada pela Carta Régia de
84
11 de Fevereiro de 1736, que determinava para as residências das vilas uma mesma fachada,
deixando o seu interior de acordo com as necessidades de cada morador.
Em decorrência dos estreitos terrenos de pequena testada, as residências mantiveram
uma mesma distribuição de compartimentos no seu interior.
Essas edificações, unidas nos seus limites laterais, tipo ―parede – meia‖, com suas
coberturas de duas águas caindo para a rua e para o quintal, colocadas lado a lado,
determinavam os limites das vias públicas, criando uma seqüência de aberturas nas fachadas e
definindo o conjunto cheio/vazio. Apesar da simplicidade, notam-se com clareza as
influências paulistas e portuguesas não só em relação à técnica utilizada como também na
definição do espaço (Lemos, 1989)
Esse modelo padrão que se repetiu nas fachadas deixou transparecer (podemos assim
dizer) a preocupação do colonizador em dar para as vilas e cidades uma aparência de cidade
portuguesa levando Paulo Santos a chamar nossas cidades de ―cidades portuguesas do Brasil‖
(apud Coelho, 1997)
As construções residenciais desse período demonstram a influência popular, o saberfazer local, e apresentam na sua composição o adobe e o pau-a-pique. A taipa-de-pilão foi
empregada com maior freqüência em construções religiosas mais requintadas. (Coelho, 1996).
Transpondo tais conceitos para Goiás, especificamente Jaraguá, pode-se afirmar que,
nos dias atuais, Jaraguá apresenta o seu núcleo urbano inicial bastante alterado no que se
refere à arquitetura edificada. Grande parte de suas construções antigas foram substituídas e
outras tantas tiveram suas fachadas totalmente descaracterizadas. Raras são as edificações que
conseguiram resistir ao tempo. A casa do padre Silvestre foi uma delas. (Fig. 4)
Figura 4 – Casa
do padre
Silvestre.
Foto: Silvio
Bragato, 2002.
85
Construída no final do século XVIII ou início do século XIX, ainda preserva sua
característica inicial. Apontada pelo escritor Jarbas Jayme (1971) como uma relíquia a ser
preservada, foi citada por Cunha Mattos (1985) em sua passagem por Jaraguá como sendo ―a
única casa digna de nota‖.
Sua característica se enquadra nas características da casa colonial goiana apresentadas
por Coelho. Esse estudo estabelece modelos-padrões da casa em questão, colocando à parte
suas particularidades (por ser uma casa de esquina, consequentemente sofreu variações
importantes). Construída a partir da duplicação de um lanço, atendia às necessidades de seus
moradores e mantinha na distribuição de seus espaços a mesma forma de estrutura familiar
existente no período.
A edificação foi elaborada a partir de uma estrutura autônoma de madeira, obedecendo
à prática das construções da época. Suas paredes externas em adobe e as internas, de acordo
com o levantamento do INDUR63, foram elaboradas em taipa de sebe, diferentemente da
prática comum que normalmente apresentava as paredes internas de pau-a-pique. No reboco, o
barro, cal e areia. A taipa de pilão, segundo Coelho (1996), era utilizada em geral apenas nas
fachadas, talvez para demonstrar, a partir da imponente residência, a importância ou a riqueza
de seu proprietário. Mais ainda, o uso da taipa nas fachadas permitia um beiral mais acentuado
e este também estava relacionado à riqueza do dono.
A casa é um produto da cultura, cujos espaços se organizam de acordo com as funções
que a ele foram atribuídas e que se tornam diretamente relacionadas com os hábitos, costumes
e modos de vida da família que neles se instala.
A casa colonial mantém um significado simbólico muito forte, quando a lembrança é
dos negros- escravos. Encontramos nessa o que chamamos de ―memória silenciada‖. Porque
são memórias de que não se quer lembrar. Mas o negro ausente deixou impregnadas suas
marcas, pois sem ele a casa colonial teria se tornado ―inabitável‖. Nas palavras de Lúcio
Costa:
63
Este levantamento foi realizado pelo INDUR através do projeto Preservação do Patrimônio Ambiental do
Estado de Goiás.
86
“Era ele quem fazia a casa funcionar: havia negro para tudo – desde
negrinhos sempre à mão para recados, até negra velha, babá. O negro era
esgoto, era água corrente no quarto, quente e fria; era interruptor de luz e
botão de campanhia; o negro tapava goteira e subia vidraça pesada; era
lavador automático.” (Apud Oliveira, 1999, p.177)
A casa em questão estabelece em sua fachada um equilíbrio entre o cheio e o vazio,
fazendo das janelas um importante elemento estético. Utilizando a madeira como material
fundamental no emolduramento e na vedação das aberturas, de vergas arqueadas, as janelas
não se encontram mais com suas características iniciais. Através de fotos antigas e análise ―in
loco‖, percebem-se vestígios da janela original, como nas dobradiças que ainda hoje
permanecem nas esquadrias, sendo possível afirmar que elas trabalhavam em conjunto com
venezianas e folhas de guilhotina pelo lado externo. As guilhotinas eram feitas com caixilhos,
vedados com lâminas de malacacheta encontrada em grande quantidade na região jaragüense.
As lâminas de malacacheta substituíam o vidro, que era um material de difícil acesso.
Atualmente, as venezianas e folhas de guilhotina foram substituídas por apenas duas folhas
cegas de madeira.
As varandas das casas coloniais, segundo alguns historiadores de arquitetura como
Lúcio Costa e Júlio Roberto Katinsky, (apud Oliveira, 1999, p. 182), eram espaços
multifuncionais que traziam influências da cultura indígena, pois, como as ocas, reuniam seus
moradores num único e amplo espaço.
Na casa do padre, a comunicação com os ambientes se fazia (e ainda se faz) por meio
de um corredor central, que se inicia na frente da casa, estendendo-se até a varanda. Nesse
corredor, existem duas portas, uma que dá acesso ao setor social da casa e está sempre aberta;
e outra, que se comunica diretamente com a parte íntima da residência e por isso permanece
constantemente fechada. Esse corredor permite a comunicação entre a rua e o quintal, sem
precisar de acesso aos ambientes.
A edificação do padre Silvestre, cuja cozinha se mostra pequena, não havendo
vestígios de nenhuma área destinada aos serviços mais pesados, abre uma possibilidade
aventada por Coelho.
“Supõe-se que, à moda dos índios, que representavam o grosso da mão-deobra escrava dos habitantes dessa região, essa atividade fosse realizada em
87
uma trempe coberta de palha, do lado de fora da construção, o que
justificaria o fato de não haver qualquer sinal que indique sua existência”.
(Coelho, 1997, p.197)
Através do depoimento de Maria Álvares de Pina e Silva, sabe-se que a cozinha da
casa foi remanejada de uma lateral para a outra, para o alargamento da via pública.
Atualmente, a cozinha funciona na antiga varanda e os espaços que anteriormente eram
despensa e cozinha se transformaram em instalações sanitárias dos atuais e simplórios
moradores, numa improvisação recente e mal resolvida.
Numa análise da casa do padre Silvestre, podemos dizer que o partido arquitetônico foi
elaborado dentro dos padrões, sem novidades estéticas, admitindo a vernacularidade, pois as
residências eram construídas segundo o saber-fazer local. ―A mão-de-obra, os materiais
construtivos e as técnicas construtivas passavam pelo domínio popular, imprimindo-lhes uma
estética despida de anseios originais e personalistas.‖ (Oliveira, 1999, p.284)
Torna-se, portanto, importante buscar nas práticas imediatas do construtor vernáculo ―a
harmonização de sua obra com o meio ambiente, a noção de casa nascida ao lado das
manifestações culturais e folclóricas, o elo que não pode ser perdido em meio ao apelo das
inovações técnicas e das mudanças de comportamento.‖ (Morais, 1999, p.92)
A casa nº 117 da rua Vigário Álvares da Silva é uma edificação que está ligada a
importantes fatos da história da Jaraguá. Contém informações sobre o seu desenvolvimento
tecnológico, abrindo possibilidades para maior conhecimento sobre materiais e técnicas
construtivas de sua época, como a taipa-de-pilão, o adobe, o pau-a-pique, formas de
estruturação do edifício. Mais ainda, expressa o modelo de organização social, econômico e
religioso do período, fazendo com que o seu estudo se torne um elemento básico na
contribuição do desenvolvimento da arquitetura contemporânea. (Coelho, 2001)
A história que se constrói por meio do estudo da casa, associada a elementos que com
ela se entrelaçam, traz significados importantes que exprimem o caráter brasileiro e
apresentam a continuidade social. Segundo Freyre:
88
“Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos
noscompletar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro meio
de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de nós; e em cuja vida
se antecipou à nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos: um
passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade
não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos. Isto é, claro, quando se
consegue penetrar na intimidade mesma do passado; surpreendê-lo nas suas
verdadeiras tendências, no seu à vontade caseiro, nas suas expressões mais
sinceras.” (Freyre, 1998, p.65)
Por outro lado, cabe à arqueologia a importante tarefa de complementar o estudo sobre
a vida do padre Silvestre, juntamente com documentações históricas e tradições orais,
fornecendo informações sobre aspectos do comportamento dos grupos domésticos que
ocuparam a residência, principalmente aqueles relacionados especificamente ao cotidiano do
ilustre sacerdote.
A história construída em torno da casa tem de ser capaz de dizer o que ela é e o que ela
significa para a sociedade onde está inserida, pois os padrões culturais envolvidos não são
gerais e sim específicos. Para cada grupo social, o valor simbólico está ligado a uma ordem, a
uma organização e seu significado.
Tomamos por base a casa conhecida como a casa do padre Silvestre, que constitui um
bem cultural que a sociedade jaragüense identifica como testemunho dos antigos modos de
vida da comunidade. Mas ao mesmo tempo, ela presta um serviço ao presente, buscando uma
maneira de ser utilizada pelos habitantes da cidade como casa de cultura ou museu.
Finalmente, resgata a história como elemento formador da identidade jaragüense que se
encontra quase toda encoberta pela ―modernização‖ que consolidou a destruição de
significativas obras arquitetônicas. Com a recuperação do objeto arquitetônico refaz-se a
leitura histórica.
Considerações finais
A realização deste trabalho, desenvolvido na perspectiva das abordagens no campo da
historiografia e da tradição oral, envolveu entrevistas e ainda análises de documentações
manuscritas de particulares relacionados à figura ímpar do homem religioso, político e erudito
89
– padre Silvestre Álvares da Silva. O símbolo de sua história se encontra também expressado
no casarão oitocentista. Analisando a casa, pôde-se perceber que, apesar da simplicidade do
partido arquitetônico expressado pelo saber – fazer popular, houve preocupação na riqueza dos
detalhes, como o acabamento apresentado no forro ―tipo gamela‖ com pintura elaborada no
ambiente da sala. A mão-de-obra escrava, as técnicas e os materiais construtivos utilizados
representavam o que se encontrava no momento sob o domínio popular. O estudo dos espaços
apontou as influências das várias culturas que ali conviveram e que se manifestaram através
da continuidade na disposição dos compartimentos da casa e dos meios de composição dos
ambientes. A casa do padre Silvestre representa para a sociedade jaragüense uma referência
cultural simbolizada, construída ao longo da história de Jaraguá e compartilhada por toda a
população goiana. Portanto, um instrumento suficientemente capaz de sustentar toda uma
justificativa, necessária para se pretender um tombamento.
Dessa forma, com a realização do tombamento, encontra-se a maneira adequada de se
fazer respeitar o caráter único e insubstituível de uma edificação que pertence ao passado
histórico, portanto um elemento formador da identidade que está associado ao direito à
memória.
Sem pretender congelar ou imobilizar o casarão, a idéia de transformá-lo em um museu
ou casa de cultura é uma aspiração antiga de parte da comunidade, possibilitando assim sua
conservação e função adequadas a serviço dos habitantes da cidade. Indispensavelmente, deve
ser mantida a sua parte externa sem alteração, fazendo-se as adaptações necessárias e com
critério apenas em sua parte interna, supervisionadas por profissional qualificado, para manter
intocáveis os detalhes e as pinturas decorativas do teto.
A pesquisa teve como eixo de estudos a historiografia goiana, a tradição oral e os
documentos particulares da família Álvares da Silva de Jaraguá. As informações
sistematizadas, permitiram a instrução do seu processo de tombamento, em andamento,
colocando a casa e os conhecimentos adquiridos à disposição da sociedade jaragüense.
90
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Acervo de documentos da família Alvares da Silva de Jaraguá.
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- Assembléa Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil — 1823. Sessão
em primeiro e 10 de setembro de 1823. Diários da Câmara. Biblioteca do Senado,
Brasília.
Entrevistas Realizadas
- Diva Álvares da Silva - Jaraguá - fevereiro/2002;
- Elenir Álvares da Costa - Goiânia - outubro/2002;
- Eugênio Alano Machado de Freitas - Jaraguá - outubro/2002;
- Fabiano Luis de Castro - Jaraguá - fevereiro/2002;
- Frederico de Pina Álvares - Jaraguá - novembro/2002;
- Joaquim Militão - Jaraguá - fevereiro/2002;
- Maria Álvares de Pina e Silva - Jaraguá - fevereiro/2002;
93
4
SE NÃO ME FALHA A MEMÓRIA ...
REPRESENTAÇÕES DA EXPERIÊNCIA ESCOLAR
EM JARAGUÁ
(1927/1947)
Maria Lícia dos Santos
Cada geração assimila, à sua maneira, a herança cultural dos antepassados, ao mesmo
tempo em que estabelece projetos de mudança. Por isso, é importante, sobretudo na prática
historiográfica, estudar um objeto considerando-se o contexto que o engendra, de forma a
tornar possível observar sua construção concomitantemente à do sistema social do qual é
parte constitutiva.
Considerando a proposta apresentada pela chamada nova história que, segundo Burke
(1990), aponta para a perspectiva de que ―tudo tem uma história‖,64 propus realizar uma
pesquisa que tomasse, como plano de observação, as experiências de alunos e professores de
duas instituições de ensino de Jaraguá, no período de 1927 a 1970. A delimitação temporal
64
Peter Burke. ―Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro‖ in A Escrita da História – Novas
Perspectivas.Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1990.
94
proposta deveu-se ao marco histórico da fundação do Grupo Escolar Ruy Barbosa (1927), à
construção do Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá-Go (1947), à destruição desse último, em
1970.
Quanto às fontes documentais, tanto os registros escritos, hoje distribuídos nos
arquivos das duas primeiras escolas, quanto os depoimentos de antigos alunos e professores
das mesmas. Também um conjunto de fotografias será utilizado como material empírico.
Sobretudo às fontes orais, dirigi a disposição de investigar como o trabalho da memória
constrói sentidos sobre as experiências vividas naquelas instituições no período indicado e
como, neste processo, a memória subsidia a construção permanente das identidades.
Esta proposta partiu do pressuposto de que observar as mudanças ocorridas nesses mais
de 70 anos de história da educação formal em Jaraguá permitiria apreender como foram
construídas as relações (entre elas, as relações de poder) que definiam, afirmavam ou
redesenhavam os contornos daquelas práticas. Alguns questionamentos ajudaram a elucidar os
caminhos que esta pesquisa percorreu para enfrentar o problema proposto.
O Grupo Escolar Ruy Barbosa - o qual, ao que tudo indica, foi a primeira escola
estadual de Jaraguá - rompeu com uma longa tradição de ensino, até então exclusivamente nas
mãos de religiosos.
Sabe-se que uma das práticas mais recorrentes do poder coronelista era a manipulação
de cargos do serviço público como forma de controle e exercício do poder. A nomeação de
parentes e aliados dos governantes para os cargos de direção dessas instituições foi uma
constante.
Os depoimentos preliminares indicavam, entre outras coisas, a construção de uma
memória que tendia à exaltação do passado, principalmente quando se considerava a
destruição do Ginásio Arquidiocesano, em 1970. Em função disso, outras questões foram
sendo colocadas: quais as representações que davam suporte à experiência desses ex-alunos e
ex-professores? Que sentidos a iniciativa municipal de destruir o ginásio ganhou nesses
depoimentos?
Esses questionamentos formularam-se como iniciativa no sentido de definir o objeto de
estudo, assim como uma perspectiva de análise pertinente com os objetivos propostos. Restava
ir em frente, pôr mãos à obra e verificar se essas indagações iniciais encontrariam respaldo na
documentação a ser trabalhada. Foi isso que busquei realizar.
95
O Grupo Escolar Ruy Barbosa e seu passado (quase sempre) idílico
O primeiro Grupo Escolar de Jaraguá foi construído em terreno do Município, doado
ao Estado, no intuito de atender à demanda escolar da época, segundo documento de doação
consultado. Neste documento observa-se uma preocupação em não permitir que o espaço
viesse a ser ocupado, no futuro, com outro objetivo senão o educacional. Inclusive revela uma
disposição em garantir um certo desenho em relação ao futuro da educação em Jaraguá, como
se pode observar no trecho abaixo:
O Estado somente poderá fazer uso desse prédio para o fim acima
mencionado, ou para a installação de qualquer outro estabelecimento de
instrucção secundária ou superior de ordem pública.65
Como nos conta Lyra Machado Gomes, ex-diretora da instituição e filha do prefeito
que doou o terreno à época da construção do Grupo:
A criação desse estabelecimento contribuiu muito para a cultura e o
progresso de Jaraguá, pois reuniu em um só prédio as diversas escolas
isoladas, isto é, todos os estudantes dessa cidade, com ótimas professoras,
todas elas normalistas, ou seja, com o curso completo de magistério.66
Foi, portanto, atendendo aos anseios de alguns segmentos da sociedade jaragüense, e
respondendo ao contexto da criação dos Grupos Escolares em algumas das principais cidades
do Estado de Goiás, que o intendente municipal Cel. Manoel Ribeiro de Freitas Machado,
representado pelo Coletor Estadual da cidade de Jaraguá, Major Bernardo Antonio Machado,
decidiu doar ao Estado de Goiás o prédio que viria sediar o primeiro Grupo Escolar da cidade.
Assim a doação é descrita no documento de batismo da escola:
O Cel. Manoel Ribeiro de Freitas Machado decide] fazer doação, sem
nenhum constrangimento, de um prédio sito à Rua do Rosário e de
propriedade do poder municipal, ao Estado de Goyaz, de acordo com a lei
municipal número sessenta e oito, de dez de março de mil novecentos e vinte
65
Escritura Pública de Doação, Jaraguá, 1927. Este documento encontra-se no arquivo da Escola Estadual
Manuel Ribeiro de Freitas.
66
Lyra Machado Gomes. Biografia de Manuel Ribeiro de Freitas Machado. Jaraguá: s/d, (manuscrito). (grifos
meus)
96
e sete, para nele ser installado um Grupo Escolar Estadual, prédio este com
valor estimado em quarenta contos de reis.67
Desta forma, tem início o processo de um sistema articulado de educação na cidade de
Jaraguá, objetivando atender a uma demanda de estudantes das zonas urbana e rural, à época
composta aproximadamente por dezoito mil habitantes.68
Graciema Machado, parenta do doador, foi nomeada pelo poder público municipal
para ocupar o cargo de direção, conforme nos indica a assinatura da mesma no primeiro livro
de Termos de Compromissos, de acordo com artigo 24 de regulamento baixado pelo Decreto
8538, de 12 de fevereiro de 1925.69
No mesmo documento, usando de suas atribuições, a diretora Graciema
Machado nomeia, através de Portaria, ―a senhorita Éster de Campos para reger a cadeira não
preenchida da regência da quarta classe”. No mesmo ato nomeia também
... as professoras normalistas, senhorita Dulce T. da Silva e Alice
Santiago para regerem respectivamente a terceira e primeira classes,
ficando a directora incumbida da 2ª classe, nos termos da letra “o” do
artigo 136 do regulamento dos Grupos Escolares do Estado.70
Dando continuidade à formação do quadro de pessoal do Grupo Estadual, a
diretora nomeia ―o cidadão João de Freitas Machado para as funcções do cargo de porteiro
do Grupo Escolar desta cidade‖.
O Grupo Escolar representou, segundo a opinião de Dona Lyra Machado ―a melhor
obra do intendente Manoel Ribeiro de Freitas Machado‖, por atender às necessidades de
estudos das crianças jaragüenses à época.71
A mesma depoente conta que antes da criação do Grupo Escolar havia em Jaraguá
escolas em casas particulares, gratuitas para os alunos, mas pagas pelo município. Para as
meninas e as moças havia a Escola de Dona Luiza Augusta Machado, auxiliada por Dona
Nicota e, mais tarde, a Escola Dona Sinhá, de Venância Velasco. As duas escolas para os
67
Escritura Pública de Doação, Jaraguá, 1927, Op. cit.
Valor estimado a partir dos dados encontrados na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XXXVIJaneiro 1958. p.258
69
Livro de Termo de Compromissos. Arquivo da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas Machado.
70
Idem. p. 01.
71
Cf. Lyra Machado. Op.Cit.
68
97
meninos e rapazes foram: a primeira, pertencente a João Machado, e a segunda, ao professor
João de Brito.72
Confirmando a impressão de Dona Lyra Machado, outro entrevistado, Dr. Wilson
Barbo de Siqueira, estudante do Grupo Escolar até o exame de admissão, é de opinião que
moravam em frente à escola, participavam com freqüência, juntamente com a
elite jaragüense.73
Encontramos endosso aos elogios conferidos ao estabelecimento de ensino também nos
registros da maioria dos inspetores de ensino que passaram pelo Grupo Escolar. O primeiro
deles afirmava à ocasião que
Qualquer pessoa, por mais exigente que seja, receberá da visita ao Grupo
Escolar de Jaraguá, forte e agradável impressão sobre a ordem e disciplina
do estabelecimento, o que atesta (...) a capacidade de sua diretora, a gentil
senhorita Graciema Machado e suas dignas auxiliares.74
O esmero da administração da escola em relação aos métodos pedagógicos aparece,
desde a preocupação com a organização do material, até a orientação de como receber os
alunos nos primeiros dias de aula, assim como com o embasamento pedagógico. Também a
forma de ministrar as matérias – aritmética e leitura oral e escrita – é motivo de constante
preocupação. A tudo isso se soma um discurso marcado pela necessidade de firmar parâmetros
que garantissem o que entendiam configurar sensibilidade e psicologia no trato com as
crianças,
Para o espírito imitativo da creança, que se impressiona e procura copiar as
scenações desenvolvidas ante os seus olhos e ouvidos a Escola constitui um
72
73
Idem.
Depoimento concedido por Wilson Barbo de Siqueira, ex-aluno do Grupo Rui Barbosa, em 1943. Advogado e
assessor jurídico da Câmara Municipal de Jaraguá.(09/09/2001). Registro meu pesar pelo falecimento de Dr.
Wilson Barbo de Siqueira, ocorrido em maio de 2002, na certeza de que a cidade de Jaraguá, consternada,
lamenta a perda de um grande intelectual.
74
Livro de registro de fiscalização do Grupo Escolar de Jaraguá. 1927. Arquivo da Escola Estadual Manoel
Ribeiro de Freitas Machado.
98
exemplo vivo.(...) A irritação, a ociosidade, a impaciência, as palavras rudes
e offensivas, os gestos violentos devem ser evitados pelo mestre.75
Também o compromisso com o bom aproveitamento afetivo e cognoscitivo do aluno,
assim como a preocupação com o estímulo ao estudante, além de uma especial atenção ao
ensino, principalmente de aritmética, que deveria ser o mais concreto possível, visando a
despertar o interesse e facilitar o aprendizado, são ressaltados, como indicado no trecho
abaixo:
Concretizado o mais que for possível, deve ser o ensino. Apresentar quadro
de gravuras e fazerem à classe perguntas sobre elle. Se uma creança formula
uma boa phase, o professor a acceitará e ordenará aos alunos a escreveremna (...)isto para que o menino que por felicidade a pronunciou se
enthusiasme pela gloria de ter dito alguma cousa de aproveitável.76
Os primeiros dias de aula eram tema de orientação por parte da direção, como se
apreende do seguinte fragmento:
As creanças, quando vão para a Escola teem della uma péssima impressão,
comunicada pelos Paes que lh‟a promettem por meio de correção. Assim o
trabalho da professora nos primeiros dias se resumirá em captar-lhes a
sympatia.77
Era a escola atenta à necessidade de apagar a impressão, ao que parece comum, de
associá-la ao castigo que deveria ser aplicado àqueles a quem não se conseguia corrigir.
Portanto, pelo menos nos primeiros dias, tudo deveria ser só simpatia.
O Grupo Escolar de Jaraguá mantém esta denominação até 1933, data em que passa a
se chamar Grupo Escolar Ruy Barbosa, evidência encontrada na documentação consultada.
Em documento datado de 10 de abril de 1933, nenhuma alusão existe acerca da mudança para
a nova denominação. É o primeiro, porém, que traz em seu cabeçalho o novo nome. Este
mesmo documento trata da nomeação da nova diretora do Grupo, Maria Madalena de Freitas
Rios, nomeação esta feita a partir do decreto do Interventor Federal do Estado, de nº 3.215. No
documento atesta-se que
75
Documento avulso e sem data encontrado nos arquivos da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas
Machado.
76
Idem.
77
Idem, Ibdem.
99
(...) a mesma apresentou o seu título de normalista ao senhor Luiz Gonzaga
de Farias, diretor em exercício, (...) prestando perante o mesmo o
compromisso legal de com consciência e critério, bem zelar dos interesses da
Instrucção. 78
O depoimento de Dona Yara Machado, assim como o de Dona Maria Agripina, exestudantes do Grupo Escolar, são unânimes em enfatizar que as professoras, todas normalistas,
formadas na escola normal da cidade de Goiás, Colégio Santana, ―eram de uma competência
sem igual‖(Dona Maria Agripina)
O ensino era muito bom. Eu falo que o primário que eu fiz vale mais que o 2º
grau de hoje. Era muito bom o ensino. Eram menos alunos, mas, quando a
gente tinha dificuldades, o professor levava a gente até pra casa, para
orientar, dar um reforço.(Dona. Yara Machado)
Comparo o meu primário ao 2º grau de hoje, tamanha foi a sua importância
para minha formação. As matérias estudadas, Português, Matemática,
História, eram muito boas. As professoras, todas elas normalistas, formadas
na escola normal da cidade de Goiás, eram de uma competência sem igual.
(Dona. Maria Agripina)
Em documento datado de 26 de agosto de 1936, percebe-se nova mudança na
denominação do Grupo, que passa a chamar-se Grupo Escolar Manoel Ribeiro de Freitas
Machado, certamente uma homenagem ao intendente municipal que doou o terreno ao Estado
para a construção do Grupo, em 1927. Este é, também, um indício da existência de uma
prática política, bastante disseminada na cidade, de nomear prédios públicos com os nomes de
políticos e seus familiares, em geral pessoas associadas aos antigos coronéis que, em Jaraguá,
pertenciam, principalmente, a duas famílias: Os Castro e os Freitas.
Manoel Ribeiro de Freitas Machado, por exemplo, que nasceu no dia 6 de abril de
1875 e faleceu dois anos após a doação, em 9 de outubro de 1929, com 54 anos de idade, era
representante da família Castro. Com a destruição do antigo prédio, criou-se uma Escola
Estadual, também ela batizada com o nome do antigo intendente municipal.
78
Livro de termo de Compromisso. 1933, p. 06 – Arquivo da Escola Estadual Manoel Ribeiro de Freitas
Machado.
100
A documentação consultada indica que, desde a criação do Grupo, o mesmo recebia,
anualmente, visitas de um agente fiscal do Estado para certificar e garantir a qualidade de
funcionamento. De modo geral, os inspetores são coincidentes em suas apreciações sobre o
estabelecimento e não deixam de mencionar a gentileza com que foram recebidos pela direção
e pelos funcionários. O relato que em 1928 o inspetor Gerson Espírito Santo faz de sua visita
ao Grupo Escolar é bastante representativo do tom que predominava:
Qualquer pessoa, por mais exigente que seja, receberá da visita ao Grupo
Escolar de Jaraguá, forte e agradável impressão sobre a ordem e disciplina
do estabelecimento, o que atesta (...) a capacidade de sua diretora, a gentil
senhorita Graciema Machado e suas dignas auxiliares.79
No ano seguinte, 1929, em visita de rotina, o fiscal Osório Artiaga também deixa
registrada sua opinião acerca da qualidade do Grupo Escolar de Jaraguá.
Notei que os alunos estão bem adiantados, que as professoras são bastante
esforçadas e carinhosas, tudo enfim demonstra que a infância de Jaraguá
está muito bem servida.80
Porém, nem sempre o tom foi esse. Em fiscalização datada de 07.10.1931 e assinada
por Dauton Raul, por exemplo, este atesta que deixará registrado o ―fruto da verdade‖ sobre o
que viu. Iniciando seu relatório pelos já esperados elogios à competência e esforço do corpo
docente, afirma, entre outros elogios, que ―nesse estabelecimento de ensino [se] bebe a
sagrada luz do saber‖. Subitamente, entretanto, introduz comentários desconcertantes frente à
monótona retórica que prevaleceu até então nos relatórios dos colegas que o precederam. Em
frase aparentemente fora de contexto, se comparada aos relatórios anteriores, Dauton Raul
afirma que, infelizmente,
79
Livro de registro de fiscalização do Grupo Escolar de Jaraguá. Datado de 1927. Arquivo da Escola Estadual
Manoel Ribeiro de Freitas Machado. p. 2. O livro, aberto em 1927, contém os registros das visitas realizadas até
1932.
80
Idem, p. 3.
101
... essa casa de instrução acha-se desprovida dos requizitos indispensáveis
e preponderantes para que seja uma realidade e não um mito.81
Dando continuidade às críticas, enfatiza que
Primeiro, a „auzencia‟ absoluta de compêndios, como cartas geográficas,
cadernos de caligrafia e „dezenho‟, sem o que torna-se „quazi‟ impraticável
a adoção do ensino.
Segundo, o mobiliário de que dispõe o Grupo Escolar de Jaraguá, deixa
muito a desejar, pois o número de carteiras é insuficiente e sem o menor
conforto, deixando também de oferecer a higiene necessária a uma casa
onde quotidianamente reúne dezenas de crianças.82
Na seqüência, verificamos que nos dias 06 e 07 de novembro do mesmo ano, o mesmo
fiscal Osório Artiaga, que deixara registradas suas impressões por ocasião de inspetoria
realizada dois anos antes, volta à escola, mas, dessa vez, para endossar o discurso do colega
anterior. Mantendo o padrão dos outros relatórios, o seu inicia por calorosos elogios à atenção
da Diretora, ―Sta. Dulce Gomes‖. Mais adiante, porém, descrevendo uma ligeira visita que fez
às salas de aula, verifica ter observado
... grande acanhamento por parte das crianças, [julgando] necessário a
promoção de festas escolares em que os pequenos tomarão parte
desempenhando papéis fáceis, em teatrinhos infantis, recitativos,
monólogos, etc.83
Outra crítica apresentada por Artiaga é quanto ao número insuficiente de alunos em
sala de aula, concluindo que:
Urge, pois, que se trabalhe no sentido de aumentar [o número de alunos] pois
não convém em absoluto ao Estado conservar um grupo com tão pequena
freqüência.84
81
Livro de fiscalização de 08 de setembro de 1927 p. 06 – Arquivo da Escola Manoel Ribeiro de Freitas
Machado.
82
Idem. p. 6.
83
Idem, Ibdem p. 7.
84
Idem, p. 07.
102
O que a documentação parece indicar é que os ―tempos dourados‖ do Grupo teriam
ficado para trás, dando lugar, nos relatórios de inspetoria, a críticas quanto ao desempenho da
escola. A questão da baixa freqüência, explicitada pelo último inspetor citado, por exemplo,
sugere que o Grupo – que era uma instituição pública – cuja função deveria ser abrigar um
número considerável de alunos sem condições de estudar fora da cidade, não vinha
respondendo a esse desafio.
Em 1945, na gestão da diretora Lyra Machado Gomes e Sousa, que também ocupou a
chefia desse estabelecimento de ensino em data anterior (1934-1943), numa clara
demonstração de reconhecimento da necessidade de preservação da memória histórica da
escola, a direção decide deixar lavrados, em livros de Atas, os registros dos festejos realizados
no Grupo Escolar, atendendo, quem sabe, à sugestão dada pelo fiscal Osório Artiaga, quatorze
anos antes.
Na primeira festividade, realizada em frente ao Grupo Escolar, estiveram presentes,
como explicita a ata, a ―nata‖ da sociedade jaragüense: o Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito,
Antônio Diurivê Ramos Jubé; o Exmo.Sr. Prefeito Municipal, Nelson de Castro Ribeiro, a
diretora Lyra Machado Gomes e Souza, assim como as professoras daquele estabelecimento.
As solenidades iniciaram-se com o desfile dos alunos perante as autoridades presentes,
ao som da ―Canção do Soldado‖, que os mesmos entoaram. Em seguida, a aluna Yolda Pinto
de Oliveira falou, ―enaltecendo‖ as figuras heróicas de ―Caxias, Barroso e Tamandaré.‖ O
aluno Sebastião Rodrigues recitou ―Heróis do Brasil‖, poesia do Dr. Augusto Rios.85 ―Nosso
Brasil‖, de Olavo Bilac, foi a poesia declamada pela aluna Angelina Locatelli. A menina Leila
Pereira declamou: ― A Bandeira”, do autor Léo Fontes. “A terra brasileira”, de autoria de
Augusto de Lima, foi a poesia recitada pela aluna Isabel Borges. Com o Hino Nacional,
entoado por todas as ―creanças‖ do Grupo Escolar, finalizaram-se os festejos do dia.86
Rangel evidencia que as representações sociais se veiculam através da comunicação,
utilizando-se de uma linguagem comum ao grupo, o que possibilita compartilhar do
85
Dr Augusto Rios foi importante intelectual na cidade de Jaraguá, advogado e poeta. Cf. Romacheli. Op.cit p.
111.
86
Livro de Atas dos festejos realizados no Grupo Escolar. 1948. p.1
103
conhecimento cotidiano ―representado pelos sujeitos que o explicam por conceitos e imagens
adotadas coletivamente.‖87
Os festejos escolares criavam a oportunidade para empreender-se o esforço no sentido
de configurar-se uma espécie de união das identidades, composta por um cenário representado
por autoridades que, através das encenações levadas a cabo pelos alunos, afirmavam o caráter
heróico das personagens homenageadas, reforçando, ao mesmo tempo, as representações que
dão sentido à imagem dos grandes heróis, consagrando seus grandes feitos, justificando e
perpetuando as representações de mundo dos grupos dominantes, por meio da educação
escolar. Eram as autoridades ali presentes os herdeiros dessa geração de ―heróis‖ que, desde
pequenos, os alunos aprendem a respeitar.
Neste contexto, argumenta Silva quando escreve sobre a questão da identidade e
diferença.
É também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam
a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir
e determinar a identidade. (...) Questionar a identidade e a diferença
significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe
dão suporte e sustentação.88
Diante dos dados apresentados sobre o primeiro Grupo Escolar de Jaraguá, podemos
detectar algumas evidências que deixam claro que, desde o momento de sua inauguração, o
estabelecimento de ensino se manteve subordinado a pessoas que representavam a elite
jaragüense. A afirmativa busca respaldo na observação e análise dos sobrenomes das pessoas
que ocuparam o cargo de direção e funcionários responsáveis pelo ensino. O fato não é difícil
de ser compreendido, uma vez que Jaraguá sempre esteve nas mãos de fortes líderes políticos,
representados pelas famílias Machado, Castro e Freitas; não por acaso, as mesmas que
forneceram o maior quadro de profissionais para a escola.
87
Rangel, Mary.”Bom aluno”: real ou ideal? O quadro teórico da representação social e suas contribuições à
pesquisa. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997. p. 33.
88
Tomaz Tadeu da Silva. A produção social da identidade e da diferença. In: Tomaz Tadeu da Silva (org.).
Identidade e Diferença ... Op. cit., p.89.
104
Essa evidência não passou despercebida a alguns depoentes. Seu Tentorino Julião de
Amorim, por exemplo, afirma que
... no Grupo, claro que havia ingerência. Dona Lyra mesmo era companheira
[política] dos Castro e por isto ficou tanto tempo na direção.89
Mas vejamos que outras imagens da experiência escolar no Grupo rondam o trabalho
de memória dos depoentes.
O Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá: 1947-1968
O Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, de caráter religioso, foi criado em 1947, num
contexto de intenso crescimento populacional, fruto da política nacional desenvolvimentista
que ofereceu os contornos da chamada ―Marcha para o Oeste‖.90
Cassiano Ricardo foi um dos ideólogos da política de ocupação do interior do País. Em
obra intitulada ―Marcha para o Oeste‖, esse intelectual buscou
justificar a política de
colonização proposta por Getúlio Vargas, usando, entre outros recursos, a retórica do
heroísmo, exemplificada na construção que aproxima os movimentos da ―Marcha‖ à saga dos
bandeirantes. O intuito da ―Marcha‖ seria ocupar as terras desabitadas, ou pouco habitadas, e
esse feito caberia aos desbravadores, verdadeiros heróis, como nos mostra a autora:
Um empreendimento dessa envergadura não caberia a homens, mas a
heróis. Vargas precisava enfeixar em suas mãos o poder, através do qual
estaria representado cada brasileiro. Ele não seria o homem Vargas mas o
chefe da Nação que trazia em si a aspiração, a esperança e a certeza da
realização coletiva. A construção de uma identidade nacional passava pela
ação do bandeirismo. Essa identidade nacional estaria personificada em
Getúlio, mito que estava fadado a empreender uma nova marcha rumo ao
desconhecido, que iria alargar os horizontes da Nação, expandindo as
possibilidades de trabalho, o desbravamento da natureza e o amansar da
89
Entrevista com Seu Tentorino Julião de Amorim, contabilista, empresário, ex-estudante do Grupo Escolar de
Jaraguá. Concedida no dia 28 de janeiro de 2002.
90
Segundo Luciano da Fonseca, ―O município de Jaraguá acumulou um efetivo populacional neste período
[1940/50] , que praticamente dobra sua população‖. Impactos da Marcha para o Oeste no Município de Jaraguá.
Monografia Final de Graduação. Goiânia, UFG, 1998, p. 27. Sobre esse tema consultar ainda: Nasr Nagib Fayad
Chaul. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Ed. da UFG,
1997.
105
terra. Esse homem abriria caminho para a construção de uma vida nova
em uma terra prometida. 91
Foi nesse processo que ocorreu o movimento migratório em direção ao Estado de
Goiás, sobretudo entre as décadas de 1920 e 1950. Jaraguá não ficou fora dessa política. No
período indicado, o município acumulou um efetivo populacional que praticamente dobrou o
número de habitantes, passando de 7.038 pessoas em 1920, para 14.030 habitantes no censo de
1940.92
Em 1923, D. Emanuel Gomes de Oliveira assumia o bispado de Goiás, em substituição
a D. Prudêncio, que havia falecido. Segundo Bretãs (1991), D. Emanuel Gomes de Oliveira
ficara conhecido como ―Arcebispo da instrução‖, por tudo o que demonstrou em termos de
iniciativa e capacidade no campo educacional.93
Segundo bibliografia consultada, a iniciativa de fundar o espaço escolar que dará lugar
ao Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá, entretanto, caberá a um leigo. Trata-se do Dr. José
Peixoto da Silveira, que em 1938 chega a Jaraguá, proveniente de Minas Gerais, onde inicia o
exercício da medicina. Além de médico, o Dr. José Peixoto da Silveira estendia suas
atividades às esferas da educação, do comércio imobiliário e da agricultura. Em 1944 funda a
―Escola General Curado‖, que posteriormente será transformada no ―Ginásio Arquidiocesano
de Jaraguá”, que ajuda a instalar e do qual foi Professor-Fundador, tendo para isso prestado
concurso de Professor Secundário exigido pelo Ministério da Educação.‖94
Em seu depoimento, porém, Sr. Tentorino Julião trouxe outros dados sobre o episódio.
Segundo contou, a iniciativa do Dr. José Peixoto da Silveira não resultou na criação de uma
escola, mas de um curso secundário, ministrado à noite, no prédio do antigo Grupo Escolar
Ruy Barbosa. Portanto, não teria existido uma ―Escola General Curado‖, antecessora ao
Arquidiocesano, e sim, um curso que recebeu esta denominação.
Polêmicas à parte, a instalação do Ginásio Arquidiocesano em Jaraguá foi um
importante acontecimento para os seus habitantes que ansiavam pela continuidade do ensino,
uma vez que na cidade contava-se apenas com escolas primárias.
91
Cassiano Ricardo. Marcha para Oeste. Rio de janeiro. Ed. da USP e José Olympio, 1970. Apud Lyz Elizabeth
Amorim Melo Duarte. O Poder e a estrutura agrária nos municípios de Ceres e Jaraguá. Op. cit. p.187-188.
92
Cf. Luciano da Fonseca, Os Impactos da “Marcha para o Oeste‖ no Município de Jaraguá. Dissertação de
Pós-Graduação. UFG. Goiânia, 1997.
93
Genesco Ferreira Bretas. História da Instrução pública em Goiás. Op. cit. p.532.
94
Silveira PX (org.) José Peixoto da Silveira – O gentil-homem.Gráfica Centauro, Goiânia, 1987, p. 5.
106
No imaginário de meus depoentes, o ensino administrado por padres parece ter lugar
privilegiado, pois não foram poucos aqueles que associaram a qualidade do ensino que ali se
encontrava com o fato do ginásio estar nas mãos dos religiosos. O ginásio atraiu grande
número de estudantes da zona rural e de cidades circunvizinhas, como pude constatar na lista
de estudantes, que contava, por exemplo, com nomes de dois importantes médicos da cidade
de Petrolina: Dr. Dalton de Siqueira e Dr. Nelson Pereira de Vasconcelos.
Sr. Valdir Alves da Costa, filho de Dona Clotildes Machado Alves, conhecida na
cidade como Dona Tide, conta-nos que sua mãe fez a doação do terreno para a construção do
Ginásio Arquidiocesano como forma de garantir a educação de seus 10 filhos:
Mamãe fez a doação do terreno para a Construção do Colégio, em troca dos
estudos dos filhos, que eram 10 ao todo. Meus irmãos estudaram no Colégio,
mas depois fomos para Goiânia. Passados uns 10 anos, voltamos para
Jaraguá, aí então eu estudei no Colégio. Eu fui o último a ir estudar lá.
A família era muito grande e minha mãe temia não dar conta de estudar
todos os filhos, por isso fez a doação de aproximadamente um alqueire de
terra para a cúria, mas acho que sem nenhuma documentação, só de boca. A
cúria posteriormente doou para o Estado, para a construção do Ginásio de
Esportes de Jaraguá.95
Também Dona Maria Agripina do Patrocínio conta como se deu a fundação do
Arquidiocesano, assim como a primeira formação do corpo discente:
O Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá teve início em março de 1947,
sendo construído pela diocese, especificamente pelo bispo Dom Emanuel
que doou um crucifixo de ouro para ser vendido e construído o colégio com
o dinheiro arrecadado.O primeiro diretor foi o padre Cleto Autue. Teve no
quadro de professores: Prof. João de Aquino, Dona Emicenia Machado de
Freitas, Dr. Fayad Neto (promotor), Dr. Antônio Jubé (juiz), Cassilda Rios
de Freitas, Dona Esmeralda e Omar Belote.96
Como se vê, Dona Maria Agripina ―apaga‖ de suas lembranças o nome do Dr. José
Peixoto da Silveira, suposto membro fundador do ginásio. Na construção memorialista de sua
experiência, porém, há lugar de destaque para o papel desempenhado pelo bispo de então,
95
Depoimento concedido por Valdir Alves da Costa, funcionário aposentado das Centrais Elétricas de Goiás.
Maio de 2002.
96
Depoimento concedido por Dona Maria Agripina Patrocíneo, professora aposentada, ex-aluna da primeira
turma do Colégio Arquidiocesano, em julho de 2001.
107
Dom Emanuel, e seu ato de desprendimento – a doação do crucifixo de ouro para a construção
do futuro prédio.97
―Terei muito prazer em relembrar os momentos vividos no Arquidiocesano”98Assim o
Dr. Sebastião Machado, hoje de volta a Jaraguá depois de muitos anos morando no Rio de
Janeiro, recebeu-me para a entrevista. Formado em Direito pela Universidade de Belo
Horizonte, ele foi estudante da primeira turma do Ginásio Arquidiocesano de Jaraguá.
Segundo contou, das boas lembranças que guarda daqueles momentos, muito se deve ao
modelo de ensino que o caracterizava:
O Colégio Arquidiocesano foi um modelo de ensino em Jaraguá. A
disciplina dos padres professores era rigorosa, o ensino porém era de
primeiro nível. Quando me formei no Ginásio e fui para Goiânia, não
encontrei nenhuma dificuldade de me ingressar no Liceu de Goiânia.
Retrospectiva, a memória tende a configurar as experiências passadas em parâmetros
que possivelmente só encontrem sentido no presente. A qualidade do ensino, passaporte para a
futura carreira, é que será lembrada quando se interroga o que fazia aquele Colégio ser um
lugar de boas lembranças. Nada de brincadeiras, bagunças, namoros, coisas de infância e
juventude. Prevalece uma perspectiva pragmática (adulta), muito mais associada ao presente
do depoente que à experiência passada. A infância e a juventude, com todos os sentimentos
conflitantes que as caracterizam, são solenemente apagadas.
O mesmo mecanismo é encontrado no depoimento de Dona Maria Agripina, ao
descrever o que para ela eram as maravilhas do Colégio:
O colégio era maravilhoso, o melhor que Jaraguá já possuiu. As aulas
eram separadas para meninas e meninos, no início da primeira turma. (...)
Não se perdia um único dia de aula; tínhamos aulas de latim, francês e
inglês. A disciplina era rigorosa, porém não existiam castigos corporais.
97
Há um longo discurso do Dr. José Peixoto da Silveira, registrado em um livreto pertencente à Professora Dulce
Madalena Rios, proferido por ocasião da formatura da turma do Arquidiocesano de 1958, da qual foi paraninfo.
Nesse documento há menção à passagem do médico como professor por aquela instituição. ―Visito este
Educandário com a satisfação confortadora e enternecida de quem vê uma exuberante árvore que ajudou a
plantar e assistiu crescer, pela fecunda colaboração dos poderes públicos, dos esforços particulares e da Cúria
Metropolitana.‖ p.7.
98
Entrevista concedida pelo Sebastião Machado, advogado, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano, em 1947.
Jaraguá agosto de 2001.
108
Todos os alunos obtinham sucesso em sua carreira escolar, quando de lá
saiam.
Meninas para um lado, meninos para o outro; nada de gazetear; latim, francês e inglês;
disciplina rigorosa; sucesso na ―carreira‖ escolar: aí estavam as maravilhas do Colégio.
Mas, Dona Maria Agripina não se contentou em apenas contar suas lembranças. Foi
dela a iniciativa de mostrar-me o álbum de formatura da primeira turma do Colégio. Os alunos
eram todos egressos do Grupo Escolar Manoel Ribeiro de Castro, antigo Grupo Ruy Barbosa,
onde concluíram o estudo primário. Feita a seleção do exame de admissão, formaram a
primeira turma do Ginásio.99 A iniciativa de Dona Maria do Patrocínio chamou minha atenção
para o uso documental que as fotografias poderiam ter neste trabalho.Devo a ela essa dica. A
depoente
prossegue
seu
relato
sobre
as
experiências
comuns que permaneceram unindo essa primeira turma muitos anos depois:
A formatura se deu no dia 03 de dezembro de 1950. Todos nós fizemos o
álbum de fotografias e o guardamos com muito zelo. Após 40 anos, a turma
voltou a se reunir em Jaraguá para uma festa comemorativa, com a
participação da grande maioria dos colegas que não mediram esforços
para vir de outros Estados, como o caso de Sebastião Machado, que veio
do Rio de Janeiro para participar da festa.
Na memória do Dr. Wilson Rios Barbo de Siqueira, as aulas de teatro, assim como as
de canto orfeônico, são lembranças que não se apagaram. Ele lembra com emoção o dia em
que recitou o poema ―Navio Negreiro‖:
Prestei exame de admissão e fui para o Arquidiocesano onde encontrei um
corpo de competentes professores, com excelente nível de ensino.
Estudávamos, além de outras matérias básicas, o latim e o francês. A escola
oferecia também oportunidade de estudos literários, onde acontecia a sessão
literária, declamação de poesias, onde inclusive, tive oportunidade de recitar
99
Álbum de formatura de Maria Agripina Patrocínio, Jaraguá, 1950. Consta da fotografia um grupo de 19 alunos.
São eles: Maria Agripina Patrocínio, Sebastião Machado, Agripina Moreira, Maria da Glória Machado, Maura de
Freitas, Amintas de Freitas, Emílio Nilton de Aquino, Benedito Rodrigues de Andrade, José Leopoldo de
Siqueira, Ernane Henrique Salgado, Maria Antonieta R. Jubé, Maria Josefina R. Jubé, Maria Machado de Freitas,
Pirineus Gomes Pereira da Silva, Olira Oliveira, Odília Tavares dos Santos, Luís Pereira da Rocha Neto, Teonil
Antonio Batista, Manoel Elias Campos.
109
a poesia Navio Negreiro, e afundei em lágrimas, tamanha comoção. A
disciplina era severa, porém não havia utilização de castigos corporais.100
Para
Dona Terezina
Rodrigues de Castro Ribeiro, as lembranças do Colégio
Arquidiocesano estão ligadas, sobretudo, ao sentimento de gratidão pelo diretor Padre Cleto
que lhe possibilitou oportunidade de retornar aos seus estudos:
Sempre gostei muito de estudar. Terminei a 4a. série em 46 e papai ficou sem
ajudante para trabalhar com ele. Então, deixei os estudos e fui embora para
a fazenda para ajudá-lo. Dava recados, abria porteira e outros serviços
desta natureza, pois era muito pequena e não conseguia fazer muita coisa.
Meu irmão Dito era estudante do Colégio Arquidiocesano e comentou com o
padre Cleto, diretor do Colégio, que tinha uma irmã, em idade escolar, que
gostava muito de estudar. Ele mandou me buscar, elaborou um exame de
admissão, fora de época, mês de maio, e me matriculou no colégio. Sou
profundamente grata a ele. 101
Memória feita de nomes. Também assim vai sendo tecida a história dos ex-alunos. É
Seu Tentorino Julião Amorim quem agora fala. Seu trabalho de memória lembra passagens,
não apenas positivas, de sua experiência:
Dona Emicenia [professora do ginásio] era rigorosa, mas muito educada,
mas o padre Belote era grosseiro e meu pai não aceitava e entrou em atrito
com ele. Ele era diretor, mas meu pai desafiou ele. Teve muita gente que
apanhou lá. Esse Aroldo, por exemplo, apanhou lá, e o padre Belote deu um
tapa na orelha dele, mas esse era atrevido demais, o professor Fayad
ameaçou mandar prender ele.
O Colégio tinha muito prestigio, tanto é que pode observar os uniformes,
realmente lá não estudava gente pobre. Marcavam o chão das praças com
giz para melhor delimitar os espaços nos dias de desfile, tinha as marchas
boas, tudo de muito bom gosto e disciplina. Dona Emicenia era muito
querida, assim como todos que lá trabalhavam e estudavam. A cidade
prestigiava enormemente o Colégio que era uma coisa fora de série dentro
de Jaraguá. Nunca tínhamos falado francês aqui e começamos a estudar
francês, além do inglês.
A cidade possuía em torno de 5 mil habitantes, hoje está em torno de 30 mil.
A cidade, nesse tempo, quando começou o Ginásio, lá era uma floresta, não
100
Depoimento concedido pelo Dr. Wilson Barbo de Siqueira, 66 anos, assessor jurídico da Câmara Municipal de
Jaraguá, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano, em 1948. Jaraguá, 4 de setembro de 2001.
101
Entrevista concedida por Dona Terezina Rodrigues de Castro Ribeiro, 69 anos, pedagoga, aposentada, exaluna do Ginásio Arquidiocesano em 1948. Novembro de 2001.
110
tinha casas nas suas proximidades, mas mesmo assim era bem procurado,
pois o Colégio mais próximo era o de Silvânia, que ficava a 6 a 8 dias de
viagem.102
De um depoente para outro, os personagens vão ganhando contornos mais
complexos. O mesmo padre Belote, temido pelo rigor e grosseria no tratamento com os
alunos, povoa também a lembrança do Dr. Suzano, irmão de Dona Terezina. Entretanto, para
ele, o padre era exemplo de professor:
A lembrança do tempo de estudante é a da melhor escola que eu já
freqüentei, incluindo a faculdade, que fiz em Uberlândia. O ginásio era
espetacular, hoje não tenho dificuldades de escrever, falar em público,
redigir qualquer documento ou discurso. Tudo, tudo, devo ao colégio
Arquidiocesano.
Padre José Belote era um monstro em Português. Ele metia o português
dentro da cabeça da gente. A maneira dele ensinar, não tinha quem não
aprendia. Ele tinha uma facilidade para nos fazer entender, de abrir um
clarão na cabeça da gente, alegre, brincalhão. Ele tinha uma corrente que
ele batia em nós, mas com atitude de brincadeira.
Ele nos ensinava a ler, a ter entonação de voz. Ele fazia uns gráficos no
quadro para mostrar quando devíamos subir ou descer a voz no momento da
leitura. Aquilo entrava na cabeça da gente. Ele nos punha a ler gibi para
despertar interesse, gosto e o prazer da leitura para depois melhor a
qualidade dos textos lidos.103
Dona Terezina lembra ainda que para estudar no Ginásio teve que contar com outra
ajuda, pois não dispunha de condição financeira adequada aos padrões dos demais alunos.
Para estudar no Colégio, papai ganhou a bolsa de estudos, pois era pago e
nós não tínhamos como pagar. Quando eu fiz Normal, já trabalhava como
funcionária do Banco Estadual de Goiás e, com meu salário, consegui pagar
meus estudos.
Dona Emicenia Maria de Barros, lembrada no depoimento de seu ex-aluno, Sr.
Tentorino, foi professora do Colégio Arquidiocesano (de 47 a 49). Hoje morando em Brasília,
102
Entrevista concedida por Seu Tentorino Julião de Amorim, 67 anos, economista e empresário, ex-aluno do
Ginásio Arquidiocesano em 1948. Janeiro de 2002.
103
Entrevista concedida por Suzano Rodrigues Filho, advogado, ex-aluno do Ginásio Arquidiocesano em 1952.
Jaraguá, maio de 2002.
111
Dona Emicenia recebeu-me para a entrevista com certo temor, pois, vítima de um aneurisma,
não acreditava ser possível dar sua colaboração à pesquisa. Entretanto, depois de algum tempo
de conversa e observação de algumas fotografias, ela já expressava “... muita satisfação de
poder ajudar em um trabalho deste porte, apesar da doença, que me queimou uma porção de
lâmpadas em minhas lembranças.‖ 104
Saída da escuridão do esquecimento pelo primeiro contato com o passado, afloram as
lembranças do tempo em que, numa atitude arrojada para a época, a jovem professora veio
morar em Jaraguá para trabalhar como professora.
D. Emanuel Gomes de Oliveira – arcebispo da Diocese de Goiás – convidoume para ir trabalhar em Jaraguá. Eu era solteira e tinha 18 anos. Fundou o
curso de admissão, por volta de 1940, antes da construção do
Arquidiocesano. Era composto por excelentes alunos e funcionava no
sobrado da Guida. [Construção que não existe mais].
Posteriormente, com a construção inacabada do Arquidiocesano, já comecei
a trabalhar lá mesmo. O Colégio foi uma expansão da instrução de cunho
religioso. Lá lecionei Português, Estudos Sociais, Canto Orfeônico. Criei o
Grêmio Literário de Lazer e estudo de canto. O ensino era muito bom, e
durante 5 a 6 anos lecionei no Colégio.
Formei-me no curso normal de Formosa. Minha ida para Jaraguá foi um
passo ousado para a época. Morei primeiramente em casa de família, depois
fui morar no Hotel Freitas. Mas neste tempo, também lá moravam Esmeralda
(também professora) e o professor Aquino. Em 1949 , casei-me e fui para
Barranca (hoje Rialma), mas ficou-me a lembrança do pouco tempo em que
residi em Jaraguá, bons tempos em que fui a respeitada professora do
Colégio Arquidiocesano de Jaraguá.
Mais animada, Dona Emicenia mostra-me um álbum de fotografias presenteado por
sua amiga Cacilda Terezinha Rios. Nele, fotografias do Ginásio e dos alunos que,
carinhosamente, subscritaram fotos para a professora, em sinal de apreço pela querida mestra.
Por sua vez, assim a amiga dedicou-lhe o presente:
Emicenia, os retratos são recordações valiosas dum passado remoto. Quase
sempre podem nos lembrar a mocidade no batizado, no primeiro aniversario
104
Entrevista concedida por Dona Emicenia Maria de Barros, ex-professora do Ginásio Arquidiocesano, em 1947.
Brasília, novembro de 2001.
112
e no dia de noivado. Lembra-nos também fisionomias queridas que deixaram
de existir.
Neste álbum você trará muitos retratos de alunos e pessoas que lhe são
caras. No futuro, quando todas as creaturas, aqui retratadas, trouxerem no
rosto a marca indelével do tempo, lembrará você da Tereza?
Salve 26/5/47.
Logo às primeiras páginas do álbum, encontramos uma fotografia das duas primeiras
turmas de estudantes e dos primeiros professores do Colégio Arquidiocesano. Os alunos
postados de um lado da escadaria do Colégio e as alunas do outro, tendo na parte central os
professores, dentre eles, Dona Emicenia.
Lá estava, entre outros, Dona Terezina. Ao mostrar-lhe as fotografias, pude
testemunhar o efeito que as imagens tiveram em minha depoente. Puro entusiasmo, ela trata
rapidamente de identificar-se, assim como aos demais colegas:
Turbilhão de imagens. Dona Terezina literalmente “passa a limpo” aquele
saudoso passado: Olhe eu, aqui! eu era até bonitinha. Professor Aquino!
Olhe como eu era bonitinha, pena que eu olhei pra baixo. Olhe aqui Suzete,
minha amiga, aqui Alexandre e Urbano. Urbano era comunista e naquele
tempo ser comunista era crime, ele teve que fugir. Aqui Yara, era tão
bonita!
Passado que, pela força das imagens, parece querer pular as barreiras do tempo.
Emocionada, oferece um testemunho que bem define o efeito alcançado pela imagem no
processo de construção da memória:
Ao ver estas fotos, as lembranças descem como tempestade, desencadeando
uma emoção que sufoca. A escola era a minha vida. Como eu não
participava de nenhuma atividade social, era na escola que eu me realizava.
É muito agradável ver estas imagens do meu tempo estudantil, mas, por
outro lado, as lembranças são tão profundas que chega a magoar. Na vida,
vivemos vários momentos importantes, casamento, filhos, mas nada se
compara a experiência da escola na vida de uma jovem. Para mim, a escola
é algo que me marcou para a vida inteira. Eu sinto uma gratidão imensa ao
meu pai e a padre Cleto por terem me proporcionado condições de estudar.
Eu sempre fui doida para saber, para conhecer as coisas.
Tem horas em que estas lembranças, essa saudade vem de forma suave, mas
em determinados momentos vêm de forma avassaladora, como uma
113
avalanche. Não tem nada como a infância e a adolescência. Se eu for
analisar a minha vida, tenho muito mais problemas do que momentos de
realização, de felicidade, de tranqüilidade. Mas eu sou teimosa, faço do
limão uma limonada.
Aqui em Jaraguá, toda a minha vida girava em torno do colégio, minhas
amigas, meus professores, padre Cleto, padre Belote. Padre Belote foi meu
amigo mesmo, de tentar me orientar na vida.
Outra fotografia mostra um desfile cívico dos alunos do Ginásio. Em fila, por ordem de
tamanho e uniformizados, desfilam pela rua principal da cidade ainda sem asfalto. A foto
mostra que a iluminação pública sustentava-se ainda em postes de madeira. À frente, alguns
alunos carregando a Bandeira do Brasil e a Bandeira de Goiás. Os meninos vestem roupa de
gala, terno branco, cinto e quepes pretos. Vêem-se também os casarios antigos, que já não
existem mais na cidade. Crianças, moradoras da cidade, correm descalças à frente do desfile
juntamente com um cão. As pessoas param para assistir ao desfile, trajando ternos de cor clara
e gravatas, demonstração de dia de festa.
Outra imagem bastante interessante registra o momento em que a praça central da
cidade transformava-se em palco das demonstrações de atletismo. As aulas eram ministradas
por padre Cleto que, segundo enfatiza Dona Emicenia, ministrava ―as aulas (...) com muito
rigor”.
As garotas vestiam o uniforme comum, saia pregueada e camisa de mangas
longas, os rapazes já vestiam trajes mais leves, calças longas e camisetas
cavadas. O chão era traçado com cal branco para marcar as evoluções. As
pessoas chegavam para assistir as demonstrações dos alunos. Padre Cleto
era o professor. Rigoroso com as normas e a disciplina, se algum deslize
acontecesse durante as apresentações, o aluno ganhava a maior bronca
quando chegava ao colégio.
Percebemos, pelas fotografias, a preocupação com a simetria dos movimentos. Os
alunos fazem movimentos que exigem equilíbrio, formando verdadeiras pirâmides humanas.
Demonstração de civismo, a bandeira brasileira aparece no topo da pirâmide, erguida pelo
aluno ou aluna que estivesse em seu ápice.
Utilizo-me do pensamento de Benjamin que, refletindo sobre a construção da memória
histórica, de forma pontual enfatiza que:
114
Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo, “tal como ele
propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal qual ela
cintilou ...105
A experiência adquirida ao longo do trabalho desenvolvido com os depoimentos
corrobora essa afirmativa de Benjamin. A história que os depoimentos trazem não é mesmo
“tal como ela propriamente foi”. Ela passa pelo processo seletivo implícito no trabalho de
memória. Entretanto, fazer uso das fotografias como fonte documental permitiu apreender que,
frente à imagem, esse trabalho tende a fluir muito mais ―solto‖, com menos ―censura‖ do
presente.
Desde as primeiras iniciativas voltadas à coleta de depoimentos, chamou-me a atenção
o fato de ter encontrado freqüentes referências à destruição do Ginásio. Esta parecia ser a
imagem mais lembrada pelos entrevistados quando instigados a falarem sobre suas
experiências escolares naquela instituição.
De fato, em 1970, o prédio que abrigava o Ginásio fora destruído pelo poder
municipal. Dois anos antes do evento da destruição, o ginásio havia sido desativado e os
alunos transferidos para a Escola Estadual Diógenes de Castro Ribeiro. Os depoimentos
acenam em direção a diversas explicações sobre o evento. Dona Maria Agripina Patrocínio,
ex-aluna da primeira turma do Ginásio, por exemplo, assim explica o ocorrido:
... parou de funcionar porque o povo achava longe e, com a construção do
Colégio Diógenes, os alunos foram se transferindo e o Arquidiocesano foi
desativado.
Outro entrevistado, Dr. Wilson Barbo de Siqueira, ex-aluno tanto do Grupo
Escolar Ruy Barbosa quanto do Ginásio Arquidiocesano, tem outra explicação para a
desativação do ginásio:
O motivo da escola ir se degenerando foi devido a problemas de ordem
pessoal em que os padres, professores da escola, um deles inclusive foi
105
Walter Benjamin. Apud Maria do Pilar de Araújo Vieira e outros. A Pesquisa em História. São Paulo:
Ática,1992, p. 29.
115
diretor, se envolveram em casos amorosos tendo que se afastar da escola e
da cidade.
A essa, outras explicações vêm se somar e, segundo o mesmo depoente,
Outra causa foi o fato dos alunos de melhor poder aquisitivo saírem em
busca de estudos em outros Estados (São Paulo e Minas), como também o
fato do ensino religioso começar a ficar fora de moda.
As diferentes versões para o episódio, longe de significarem incoerência, demonstram
o que vários estudiosos do fenômeno da memória não cansam de reiterar, e que Ulpiano
(1992, p.12) assim define:
A elaboração da memória se dá no presente e para responder às solicitações
do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo tanto
quanto as condições para se efetivar.106
A esse dado, soma-se a perspectiva sempre singular que cada personagem imprime às
experiências vividas. Fruto, portanto, da junção de valores singulares e coletivos, a memória é
sempre miríade de imagens/representações. Assim Bosi (1994, p.333) percebe esse fenômeno:
Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência
familiares, escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus
membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo.107
Portanto, o que se vê é a construção de uma memória sobre aquela experiência que
apela tanto para os laços coletivos, que tendem a unificar as versões, quanto para a percepção
pessoal de cada depoente que, a seu modo, ―passa a limpo‖ aquela história.
Com o fim do Arquidiocesano, arquivos e biblioteca do antigo Ginásio foram
transferidos para a nova Escola Estadual Diógenes de Castro Ribeiro.
A destruição do prédio do Ginásio Arquidiocesano é, até hoje, inaceitável para a
maioria dos moradores da cidade, o que se pode apreender nos depoimentos coletados.
Considerado pelos depoentes um prédio de excelente estrutura, expressa, por exemplo, na
106
Ulpiano Bezerra Menezes. ―A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das
Ciências Sociais?‖ in: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. nº 34, São Paulo: 1992, p.12.
107
Ecléia Bosi. Memória e Sociedade. Op. cit., p.333.
116
dificuldade que representou sua derrubada, além de um belo exemplar arquitetônico, essa ação
política é construída nos depoimentos como desnecessária e injustificável. Essa postura se
expressa, por exemplo, no depoimento de Dona Maria Agripina, para quem
A estrutura do prédio era espetacular, as salas eram amplas e ventiladas,
uma construção que jamais poderia ter sido destruída, pelo seu valor
histórico e arquitetônico.
Elabora a memória desse acontecimento:
... foi destruído na gestão do prefeito José de Melo, com o intuito de construir
escolas na zona rural, com o material que sobrou da demolição. Foi falta de
competência do prefeito [que não percebeu] a importância e o valor da
construção mas, principalmente, por não ser de Jaraguá, não deu valor nas
coisas que eram importantes para o povo. (grifos meus)
Identificando a atitude do suposto prefeito responsável pela derrubada do prédio, como
fruto da ação de alguém representado como estranho aos valores do povo do lugar, alguém que
não era de Jaraguá e, portanto, apartado de sua história, a depoente constrói uma explicação
calcada no processo de construção das identidades que, como nos mostram os estudos sobre
essa temática, ao se construir, institui o outro (o diferente) como dado constitutivo da
identidade do grupo.
E é dentro desse contexto que Silva108 enfatiza que,
É também por meio da representação que a identidade e a diferença se
ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder
de definir e determinar a identidade. È por isso que a representação ocupa
um lugar tão central na teorização contemporânea sobre identidade e nos
movimentos sociais ligados à identidade. Questionar a identidade e a
diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação
que lhe dão suporte e sustentação.
Se, para Dona Maria Agripina é no governo do prefeito José de Melo que se deve
buscar a responsabilidade pela destruição do prédio do Arquidiocesano, para o Dr. Wilson,
108
Tomaz Tadeu da Silva. ―A produção social da identidade e da diferença‖in Tomaz Tadeu da Silva (org.).
Identidade e diferença. Op. Cit. p.91.
117
foi no governo anterior que a decisão fora tomada e parcialmente concretizada. Segundo seu
relato, fora o prefeito Silvio de Castro Ribeiro quem decidira pela demolição do prédio, com
o intuito de construir em seu lugar ―um ginásio de esportes‖. Seu depoimento ilustra o jogo
de poder que procura instaurar uma verdade para o ocorrido, no caso, uma verdade diferente
daquela construída no depoimento anterior, demonstrando que o trabalho da memória é,
entre outras coisas, uma forma de se forjar verdades e identidades:
[Na gestão de Silvio de Castro Ribeiro], encontrei-me com D. Epaminondas,
bispo da Diocese da Anápolis, a qual pertencia Jaraguá, e comentei (...) se
não havia interesse da Diocese em vender o prédio do antigo colégio (...). D.
Epaminondas mostrou-se bastante interessado, uma vez que o prédio estava
abandonado, sendo alvo de depredação por parte da população. (...)
Procurei então pelo prefeito (...) e sugeri que a Prefeitura adquirisse o
prédio para futuras instalações universitárias, o que para o prefeito foi
motivo de recusa e veemente contestação, alegando que não pretendia
formar estudantes que não o apoiariam, uma vez que tinha consciência que
estudantes universitários jamais votariam em um tabaréu, com resquícios de
coronel.(grifos meus)
De acordo com o depoente, cuja memória sobre o episódio não descuida de constituilo/representá-lo como sujeito ativo dos acontecimentos, o prefeito, cuja representação assentase na imagem do ―tabaréu‖, termo que significa ―indivíduo que pouco sabe de seu ofício‖,
segundo definição do Aurélio, foi insensível às necessidades tão bem acenadas na proposta do
depoente. Constrói-se assim, nesse discurso, o contraponto ideal para marcar a diferença que
ajuda a configurar a identidade do ―sujeito-suporte‖109 desse discurso, num processo que,
como visto anteriormente, implica a construção concomitante do outro, ao mesmo tempo em
que o diferencia de um passado coronelista.
Se a um prefeito faltou sensibilidade para entender as necessidades da população,
afinal, tratava-se de um ―estrangeiro‖, pois não era de Jaraguá (depoimento de Dona Maria
Agripina), ao outro, faltou competência (depoimento de Dr. Wilson), pois se tratava de um
―tabaréu‖. De uma forma ou de outra, a memória em torno do Colégio Arquidiocesano procura
109
Ao refletir sobre o sujeito do discurso, Orlandi esclarece que ―o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia para que se produza o dizer.‖ Com isso a autora quer dizer que o sujeito discursivo não está na origem
do que diz; ele deve ser pensado como ―lugar‖, pois ―é a posição que deve ocupar todo o indivíduo para ser
sujeito do que diz.‖ Daí a noção, em Análise do Discurso, de sujeito-suporte. A respeito do conceito de ―sujeitosuporte‖ ver, ainda: Dominique Mainqueneau. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas/ São Paulo:
Pontes/Ed. Unicamp, 1989.
118
definir o destino do mesmo (sua destruição) pela interferência, sempre inapta, do poder
político local.
Ao reportar-se ao fim do Ginásio, Sr. Tentorino Julião Amorim diz acreditar que “O
que derrubou o Colégio foi o tempo e a falta de manutenção. Ficou abandonado e, durante o
governo de Silvio de Castro, o Colégio já estava desativado”.
Eu gosto de história, mas não valorizo muito essa preservação exagerada de
coisas velhas, tem preservacionismo que não tem cabimento. A escola
realmente valorizou Jaraguá, pois naquela época o Colégio mais próximo
ficava muito distante. Meu irmão mais velho estudou em Silvânia e era uma
dificuldade tremenda para chegar lá. As pessoas que quisessem estudar
tinham que ir para Araguari ou Silvânia. O Colégio deu status pra a cidade
pois as pessoas vinham das cidades circunvizinhas para aqui estudar.
Vale salientar que, no tocante à destruição do prédio do Ginásio Arquidiocesano de
Jaraguá, considero que o episódio tem significação especial por ter se transformado numa
espécie de registro da memória popular. Halbwachs evidencia a importância da memória
coletiva quando afirma que.
(...) Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que
eles nos tragam seus depoimentos: necessário ainda que ela não tenha
cessado de concordar com suas memórias e que haja bastantes pontos de
contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam
possa ser reconstruída sobre um fundamento comum.110
Se há um fundamento comum que ajuda a configurar uma memória sobre a experiência
escolar compartilhada por meus depoentes no Ginásio Arquidiocesano, este passa
necessariamente pela demolição do prédio que o abrigava. Por sua vez, este evento remete os
depoimentos, recorrentemente, aos jogos políticos típicos do cotidiano daquela cidade.
Ninguém pode ser universal fora de seu quintal. Minha história é o meu
quintal. É este o pão que reparto com aqueles que seguem uma trilha
similar.
(Vinícius de Moraes)
110
Maurice Halbwachs. Op. cit., p. 34. (grifos meus)
119
Faço minhas, as palavras do poeta. Tenho a convicção de que este trabalho só foi
possível de ser realizado por ter dado vazão ao forte desejo de falar sobre um tema que está
intimamente ligado ao meu dia-a-dia, a algo que
concebo como um dos fatores que
promovem o crescimento do ser humano.
Concluindo
Meu intuito foi falar da educação, não no sentido restrito e comumente praticado –
centrado, por exemplo, em seus aspectos político-pedagógicos – mas sim, ousando mais. O
que quis foi falar da história que circunda e atravessa as escolas, das representações que se
constroem sobre as práticas que ali se engendram – por onde passam as noções do vivido e do
concebido – do poder simbólico que a constrói e da memória que une e mantém vivos os seres
que dela participaram, conferindo-lhes uma identidade.
Anseio que o diálogo desenvolvido ao longo das partes de que se compõe esta pesquisa
possa, de alguma maneira, e não obstante suas lacunas, trazer elementos para um ―olhar‖ sobre
as práticas escolares, na perspectiva por mim selecionada para nortear as tramas dessa história
que resolvi contar.
Referências
BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade. Lembrança de Velhos. 3ª ed., São Paulo: Cia das Letras,
1994.
BRETAS, Genesco Ferreira. História da Instrução pública em Goiás. Goiânia:
CEGRAF/UFG, 1991.
BURKE, Peter. ―Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro‖ in A Escrita da História
– Novas Perspectivas.Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1990.
FONSECA, Luciano da. Os Impactos da “Marcha para o Oeste‖ no Município de Jaraguá.
Dissertação de Pós-Graduação. UFG. Goiânia, 1997.
HALBWACHS Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos
Tribunais, 1990.
MAINQUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas/ São
Paulo: Pontes/Ed. Unicamp, 1989.
120
MENEZES, Ulpiano Bezerra. ―A história, cativa da memória? Para um mapeamento da
memória no campo das Ciências Sociais?‖ in: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. nº
34, São Paulo: 1992.
RANGELl, Mary.”Bom aluno”: real ou ideal? O quadro teórico da representação social e suas
contribuições à pesquisa. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997.
SILVEIRA PX (org.) José Peixoto da Silveira – O gentil-homem. Gráfica Centauro, Goiânia,
1987.
121
5
CORONELISMO,
MEMÓRIA, IDENTIDADE E IMAGINÁRIO:
JARAGUÁ 1920-1940.
Cristiane Eunisse Fonseca
Ciente da dificuldade de se realizar um estudo quando se é parte integrante da
realidade estudada – o que a faz parecer por demais familiar, deixando uma impressão de
facilidade, pois tudo parece ser conhecido, óbvio – percebo neste trabalho um desafio, que é o
de (Da Matta: 1987, p.157) ―transformar o familiar em exótico‖, para ficar num exemplo bem
à moda de uma leitura etnográfica.
Defino como objeto específico de estudo, a memória que se constrói, ainda hoje, sobre
o coronelismo na cidade de Jaraguá, investigando nos discursos as representações e o
imaginário criado em torno do tema, enfocando também as construções feitas sobre a cidade à
luz do poder de mando dos coronéis, entendido tanto em seu caráter concreto, quanto
simbólico.
Faço, portanto, da categoria ―memória‖, o principal objeto desta proposta, com o
objetivo de compreender como se formula, ainda hoje, em Jaraguá, uma memória sobre o
coronelismo, isto é, a memória será trabalhada como produtora de significados, sendo,
portanto, um instrumento fundamental para a construção da história.
122
Ecléia (Bosi: 1994 p.55) lembra-nos, por intermédio de Halbwach, importante
estudioso do fenômeno da memória, que:
...a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à
nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato
antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque
nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e,
com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor.
Entende-se com isso que a memória é um trabalho que se realiza no presente. Ela não é
um dado pronto a ser recuperado tal qual aconteceu. É uma construção daquele que a produz.
Vista assim, temos consciência de que a memória não dá conta do passado em suas múltiplas
dimensões e desdobramentos, mas ela é, com certeza, o elo de impressão fundamental para
rememorar o passado. Conforme Ulpiano, (Menezes,1992)
...na voz corrente, a memória aparece como enraizada no passado que lhe
fornece a seiva vital e ao qual ela serve, restando-lhe, quanto ao presente,
transmitir-lhe os bens que já tivera acumulado. Ora, (...)_ a memória
enquanto processo subordinado à dinâmica social desautoriza seja a idéia de
construção no passado seja a de uma função de almoxarifado desse passado.
A elaboração da memória se dá no presente e para responder as solicitações
do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto
quanto as condições para se efetivar.
As reminiscências do passado foram buscadas considerando-se algumas observações
de Thompson .( 1992, p.17) a respeito do documento oral. Para esse autor, esse trabalho
...possibilita novas versões da história ao dar voz a múltiplos e diferentes
narradores. Esse tipo de projeto propicia, sobretudo fazer da história uma
atividade mais democrática, a cargo das próprias comunidades, já que
permite construir a história a partir das próprias palavras daqueles que
vivenciaram e participaram de um determinado período, mediante suas
referências e também seu imaginário. O método da História Oral possibilita
o registro de reminiscências das memórias individuais (...), pois qualquer um
de nós é uma personagem histórica.
123
O que se propôs, portanto, foi compreender, através das fontes orais, como a sociedade
jaragüense constrói, hoje, uma memória sobre o período marcado pelo mandonismo local, pelo
banditismo, pelas rixas políticas e, de modo geral, como isso interfere na cultura desse povo,
logo, na construção de sua identidade.
Para tanto, entrevistei pessoas idosas da cidade de Jaraguá, cujas histórias foram
marcadas pela experiência de viverem sob a ordem coronelística, procurando verificar que
imagens surgem daquela experiência. Sabendo que as experiências adquiridas ao longo de
suas vidas, se não se manifestam, não se transformam em dados para a história, creio que, ao
propor um trabalho que considere a perspectiva da memória oral, colaboro para a
desconstrução dessa lógica, contribuindo para revelar a riqueza que representa a experiência
dos mais velhos.
As marcas da violência, do banditismo, das perseguições sofridas por aqueles que
tiveram de enfrentar o poder dos coronéis, são as grandes e permanentes referências dessa
memória coletiva que vai sendo tecida pelos depoimentos.
Nesse processo de registros históricos da memória popular, os indivíduos atuam
demonstrando valores específicos, com os quais a sociedade se organiza. São valores morais,
éticos, religiosos, políticos, típicos da sociedade estruturada à sombra do coronelismo, e
explicitados, como se verá, nos depoimentos trabalhados.
Por tudo o que foi dito, minha proposta de estudo considerou que a reconstrução da
memória sobre o coronelismo define-se como um trabalho que se volta à dimensão do
presente. Estarei trabalhando, portanto, com a memória. Ouvir os antigos moradores da cidade
e outras pessoas, que direta ou indiretamente estavam ligadas a Jaraguá, significa retornar ao
passado, operação possível de se realizar pela via do lembrar, mas, também considerar como o
processo de construção das identidades continua sendo formulado, à medida que essas pessoas
retornam as suas histórias.
Nesta discussão sobre a memória, fenômeno que permite (re)criar o passado,
é
possível vislumbrar que a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a sua
família, com a classe social, com a escola, com a religião, com a profissão, enfim, com os
grupos de referência peculiares a esse indivíduo. Esse é mais um dado que atende às
particularidades do meu objeto de estudo.
124
Na coleta de dados, utilizei-me, principalmente, da conversa direta com os depoentes,
realizando visitas e entrevistas abertas, que permitiram apreender as representações que os
entrevistados constroem a respeito do tema proposto.
A delimitação temporal do objeto desta pesquisa considera a dupla temporalidade na
qual o mesmo se inscreve. O corpus documental principal que a sustenta (fontes orais) remete
tanto às experiências dos depoentes no início do século, quando se estruturou e consolidou o
poder coronelístico na cidade (aproximadamente 1920–1940), quanto ao tempo presente,
momento de construção de suas memórias.
Trabalhar a memória sobre o coronelismo em Jaraguá, portanto, exige que se considere
a condição de produção dos discursos que, seguramente, darão novos contornos às
representações sobre o tema, visto que (re)lembrar significará (re)colocar aquela experiência
dentro de um novo ―quadro‖ temporal-espacial.
O que se coloca então é a possibilidade de entender a linguagem como discurso que se
constrói dentro de certas condições de produção, num contexto histórico específico,
produzindo sujeitos e sentidos que só podem ser apreendidos na história. Daí a definição de
discurso (Orlandi, 2001, p.21): ―o discurso é efeito de sentidos entre locutores‖. Deste modo,
o poder dos discursos imbrica-se com a crença na legitimidade daqueles que o pronunciam.
Assim, podemos entender o discurso como prática pela qual os sujeitos se mobilizam,
constituindo uma realidade baseada nas representações que reproduzem. Os discursos são
constituídos por relações de poder que delineiam o que é certo e o que é errado, o que pode ser
dito e o que não pode, exprimindo ou rebelando-se contra o poder estabelecido. A figura do
coronel, entre suas práticas e representações, demonstrava o poder a que muitos deviam temer
e poucos ousavam desafiar.
Esse poder pode ser analisado segundo o esquema apresentado por Bourdieu
(2001,p.14) para elucidar o que vem a ser o poder simbólico:
O poder simbólico [é o] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer
ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo; poder
quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela
força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.
125
Ora, sabendo que esse comportamento não se explica mais pelo apelo a um poder
efetivo dos antigos coronéis, penso que uma forma de entender essa prática seja remetê-la ao
campo do simbólico, do imaginário. Como lembra Pesavento, (1995, p.24) o imaginário:
... é pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo
de espelhos onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha
composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil
de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é
buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a
representação de ser e parecer.
Logo, uma pesquisa como esta, que se propõe seguir as trilhas do imaginário, deveria
preocupar-se com toda espécie de prática/discursos, tenham eles uma lógica aparente ou não,
pois todos significam formas de se conceber a realidade.
Essa prática me faz refletir, por exemplo, como o imaginário é utilizado como
instrumento para conferir poder, crenças, enfim, para construir as identidades, pois, segundo
Woodwa (2000,p.17),
... É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos
sentido à nossa experiência e àquilo que somos.(...) os discursos e os
sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os
indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar...
A construção desta identidade demonstra a necessidade das pessoas em buscar um
passado no qual se espelhar. Jaraguá, ainda hoje, é também conhecida como ―Lendária Terra‖,
representação que permeia o imaginário de seus moradores.
O estudo do imaginário revela, também, estruturas familiares à comunidade
estudada, por isso, nesta pesquisa procurou-se captar, igualmente, as fantasias da população de
Jaraguá à época do coronelismo que se mantém presente nos depoimentos coletados.
Atenta à importância da dimensão do imaginário para o entendimento de meu objeto,
parti do princípio de que nada deveria ser desprezado. Refiro-me, especialmente, a passagens
de alguns depoimentos que se revestem de um caráter aparentemente fantasioso. Entendo que
esses ―fantasmas‖ estão para além da simples fantasia. Acredito ser possível captar, através
dessas imagens, muito do que configurou e ajuda a configurar os sentidos que os depoentes
dão àquela realidade social. Como lembra Pesavento(Op Cit,p. 15)
126
...no domínio da representação, as coisas ditas, pensadas e expressadas
têm outro sentido além daquele manifesto. Enquanto representação do real,
o imaginário é sempre ausência de um “outro” ausente. O imaginário
enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explicita o não presente.
Sabendo que quem detém o imaginário detém o poder, Baczko (1985: p,298-299)
lembra que o poder é, também, fazer crer, logo,
... exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o
ilusório a uma potência real, mas sim em duplicar e reforçar a dominação
efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela
conjugação das relações de sentido e poderio...
Em Bourdieu,(Op. Cit p.11) é possível compreender como os sistemas simbólicos
duplicam e reforçam o poder. Creio que a análise da dimensão simbólica do poder coronelista
elucida a forma como aquela prática se impunha, dominando e se fazendo crível:
(...) É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de
comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a
sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da
dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe
sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força
às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim,
segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados‖.
Temos, assim, um estudo que vem complementar a historiografia sobre o
coronelismo pela via do estudo das representações sociais, buscando, a partir da memória que
se constrói sobre o tema, compreender como se organiza, no discurso, a percepção do processo
histórico goiano, do cotidiano da cidade e como se constroem as representações sobre aquele
passado.
E quais as representações que hoje são construídas sobre o coronelismo em Jaraguá, nas
primeiras décadas do século XX? Como se constrói essa memória?
127
Construindo a memória do coronelismo em Jaraguá
Ao realizar um trabalho voltado à apreensão de como se configura, ainda hoje, o
trabalho da memória sobre o coronelismo na cidade de Jaraguá, procurei trabalhar as fontes
orais, buscando, sobretudo, compreender as representações que o presente constrói quando
evoca as lembranças daquelas experiências passadas.
O trabalho de memória comporta, necessariamente, tanto recordar quanto esquecer.
Lembranças que incomodam por remeter a experiências desagradáveis, a humilhações,
derrotas, perturbações, desamores tendem a ser ―apagadas‖ dos registros/experiências. Isso
ocorre por um mecanismo muitas vezes imperceptível à consciência. Este fenômeno não tem
passado despercebido aos estudiosos de outras áreas de conhecimento, como é o caso do
médico Ivan Izquierdo, o qual, em recente entrevista, afirmou que tanto quanto recordar,
esquecer também é preciso, pois muitas vezes é necessário ocultar certas lembranças para
manter uma vida mental saudável.
Apesar de involuntário, o esquecimento está relacionado ao fato de que, sobretudo os
velhos, ―escolhem‖ suas memórias, pois é preferível lembrar os episódios da infância e da
juventude, e mesmo da vida madura, que correspondem ao tempo da felicidade, em que se era
saudável, forte, ágil, com toda uma vida pela frente, plena de possibilidades, àqueles que
remetem a situações desagradáveis.
Essa talvez seja a diferença mais essencial entre a fonte oral e as demais, pois trabalhála significa estar frente a uma fonte viva, visto que ela representa um processo em contínua
construção: ela é memória. Nela, o passado vai se configurando à medida que o trabalho
avança, podendo (re) viver a cada esforço que se faz no sentido de construi-lo como memória.
Daí a profunda associação que se faz entre o trabalho de memória e o processo de construção
da identidade, processo esse também marcado pela constante prática de apropriação e
recriação do passado.
Processo em constante movimento, a construção identitária exige um diálogo
permanente com o passado – construindo-o como memória – de onde retira grande parte do
material que a constitui.
Mas, vejamos como meus depoentes vão construindo a memória do coronelismo em
Jaraguá.
128
A memória consolidada
Quando buscam (re)viver as lembranças sobre as práticas coronelistas, algumas
imagens/representações construídas por meus depoentes parecem dialogar com os sentidos que
os estudos voltados ao tema do coronelismo vêm fixando ao longo dos anos.
Vejamos que imagens são essas.
As paixões humanas
Recorrente entre os depoentes é, por exemplo, a remissão às divergências políticas
entre os Castro e os Freitas – sempre atravessadas por questões que envolvem o universo da
subjetividade humana – para explicar a história de Jaraguá, representação também presente na
ainda pequena literatura existente sobre o tema.
O depoimento do Seu Gregório(84) não só corrobora essa perspectiva, como também
mostra o quanto essas inimizades estavam atravessadas por questões familiares que marcaram
o cenário político de Jaraguá:
(Os Castro e os Freitas) não tinham relação amigável e todos eram parentes
um do outro. A briga era porque um queria mandar e o outro também queria
(...) a briga deles era por causa da política.
Em trabalho onde reflete sobre a dimensão cotidiana do poder político, Maffesoli
(1997) mostra que, nesse campo, há uma tendência à polarização que mais parece responder a
relações de afeto que à lógica.
Vimos que os estudos sobre o coronelismo enfatizam a característica ―familiar‖
daquela estrutura de poder, alicerçada em ―contratos‖ de amizade e favor e, ao mesmo tempo,
marcada por rompimentos bruscos, mudanças no sistema de alianças, que facilmente rompiam
esses contratos. Isso ocorre por esta estrutura de poder estar informada por relações movidas,
como diria Maffesoli (1997), pelas paixões humanas que constroem a história. A política é o
campo das explosões apaixonadas e o coronelismo parece ter sido uma prática política que
levou ao limite essa característica.
129
O atraso deliberado
Outra representação freqüente nos depoimentos que procuram construir a
memória do coronelismo em Jaraguá remete à imagem de uma política deliberadamente
voltada a imprimir na cidade relações marcadas pelo repúdio ao ―progresso‖, como se pode
observar, por exemplo, no depoimento de Seu Joaquim Militão(90):
O Castrinho era inimigo do Dr. Augusto Rios [Juiz de Direito, intelectual e
poeta]. Ele era contra o desenvolvimento [e também] contra pessoas
intelectuais. Esse povo [referindo-se aos coronéis] não queria nada com o
desenvolvimento, com o progresso...
A mesma representação tem um outro depoente, Seu Salvador de Freitas, para quem,
com os Castro não houve progresso: ―O progresso começou em Jaraguá, depois que os
Freitas ganharam a política.‖
No depoimento de Seu Zé Chagas(89), a cidade é construída pela oposição com o hoje,
e o sentido que a atravessa é o do atraso deliberado, pois assim se podia garantir o poder em
mãos dos coronéis. Segundo o depoente, com o fim do império dos Castro:
A cidade melhorou tudo. Essa praça aí, da matriz, não tinha,... era chão.
Corria cavalhada era aí, não tinha nada. A cidade era até onde tá a igreja, o
resto era pasto.(...) tinha um sobrado onde é hoje o Banco do Brasil...
Essa percepção dos depoentes corrobora as análises que alguns estudiosos do
fenômeno do coronelismo vêm realizando. Não são poucos os que se referem a uma
deliberada política levada a cabo pelos coronéis, empenhada em manter um quadro de ―atraso‖
que servia plenamente aos seus interesses. Essa seria uma forma, consagrada inclusive pela
academia, para definir as relações próprias ao coronelismo.
A violência dos jagunços e os desmandos dos coronéis
Recorrente é, também, a representação da violência física como associada às práticas
coronelistas, muito embora essa violência, em geral efetive-se, nos depoimentos, pela ação dos
jagunços. Seu Gregório da Conceição Macedo, por exemplo, garante que Castrinho não
130
andava sem a companhia de três ou quatro jagunços, tanto para garantir sua proteção pessoal,
quanto para impor uma certa ―banca de brabo‖.
Para Seu Joaquim Militão, por exemplo, o coronel é quem mandava em tudo, mas isso
era garantido pelo fato dele ter muitos jagunços. No caso do coronel Castrinho, Militão lembra
quem eram seus mais famosos jagunços: ―era o Aprígio, o Dilhermano, o Cidino, o Serrate”.
Ainda Joaquim Militão quem mostra como a violência dos jagunços, sempre a mando
dos coronéis, não conhecia limites. Referindo-se a um determinado episódio, o depoente
conta, por exemplo, que
... eles [os jagunços] mataram ele e trouxeram a orelha do sujeito (...) para
o coronel Castrinho.
É a lembrança da violência, em sua dimensão mais cruel, que vai configurando a
memória que o depoente tem daqueles tempos.
O mesmo depoente lembra, ainda, o importante papel exercido pelos jagunços que,
com sua presença sempre ameaçadora, garantia a fidelidade dos eleitores:
... aqueles jagunços, a pedido do coronel, na sala de votação, vigiavam os
eleitores, quem votasse contra, o sujeito denunciava e o coronel perseguia.
Mas, se a imagem da violência física é freqüentemente associada à ação dos jagunços,
a que parece prevalecer sobre os coronéis é a do desmando. Evidentemente, a ela está
associada a do poder que se impõe também de forma violenta. Mas, é principalmente o
desmando que parece informar a memória sobre essa prática quando o coronel é que está
sendo construído. Essa é uma imagem que os depoimentos não deixam esquecer.
Sempre lembrado pelos estudos dedicados ao tema, o desmando parece mesmo ter sido
uma marca das práticas dos coronéis. Em Jaraguá, não foi diferente. As pesquisas sobre o tema
vêm mostrando uma história marcada pela presença inconteste desses chefes políticos que,
entre outras coisas, controlavam jornais, delegados, juízes, fazendo imperar sua lei.
Os jornais da época, por exemplo, serviam como instrumento que alimentava as rixas
entre grupos inimigos, fazendo circular as versões de cada um para os episódios de desmando
que freqüentemente ocorriam e eram protagonizados por esses chefes locais. As brigas verbais
muitas vezes desdobravam-se para a contenda armada. Em Jaraguá, os opositores do coronel
131
Castrinho faziam uso do jornalzinho ―O Parafuso‖. Sobre esse periódico, muitos depoentes
comentam que era um instrumento de ―provocação‖, responsável inclusive por algumas
mortes. No depoimento do Seu Zé Chagas,
O responsável por estas coisas que andaram acontecendo aqui era um tal
jornalzinho “O Parafuso”. Esse jornalzinho era fogo. O diretor dele era o
senhor Geraldo de Freitas.
Como se vê, mais uma vez a eterna rixa entre Castro e Freitas.
Outras passagens do depoimento de Seu Joaquim Militão ajudam a entender como se
exerciam esses desmandos. Relatando um caso ocorrido durante o julgamento de um jagunço
do coronel Castrinho, o depoente conta que, num determinado momento, tendo-se instaurado
uma discussão no tribunal, o coronel interferiu de forma bastante significativa. Nas palavras
do depoente, em meio ao bate boca que se instalara no tribunal, ―... o coronel Castrinho entrou
e disse: - Que balbúrdia é essa ai! Acaba com isso ai!‖, ignorando a presença das autoridades
e fazendo valer ―sua‖ ordem. Essa era a forma como os coronéis conduziam-se perante um
tribunal, onde aparentemente ninguém ousava contestá-los.
Polícia ou bandido?
Aos desmandos dos coronéis, somava-se a inoperância da polícia, assim como das
demais autoridades. Que fazer quando os interesses dos coronéis colocavam-se entre a lei e a
vontade dos primeiros? E, quando quem deveria garantir a lei, trabalhava para o coronel?
No depoimento de Seu Zé Chagas sobre o episódio há pouco relatado, este afirma que
―no fórum, na hora do julgamento, não tinha uma polícia‖.
O mesmo episódio narrado por Seu Joaquim Militão ilustra esse tipo de situação, ao
que tudo indica, nada incomum. Ainda durante o julgamento, tendo havido reação de um
opositor de Castrinho (tratava-se de meu outro depoente, Seu Salvador de Freitas) à forma
como estavam sendo encaminhados os trabalhos (tudo fazia crer que o jagunço seria
inocentado), coube ao sargento Brígio que, segundo Joaquim Militão ―também era jagunço,
(...) era soldado e jagunço‖, dar ordem de prisão ao opositor.
132
Aí, o sargento Brígio rancou o revólver e falou para Salvador de Freitas
[opositor de Castrinho]:
_ Teje preso, meu filho; teje preso, meu filho.
Salvador respondeu:
_ Não vem não, nego! (...)
Ficaram os dois com o revólver cara a cara.
Enquanto o Sargento dizia:
_ Teje preso, meu filho.
Salvador respondia:
_ Não entra não, senão morre!
Dono de um poder aparentemente incontestável, a lei nada representava para o coronel.
E, quem teimasse em desafiá-lo, seria perseguido, preso, expulso da cidade ou até mesmo
morto. Ainda aludindo ao depoimento de Seu Joaquim Militão, vemos que:
No tempo do coronel Castrinho, a polícia obedecia ao coronel, se não
obedecesse, ele telegrafava, ou mandava o soldado para rua, ou até ia
preso, mas esse tempo eu era muito criança, tinha medo de soldado.
Soldado e bandido confundiam-se na cabeça do menino Joaquim, que, coerente,
percebia, já àquele tempo, não haver diferença significativa entre um e outro, num mundo
dominado pelos coronéis.
Quando é preciso esquecer
Mas, se alguns se referem a esses episódios como forma de marcar a memória daquela
experiência, a outros esses dados parecem bloqueados por um interdito intransponível. Em
alguns casos, é preciso deliberadamente ―esquecer‖.
No depoimento de Seu Zé Chagas, foi possível perceber que esses episódios violentos
envolvendo as tradicionais famílias jaragüenses ainda estão presentes em suas lembranças,
afinal, ele foi um espectador ativo dessa trama – à época, era motorista do coronel Castrinho,
tendo, portanto, presenciado vários fatos. Entretanto, meu depoente não quis falar sobre eles.
Quando começo a questionar sobre os casos de violência, o depoente tenta esquivar-se do
assunto e diz que o povo falava muitas ―bobagens‖ sobre Castrinho. Segundo ele: ―O povo
133
falava coisa pesada dele, eu não posso reclamar dele...‖. Quando volto a insistir sobre o que
exatamente o povo falava, que bobagens eram estas, ele responde:
Deixa isso pra lá, não pode tá falando não. Isso é perigoso viu? A gente tem
que segurar viu? Até hoje essas terras aqui é perigosa. Aqui é quase uma
família só, Castro, Rios, Freitas...
Por que, apesar de passado tanto tempo, quando muitos atores envolvidos nesses
episódios já se foram, ainda há resistência em falar? De onde vem o receio?
É ainda Maffesoli(Op Cit, p. 29) quem acena para uma possível compreensão acerca
desse procedimento. Afinal, como afirma esse estudioso, nada mais conservador que o campo
político. O político, mais que qualquer outra dimensão do social, perdura em suas estruturas,
mesmo se organizando de forma sempre diferente.
O que o depoimento de seu Zé Chagas deixa entrever é que o campo político
jaragüense não mudou tanto a ponto de se poder falar qualquer coisa. Como ele diz: ―não [se]
pode tá falando não‖.
O medo
A exemplo da experiência dos depoentes com as práticas dos coronéis, em Jaraguá, os
atos de outros coronéis também remetem à sensação de medo que essas práticas despertavam
na população.
No depoimento do Seu Joaquim Pereira(101), há lugar também para que se construa a
memória de outro coronel: o poderoso Brasil Ramos Caiado. Pintada com cores bem mais
brandas que aquelas as quais construíram a imagem de Castrinho, ainda assim, a representação
em torno de Brasil Ramos Caiado não deixa de se contaminar pelo medo que invocava:
Lembro dele até hoje, até senti a morte dele. O povo não gostava dele não,
mas eu até gostava, pois ele tinha a mesma profissão que eu tinha [ele referese ao fato de gostar de caça, como o coronel]. Ele era assim... Se falava na
família de Caiado o povo assombrava.
134
É o mesmo Seu Joaquim Pereira quem continua a relatar:
... o povo dos Caiado eram muito mal, matava os outros e ninguém dava
parte, podia ver os outros matando, ninguém dava parte, tinha medo deles,
eles eram matadores demais. Totó Caiado mandava matar. O filho dele era
ruim demais, queria até mandar serrar um homem na serralheria da
fazenda.111
O que essa memória constrói é a imagem de uma experiência marcada pelo medo, fruto
dos desmandos e da impunidade que cercavam aqueles coronéis.
Uma relação marcada pela tensão
Mas, se a memória sobre as práticas coronelistas remetem a traços tão violentos,
característicos daquela experiência, como tão bem mostrou e mostra a literatura especializada,
ela também se constrói remetendo a uma outra dimensão desse fenômeno que não passou
despercebida a essa mesma literatura. Trata-se das relações entre o coronel e seus aliados, sem
os quais seu poderio não poderia se manter. O depoimento de Dona Terezina de Castro
Ribeiro(70) corrobora a tese da existência de relações extremamente camaradas entre os
coronéis e seus aliados. Assim ela sintetiza as bases sob as quais essas relações se
fundamentavam:
O Castrinho quando era amigo, de quem ele era realmente amigo, ele
era verdadeiro amigo.
Referindo-se a um episódio que envolveu seu pai e o coronel Castrinho, assim Dona
Terezina constrói a imagem que define essa relação:
Eu não posso dar uma imagem só negativa das pessoas. No caso de papai
[Suzano Rodrigues], o Castrinho emprestou dinheiro para papai comprar a
fazenda, mas quando papai quis pagar (...) ele não quis receber e
Castrinho dizia:
111
Creio que não há apenas coincidência entre a prática narrada por Seu Joaquim, atribuída aos
―homens de Brasil Caiado‖, e a recente descoberta de que o ex-deputado Idelbrando Pascoal mandava
serrar seus opositores na serra elétrica de sua fazenda. Como diria Maffesoli, o campo político é, de
fato, muito conservador.
135
- não, pode trabalhar mais – papai tava ficando bem na fazenda – não
precisa pagar agora não!
Papai era afilhado do coronel Tubertino.
Entretanto, a bibliografia sobre o tema também mostra como as alianças desfaziam-se
de acordo com mudanças de rumo próprias daqueles jogos de poder. Foi o que ocorreu com
Suzano Rodrigues. Sua ruptura com Castrinho deu-se em função do fim da aliança entre este e
o padrinho de Seu Suzano, o coronel Tubertino, que, como vimos no capítulo anterior, era
sogro de Castrinho. E Dona Terezina continua tecendo os fios de sua memória:
Parece que nessa briga política entre Tubertino e Castrinho, como papai
era afilhado do Tubertino e afilhado do Dr. Augusto...
Aí o Castrinho perseguiu papai e tomou a fazenda.
Vimos com Janotti (1992) que, aos privilégios de que desfrutava o coronel, correspondia,
como contrapartida, uma série de obrigações que este deveria prestar junto a seus dependentes,
aos demais proprietários, assim como aos outros coronéis, sob o risco de, não correspondendo
a essa expectativa, sua clientela deslocar-se para outras posições, engrossando o apoio aos
coronéis adversários. Deste modo, segundo lembra a autora, ―o coronel devia constantemente
se esforçar para não diminuir sua capacidade em arranjar empregos, e atender a
reivindicações‖.Janotti, Op Cit, p. 62)
Por outro lado, nunca é demais lembrar a passagem já citada do trabalho de Leal (1997,
p.61), quando resume tão bem a tensão que marcava essas relações: ―a outra face do
filhotismo é o mandonismo, que se manifesta na perseguição aos adversários: para os amigos,
pão; para os inimigos, pau.‖
A memória que Dona Teresina constrói de sua experiência parafraseia as sentenças
desses dois grandes estudiosos.
Mas, se o trabalho de memória de Dona Teresina encontra espaço para falar de coisas
―positivas‖, como ela fez questão de frisar, a de seu marido, Seu Antônio de Castro Ribeiro
Filho, mais conhecido como Seu Ribeirinho, parece deixar espaço para que aflorem apenas os
traços negativos desse passado. Motivo de crítica de sua esposa, pois, para ela,
136
Isso, [os traços ―positivos‖ de Castrinho] Ribeirinho não conta, ele só conta
caso de miséria, ele só tem na memória o que é negativo na vida dele e das
pessoas, nada de positivo!
Em seu depoimento, Seu Ribeirinho(74) fala daquele tempo como alguém que viu o avô
materno sofrer toda sorte de perseguição, pagando alto preço por estarem do lado oposto ao de
Castrinho:
... tinha as pessoas que devia para ele né [referindo-se ao coronel
Castrinho], tomava gado, tomava terra, tomava tudo. Tinha riqueza imensa,
a maior parte acabou tudo, os filhos não têm nada, são poucos que têm (...)
o meu pai já foi prefeito aqui. Ocê já entrou na prefeitura nova? Lá tem o
retrato do pai. O pai, no tempo da guerra, era prefeito aqui. Ele teve nove
ou dez anos de prefeitura.(...) o Castrinho perseguia muito meu avô na
política, o Dr. Augusto Rios. Meu avô Augusto Rios foi juiz. Foi nesse
tempo... tinha muita perseguição.
O controle das eleições ou o voto de cabresto
Já vimos, no capítulo anterior, que um dos principais objetivos do coronel era o
controle do voto. Essa é também uma imagem muito freqüente nos depoimentos. Pelo ―voto de
cabresto‖, ele garantia para seus candidatos o apoio dos que lhe deviam favores, assim como
daqueles que o temiam.Conforme o depoimento de Seu Joaquim Militão, as características do
voto a bico de pena em Jaraguá seguiam os rituais comuns aos praticados no restante do País, à
época:
A primeira eleição que eu acompanhei, ainda era assim: aqueles jagunços, a
pedido do coronel, na sala de votação, vigiavam os eleitores, quem votasse
contra, o sujeito denunciava e o coronel perseguia. O coronel Castrinho
tinha a maioria dos fazendeiros.
Outra depoente, Dona Honorata Eunisse (80), elucida as tramas envolvidas no jogo de
poder que constituía a prática eleitoral na cidade, no período estudado. A depoente refere-se à
perseguição da qual foi vítima seu marido, Joaquim da Costa, quando o coronel Castrinho
suspeitou que ele o teria traído, votando no candidato da oposição:
137
Quando ele [o coronel Castrinho] pegou no colarinho da camisa do
Joaquim, deu um safanão nele, assim, e falou:
- eu te mato marvado! Ocê votou contra eu.
Aí o [...] o delegado falou:
- o que é isso aí? Esse homem aqui é muito bom, ocê não vai fazer nada
com ele não, ele é uma pessoa ótima, ele não merece isso não, ocê larga
ele.
Aí ele largou.
Outro a evocar lembranças das eleições à época foi Seu Joaquim Pereira:
Nas eleições, naquele tempo, votava era na vista, falava o voto, era em
público, hoje o voto é secreto nesse tempo o voto era aberto.
O coronel e o “juiz poeta”
Se o desmando é uma representação sempre associada ao coronel, assim como o medo
que suas práticas suscitavam, e ainda a idéia de que sua vontade não sofria contestação, nem
sempre são essas as imagens que prevalecem nos depoimentos. Os mesmos depoentes que
reforçam a representação do desmando desmedido dos coronéis, acenam para a existência de
atitudes de resistência a essa prática. Afinal, nem sempre as autoridades rezavam na mesma
cartilha dos coronéis. Seu Joaquim Militão, por exemplo, revela a existência de uma rixa entre
Castrinho e o juiz de direito Augusto Rios. Segundo o depoente, Castrinho, aliado dos
Caiados, família que controlava o poder estadual em Goiás, teria colocado o juiz Augusto Rios
―para fora daqui, mandou ele para Pirenópolis‖. Ainda segundo o depoente, Rios ―era tão
preparado que levou [com ele] também a Comarca‖.
A mesma lembrança ajudou outro depoente, seu Salvador de Freitas – o mesmo
que escapou à perseguição do coronel Castrinho, executada pelas mãos do sargento/jagunço
Brígio – a compor a memória sobre esse mesmo episódio:
O juiz Augusto Rios teve um tempo que ele foi contra o Castrinho. Ele
(Castrinho) perseguia tanto Jaraguá, que teve que mudar a comarca daqui.
Ele queria tirar o juiz e juiz ninguém tira, é garantido pela lei, não pode
transferir juiz e nem exonerar. Então, suspenderam a comarca daqui, pois o
Castrinho perseguia o juiz. A comarca daqui passou a pertencer a
Pirenópolis. Isso, não lembro muito, mas foi antes da década de trinta.O juiz
138
era muito inteligente, foi poeta, era muito preparado, tanto que às vezes ele
dava a sentença em francês. Era poeta, né?
Um juiz poeta e que ditava sentenças em francês é, na memória de Seu Salvador, o
contraponto perfeito à truculência atribuída a Castrinho. É também a justificativa ―perfeita‖
para a suposta oposição dos dois. Diferente de outros opositores que sucumbiam, vítima dos
desmandos do coronel, o que o depoimento de Seu Salvador, assim como o de Seu Joaquim
Militão sugerem é que a inteligência do Juiz era a arma com que esse combatia a brutalidade
do coronel.
Pesquisando os arquivos de jornais da época, encontrei um exemplar do Jornal A Voz
do Povo(14/11/1930) que registra a reação de resistência do Juiz, frente aos desmandos dos
coronéis. Perseguido, assim Rios se manifestou sobre os acontecimentos, no periódico
aludido:
Os Caiados
Com seis processos vis me perseguiram
Os homens, que em Goyaz eram Caiados;
Vi meu nome e conceito apedrejados
Por elles, pois em tudo me feriram!
Muitas vezes de mim elles se riram,
Julgando-me o maior dos desgraçados;
Em preterir-me a tantos magistrados
Muitas vezes também já me illudiram!
Sabendo-me juiz honesto e altivo
E nunca me podendo subornar;
Lançaram sobre mim um fogo vivo!
139
Comarca e meus direitos vi perdidos,
Meu nome só não poude se alterar,
Ao passo que Caiados vi Caídos !
Como se vê, havia também espaço para a resistência ao mandonismo local. E pela pena
de um poeta. Na última estrofe, mesmo sem o saber, o juiz/poeta parafraseia Foucault (1998),
quando este lembra que o poder circula, não é uma coisa, é um exercício que exige uma luta
constante. Como disse esse estudioso, onde há poder, há resistência.
O poder simbólico
As construções sobre a experiência coronelista nem sempre remetem a episódios que
poderíamos chamar de fatos ―concretos‖. Muitas vezes, o que emerge do trabalho de memória
são imagens/representações que mais parecem saídas das páginas de contos fantásticos. Nem
mais verdadeiras nem mais falsas que as outras. Essas imagens também ajudam a configurar
um conhecimento sobre o tema, pois remetem à força da dimensão simbólica inscrita naquelas
práticas, esclarecendo sobre seu valor e alcance. Em outras palavras, elas são tão ―concretas‖
quanto quaisquer outras imagens/representações presentes nos depoimentos, pois respondem
igualmente pela construção e manutenção de um imaginário sobre o coronelismo, informando
as práticas que o construíram e constroem.
Alguns depoentes revelaram ―ouvir‖ passos dos coronéis, hoje mortos, em seus antigos
casarões. Segundo Dona Judith (81), por exemplo, ―a gente ouvia barulho assim no assoalho,
as vasilhas caía no chão, ia olha não via nada‖.
Da mesma forma, foi possível constatar que o fato desses coronéis já não morarem
mais nesses casarões não impede que, em épocas de eleições, os atuais moradores sejam
visitados por curiosos querendo saber em quem devem votar. Diria que fatos como esses
revelam que a presença ou, no caso, para ser mais precisa, a ausência física dos coronéis,
pouco importa. Aqui o que de fato vale é a força do poder simbólico de que eram depositários
esses chefes políticos, forte o bastante para fazê-los temidos ainda depois de mortos. Como
afirmei antes, acredito que, através de imagens como essas, pode-se compreender, e muito,
como se configurou e configura os sentidos que os depoentes deram e continuam dando àquela
realidade social.
140
Baczko (1985, p.298-299) lembra que, quem detém o controle do imaginário detém o
poder e, indo além, informa que o poder é, também, fazer crer. Esse fazer crer associa-se,
preferencialmente, não à imposição da vontade pela força física, mas, sobretudo, ao poder
simbólico, capaz, nas palavras desse autor, de ―duplicar e reforçar a dominação efetiva...‖
Portanto, essa noção de imaginário distancia-se muito de outras que o vêem como uma
espécie de engodo, pura fantasia, no sentido de falsidade. Barbier (1994, p.15) bem resume
essas posições:
Para uns, o imaginário é tudo o que não existe; uma espécie de mundo
oposto à realidade dura e concreta. Para outros, o imaginário é uma
produção de devaneios de imagens fantásticas que permitem a evasão para
longe das preocupações cotidianas.
Mais coerente com a maneira como aqui o imaginário está sendo trabalhado, outro
entendimento do que vem a ser essa dimensão da realidade também é oferecido por esse
mesmo autor:
Alguns representam o imaginário como o resultado de uma força criadora
radical própria à imaginação humana. Outros o vêem apenas como uma
manifestação (...) fundamental para a constituição identitária do indivíduo.
O depoimento que Seu Benedito Carreiro (Seu Dito,90) concedeu junto com sua esposa,
Dona Judith, é testemunho da força desse imaginário. Referindo-se à recorrente afirmação que
corre pela cidade, dando conta de que o coronel Castrinho ainda hoje pode ser ―visto‖,
―andando‖ em seu fordinho, pelos lados de suas antigas propriedades, o casal lembra ter sido
testemunha de algumas dessas aparições. Vejamos como essa memória vai sendo tecida:
Eles [o povo] via ele... a luz do carro ... numa fazenda que tem o nome
de Gambá. Ali o povo escutava ele chegar lá apitando e o povo olhava
não tinha ninguém. Aqui na Boa Vista era a mesma coisa.
(Dito) Eu mesmo vi o carro, via só aquele farolão, eu disse: uai, numa
hora dessa! Ouvia o barulho lá fora, ia ver, tava tudo no mesmo lugar.
(Judith) Escutava abrir cancela. Era assombrado.
Mas, vejamos como Dona Judith ―explica‖ esses passeios noturnos do falecido coronel
Castrinho:
141
(...) quando ele morreu, o túmulo dele ficou chorando, podia ser na seca, ocê
podia ir lá que estava escorrendo. Ocê sabe aquela água de sal? Onde passa
fica branquinho. E aí ficava assim chorando... aquela água branquinha, onde
passava ficava branquinha, nas gretas ... a água saía lá de dentro. O povo
falava que era lágrima das pessoas que ele mandava matar (...). Aí o pessoal
dele garrou a fazer penitência. Rezaram muito no túmulo dele, fez promessa,
aí acabou. A gente vai lá não vê mais nada, mas podia ser na seca, a gente ia
lá que tava escorrendo água. Agora, da onde vinha essa água? Dentro do
cemitério?
Creio que o que Dona Judith faz é remeter a explicação do fenômeno à representação
popular inscrita na figura da ―alma penada‖, a qual, sem conseguir expiar os males causados
em vida, tampouco encontra sossego depois de morto. Nesse pequeno fragmento ―fantástico‖,
produz-se uma severa crítica às práticas características do mandonismo local, sem que seja
necessário apelar-se às representações próprias da memória ―consolidada‖. Arriscaria dizer
que, nesse caso, a aproximação maior é com o universo da literatura.
Memória e espaço
Falar da memória sobre o coronelismo é falar também do espaço em que aquelas
práticas operavam, ou seja, das representações do espaço urbano e/ou rural onde tudo
aconteceu: a cidade de Jaraguá.
Como mostra Pesavento (1995 p.279), espaço e tempo também são reconstruídos no
trabalho de memória:
A combinação da memória/lembrança com a sensação/vivência reapresenta algo distante no tempo e no espaço e que se coloca no lugar
do ocorrido.
Deste modo, entender como se processa o fenômeno do coronelismo na memória
daqueles que viveram esse período, remete à necessidade de observar como é construído o
espaço onde os fatos ocorreram. A cidade de Jaraguá é o cenário onde se desenrolam os
eventos dessa aventura humana. Suas ruas, prédios, igrejas, praças, escolas, ajudam a
configurar essa história.
142
Assim, quando os depoentes lembram episódios que se relacionam ao coronelismo,
eles o fazem citando como era a cidade naquele período. Entretanto, o parâmetro é sempre o
presente. No depoimento do senhor Salvador de Freitas, a cidade ―daquela época‖ é assim
construída:
Nesse tempo, Jaraguá era da Casa da Lavoura pra cá. Pra lá, tudo era mato.
As casas eram quase tudo desse jeito que tá aí, só o sobrado que demoliram.
né?. Esse sobrado foi construído pela família Félix de Souza.(...)
A vida em Jaraguá, naquele tempo, era normal, pouco serviço, que não tinha
indústria nenhuma, tinha a pecuária.
Como todo trabalho de memória, este também se formula pela comparação com o
presente. Jaraguá, hoje, não possui as mesmas características do passado. Muitas de suas
edificações construídas no período do ouro já foram demolidas. Os poucos casarões que
restaram estão quase todos em estado de total abandono. Somente algumas das melhores casas
passaram por reformas. A primeira Igreja Matriz foi totalmente demolida e em seu lugar foi
construída outra, cuja característica é apresentar um suposto ar de modernidade. Quanto às
outras duas Igrejas, a do Rosário e a da Conceição, passaram por restaurações, graças ao
empenho de um grupo que se formou no intuito de zelar pelo patrimônio histórico de Jaraguá.
Mas, malgrado as mazelas de um presente pouco preocupado com o passado,
seguindo as pistas deixadas por Seu Salvador, o passado marcado pelos desmandos dos
coronéis encontrava-se emoldurado por um cenário que lembra os inícios marcados pela
precariedade: ―Pra lá tudo era mato‖, ―pouco serviço”, “não tinha indústria nenhuma”.
Tempo em que tudo ―era normal‖, fazendo parecer que tudo era parado, estagnado. É outra
vez a imagem do ―atraso‖, agora emoldurando a cidade de antigamente.
Segundo os depoimentos, Jaraguá teria permanecido assim: um lugar pacato, com ruas
tortuosas, estreitas, sem asfalto. Pois, como dizem os depoentes, no tempo dos coronéis, ―a
cidade não conhecia o progresso‖. Não possuía água encanada, luz elétrica, rede de esgoto.
As casas eram próximas uma das outras, feitas de adobe, com chão batido. Poucas eram as
edificações que sobressaíam e essas, obviamente, teriam a elite da cidade como proprietárias,
representando toda sua imponência e poder econômico.
143
É com o fim do poder dos coronéis que a cidade ganha ares de ―progresso‖, pelo que
conta Seu Zé Chagas:
A cidade melhorou tudo. Essa praça aí da matriz não tinha... era chão,
corria cavalhada era aí, não tinha nada. A cidade era até onde ta a igreja, o
resto era pasto.
No depoimento de Seu Gregório, sobre a cidade, estas foram as imagens que lhe
pareceram significativas:
Aqui não tinha asfalto, a iluminação. [Isso só] entrou aqui em 1936. O
prefeito era... não lembro mais. A empresa que ligava a luz aqui era a
Sociedade Anônima, e o maior acionista dela era Dioni Gomes P. da Silva e
ele já foi prefeito aqui. A água encanada deve de ter 40 anos. Aqui não tinha
água assim. A água aqui era cisterna. E ainda mais esta: a água era salgada
depois que tirava ela. Furava cisterna 5, 6 metros e a água saía salgada. Só
servia para lavar vasilha. Para beber tinha uma fonte de água, a fonte do
Galvão, que fornecia água para o povo.
Os depoimentos demonstraram, entretanto, que a memória construída sobre a cidade,
pouco guarda da grandiosidade do poder que aquele ―lugar praticado‖ poderia ter
representado. A cidade que emerge dos depoimentos é uma acanhada Jaraguá, que nem de
longe lembra ter sido o centro de um poder que se alastrava por uma vasta região. Parece que
prevaleceu no trabalho de memória a representação do atraso, do subdesenvolvimento, forte o
bastante para apagar quaisquer marcas do poderio que a cidade poderia ter representado.
Outra possível explicação é que o poder desses coronéis estava tão personalizado em
suas figuras que não resvalou para a imagem da cidade, antes, sobre ela prevaleceu a imagem
do atraso que a memória do grupo construiu como deliberadamente mantido pelo poder
coronelista.
Considerações finais
Ao conjunto de representações que trabalhei aqui, atribuí a possibilidade de apreender
os sentidos que meus depoentes procuraram dar à experiência de que foram sujeitos. Esses
sentidos não foram sempre os mesmos.
144
Assim, uma ―memória consolidada‖ tratou de definir os contornos de um discurso
memorialista que se pode denominar coletivo. Isso se deu por entender que, nela, o que se
observa é a freqüência de certas imagens, comuns ao grupo de depoentes. A política como
terreno das paixões humanas; o atraso deliberado próprio à estrutura coronelista; a violência
dos jagunços e os desmandos dos coronéis; a indistinção entre polícia e bandido, fruto de uma
realidade que ignorava as leis; o medo; a necessidade de esquecer; a tensão própria àquelas
relações; o controle do jogo político pelo voto de cabresto. Estas foram as imagens que
colocaram em diálogo meus depoentes.
Por outro lado, a idéia de ―memória consolidada‖ remete, ainda, à coincidência
verificada
entre
o
trabalho
de
memória
realizado
por
meus
depoentes
e
as
imagens/representações/sentidos consagrados nos estudos disponíveis sobre o tema, que
repetem essas mesmas temáticas.
Com isso não se está querendo sugerir nenhuma crítica à validade desses estudos, nem,
tampouco, que essas representações não tenham valor positivo para o trabalho de construção
de uma memória sobre o coronelismo. O que se deseja ressaltar é que a força dos discursos
construídos pelos estudos dedicados ao tema ajuda a consolidar uma história do coronelismo
que parece informar um ―lugar comum‖, um saber compartilhado e legitimado, para além dos
centros acadêmicos, como a ―verdade‖ sobre o tema, definindo igualmente o que é importante
lembrar para construir a memória do acontecimento. Trata-se do que, em Análise do Discurso,
é chamado ―interdiscurso‖, ou ―memória discursiva‖.
Embora muito provavelmente os depoentes não tenham tido qualquer contato com
esses trabalhos, isso não invalida a hipótese desenvolvida. Considera-se aqui que a força do
imaginário em torno do tema nutre-se também das soluções que os trabalhos, acadêmicos ou
não, encontram para explicar o fenômeno, criando uma ―memória discursiva‖ sobre ele.
É Halbwach(Op cit,54) quem mais uma vez ajuda a compreender como se processa
esse fenômeno. Referindo-se à memória individual, o autor dirá que:
Ela não está inteiramente isolada e fechada. Um homem, para evocar seu
próprio passado, tem freqüentemente necessidade de fazer apelo às
lembranças dos outros. [Para isso] Ele se reporta a pontos de referência
que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade.
145
Porém, paralela àquela memória, outra igualmente surgiu dos depoimentos. A ela
denominei ―memória dissonante‖, por não compartilhar do interdiscurso que configura a
―memória consagrada‖. Logo, entendi que essa construção é embalada por um imaginário
criador, instituinte, capaz de revestir aquela história de novos significados. Nos depoimentos,
essa memória se expressa na imagem que opõe o coronel ao ―juiz poeta‖, ou mesmo, na
construção que, fazendo apelo a um imaginário fantástico, calcado em crenças populares, faz
surgir o papel significativo do poder simbólico na explicação do fenômeno estudado.
A cidade, ―lugar praticado‖, é outra imagem recorrente nos depoimentos. Incapaz de
rivalizar com o grande poder dos coronéis, ela é representada como um espaço acanhado,
atrasado, demonstrando um descompasso entre esse lugar praticado – sede do poder
estabelecido – e a imagem que a memória dele retém.
Embora partícipes daquela história, em geral, os depoentes colocam-se ―fora‖ dela,
como espectadores, construindo aquelas práticas como alheias a seu dia-a-dia. Era como se,
para existir o coronelismo, não houvesse necessidade tanto de quem mandava, quanto de quem
obedecia.O coronelismo é construído quase que exclusivamente ligado a quem mandava.
Nessa operação, os depoentes vão construindo suas identidades, assim como a do outro. De
um lado, os poderosos; de outro, suas vítimas. Nessa memória, o poder não é prática, não
circula, não se alimenta dos acordos que tem de construir para se manter. Este me parece o
maior de todos os esquecimentos que a memória sobre o coronelismo parece produzir.
Espero que este trabalho tenha demonstrado a pertinência da proposta que aqui
desenvolvi, privilegiando o estudo da memória como eixo central, em suas conexões com os
processos identitários. Foi assim que compreendi ser possível trabalhar um velho tema com
um novo olhar.
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149
Corpus principal: depoimentos
Antônio de Castro Ribeiro Filho (Seu Ribeirinho), nascido em Jaraguá, em 1928. Professor,
motorista e, hoje, aposentado. O depoimento foi realizado em sua residência, dia 14/02/02.
Benedito Marcelino da Cruz (Dito Carreiro). Nascido em Jaraguá, em 1911. Peão de carreto.
Entrevista concedida em sua residência no dia 18/12/01.
Bertolina Alves dos Santos (Dona Tuta), nascida em Corumbá (GO), em 1930. Costureira,
aposentada. O depoimento foi realizado em sua residência, no dia 05/07/02.
Gregório da Conceição Macedo, nascido em Jaraguá, em 1920. Comerciante, apesar de
aposentado, ainda mantém a profissão. O depoimento foi concedido em seu estabelecimento
comercial, no dia 05/07/02.
Honorata Eunisse Sampaio, 80 anos. Nascida em Petrolina, em 1922. Agropecuarista. A
entrevista foi realizada em sua residência, em Petrolina, no dia 16/08/01.(In Memória)
Joaquim Militão, nascido em Jaraguá, em 1911. Funcionário Público Municipal, oficial de
justiça, agente recenseador, comerciante, professor do MOBRAL, aposentado. O depoimento
foi concedido em sua residência, dia 21/07/01.
Joaquim Pereira Vasconcelos, 101 anos, nascido em São Francisco, em 1900. Fazendeiro
aposentado. O depoimento foi concedido em sua residência em Petrolina, dia 15/10/01.(In
Memória)
José Chagas, nascido em Jaraguá, em 1915. Professor, motorista, mecânico, técnico em
eletrônica, aposentado. A entrevista foi concedida em sua residência, no dia 14/07/02.
150
Judith Gonzaga da Cruz, nascida no Município de Jaraguá, em 1920. Dona de casa. O
depoimento foi concedido em sua residência, no dia 18/12/01.
Salvador Teodoro de Freitas, nascido em Jaraguá, em 1909. Cerealista, fazendeiro e
contabilista, hoje aposentado. O depoimento foi realizado em sua residência, dia 14/02/02.(IN
Memória)
Sebastião de Siqueira Fraga, nascido em Jaraguá, em 1910. Lavrador, carpinteiro, aposentado.
O depoimento foi concedido em sua residência, nos últimos dias de sua vida, em 06/04/02.(In
Memória)
Terezina Rodrigues de Castro, nascida em Jaraguá, em 1932. Professora aposentada. O
depoimento foi concedido em sua residência, dia14/02/02.
Vicente P. Costa, ex-vereador e ex-prefeito de Petrolina de Goiás, antigo distrito de Jaraguá,
85 anos. Nascido em Anápolis, em 1917. Fazendeiro aposentado. O depoimento foi realizado
em sua residência, em Anápolis, no dia 18/01/02.
Corpus Auxiliar
Jornal A Voz do Povo. Goyaz, Capital, 14/11/1930.
Jornal O Democrata, 09/04/1927.
151
6
CONEXÃO JARAGUÁ-DANBURY:
IDENTIDADES MIGRANTES
Lúcia Gonçalves de Freitas
Jaraguá, juntamente com outras cidades goianas como Goiás, Pirenópolis, Pilar, entre
outras, tem um perfil histórico que a torna um cenário propício a investigações sobre memória.
Os próprios artigos deste livro concentraram-se mais especificamente neste tema. Contudo,
agora ao final, este capítulo vai prender-se quase que exclusivamente ao outro tópico do eixo
proposto, o pólo identidade. Isso porque questões sobre identidade têm se tornado uma
temática bastante recorrente nos dias atuais. Como afirma Moita Lopes (2002), está em curso
um grande repensar sobre quem somos, e não apenas nos meios acadêmicos, uma vez que os
vários veículos da mídia deixam clara tal tendência diariamente. Esse interesse repentino e
crescente com a questão da identidade aparece, justamente, em um momento em que o mundo
globalizado está pondo em interconexão áreas diferentes do planeta e suas respectivas
culturas, provocando mudanças sociais extremas.
Uma dessas mudanças, cujos ecos se fazem sentir em Jaraguá fortemente, é o
fenômeno da migração dos tempos atuais. Se, por um lado, os movimentos migratórios sempre
existiram, não sendo esse advento, portanto, exclusivo do momento em que vivemos, por
outro lado, há certos fatores que imprimem à realidade contemporânea um perfil particular.
Como afirma Hall (2001, p.81), ―na era das comunicações globais, o ocidente está situado
apenas à distância de uma passagem aérea‖, o que significa que, nesses tempos de
152
globalização, a facilidade com a qual as mensagens consumistas se propagam, de dentro dos
centros de produção do mundo capitalista, em direção às chamadas ―periferias‖ do sistema,
provoca um proporcional movimento inverso, ou seja, de pessoas vindas dessas mesmas
periferias rumo ao centro, em busca dos tão propagados bens.
Jaraguá é hoje bastante exemplar desse fenômeno mundial. Guardadas as devidas
proporções, a cidade também tem se revelado como um pólo de migração rumo ao exterior.
Com a dificuldade muito grande de se conseguir vistos para os EUA, começa a haver uma
mudança de direção rumo a países da Europa como Bélgica, Espanha, Portugal e Inglaterra.
Contudo, a ―América‖ continua sendo o destino preferencial dos jaragüenses, e mais
especificamente, uma cidade particular no estado de Connecticut chamada Danbury. Jaraguá e
Danbury têm, assim, constituído um eixo sobre o qual se sustenta um movimento de mão
dupla. De um lado, uma corrente de informações e de pessoas que chegam constantemente de
Danbury a Jaraguá, aludindo às muitas conquistas daqueles que se lançaram à jornada
migratória rumo aos EUA, e, de outro lado, as filas de candidatos a se tornarem novos
imigrantes.
Homi Bhabha (1998) é um dos estudiosos da modernidade tardia que se dedicou ao
tema das recentes migrações sob o ponto de vista das mudanças identitárias. Segundo ele, o
movimento de pessoas pelas fronteiras do mundo atual tem provocado um proporcional
movimento identitário, ao qual Bhabha chamou de ―deslocamento casa-mundo‖. Ele observa
que as fronteiras entre essa casa e mundo se confundem, forçando uma visão que é tão
dividida quanto desnorteadora. Os movimentos migratórios têm acirrado a pluralidade cultural
e provocado inúmeros deslocamentos identitários. É justamente sobre esses deslocamentos de
ordem identitária que este artigo se dedica. Analisar questões de identidade do grupo
jaragüense dentro dessa moldura é caminhar sobre um terreno de discussões que se abrem
acerca das configurações daquele eixo casa-mundo de que fala Bhabha (1998). Configurações
a respeito, por exemplo, do significado para os sujeitos de uma suposta identidade nacional.
Configurações sobre uma também suposta identidade regional, talvez a procurada goianidade,
à qual se dedicam estudiosos como Chaul e Ribeiro et. al. (2001). Essas são questões que se
prendem àquele pólo casa. No outro extremo, mundo, repousam os muitos desdobramentos
sobre as pressões advindas da diferença e da alteridade, bastante salientes no contexto
multiétnico acentuado em que vivem os sujeitos nos EUA.
153
Assim, minha proposta aqui será a de levantar as principais questões de cunho
identitário do grupo de jaragüenses que se lançou mais destemidamente pelas vias da
modernidade: os imigrantes de Danbury-CT. Vou listar os tópicos principais que me foram
narrados pelos próprios sujeitos durante um trabalho de pesquisa para minha dissertação de
mestrado. Na ocasião, julho de 2002, ouvi cinqüenta e três jaragüenses, entre adolescentes e
adultos, sobre suas experiências como migrantes. Por se tratar de um estudo na área da
lingüística, usei para as análises das entrevistas algumas teorias da Análise de Discurso Crítica
(Fiarclough, 1991, 1992, 1995 2001; van Djik, 1998, 2000, 2002). Neste artigo coloco os
resultados de uma forma mais simplificada, retirando termos e nomenclaturas próprias da área,
a fim de facilitar a leitura. Dessa forma, a seguir serão levantadas as principais evidências
identitárias detectadas nas entrevistas dos imigrantes.
Jaraguá-Danbury: um salto gigante!
Rua de Danbury no inverno
Rua de Jaraguá no período das
chuvas
Vamos começar nos situando sobre o deslocamento Jaraguá-Danbury. Pensar a
dimensão transposta entre os dois limites é imaginar, por exemplo, alguém que se despediu
pela manhã de uma cidade que, a exemplo de tantas outras do interior do Brasil, ainda
154
conserva muito de seu passado colonial, e não só em suas feições urbanísticas, suas ruas e
fachadas antigas, mas, também, no que seus habitantes chamam de ―tradição‖. É seguir
imaginando essa pessoa se distanciando desse meio, marcado por um ruralismo que ainda
insiste em lhe ser peculiar, a despeito de todo o surto de industrialização que tem tomado
Jaraguá nas últimas décadas, mas que não tem sido capaz de mudar completamente, por
exemplo, o estilo de vestir de seus homens, que circulam de chapéus, botas ou botinas de
couro, alguns até de canivetes na cintura; nem o espírito provedor das mulheres que abastecem
suas casas com guarnições de bolos, biscoitos de queijo e outras quitandas típicas, ambos num
ato que os singulariza dentro de um contexto local específico. Todo esse contexto, que
chamarei aqui de contexto doméstico, porque para o jaragüense se trata dos contornos que
caracterizam a sua terra, ou a sua ―casa‖, é deixado para trás no ato da partida para os EUA,
onde, uma vez aportado, começa sua incursão tão almejada pelas vias do primeiro mundo.
Algumas hipóteses que têm sido levantadas sobre os resultados desses saltos gigantes
propõem que, por um lado, muitas identidades se ressentem da perda de uma certa 'pureza'
anterior e, por isso, tentam se recuperar, reforçando aquilo que concebem como "Tradição".
Outras aceitam ou se resignam diante da evidência de que jamais serão as mesmas, que estão
irremediavelmente sujeitas ao plano da história, da política, da diferença e, assim, submetemse a uma "Tradução" (Bhabha, 1998). O processo de "Tradução" seria, dessa forma, uma
espécie de negociação cultural daquelas pessoas que atravessaram fronteiras naturais e se
dispersaram de sua terra natal. Porém, o mundo atual tem se mostrado complexo demais, de
forma que nele a "Tradução" não encontra terreno fértil regularmente, haja vista as muitas
pressões, mundo afora, para restaurar a coesão, o fechamento e a "Tradição", frente ao
hibridismo e à diversidade, como o nacionalismo e o fundamentalismo.
Tendo em mente as polaridades Tradição-Tradução, proponho-me agora a um exame
da situação jaragüense. Que vias identitárias estão trilhando os imigrantes em Danbury? Sob
qual pólo está recaindo o peso maior dessa reconstrução, na Tradição ou na Tradução?
Sabendo-se que a identidade não é fixa, e que, ao contrário, desloca-se constantemente, e
ainda mais numa situação de grande alteridade como a do grupo investigado, qualquer
resposta sobre esses deslocamentos precisa considerar que eles não podem ser compreendidos
como absolutos, mas apenas dentro de um contexto local e temporal específico. Portanto, as
155
análises que traço não devem ser interpretadas como fixas e absolutas, compreendem apenas
um estágio determinado.
Tudo novo e tudo igual!
Mais atrás, caracterizei a distância transposta entre Jaraguá e Danbury como um salto
gigante. Tal designação, todavia, merece alguns comentários. Geograficamente os dois pólos,
de fato, distam de aproximadamente dez mil quilômetros entre si. É um longo trajeto, e cuja
sensação de distanciamento pode ser ainda mais intensificada por aqueles que se aventuram a
percorrê-lo via México. As narrativas de quem enveredou por essas vias testemunham uma
jornada, ás vezes, de mais de um mês, sem contar todos os percalços associados, que
dificultam ainda mais a viagem, e tornam-na quase irrealizável. Porém, para um grupo cada
vez mais restrito de pessoas, que conseguem visto e entram legalmente nos EUA, todo o
percurso entre Jaraguá e Danbury pode ser vencido em menos de vinte e quatro horas, uma
espécie de mágica, possível graças ao avanço tecnológico dos meios de transportes modernos.
Como insinuei antes, alguns jaragüenses despedem-se de suas famílias à tardinha e, na manhã
seguinte, já estão transitando pelas vias expressas da
112
Big Apple rumo a Danbury, aonde
chegarão uma hora depois. É interessante pensar no impacto dessa chegada. Que impressões
têm os jaragüenses ao se verem tão abruptamente alocados nesse novo espaço? E como isso se
redefine à medida que eles vão se integrando à comunidade local? O recorte abaixo vai
introduzir algumas respostas113:
Primeiro que eu fiquei super decepcionada quando eu cheguei aqui... com as
coisas, assim....porque eu esperava isso aqui...quando eu entrei em Danbury
eu achei que isso aqui era uma fazenda, tudo escuro, sabe...mesmo aquelas
áreas de mansão... ninguém usa energia... aquela economia...aquele
negócio...eu falei_ “gente do céu!” , sabe? Brasil cê anda ...aquelas ruas
todas claras, ruas largas, eu prefiro...eu tô aqui no fim do mundo (risos).
(Emília, 34 anos, assistente de dentista)
Essa alegação, análoga a tantas outras que colhi, surpreende pela desconsideração de
fatores relevantes na mudança do Brasil para os EUA. Demonstra uma contraditória
112
Big Apple é como é chamda Nova York nos EUA.
A fim de resguardar as identidades dos depoentes, todos os nomes aqui colocados são fictícios, não
correspondendo aos dos verdadeiros sujeitos.
113
156
indiferença pela disparidade lingüística, cultural, arquitetônica, paisagística e até climática,
que separa os dois países. Curiosamente, aliam-se a comentários desse tipo uma expressão
constante, que pude detectar em vários depoimentos: ―normal, normal!‖. Tal expressão vinha
sempre em resposta à pergunta de como era ser brasileiro nos EUA. ―Normal!‖. Era assim que
mais comumente respondiam meus entrevistados, revelando uma falta quase total de
sentimento de mudança:
Não....não tem muita diferença, não, é normal!
(Telma, faxineira, 38 anos)
Normal, não tem nada de diferente.
(Mário, 22 anos, vendedor)
Eu acho que muda muito é pelo salário, dinheiro...(risos) só isso, porque o
resto é normal, a família é a mesma os amigos são os mesmos.
(Ana, 42 anos, faxineira)
Esses comentários nos levam à sensação de que o ―salto‖ entre os dois contextos
específicos não é tão gigante assim. Algumas hipóteses podem ser levantadas sobre a questão.
Primeiro é que, na era da globalização, onde tudo está em toda parte, como afirma Hall (2001),
não nos surpreendemos tanto com as mudanças, uma vez que elas são relativas. Assim, estar
em Danbury ou em Jaraguá, nessa nova era, é estar igualmente cercado das mesmas
informações, bens e serviços disponíveis em praticamente todo o mundo. Há, por um lado
também, a questão de que as pessoas, ás vezes, tentam dissimular suas impressões, por uma
série de razões, entre elas o medo da inferioridade, e, assim, procuram aparentar uma
normalidade que evita rótulos indesejáveis como, deslumbradas, desinformadas etc. Mas, há
por outro lado, uma justificativa mais palpável, a de que essa alegada ―normalidade‖ advém da
profunda inserção dos jaragüenses na corrente étnica local, ou seja, a comunidade brasileira,
cuja força os cega para os contornos exteriores. Os depoimentos a seguir corroboram para essa
hipótese:
... vivem no meio de brasileiros, quando cê chega aqui, trabalha pra
brasileiro, o primeiro emprego que conseguem é trabalhar pra brasileiro por
157
causa da língua, então como eles não falam inglês eles vão procurar a ajuda
de brasileiro, aí convive com brasileiro, almoçam em restaurante de
brasileiro, vai no supermercado é coisa de brasileiro, então, eles se sentem
brasileiros!
(Paula, 41 anos, assistente em consultório médico)
Depois que ele chega aqui, que caiu a ficha, que passa aquela ilusão que oh!
como tudo é diferente! como tudo é bonito! Depois que passa isso, e não
demora a passar não! Tão logo ele entra naquela rotina alucinada de
trabalho, isso passa, ele não vê mais aquelas coisas, e não diferencia mais,
isso é dos EUA, estou em outro mundo! Ele não diferencia mais, aí ele passa
a viver do mesmo jeito que ele vivia no Brasil. Ele acha que tá no Brasil,
porque...aqui...essa rua, a Main Street, que aqui é uma cidade muito
pequena, ele é a avenida principal, é uma avenida praticamente dominada
por brasileiros, então ele fala português o tempo todo, ele assiste à Globo, os
restaurantes...você vai por aí, você vê restaurante brasileiro à vontade!
Então ele vive como brasileiro dentro dos EUA, ele se esquece de que ele tá
em outro país...
(Editor do jornal O Imigrante de Danbury)
Fui muitas vezes testemunha e até vítima desse esquecimento durante a pesquisa,
quando entrava em galerias comerciais inteiramente ocupadas por lojas de produtos e serviços
brasileiros, onde me deparava com a movimentação dos funcionários e clientes fazendo suas
transações em português. Da mesma forma, o som da música ―sertaneja‖ brasileira pelas ruas
de Danbury, tanto vinda das muitas casas do centro, como dos carros que por lá circulavam,
assim como as conversas em português que se ouve a toda hora. Tudo isso faz, de fato, com
que cheguemos a nos esquecer de que estamos num país estrangeiro.
Mais que nesses lugares, a sensação de se estar no Brasil, e, especificamente, de se estar
em Jaraguá, é quase absoluta quando passamos a compartilhar um pouco da rotina das casas
jaragüenses, nas quais visitas esporádicas de amigos e parentes são regadas a café e pão de
queijo; onde, ao final da tarde, vizinhos sentam-se á porta para conversar; e nos fins de
semana, para fazer churrasco e tomar cerveja. Tudo isso, que associo à inserção dos brasileiros
em sua comunidade étnica, da qual os jaragüenses tomam parte, segmentando-se no grupo
regional, faz com que o ―salto gigante‖ seja relativizado e perca sua força de impacto. É isso
que explica a sensação de ―normalidade‖ expressa pelos sujeitos, que os faz, como afirmou o
editor do jornal local, esquecer que estão num outro país. Meu diário de campo é cheio de
158
notas que dão testemunho dessa evidência, como a que coloco logo a seguir, colhida após a
visita a uma família jaragüense, na qual acabara de nascer um bebê, motivo pelo qual muitas
pessoas reuniram-se, numa tarde de visitas:
...o clima de festa desse dia me deu chance de ver um pouco do tipo de
convívio social que as pessoas têm. (...) A cada hora chegava uma visita,
trazendo um presentinho para o bebê. Todas pessoas de Jaraguá, é claro. Na
mesa da cozinha, Meire havia preparado alguns bolos, deliciosos, por sinal,
e as pessoas, naquele clima de vizinha e comadre, sentavam-se ao redor
deles para conversar, beliscar uns pedacinhos.... Na sala, uma televisão bem
grande (todas as pessoas possuem eletro eletrônicos de boa qualidade,
vídeos, dvds, televisores enormes...) passava o programa Fama, da rede
Globo, que, se não me engano, é simultâneo com o Brasil. Meire até
comentou comigo sobre o mesmo, me dizendo que nesta segunda versão os
participantes não estavam dedicando-se tanto quanto na primeira, um indício
de que a Globo é a emissora que predomina na sua escolha de programação.
Tem-se a sensação clara de se estar no Brasil. Parecia uma tarde de visitas
em Jaraguá, não fosse pelo cenário tipicamente americano, com suas casas
de estilo particular, que pra nós parecem„casas-de-boneca‟, sem muros,
cercadas de verde e alguns pinheiros na frente, ninguém nas ruas e um
cemiteriozinho lá no fundo...
(Diário de campo de 17 de julho de 2002)
Resistência
Ainda no início deste artigo, citei Bhabha (1998), como um autor cujo trabalho sobre
identidade de imigrantes, no contexto atual da globalização, é referencial para análises do tipo
que estou propondo aqui. Minha pergunta inicial, sobre em que pólo recai o peso maior da
reformulação identitária dos sujeitos, destacava dois caminhos, o da Tradição e o da Tradução.
Para o autor, à Tradição recorrem aqueles que se ressentem das perdas de uma suposta
‗pureza‘ e, por isso, tentam se recuperar, reforçando aquilo que concebem como os pilares de
sua cultura nativa. Outros aceitam as evidências das mudanças e, assim, submetem-se a uma
―Tradução‖, cujo processo seria uma espécie de assimilação. Essas pessoas carregariam traços
das culturas, tradições, linguagens e histórias que as marcaram, mas o problema é que elas não
conseguem mais se unificar em torno desses ―velhos‖ referenciais, pois são o produto de
159
várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a muitas
―casas‖.
No caso dos jaragüenses, por ser um grupo migratório recente, e que, portanto, ainda não
definiu propriamente sua condição dentro dos EUA, é prematuro estabelecer as vias
identitárias que os sujeitos estão tomando, mesmo porque, como adverte Bhabha (1998), no
processo de reformulação daqueles que atravessaram fronteiras naturais e se dispersaram de
sua terra natal, há em jogo forças adversas que dificultam tanto o caminho da assimilação
quanto o da tradição:
Dividido entre um atavismo nativista, até nacionalista, e uma assimilação
metropolitana pós-colonial, o sujeito da diferença cultural torna-se um problema
que Walter Benjamin descreveu como a irresolução, ou liminaridade da‖
tradução‖, o elemento de resistência no processo de transformação, ―aquele
elemento em uma tradução que não se presta a ser traduzido‖.(Bhabha, 1998 p.
308)
Já mostrei que muitos foram os exemplos singulares nos depoimentos dos sujeitos que
revelaram um apego forte ao seu contexto regional e às suas tradições locais, dando indícios
de que há um tendência de manutenção dos vínculos com seu contexto original, favorecendo,
portanto, a Tradição. Mas vou tratar agora de um aspecto ainda mais específico desse
processo, aquilo a que Bhabha (1998) chamou de ―liminaridade da tradução‖, o elemento de
resistência. Tomo emprestado o recorte abaixo como mote para minha argumentação:
Agora a maior falta pra mim é lá do Rio do Peixe, todo sábado e domingo eu
tava lá pescando... Mas povo que vem do Brasil... a gente não tem condições,
né...de viver desse jeito. Aqui não, aqui eu saio cedo, volto à noite, depois,
sábado costuma ir muita gente ao lago...vale a pena, né, mas a gente não
esquece do Brasil, não, aquele é que é o nosso país, um dia a gente quer
voltar mesmo.
(Vilmar, 53 anos, empregado da construção civil)
Há uma curiosa expressão de identidade na fala deste senhor que há quatro anos decidiuse por migrar para os EUA, sem ter visitado o Brasil desde então, e cujas perspectivas de
retorno são indefinidas. Ao demonstrar um claro sentimento de perda em relação a uma prática
tão popular na sua terra, a pescaria no Rio do Peixe, Vilmar afirma uma identificação de nível
160
regional. Mas, ele mal termina seu enunciado em que alude a essa regionalidade, já evoca uma
situação de segmentação étnica: ―mas povo que vem do Brasil... a gente não tem condições,
né...de viver desse jeito‖ (pescando). Ele expressa sua filiação ao grupo ―brasileiro‖, baseando
esse pertencimento em seus referenciais locais, jaragüenses. Abaixo, Catarina vai explicar
melhor tal situação evocando, mais um vez, o agrupamento dos jaragüenses dentro da
comunidade brasileira local:
...principalmente no Dunkin‟ Donuts onde eu trabalho, nessa região em que o
Paulo (marido) é manager, só tem jaragüense, é um ou outro paulista, o
resto é só Jaraguá mesmo, então a gente é bem goianado mesmo.
(Catarina, 41 anos, atendente em lanchonete)
Já mencionei que em meu diário de campo registrei muitas notas sobre as relações que
alguns jaragüenses costumam desenvolver em função de si mesmos e que, de certa forma, os
isola em torno de metiês, para usar a mesma expressão do editor do jornal O Imigrante. São
aqueles encontros informais de fim de tarde, visitas esporádicas às casas dos conterrâneos,
churrascos de fim de semana e, principalmente, pela circulação constante de comentários
sobre os acontecimentos mais evidentes em Jaraguá e dos indefectíveis fuxicos e fofocas sobre
seus conterrâneos tanto no Brasil como nos EUA.
A esses atavismos relaciona-se aquele apego de Vilmar aos seus hábitos em Jaraguá,
onde o estilo rural ainda muito presente comporta o tipo de lazer ao qual ele se remete, a
pescaria no Rio do Peixe. Apesar de viver num espaço urbano como o de Danbury, onde há
toda uma facilidade de acesso aos serviços e opções de lazer oferecidas pelos grandes malls e
shopping centers, com cinemas, teatros, restaurantes, lojas etc., Vilmar se recente da falta do
embornal, das suas varas de pesca, anzóis e iscas naturais, com os quais se encaminhava nos
fins de semana rumo ao Rio do Peixe em Jaraguá para sua pescaria habitual. E Vilmar, assim
como alguns companheiros seus, não demonstra nenhum interesse maior por nada que sua
realidade atual possa lhe proporcionar em termos de inovação. Ao contrário, muitos se
queixam, como o próprio Vilmar (abaixo) da impossibilidade de manter nos EUA seus
costumes locais:
161
O mais difícil aqui é... você tá na beira do lago, polícia chega, se não tiver
licença (para pescar) vai preso, né...
E eu não poderia deixar de mencionar o caso, que me foi narrado com muito
entusiasmo, do grupo de jaragüenses que, na sua ânsia por preservar seu costume de fazer as
suas tradicionais 114pamonhadas, descobriu uma variedade de milho cultivado nos EUA para o
consumo bovino que se adequava como ingrediente básico da pamonha, e assim, tem
conseguido perpetuar mais este hábito gastronômico.
Dentro dessa perspectiva, penso que essas pessoas se revelam como exemplos do que
os cientistas sociais chamam de ―sujeito pós-moderno‖, este ser naturalmente atravessado por
antagonismos de tantas ordens. São pessoas que têm conseguido se articular por este mundo
tão complexamente dividido e que nos fragmenta por inteiro. Um mundo no qual os elementos
essenciais das nossas vidas, como os sentimentos, o trabalho, a família, o lazer, podem se
alocar em pontos tão diferentes, de forma que é possível, a um só tempo, morar em Danbury,
trabalhar em Nova York e ter o coração em Jaraguá.
Explorando as identidades
A partir de agora, vou me dedicar à exploração mais detalhada das pistas sobre
identidade encontradas na fala dos jaragüenses em Danbury. A pergunta principal que gerou as
reformulações foi ―como é ser brasileiro nos EUA?‖. A partir desse gancho, que impulsionou
uma grande reflexão sobre a condição de brasileiro dentro de um outro país, ou seja, sobre a
condição de imigrante, os jaragüenses acabaram se estendendo, revelando uma trama bastante
intrincada sobre questões de identidade social, regional, étnica, nacional, de gênero etc. Aqui
vou organizar esses dados por tópico, ou seja, por assunto, pois, ao me responderem a
pergunta norteadora, as pessoas acabavam introduzindo vários assuntos, como o trabalho, o
dinheiro, o cansaço, a desunião, a saudade, a depressão etc. Assim, disponho esses tópicos a
seguir, ao mesmo tempo em que analiso as questões identitárias que neles se embutem.
114
A pamonhada, explica Suely Molina (Chaul e Ribeiro, 2001), é um ritual de comensalidade que tem um influente papel nas
relações sociais em Goiás. Nele as famílias e amigos se encontram para saborear as famosas pamonhas, num momento
catalisador da camaradagem, da intimidade e de estreitamento dos elos entre os participantes.
162
Trabalho, dinheiro e cansaço
Os estudiosos das ciências sociais, que têm se ocupado dos imigrantes brasileiros nos
EUA, afirmam que um dos marcadores positivos de identidade, que nossos conterrâneos
tentam imprimir a seu grupo étnico, é a de que brasileiro é um povo ―trabalhador‖. Esse
atributo surgiu, segundo Sales (1999), entre outros fatores, da necessidade de nosso grupo
diferencia-se dos hispânicos, a quem se atrela o estigma de povo que não gosta de trabalhar. O
interessante é que o atributo ―povo trabalhador‖ é um dos elementos constitutivos de um tipo
de discurso muito presente nos EUA, e que se associa fundamentalmente à região da Nova
Inglaterra, onde Danbury se situa, o discurso no qual o espírito empreendedor é um verdadeiro
propulsor de progresso. Fichou (1990) menciona que desde Jefferson o americano do Norte já
era visto como ―trabalhador‖, ―perseverante‖, ―interessado‖ e ―contestador‖, estereótipos que
ainda persistem na sociedade americana. Esses atributos direcionam-se à imagem de um
homem intrépido, capaz de lutar incessantemente por seus ideais, que tem no trabalho uma
força progressista e que dificilmente se abate.
Contudo, o que pude detectar na fala de meus sujeitos em termos desse atributo
―trabalhador‖, não se reveste de associações dessa natureza propriamente. Chego a essa
observação por meio de uma análise mais crítica de como o termo trabalho aparece na fala dos
jaragüenses, quase sempre encadeado na seqüência, trabalho, dinheiro e cansaço, como mostra
o recorte a seguir:
....Eu tenho até vontade de aprender, mas assim...o cansaço...é tanta
coisa...(...) É porque quando a gente chega aqui todo mundo tem o fim de
ganhar dinheiro...(...) É porque, igual eu, tô trabalhando direto sete dias na
semana, sabe? Todo dia é quatro horas da manhã, coisa que você chega
aqui...cê vê a vida da gente não é ...aqui não tem esse negócio de tá
arrumando casa, essas coisinhas de...mas todo dia cê tem a rotina da casa, é
pegar menino na escola e quando já é tarde cê tá cansado, cê tá querendo
mais nada
(Catarina 41 anos, atendente no Dunkin‟ Donuts)
Esse trinômio trabalho-dinheiro-cansaço se manifestou em grande parte das entrevistas
como um encadeamento discursivo, embora não necessariamente nessa seqüência. Em alguns
163
casos, por exemplo, a própria palavra cansaço era depreendida de expressões como ―um corpo
doído‖, o que acrescenta uma certa carga de dramaticidade.
...ela me disse que não fala inglês, apesar de já estar aqui há mais de seis
anos. Ela atribui ao cansaço constante sua falta de ânimo para dedicar-se a
aprender. Ela, assim como muitas outras pessoas em conversas informais, me
disseram que chegam em casa com o corpo doendo, que o trabalho aqui
parece ser mais penoso que no Brasil, pois, ela mesma trabalhava muito no
Brasil, muitas vezes à noite, mas que aqui o cansaço parece maior...
(Diário de campo 17 de julho de 2002)
Aí, se eu tivesse vindo pra cá uns vinte anos atrás, aí eu tava mais tranqüilo,
né...porque ás vezes a gente tá com vontade de trabalhar, sabe? Mas ás vezes
o corpo né... não ajuda. A gente levanta cedo tá com o corpo todinho doendo,
sabe...? mas tem que trabalhar...
(Vilmar, 53 anos, trabalhador na construção civil)
Esses encadeamentos em torno do trinômio trabalho-dinheiro-cansaço fazem com que
as associações do atributo povo-trabalhador, que os cientistas sociais, anteriormente citados,
detectaram como um marco identitário dos brasileiros nos EUA, divirjam conceitualmente
desse mesmo atributo em relação, por exemplo, ao americano do norte e nordeste do país, os
Yankees. Sobre estes últimos o atributo ―trabalhador‖ é revestido de associações de cunho
positivo, em que uma ideologia progressista e otimista favorece uma imagem desses homens
na figura de ―bravos‖ e ―fortes‖ trabalhadores. Já com relação aos brasileiros desta pesquisa,
os nossos jaragüenses, esse predicado ―trabalhador‖ revela uma essência menos associada à
bravura que à opressão. Essa sucessão de elementos, em que o trabalho se justifica quase que
exclusivamente em função do dinheiro, e em que o cansaço é uma conseqüência da forma
exaustiva com que esse fim é perseguido, muitas vezes ultrapassando os limites da própria
força física do imigrante, por isso o ―corpo todo doído‖, liga-se invariavelmente a uma
condição opressiva.
Desunião
164
A desunião é uma marca negativa que pesa sobre a comunidade brasileira em geral. Foi
um dos primeiros fatores detectados pela pesquisadora americana Margolis (1993), e volta e
meia emerge nos textos de outros estudiosos da área. Neste trabalho, igualmente, a desunião é
uma das principais queixas dos jaragüenses com relação a seus conterrâneos. Curiosamente, ao
começar minhas entrevistas lá, senti uma certa falta de cooperação por parte dos sujeitos,
pessoas a quem eu atribuía alguma amizade, mas que se recusavam ou evadiam furtivamente
de participar da pesquisa. Foi quando percebi que havia uma dose de desconfiança quanto ao
estudo divulgar imagens da comunidade que eram evitadas para seus parente e amigos em
Jaraguá. Logo entendi que os sujeitos eram muito briosos de sua situação como imigrantes. De
forma que, a atitude de manter distância tinha muito a ver com a necessidade de preservação
de suas identidades de antes da migração. O próximo recorte ilustra a questão:
Mas, um exemplo de porque que uma pessoa se importa com a outra,
vergonha de se mostrar como tá vivendo? Tá, a gente junta latinhas de
cerveja pra reciclar, cada latinha, cada montinho que faz na máquina, você
pega três dólares e quarenta e cinco ou oitenta e cinco cents, não sei.
Quando a gente encontra um jaragüense, eles quase morrem de vergonha da
gente. Aí eu fico assim, eu morro de rir que eu falo, assim, eu que tinha que
tá com vergonha, desculpa! Eu tô sendo assim até...um ....eu não quero
mostrar que eu sou melhor, mas eu fico pensando assim, porque às vezes eu
vejo pessoas lá que no Brasil eram assim...um...um...funcionário, não tinha
nem um emprego, e eu como profissional liberal...
(Eu) Doutora, você é doutora!
Eu, doutora, com latinha pra reciclar! Assim... eu que tinha que tá com
vergonha! Sabe o que as pessoas fazem? Elas põem a latinha no, no carrinho
e somem! Pára no meio do caminho! Um dia eu encontrei uma menina, ela
quase morreu, eu tava pondo as latinhas, e eu ria que só, eu acho que...
assim, foi o pior dia da vida dela, ela pôs as latinhas com tanta pressa!
(Paula, 40 anos, assistente de dentista)
Essas evidências condicionam uma revisão mais cuidadosa sobre a questão da
desunião. Evidentemente esse atributo não foi forjado apenas no plano discursivo, existem de
fato atitudes entre os imigrantes que atestam falta de solidariedade, a exemplo dos casos de
brasileiros que se aproveitam da fragilidade do novo imigrante, diante de muitas situações e
acabam levando vantagem, cobrando para serem intérpretes, alugando vagas em suas
165
residências, enfim, toda uma prática inescrupulosa. Mas a questão discursiva não pode ser de
todo ignorada, pois, a forma como os sujeitos dizem sua realidade nos dá muitas pistas dentro
de um jogo que às vezes esconde o que não deve ser dito. Dessa forma, o que pude depreender
sobre a alardeada desunião dos brasileiros, é que, sob este título, camuflam-se situações de
vergonha, rebaixamento social e preservação de auto-estima, pois, curiosamente, além dos
brasileiros se manterem muito próximos dentro daqueles cenários internos dos quais já me
referi, o que contraria essa aludida desunião, é também pela aproximação com outros
brasileiros que o imigrante consegue apoio para sua jornada migratória. É a ajuda de amigos e
parentes, que já se estabeleceram nos EUA antes dele, que torna possível seu próprio
estabelecimento naquele país.
Vigilância
O termo vigilância refere-se a um fator que pude depreender durante as entrevistas, que
apareceu repetidas vezes dentro das reflexões dos jaragüenses sobre sua identidade brasileira
nos EUA. Na realidade a palavra vigilância nem sequer é mencionada nesses depoimentos,
mas eu a uso aqui deliberadamente por sua aproximação com uma atitude que me foi
transmitida pelas pessoas por meio de uma série de frases, e que se insinua sob a uma
expressão muito corriqueira nas entrevistas e observações: ―andar na linha‖. Abaixo, coloco
um pequeno extrato da primeira entrevista que fiz, na qual coincidentemente, a expressão já
aparece:
Recorte da entrevista 1 (7 de julho de 2002):
Eu
Mas eu digo assim, você... por estar longe do Brasil, aqui, você se sente
diferente? Ser brasileiro tem algo de diferente?
Gaspar
Uai, você tem que entrar... assim, na vida deles, né? Cê não pode ficar
ai como brasileiro não, cê tem que cair na vida deles. Padrão de vida
deles entendeu? Trabalhar muito...Andar na linha certa...
Vilmar
Obedecer a lei deles aqui. Se não obedecer...
Gaspar
É difícil ficar aqui.
Vilmar
Aqui pegou, leva na hora.
166
Gaspar
Não tem dessa de ficar pra depois, não.
Esse recorte insinua que a condição de obediência às leis é uma espécie de exigência
incondicional para a adaptação do brasileiro no contexto americano. Como Gaspar argumenta,
ser brasileiro nos EUA implica um deslocamento de postura no qual é preciso ―entrar na
deles‖, ou seja, abrir mão de certas características supostamente brasileiras, e ―cair na vida
deles‖, conseqüentemente, igualar-se a eles, pelo menos em alguns atributos, pois, não se pode
―ficar aí como brasileiro não‖, não se pode permanecer inalterado, sob a pena de ―ser pego e
levado na hora‖, evidentemente, pego pela polícia e levado para a cadeia. Daí se depreende
que o significado desse ―ficar aí como brasileiro‖ envolve um componente de transgressão e
de desobediência a leis e autoridades, que é compreendido com um perfil comportamental do
nosso povo.
Eu acho que aqui você adquire uma responsabilidade maior, que cê tá ni
outro país, tipo assim, você sabe que você tem que fazer seu futuro pra você
ir embora, que...vamos supor, hoje, amanhã a lei pode mudar e todo mundo
pode ser deportado, cê entendeu? Cê fica aqui dez anos, o quê que cê vai
levar daqui? Entendeu? Cê tem que criar responsabilidade pra esse tipo de
coisa, cê não pode correr riscos, e outra coisa, andar na linha. Porque no
Brasil cê dá um jeitinho pra tudo, aqui não, aqui não tem esse negócio de
jeitinho pra tudo não. Se você errou, errou, cê paga pelo seu erro. No Brasil
não. O dinheiro paga tudo e aqui não.
(Laura, 26 anos, faxineira)
Este segundo recorte vem complementar as informações do primeiro, explicitando com o
termo jeitinho, aquilo que já se insinuava no texto anterior, mas que agora, assinalado por ele,
se mostra com total clareza: ser brasileiro nos EUA é ter que adquirir maior
―responsabilidade‖, como afirma Laura, algo que entra em choque com aquela tendência de
burlar leis e normas, a tendência da ―malandragem‖ e da ―esperteza‖, que devem ser
incondicionalmente deixadas para trás. Ferreira (2001) analisa, em um trabalho sobre clichês,
que ―o jeitinho‖ é uma construção quase complementar do discurso da malandragem. Este se
materializa sobre o clichê ―todo brasileiro gosta de levar vantagem‖, sendo que o primeiro
167
clichê, ―o jeitinho‖ está ainda muito mais impregnado na memória do brasileiro, como uma
marca identitária:
Quando se refere ―o jeitinho brasileiro‖, o efeito de sentido produzido não é
exatamente o mesmo que ―levar vantagem em tudo‖. Com ―o jeitinho‖, o
grau de adesão parece ser maior, há mesmo uma simpática tolerância e uma
aceitação consentida para com esse modo de ser que identifica e distingue o
brasileiro. (Ferreira, 2001, p.77)
A exemplo do que já coloquei no tópico anterior sobre a questão do rebaixamento,
percebe-se aqui mais uma vez, como a força da alteridade pressiona os indivíduos, colocando
suas identidades em xeque. Se no Brasil já se percebe, mesmo que de forma difusa, uma
espécie de indignação ética crescente contra o discurso da malandragem e contra os clichês
que o vinculam, no contexto americano essas construções não encontram o menor respaldo,
haja vista a própria intraduzibilidade da expressão ―jeitinho‖ para o inglês.
Inevitáveis conflitos advêm dessa realidade. Sem poder atribuir ao certo até que ponto
o discurso molda a prática social ou a prática social molda o discurso, o fato é que a condição
de ilegalidade por que passam os brasileiros em algum momento de suas vidas como
imigrantes, geralmente nunca menos de três anos, acaba por sujeitá-los durante esse período a
uma série de problemas com as leis americanas, e a forma pela qual eles lidam com esses
problemas envolve uma série de estratégias, táticas, maneiras, enfim, ―jeitinhos‖ de burlar as
leis de imigração. Assim, forjam-se papéis, tiram-se documentos, conseguem-se carteiras de
motoristas etc., num ato praticamente inconciliável com aquela expressão ―andar na linha‖.
Sem uma alternativa para sua condição de ilegalidade no país, o jaragüense concilia o medo e
o ―jeitinho‖, numa posição sempre alerta, e procura se manter, na medida do possível, dentro
de uma ―linha‖ de conduta que o exima de maiores problemas.
Aprendizagem
A aprendizagem é um tópico também recorrente, mas que se incompatibiliza com
aquelas referências já mencionadas, sobre o estado imperturbado dos brasileiros com relação à
mudança para os EUA. Se, por um lado, há aqueles que acreditam se manter inalterados na sua
condição de brasileiros, como mostraram aqueles recortes em que os sujeitos dizem ser
―normal‖ esta condição, mesmo que transposta para um outro país, há também aqueles que se
168
dizem afetados por mudanças irreversíveis, que se deram dentro de um processo que eles
identificam como uma aprendizagem de vida.
A minha experiência mudou em tudo, até como ser humano. Eu acho assim,
eu era, eu não vi o mundo igual eu vejo agora, eu era, tipo assim, uma pedra
bruta, na...o mais que eu aprendi em Goiânia, com minha família....mas, aqui
cê aprende tudo, tudo...eu vejo uma pessoa na rua eu sei que ele tá
precisando duma ajuda...chega uma pessoa estúpida pra morar comigo,
assim...não é estúpida, chega aqui, não tem a ajuda de ninguém, então eu
entendo tudo que ele tá passando, tudo, tudo, porque eu já passei. É o ditado
mais certo, o mundo ensina a gente a viver, ensina a gente a compreender
as pessoas, ensina a gente a ser frágil, muito frágil, em termos de saudade,
né, da família...
(Sandra, 40 anos, faxineira)
Sandra percebe nesse processo um componente fragilizante. Mais uma vez se
evidenciam as pressões forçosas a que se submetem os indivíduos expostos à diversidade
cultural e às adversidades da jornada migratória. Na maioria dos depoimentos em que se
aborda essa questão da aprendizagem de vida, ela é descrita em termos de um certo abalo
emocional e cultural.
Eu me sinto brasileira, eu nunca vou deixar de sentir brasileira, sabe?, mas,
é como eu te falei aquela hora, sabe?..eu acho...se você tá aqui, se você tá
aqui pra o que der e vier, eu acho que você tem que...se é pra você falar o
inglês, mesmo errado você tem que falar o inglês, se você...não é pra entrar
no boteco do jeito que o americano não gosta, então você deve...como ...a
gente deve agir, certo? É como a sociedade, sabe?, assim...o americano não
aceita o lixo no chão, sabe?, o brasileiro já aceita, né?, não tá nem aí, a
gente aprende muita coisa de vir pra cá, sabe Lúcia? Aprende a amar mais a
natureza, cê entende, e a respeitar mais assim, do jeito que, a gente tá aqui, o
país não é nosso, então você tá vendo o que, que se cê tá tendo mais
oportunidades, cê tem mais é que respeitar o que tá sendo dado pra você. Eu
sinto muito brasileira...é isso que cê tá me perguntando?
(Adriana, 36 anos atendente no Dunkin‟ Donuts)
Falar da fragmentação identitária do sujeito pós-moderno já se tornou um lugar comum
na academia. Mas, poucas vezes se dispõe de exemplos tão singulares como o que se mostra
169
neste recorte da fala de Adriana. Percebe-se que sua reação à pergunta sobre como é ser
brasileira nos EUA é de defender essa identidade cultural, como se ela estivesse ameaçada. Ela
começa se afirmando enfaticamente como brasileira, ―eu me sinto bem brasileira, nunca vou
deixar de me sentir...‖, só que acrescenta um ―mas‖... que vai encadear a negação dessa
brasilidade inalterada. E ela segue tentando se explicar, mas sempre hesitante, (sabe?, cê
entende?), que por estar num outro país é preciso abrir mão de certos conceitos e crenças (falar
inglês, adaptar-se ao estilo americano de freqüentar o ―boteco‖...). Aí vai transparecendo a
questão que abordei no tópico anterior: ser brasileiro nos EUA demanda abrir mão daquelas
marcas identitárias que se propagam no discurso da malandragem, do ―jeitinho‖. É preciso
uma atitude de respeito, respeito às leis locais, às normas de conduta americana, que
condenam veementemente qualquer tentativa de violação, enfim, demanda todo um processo
re-educativo. É claro que essa ―reeducação‖ se processa de forma conflituosa, pois, demanda
que o sujeito abra mão de certos valores associados à sua cultura, em função de novos valores
do grupo ao qual ele deve se adequar. É uma adequação que provoca temor de traição ao seu
grupo referencial, pois, a adoção de uma nova postura, demanda o rompimento com uma
anterior. A questão da aprendizagem é, assim, um fator diretamente ligado com questões de
adaptação, deslocamento identitário, reformulação de conceitos, dentro de um processo no
qual a divisão e o conflito identitário são inevitáveis:
Recorte da entrevista 1 (7 de julho de 2002):
Vilmar:
É difícil aqui porque, toda coisa tem que depender, né...cê tem que...levantar cedo,
domingo, às vezes num feriado, cê tem que sair pra cuidar de alguma coisa, levar
roupa pra lavar, né...num tem jeito de esperar ninguém pra fazer nada, então a gente
vai aprendendo.
José
Isso aqui é uma escola, né..
Vilmar
Eu já aprendi muita coisa aqui.
José
Aqui, cê quebra muito a crista.
170
Gaspar
Pra falar a verdade, o que cê num faz no Brasil , aqui ocê tem que fazer. Porque
aqui é onde o filho chora e a mãe também.
Esse processo de (re)aprendizagem tem efeitos na questão identitária que se estendem
até mesmo para o terreno das identidades de gênero. Observa-se que ―levar roupa pra lavar‖,
que é um item mencionado por Vilmar dentro do seu rol de aprendizagem, parece se chocar
com suas noções de papéis domésticos, pois, no Brasil, lavar roupa ainda é considerado em
muitos meios sociais, como uma atividade predominantemente feminina. Um certo abalo
estrutural se revela neste recorte, naquela menção de José: ―aqui, cê quebra muito a crista‖. É
um desconsolo (―aqui é onde o filho chora e a mãe também‖) frente a inevitabilidade dos
sujeitos de se confrontarem com essas adversidades.
Saudade e depressão
A saudade é um tópico constante e muito compreensível na condição do imigrante, e
aqui ele aparece diretamente associado à instituição familiar.
Como é ser brasileiro e morar aqui? Eu gosto muito, só porque a gente tem
muita saudade, a gente fica muito dividido, ás vezes tem uma solidão muito
grande, sabe? Uma depressão...saudade da família. Se a minha família
estivesse aqui, nossa!.. eu acho que eu tava completamente feliz. Essa parte é
mais ....é por causa da minha família...
(Sandra, 40 anos, cozinheira)
No Brasil a família é uma instituição de posição estratégica na sociedade, agindo
diretamente em certos perfis culturais do brasileiro. Um desses perfis foi identificado por
Margolis (1993) como sendo o fator mais decisivo na falta de articulação do grupo em torno
da construção de uma comunidade mais sólida nos moldes daquelas estruturas sociais como
clubes, associações etc.
No Brasil, onde o lar e a família extensa protegem vigorosamente seus
integrantes contra o exterior, as associações que não se baseiam em relações
familiares são raríssimas. (...) Os brasileiros costumam morar perto dos
171
demais membros de sua família, muito mais do que os americanos, e passam
grande parte de seu tempo livre com eles. (Margolis, 1993 p. 304)
É dessa forma que a distância de suas famílias é fator de grande interferência na vida do
imigrante brasileiro, sendo citado com freqüência como a principal causa de males emocionais
como a depressão:
porque aqui a depressão a solidão aqui é muita, muito mesmo, então a gente
assim, apega muito nas pessoas. Todo final de semana a gente reúne a turma
toda, trabalha... durante a semana, no final de semana a gente vai curtir, a
casa é cheia, todo final de semana a minha casa é cheia de gente, sabe/ vem
amigos, vem tudo....
(Ana, 42 anos, faxineira)
Quando cê chega aqui, e sente que isso aqui é maravilhoso e acha que é bom
demais, é muito difícil. Eu acho que só uma pessoa...a Natacha (sobrinha que
mora no Brasil) veio pra qui ela achou maravilhoso, tanto é que ela vem
embora ano que vem morar comigo. Mas, ocê chega...você fica isolada, cê
mora sozinha...lá em casa...a minha casa era cheia de gente, todo dia, num
tinha um dia que eu almoçava sozinha, sempre meus irmãos tava, sobrinho,
vizinho, amigo...então, muita gente. Dá saudade. Cê chaga aqui, você fica
sozinha, cê não conversa com ninguém.
(Maria Rosa, 37 anos, gerente de lanchonete)
Esses fatores de saudade e depressão têm uma influência decisiva no estabelecimento
definitivo do brasileiro nos EUA ou na sua volta para o Brasil. No corpus de pesquisa que
coletei ainda na fase anterior a minha ida a Danbury, quando entrevistei ex-imigrantes
jaragüenses que já haviam retornado da experiência migratória, a principal causa dessa volta
era justamente a necessidade de aproximação da família. De modo inverso, como a família é
também a principal beneficiária das vantagens econômicas que os imigrantes procuram, é
fundamentalmente por causa dela, ou pelo seu bem-estar, que eles se submetem a todas as
dificuldades que a situação de imigrante lhes impõe.
Discriminação e polidez
172
Vou terminar esta seção de análise dos principais tópicos da fala dos jaragüenses,
abordando questões ligadas aos preconceitos e à discriminação. Como, curiosamente, esse
tema apareceu associado a um outro assunto, o da polidez, vou aproveitar para analisá-los
juntamente. Deixei também estes dois tópicos para o final, apesar de eles terem sido mais
evidentes que outros anteriores, por terem sido, ao mesmo tempo, os mais controversos. A
discriminação, por exemplo, foi um tópico que surgia na maioria das vezes em resposta àquela
pergunta-chave ―como é ser brasileiro aqui?‖. Quando elaborei a questão, tinha em mente o
deslocamento Brasil-EUA e as possíveis mudanças que ele traria para os sujeitos como
indivíduos. Muitos parecem ter percebido a questão sob este mesmo ângulo, ao que
respondiam, comentando sobre seus problemas com adaptação, por exemplo, como nos casos
em que aquele ―andar na linha‖ era levantado como um desses fatores. Contudo, grande parte
dos sujeitos recebeu a pergunta como que contendo um elemento a mais, do tipo: ―como é ser
brasileiro, membro de uma minoria étnica discriminada, neste país?‖. Já sob este prisma, as
respostas se dividiram basicamente em dois tipos: de um lado, os que se sentiam atingidos
realmente por preconceitos e discriminações, e que prontamente começavam já a abordar as
situações nas quais teriam sido vítimas dessas ações. Por outro lado, alguns sujeitos também se
mostraram, de certa forma, injuriados com a hipótese de que eram discriminados, e reagiam
imediatamente, demonstrando que tal suposição era fruto de uma espécie de formulação
discursiva que não correspondia à realidade. Os dois recortes abaixo servem como exemplo
dessas duas reações contrárias, ambos vieram em resposta àquela pergunta ―como é ser
brasileiro aqui?‖:
A gente sente discriminação, um pouco de discriminação, né...porque as
pessoas não deixa de discriminar, né. Fala, ah..isso é brasileiro, né?
(Érica, 36 anos, faxineira)
Eu não sinto discriminada, eles tratam a gente normal como se a gente fosse
americano, eles não...isso pra eles...cê num fazendo nada errado, nossa!
Maravilha! pessoas muito educadas.
(Ana, 42 anos, faxineira)
173
Percebe-se que Érica e Ana posicionam-se de forma diametralmente oposta. Enquanto a
primeira delata prontamente uma situação de discriminação, a outra procura negá-la, embora
que de uma forma um pouco duvidosa, pois, sua ressalva, ―cê num fazendo nada errado...‖,
induz que deve haver limites para a ―educação‖ dos americanos e o estado de ―maravilha‖ da
convivência entre esses e os brasileiros.
Curiosamente, a ―educação‖ é mencionada por muitos sujeitos como sendo uma das
grandes qualidades dos americanos, sendo inclusive uma argumentação constante contrária à
existência de discriminação em relação aos brasileiros:
Recorte da entrevista 17 (19 de julho de 2002):
Nédio
Tem americano que não gosta de qualquer espécie de imigrante, mas eles
também...
Eu
Vocês já pegaram algum pela frente?
Nédio
Conheço um, trabalho junto com um que todas as pessoas que tão lá ... os
brasileiros que tão lá, trabalhando nessa companhia há dose anos, sempre
falou pra mim, certo...esse cara não gosta de imigrante, não gosta de
imigrante. Mas, comigo mesmo eu nunca encontrei nenhuma...nada que me
fizesse pensar isso a respeito dele, porque sempre me tratou com educação,
com carinho, com brincadeira, com liberdade...
(Nédio, 41 anos, empregado na construção civil)
Observa-se que a ―educação‖ a que se refere Nédio é sinônimo de polidez, ou seja, a
maneira cortês que os americanos teriam de tratar as pessoas de um modo geral. Essa polidez é
apontada por alguns sujeitos como um dos itens de superioridade americana em relação a
brasileiros, num tipo de associação em que, grosso modo, americanos são pessoas educadas
em oposição aos brasileiros que são mal-educados. O depoimento de Emília demonstra que
esse sentimento de ―falta de educação‖ é uma espécie de estigma dos brasileiros:
174
eu acho a gente muito mais inteligente e eu me orgulho muito de ser
brasileira, eu tenho orgulho de falar que sou brasileira, não tenho nenhuma
vergonha. Agora, a única coisa que ás vezes eu acho assim, que...a gente
como brasileiro tinha que mudar...às vezes até eu tenho esse negócio...a
gente fala mais alto (risos) a gente tem uma maneira assim que às vezes,
dentro da educação foge um pouquinho. Mas eu acho que é justamente disso
que a gente tem... aquela coisa natural da gente, sabe? De viver de conversar
de sorrir...que às vezes eles chegam assim quietinho, fazem as coisas, sabe
...assim que você fica... ‗será que eu tô sendo tão mal-educada?‘ sabe...com a
maneira da gente, né...(risos), mas eu acho que...eu tenho muito orgulho de
ser brasileira.
(Emília, 34 anos, assistente de dentista)
Nota-se como a afirmação da superioridade brasileira e o orgulho dessa identidade são
contraditos pelo sentimento de inferioridade no quesito polidez, que Emília identifica em
relação aos americanos. Essa atribuída polidez dos americanos é um fator de conflito para os
brasileiros, confundindo seus referenciais sobre até que ponto são realmente mal-educados ou
apenas menos contidos. De um modo geral, os sujeitos demonstraram um sentimento de
ambivalência sobre esta questão, como Emília, que se revela dividida entre o orgulho por ser
brasileira, uma identidade que implica alegria natural e descontração, e uma contraditória
vergonha por esses elementos envolverem um comportamento, como ela mesma diz, que
―foge‖ às regras de educação.
Fairclough (2001) alerta que a polidez incorpora implicitamente relações de poder
particulares e colaboram para a reprodução dessas mesmas relações. Dessa forma, o autor
propõe que as pessoas podem usar a polidez tanto para serem amadas, compreendidas e
admiradas, como para não serem controladas ou impedidas pelos outros. Isso implica que,
essas pessoas quando estão sendo ―educadas‖ podem ter propósitos muitos distintos, podem
estar querendo sinceramente envolver-se com o outro ou, ao contrário, apenas manter uma
relação superficialmente cordial. É assim que a questão da polidez demanda uma análise mais
crítica, coisa que apenas uns poucos sujeitos parecem estar sendo capazes de fazer:
O pessoal aqui são muito diferente de brasileiro! Muito diferente! Não sei se a
educação deles é mais do que a nossa ou se eles fazem aquilo porque eles foram
criados pra falar aquilo, cê entendeu? Desde pequenininho cê vê que uma mãe chega
com o filho, cê vê que desde pequenininho eles ensinam aquilo ali e o menino é obrigado
175
a falar aquilo. Nós não falamos... assim...cê dá assim..._ ah! Obrigada! Cê dá...eu não
falo pro meu filho Sandro, fala obrigado! É muito difícil de cê falar isso. Agora,
americano não! Eles exigem que ele fala obrigado, na hora que deu, ele tem que falar
thank you, na hora. Excuse- me, sorry... só que, por um lado eu acho bom, mas por outro
lado, eles arrota na maior altura, na sua cara „Arrrrrrrr!, excuse-me‟. Adiantou o quê?
Nada. Nada, nada! E se ocê achar ruim eles acha pior ainda. Porque eles acha, se cê
falou excuse-me, cabou! Já tirou, resolveu o problema! (risos) livrou a barra dele na
hora! É muito engraçado!
(Maria Rosa, 36 anos, gerente de lanchonete)
Maria Rosa percebe o uso de expressões de polidez como 115thank you, sorry, excuse-me
etc. como manifestações mecanicamente incorporadas ao discurso americano, mas que não
necessariamente exprimem respeito e consideração propriamente. Com isso ela está criticando
a superficialidade dessa polidez.
Apesar de Maria Rosa ser uma das poucas pessoas a desconfiar declaradamente da
superioridade dos americanos nesse quesito de polidez, as ―entrelinhas‖ das falas dos sujeitos
acaba por revelar certas contradições:
Recorte da entrevista 4 (12 de julho de 2002):
Eduardo
Eles trata a gente às vezes até melhor do que lá, pelo menos as pessoas que a gente
convive assim com eles, eles são muito bacanas.
Ana
Eu já tenho quase quatro anos que eu faço uma casa eu vi a dona da casa um ano
depois, o marido eu nunca vi. Eles têm uma confiança muito grande na gente. Por isso
que eu falo pra você, aqui a gente não sente discriminado. Se eles confiar em você,
eles são seus amigos. Eu chego, a casa...a porta tá aberta ou a chave tá lá pra mim,
faço a limpeza saio, nunca mais vejo ninguém...
Eduardo
O pagamento é em cima da mesa lá. Deixa o dinheiro se não o cheque lá pra ela...
115
Obrigado, desculpe, com licença.
176
Estas linhas são a continuação daquele exemplo mais acima da fala de Ana, uma das
entrevistadas que interpretou a questão de ser brasileiro pelo viés da discriminação e tratou
logo de desfazer a associação. Ana e seu marido Eduardo dizem que não se sentem
discriminados, que os americanos são pessoas muito educadas, uma maravilha! Contudo,
fazem a ressalva ―cê num fazendo nada errado...‖ e, completam aqui, ―se eles confiar em
você...‖. Em ambos os casos depreende-se que há uma certa imposição condicional para que
os americanos gostem ou confiem nos brasileiros. O que é especialmente interessante na
argumentação de Ana, em defesa da falta de discriminação dos brasileiros por americanos, é
sua alegação sobre a confiança que estes últimos depositam nos primeiros, a ponto de
entregarem suas casas inteiramente a eles sem nenhum receio (eu chego, a casa...a porta tá
aberta ou a chave tá lá pra mim, faço a limpeza saio, nunca mais vejo ninguém...). O que Ana
está alegando em última instancia é que se sente prestigiada por não ser alvo de suspeitas
quanto à sua honestidade. Curioso também é observar que, quando seu marido diz ―eles tratam
a gente até melhor do que lá‖, está se referindo a como são tratados aqui no Brasil os
empregados que desempenham os mesmos tipos de funções que eles estão desempenhando
nos EUA, como Ana que é faxineira.
Sem perceber, Ana e Eduardo estão projetando os tipos de preconceitos que eles
próprios já alimentavam no Brasil sobre profissões consideradas subalternas. Quando se
surpreendem com a ―confiança‖ que os americanos têm nos brasileiros, o fazem em oposição à
proporcional desconfiança que muitos patrões no Brasil têm em ralação a seus empregados,
numa atitude em que os ecos dos tempos coloniais ainda se fazem ouvir, quando peões e
escravos eram suspeitos de pequenos furtos nas propriedades de seus senhores e patrões
(Freyre, 2000).
Os jaragüenses parecem estar associando a discriminação a casos de repressão e
intolerância explícitas, como se essas fossem as únicas formas de manifestação do problema,
esquecendo-se de que a própria manutenção da assimetria social, entre esses grupos e o grupo
majoritário anglo-americano, já é um sinal da posição discriminada que ocupam na sociedade
local. Os membros das minorias são geralmente mais pobres que a média, e vistos como não
completamente integradas à sociedade. O próximo recorte denuncia essa posição:
...por exemplo, eu vim pelo dinheiro mesmo, eu não vim por outra...eu sou
aventureiro, eu sou... eu sempre tive um pouco de aventura, né , eu sempre
177
gostei bastante de aventura, mas não é por aí, eu vim pelo dinheiro mesmo,
que já tinha informação que ganhava bem, né? Chegou aqui constatou que
realmente ganha bem, e dediquei a trabalhar só, então pra você fazer
algum dinherio aqui...que aqui a gente ganha menos que todos, cê sabe né?
Abaixo do outro, abaixo do nível dos americanos, e a gente faz aquilo que
eles não querem fazer, né, igual, por exemplo, se eu fizer... e falar o que
que você, ah eu sou supervisour de house keeper, você não vai ter essa
noção, então o que que é house keeper? É limpeza, a gente limpa merda
mesmo! limpa tudo!
(Tubertino, 47 anos, supervisor de limpeza)
Tubertino não apenas procura deixar clara a condição de inferioridade que ocupa na
sociedade americana, como ainda denuncia que o uso de termos em inglês, como house
keeper, não exprime amplamente o significado dos tipos de trabalho a que se referem. Isso
talvez esclareça o por quê de os sujeitos, de um modo geral, não usarem nomes em português
para suas profissões nos EUA. As faxineiras, por exemplo, jamais usam esse termo para se
referirem a seus trabalhos, preferem a denominação house cleaners, numa estratégia que
abranda as associações indesejadas que possam se prender à palavra em português. Quando
falo indesejadas, estou me referindo ao constrangimento que alguns sujeitos sentem, ao terem
que revelar a inversão de papéis a que foram submetidos na mudança para os EUA. Este é o
caso do próprio casal Eduardo e Ana, que em Jaraguá eram proprietários de um pequeno
negócio, e que nos EUA viram suas posições se inverterem diametralmente para a de faxineira
e pedreiro.
Sem perceber que a discriminação está ligada às poucas chances que o imigrante tem de
se relacionar com os americanos em condições de igualdade, no plano econômico e social,
muitos sujeitos vão se deixando levar pela ilusão de que não são atingidos pelo problema. É
assim que Ana não percebe que o simples fato de trabalhar há quatro anos para uma pessoa,
tendo encontrado-a apenas uma ou duas vezes, já revela seu nível de isolamento em relação
aos americanos. Parece haver uma compreensão limitada sobre o termo discriminação, que
para muitos sujeitos implica maus-tratados. Ser vítimas de discriminação é ser exposto a atos
mais explicitamente violentos. Como essas formas de tratamento não são tão constantes, e
como a polidez faz parte das estratégias de fala dos americanos ao lidar como o imigrante de
178
um modo geral, este às vezes perde de vista as condições reais de seu enquadramento social na
sociedade americana.
Considerações finais
Este capítulo diferiu-se substancialmente das demais partes deste livro, na medida em
que me debrucei com maior afinco sobre um fenômeno atual. Embora tenha me prendido a um
dos pólos propostos nesta obra já no título, a questão da identidade, o fiz sem percorrer as vias
da memória, o outro pólo aqui tão explorado. Ao contrário, tratei de seguir o viés da
contemporaneidade. Acredito que tal escolha tenha contribuído para dar a este trabalho um
panorama mais completo sobre as questões sociais jaragüenses, que são, afinal, o nosso maior
ponto de interesse.
Da mesma forma, sendo Jaraguá um dos ricos cenários da memória e da identidade
goiana, estudar as migrações internacionais no âmbito local nos dá pistas sobre essa mesma
temática em outras esferas. Afinal, a migração jaragüense se insere no contexto mais amplo da
Modernidade Tardia, e revela uma das muitas faces desse mesmo fenômeno em escala
mundial. Muito embora os perfis que levantei neste estudo não sejam estáticos, pois estão em
constante movimento e se transformam à medida que o imigrante refaz suas expectativas e sua
forma de vida no exterior, eles nos dão as pistas de como se constituem os sujeitos neste
momento em que o local e o global se entrecruzam, provocando uma grande fragmentação nas
identidades. Aqui ficou evidente um processo identitário extremamente conflituoso. As
confusões refletem-se na fala dos depoentes a todo o momento e a ambigüidade é uma marca
em suas afirmações em diferentes planos.
Este estudo, apesar de ter consumido muitos esforços de minha parte, não foi suficiente
para esgotar o assunto. Assim, o tema da migração jaragüense permanece ainda em aberto
para aqueles que, como eu, tenham interesse não apenas pelas causas jaragüenses, mas pelas
muitas questões que nos afligem a todos nesses tempos atuais.
Referências
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 1998.
179
CHAUL, N. F. ; Ribeiro, P. R. (org.) Goiás: identidade, paisagem, tradição. Goiânia: UCG.
2001.
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Cenários da memória e identidade goiana: o caso de Jaraguá