I P ) A V A L I A Ç Ã O D O I M P A C T O D O P A R P A I I N O A C E S S O À J U S T I Ç A M a p u t o , E M M O Ç A M B I Q U E 2 0 1 0 FICHA TÉCNICA Título Avaliação do PARPA II no Acesso à Justiça Autor André Cristiano José Edição Centro de Integridade Pública Layout CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA CENTER FOR PUBLIC INTEGRITY Boa Governação-Transparência-Integridade Good Governance-Transparency-Integrity Rua Frente de Libertação de Moçambique (ex-Pereira do Lago), 354, r/c. Tel: 00 258 21 492335 Fax:00 258 21 492340 Caixa Postal:3266 Email:[email protected] www.cip.org.mz Maputo-MOCAMBIQUE Índice I. Introdução......................................................................................................................................... 1 II. Âmbito do trabalho.......................................................................................................................... 2 III. Reforma judiciária e a proximidade dos tribunais judiciais ............................................................ 3 1. Percursos da organização judiciária....................................................................................... 3 a) Sistema de justiça popular (1978 a 1992) ......................................................................... 4 b) Organização judiciária do pluralismo político (1992 a 2004) ........................................... 5 c) A nova organização judiciária (desde 2007) ..................................................................... 7 2. A nova organização judiciária e acesso à justiça.......................................................................... 8 IV. Tribunais comunitários e o reconhecimento do pluralismo jurídico ............................................ 10 1. Os tribunais comunitários e o sistema de administração da justiça ......................................... 10 2. Procedimentos e tipo de decisões: o (des)respeito pelos direitos fundamentais..................... 15 V. Evolução do movimento processual: o que nos dizem os números? ............................................ 18 1. Tribunal Supremo ...................................................................................................................... 19 2. Tribunais Judiciais de Província ................................................................................................. 20 3. Tribunais Judiciais de Distrito .................................................................................................... 23 VI. Patrocínio Judiciário ..................................................................................................................... 25 1. O sistema de assistência jurídica e judiciária............................................................................. 25 2. Cobertura territorial e a capacidade de resposta ...................................................................... 27 VII. Reforma legal, celeridade processual e protecção de grupos vulneráveis ................................. 30 VIII. A formação dos magistrados ...................................................................................................... 33 1. Os percursos da formação de magistrados ............................................................................... 33 2. Os dilemas da colocação de magistrados .................................................................................. 37 Conclusões ......................................................................................................................................... 39 I. Introdução Desde a independência nacional em, 1975, o governo de Moçambique tem vindo a aprovar e implementar programas de desenvolvimento – primeiro, no âmbito do modelo desenvolvimentista, de orientação socialista; e posteriormente (a partir dos meados dos anos 80) no contexto do pluralismo político e da economia de mercado – no sentido de melhorar as condições de vida dos cidadãos. Foi precisamente no último período que os planos de redução da pobreza passaram a assumir especial importância como ferramenta política de referência para a concretização desses programas. Até agora foram aprovados dois planos de acção para a redução da pobreza (PARPA), nomeadamente para os anos 2001-2005 e 2006-2009.1 O PARPA, por um lado, prevê, como parte integrante do ciclo de planificação, uma actividade de monitoria e avaliação, isto é, “um mecanismo para controlar a eficácia e eficiência, para apreciar o impacto, para determinar o peso das políticas públicas na redução da pobreza nas diferentes categorias sociais e para captar e analisar as mudanças, formas e tipos de pobreza, incluindo o desenvolvimento das desigualdades” (Governo de Moçambique, 2006:145). Por outro lado, define os princípios fundamentais e prescreve os mecanismos e instrumentos de monitoria e avaliação que assentam na análise de indicadores. Esta metodologia não esgota, no entanto, as possibilidades de avaliação do impacto do PARPA, podendo inclusivamente ser levadas a cabo por organizações da sociedade civil. Isto permite-nos construir uma visão plural e mais alargada sobre as concretizações do PARPA e enriquecer o debate sobre as políticas públicas de Moçambique. O presente trabalho avalia o impacto do PARPA II (área da justiça e legalidade) para o acesso à justiça, centrando-se em três componentes, nomeadamente reforma judiciária e nível de expansão e de consolidação das instâncias comunitárias de resolução de conflitos; capacidade de resposta dos tribunais; patrocínio judiciário e sistema de representação de interesses. O acesso à justiça é um tema transversal da “Reforma da Justiça, Legalidade e Ordem Pública”. Por isso, o PARPA II 1Há dois instrumentos que podem ser considerados percursos dos PARPA: o Poverty Reduction Framework Paper apresentado ao Grupo Consultivo de Paris em 1990; e a Estratégia para a Redução da Pobreza da Pobreza, definida pela Unidade de Alívio à Pobreza, Ministério do Plano e Finanças. 1 assume como um dos desafios centrais a alcançar entre os anos 2006 e 2009 o de “repensar a organização jurídica e judiciária”, com vista a consolidar um sistema de justiça acessível, transparente e inclusivo. Por conseguinte, elege como os objectivos específicos da “área da justiça e legalidade” os seguintes: Melhorar o acesso à justiça (no sentido da acessibilidade aos serviços públicos de administração da justiça); tornar a legislação mais adequada ao bom funcionamento da administração da justiça; aumentar a eficiência e celeridade na provisão de serviços de Justiça; garantir a assistência jurídica e a protecção dos cidadãos mais vulneráveis; reformar o sistema prisional e garantir ao recluso um tratamento consistente com as normas e princípios internacionais dos direitos humanos; e reforçar o combate à corrupção. Propomo-nos fazer uma avaliação do grau de cumprimento de alguns dos objectivos específicos do PARPA II que ultrapasse a mera contabilização de acções, mas que reflicta sobre os reais impactos da sua concretização. Para além da introdução e da conclusão, este trabalho é composto pelas seguintes partes: âmbito do trabalho; reforma judiciária e proximidade do sistema em relação aos cidadãos; as condições de funcionamento dos tribunais no contexto do pluralismo jurídico; movimento processual e o desempenho dos tribunais judiciais; sistema de acesso ao direito e à justiça; reforma legal, celeridade processual e protecção dos cidadãos vulneráveis; formação de magistrados e colocação de magistrados. II. Âmbito do trabalho Existem várias formas de avaliação do acesso à justiça. Nesta sede, pretendemos destacar apenas a que resulta da análise da relação entre a procura e a oferta de serviços judiciários. Para o efeito, tomámos de empréstimos os conceitos de procura efectiva (que nos é dada pelo volume de processos entrados no tribunal), procura não satisfeita (que corresponde ao número de processos pendentes) e procura potencial (que é o conjunto de conflitos judicializáveis que, por vários motivos, não chega a entrar nos tribunais), utilizados por Boaventura de Sousa Santos e Conceição 2 Gomes (1998). Em relação à procura potencial, realçam aqueles autores, colocam-se particulares problemas nos casos em que os cidadãos, embora querendo, não podem ou não têm como aceder aos tribunais. Neste trabalho fazemos a análise das acções desenvolvidas no âmbito do PARPA II, no sentido de saber em que medida contribuem para (des)encontro entre a procura e a oferta judiciária. Para o efeito, centramo-nos em quatro questões principais, nomeadamente, reforma judiciária; expansão e consolidação dos tribunais comunitários; capacidade de resposta dos tribunais (estudo da procura não satisfeita); patrocínio judiciário e sistema de representação de interesses. Estas questões desdobram-se nos seguintes pontos de análise: avaliação do grau de implementação da reforma judiciária avaliação da expansão dos tribunais comunitários; avaliação da proximidade dos tribunais judiciais de distrito e das instancias comunitárias em relação aos cidadãos; analise da relação entre a reforma judiciária e o sistema de formação e colocação de magistrados; análise da evolução do movimento processual (processos entrados, findos e pendentes); avaliação da extensão e do impacto dos serviços de patrocínio judiciário (Ordem dos Advogados e Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica); análise do programa de reforma legal e sua relação com a necessidade de aumentar a celeridade dos tribunais e de protecção dos grupos vulneráveis. III. Reforma judiciária e a proximidade dos tribunais judiciais 1. Percursos da organização judiciária Como vimos, o PARPA assume a necessidade de “repensar a organização jurídica e judiciária” como um dos desafios mais importantes. Isto resulta de um reconhecimento de que a organização judiciária é a base estrutural em relação a qual gravitam todas as questões relativas ao acesso à justiça. Nessa perspectiva, foi aprovada uma nova Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais em 2007. No entanto, a avaliação das potencialidades desta lei para o acesso à justiça, isto é, a compreensão dos avanços e retrocessos da nova lei, exige o conhecimento (ainda que genérico) dos percursos 3 da organização judiciária moçambicana e da filosofia subjacente a cada etapa. A evolução da organização judiciária tem reflectido não só a evolução do próprio sistema político e as transformações constitucionais de Moçambique, como também a forma como as correntes dominantes nos tribunais encaram o sistema de administração da justiça. Para o que nos interessa neste trabalho, distinguimos as seguintes etapas:2 – de 1978 a 1992, a implantação do sistema de Justiça Popular; – de 1992 a 2004, a organização judiciária do pluralismo político – a partir de 2004, a nova organização judiciária, no contexto do reconhecimento constitucional do pluralismo jurídico. a) Sistema de justiça popular (1978 a 1992) A primeira Lei da Organização Judiciária de Moçambique (Lei n.º 12/78, de 2 Dezembro) vigorou entre os anos 1978 e 1992. Trata-se de uma lei que se orientava por dois princípios básicos: participação popular na administração da justiça e justiça de proximidade. Assim, o sistema apresentava, entre outras, as seguintes características: o Ministério da Justiça fazia a direcção e gestão de todo o sistema judiciário; na medida do possível, e tendo em conta as necessidades da função judicial, a divisão judicial deveria coincidir com a divisão administrativa; da base para o topo, a hierarquia dos tribunais era a seguinte: tribunais de localidade ou de bairro, tribunais distritais, tribunais provinciais e tribunal supremo; a organização hierárquica dos tribunais assegurava o direito de recurso das decisões, podendo inclusivamente recorrer-se dos tribunais de base (os tribunais de localidade e de bairro) para os tribunais distritais; todos os tribunais eram colegiais; os tribunais da base do sistema (nas localidades e nos bairros) eram compostos apenas por juízes eleitos, sem formação técnico jurídica, cuja competência era decidir pequenos conflitos, tendo por base o bom senso, critérios de justiça e os princípios que presidem à construção da sociedade socialista; 2 os restantes tribunais (tribunais distritais, tribunais provinciais e tribunal supremo) Partimos da periodização sugerida por Trindade (2003). 4 eram compostos por juízes profissionais e juízes eleitos. Na matéria penal, os juízes eleitos participavam na decisão sobre as questões de facto e de direito, sendo, por isso, fundamentais para a determinação da culpa e da pena dos arguidos. Na área cível, a intervenção dos juízes eleitos restringia-se às questões de facto. Resulta clara a preocupação de tornar os tribunais mais acessíveis, por um lado, aproximando-os dos cidadãos, tanto do ponto de vista físico (nos bairros e nas localidades) como cultural (através da intermediação dos juízes eleitos em todas as jurisdições). A necessidade de transformação social através do direito reflectia-se também nesta permeabilidade ou articulação de diferentes corpos jurídicos presentes na sociedade moçambicana. Como argumentavam Sachs e Welch (1990), num estudo marcante sobre os tribunais populares, para a libertação do direito moçambicano os magistrados devem aprender a enquadrar a sua actuação e a construção do Estado num processo de transformação cultural do povo. Por isso, afirmavam ainda os autores, é importante conhecer as tradições do país porque, por um lado, o direito tradicional está vigente (ainda que num processo de transformação); e, por outro lado, porque muitos dos conceitos-chave do direito tradicional – porque constituintes do património cultural do povo moçambicano – foram transformados e reintegrados no sistema de justiça popular. b) Organização judiciária do pluralismo político (1992 a 2004) A Constituição de 1990 assumiu a independência dos tribunais judiciais como uma prioridade política, autonomizando-se por completo do poder executivo. A direcção dos tribunais judiciais passou a ser da exclusiva responsabilidade do Tribunal Supremo e do Conselho Judicial, do mesmo modo que passaram a ter um órgão próprio de disciplina, o Conselho Superior da Magistratura Judicial. Por seu turno, a Procuradoria-Geral da República assumiu a direcção da magistratura do Ministério Público, não obstante o facto de o Presidente da República ter a prerrogativa constitucional de nomear e exonerar o Procuradoria-Geral da República, o Vice Procurador-geral da República e os Procuradores-Gerais Adjuntos. Por força da Constituição de 1990, a Lei n.º 10/92, de 6 de Maio introduziu alterações profundas na 5 orgânica dos tribunais judiciais, entre as quais destacamos as seguintes: a divisão judicial continuou a coincidir, na medida do possível, com a divisão administrativa. Orientando-se mais para uma perspectiva burocrática do sistema deixou de ser exigida a necessidade de ter em conta as necessidades da função judicial na construção da orgânica dos tribunais; os tribunais de localidade e de bairro deixaram de fazer parte do sistema judicial, passando a ser regulados por lei própria, a Lei n.º 4/92, de 6 de Maio (Lei dos Tribunais Comunitários); a pirâmide judicial passou a ter apenas três níveis: tribunais de distrito, tribunais de província e Tribunal Supremo; os tribunais judiciais continuaram a ser colegiais, embora os juízes eleitos se passasse a restringir-se aos julgamentos em primeira instância e exclusivamente na decisão sobre a matéria de facto. Estas reformas mostram, por uma lado, a tendência para uma crescente profissionalização da administração da justiça, no sentido da valorização de uma concepção burocrática e tecnicista do direito. Por outro lado, contribuem para um maior distanciamento físico entre os tribunais judiciais e a maioria dos cidadãos. Como veremos no ponto IV, pelo facto de não ser clara a inserção institucional dos tribunais comunitários, não ter sido actualizada nem regulamenta lei que os cria, não estarem estabelecidos os mecanismos de articulação com os tribunais judiciais, não ter havido um processo sistemático de renovação dos juízes, os tribunais comunitários que continuam em funcionamento deixaram de responder às exigências de acesso à justiça (resolução de conflitos de pequena gravidade, encaminhamento dos casos para as instâncias competentes, remessa de processos para as instâncias superiores, em sede de recurso). A isto acresce-se o facto de que, durante este período, a rede dos tribunais judiciais e das procuradorias ter não só estado muito longe de cobrir a totalidade do território moçambicano, como também ter se desenvolvido de forma desarticulada. As situações eram múltiplas. Alguns exemplos: circunscrições administrativas onde ainda não tinham sequer sido criadas procuradorias; distritos que não tinham tribunais em funcionamento; tribunais que funcionavam 6 sem procurador; tribunais que não tinham juiz; tribunais que não tinham funcionários; distritos sem mecanismos de defesa; etc. c) A nova organização judiciária (desde 2007) A revisão constitucional de 2004 trouxe alterações importantes para o sistema de administração da justiça: redefine as categorias de tribunais existentes em Moçambique, incluindo formalmente os tribunais comunitários; reconhece o pluralismo jurídico; abre espaços para o reequacionamento da hierarquia dos tribunais judiciais; a colegialidade deixa de ser a regra de funcionamento dos tribunais, passando os juízes eleitos a intervir apenas nos casos especificamente previstos na lei, ou mediante decisão do juiz, promoção do Ministério Público ou requerimento das partes; e prevê a existência de novos órgãos de disciplina (Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público e um Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa). Assim, no ano 2007 foi aprovada uma nova lei da organização judiciária (Lei n.º 24/2007, de 20 de Agosto) de cujo regime destacamos as seguintes questões: coincidência entre a divisão judicial e a divisão administrativa (artigo 25.º, 2); os tribunais judiciais de distrito continuam a ser a base do sistema; introdução de tribunais superiores de recurso na hierarquia dos tribunais, uma instancia intermédia entre o Tribunal Supremo e os tribunais judiciais de província (artigo 29.º); alargamento das competências dos tribunais judiciais de distrito. Por exemplo, em matéria criminal, os tribunais distritais de 1ª passaram a julgar crimes puníveis com pena de prisão até 12 anos; e os tribunais de 2ª têm competência para aplicar penas até 8 anos de prisao (artigos 84.º e 85.º); os tribunais judiciais de distrito passaram a ser formalmente competentes para julgar os recursos das decisões dos tribunais comunitários; possibilidade de articulação entre os tribunais judiciais e “outras instâncias de resolução de conflitos”. 7 Esquema Simplificado da Organização Judiciária TS T. S. de Recurso T.J. Província T.J. distrito T. Comunit. Aut. Trad. Outras Inst. 2. A nova organização judiciária e acesso à justiça Os contornos da organização judiciária têm reflexos inquestionáveis para o acesso à justiça, sendo, por isso, importante interpretar o sentido da hierarquia dos tribunais, a lógica de implantação dos mesmos e as competências que se lhes assistem. Num dos trabalhos de referência sobre administração da justiça afirma-se que a organização judiciária de Moçambique é deficiente e desajustada, distante da maioria dos potenciais utilizadores, cobrindo somente as capitais provinciais e pouco mais do que metade das sedes de distrito (Pedroso et. al., 2003: 575). Contudo, a nova organização judiciária não trouxe soluções para se alcançar um dos objectivos centrais do PARPA: aproximar fisicamente o sistema de justiça dos cidadãos. O sistema foi reforçado no topo, com a criação dos tribunais superiores de recurso, com vista a responder com maior celeridade os recursos dos tribunais de província (face à conhecida inércia do Tribunal Supremo). Contudo, é importante realçar que apenas uma pequeníssima parte dos processos julgados nos tribunais provinciais é que sobem em recurso para o Tribunal Supremo. Por exemplo, em 2007, apenas 0,31% dos casos decididos é que foram objecto de recurso para o Tribunal Supremo (IGF, 2009: 242). Ainda assim, a base do sistema ficou intacta, como vimos, continuando a ser constituída pelos tribunais de distrito. Como sabemos, na base, enquanto instância fundamentalmente de ingresso, as necessidades de tutela judiciária são maiores. É importante referir que a aposta no topo do sistema revelou-se uma tarefa muito difícil de concretizar face aos recursos de que dispõe (incluindo organizacionais). Os tribunais superiores de 8 recurso ainda não estão instalados, não obstante a lei da organização judiciária determinar que de que deveriam peremptoriamente entrar em em funcionamento um ano após a sua publicação, isto é, até Agosto de 2008. As opções do legislador obrigam-nos também a colocar duas questões fundamentais, relacionadas com a competência territorial e material dos tribunais, especialmente dos tribunais de distrito. a) Contrariando as recomendações avançadas nos estudos sobre o sistema (Santos e Trindade, 2003) e afastando-se completamente do regimes anteriores,3 a nova lei da organização judiciária afirma expressamente, nos termos descritos, que “a divisão judicial coincide com a divisão administrativa”. Significa que, independentemente das características e das condições de cada circunscrição territorial, teremos um tribunal de província para cada província; e um tribunal de distrito para cada distrito. Contudo, a realidade mostra que é recomendável conceber a organização judiciária em função da procura, isto é, das necessidades de tutela jurídica e judiciária, do que em função da organização político-administrativa do país. Esta é, aliás, uma das recomendações mais importantes do estudo acima mencionado, afirmando-se que “a dimensão populacional e o nível económico-social de alguns distritos justificam que a divisão judicial não coincida com a divisão administrativa e, consequentemente, tenham mais do que um tribunal” (Pedroso et. al., 2003:575). A própria Lei da Organização Judiciária acabou por ser incongruente nesta questão, uma vez que, por um lado, remete para os diplomas de criação dos tribunais a definição da respectiva sede e área de jurisdição (artigos 68.º e 79.º,1) e, por outro lado, estabelece que “a divisão judicial do país é determinada por critérios que atendam ao número de habitantes, ao volume e à natureza da procura de tutela judicial, à proximidade da justiça ao cidadão e às necessidades do sistema de administração da justiça” (artigo 25.º, 1). É certo que esta norma teoricamente abre espaços para que seja construída uma organização judiciária flexível, ajustada a uma pluralidade de factores confluentes, mas a prática mostra que há uma colagem rígida da divisão judicial à divisão administrativa. Continua-se a tentar ter um tribunal judicial por distrito, implantado na respectiva sede administrativa. Veremos que esta intenção está longe se ser concretizada. Acrescido a isto, 3 Veja também http://www.utrel.gov.mz/IndexAssunto.htm (página acedida no dia 12 de Agosto de 2009). 9 se tivermos em conta o estado de abandono dos tribunais comunitários, percebemos que o sistema de administração está muito distante de uma boa parte da população. Parece-nos acertado concluir que a organização judiciária foi concebida mais para satisfazer as necessidades internas (corporativas) do sistema do que para responder às necessidades de acesso à justiça. b) Como vimos, a competência material dos tribunais de distrito foi largamente ampliada. Significa que, para além dos tribunais e das procuradorias, deverão estar presentes outros órgãos que desempenham papel relevante na administração da justiça, nomeadamente a polícia de investigação criminal, o IPAJ, Ordem dos Advogados, os Serviços de Medicina Legal, o registo criminal, as cadeias, etc., sendo absolutamente necessário que estes disponham de recursos humanos, materiais e financeiros necessários para enfrentar – no caso da jurisdição penal – uma criminalidade mais grave e mais complexa. Esta será uma das condições, que está longe de estar satisfeita, para que o processo de reforma judiciária seja coerente e exequível. Aliás, as dificuldades aqui apontadas já se verificavam durante a vigência da anterior lei da organização judiciária, isto é, numa altura em qua a competência dos tribunais de distrito era baixa. Aumentando as competências, sem que haja um correspondente investimento em termos de recursos, contribuirá para agravar as dificuldades de funcionamento. IV. Tribunais comunitários e o reconhecimento do pluralismo jurídico 1. Os tribunais comunitários e o sistema de administração da justiça Desde o ano 2004 que a Constituição da República reconhece o pluralismo jurídico em Moçambique e prevê expressamente a possibilidade de serem criados tribunais comunitários. Trata-se “apenas” de um reconhecimento formal (constitucional) de uma realidade vigente social e legalmente, isto é, o reconhecimento de que os tribunais judiciais não têm o monopólio da administração da justiça em Moçambique. Como vimos, com o afastamento dos tribunais de localidade e bairro da organização judiciária (em 1992), aqueles passaram a ser regulados por uma lei própria, a Lei n.º 4/92, de 6 de Maio. Trata-se de tribunais que julgam conflitos de menor gravidade; compostos por juízes sem formação 10 técnico-jurídica (em princípio, eleitos pelas assembleias representativas dos cidadãos); que decidem, nos limites da Constituição, de acordo com o bom senso, a equidade e atendendo aos valores sociais e culturais existentes na sociedade moçambicana. Também vimos que a Lei dos Tribunais Comunitários, para além de estar completamente desactualizada, não chegou a ser regulamentada. O afastamento dos tribunais comunitários do sistema judicial e a falta de actualização e regulamentação da lei que os cria não só agravaram o distanciamento do sistema de administração da justiça dos cidadãos, como vimos no ponto anterior, como acarretou consequências negativas para o funcionamento daqueles mesmos tribunais. Destacamos as seguintes problemas: a inserção institucional dos tribunais comunitários tornou-se dúbia, não estando claramente definido em que estrutura orgânica se situam, quem os coordena, a quem prestam contas e de que forma o fazem. Nalguns distritos, as direcções distritais de registo e notariado reivindicam o papel de acompanhamento, embora na prática apenas sejam uma instituição de referência para a canalização de relatórios e de algumas receitas dos tribunais comunitários; desde o ano de 1987 que o corpo de juízes não é renovado através de um processo eleitoral. De acordo com a lei (Lei n.º 4/92, de 6 de Maio), compete ao governo estabelecer os mecanismos e os prazos para a eleição dos membros dos tribunais comunitários. A mesma lei prevê que os juízes dos tribunais de localidade e de bairro continuem no exercício de funções até que se sejam concluídas as primeiras eleições. Contudo, passa muito tempo desde aprovação da lei. Muitos dos juízes foram substituídos por diversos motivos (morte, doença, mudança de residência, alteração da situação profissional, abandono); outros tantos não chegaram a ser substituídos, esvaziando-se os tribunais; na ausência de regras de recrutamento, as substituições dos juízes dos tribunais comunitários têm sido feitas de acordo com soluções locais, muitas vezes tendo em conta a afinidade político-partidária ou vínculos de outra natureza. Nos casos em que se privilegia o primeiro tipo de vínculos, tem havido um questionamento generalizado da legitimidade dos juízes, sobretudo nos locais onde os partidos da oposição gozam de apoio considerável, como acontece na cidade de Angoche; a lei determina que a instalação dos tribunais comunitários é responsabilidade 11 directa dos governos provinciais; os tribunais comunitários funcionam em instalações precárias, na maior parte das vezes partilhadas com os grupos dinamizadores, e sem que disponham de equipamentos e material de trabalho básico (papel, cadernos, esferográficas, carimbos, etc). Como já foi observado, a situação de partilha dos espaços, para além de trazer dificuldades práticas ao funcionamento dos tribunais comunitários (horários de trabalho, arquivo de processos e outros documentos, etc.), dificulta a autonomização funcional dos tribunais comunitários e a sua afirmação como estruturas independentes (Gomes et. al., 2003); a lei prevê que seja paga uma “compensação” aos juízes dos tribunais comunitários, em função das receitas apuradas. Contudo, os juízes não beneficiam de qualquer remuneração. A regra tem sido o autofinanciamento através das receitas provenientes das multas e taxas de justiça (o que, aliás, também acontece para a aquisição de material de trabalho); a ambiguidade institucional e organizativa em que funcionam os tribunais comunitários conduz a que respectivos juízes não beneficiem de qualquer formação específica. Como se percebe, não basta que a lei afirme que os tribunais deverão decidir os conflitos observando os limites constitucionais. É importante assegurar que os juízes tenham conhecimento, pelo menos, das regras elementares da Constituição e da organização judiciária. Instalar e colocar em funcionamento os tribunais comunitários é uma das acções previstas no PARPA II, com vista a alcançar o objectivo específico de “aumentar a eficiência e celeridade na provisão de serviços de justiça” (Governo de Moçambique, 2006:81). Do mesmo modo, no programa do Governo para os anos 2005 a 2009 defende-se a importância de se garantir a instalação e funcionamento dos tribunais comunitários4. Já no ano 2004, o Ministério da Justiça reportava o registo de 1653 tribunais comunitários – entre os quais 254 (cerca de 15%) instalados no período de 2000 a 2004 –, com cerca de 8265 juízes5. O Plano Económico e Social para 2009 indicava como uma das prioridades do sector, dar continuidade à revitalização dos tribunais comunitários. 4 Resolução da Assembleia da República n.º 16/2005, de 11 de Maio. 5 Ministério da Justiça (2004). Relatório do Conselho Coordenador realizado em Tete, de 13 a 15 de Julho de 2004. 12 Deste modo, colocam-se duas perguntas centrais, relacionadas com o mérito e com o processo de (re)implantação dos tribunais comunitários cuja: primeiro, como é possível revitalizar os tribunais comunitários sem que estivessem resolvidas as questões estruturais acima mencionadas? Segundo, como tem sido conduzido o processo de revitalização? Não responder satisfatoriamente a estas questões aumenta o risco da partidarização dos tribunais comunitários, como efectivamente tem acontecido nalguns contextos. O exemplo da cidade de Angoche é paradigmático, pois ela tem sido uma arena de intensa confrontação política. Os processos eleitorais têm sido um teste para a democracia moçambicana, para a independência dos tribunais e para as relações entre o poder político e as instâncias comunitárias de resolução de conflitos naquela cidade. A vitória da Renamo nas segundas eleições autárquicas reflectiu-se directamente na dinâmica das instituições locais de resolução de conflitos. Tentando nomear novos membros, a Renamo empenhou-se no questionamento da legitimidade dos juízes dos tribunais comunitários, muitos dos quais vindos da época dos tribunais populares. Para além dos problemas que afectam a generalidade dos tribunais (indefinição institucional, carência de recursos humanos, materiais e financeiros, falta de formação, inexistência de mecanismos de remuneração dos juízes, etc.), os tribunais comunitários de Angoche viram-se constrangidos a funcionar num contexto de implantação de estruturas político-administrativas paralelas, com prejuízo para o acesso por parte dos cidadãos. Nos locais onde o partido Frelimo goza de maior popularidade, a tendência é que haja uma continuidade do perfil dos juízes dos tribunais comunitários, isto é, que preferencialmente sejam seleccionados membros daquele partido. Aliás, como mostram os estudos, muitos dos juízes dos tribunais comunitários são também membros do Grupo Dinamizador (Gomes et. al., 2003; José e Espírito Santo, 2009). Podemos, deste modo, com Gomes et. al. (2003:334), concluir que os tribunais comunitários são hoje uma instância de resolução de conflitos muito complexa, tendo assumido o legado humano e institucional dos tribunais populares, mas não o legado organizacional, uma vez que não estão 13 integrados na organização judiciária, nem são apoiados técnica e materialmente. Estão entregues a si próprios e às capacidades locais de improvisação e de reprodução. Daí a dispersão relativamente caótica do seu funcionamento. Esta realidade tem reflexos nos procedimentos e na qualidade das decisões daqueles tribunais, como veremos em seguida. Mas a consagração constitucional do pluralismo jurídico significa um reconhecimento amplo das instâncias comunitárias de resolução de conflitos, incluindo outros actores sociais, como as autoridades tradicionais, as associações especializadas na resolução de determinado tipo de conflitos (como a AMETRAMO), as igrejas, etc. Entre as demais instâncias comunitárias, as autoridades tradicionais têm merecido especial atenção nas discussões sobre o papel das instâncias comunitárias na administração da justiça, reconhecendo-lhes especial capacidade para a resolução de determinado tipo de conflitos, como o conflitos de terras e os problemas de feitiçaria.6 O debate também prende-se com a questão de saber se as autoridades tradicionais poderão integrar uma “jurisdição” própria, paralela em relação a organização judiciária. A jurisdição “paralela” dos native courts tem raízes históricas relacionadas com o sistema de governação do colonialismo inglês, o indirect rule. A trajectória de Moçambique é diferente. As necessidades de construção de um Estado unitário, de igualdade oportunidades e de acesso ao direito e à justiça, aconselham a edificação de um sistema de justiça e de estreita articulação entre os tribunais judiciais e as instâncias comunitárias de resolução de conflitos, não sendo aconselhável a priori impor qualquer limitação de acesso aos primeiros. Na impossibilidade de regular o funcionamento de todas estas instâncias comunitárias, a opção pelos tribunais comunitários parece-nos acertada, dado o seu percurso histórico e o papel que têm vindo a desempenhar. Pelo facto da lei não ser proibitiva, abre espaços para que, nos diversos contextos, os variados actores possam resolver conflitos, em função do tipo e do grau de legitimidade de que gozam. A procura e a Constituição limitam o âmbito de actuação. De qualquer modo, faltam no país consensos sobre o papel e o enquadramento das instâncias comunitárias o sistema de administração da justiça. 6 O último debate público sobre o tem ocorreu no seminário sobre o “cortejo e o papel dos tribunais comunitários”, organizado pela UTREL, no dia 25 de Agosto de 2009. 14 2. Procedimentos e tipo de decisões: o (des)respeito pelos direitos fundamentais Dada a inexistência de registos sistemáticos, nem sempre é possível conhecer com exactidão o volume da procura efectiva dos tribunais comunitários. Por exemplo, um estudo de caso recente sobre o Tribunal Comunitário do Bairro de Hulene “B” dava conta dessa dificuldade que, na verdade, é generalizada em todo o país (Gomes et. al., 2003; José et. al., 2009). No caso do Tribunal Comunitário de Hulene “B”, por um lado, através da observação foi possível perceber que nem todos os conflitos eram registados. Por outro lado, os dados quantitativos foram levantados a partir de notas pessoais do juíz-presidente, respeitantes a variados assuntos como a marcação da data da decisão; a apreciação preliminar do juiz-presidente sobre o problema; decisão de remessa do caso para o tribunal judicial; etc. (José e Espírito Santo, 2009). De qualquer modo, é possível conhecer a natureza dos conflitos em regra processados nos tribunais comunitários, questão que está directamente relacionada com o processamento dos casos e tipo de decisões. Os problemas discutidos nos tribunais comunitários são de natureza diversa e que podem ser agregadas em três grandes grupos, nomeadamente conflitos sociais, conflitos em torno da habitação e dívidas. É importante referir que embora a lei fixe a competência material do tribunal comunitário, na prática o seu âmbito de actuação depende principalmente dos respectivos mobilizadores. Os tribunais não delimitam a priori o âmbito de intervenção, recebendo e processando todos os casos que lhe são apresentados pelas partes ou que chegam através de outras instâncias. Contudo, tendencialmente, verifica-se uma excepção em relação aos casos sociais. A designação “casos sociais” tem sido utilizada na generalidade das instâncias comunitárias (e também nas instituições policiais) como sendo aqueles problemas de menor gravidade e que, em princípio, não será necessário que sejam resolvidos pelos tribunais judiciais. Trata-se de conflitos que normalmente ocorrem no contexto das relações de família ou de vizinhança como, por exemplo, adultério, falta assistência material aos familiares, agressões verbais e físicas, disputas de heranças ou desentendimentos de qualquer outra natureza. Aquela avaliação da gravidade depende não só das partes em conflito e/ou respectivos familiares, como também dos actores sociais que recebem o caso em primeira instância. O encaminhamento do caso para o tribunal 15 comunitário tem, em regra, subjacente um juízo de valor sobre a “dignidade judicial” do problema. Mas a tendência na generalidade dos tribunais comunitários (e noutras instâncias comunitárias de resolução de conflitos) tem sido distinguir, por exemplo, os “casos sociais” das “ofensas corporais” em função das consequências da agressão. Tendem a classificar como “ofensas corporais” as agressões de que resulta sangue (José et. al., 2004). O processamento dos casos entrados nos tribunais comunitários obedece a um certo padrão, embora, dadas as características que lhes temos vindo a assinalar, haja muita flexibilidade e adaptação das formas de funcionamento em função do perfil dos juízes, dos contextos em que os tribunais estão inseridos, das particularidades e exigências do caso, etc. Destacamos as seguintes características: predomínio da oralidade: a apresentação das queixas e a discussão dos casos é feita oralmente. A escrita é utilizada de modo bastante residual, para as notificações e, por vezes, para o registo das decisões; na apresentação e discussão utiliza-se a língua que os utentes escolherem. Embora geralmente utilizem a língua local, os utentes podem transitar livremente entre diversos universos linguísticos, em função da necessidade ou estratégias da argumentação; respeito rigoroso do princípio do contraditório, dando sempre à parte contrária a possibilidade de se defender; participativos: para além das partes, outras pessoas (familiares, vizinhos, estruturas do bairro, etc.) podem participar na resolução do conflito. Aliás, tem sido exigida a presença dos familiares nos julgamentos, como uma das condições para a inteira compreensão dos conflitos e produção de prova, assim como para assegurar a eficácia das decisões; céleres e desburocratizados: os actos/fases processuais são reduzidos ao mínimo possível. Depois de apresentada a queixa, normalmente com a notificação da parte contrária é marcado a data do julgamento. Os modelos de decisão dos tribunais comunitários divergem dos tribunais judiciais. Estes julgam principalmente tendo em conta critérios de legalidade estrita. Nos tribunais judiciais predomina, por isso, uma cultura jurídica de adjudicação. A regra de resolução de conflitos nos tribunais consiste, pois, em formular decisões de soma zero, em que há um vencedor e um vencido em 16 relação ao qual são prescritas determinadas sanções. Como vimos, os tribunais comunitários decidem de acordo com a equidade, o bom senso e com justiça, assumindo-se a mediação como uma técnica privilegiada de resolução de conflitos. É certo que a busca de soluções medianas, na qual as partes e respectivos acompanhantes partilham responsabilidades no processo decisório, tem vantagens para a reposição da paz social, para o cumprimento das decisões e para a prevenção de novos conflitos. Todavia, na falta de actualização e de regulamentação da lei dos tribunais comunitários e na ausência de acções de formação, de mecanismos de acompanhamento e de controlo, as dinâmicas locais e o perfil dos juízes vão determinando, por si, as possibilidades de actuação daqueles tribunais, no que respeita aos procedimentos, à qualidade das decisões e respectiva eficácia. Quanto à qualidade das decisões, se há exemplos positivos de respeito pelos direitos dos cidadãos, como acontece no tribunal comunitário de Hulene “B” (José e Espírito Santo, 2009), outros há em que o tribunal privilegia a ameaça e a utilização da força para a resolução de conflitos, como foi observado no tribunal comunitário de Inhagoia “B” (José e Araújo, 2004). Mas em relação a generalidade dos tribunais comunitários, colocam-se especiais problemas relativos à aplicação de taxas ou sanções pecuniárias. Na maior parte dos casos, os utentes pagam determinado valor para a apresentação da queixa e, numa fase posterior, efectuam outros pagamentos a título de taxa ou imposto de justiça e de multa (neste caso, se entretanto lhes for aplicada uma pena pecuniária). A cobrança de valores nos tribunais comunitários está relacionada com o facto de, por um lado, não serem financiados pelo Estado (ficando sob a responsabilidade exclusiva dos juízes a busca de fundos para o funcionamento básico); e, por outro lado, por não haver qualquer acompanhamento da actividade daquelas instâncias de resolução de conflitos. A verdade é que esta realidade acarreta algumas suspeições em relação aos tribunais comunitários, uma vez que acabam por limitar o acesso à justiça, sobretudo por parte dos cidadãos mais carenciados. Outra questão importante que se coloca em relação aos tribunais comunitários é o o facto de saber se poderão recorrer à força policial para fazer cumprir as suas decisões ou para assegurar que as partes compareçam ao tribunal. 17 A anteproposta de lei orgânica dos tribunais comunitários apresentada pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária à UTREL vai no sentido de reconhecer àqueles tribunais o recurso à força coactiva, ao afirmar, por um lado, que “as decisões dos tribunais comunitários têm o mesmo valor das decisões proferidas pelos tribunais judiciais e são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos e entidades, públicas e privadas” (art. 7.º) e, por outro lado, que “quando a decisão do tribunal comunitário não seja voluntariamente cumprida, a parte lesada pode requerer ao tribunal que a mande cumprir” (art. 43.º, 1).7 É certo que com esta proposta legislativa pretende-se reforçar o reconhecimento institucional dos tribunais comunitários e evitar o seu esvaziamento. Contudo, ela só poderá ser produtiva se forem postos em prática mecanismos de acompanhamento e de supervisão dos tribunais comunitários, acautelando-se o risco do uso indiscriminado da força. Na ausência desses mecanismos, o que acontece actualmente é que tudo dependerá exclusivamente do bom senso ou da vontade dos juízes. No caso do tribunal comunitário de Hulene “B”, embora houvesse ameaças de recurso à polícia, a verdade é que, durante o tempo de observação, não vimos um único caso em que os juízes efectivamente a utilizassem. De qualquer modo, a ameaça, por si só, também pode ser um importante factor de coacção, podendo constranger as pessoas a comparecerem ao tribunal contra a sua vontade, mesmo quando estamos perante conflitos de natureza familiar. Por esta via, prejudicam-se as potencialidades dos tribunais comunitários, deixando estes de cumprir satisfatoriamente a função para a qual foram criados: julgar de acordo com o bom senso, a equidade e com a justiça, caso não seja possível a reconciliação das partes. V. Evolução do movimento processual: o que nos dizem os números? O problema da eficiência dos tribunais é uma das questões mais bicudas do sistema de administração da justiça. Aliás, aumentar a eficiência e celeridade na provisão dos serviços de justiça é um dos objectivos específicos do PARPA II. Vejamos o que nos dizem os números relativos 7 Ver a anteproposta de lei na página http://www.utrel.gov.mz/IndexAssunto.htm (página acedida no dia 12 de Agosto de 2009). 18 ao movimento processual dos tribunais nos diferentes escalões.8 1. Tribunal Supremo O número de processos que sobe em recurso para o Tribunal Supremo continua a ser muito baixo, oscilando, de 2004 à 2008, entre 407 e 626 processos, representando cerca de 1% do total dos casos decididos nos tribunais provinciais. Contudo, o número de processos pendentes cresce todos os anos (excepto em 2007 que teve uma ligeiríssima descida), revelando que o desempenho daquele tribunal tem sido muito fraco. Gráfico n.º 1 Movimento Processual Geral do Tribunal Supremo Estes dados permitem-nos formular algumas hipóteses: as decisões dos tribunais de província são aceites pela esmagadora maioria das partes perdedoras, abstendo-se, por isso, de recorrer; os cidadãos não sabem manusear os mecanismos processual relativos aos recursos; a indisponibilidade de advogados limita o direito de recurso; face aos custos económicos e sociais do recursos cidadãos os cidadãos preferem não recorrer; 8 a morosidade processual desincentiva o recurso. Os dados foram retirados das estatísticas judiciais, publicadas pelo Departamento de Informação Judicial e Estatística do Tribunal Supremo. 19 Em termos globais o desempenho das secções cíveis e laborais do Tribunal Supremo é maior, contando com mais processos julgados que as criminais. Contudo, em termos de eficiência, o desempenho das duas jurisdições não é satisfatório, não satisfazendo cerca de 70% da procura.9 Gráfico n.º2 Desempenho das Secções do Tribunal Supremo 2. Tribunais Judiciais de Província O número de processos entrados nos tribunais judiciais de província tem aumentado todos os anos. Nos últimos cinco anos os tribunais de província têm vindo a aumentar consideravelmente o número de processos findos, tendendo, em princípio, a reverter o cenário que dos anos anteriores. 9 Dispomos de dados discriminados por secções apenas até ao ano 2006. 20 Gráfico n.º 3 Movimento Processual Geral dos Tribunais Judiciais de Província Verificamos que os processos pendentes diminuíram em cerca de 40%, entre os anos 2004 e 2007, nos quais foram contabilizados 101.187 e 61.617 pendentes, respectivamente. Trata-se de um registo assinalável, embora os números suscitem algumas observações. Tanto na jurisdição cível e labora, como na criminal, uma parte considerável dos processos findou “por outros motivos” que não seja uma sentença ou despacho com valor de sentença. Por exemplo, em 2006, dos 55.392 processos findos, 27.810 (correspondente a cerca de 50%) terminou “por outros motivos”. Desse número, 12.475 são processos cíveis; e 15.335 são criminais. Tratando-se de processos cíveis, “outros motivos” poderá significar os casos em que há lugar à extinção da instância por falta de impulso processual das partes. Como se sabe, na jurisdição civil os tribunais são fundamentalmente reactivos, isto é, na maioria dos casos, a sua acção depende da iniciativa das partes. Ainda assim, coloca-se a questão de saber porque motivo as partes deixam de comparecer ao tribunal, depois de intentada a acção. Só um estudo aprofundado sobre esta questão dar-nos-ia as respostas certas. De qualquer modo, é possível avançar algumas hipóteses muito provisórias: as partes perdem interesse na discussão do caso no tribunal porque encontraram uma solução extrajudicial para o problema; as partes perdem interesse na causa porque o tribunal é moroso; a falta de advogados ou a deficiente representação forense limita as possibilidades 21 de dar seguimento ao processo os tribunais impedem ou dificultam o andamento do processo à margem da lei. No caso de processos-crime, a situação é diferente. Na maior parte dos casos findos “por outros motivos” refere-se às situações de extinção do procedimento criminal por prescrição. Neste caso, os processos findam devido à inércia ou incapacidade dos tribunais em resolver os casos. Já em 2002, o Tribunal Supremo fizera um levantamento da situação dos processos na cidade de Maputo. Dessa iniciativa que passou pela audição dos funcionários e de alguns magistrados e, ainda, pela contagem física dos processos, resultou que a situação real dos tribunais era completamente diferente da que era apresentada nos relatórios e nos mapas de movimento processual. O Tribunal Supremo constatou que a distribuição manipulou os dados estatísticos; alguns processos estavam perdidos ou danificados devido ao mau estado de conservação em que se encontravam; outros processos ficaram definitivamente parados depois da entrada em funcionamento de mais tribunais nos distritos urbanos; muitos processos de transgressão foram findos com fundamento em prescrição pelo Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, mesmo depois da entrada em funcionamento do tribunal de polícia, competente para julgar aqueles casos; etc. Não temos motivos para supor que estas situações permanecem. Contudo, entendemos que seria importante fazer um estudo sobre a situação dos processos e os motivos pelos quais findam. Se olharmos para alguns exemplos, perceberemos que os números são de alcance quase impossível, a não ser que algo de anormal ocorra. Em 2006, no Tribunal de Tete findaram “por outros motivos” 14.445 processos; na Zambézia 5.985 processos; em Nampula 2.659; em Sofala 2.135. Ainda assim, e apesar da pendência tender a baixar, o desempenho dos tribunais de província ainda está muito aquém da demanda, ficando por satisfazer perto de 60% da procura, pelo menos até ao ano 2006.10 10 Dispomos de dados discriminados por jurisdição apenas de dados até ao ano 2006. 22 Gráfico n.º 4 Desempenho dos Tribunais Judiciais de Província Postas estas observações, uma pergunta geral que se impõe: será que atrás dos números escondese a incapacidade dos tribunais e uma grave limitação do acesso à justiça por parte dos cidadãos? 3. Tribunais Judiciais de Distrito Os dados disponíveis sobre os tribunais judiciais de distrito não permitem fazer um acompanhamento rigoroso da evolução do movimento processual. Os dados sugerem que os valores aumentam em função do número de tribunais que disponibilizam a informação. Em 2005 apenas 80 tribunais enviaram os mapas do movimento processual ao Tribunal Supremo. No ano seguinte, o número subiu para 108 tribunais, tendo baixado para 107 em 2007.11 Também não é possível avançar exactamente que tribunais forneceram os mapas naqueles anos. Os dados de que dispomos são, no entanto, indicativos do que estará a acontecer nos tribunais judiciais de distrito. 11 Nos anuários estatísticos publicados pelo Tribunal Supremo apelava-se a uma maior adesão dos tribunais judiciais de distrito no fornecimento de dados. 23 Gráfico n.º 5 Movimento Processual Geral dos Tribunais Judiciais de Distrito O gráfico mostra-nos que os processos entrados têm aumentado nos tribunais judiciais de distrito, tendo subido em cerca de 30% de 2005 a 2007. Embora os processos findos estejam a subir, o número de processos pendentes estabilizou em cerca de 10 mil. Significa que há ainda um enorme “passivo” vindo dos anteriores que é necessário ultrapassar. Como vimos, a nova lei da organização judiciária alargou muito as competências dos tribunais de distrito. Nessa medida, é previsível que nos próximos anos os processos entrados aumentem consideravelmente, uma vez que serão desviados para aqueles tribunais muitos dos processos que até 2007 eram da competência dos tribunais de província. Se, por um lado, não houver um reforço substancial dos tribunais de distrito (também nas procuradorias, na polícia, etc.) em termos de recursos humanos e condições de trabalho; e, por outro lado, não houver um investimento sério nas instâncias alternativas (não judiciais) de resolução de conflitos, poderemos assistir a um aumento exponencial dos processos pendentes e à ruptura do sistema de administração da justiça à partir da base. 24 VI. Patrocínio Judiciário 1. O sistema de assistência jurídica e judiciária A Constituição da República de Moçambique para além de garantir o acesso de todos os cidadãos aos tribunais e de garantir o direito de defesa dos arguidos, prescreve que “deve ser assegurada a adequada assistência jurídica e patrocínio judicial” aos arguidos que, por razões económicas, não possa constituir advogado (artigos 62.º e 70.º). Um dos objectivos específicos do PARPA II, na área da justiça e legalidade, consiste precisamente em garantir a assistência jurídica e a protecção dos cidadãos mais vulneráveis. Para além da questão da cobertura territorial (que veremos no subponto seguinte), a concretização deste objectivo depende principalmente da forma como estão estruturados os serviços de assistência jurídica e judiciária. Essa estruturação evoluiu em função das transformações políticas introduzidas em Moçambique desde a independência nacional. Numa primeira fase, em consonância com o contexto político vigente, foi proibido em Moçambique o exercício da advocacia e das funções de consultoria jurídica, solicitadoria, procuradoria judicial ou extrajudicial, a título privado. Foi então criado o Serviço Nacional de Consulta e Assistência Jurídica (SNCAJ), na dependência da Procuradoria-Geral da República, que devia cumprir aquelas funções12. Dez anos depois, foi criado, em substituição do SNCAJ, o Instituto Nacional de Assistência Jurídica (INAJ), subordinado ao Ministério da Justiça.13 Só os membros do INAJ podiam exercer o mandato judicial ou consulta jurídica. No âmbito do INAJ, estavam previstas três categorias de defensores, com diferentes competências: advogados com licenciatura em direito; técnicos jurídicos com bacharelato em direito; assistentes jurídicos habilitados com cursos de formação específica. Por força da Constituição de 1990 que introduziu reformas políticas e económicas profundas em Moçambique, no sector da administração da justiça, para além das transformações na orgânica dos tribunais, deixou de ser proibido o exercício privado da advocacia. Desde então, o sistema de representação de interesses passou a ser feito por duas vias complementares: através do Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ), em substituição do INAJ; e por intermédio da Ordem dos 12 O Decreto-Lei nº 4/75, de 16 de Agosto. 13 O IPAJ foi criado pela Lei n.º 3/86, de 16 de Abril. O estatuto orgânico foi aprovado pelo Decreto n.º 8/86, de 30 de Dezembro. 25 Advogados de Moçambique (OAM).14 O IPAJ é uma instituição do Estado, subordinada ao Ministério da Justiça, que visa garantir a concretização do direito de defesa, proporcionando ao cidadão economicamente desprotegido, o patrocínio judiciário e a assistência jurídica de que carecer. Os serviços prestados pelo IPAJ são gratuitos, devendo o Estado assegurar a remuneração dos respectivos membros. Para além do patrocínio judiciário, uma das atribuições mais importantes do IPAJ é “participar no estudo e divulgação das leis e promover o respeito pela legalidade”.15 O Estado reconhece que o conhecimento dos direitos é um requisito fundamental do acesso à justiça, podendo condicionar o acesso aos tribunais e o exercício dos direitos. São membros do IPAJ os técnicos e assistentes jurídicos nele inscritos. Os técnicos jurídicos são aqueles que tenham frequência da faculdade de direito e hajam sido aprovados em cursos realizados pelo IPAJ. Assistentes são aqueles que estejam habilitados em cursos de formação, reconhecidos pelo Ministério da Justiça. Desta distinção deriva uma diferença quanto ao tipo de processos em que cada um pode intervir, sendo reconhecido aos técnicos capacidade para intervir em processos mais complexos. Contudo, ambos poderão exercer o patrocínio nas mesmas condições que os advogados, desde que na respectiva área territorial não existam advogados suficientes. Os membros do IPAJ que exercem a actividade em obediência a escalas de serviço estabelecidas na lei, encontrando-se ao abrigo do poder disciplinar exercido pela direcção do IPAJ.16 A Ordem do Advogados é um órgão representativo e de disciplina dos licenciados em direito que exercem a advocacia. Cabe igualmente à OAM o cumprimento do serviço público de assistência e patrocínio judiciário, por via de três caminhos: os advogados podem livremente oferecer-se para patrocinar uma causa; o serviço de assistência jurídica ou o juiz pode nomear o advogado para representar em tribunal determinada pessoa que não tenha condições para pagar os serviços privados de advocacia, não podendo essa nomeação ser recusada, salvo justo impedimento; durante o período de dois anos de estágio. 14 O IPAJ foi criado pela Lei n.º 6/94, de 13 de Setembro. O estudo do IPAJ foi aprovado pelo Decreto n.º 54/95, de 13 de Dezembro. A OAM foi criada pela Lei n.º 7/94, de 14 de Setembro, que também aprova o respectivo estatuto. 15 Artigo 3.º do Decreto n.º 54/95, de 24 de Janeiro. 16 Ver Decreto n.º 54/95, de 24 de Janeiro. 26 2. Cobertura territorial e a capacidade de resposta O IPAJ conta actualmente com 89 membros, dos quais um é mestrado, 17 são técnicos jurídicos e 71 são assistentes jurídicos. Estes profissionais estão repartidos em 11 delegações provinciais e 62 delegações distritais. Estas últimas cobrem, em regime ambulatório, mais 15 distritos. Apesar dos esforços para aumentar o número de “representações” nos distritos, a rede do IPAJ ainda é bastante limitada, abrangendo apenas 62,5% do território nacional (contando com os 15 distritos cobertos em regime ambulatório). Como resulta de uma avaliação interna do Governo, os números estão muito aquém do optimismo previsto no Plano Operativo do Plano Estratégico Integrado do Sector da Justiça, onde se indicava que até 2006 seriam implantadas 146 delegações em todo o país (Inspecção Geral de Finanças, 2009:29). Isto significa que o Estado está muito longe de assegurar a efectiva defesa da maior parte dos cidadãos e que se perpetua nos tribunais a prática de nomear ad hoc outras pessoas, normalmente funcionárias do tribunal. Deste modo, assegura-se a validade formal dos julgamentos, mas não se efectiva o direito de defesa. As dificuldades de expansão do IPAJ devem-se uma multiplicidade de factores: do ponto de vista histórico, as dificuldades do sector da administração da justiça não foram repartidas de igual modo por todas as instituições. Num contexto de carências de recursos humanos, quando comparada com outras instituições do sector, o IPAJ ficou, durante muitos anos, limitado a pouquíssimos membros e com uma formação bastante limitada; o quadro de pessoal do IPAJ ainda é bastante exíguo para as necessidades, contribuindo para que a maioria dos membros não tenha um vínculo formal com o Estado; apenas em 2008 é que o IPAJ passou a ser considerado uma unidade orçamental. Até aquele ano, não tinha autonomia para gerir os fundos do orçamento do Estado, estando dependente das alocações (que nem sempre se efectivavam de acordo com as previsões e expectativa) por parte do Departamento de Administração e Finanças do Ministério da Justiça; durante vários anos, o IPAJ não beneficiou de apoio directo por parte dos parceiros de cooperação. Apenas recentemente tem recebido no âmbito do projecto “acesso à justiça”, proveniente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e da União Europeia; 27 o IPAJ não desenvolveu nem fez parte de um programa sistemático de formação dos respectivos membros; as delegações do IPAJ não dispõem de instalações próprias, estando na sua maior parte dependentes do apoio dos governos provinciais e distritais; apenas recentemente (em 2007) foi elaborado o plano estratégico específico do IPAJ, no qual se traça uma perspectiva clara de desenvolvimento da instituição. Estes constrangimentos não só contribuem para uma fraca implantação territorial do IPAJ, como também para que a sua capacidade de resposta seja baixa e para que os membros e, por isso, a instituição não cumprido as funções para as quais foi criada: prestar assistência jurídica e judiciária gratuita aos cidadãos carenciados. Referimo-nos, em concreto, ao facto dos membros do IPAJ cobrarem honorários pelos serviços prestados. Esta situação pode assumir proporções alarmantes na medida em que, por um lado, os membros do IPAJ ao nível das províncias e dos distritos não estão sujeitos ao controlo directo da direcção e, por outro lado, a instituição não possui um programa de monitoria e avaliação das actividades. Aliás, a iniciativa (avançada em 2008) de condicionar a renovação do credenciamento dos assistentes e técnicos jurídicos à apresentação de relatórios trimestrais não produziu efeitos, tendo sido seguida por poucos membros (Marques e Pedroso, 2003; IGF, 2009:30). Há, contudo, duas experiências excepcionais de apoio e acompanhamento da actividade do IPAJ, nomeadamente nas províncias de Nampula e Cabo Delgado, onde os respectivos governos financiam as actividades, pagam subsídios aos técnicos e assistentes jurídicos, asseguram-lhes habitação e algumas condições de trabalho. Não é por acaso que seja nestas províncias onde a rede do IPAJ está melhor implantada, como veremos. Reconhecendo a importância das experiências de apoio jurídico aos cidadãos e a necessidade de maximizá-las em benefício do acesso à justiça, o IPAJ assinou acordos de cooperação, nos anos 2007 e 2008, respectivamente com o Centro de Assistência e Práticas Jurídicas (CAPJ) do Instituto Politécnico Universitário e com o Centro de Práticas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane (CPJ) e a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH). 28 Com o CAPJ foi elaborado e implementado um projecto de “assistência jurídica e judiciária de cidadãos em conflito com a lei” na cidade de Maputo que consistia num programa de apoio e informação jurídica aos cidadãos carenciados, especialmente os reclusos que não dispunham de condições para contratar um advogado e menores. O acordo com o CPJ e a LDH prevê que a primeira instituição se dedique à formação de assistentes jurídicos, ficando a cargo da segunda a selecção de candidatos para os cursos, a orientação do seu trabalho, o pagamento de salários e o controlo disciplinar dos assistentes. Ao IPAJ cabe o credenciamento e o acompanhamento das actividades dos assistentes. As iniciativas têm trazido resultados positivos, apesar persistirem alguns constrangimentos que resultam da deficiente articulação com o Ministério do Interior (não sendo autorizado o acesso dos estudantes do CAPJ nalgumas esquadras da polícia e na PIC), da carência de meios de transporte (sendo difícil a rápida deslocação dos estudantes para diferentes partes da cidade de Maputo) e da falta de recursos para o pagamento de subsídios de transporte e alimentação dos estudantes (IPAJ, 2008). Trata-se, pois, de parcerias que conduzem a um alargamento do patrocínio jurídico e judiciário em Moçambique e que significam a possibilidade de prestação de serviço público estatal e não estatal, em benefício dos cidadãos. Quanto à Ordem dos Advogados, em 2005 contava com 248 membros inscritos, número ainda bastante baixo para as necessidades do país. A maior parte dos advogados (mais de 90%) tem o domicílio profissional na cidade de Maputo, onde a procura e a capacidade de pagar os serviços jurídicos é maior (Ordem dos Advogados de Moçambique, 2005). É sobejamente sabido que os custos dos serviços de advocacia são proibitivos, muitas vezes calculados com base à hora de trabalho. A Ordem dos Advogados não dissipou ainda a imagem de uma organização corporativa tradicional, preocupada mais com o controlo do acesso à instituição por parte dos licenciados novos e dos advogados estrangeiros do que com o seu exercício e com a necessidade de cumprimento de um dever legal e ético. O regime de estágio não está ainda devidamente estruturado. A Ordem tem um controlo insignificante do trabalho dos estagiários, dependendo estes sobretudo do acompanhamento feito pelos respectivos patronos. A relação dos estagiários com a Ordem pode resumir-se na mera apresentação de peças processuais e do comprovativo de intervenção em determinado número de 29 defesas oficiosas. Contudo, essa intervenção nem sempre estará relacionada com o apoio a cidadãos carenciados. Resumindo, num contexto em que o IPAJ atravessa ainda sérias dificuldades institucionais, em que custos de contratação de advogado são elevadíssimos, em que a Ordem do Advogados cumpre o seu papel de forma deficitária, para os cidadãos mais pobres não há alternativas para beneficiar dos serviços públicos de patrocínio jurídico e judiciário, tornando-se, assim, precário o acesso à justiça. VII. Reforma legal, celeridade processual e protecção de grupos vulneráveis A reforma legal é uma actividade transversal da reforma da administração da justiça, uma das componentes da reforma do sector público. A execução dos programas de reforma legal está a cargo da Unidade Técnica da Reforma Legal (UTREL) que é um órgão técnico permanente que tem como objectivos assegurar a planificação integrada, a coordenação, a articulação, a execução e acompanhamento dos programas e projectos da Reforma.17 A UTREL é apoiada administrativamente pelo Ministério da Justiça, subordina-se à Comissão Interministerial da Reforma Legal e tem como funções: identificar e promover as medidas legislativas decorrentes da Constituição da República; identificar e promover a reforma da legislação que se mostra desajustada à realidade socio-económica de Moçambique; promover a actualização permanente da legislação em vigor tornando-a simples, acessível e eficaz na sua aplicação; identificar e promover as reformas legislativas necessárias visando garantir a simplificação, celeridade e rigor do processo judicial; promover a adopção de medidas legislativas no âmbito do acesso à justiça pelos cidadãos e demais entidades; identificar e promover as medidas legislativas indispensáveis 1ª reforma do sistema prisional; identificar e promover a reforma da legislação e a simplificação dos procedimentos no sentido de facilitar o acesso a actividade económica, empresarial e ao 17 A UTREL foi criada pelo Decreto n.º 22/2002, de 27 de Agosto. 30 investimento; identificar e promover medidas legislativas que facilitem e assegurem o desenvolvimento económico e social equilibrado entre as diversas zonas geográficas do país; promover a desburocratização dos actos e procedimentos notariais e dos registos. Enquanto actividade transversal, a reforma legal é importante para a elaboração dos instrumentos normativos necessários para alcançar os objectivos previstos no PARPA. Interessa-nos neste trabalho especialmente verificar que reformas legislativas foram introduzidas no sentido de contribuir para a celeridade processual e para a protecção dos grupos vulneráveis. A questão da lentidão dos tribunais está sempre presente na opinião pública e nas discussões sobre justiça. Como se sabe, a morosidade processual contribui para a erosão dos elementos de prova, demora (e, por vezes, a perda de interesse) na reparação do dano sofrido, agudização dos conflitos, estrangulamento do comércio jurídico, agravamento dos custos de funcionamento das instituições, aumento da desconfiança em relação aos tribunais e desincentivo ao recurso aos tribunais, em suma, contribui para a ineficiência e descredibilização do sistema de administração da justiça. A actividade processual é, por isso, uma das componentes importantes do acesso à justiça, a par da protecção efectiva (no sentido de substantiva) dos direitos dos cidadãos. Depois da independência, Moçambique “herdou” a legislação processual portuguesa, obviamente prevista para outro contexto social e organizacional. No geral, trata-se de uma estrutura processual muito complexa, burocratizada e baseada quase exclusivamente na adjudicação como forma de resolução de conflitos, na qual não se faz uso sistemático em todas as jurisdições da conciliação e mediação. Assim, tem vindo a ser reclamada uma reforma profunda do direito adjectivo moçambicano. Nesse esforço de renovação da legislação processual, destacamos as reformas ao Código de Processo Civil em 2005 e 2009, esta última resultante sobretudo da necessidade de harmonização daquela lei processual com a lei da organização judiciária e com o Estatuto dos magistrados do Ministério Público. Ao longo dos anos têm sido introduzidas alterações pontuais (e muito ligeiras) nas jurisdições penal e laboral. Contudo, é ainda necessário transformar radicalmente o regime processual naquelas jurisdições, não só de modo a harmonizá-las com a evolução do direito e da orgânica das 31 instituições de justiça, como também para assegurar a celeridade e maior eficácia processual, sem naturalmente descurar a segurança e a protecção dos direitos dos cidadãos. Há legislação que, embora não seja adjectiva, tem influências directas para o acesso à justiça, sobretudo para os cidadãos com menores recursos económicos. É o caso do código das custas. O actual sistema de custas judiciais é entendido no sector como um dos factores de constrangimento e de coibição do acesso à justiça (IGF, 2009: 235). Aliás, a própria UTREL reconhece que a aplicação do actual regime de custas acarreta dificuldades que se traduzem em erros graves de liquidação e em práticas burocráticas baseadas em critérios diferenciados no cálculo de preparos.18 Além do mais, em nome da igualdade material dos cidadãos, seria necessário esclarecer e operacionalizar o regime de isenções de pagamento de taxas e impostos de justiça. Para além da celeridade dos tribunais na resolução dos conflitos, um dos compromissos do PARPA II consiste na protecção de cidadãos vulneráveis, por um lado, garantindo-lhes assistência jurídica e, por outro lado, aprovando legislação específica que responda à situações concretas de vulnerabilidade. Destacamos as leis aprovadas: Lei sobre Tráfico de Pessoas, em particular mulheres e crianças (Lei n.º 6/2008, de 9 de Julho); Lei da Promoção e Protecção dos Direitos da Criança (Lei n.º 7/2008, de 9 de Julho); Lei da Organização Tutelar dos Menores (Lei n.º 8/2008, de 9 de Julho); Lei Contra a Violência Doméstica (que ainda não foi promulgada. Esta lei foi da iniciativa da Assembleia da República). Trata-se leis que pretendem combater uma vulnerabilidade social e económica. Ainda neste âmbito, parece-nos crucial avançar com a regulamentação (cujo prazo era de 1 ano) prevista na Lei de Promoção Protecção dos Direitos da Criança e aprovar outras leis que, ainda em primeira linha pretendam proteger situações de vulnerabilidade, acabam por alcançar esse objectivo, como certamente acontecerá com a lei de sucessões. A área das sucessões, regulada até agora pelo Código Civil de 1966, é ainda uma zona de penumbra em Moçambique que contribui para a sistemática violação dos direitos das mulheres (WLSA, 1994). O regime das sucessões deverá estar harmonizado com a lei de família. 18 Apud IGF, 2009:235. 32 Pensamos que é possível alargar o entendimento da “vulnerabilidade” para além das questões económicas e sociais, incluindo pessoas que careçam de especial protecção jurídico-processual por parte do Estado. Nessa medida, é importante a aprovação ou revisão das seguintes leis que, na verdade, já estão na agenda da reforma legal: Código Penal; Código Processual Penal; Lei sobre a Extradição; Lei sobre a Protecção de Testemunhas, Declarantes e Vítimas; Lei sobre o Habeas Corpus; Estatuto do Corpo da Guarda Prisional. Os ritmos da reforma legal em regra são necessariamente lentos, exigindo longos períodos de estudo, de debate e de concertação de posições entre os profissionais e as diversas instituições envolvidas. Uma definição clara das prioridades (e calendarização) da reforma e, na medida do possível, a colocação de corpo técnico alargado e multidisciplinar ao serviço exclusivo da UTREL poderá reduzir os tempos da elaboração e aprovação das leis. VIII. A formação dos magistrados 1. Os percursos da formação de magistrados O percurso da formação de magistrados está directamente ligado à dinâmica das instituições do Estado moçambicano. Após da independência nacional, impunham-se dois desafios complementares ao sistema de administração da justiça, nomeadamente, a construção de um sistema judiciário genuíno, de base popular, e a formação de magistrados. Ao Ministério da Justiça, enquanto órgão tutelar dos tribunais, coube a concepção, organização e direcção dos cursos de formação de magistrados distritais. Dadas as condições do momento, os cursos foram intensivos, curta duração (seis meses, em média). As principais fontes de recrutamento dos candidatos foram os juízes eleitos e os funcionários judiciais. Numa fase inicial exigia-se que estes tivessem habilitações literárias mínimas de 6ª classe. O corpo docente era recrutado entre magistrados em serviço no Tribunal da Cidade de Maputo, outros quadros do Ministério da Justiça e professores da Faculdade de Direito da UEM (CFJJ, 2000). 33 A separação de poderes introduzida na Constituição de 1990 não só produziu transformações na organização do Estado, como também no processo de formação de magistrados. As iniciativas de formação passaram a ser desenvolvidas separadamente por cada uma das instituições do sector de justiça (Ministério da Justiça, Tribunal Supremo e Procuradoria Geral da República), passando a recrutar o respectivo corpo docente e a definir unilateralmente os conteúdos das áreas temáticas, as metodologias, os critérios de selecção dos candidatos, etc. A necessidade de fazer face à carência de quadros justificou que a partir de certa altura se tenha “descentralizado” a formação, cabendo aos tribunais de província a iniciativa de recrutar candidatos e organizar e dirigir os cursos localmente. Estas iniciativas, no seu conjunto, contribuíram para uma maior disparidade dos resultados da formação, evidenciando-se os desníveis entre os quadros das diversas instituições. Existindo critérios de selecção bastante amplos, alargando-se as possibilidades de ingresso, cada instituição passou a comportar um perfil de quadros bastante heterogéneo. Por exemplo, do inquérito realizado pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária, destinado a fazer o levantamento das necessidades de formação, ressaltou que a escolaridade dos magistrados judiciais e do Ministério Público oscilava entre a 8ª classe e a licenciatura. No mesmo inquérito, constatou-se que a grande maioria dos magistrados passou por, pelo menos, um curso de formação. Contudo, a duração dos cursos é bastante variada, situando-se entre um e nove meses (Brito, 2000). Isto pode ser um indício bastante forte sobre os desequilíbrios dos resultados de formação de que falamos. A realidade mudou muito, mas o sistema ainda está longe de uniformizar o perfil dos seus profissionais. De acordo com os inquéritos aos magistrados realizados pelo CFJJ, dos 163 juízes e 131 procuradores inquiridos, apenas cerca de 50% frequentou ou concluiu o ensino superior. Os restantes têm o nível básico e frequentaram um curso de direito intensivo, de curta duração (CFJJ, 2006; 2006a). Até a criação do CFJJ,19 as acções de formação foram, pois, reduzidas (sendo insuficiente o número de cursos organizados e de candidatos ingressados para cobrir as necessidades de pessoal), 19 O CFJJ foi criado pelo Decreto n.º 34/97, de 21 de Outubro. 34 fragmentárias (assumindo cada uma das instituições, isoladamente, a responsabilidade pelas mesmas e realizando-as em tempos diversos, consoante as disponibilidades orçamentais) e com resultados práticos muito limitados (uma vez que a qualidade da formação foi prejudicada pela necessidade urgente de preencher os quadros dos tribunais). O CFJJ veio reverter esta situação. A concentração das responsabilidades de formação de uma variedade de profissionais (magistrados judiciais e do Ministério Público, assistentes e técnicos jurídicos, conservadores e notários, funcionários dos tribunais e das procuradorias), embora traga algumas dificuldades de gestão, tem a vantagem de contribuir para a harmonização dos programas (conteúdos, metodologias, duração, perfil dos formadores e dos formandos, etc.). Desde o início das actividades do Centro (em 1999) até ao final do ano 2007 foram formados 93 e 62 novos juízes e procuradores, respectivamente. Os números são bastante expressivos, revelam um enorme esforço para ultrapassar o problema de carência de magistrados no país. No entanto, continuam a colocar-se alguns desafios ao processo de formação. Como sabemos, o CFJJ é uma instituição de formação profissional. Isto é, uma formação direccionada para as necessidades de exercício das profissões de juiz e de procurador. Esta constatação pressupõe saber que tipo de profissionais se pretende para as instituições de administração da justiça. Esta (e outras interrogações que poderiam ser postas), tem como pano de fundo o problema de se saber que tipo de justiça se pretende edificar em Moçambique, qual o papel das instituições formais e informais na construção de um modelo de justiça democrático, acessível, inclusivo, célere e transparente. Não estando ainda aprovada a Visão da administração da justiça, parece-nos significar que ainda não estão criados os consensos sobre aquelas questões. Há quem, no entanto, com algum fundamento, faça uma interpretação mais pessimista, ao se protelar a aprovação da Visão significa falta de vontade política para a adopção de políticas e acções harmonizadas (OSISA, 2006:26-27). Seja como for, há realidades estruturais que deverão ser tomadas em conta nesse processo de construção de consensos sobre o sector e que, consequentemente, se colocam como desafios para a formação de magistrados. 35 O primeiro desafio (que não é necessariamente o mais importante) que se impõe relaciona-se com as exigências do actual contexto da globalização neoliberal. Este processo, por um lado, traz consigo uma nova roupagem no tipo de conflitualidade, exigindo conhecimentos técnico-jurídicos cada vez mais especializados e uma resposta célere e eficaz por parte dos tribunais. Por outro, ao ser um processo produtor de “novas” formas de exclusão social e de precarização dos direitos, sobretudo os direitos de segunda e terceira geração, coloca-se ao judiciário o particular desafio de ser capaz de contribuir para exercício dos direitos e para uma justa e harmoniosa convivência social, como, aliás, afirma a Constituição da República. O segundo desafio resulta do reconhecimento constitucional do pluralismo jurídico, enquanto uma das formas em que se manifesta o multiculturalismo moçambicano. Na verdade, o Estado não possui o monopólio da administração da justiça, antes reparte essa tarefa com outros actores sociais. Trata-se de instâncias comunitárias de resolução de conflitos cuja fonte de legitimidade é variada. Embora existindo várias instâncias “informais” criadas (ou reconhecidas) pelo Estado, a verdade é que no que respeita à inserção institucional, à composição e formas de funcionamento, essas instâncias em muito se assemelham com as instâncias de origem comunitária. Englobamolas, por isso, no grupo de instâncias comunitárias. Alguns exemplos: chefes de quarteirão, secretários de bairro, autoridades tradicionais, igrejas, curandeiros, grupo dinamizador e tribunais comunitários. A par destas estruturas, as associações de defesa dos direitos humanos têm assumido um protagonismo crescente como instâncias de resolução de conflitos, de prestação de serviços de representação jurídica e de encaminhamento dos cidadãos. Desta realidade social deriva, então, a necessidade de construir modelos de formação capazes de contribuir para que os tribunais sejam instituições sócio-culturalmente situadas e que, reconhecendo e valorizando a existência de uma pluralidade de ordenamentos e concepções jurídicas, promovam um diálogo permanente, renovador e emancipatório com as comunidades em que se inserem. Como se tem afirmado, esta é uma das condições para a construção de uma justiça participada (isto é, cooperante, sendo a sua construção assumida pela colectividade com a qual interage sob diversas maneiras); plural (respeitadora da diversidade social, política e cultural do país); emancipatória (servindo a igualdade material, a cidadania); comunicativa e acessível, procurando 36 os tribunais tornar acessíveis e compreendidas as suas decisões, as respectivas motivações (Leandro, 2000). Do que dissemos surge um terceiro desafio que é de ordem metodológica. O programa curricular dos cursos de ingresso às magistraturas engloba várias temáticas, a saber, jurisdição civil, jurisdição de família e menores, jurisdição laboral, jurisdição penal, direito judiciário, jurisdição do ambiente e dos recursos naturais, constituição e direitos fundamentais, e sociologia judiciária. Não será suficiente a inclusão de um leque mais ou menos alargado (e diversificado) de áreas temáticas, devendo fazer-se um esforço para conferir-lhes uma unidade sistémica, isto é, para assegurar a interligação, a lógica interna e a coerência dos conteúdos. Numa palavra, é imprescindível privilegiar a transdisciplinaridade, subvertendo as fictícias fronteiras temáticas construídas pelo positivismo jurídico. É importante referir que este ano será implementado no CFJJ o primeiro programa de monitoria e avaliação que, para além de servir para avaliar os impactos da formação, será um dos instrumentos para a concretização da reforma curricular da instituição. Esperemos que entretanto seja aprovada a Visão do sector para que haja maior consonância entre a formação e os modelos de justiça que sonha para o país. 2. Os dilemas da colocação de magistrados Compete aos conselhos superiores das magistraturas a colocação dos magistrados nos tribunais e procuradorias, tanto os que ingressam nas carreiras, como os que estão em actividade. Em relação ao primeiro grupo, nem sempre tem sido possível assegurar uma rápida colocação de magistrados. Pressionados pelas exigências da vida e pelo mercado de trabalho, alguns candidatos chegaram a desistir da magistratura, abraçando outras carreiras. Embora a situação tenda a melhorar, estando inclusivamente a ser ultrapassada especificamente por parte da magistratura do Ministério Público, a verdade é que continua a ser uma constante preocupação, na medida em que se pretende maximizar os recursos e assegurar a motivação dos magistrados. Por exemplo, passados mais de cinco meses desde o término do curso de ingresso de 2008, os formandos que optaram pela magistratura judicial ainda não começaram a exercer a função, apesar de terem sido formalmente colocados nos tribunais. 37 Os atrasos reflectem as deficiências de planificação no sector. É importante que exista uma planificação clara e coerente sobre o alargamento da rede judiciária e as necessidades em termos de recursos humanos, materiais, instalações, condições de habitação, etc. Que tribunais entram em funcionamento em cada ano? Quantas e quais secções terá? Que secções novas serão criadas nos tribunais em funcionamento? Quantos e que tipo de magistrados serão colocados nesses tribunais ou secções? Quantos e que funcionários são necessários? Como serão “recrutados” os funcionários? Há cabimento orçamental para os novos ingressos? Há condições de habitação? Estão asseguradas as condições básicas de trabalho? Estas são algumas das questões que devem ser colocadas para que haja maior articulação entre os processos de formação e a colocação de magistrados. Como vimos no ponto anterior, o actual contexto político, económico e social exige do poder judiciário uma resposta diferenciada, em função do tipo de procura. Uma das respostas institucionais tem sido a criação ou extensão de secções especializadas. Dada a pressão que existe sobre o sistema de administração da justiça no sentido de responder rapidamente às solicitações, nem sempre a colocação de magistrados em novas secções ou tribunais de competência especializada é precedida de uma formação específica, direccionada para o tipo de problemas que serão chamados a resolver. É certo que neste caso, tratando-se de magistrados em funções, a experiência que detêm ajuda na adaptação ao novo contexto de trabalho, mas a formação é sempre indispensável. Este quadro geral sugere-nos que deverá haver maior trabalho em rede, procurando-se ajustar a formação às reais possibilidades de integração dos profissionais no sistema, às necessidades de acesso à justiça e de funcionamento dos tribunais e procuradorias. 38 Conclusões A organização judiciária é a pedra angular sobre a qual gravitam quase todas as questões relativas ao sistema de administração da justiça. A opção de fazer coincidir a divisão judicial com a divisão administrativa tem conduzido a um esforço gigantesco de extensão de tribunais judiciais em todos os distritos, independentemente das características de que disponham, da população habitante, do grau de desenvolvimento sócio-económico, das particularidades da procura sócio-jurídica. Significa que, a par dos tribunais deverão ser implantados em todos os distritos outras instituições que desempenham papel relevante na administração da justiça, nomeadamente as procuradorias, o IPAJ, a polícia de investigação criminal (dotados de laboratórios), as cadeias, os médicos legistas, etc. Esta ambição está longe de ser concretizada, havendo ainda muitos distritos que não dispõem de qualquer instituição “formal” de administração da justiça. Além do mais, embora a tendência seja mudar a situação, a implantação das instituições de administração da justiça em Moçambique não está harmonizada. Continuamos a encontrar no país distritos com tribunal em funcionamento, mas sem procuradoria nem IPAJ; distritos com procuradoria em funcionamento, mas sem tribunal nem IPAJ; distritos com tribunal e procuradoria, mas sem IPAJ; distritos com tribunal, com procuradoria coberta por acumulação, mas sem IPAJ; distritos com tribunal, mas cobertos pelo IPAJ e pela procuradoria em regime ambulatório. Vejamos o seguinte mapa da rede judiciária de Moçambique: 39 40 O mapa demonstra que para além da rede judiciária de Moçambique ser deficiente, não existe uma estratégia clara e concertada de implantação das instituições do sector da justiça. Esta desarticulação pode ser um factor condicionante do acesso à justiça. Outro aspecto relevante na organização judiciária prende-se com a criação de tribunais superiores de recurso. Funcionarão três tribunais superiores de recurso em todo o país, com competências para julgar os recursos das decisões dos tribunais de província. Como vimos, actualmente sobem para o Tribunal Supremo apenas cerca de 0,31% das decisões proferidas pelos tribunais de província. Não sendo previsível que o número de recursos suba estrondosamente, significa que a médio prazo os tribunais superiores de recurso, no seu conjunto, terão pouquíssimo trabalho e muito menos o Tribunal Supremo. Cremos, por isso, que os tribunais judiciais de distrito e os tribunais comunitários deveriam ser a prioridade do sistema. Ao reforçarse o topo do sistema, em detrimento da base (por onde ingressa a maior parte dos casos), os cidadãos continuam a estar longe do sistema de justiça e não se resolvem os problemas estruturais da justiça moçambicana. Esse distanciamento do sistema em relação aos cidadãos acentua-se se tivermos em conta o estado de abandono dos tribunais comunitários: desde 1992 que a lei que os cria não é actualizada; a mesma lei não foi regulamentada; não houve nenhum processo de renovação do corpo de juízes; os juízes em exercício não recebem nenhum salário ou subsídio por parte do Estado; os tribunais funcionam sem qualquer acompanhamento; o estado não disponibiliza as condições de trabalho; etc. Ainda assim, a experiência e vitalidade dos tribunais comunitários revelam a importância que assumem para os cidadãos, enquanto instâncias de referência para a manutenção da paz social. Nenhuma reforma da administração da justiça em Moçambique poderá responder satisfatoriamente aos problemas de acesso à justiça sem contemplar as instâncias comunitárias de resolução de conflitos, em particular os tribunais comunitários. Na verdade, tanto os tribunais judiciais, como as instâncias comunitárias, isoladamente, não poderão fornecer todas as soluções para o acesso à justiça. Será, antes, necessário encontrar pontes de diálogo e de articulação que permitam a construção de um sistema integrado, mais próximo dos cidadãos e célere, capaz, por 41 um lado, de interpretar correctamente os contextos políticos, económicos, sociais e culturais em que se insere, e, por outro lado, de satisfazer diferentes necessidades de tutela jurídica. Podemos, assim, concluir que ficou por concretizar uma das preocupações centrais do governo para área da justiça: repensar a organização jurídica e judiciária, tendo em conta a existência de uma multiplicidade de sistemas de administração da justiça (PARPA, parágrafo 257). O desempenho dos tribunais em diferentes escalões é diferenciado. O Tribunal Supremo continua a julgar muito pouco, progressivamente aumentando, desse modo, o número de processos pendentes. O Tribunal Supremo não se livrou, ainda, do epíteto por que é conhecido entre os magistrados e advogados: o cemitério de processos. A formação e colocação de novos magistrados, a introdução de metas de desempenho para os juízes, a monitoria do actividade dos juízes e as reformas processuais introduzidas (sobretudo no Código de Processo Civil), têm estimulado o aumento da produtividade dos tribunais. Os processos pendentes tendem a baixar. Há, contudo, que ter atenção para os seguintes aspectos: existência de eventuais diferenças de desempenho entre tribunais e entre secções do mesmo tribunal; evitar a tendência para julgar prioritariamente os processos mais simples e os que asseguraram maior participação emolumentar (de modo a cumprir com as metas), ficando os outros para trás, ainda que tenham entrado primeiro; necessidade de investigar o que estará na verdadeira em causa em relação aos processos que findam “por outros motivos”; o alargamento das competências dos tribunais judiciais de distrito exige que a base do sistema seja reforçada com mais profissionais (juízes, procuradores, polícias, assistentes e técnicos jurídicos; etc) e com melhores equipamentos, instalações e estruturas organizativas; necessidade de apostar de forma mais firme nos meios alternativos de resolução de conflitos. A resolução extrajudicial dos conflitos pode contribuir para aliviar os tribunais da pressão a que estão sujeitos (e que, em princípio, tenderá a subir). No entanto, há que ter as devidas cautelas para assegurar que as vantagens de resolução célere dos conflitos não signifique prejudicar os direitos elementares dos cidadãos. 42 O IPAJ tem crescido nos últimos anos, aumentando o número de delegações distritais. Os serviços públicos de assistência jurídica e judiciária têm sido alargados por força dos protocolos que o IPAJ assinou com escolas superiores de direito e com uma organização da sociedade civil. No âmbito desses protocolos, estas instituições prestam assistência jurídica gratuita aos cidadãos carenciados, cabendo ao IPAJ o seu credenciamento e a monitoria da actividade. Apesar dos avanços, o IPAJ enfrenta o desafio estrutural de conceber e executar uma estratégia consistente para, por um lado, garantir a continuidade dos técnicos e assistentes jurídicos na instituição e, por outro lado, assegurar que lhes seja paga uma remuneração para que, de facto, exerçam as suas funções sem cobrar honorários aos cidadãos. É importante também que haja articulação entre o IPAJ e a Ordem dos Advogados, sobretudo no que respeita à acção dos estagiários. Todavia, passados 15 anos desde a criação da Ordem o estágio não está estruturado e aquela instituição não contribui minimamente para o acesso à justiça por parte dos cidadãos mais pobres. Tendo presente o que temos vindo a mostrar, concluímos que em Moçambique o acesso à justiça seja muito selectivo. Por um lado pode-se afirmar que, embora não seja possível saber com exactidão o número de pessoas que se colocam nessa situação, uma parte considerável dos cidadãos, mesmo querendo, não tem como chegar aos tribunais judiciais. Por outro lado, a avaliar pelo volume de processos que entram nos tribunais mas que não são resolvidos, os níveis de procura não satisfeita ainda são enormes. Mas mais preocupante do que esta dura realidade, é não se perceber no sistema uma estratégia clara e concertada do rumo do sistema de administração da justiça para responder aos problemas de acesso à justiça. Os cidadãos mais pobres são, sem dúvidas, os mais prejudicados. 43 Referências Bibliográficas BRITO, Luís (2000). Inquérito aos magistrados judiciais e do ministério público. Maputo: CFJJ. CFJJ (2000). Notas sobre a formação jurídica e judiciária. Maputo: CFJJ. [Texto não publicado] CFJJ (2006). Inquérito aos magistrados judiciais. Maputo: CFJJ. [Relatório de investigação] CFJJ (2006a). 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O CIP interessa‐se concretamente pelas temáticas da descentralização e governação local, financiamento político e eleitoral, transparência fiscal, procurement, controlo social, oversight e anti‐corrupção, ajuda externa e dependência. O CIP é apoiado pelas seguintes entidades de cooperação internacional: Cooperação Suíça para o Desenvolvimento, DFID, Embaixadas da Dinamarca, Holanda, Noruega e Suécia CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA CENTER FOR PUBLIC INTEGRITY Boa Governação-Transparência-Integridade Good Governance-Transparency-Integrity Rua Frente de Libertação de Moçambique (ex-Pereira do Lago), 354, r/c. Tel: 00 258 21 492335 Fax:00 258 21 492340 Caixa Postal:3266 Email:[email protected] www.cip.org.mz Maputo-MOCAMBIQUE 46