1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS – CESA CENTRO DE HUMANIDADES – CH MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE – MAPPS MARIA ENIANA ARAÚJO GOMES PACHECO POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS A USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS: PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NO PROJETO CONSULTÓRIO DE RUA EM FORTALEZA, CEARÁ FORTALEZA - CE 2013 2 MARIA ENIANA ARAÚJO GOMES PACHECO POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS A USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS: PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NO PROJETO CONSULTÓRIO DE RUA EM FORTALEZA, CEARÁ Dissertação apresentada à Coordenação do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade – MAPPS da Universidade Estadual do Ceará – UECE, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. João Tadeu de Andrade. FORTALEZA - CE 2013 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios – CRB-3 / 919 P116p Pacheco, Maria Aniana Araújo Gomes Política de redução de danos a usuários de substâncias psicoativas: práticas terapêuticas no Projeto Consultório de Rua em Fortaleza, CE / Maria Aniana Araújo Gomes Pacheco. — 2013. CD-ROM. 143 f. ; il. (algumas color.) : 4 ¾ pol. “CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)”. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, Fortaleza, 2013. Área de Concentração: Políticas Públicas e Sociedade. Orientação: Prof. Dr. João Tadeu de Andrade. 1. Redução de danos. 2. Cuidado em saúde. 3. Projeto Consultório de Rua. Título. CDD: 362.1 4 5 A minha mãe, Zélia (in memoriam), ao meu pai, Chico, às minhas irmãs, Elidiana e Ana Paula, e, em especial, ao meu filho, Ênio Henrique, e esposo, Mário Henrique, porque somos realmente uns com os outros na vivência humana de cada dia! Ao ser psicóloga, como um instrumento de respeito e cuidado ao outro. 6 AGRADECIMENTOS Ao concluir este trabalho tenho muitas pessoas a quem agradecer, algumas das quais cuja nomeação é imprescindível. Por isso, com todo respeito e cuidado, destaco: João Tadeu de Andrade, meu orientador, pela dedicação com que conduziu nossos encontros e reencontros presenciais e virtuais. Zulmira Áurea Cruz Bomfim, minha primeira orientadora na graduação, por me ajudar a sentir o que é Ser Humana nas relações através das vivências em Biodança e participação no grupo de pesquisa do Laboratório em Psicologia Ambiental (LOCUS). Regianne Leila Rolim, minha primeira orientadora, que por motivos pessoais precisou se ausentar. João Bosco Feitosa dos Santos e Regina Heloísa Mattei de Oliveira Maciel, membros da banca de qualificação, pelas recomendações e sugestões. FUNCAP, pelo apoio financeiro. Aos professores docentes do programa de pós-graduação do MAPPS aos quais tive acesso. Cristina Maria Pires de Medeiros, secretária do programa de pós-graduação do MAPPS, por todos os encaminhamentos e esclarecimentos necessários à conclusão desta dissertação. Sâmea Moreira Mesquita Alves e Ana Marques, amigas queridas do MAPPS e, acredito, de toda a vida, pelo acolhimento e companheirismo em momentos difíceis do meu experienciar pessoal e profissional. Raimunda Félix, coordenadora do Colegiado de Saúde Mental do município de Fortaleza, durante o período desta pesquisa por todo o apoio. Equipe de profissionais do Projeto Consultório de Rua. A minha querida amiga Dirlândia Vieira da Silva, por ter me ajudado a acreditar que no final tudo dá certo. Mário Henrique, meu amado esposo, amigo e companheiro, por toda a dedicação. 7 RESUMO Atualmente o cenário epidemiológico no Brasil e em outros países cresce quanto ao consumo de drogas lícitas e ilícitas, desencadeando problemas no que diz respeito ao uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Nesse contexto, o presente estudo objetiva analisar a Política de Redução de Danos na prática dos profissionais do Projeto Consultório de Rua, no município de Fortaleza, Ceará, Brasil. O Projeto Consultório de Rua é uma atividade aprovada pelo Ministério da Saúde desde 2009. No município de Fortaleza, local de recorte para este estudo, a Política de Redução de Danos teve início em 2005, no âmbito da Rede de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, sob a coordenação do colegiado que participou da seleção "Projetos de Consultório de Rua", promovida pelo Ministério da Saúde em 2009, obtendo êxito. O município de Fortaleza foi o único lugar de todo o estado do Ceará que atendeu às exigências para concorrer à seleção do Projeto de Consultório de Rua com vistas ao desenvolvimento de práticas de Redução de Danos destinadas à população de rua, por intermédio de abordagens nas ruas e ações nos Centros de Atenção Psicossocial, Álcool e outras Drogas (CAPS AD). A primeira equipe desse município foi constituída em junho de 2010, e a segunda, após um período experimental durante o mês de dezembro de 2011, estabeleceu suas atividades a partir de fevereiro de 2012. Os sujeitos convidados a participar deste estudo tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Optou-se por uma abordagem metodológica qualitativa para a obtenção dos dados necessários ao alcance dos objetivos propostos. O estudo foi desenvolvido nos locais de prática do Projeto Consultório de Rua. Foram considerados para a coleta de dados instrumentos metodológicos como a entrevista semiestruturada e a observação sistemática dos profissionais do Projeto Consultório de Rua no exercício de suas atividades. A entrevista semiestruturada áudiogravada teve fontes primárias como dados de identificação e contemplou questões abertas sobre o tema, sendo realizada em outubro de 2011; a observação sistemática da prática, buscando aprofundar o objeto em estudo, foi concretizada por diário de campo, durante os meses de janeiro e fevereiro de 2012. Participaram do estudo 05 sujeitos: 01 Psicólogo, 01 Redutor de Danos, 01 Motorista, 01 Técnico de enfermagem, 01 Educador social. Os sujeitos convidados a participar deste estudo tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados obtidos foram processados por análise de conteúdo. Esta pesquisa, em respeito às exigências do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (CEPUECE, processo nº 11224448-3), teve aprovação em 14 de setembro de 2011. Observou-se que as práticas em redução de danos apresentam uma dinâmica diferenciada a depender do processo de territorialidade dos sujeitos envolvidos. Obteve-se, ainda, que a troca de saberes, assim como a disponibilidade relacional entre usuários e profissionais corroboram para a prática do cuidado. É o cuidado em saúde pela prática da redução de danos que se desdobra na construção de diferentes saberes. Palavras-chave: Redução de Danos. Drogas. Projeto Consultório de Rua. Território. Cuidado em Saúde. 8 ABSTRACT Currently the epidemiological scenario in Brazil and other countries grow regarding the licit and illicit drug use, triggering problems with regard to the use, abuse and dependence of psychoactive substances. In this context, the present study aims to analyze the Harm-Reduction Policy in practice of professionals of the Street Office Project in the city of Fortaleza, Ceará, Brasil. The Street Office Project is an activity approved by the Ministry of Health since 2009. In the city of Fortaleza, clipping site for this study, the Harm-Reduction Policy began in 2005, within the Mental Health, Alcohol and Other Drugs Network, under the coordination of the group that participated in the "Street Office Projects", promoted by the Ministry of Health in 2009, succeeding. The city of Fortaleza was the only place in the whole state of Ceará that has met the requirements to run for Street Office Projects selection aiming the development of Harm-Reduction practices for the street population, through approaches on the streets and in the Centers of Psychosocial Care, Alcohol and Other Drugs (CAPS AD). The first team of this municipality was constituted in June 2010, and the second, after a trial period during the month of December 2011, lays down its activities from February 2012. The subjects invited to participate in this study had access to informed consent. Were considered to the data collection methodological instruments as the semi-structured interview and systematic observation of the Street Office Project professionals in the exercise of their activities. The semi-structured interview audio recording had primary sources such as data identification and contemplated open questions on the topic, being held in October 2011; systematic observation of practice was obtained by field journal, seeking to deepen the object under study, during the months of January and February of 2012. Five subjects participated in the study: 01 Psychologist, 01 Damage reduction, 01 Driver, 01 Nursing technical, 01 Social educator. This is a qualitative study being developed in the Street Office Project local of practice, with data collection among the professionals, to be processed by content analysis. This research, in respect to the requirements of the Research Ethics Committee of the Universidade Estadual do Ceará (UECE, CEP-process nº 11224448-3), had approval in September 14, 2011. It was observed that the harm-reduction practices are differentiated depending on the dynamic process of territoriality of the subjects involved. It was obtained, either, that the exchange of knowledge between professionals and users confirms a practice of care. Is the health care by harm-reduction practice that unfolds in the construction of different knowledge. Keywords: Harm-Reduction. Drugs. Street Office Project. Territory. Health Care. 9 LISTA DE FIGURAS 1 Localização Geográfica da Secretaria Regional Centro, pelo Google Maps 2 Localização Geográfica do território da Investigação no âmbito da 42 Secretaria Regional II 43 3 Lateral da Kombi 44 4 Destaque da identificação institucional na lateral do veículo 45 5 Equipe I de profissionais do Projeto Consultório de Rua, no município de Fortaleza 48 6 Cartografia da rota dos profissionais do Consultório de Rua 82 7 Cartografia da rota dos profissionais do Consultório de Rua 83 8 Praça da Estação observada por trás da Kombi 85 9 Praça da Estação observada pela frente da Kombi 86 10 Moradores de rua esperam por ações caridosas e é oportunizada a abordagem de rua pelos profissionais do Consultório de Rua 87 11 Estabelecimento Casa da Sopa 88 12 Campanha de vacinação da Hepatite na Casa da Sopa 89 13 Viaduto da Avenida Alberto Nepomuceno 91 14 Acesso à Rua Gérson Gradvol 93 15 Rua José Avelino 95 16 Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura 96 17 Igreja Santa Luzia, popularmente conhecido por Ferro de Engomar pelos 97 profissionais do PCR 18 Lateral da Pizza Hut, na Avenida Beira Mar 98 19 Travessa Jacinto 99 20 Atuação da equipe do Consultório de Rua no Vicente Pinzón 21 Prática preventiva da equipe do Consultório de Rua no Vicente Pinzón 100 100 10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABAREDA Associação Baiana de Redução de Danos ABORDA Associação Brasileira de Redutores de Danos ACRD Associação Carioca de Redução de Danos AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida CAPS AD Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas CEBRID Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas CETAD Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas CONAD Conselho Nacional Antidrogas CONASS Conselho Nacional de Secretários de Saúde CONFEN Conselho Federal de Entorpecentes CSF Centros de Saúde da Família CUCA Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte de Fortaleza DST Doença Sexualmente Transmissível ECR Equipes do Consultório de Rua ESF Equipes de Saúde da Família HGF Hospital Geral de Fortaleza HIV Human immunodeficiency vírus (Vírus da Imunodeficiência Adquirida) IDGS Instituto de Desenvolvimento Tecnológico e Apoio a Gestão em Saúde NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família NEPAD Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas OEA Organização dos Estados Americanos OMS Organização Mundial de Saúde PCR Projeto de Consultório de Rua PEAD Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas PIEC Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas PNAD Política Nacional Antidrogas PNAD Política Nacional sobre Drogas PRD Política de Redução de Danos PROJOVEM Programa Nacional de Inclusão de Jovens RD Redução de Danos REDUC Rede de Redução de Danos e Direitos Humanos 11 RELARD Rede Latino-Americana de Redução de Danos SEAR Serviço Especializado de Abordagem de Rua SEMAS Secretaria Municipal de Assistência Social SENAD Secretaria Nacional Sobre Drogas SER Secretaria Executiva Regional SISNAD Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas SMS Secretaria Municipal de Saúde SUAS Sistema Único de Assistência Social SUS Sistema Único de Saúde SPA Substâncias Psicoativas UBS Unidades Básicas de Saúde UFBA Universidade Federal da Bahia 12 SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS 09 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 10 1 INTRODUÇÃO 13 2 REDUÇÃO DE DANOS E CONSULTÓRIO DE RUA: CONQUISTAS, LIMITES E DESAFIOS 21 2.1 O percurso das políticas públicas em saúde no Brasil destinadas a usuários de substâncias psicoativas 21 2.2 Os movimentos da Redução de Danos e seus desdobramentos nas práticas em saúde 28 2.3 Especificidades do Projeto Consultório de Rua no município de Fortaleza, Ceará 37 2.4 O Consultório de Rua em interface com a redução de danos 48 3 PRÁTICAS TERAPÊUTICAS EM REDUÇÃO DE DANOS: O PROJETO CONSULTÓRIO DE RUA EM FORTALEZA-CE 52 3.1 Redução de danos e subjetividade em espaço urbano: os saberes na prática de território 52 3.1.1 Configuração dos saberes na Redução de Danos 57 3.1.2 Produção terapêutica nas práticas de território 67 4 O CUIDADO EM SAÚDE: UM CAMINHO PARA A PRODUÇÃO DE PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NO CONTEXTO DA REDUÇÃO DE DANOS 97 4.1 A Redução de Danos na transversalidade da produção de práticas do cuidar 97 4.1.1 Saúde e drogas 97 4.1.2 Práticas do cuidar 105 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 111 APÊNDICES 120 ANEXOS 125 13 1. INTRODUÇÃO Ao longo dos últimos anos observa-se que o cenário epidemiológico no Brasil e em vários outros países cresce quanto ao consumo de drogas lícitas e ilícitas, desencadeando problemas no que diz respeito ao uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Além do crescimento observa-se que o fenômeno aumenta cada vez mais precocemente nas populações, incluindo grupos sociais menos favorecidos (OLIEVENSTEIN, 1980; MELMAN, 1992; LE BRETON, 2003). Frente a esse caráter de uso, abuso e dependência das drogas psicotrópicas adquiridas na pós-modernidade, a toxicomania e a farmacodependência se tornaram um problema de saúde pública. Nesse contexto, o presente estudo objetiva analisar a Política de Redução de Danos (PRD) aos usuários de substâncias psicoativas por intermédio das práticas terapêuticas realizadas pelos profissionais do Projeto Consultório de Rua, no município de Fortaleza, Ceará. Visando alcançar a proposta de análise deste estudo, elegeram-se como objetivos específicos: 1. Analisar a concepção dos profissionais atuantes no Projeto Consultório de Rua sobre Redução de Danos, no município de Fortaleza; 2. Identificar e descrever áreas de Fortaleza onde ocorre a prática dos profissionais atuantes no Projeto Consultório de Rua; 3. Conhecer as estratégias em Redução de Danos utilizadas na prática dos profissionais atuantes no Projeto Consultório de Rua do município de Fortaleza. O interesse por este estudo surgiu durante as vivências, no curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, em atividades de extensão e pesquisa pelo Laboratório de Psicologia Ambiental – LOCUS; e desenvolvimento de atividades profissionais no âmbito da Psicologia, em abril de 2008, no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD), situado na Barra do Ceará, no município de Fortaleza. No LOCUS estuda-se a relação do indivíduo com seu entorno. O CAPS AD constitui-se enquanto um serviço extrahospitalar de assistência pública, estatal ou contratado, destinado a cuidar dos problemas de saúde mental, individual e coletivo, dos usuários de substâncias psicoativas, no nível da atenção secundária. A indagação inicial que gerou a construção do objeto dessa pesquisa foi: Existem práticas terapêuticas na abordagem de rua embasadas pelos ideais da Redução de Danos? A prática terapêutica na saúde pública brasileira é orientada e ofertada à população pelo Sistema Único de Saúde (SUS), considerado a maior política de inclusão 14 social do País, que possui como diretrizes os princípios doutrinários da universalidade1, integralidade2 e o princípio ético da equidade3, cuja forma de organização e operacionalização apoiam-se na participação popular, na regionalização e hierarquização, na descentralização4 e no comando único5 (BRASIL, 1990a). O SUS agrega à prática em saúde conhecimentos sobre: meio físico, por intermédio das condições geográficas, água, alimentação, habitação; meios socioeconômico e cultural, incorporando o emprego, renda, educação, hábitos; e a promoção, proteção e recuperação da saúde (BRASIL, 2004a). Dentre as políticas públicas nacionais destinadas ao combate do uso e abuso de substâncias psicotrópicas, iniciativas estatais e projetos voltados à prevenção e promoção da saúde e ao tratamento das enfermidades são orientados pelos princípios do SUS, que preconizam a humanização dos serviços e a articulação entre os diferentes equipamentos sociais (BRASIL, 2004b). Assim, em 1994, o SUS inseriu oficialmente no Brasil a Redução de Danos (RD) enquanto política estratégica no âmbito da saúde pública, tendo como eixo inicial um conjunto de práticas voltadas para a prevenção da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e hepatites virais em grupos estigmatizados vulneráveis à transmissão dos vírus pelo compartilhamento das agulhas e seringas contaminadas durante a prática do uso injetável de drogas, na maioria dos casos. Essa política, posteriormente, passou a ser utilizada com maior intensidade no desenvolvimento de ações preventivas e na promoção de saúde junto aos usuários de drogas, em espaços institucionalizados e abordagens de rua (NIEL, SILVEIRA, 2008). A RD é uma política que surge, enquanto estratégia de saúde pública, visando controlar possíveis consequências negativas associadas ao consumo de substâncias psicoativas6 (lícitas e ilícitas) sem, necessariamente, interferir na oferta ou consumo, respeitando a liberdade de escolha, buscando inclusão social e cidadania para os usuários, em seus contextos de vida marginais, com um modo de atuar clínico e efeitos terapêuticos eficazes (BRASIL, 2004c). Essa política oportunizou a criação da categoria profissional “Redutor de Danos”, cujos integrantes, na sua maioria, são do nível médio de escolaridade e atuam em locais onde usuários de drogas vivem e convivem, assistindo-os pela promoção da saúde com acolhimento, construção de vínculos e norteamentos terapêuticos focados no sujeito. 1 Saúde como direito de todos os indivíduos. Acesso a todos os serviços médicos como direito de todos. Fomento a ações e serviços preventivos, curativos e coletivos, articulados e contínuos, exigidos em todos os níveis de complexidade de assistência. 3 Reconhecimento das diferentes necessidades da população por meio de ações governamentais diferenciadas. 4 Transferência de ações do governo federal para o estadual ou municipal. 5 Um único gestor comanda as políticas de saúde na rede assistencial de abrangência. 6 Termo farmacológico utilizado atualmente para se referir às substâncias que modificam o funcionamento do Sistema Nervosos Central. 2 15 Por meio da Lei nº 11.343/2006, a Redução de Danos foi regulamentada como uma estratégia que se insere nos espaços institucionais por meio das políticas centrais de saúde do SUS, a exemplo da Política Nacional da Atenção Básica, da Política Nacional de Saúde Mental, da Política do Ministério da Saúde de Atenção Integral de Usuários de Álcool e outras Drogas e da Política Nacional sobre Drogas, realinhada em 2004 (BRASIL, 2006). Em 2009, o Ministério da Saúde selecionou Projetos de Consultório de Rua que fossem vinculados às secretarias municipais dos diferentes estados brasileiros com o fim de desenvolver ações destinadas a usuários de drogas em situação de rua. Foram selecionados 14 municípios7 para executarem abordagem de rua com usuários de substâncias psicoativas por meio das intervenções clínicas, psicossociais e educativas (BRASIL, 2010b). Sob a Portaria nº 122, em 25 de janeiro de 2012, foram definidas as diretrizes de organização e funcionamento dos Projetos de Consultório de Rua (PCR), considerando como composição mínima da equipe dois profissionais de nível superior e dois de nível médio. As ações devem ser conjuntas e integradas às Unidades Básicas de Saúde (UBS) e, quando necessário, às equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de Urgência e Emergência e outros equipamentos sociais (BRASIL, 2012). Os programas de redução de danos visam acessar e vincular usuários de drogas a serviços de saúde que promovam a diminuição da vulnerabilidade pela reinserção social (QUEIROZ, 2001), pelos princípios da busca ativa em locais onde o usuário vive e faz uso de drogas; o vínculo ético e afetivo na relação entre usuário e agente redutor de danos, adquirido pela confiança; a abordagem sigilosa, não estigmatizante ou excludente; a intervenção que instigue o desenvolvimento da autonomia do sujeito; e ações de educação em saúde que oportunizem novos modos possíveis de relação com as drogas (ROMERO, 2001). No município de Fortaleza, local de recorte deste estudo, o Programa de Redução de Danos teve início no âmbito da Rede de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, sob a coordenação de colegiado8 desde 2005, que, ao participar da seleção dos Projetos de Consultório de Rua, promovida pelo Ministério da Saúde, em 2009, obtive êxito. Em todo o estado do Ceará, Fortaleza foi o único município que atendeu às exigências para concorrer à seleção do Projeto Consultório de Rua. Por isso o recorte espacial para esta pesquisa ocorreu somente nesse município. Este PCR teve seu início em junho de 2010. 7 Dentre as cidades destacam-se: Maceió/AL, Manaus/AM, Salvador/BA, Fortaleza/CE, Brasília/DF, Uberlândia/MG, Belém/PA, João Pessoa/PB, Curitiba/PR, Recife/PE, Niterói/RJ, Rio de Janeiro/RJ, São Bernardo do Campo/SP, Guarulhos/SP. (BRASIL, 2010c). 8 O Colegiado de Gestão em Saúde constitui-se por ser um espaço de negociação, pactuação e co-gestão solidária. Em Fortaleza, o Colegiado de Saúde Mental, no período da pesquisa, constituía-se por um Psiquiatra e duas Psicólogas que buscavam garantir e aprimorar a aplicação dos princípios do SUS. 16 Esta pesquisa foi submetida à análise do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (Anexo A). Devido à obrigatoriedade do cumprimento das exigências normativas aos princípios éticos da pesquisa envolvendo seres humanos estabelecidos pela Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 1998), a pesquisa de campo só iniciou após a devida aprovação. Os sujeitos convidados a participar do estudo tiveram acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice A), o qual foi assinado após manifestarem o desejo de participarem da pesquisa. Foram considerados para a coleta de dados instrumentos metodológicos como a entrevista semiestruturada (Apêndice C) e a observação sistemática (Apêndice D) dos profissionais do Projeto Consultório de Rua (PCR) no exercício de suas atividades. A entrevista semiestruturada audiogravada teve fontes primárias como dados de identificação e contemplou questões abertas sobre o tema, sendo realizada em outubro de 2011; a observação sistemática da prática foi registrada por diário de campo que seguiu alguns elementos de referência (Apêndice D), durante os meses de janeiro, fevereiro e março de 2012. Na entrevista, se buscou examinar os conteúdos dos discursos e as observações de campo, que aconteceram de forma sistemática. Vale ressaltar que a observação sistemática apresenta-se como adequada ao estudo por viabilizar a descrição precisa do confronto entre as informações apreendidas a partir das representações dos sujeitos por meio da fala/depoimento e a práxis concreta do serviço, no momento da ação (LEOPARDI, 2002). Participaram do estudo cinco sujeitos da equipe do PCR, e os critérios para a sua inclusão foram: 1 estar no serviço há pelo menos seis meses; 2 disponibilidade de tempo para a entrevista; e, por fim, 3 aceitar participar da pesquisa. Esse grupo de sujeitos da pesquisa foi constituído por um Psicólogo, um Redutor de Danos, um Motorista, um Técnico de enfermagem e um Educador social. Como característica desse grupo tem-se que todos os sujeitos têm idade variando entre 27 e 53 anos e, dos cinco sujeitos, um tem formação de nível superior, dois, em redução de danos, um concluiu o curso técnico e dois não têm experiência anterior com saúde mental. No município de Fortaleza, esses sujeitos da amostra possuem vínculo empregatício de terceirização com o Instituto de Desenvolvimento Tecnológico e Apoio a Gestão em Saúde (IDGS). Objetivando detalhar mais a caracterização dos sujeitos da amostra identificouse os profissionais do Consultório de Rua por colaboradores e a sequência na descrição destes seguiu a ordem das entrevistas realizadas. Assim, o Colaborador 1 (C-1) tem 53 anos, é do sexo feminino, ocupa o cargo de redutora de danos, já trabalhou por dois anos em um Centro de atenção Psicossocial Álcool 17 e outras Drogas, concluiu o nível médio de escolarização, tem cursos em redução de danos pela Associação Brasileira de Redução de Danos do Brasil e Associação Cearense de Redução de Danos e está como membro da equipe do Consultório de Rua há um ano e quatro meses. O Colaborador 2 (C-2) tem 48 anos, é do sexo masculino, ocupa o cargo de motorista, não havia trabalhado anteriormente em saúde mental, concluiu o nível médio de escolarização, tem curso de condutor de veículos - categoria B, e está como membro da equipe do Consultório de Rua há seis meses. O Colaborador 3 (C-3) tem 37 anos, é do sexo masculino, ocupa o cargo de Técnico de Enfermagem, já trabalhou por três anos em um Centro de atenção Psicossocial e três meses em Hospital Psiquiátrico, concluiu o nível médio de escolarização, tem Curso Técnico em Enfermagem. O Colaborador 4 (C-4) tem 27 anos, é do sexo masculino, ocupa o cargo de Educador Social, não havia trabalhado anteriormente em saúde mental, más no Programa DST/AIDS, no município de Fortaleza, por um ano, concluiu o nível médio de escolarização, tem curso em redução de danos pela Associação Cearense de Redução de Danos e está como membro da equipe do Consultório de Rua há um ano e quatro meses. O Colaborador 5 (C-5) tem 28 anos, é do sexo masculino, ocupa o cargo de Psicólogo, já trabalhou por quatro anos em Centro de atenção Psicossocial com prática na especificidade Geral e Álcool e Outras Drogas, concluiu bacharelado em curso superior, tem especialização em Saúde Pública e está como membro da equipe do Consultório de Rua há um ano e quatro meses. Acrescenta-se que a observação sistemática de campo iniciou em 19/01/2012, persistindo até 09/03/2012, totalizando 75h. Foram oito semanas, no período de segunda a sexta de 17h até às 21h, em que foram observadas as práticas terapêuticas dos profissionais do PCR. Durante a realização da observação sistemática de campo algumas falas do supervisor da equipe do PCR se fizeram importantes para esse estudo. Optou-se pela realização de um estudo qualitativo tendo em vista a subjetividade que circunda os trabalhos com grupos sociais e o sujeito biopsicossocial (MARTINELLI, 1999). Esta escolha embasada na perspectiva crítico-analítica pretende analisar um fenômeno social e suas relações com o campo da saúde mental pela práxis social (MINAYO, 2006). Segundo Minayo (1999), a pesquisa qualitativa: [...] se preocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que 18 não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1999, p. 21). Conforme Minayo (2006) a pesquisa qualitativa se distingue da quantitativa “pela empiria e sistematização progressiva de conhecimento até a compreensão da lógica interna do grupo ou do processo em estudo” (p. 57). Essa sistematização do conhecimento, seguida pela análise dos dados, teve como passos operacionais: I - Ordenação dos dados – transcrição e leitura geral do conteúdo das entrevistas gravadas durante a coleta empírica de material. Posteriormente foram organizados os dados observados nas entrevistas, objetivando um mapeamento horizontal do material empírico coletado no campo de estudo, organizando-o em diferentes conjuntos. II - Classificação dos dados – versa sobre a organização das informações em que ocorre a relação entre os dados empíricos, objetivos e pressupostos teóricos da pesquisa. Há uma primeira aproximação com os significados das falas dos sujeitos possibilitando o surgimento dos núcleos de sentido. Os núcleos de sentido se constituem por três etapas, referenciadas por Assis et al. (1998). A primeira etapa constitui-se da leitura do material coletado nas entrevistas e observações, procurando relações entre as informações obtidas a fim de organizar as categorias sobre o tema em questão. As ideias centrais foram: saúde; drogas; configurações dos saberes; práticas do cuidar; produção de saberes nas práticas de território. Essas categorias centrais contribuíram para a organização das categorias empíricas que emergiram do trabalho de campo. As referidas categorias foram selecionadas por meio das falas dos entrevistados e da observação em diário de campo. Por conseguinte, foi feita a síntese de todos os trechos selecionados para cada unidade categorial em dois quadros de análise, um para os profissionais entrevistados e outro para o campo observado. Assim, iniciou-se a leitura transversal das unidades temáticas empíricas por intermédio do cruzamento das ideias contidas nesses dois quadros de análise. Após a leitura transversal, foram selecionados os temas mais relevantes ao objeto do estudo, assim como as questões orientadoras e os pressupostos teóricos da pesquisa de que as práticas terapêuticas na abordagem de rua contribuem para a Redução de Danos, sem serem desconsideradas as representações singulares e específicas dos sentidos. A segunda etapa elegeu como subtema da análise empírica a Redução de Danos e subjetividade em espaço urbano: os saberes na prática de território do Consultório de Rua; e A Redução de Danos na transversalidade da produção de práticas do cuidar no Consultório de Rua. 19 Nessas categorias empíricas confrontaram-se os sujeitos do estudo, analisandose a dialética das ideias e suas posições no campo das práticas do Projeto Consultório de Rua, no contexto da Redução de Danos, em Fortaleza. Esse confronto deu-se por meio das convergências, divergências, diferenças e complementaridades no processo dinâmico de (re)construção das práticas dos profissionais do Consultório de Rua, no município de Fortaleza. No tocante ao registro das observações, ressalta-se que os dados coletados por meio desse instrumento foram utilizados durante a análise, na medida em que foi procedida a sua triangulação (TRIVIÑOS, 1992) pelas categorias empíricas em interface com o processo metodológico e o referencial teórico. Na última etapa faz-se a releitura dos textos, objetivando-se identificar os conteúdos evidentes e ocultos, relacionando-os com as categorias empíricas deflagradas. Assim, se evidenciam os dados analisados mais relevantes a fim de melhor compreendê-los e interpretá-los. Segundo Assis et al. (1998), nessa etapa a análise ocorre pelo encontro da singularidade do objeto, a partir do que foi vivido, com as relações entre o real particularizado e social. Para Minayo (2006), é a etapa em que há a possibilidade de realização de uma síntese entre o real vivenciado pelos sujeitos sociais da pesquisa, em seu cotidiano, e os contextos práticos, teóricos e também subjetivo do pesquisador, ambos inseridos em condições sócio-históricas singulares. Dessa maneira, os resultados se conformaram, pela configuração analítica do objeto de estudo, em “Compreensão das práticas de redução de danos: o caso do Projeto Consultório de Rua em Fortaleza-CE”, sob as seguintes categorias empíricas: Redução de Danos e subjetividade em espaço urbano: os saberes na prática de território do Consultório de Rua e A Redução de Danos na transversalidade da produção de práticas do cuidar no Consultório de Rua, ambas discutidas, respectivamente, nos capítulos 2 e 3. No primeiro capítulo, que sucede esta introdução, destaca-se o percurso histórico dos movimentos e ações em Redução de Danos, originários de países da Europa. Esses movimentos e ações manifestaram seus resultados entre as políticas públicas sobre drogas, no Brasil, na esfera da saúde. Dessa forma o Ministério da Saúde incluiu a Redução de Danos como norteador das práticas no Projeto Consultório de Rua (PCR). O PCR existe enquanto um Projeto Nacional do Ministério da Saúde para atender usuários de substâncias psicoativas em situação de rua, orientado pela lógica da Redução de Danos. No capítulo segundo discutem-se as práticas de território do Projeto Consultório de Rua, no município de Fortaleza, que se especificam a depender dos processos de territorialização implicados durante as abordagens de rua. 20 No capítulo terceiro reflete-se sobre o cuidado em saúde na perspectiva da redução de danos. Nas Considerações Finais apresentam-se algumas conclusões extraídas das etapas bibliográfica, documental e de campo da pesquisa, ao mesmo tempo em que se verificam se os objetivos geral e específicos foram parcial ou plenamente atendidos e se faz algumas recomendações e sugestões, inclusive para o aprofundamento de estudos futuros sobre a temática. 21 2. REDUÇÃO DE DANOS E CONSULTÓRIO DE RUA: CONQUISTAS, LIMITES E DESAFIOS Neste capítulo discorre-se sobre as políticas públicas de saúde que incluíram as práticas em redução de danos nas novas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), voltadas às drogas, no Brasil, a partir dos diferentes dispositivos de atenção e gestão que foram se articulando às ações de troca de seringas. Aborda-se o trajeto da redução de danos desde os seus primeiros movimentos e ações, originários de países da Europa, que visavam minimizar a contaminação de doenças infectocontagiosas, até tornar-se um modelo de práticas em saúde, conceituada atualmente como: [...] uma política de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e no seu direito de consumir drogas. (ANDRADE et al., 2001, p. 53). Descreve-se, também, o dispositivo em saúde denominado Consultório de Rua que se constitui em um Projeto Nacional desenvolvido pelo Ministério da Saúde voltado para o atendimento a usuários de substâncias psicoativas em situação de rua, tendo como base para o desenvolvimento de suas práticas a abordagem da Redução de Danos. 2.1 O percurso das políticas públicas em saúde no Brasil destinadas a usuários de substâncias psicoativas O processo de consolidação da Saúde Pública, do século XIX ao XX, no Brasil, esteve marcado pelo positivismo científico, pelos ideais da democracia liberal, moralidade burguesa e cristã, assim como pelo construir de uma Nação que deveria se constituir por populações numerosas e sadias, assim mantidas por intermédio das campanhas de saneamento que enalteciam o Estado, garantido pela soberania nacional consolidada por meio do poder militar, das atividades industriais e do mercado em larga escala (MACHADO, 2006). Acrescenta-se ao século XX a valorização do saber médico que produzia um discurso sobre a realidade social dos processos de saúde/doença, validada pela habilitação pericial e intervenções em parceria com as esferas jurídica, educacional (intelectual, física e sexual), política e moral com vistas ao controle de doenças infectocontagiosas e tropicais. De tal modo, o enquadre das ações em saúde voltadas ao público usuário de drogas também ficou centralizado à prática médica, que se legitimava junto ao Estado, ampliando seu mercado de trabalho (MACHADO, 2006; COELHO, ALMEIDA FILHO, 1999). 22 Na década de 1920, as primeiras medidas legislativas coercitivas ao uso e comércio de certas substâncias psicoativas aconteciam por intermédio do mecanismo da justiça criminal, que tinha como parceiro o movimento da medicina detentor de aparato técnico para legitimar as provas sobre os fatos criminais (MACHADO, 2006; COELHO, ALMEIDA FILHO, 1999). Surgem os movimentos contrários às práticas monopolizadoras da medicina tradicional visando democratizar a saúde frente ao regime de higienização, oriundo dos dispositivos disciplinares da época. Esses movimentos, desenvolvidos inicialmente no século XIX, firmam-se, no século XX, principalmente pelas campanhas de saneamento e reforma psiquiátrica. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, institui o Sistema Único de Saúde (SUS) e assegura a saúde como um direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 1988). Tanto a Reforma Sanitária quanto a Reforma Psiquiátrica reivindicavam o acesso universal igualitário à saúde a todos os cidadãos brasileiros. Contudo, foi a Reforma Sanitária que serviu como alicerce para a concretização das diretrizes da Reforma Psiquiátrica, no âmbito da saúde mental (ONOCKO-CAMPOS, FURTADO, 2006). Da parceria entre as políticas em saúde e judiciária, consolidada ao longo da trajetória das temáticas voltadas às questões do uso e abuso de substâncias psicoativas, estabeleceram-se, durante a XX Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1998, os princípios diretivos para a redução da demanda9 de drogas. Nesse evento, após discutir-se também a redução da oferta10, o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) passa a se configurar Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) (DUARTE, 2011). O CONAD promoveu a criação da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD)11, vinculada a Casa Militar da Presidência da República. A SENAD, instituída na gestão presidencial do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi orientada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) (DUARTE, 2011). Essa secretaria, coordenada inicialmente por um civil, juiz Walter Maierovitche, e posteriormente pelo general Paulo Roberto Ulchôa, estruturou-se nos moldes do programa americano antidrogas cuja diretriz política e ideológica era o combate às drogas, principalmente, aos que faziam uso dela (DUARTE, 2011). Em meio às práticas punitivas aplicadas aos usuários de drogas surge, no Rio Grande do Sul, em 1999, a Política Estadual de Educação Preventiva e Atenção ao Usuário de Drogas, que reconheceu a complexidade do fenômeno das drogas propondo, como alternativa, a integração das diferentes secretarias sob a coordenação da secretaria geral de 9 Ações voltadas à prevenção, tratamento, recuperação, redução de danos e reinserção social do usuário de drogas lícitas e ilícitas. (DUARTE, 2011). 10 Atos referentes à repressão da produção ilegal e do tráfico ilícito de drogas. (DUARTE, 2011). 11 Medida Provisória nº 1.669 e Decreto n° 2.632, de 19 de junho de 1998. (DUARTE, 2011). 23 governo. No mesmo ano é criada a Associação Carioca de Redução de Danos (ACRD), com a participação de técnicos do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (NEPAD) (DUARTE, 2011). A saúde pública, até o início do século XXI, não realizava ações sistemáticas para tratamento e prevenção do uso e abuso de substâncias psicoativas. Contudo, a partir da Lei nº 10.216, do dia 6 de abril de 2001, originária do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, se reafirmaram os princípios e diretrizes do SUS garantindo-se serviços de saúde mental às pessoas com transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras substâncias psicoativas (DELGADO, CORDEIRO, 2011). Acrescenta-se à consolidação das práticas em saúde ao usuário de drogas o Decreto Presidencial n° 4.345, de 26 de agosto de 2002, que estabeleceu a Política Nacional Antidrogas (PNAD). (DUARTE, 2011). Ainda em 2002, sob a Portaria nº 816/2002, é implementado, no SUS, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e outras Drogas. Esse programa enfatizava a prestação de serviços não hospitalares, articulados em rede, sob abordagem multidisciplinar, direcionados ao apoio das estratégias em redução de danos e acessíveis à comunidade, que deveria se apoderar do controle social. Inicia-se o processo de territorialização na saúde a fim de articular tratamento, prevenção, educação, inclusão social e intersetorialidade entre os serviços e a comunidade (CRUZ, FERREIRA, 2011). Ancorado pelo PNAD, em 2003, o Presidente da República, em Mensagem ao Congresso Nacional, apresentou a urgência por uma nova Agenda Nacional que reduzisse a demanda de drogas, a partir de três pontos: “Integração das políticas públicas setoriais com a Política Nacional Antidrogas, visando ampliar o alcance das ações; descentralização das ações em nível municipal, permitindo a condução local das atividades da redução da demanda, devidamente adaptada à realidade de cada município; estreitamento das relações com a sociedade e com a comunidade científica” (DUARTE, 2011, p. 34). Dentre as políticas públicas setoriais no âmbito da saúde, em 2003 é publicado o documento intitulado “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas”, acordando oferta de serviços voltados à prevenção, tratamento e reabilitação dos usuários de álcool e outras substâncias psicoativas (BRASIL, 2004b). Ao ser revisado e republicado em 2004, indicou a criação da rede de atenção integral a partir da intersetorialidade, contemplando ações de prevenção, promoção e proteção à saúde. Assim, são implantados os Centros de Atenção Psicossocial, Álcool e outras Drogas (CAPS AD) (BRASIL, 2004b). Acerca desse documento destinado às questões do uso e abuso de substâncias psicoativas, Flach (2010) apresenta a seguinte reflexão: 24 Este documento pode ser considerado um marco político que rompe com as propostas reducionistas e focadas na abstinência ao conceber o consumo de drogas na sociedade como um fenômeno complexo que não pode ser objeto apenas das intervenções psiquiátricas e jurídicas, e exige a construção de respostas intersetoriais e a participação da sociedade. (FLACH, 2010, p. 17). Machado (2006) afirma sobre essa política que suas diretrizes foram construídas “em consonância com os princípios e diretrizes do SUS e da reforma psiquiátrica brasileira e dentro de uma lógica ampliada de redução de danos”. (p. 95). Após essa política, incluem-se na agenda da saúde pública as ações voltadas ao consumo de substâncias psicoativas recomendadas pela III Conferência Nacional de Saúde Mental (DELGADO, CORDEIRO, 2011). De acordo com Cruz e Ferreira (2011), a constituição das ações de saúde em rede torna-se efetiva a partir da incorporação dos: [...] recursos afetivos (relações pessoais, familiares, amigos etc), sanitários (rede de saúde), sociais (moradia, trabalho, esporte, escola, esportes etc.), econômicos (dinheiro, previdência etc.), culturais, religiosos e de saúde nos esforços de cuidado e reabilitação psicossocial (CRUZ, FERREIRA, 2011, p. 36). Conforme Duarte (2011), “o Ministério da Saúde considera que o consumo de álcool e outras drogas é uma questão de saúde pública e não de segurança pública ou de polícia” (apud DELGADO, CORDEIRO, 2011, p. 46). Visando reavaliar os fundamentos da PNAD, em 2004, frente às mudanças sociais, políticas e econômicas em andamento no País, essa política é atualizada, em articulação e sob a coordenação da SENAD, por intermédio do Seminário Internacional de Políticas Públicas sobre Drogas, seis fóruns regionais e um Forúm Nacional sobre Drogas. (BRASIL, 2004a, DUARTE, 2011). Após esses movimentos, a política pública, voltada para a temática das drogas, em 23 de maio de 2005, passa a chamar-se Política Nacional sobre Drogas (PNAD) que prioriza em suas ações o planejamento e a articulação entre os diferentes equipamentos sociais e instituições de saúde. (DUARTE, 2011). Essa política apresenta direções e diretrizes sobre prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social; redução dos danos sociais e à saúde; redução da oferta; e estudos, pesquisas e avaliações. Orienta-se pelo princípio da responsabilidade compartilhada, segundo o qual governo, iniciativa privada, terceiro setor e cidadãos devem atuar de forma cooperada e articulada entre si. Esse indicativo descentraliza as ações sobre substâncias psicoativas no Brasil. (BRASIL, 2008). Por sua vez, Flach (2010) avalia essa política, observando que, apesar das ações voltadas para a redução da oferta e da demanda de substâncias psicoativas, há o investimento na redução de danos, representando “uma importante mudança no discurso 25 quanto ao ideal de uma sociedade abstinente das drogas para uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas” (p. 15). Assim, em 23 de agosto de 2006, sob a Lei nº 11.343, cria-se o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), que coloca o Brasil em destaque entre as discussões mundiais sobre esse tema ao indicar medidas preventivas contra o uso indevido de substâncias psicoativas (SPA) e promotoras da reinserção social dos usuários e dependentes de drogas no panorama internacional, distinguindo o traficante do usuário dependente, carente por tratamento e leis diferenciadas. Essa lei institui normas para coerção à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, definindo-os como crimes (BRASIL, 2006). A edição dessa lei favoreceu a aproximação da Justiça aos serviços de saúde e de assistência social, conferindo-lhes um papel central no atendimento a essas pessoas. (GOMES et al., 2008). Duarte (2011), ao discutir esse novo modelo de concepção da temática das drogas, faz algumas considerações sob os seus aspectos jurídicos: A justiça retributiva baseada no castigo, é substituída pela justiça restaurativa, cujo objetivo maior é a ressocialização por meio de penas alternativas, tais como: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços a comunidade em locais/programas que se ocupem da prevenção/recuperação de usuários e dependentes de drogas; medida educativa de comparecimento a programa e curso educativo (DUARTE, 2011, p. 35). Os objetivos do SISNAD consistem em formular a Política Nacional sobre Drogas, compatibilizando planos nacionais com planos regionais, estaduais e municipais, estabelecendo prioridades entre as suas atividades por meio da definição de critérios técnicos, econômicos e administrativos. As diretrizes dessa política estão focadas na responsabilidade compartilhada entre governo e sociedade no que diz respeito ao tema colocando ênfase na garantia, e não apenas no reconhecimento desse direito, de tratamento a dependente e usuário. Essa política prioriza as ações de prevenção e avança no que tange às políticas de redução de danos (BRASIL, 2006). Em 2007, tem-se o Decreto nº 6.117, de 22 de maio, aprovando a Política Nacional sobre o Álcool, que estabelece princípios com vistas a: [...] elaboração de estratégias para o enfrentamento coletivo dos problemas relacionados ao consumo de álcool, contemplando a intersetorialidade e a integralidade de ações para a redução de danos sociais, à saúde e à vida, causados pelo consumo desta substância, bem como das situações de violência e criminalidade associadas ao uso prejudicial de bebidas alcoólicas. (DUARTE, 2011, p. 38). Observa-se incentivo às estratégias que possam reduzir os danos causados ao organismo em decorrência do uso indevido de álcool, assim como a necessidade da 26 comunicação formal entre as instituições de saúde e o atendimento ao usuário conforme suas necessidades. Contudo, o documento não insere medidas específicas referentes à redução da demanda do álcool às populações vulneráveis, no caso, a população em situação de rua (BRASIL, 2008). Atualmente, na rede de atendimento do SUS, aos usuários de álcool e outras drogas destinam-se a Atenção Básica mediante as Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou as Equipes de Saúde da Família (ESF). Pesquisa desenvolvida pelo Ministério da Saúde em 2002 constatou que 56% dessas instituições já tinham realizado ações em saúde mental (DELGADO, CORDEIRO, 2011). A esse serviço, em 2008, apresentam-se os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), compostos por equipe multiprofissional interdisciplinar para que sejam realizados atendimentos conjuntos, apoio matricial12, supervisão de casos, entre outras estratégias (DELGADO, CORDEIRO, 2011). Acrescenta-se a essa rede em saúde os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD). Esses centros foram instituídos em 2002 e são especializados no tratamento de álcool e outras drogas, objetivando, além dos atendimentos em saúde, a inclusão social (DELGADO, CORDEIRO, 2011). Existem ainda os Serviços Hospitalares de Referência para Álcool e outras Drogas, com leitos clínicos para atendimentos de urgência e emergência, visando diminuir as internações em hospitais psiquiátricos; e a rede de suporte social envolvendo associações de ajuda mútua e entidades da sociedade civil que complementam a rede de serviços colocados à disposição dos usuários pelo SUS (DELGADO, CORDEIRO, 2011). Posteriormente a essa política o Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010, fazse presente, intitulado Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, com predisposição ao desenvolvimento de ações intersetoriais imediatas e estruturantes, com campanhas permanentes de mobilização nacional. Constitui um de seus objetivos, inscrito no inciso I do art. 2º: Art. 2º [...] I - estruturar, integrar, articular e ampliar as ações voltadas à prevenção do uso, tratamento e reinserção social de usuários de crack e outras drogas, contemplando a participação dos familiares e a atenção aos públicos vulneráveis, entre outros, crianças, adolescentes e população em situação de rua; [...] (BRASIL, 2010a). Urge a implementação desse plano, que se encontra sob a coordenação geral do Ministério da Justiça, que envolve a participação de vários Ministérios, Secretarias e 12 É uma proposta que articula os cuidados em saúde mental à Atenção Básica, ou seja, constitui-se por ser um arranjo organizacional de suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento das ações básicas de saúde para a população (CAMPOS, 1999). 27 Organizações Não Governamentais, pela emergência do recrudescimento nos índices da violência correlacionados ao uso de drogas (BRASIL, 2010a). Entre as ações do plano de implementação imediata tem-se operações encetadas pela Polícia Federal e Estadual, Forças Armadas e Polícia Rodoviária Federal, em áreas vulneráveis ao consumo e ao tráfico das substâncias psicoativas; prioridades para a ampliação do atendimento, tratamento e reinserção de usuários de Crack; campanha nacional de mobilização, informação pelo Observatório Brasileiro de Políticas sobre Drogas, e orientação com a criação, inicialmente, de um site interativo no “Portal Brasil” (<http://www.brasil.gov.br>); expansão das ações em projetos como Projeto Rondon e Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem); capacitações destinadas a profissionais da rede de saúde e assistência social, educadores e comunidade escolar, objetivando a formação de multiplicadores em prevenção; e a juízes e equipes psicossociais, visando uniformizar e implantar práticas e políticas de reinserção social, conforme a Lei de Drogas (BRASIL, 2010a). As ações estruturantes do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, estão organizadas nos seguintes eixos: 1°) integração das ações de mobilização, prevenção, tratamento e reinserção social, com destaque para as experiências da Associação Lua Nova, do Projeto Consultório de Rua e Terapia Comunitária; 2°) diagnóstico da situação sobre o consumo do crack e suas consequências; 3º) campanha permanente de mobilização, informação e orientação; 4º) formação de recursos humanos através da capacitação de profissionais e lideranças comunitárias (BRASIL, 2010a). Vale acrescentar que atualmente, além desse Plano Integrado, da Política sobre Drogas e da Política Nacional sobre o Álcool, há também a Lei Seca (Lei nº 11.705/08) (DUARTE, 2011). Há que se lembrar, também, que na trajetória das políticas públicas, no campo da saúde, voltadas ao usuário de álcool e outras drogas, conta-se com algumas Portarias do Ministério da Saúde, apresentadas na sequência: - Portaria nº 2.197/GM, de 14 de outubro de 2004, que redefine e amplia a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS (BRASIL, 2004b). - Portaria nº 1.059/GM, de 4 de julho de 2005, que destina incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos em CAPS AD (BRASIL, 2005a). - Portaria nº 384, de 5 de julho de 2005, que autoriza os CAPS I a realizarem procedimentos de atenção a usuários de álcool e outras drogas (BRASIL, 2005b). - Portaria GM/MS nº 1.612, de 9 de setembro de 2005, que aprova as normas de funcionamento e credenciamento/habilitação dos serviços hospitalares de referência para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas (BRASIL, 2005c). 28 Segundo Boiteux et al. (2009), as políticas públicas sobre substâncias psicoativas promovidas pelo Brasil são reconhecidas como as mais avançadas da América Latina, assim como também as que são previstas nas convenções internacionais sobre o tema. 2.2. Os movimentos da Redução de Danos a usuários de substâncias psicoativas e seus desdobramentos nas práticas em saúde Os primeiros movimentos relacionados à Redução de Danos aconteceram na Inglaterra, em 1926, substanciados pelo Relatório Rolleston, documento que estabelecia direitos aos médicos para a prescrição de opiáceos13 aos usuários de substâncias psicoativas como uma forma de tratamento. Contudo, esse documento, sem respaldo político e sistemático, padeceu de legitimidade (LARANJEIRA, 2004). Esse movimento da Redução de Danos por cerca de cinco décadas manteve-se inalterado. Entretanto, com o crescimento das doenças imunoadquiridas entre a população mundial, fenômeno que marcou o cenário internacional no intervalo de 1926 a 1980, países da Europa reconheceram a necessidade de implementar programas objetivando reduzir o risco de transmissão do Vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV) e disseminação das hepatites virais, principalmente entre usuários de drogas injetáveis (MESQUITA, 1998; LARANJEIRA, 2004). Esses programas implementados a partir da década de 1980, incluíram a Redução de Danos como uma estratégia fundamental para o tratamento dos usuários de substâncias psicoativas objetivando melhores condições de saúde frente à fragilidade das terapias tradicionais, orientadas pela abstinência (MESQUITA, 1998; LARANJEIRA, 2004). Na década de 1980, a Holanda teve o seu primeiro programa legalizado de Redução de Danos em decorrência dos movimentos que discutiam questões referentes à epidemia de Aids e Hepatite B nas Organizações não Governamentais e associações dos usuários de substâncias psicoativas injetáveis. Essas discussões emergiram devido às dificuldades de acesso dos usuários de substâncias psicoativas injetáveis a agulhas e seringas nas drogarias. O descontentamento dos usuários de drogas injetáveis frente a essa realidade motivou-os a exigirem das autoridades sanitárias melhorias no acesso às agulhas e seringas (LARANJEIRA, 2004). 13 São substâncias oriundas do ópio que advém dos cortes na cápsula da papoula, quando ainda verde para se obter um suco leitoso. Os opiáceos podem ser: naturais quando não sofrem nenhuma modificação, como por exemplo a morfina e codeína; ou semi-sintéticos ao resultarem de modificações realizadas em laboratórios como é o caso da heroína (CEBRID, 2012) 29 Mediante essa problemática do uso de drogas injetáveis, as autoridades sanitárias da Holanda estabeleceram, em acordo com os usuários, que o recebimento das agulhas e seringas disponibilizadas pelo Estado ficaria condicionado à devolução das usadas pelos usuários. Essa prática, com a participação de todas as partes envolvidas na discussão, reduziu em mais de 80% as infecções por HIV-Aids desse grupo (LARANJEIRA, 2004). Ainda sobre esse período posterior à década de 1980, destaca-se no Reino Unido o pioneirismo da manutenção de estoque medicamentoso para os usuários de substâncias psicoativas, em que médicos com licença especial prescreviam heroína injetável para dependentes de opiáceos, objetivando minimizar os sintomas da abstinência (LARANJEIRA, 2004). Além dessa ação do estoque medicamentoso que visou reduzir danos no Reino Unido, o governo ainda apoiou os serviços direcionados à educação na comunidade, as trocas de seringas com os usuários de drogas injetáveis, a oferta de moradias e atendimento hospitalar para estes, dentre outros. Esse investimento em ações que se destinavam a reduzir os danos decorrentes do abuso de substâncias psicoativas teve como propósito incentivar a permanência dos seus usuários em tratamento (LARANJEIRA, 2004). Laranjeira (2004) acrescenta que dentre as ações do Programa de Redução de Danos desenvolvidas no Reino Unido, policiais foram capacitados a fim de encaminharem os usuários de substâncias psicoativas aos centros de tratamento, não sendo registrado Boletim de Ocorrência, caso estes não fossem reincidentes. Ainda de acordo com o autor supracitado: [...] este trabalho no Reino Unido tem a função de aliviar os sintomas de abstinências, atrair o usuário de droga ao programa, estimular a retenção e prevenir o abandono do tratamento. Com a implantação do programa as estatísticas da região mostraram diminuição das taxas de criminalidade e infecção por HIV. (LARANJEIRA, 2004, p. 424). Práticas exitosas advindas dos Programas de Redução de Danos desenvolvidos na Europa mobilizaram a Alemanha, na cidade de Frankfurt. Carros móveis, em pontos estratégicos, trocavam seringas com os usuários de drogas injetáveis e realizavam oficinas de aconselhamento. A realização da troca de seringas pelas farmácias urbanas e a acomodação noturna em abrigos também foram práticas ofertadas aos usuários de drogas injetáveis que se encontravam na situação de rua. Incluíram-se como tratamentos para essa população em destaque a metadona14 e os centros de urgência médica, onde os usuários podiam usar drogas injetáveis (LARANJEIRA, 2004). 14 É uma substância produzida em laboratório utilizada principalmente no tratamento dos toxicodependentes de heroína e outros opióides. Funciona como um analgésico. 30 Ressalte-se que as práticas em Redução de Danos não existem em todos os países da Europa, pois alguns se posicionam em contrário a essa proposta política direcionada aos usuários de substâncias psicoativas. França e Suíça são exemplos de países que são contra os Programas de Redução de Danos (LARANJEIRA, 2004). Em território brasileiro, a saúde do século XX, marcada pela epidemia da Aids, principalmente entre os usuários de drogas injetáveis, mobilizou os gestores da saúde. Surge, então, o Programa Nacional de DST, em 1986, com fins de controlar, ampliar a política voltada às questões das drogas e garantir o direito a tratamento aos usuários de substâncias psicoativas injetáveis. Esse programa recebeu recursos financeiros do Banco Mundial, da Union Nations Office on Drugs and Crime e de outras instituições internacionais. As ações em Redução de Danos (RD) anteriormente executadas eram desenvolvidas com recursos das secretarias estaduais e municipais de saúde (MESQUITA, 1998; DOMANICO, MACRAE, 2006). Posteriormente, outras instituições destinadas a atender os portadores de HIV passaram a existir, a exemplo das Organizações não governamentais, do Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS, da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS e do Instituto de Estudos e Pesquisa em AIDS de Santos. Nesses serviços se iniciaram os debates sobre as estratégias de redução de danos enquanto política pública de saúde direcionada a usuários de drogas injetáveis (MESQUITA, BASTOS, 1998). No ano de 1989 iniciaram-se as práticas da redução de danos, no Brasil, na cidade de Santos, local onde predominava a maior taxa de infectados pelo vírus da AIDS. Na ocasião, ao ser criada a Secretaria de Saúde, implantou-se o primeiro programa destinado à troca de seringas, intitulado Programa Municipal de AIDS, que aconteceu durante a gestão de David Capistrano, secretário de saúde e militante nas Reformas Psiquiátrica e Sanitária. Assim, surgiu o primeiro Programa de Redução de Danos no Brasil, que teve como foco os usuários de drogas injetáveis (MESQUITA, BASTOS,1998). Contudo, uma intervenção judicial descontinuou a ação, interpretando-a como incentivo ao uso de drogas. O Poder Judiciário autuou como autores de crime de facilitação ao uso de drogas os coordenadores do serviço, enquadrando-os como traficantes. Na ocasião, a lei vigente para a prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes, no Brasil, era a Lei n° 6.368, datada de 1976 (BUENO, 1994; MESQUITA, 1998). Então, o desenvolvimento de práticas na perspectiva da Redução de Danos em 1989 era compreendido pelo Poder Judiciário em Santos como um crime idêntico ao tráfico de drogas. Após esse acontecimento, diversos movimentos surgiram em universidades, associações de usuários de drogas, organizações governamentais e não governamentais, 31 em que ações de Redução de Danos foram realizadas frente ao crescente consumo de drogas e a disseminação do vírus HIV (MESQUITA, BASTOS, 1998). Ressalte-se que em 1990 foi publicada a lei que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS). Na ocasião, a realidade brasileira referente às questões voltadas à saúde desse período foi demarcada pela atuação dos movimentos da Reforma Sanitária, da luta contra a AIDS e da Luta Antimanicomial (MESQUITA, BASTOS, 1998). O alicerce do SUS teve seu início em 1986, no âmbito da 8ª Conferência Nacional de Saúde, momento em que o movimento de Reforma Sanitária reuniu mais de cinco mil delegados de todo o País. Em 1990, as Leis nº 8.080 e 8.142 instituíram o SUS, e inscreveram a saúde no ordenamento constitucional como um direito de todos e dever do Estado. Depois da iniciativa de Santos, Salvador, em 1994, inaugura seu primeiro Programa de Redução de Danos, coordenado pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, na Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBA), realizando troca de seringas com usuários de drogas injetáveis pelo Centro Histórico do Pelourinho. Posteriormente, essas práticas direcionadas à redução de danos por meio da troca de seringas expandiramse a outros bairros como Engenho Velho da Federação, Ribeira e Calabar (OLIVEIRA, 2009). Assim, nesse momento histórico, as práticas em Redução de Danos encontravam-se resguardadas pela universidade, em um ambiente entre pesquisadores que as desenvolviam enquanto uma pesquisa de extensão. Em 1997, cria-se a Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA) e diversos fóruns se propõem ao investimento em políticas públicas voltadas para a temática das drogas. Além da Aborda, surge a Rede Brasileira de Redução de Danos15 (REDUC). Na ocasião, a categoria redutores de danos inicia o desenvolvimento de ações territoriais diretas junto aos usuários de drogas (DOMANICO, MACRAE, 2006). No mesmo ano, em São Paulo, é fundada a Rede Latino-Americana de Redução de Danos (RELARD), e realizada a IX Conferência Internacional de Redução de Danos, ocasião em que foi anunciada a regulamentação da Lei nº 9.758/1997, de autoria do Deputado Estadual Paulo Teixeira, que legitimou e legalizou a troca de seringas, em vigor até os dias atuais (DUARTE, 2011). Destaca-se ainda, do período de 1986 até 1997, o Programa Nacional de DST que visou solucionar a disseminação do vírus HIV (DOMANICO, MACRAE, 2006). Após esse percurso, o Ministério da Saúde formalizou a Redução de Danos como política oficial de controle da AIDS. Iniciou-se, então, a implementação dos programas 15 Atualmente é denominada Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos. (NIEL, SILVEIRA, 2008, p.15). 32 de Redução de Danos em dez estados brasileiros16, “por apresentarem um quadro epidemiológico com alta notificação de casos de AIDS pelo uso de drogas injetáveis” (DOMANICO, 2006, p. 75). Esses programas tiveram como focos prioritários de atuação: escola, centro de referência nacional, centro de treinamentos, recuperação e reinserção social e projetos de Redução de Danos (DOMANICO, 2006). Por outro lado, acerca dos movimentos reivindicatórios e das práticas diversificadas, no campo da saúde, na cidade de Santos, Lancetti (2009) acrescenta que: “Não é por acaso que, no Brasil, a primeira experiência tenha sido iniciada em Santos na época em que essa cidade se transformou num laboratório de invenção de políticas públicas, com sua dose de confronto com a ordem instituída. Durante o período de 1989 a 1996, Santos foi a primeira cidade brasileira sem manicômio; a primeira cidade a reverter epidemiologicamente o quadro de contágio pelo vírus da aids; a primeira cidade a criar programas de assistência domiciliar e a inventar uma metodologia de trabalho com meninas prostituídas e dependentes do crack etc., e também a primeira cidade a aplicar a metodologia de distribuição gratuita de seringas descartáveis” (LANCETTI, 2009 p. 79). Os movimentos emancipatórios em torno das discussões e práticas no âmbito das políticas públicas em saúde, na cidade de Santos, no período que se estendeu de 1989 até 1996, são justificados por Gastão Wagner Campos (1997) como: “... nunca seguiram de maneira acrítica nenhuma receita. Ao contrário, sempre se deram o direito de conhecer o que havia de mais sugestivo para enfrentamento de cada problema sanitário para, em seguida, adapta-lo à realidade de Santos. Este foi, aliás, o seu primeiro segredo: nunca se fecharam em copas, cultivaram-se relações com Itália, Canadá, São Paulo, Campinas, Icapuí, Londrina, aprendendo como todo mundo e reinventando o que os outros nem sequer fizeram antes. O modelo de Santos, neste sentido, é heterodoxo, porém funciona. Funciona defendendo a vida. Eles ousaram defender a vida no limite do possível. Por isso saíram na frente tanto em relação a distribuição de seringas para dependentes de drogas, quanto na aquisição de inventos tecnológicos importantes para a saúde, conforme aconteceu com as novas medicações para AIDS” (CAMPOS, 1997, p. 11- 12). Nesse período, a cidade supracitada, por meio do conjunto de ações em RD, passou a intervir significativamente sobre as questões direcionadas às políticas de drogas, no Brasil. No ano de 1997, em Brasília, a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) realizou o I Fórum Nacional Antidrogas, momento que resultou em um relatório incluindo “as Estratégias de Redução de Danos como uma das políticas públicas voltadas para o enfrentamento da questão das drogas” (NIEL, SILVEIRA, 2008, p. 15). 16 Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Ceará e Bahia. 33 Em dezembro de 1997, foi regulamentada, em Santa Catarina, a Lei nº 11.063, e no Rio Grande do Sul, a Lei nº 11.562, autorizando a Secretaria de Estado da Saúde a adquirir e distribuir seringas e agulhas descartáveis aos usuários de drogas endovenosas com fins de prevenir, controlar e reduzir a transmissão de doenças e da AIDS (NIEL, SILVEIRA, 2008). Em setembro de 2001, o governador do Espírito Santo sancionou a lei que autoriza a Secretaria de Saúde a adquirir e distribuir seringas descartáveis aos usuários de drogas injetáveis, obrigando hotéis, motéis e estabelecimentos similares a fornecerem, gratuitamente, preservativos aos seus frequentadores (NIEL, SILVEIRA, 2008). Outros dois estados que regulamentaram a Política de Redução de Danos, segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2002) foram Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, em 2001. Nesse contexto, surgiu o Projeto AIDS, que demandou a atuação de uma categoria específica de agente de saúde, no caso, o redutor de danos. Essa especificidade profissional foi consolidada pela Política Nacional de Álcool e outras Drogas, compondo-se de lideranças dos locais onde realizavam o trabalho de campo; profissionais do sexo; ou usuários de drogas. Inicialmente essa categoria foi capacitada para trabalhar com o público específico de usuários de drogas injetáveis (DOMANICO, MACRAE, 2006). Esclarece-se que inicialmente, nos Projetos de Redução de Danos, no Brasil, existiam duas designações atribuídas aos profissionais que desenvolviam práticas em saúde com os usuários de drogas - agentes de saúde e agentes comunitários. Os profissionais Agentes de Saúde eram capacitados para multiplicarem informações sobre AIDS e drogas. Já os Agentes Comunitários compunham a rede social interativa dos usuários de drogas e, ao receberem treinamento, atuavam como agentes de saúde, na comunidade. Esses Agentes Comunitários que desenvolviam práticas em saúde na perspectiva da redução de danos eram usuários ou ex-usuários de drogas (BRASIL, 2001). Assim, esse novo profissional denominado “redutor de danos” é um agente de saúde devidamente capacitado para abordar usuários de drogas e desenvolver atividades de educação sanitária e inclusão social junto a esse segmento (BRASIL, 2002). No intervalo entre 1986 e 1998 as pesquisas advindas do Projeto Brasil17, realizadas inicialmente na cidade de Salvador, em 1994, contribuíram para demonstrar a importância das práticas de Redução de Danos frente às características epidemiológicas dos indivíduos usuários de substâncias psicoativas (DOMANICO, MACRAE, 2006). 17 “O projeto Brasil fazia parte de um estudo multicêntrico desenvolvido em sete cidades com alta incidência de HIV por uso de droga injetável” (DOMANICO, 2006, p. 76). 34 No ano de 2001, surgiu a Associação Baiana de Redução de Danos (ABAREDA), resultante da mobilização dos agentes redutores do CETAD/UFBA (DUARTE, 2011). Por sua vez, no início de 2003, o Ministério da Saúde confirmou a existência de 160 projetos de redução de danos em todos os estados brasileiros e a intenção de ampliar esses serviços foi garantida por meio do SUS, pela política de saúde pública intitulada Política Nacional de Álcool e outras Drogas (BRASIL, 2004b). Em seguida, o Ministério da Saúde, em 2005, publicou a Portaria nº 1.028/GM regulamentando as ações que visam à redução de danos sociais e à saúde decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência. No ano de 2006 surgiu a Lei nº 11.343, que regulamentou a Redução de Danos, descrevendo-a em seu artigo 20 como estratégia preventiva ou redutora das consequências negativas associadas ao uso de drogas, desenvolvida por ações de prevenção na saúde, sem necessariamente interferir na oferta ou consumo, sendo orientada pelo respeito à liberdade de escolha. Ela considera que: “Constituem atividades de atenção ao usuário e dependentes de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas” (BRASIL, 2006, p. 5). Verifica-se, a partir desse percurso histórico, que as estratégias de Redução de Danos variam de acordo com a realidade de cada estado. No entanto, esse movimento histórico de fatos e regulamentações jurídicas da Redução de Danos consolidou-a enquanto um método clínico-político. Nesse método das práticas em saúde as estratégias clínicas encontram-se coligadas às posições políticas (CAMPOS, 2000). Nessa perspectiva, a Redução de Danos foi inserindo-se nos espaços institucionais por intermédio das políticas centrais de saúde do SUS, como a Política Nacional da Atenção Básica, a Política Nacional de Saúde Mental, a Política do Ministério da Saúde de Atenção Integral de Usuários de Álcool e outras Drogas e a Política Nacional sobre Drogas, realinhada em 2004 (BRASIL, 2006). As práticas de saúde voltadas ao uso e abuso de substâncias psicoativas, após pesquisas nacionais com crianças e adolescentes em extrema condição de vulnerabilidade social (NOTO et al., 1997, 2003). Essas pesquisas realizaram o levantamento sobre o uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua, primeiramente em seis capitais brasileiras e depois em vinte e sete. Foi verificado o baixo índice das crianças e adolescentes em situação de rua nos serviços da rede de saúde. As estatísticas produzidas no âmbito dessas pesquisas nacionais embasaram os representantes do Ministério da Saúde, durante o Comitê Intersetorial de Acompanhamento 35 e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua, em 2008, para proporem aos serviços já existentes, no campo da saúde, uma abordagem diferencial à população em situação de rua (BRASIL, 2008). Essa proposta para a Política Nacional à População em Situação de Rua prevê, dentre suas ações estratégicas no âmbito da saúde: “1. Garantia da atenção integral à saúde das pessoas em situação de rua e adequação das ações e serviços existentes, assegurando a equidade e o acesso universal no âmbito do Sistema Único de Saúde, com dispositivos de cuidados interdisciplinares e multiprofissionais; 2. Fortalecimento das ações de promoção à saúde, a atenção básica, com ênfase no Programa Saúde da Família sem Domicílio, incluindo prevenção e tratamento de doenças com alta incidência junto a essa população, como doenças sexualmente transmissíveis/AIDS, tuberculose, hanseníase, hipertensão arterial, problemas dermatológicos, entre outras; 3. Fortalecimento das ações de atenção à saúde mental das pessoas em situação de rua, em especial aqueles com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas, facilitando a localização e o acesso aos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS I, II, III e AD); 4. Instituição de instâncias de organização da atenção à saúde para a população em situação de rua nas três esferas do SUS; 5. Inclusão no processo de educação permanente em saúde dos gestores e trabalhadores de saúde, destacando-se as equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), agentes comunitários de saúde e operadores do Sistema Nacional de Ouvidoria, dos conteúdos relacionados às necessidades, demandas e especificidades da população em situação de rua; 6. Divulgação do canal de escuta do usuário: Sistema Nacional de Ouvidoria, Disque-Saúde (0800611997), junto à população em situação de rua, bem como das demais instâncias de participação social; 7. Apoio às iniciativas de ações intersetoriais que viabilizem a instituição e manutenção de Casas de Apoio ou similares voltadas para pessoas em situação de rua, em caso de alta hospitalar, para assegurar a continuidade do tratamento; 8. Incentivo a produção de conhecimento sobre a temática saúde desta população e aos mecanismos de informação e comunicação; 9. Apoio à participação nas instâncias de controle social do SUS e ao processo de mobilização junto aos movimentos sociais representantes dessa população; 10. Na seleção de agentes comunitários de saúde, considerar como um dos critérios a participação de moradores de rua e exmoradores de rua” (BRASIL, 2008, p. 20-21). A esses serviços já existentes no âmbito da saúde foi acrescido, em 2009, pelo Ministério da Saúde, o Projeto Consultório de Rua, destinado ao atendimento da população em situação de rua. Esse projeto foi indicado como uma das estratégias para o Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD). No ano seguinte esse serviço foi também incluído no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (PIEC) (BRASIL, 2010a). O Consultório de Rua teve suas primeiras ações em saúde efetivadas inicialmente em 1999, no estado da Bahia, pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) enquanto atividade de extensão da Faculdade de Medicina, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na ocasião, o Prof. Antônio Nery Filho desenvolveu 36 o Projeto Consultório de Rua em decorrência do aumento das crianças em situação de rua, sob uso de drogas, na cidade de Salvador (OLIVEIRA, 2009). Esse projeto foi concretizado inicialmente em parceria com a Prefeitura Municipal de Salvador. Posteriormente, por oito anos consecutivos a experiência contou com o apoio financeiro de outras instâncias governamentais, como o Ministério da Saúde, a Secretaria Nacional Sobre Drogas (SENAD), a Secretaria de Combate à Pobreza e a Secretaria do Trabalho e Ação Social do Governo do Estado da Bahia (OLIVEIRA, 2009). Essa experiência do Consultório de Rua, em Salvador, no espaço urbano, avaliada no período de 1999 até 2006, oportunizou a sua pertinência enquanto dispositivo público alternativo para a abordagem de rua aos usuários de drogas em situação de grave vulnerabilidade social. Além da abordagem, fazia-se também atendimento clínico a esses usuários com dificuldades na adesão ao modelo tradicional dos serviços da rede de saúde (OLIVEIRA, 2009). O Consultório de Rua é um dispositivo para além do modelo biomédico, que se distancia da lógica de demanda espontânea e abordagem única voltada à abstinência, caracterizando-se fundamentalmente por oferecer cuidados no próprio espaço da rua, respeitando o contexto sociocultural da população (BRASIL, 2010c; OLIVEIRA, 2009). Esse dispositivo também é citado pelo CEBRID como um projeto caracterizado pela participação ativa de profissionais da saúde junto à população de rua sem que seja desrespeitado o seu contexto social. Na prática desse projeto, composto por uma equipe multidisciplinar se procura assegurar a integralidade da assistência atuando sob uma perspectiva interdisciplinar do cuidado em saúde ao indivíduo (BRASIL, 2010c). O Consultório de Rua tem como princípios norteadores o respeito às diferenças, a promoção de direitos humanos e inclusão social, o enfrentamento a estigmas, ações em redução de danos e intersetorialidade (BRASIL, 2010c; OLIVEIRA, 2009). O Ministério da Saúde, no ano de 2010, ao conceituar os Consultórios de Rua, estabelecendo tanto seus princípios, quanto suas diretrizes e objetivos, afirma serem: “[...] dispositivos clínico-comunitários que ofertam cuidados em saúde aos usuários em seus próprios contextos de vida, adaptados para as especificidades de uma população complexa. Promovem a acessibilidade a serviços da rede institucionalizada, a assistência integral e a promoção de laços sociais para os usuários em situação de exclusão social, possibilitando um espaço concreto do exercício de direitos e cidadania. Sua estrutura de funcionamento conta com uma equipe volante mínima com formação multidisciplinar constituída por profissionais da saúde mental, da atenção básica, de pelo menos um profissional da assistência social, sendo estes: médico, assistente social, psicólogo, outros profissionais de nível superior, redutores de danos, técnicos de enfermagem e educadores sociais. Além desses, eventualmente, poderá contar com oficineiros que possam, estrategicamente, desenvolver atividades de arte-expressão” (BRASIL, 2010a, p. 10). 37 Para fins de análise sobre em que consistem e como se caracterizam os Consultórios de Rua, no Brasil, este estudo apresenta no próximo item um recorte da especificidade do município de Fortaleza. 2.3. Especificidades do Projeto Consultório de Rua no município de Fortaleza, Ceará A proposta da abordagem de rua voltada ao atendimento de usuários de substâncias psicoativas em situação de rua, no âmbito da saúde mental, em Fortaleza, surgiu após a consolidação dos seis Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) nas respectivas Secretarias Executivas Regionais (SERs) I, II, III, IV, V e VI. Observou-se que após a consolidação dos CAPS AD existiam resistências de acesso da população em situação de rua, crescente nos espaços urbanos e usuária de substâncias psicoativas, às atividades e ações ofertadas pelos serviços da atenção básica e saúde mental. Assim, a primeira equipe do Consultório de Rua desse município foi formada em 2010 e teve como abrangência e cobertura territorial o bairro Centro, ilustrado pela Figura 1. Figura 1 - Localização Geográfica da Secretaria Regional Centro, pelo Google Maps Fonte: Google Maps, 2012. O interesse inicial por esse bairro incidiu sob o levantamento de dados realizado pelo Projeto Ponte de Encontro. O Projeto Ponte de Encontro, situado no município de Fortaleza, é uma instituição que desenvolve ações junto a crianças e adolescentes em situação de risco social, pessoal e de moradia ou de permanência no ambiente desfavorável da rua. 38 Nessa instituição foi observada a presença de 90 moradores em situação de rua, no período de 2009. Desse total, 67 eram do sexo masculino e 23, do sexo feminino. A faixa etária de maior prevalência estava entre 13 a 17 anos, com 50 respondentes. Desses 90 moradores, 78 afirmaram fazer uso de drogas (lícitas e ilícitas). Obteve-se como área de permanência da população em situação de rua, no Centro do município de Fortaleza-CE, entornos como Cidade da Criança, conhecida por Parque das Crianças; praças (BNB, José de Alencar, Ferreira, Coração de Jesus, Lagoinha, Estação e Bandeira), cruzamentos, calçadas de restaurantes e agências bancárias. Posteriormente, outros bairros situados na Secretaria Executiva Regional II (SER II) foram assistidos, como Praia de Iracema, Meireles e Vicente Pinzón, ilustrado pela Figura 2: Figura 2 - Localização Geográfica do território da Investigação no âmbito da Secretaria Regional II Fonte: Prefeitura Municipal de Fortaleza http://www.fortaleza.ce.gov.br/regionais/regional-II, 2012. acessado em Essa área de cobertura da equipe do Consultório de Rua, no município de Fortaleza, durante a realização desta pesquisa esteve vinculada à Gestão do Colegiado de Saúde Mental, sob a lógica da Política de Redução de Danos. Por isso, analisar essa política foi relevante para se entender melhor as práticas desenvolvidas pelos profissionais da primeira equipe do Projeto Consultório de Rua. 39 Outro diferencial do Consultório de Rua para a execução de suas atividades em saúde é um veículo disponível para transportar a equipe de profissionais e os insumos. Os insumos são: preservativos masculinos; cartilhas preventivas sobre Doença Sexualmente Transmissível (DST) e saúde bucal voltada à promoção e prevenção da saúde; kit de higiene bucal composto por escova e pasta dental; panfletos de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e gel para lubrificação íntima. Esse veículo se legitima enquanto uma referência para os usuários de substância psicoativa em situação de rua ao lhes oferecer cuidados em saúde. Há veículos do Projeto Consultório de Rua que foram grafitados e/ou incorporaram adesivos simbólicos de cunho significativo em sua carcaça para o segmento jovem. A ideia de o veículo conter características que despertem a atenção do público jovem, usuário de substâncias psicoativas em situação de maior vulnerabilidade social, objetiva prover de variáveis positivas a aproximação inicial para os cuidados em saúde (BRASIL, 2010c). No município de Fortaleza, o veículo que transporta a equipe e os insumos caracteriza-se por se tratar de uma Kombi grafitada com contornos bastante coloridos ilustrando o espaço urbano. O objetivo dos contornos coloridos na Kombi é acessar principalmente o público jovem, em situação de rua, com a identificação institucional Consultório de Rua nas laterais, dianteira e traseira, podendo ser observada nas Figuras 3 e 4. Figura 3: Lateral da Kombi Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. 40 Figura 4: Destaque da identificação institucional na lateral do veículo Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Acrescenta-se como especificidade dessa Kombi que a mesma só passa por manutenção quando aparece problemas mecânicos ou necessita de alguns reparos como, por exemplo, consertos na caixa de marcha. Outro aspecto relevante do Consultório de Rua é o ponto fixo territorial de atuação da equipe, que deve ser previamente definido, contemplando o estabelecimento do local, dia e hora para encontros regulares constantes. Desse modo, objetiva-se criar uma referência territorial que facilite o acesso dos usuários de substâncias psicoativas aos outros serviços de saúde (BRASIL, 2010c). Os outros serviços de referência territorial para prestar maiores cuidados à saúde da população em situação de rua e usuária de substâncias psicoativas em Fortaleza são: Centros de Saúde da Família (CSF) Flávio Marcílio e Paulo Marcelo, ambos do terceiro turno; e o Hospital Geral de Fortaleza (HGF), situado no bairro Papicu. O ponto fixo territorial se constrói no espaço urbano enquanto um lugar institucional a partir das abordagens em saúde desenvolvidas, propostas esclarecidas e postura dos profissionais na relação com os usuários (BRASIL, 2010c). Em Fortaleza acontece o estabelecimento fixo dos locais de referência, mas os dias e horários apresentam variações durante a semana, no período noturno. Os dias para a abordagem de rua acontecem de segunda a sexta e os horários entre o intervalo de dezessete às vinte e uma horas. Há um cronograma a ser seguido, mas que não é totalmente operacionalizado na prática, principalmente em razão de algumas intercorrências 41 clínicas. As intercorrências clínicas podem ser observadas pelos sinais e sintomas de: doenças do trato genitourinário (infecções urinárias), doenças sexualmente transmissíveis, hepatite A, B e C, infecções do trato respiratório (pneumonia, tuberculose e viroses), dermatites (erisipela, fungos e escabiose) e lesões com perfuro-cortante. Quando acontecem essas intercorrências clínicas, um ou dois profissionais da equipe do Consultório de Rua, juntamente com o usuário, participam de todo o processo do atendimento em saúde pelo SUS, objetivando estimular a autonomia, caso haja outras necessidades futuras. Esse segmento da prática no Consultório de Rua, em Fortaleza, objetiva apresentar ao usuário os seus direitos à saúde, mesmo que não esteja acompanhado por profissionais da saúde em outras intercorrências futuras. Na relação com os usuários, a cada nova abordagem renovam-se as características do trabalho e o propósito da presença do Projeto Consultório de Rua, diferenciando-o, assim, das outras ações desenvolvidas na rua, como as de cunho caritativo (BRASIL, 2010c). Segundo NIEL e SILVEIRA (2008) a abordagem inicial ao usuário de substância psicoativa em situação de rua é decisória para o desenvolvimento ou não de práticas terapêuticas. Os autores sugerem alguns passos para a construção de uma relação positiva entre profissional e usuário: “a) a primeira meta é apenas estabelecer contato; b) deve se apresentar portando crachá de identificação; c) explicar claramente os objetivos do projeto; d)administrar a ansiedade de atingir seu objetivo maior que é o distribuir kit; e) acolher o usuário e observar sua necessidade no momento; f) trnsmitir informação sobre prevenção às DST/AIDS e hepatites; g) caso o usuário aceite, deixar um kit de prevenção” (NIEL, SILVEIRA, 2008, p. 27). Os profissionais do município de Fortaleza, a cada nova abordagem ao indivíduo em situação de rua, seguem como passos: 1- apresentação profissional; 2- informação sobre o serviço; 3- e a proposta de seu trabalho, que foca nas ações em Redução de Danos. Oferecidos esses primeiros esclarecimentos obtêm-se, como possíveis resultados, o início de um diálogo, o silêncio que se mantém ou a solicitação para a evasão da equipe do espaço. Quando há o silêncio a equipe de profissionais permanece no território, mas com certo distanciamento espacial, a fim de oportunizar o momento subjetivo de aceitação do usuário no seu desejo pela oferta do serviço e início do diálogo. No caso de solicitação para a evasão da equipe, os profissionais saem do cenário por alguns dias, contudo, posteriormente, há novos investimentos com estratégias que visem vinculação em território. As estratégias são as de distribuição de preservativos e kit bucal até que seja oportunizado o início do diálogo entre o profissional do PCR e o usuário de substância psicoativa em situação de rua a fim de que possam ser discutidas as condições de saúde destes. 42 Ressalta-se que durante essa abordagem inicial, na realidade do município de Fortaleza, os profissionais do Consultório de Rua legitimam sua identificação enquanto trabalhadores de saúde por posicionarem-se próximos à Kombi, já caracterizada anteriormente. Em relação ao financiamento proposto para essa nova modalidade de saúde, instituiu-se, desde a primeira chamada da seleção dos Projetos Consultório de Rua e Redução de Danos, como principais componentes para o funcionamento de suas equipes: [...] a) uma equipe volante, devidamente identificada por crachá e/ou camiseta, constituída por profissionais da saúde mental, da atenção básica, técnicos de enfermagem e pelo menos um profissional da área de assistência social; b) um veículo amplo, capaz de prover o deslocamento da equipe e armazenamento dos insumos durante as ações; c) insumos para tratamento de situações clínicas comuns, preservativos, cartilhas e material instrucional, material para curativos, medicamentos de uso mais freqüente em tais situações; d) rotina de atividade, contendo os protocolos clínicos aplicáveis, os fluxos de referência para continuidade da atenção, quando for o caso, e as intervenções psicossociais e educativas, que levem em conta as especificidades socioculturais e epidemiológicas locais. (BRASIL, 2010b). Esses profissionais, durante a realização desta pesquisa, não apresentaram nenhuma identificação visual para a abordagem de rua, seja por uniformes ou crachás, fato verificado na pesquisa de campo. Foi uma realidade registrada pela Figura 5. Esse registro denuncia a falta de condições mínimas para o desenvolvimento das atividades laborais desses profissionais do PCR em Fortaleza. Antunes (2005) compreende a classe trabalhadora atual como um conjunto de seres sociais que vivem para vender sua força de trabalho, são assalariados e desprovidos dos meios de produção. Conforme o autor, é uma classe-que-vive-do-trabalho e caracterizase por: “aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário ... trabalhadores precarizados, terceirizados, fabris e de serviços, part-time, que se caracterizam pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na totalidade do mundo produtivo.” (ANTUNES, 2005, p. 52). 43 Figura 5 - Equipe I de profissionais do Projeto Consultório de Rua, no município de Fortaleza Fonte: Pesquisa direta, 2012. Acrescenta-se que dentre os principais componentes para funcionamento das equipes, no município de Fortaleza, foi observado, além da não identificação visual dos profissionais, a inexistência de insumos diários para as situações das intercorrências clínicas comuns já mencionadas. O material destinado a curativos como antiséptico, gases, esparadrapo, luvas, soro fisiológico são ausentes, no entanto se observou, raramente, apenas o álcool em gel. Na equipe do PCR não há o profissional da área de assistência social. Os lubrificantes de uso sexual são distribuídos somente aos usuários do sexo feminino ou travestis e nem sempre estão disponíveis. O material álcool em gel, quando existente, é usado, principalmente pelos profissionais, para se prevenirem contra doenças passíveis de contágio durante a vinculação, no espaço da rua. Durante a rotina das atividades do município em estudo, não foi observado nenhum registro, pelos profissionais, em prontuário específico, das intercorrências clínicas com os usuários assistidos, assim como das intervenções psicossociais e educativas realizadas em campo, ou mesmo das reuniões com outros equipamentos sociais e supervisões. No município de Fortaleza, dentre a rotina do Consultório de Rua há a execução de ações extracampo, pela rede de saúde, junto aos serviços: da Rede de Saúde Mental, como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD); da Atenção Básica, nos Centros de Saúde da Família (CSF), Flávio Marcílio e Paulo Marcelo, ambos do terceiro turno, por situarem-se próximos à área de cobertura do Projeto Consultório de Rua 44 (PCR), e Hospital Geral de Fortaleza (HGF), situado no bairro Papicu. No acompanhamento de usuários a esses serviços, caso seja necessário o deslocamento, este é realizado pela Kombi do PCR, conforme verificou-se na pesquisa de campo. Acerca das ações a serem desenvolvidas nas ruas pelos profissionais do Consultório de Rua têm-se os ensinamentos de Oliveira (2009), que ao dissertar sobre “Consultório de rua: relato de uma experiência” pontuou a relevância da interdisciplinaridade diante da complexidade do objeto de trabalho dos profissionais no Projeto Consultório de Rua. Para Oliveira (2009), ante a complexidade da demanda da população em situação de rua, sugere-se aos profissionais do Consultório de Rua propor intervenções a partir dos processos dialógicos resultantes da interação entre os saberes. Nessa perspectiva, a autora pontua que o Consultório de Rua constitui-se a partir da inter-relação dos sujeitos sociais envolvidos, cujos resultados são construídos dia a dia. A inter-relação desses sujeitos sociais envolvidos molda-se pelo caráter ético das intervenções, que não impõe técnicas à população em situação de rua assistida. Autores como Almeida Filho (1997) e Vasconcelos (2002) discutem a questão da interdisciplinaridade18 como possibilidade interativa à equipe de trabalho que tem como alvo de intervenção objetos complexos. Em Oliveira (2009), a interdisciplinaridade pode ser afirmada nos processos de trabalho do Consultório de Rua ao longo da consolidação experiencial da abordagem nas ruas. Segundo a autora: “[...] a interdisciplinaridade se colocava quase que como uma imposição, na medida em que a população ia colocando nos técnicos da equipe demandas de todas as ordens, convocando os profissionais a atuarem nas interfaces dos vários campos disciplinares que caracterizavam a equipe.” (OLIVEIRA, 2009, p. 68). A necessidade da interdisciplinaridade surgiu, então, para o Consultório de Rua, como uma busca por novas maneiras de dialogar e interagir com os distintos campos do saber, objetivando melhorar os atendimentos, em saúde, à clientela assistida. Essa interdisciplinaridade é favorecida pela rotina de trabalho do Consultório de Rua que consiste em: Atividades extracampo, com os contatos com a rede de saúde e intersetorial na engenharia das articulações interinstitucionais, o acompanhamento de usuários quando se fizer necessário, discussão clínica de casos, a elaboração dos diários de campo e relatórios. Além dessas, na rotina diária está prevista uma reunião que antecede a ida a campo, com duração de uma (1) hora, com a presença de coordenador do Consultório de Rua, o supervisor clínico-institucional e os técnicos da equipe da área a ser 18 A interdisciplinaridade busca conciliar os conceitos pertencentes às diversas áreas do conhecimento a fim de produzir novos conhecimentos ou mesmo, novas sub-áreas, superando assim a fragmentação deste, relacionando-o à realidade e aos problemas da vida moderna. É uma trocas entre especialistas (NUNES, 1995). 45 atendida no dia. Neste momento a equipe define quais as melhores estratégias de abordagem, um planejamento das atividades a serem realizadas no dia, configurando um processo permanente de avaliação do processo de trabalho da área. Há ainda a preparação do carro com os materiais necessários para a realização das atividades, e em seguida a equipe se desloca para a área de trabalho. O segundo tipo de atividades são as atividades de campo, que constituem os atendimentos aos usuários no seu espaço de permanência. Cada profissional desenvolve suas atividades planejadas e de acordo com as demandas que se apresentarem no momento. O tempo de permanência não é rígido, variando de acordo com as demandas. O período de tempo na rua, ou seja, o turno de trabalho deve ser suficiente para o desenvolvimento de atividades de rotina, como a distribuição de preservativos, a realização de oficinas de educação em saúde, atividades lúdicas, consultas clínicas e seus desdobramentos, tais como orientações e encaminhamentos. Os encaminhamentos podem ser entre os profissionais da equipe nas interconsultas, ou externos, para os serviços da rede de saúde e intersetorial. (BRASIL, 2010b, p.15). Na especificidade do PCR, no município de Fortaleza, as discussões clínicas dos casos ocorrem no espaço da rua entre psicólogo, técnico de enfermagem e um enfermeiro vinculado à Coordenação Municipal de DST/AIDS e Hepatites Virais da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), que às vezes acompanha a rota da equipe. Por outro lado, não foi observada a produção de diários de campo pelos profissionais da equipe do PCR. Há os relatórios anuais da população assistida por esses profissionais através de um Mapa de Registro de Atendimentos, conforme Anexo 1, no formato de planilha que se constitui por: nome, sexo, idade, uso de drogas, substância atual, avaliação de saúde, ação realizada, insumos, encaminhamentos e campo. Nesse mapa, consta um quantitativo de 1553 usuários atendidos, durante o ano de 2011. O quantitativo do mapa se caracteriza por: a maioria dos atendimentos foram realizados ao sexo masculino sob o uso de substâncias psicoativas, no intervalo de idade entre quatorze e noventa anos; na amostra a maioria fez uso de mais de uma substância psicoativa e receberam mais de uma ação realizada nos diferentes espaços a serem discutidos posteriormente nesse estudo. Entretanto, sobre esse relatório anual, que devem ser alimentado no dia-a-dia, durante a abordagem de rua é dispensada à equipe do Consultório de Rua apenas uma ficha para recolhimento de identificação, idade do beneficiado e insumo distribuído. Os insumos distribuídos são na maioria os preservativos. Saliente-se que anteriormente às idas ao campo, durante o período da observação sistemática, constatou-se que os profissionais da equipe do Consultório de Rua não tinham nenhuma reunião com a presença de coordenação para definirem as estratégias de abordagem e o planejamento das atividades a serem realizadas no dia. Assim, diante dessa realidade, o processo permanente de avaliação do trabalho na área tornou-se inexistente. 46 As atividades de campo, para atendimento aos usuários em situação de rua, ocorrem no seu próprio espaço de permanência. Essas atividades do dia-a-dia não foram objeto de planejamento por nenhum dos profissionais da equipe do Consultório de Rua que durante nossa observação de campo encontravam-se sem coordenação imediata para a abordagem na rua. O tempo de permanência da equipe na rua não é rígido, e varia de acordo com as intercorrências já especificadas. Dentre as atividades desenvolvidas pelos profissionais podem-se mencionar aconselhamento de educação em saúde; atividades lúdicas com crianças, por intermédio da leitura de histórias infantis; testagem rápida de HIV e vacinação contra hepatite viral; orientações de prevenções à saúde; e encaminhamentos clínicos a hospital de referência e centros de saúde já mencionados. Através das práticas terapêuticas no território o lugar do Consultório de Rua, enquanto dispositivo do campo da saúde, vai sendo demarcado. Há também a oportunidade da troca de saberes entre os profissionais da área da saúde, na perspectiva da integralidade. A diversidade das intervenções é favorecida ao se considerar o contexto sócio-histórico19 de cada sujeito em situação de rua e sob o uso de substância psicoativa (NUNES, 1995; BRASIL, 2010b; ESPINHEIRA, 2004; MACRAE, 2001). A articulação dos profissionais do Consultório de Rua com instituições do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no município de Fortaleza faz-se em parceria com alguns profissionais do Serviço Especializado de Abordagem de Rua (SEAR), oriundos da Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS). Ações intersetoriais de articulação com outros setores do governo e da sociedade civil em áreas como direitos humanos, educação, justiça e esporte não foram observadas durante o período da pesquisa. No âmbito da cultura, ação conjunta aconteceu junto ao Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte de Fortaleza (CUCA)20, no período carnavalesco, em 2012, por intermédio de palestras voltadas à prevenção das drogas e doenças sexualmente transmissíveis. Houve também parceria com o Vila das Artes21, ao se propor uma atividade de exposição dos filmes de curta metragem em espaços urbanos aos usuários de substância psicoativa em situação de rua, contudo, a ação planejada não foi executada no prazo estabelecido, período em que ainda nos encontrávamos em campo. Em janeiro de 2012, conforme a Portaria do Ministério da Saúde nº 122, foi definido que as diretrizes de organização e funcionamento das equipes do Consultório de 19 Por contexto sócio-histórico entendem-se os registros que o homem faz da realidade e das experiências vividas sem dissociá-lo do mundo social e cultural (BOCK, GONÇALVES, 2002). 20 Esse espaço agrega atividades voltadas para a cultura, o lazer, a educação, o esporte, a formação profissional etc. Estimula o protagonismo juvenil, disponibiliza espaços de convivência para os jovens, oferece oficinas especificas para essa faixa etária e possui acervos, equipamentos e atividades direcionadas para a juventude. 21 É um equipamento social da Prefeitura Municipal de Fortaleza que direciona suas atividades para a Formação em Artes, apoio a produção artística, incentivo a pesquisa e difusão cultural. Oferece gratuitamente diferentes formatos de cursos e atividades como mostras de filmes, debates, encontros e intervenções artísticas. 47 Rua deveriam seguir os nortes da Política de Atenção Básica, conforme destacado na sequência: As equipes do Consultório de Rua integram o componente atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial e desenvolvem ações de Atenção Básica, devendo seguir os fundamentos e as diretrizes definidas na Política Nacional de Atenção Básica. (BRASIL, 2012). Como práticas direcionadas pela Política Nacional de Atenção Básica, as ações em saúde caracterizam-se pela interdisciplinaridade, regionalização22 e territorialização23, desenvolvidas em nível primário, ao priorizarem a prevenção, promoção e recuperação da saúde a partir de processos sociais, culturais, históricos e subjetivos da população assistida. Essa política representa uma possibilidade estrutural para ações intersetoriais da rede de serviços em saúde. Propõe-se um modo de cuidar da saúde em superação ao modelo biomédico e organicista de queixa/conduta, restrita a prescrições medicamentosas e encaminhamentos para exames e serviços especializados (BRASIL, 2006). A Redução de Danos como uma política transversal à Política Nacional de Atenção Básica, alicerçada inicialmente pela Política Nacional de Álcool e outras Drogas aos usuários de substâncias psicoativas, sofreu alteração em seu método ao se incluir novas funções e diretrizes. As estratégias da redução de danos, ao serem incluídas nas novas funções e diretrizes das Políticas Públicas direcionadas às questões das drogas, no Brasil, são influenciadas pelas necessidades do contexto local, na contemporaneidade. Essas necessidades se moldaram da dimensão concreta, específica e preventiva de troca local das seringas, em Santos, para a dimensão abstrata por intermédio da Política Nacional de Álcool e outras Drogas, que direcionou a Redução de Danos às práticas em saúde promovedoras dos avanços na qualidade de vida dos seres humanos. Ainda sobre a realidade dos contextos locais voltados às necessidades humanas em saúde na contemporaneidade, buscamos no próximo item, esclarecer a proposta da Redução de Danos na perspectiva do Projeto Consultório de Rua. 22 A Regionalização é um princípio organizacional do SUS e a diretriz que orienta o processo de descentralização das ações e serviços de saúde. Orienta o processo de identificação e construção das Regiões de Saúde, nas quais ações e serviços são organizados para garantir o direito da população à saúde e potencializar os processos de planejamento, negociação e pactuação entre os gestores. 23 A territorialização significa “delimitar e conhecer o território de atuação, mapeando no espaço local os recursos e formas de organização da comunidade, as diferenças, desigualdades e riscos nas microáreas; identificar indivíduos, famílias ou grupos com maior vulnerabilidade e/ou risco”. (FRANÇA, S. P., FARIAS, I., COELHO, D. M. et al, 2011). 48 2.4. O Projeto Consultório de Rua em interface com a Redução de Danos O Projeto Consultório de Rua é um dispositivo da saúde que visa atender crianças, adolescentes, adultos e idosos em condições de vulnerabilidade social e em situação de rua, adotando a Redução de Danos como uma das estratégias de intervenção, ancorando-se na interdisciplinaridade da equipe multiprofissional (BRASIL, 2012). No contexto da vulnerabilidade social relativa à questão das drogas, as diversidades dos modos de usos das substâncias psicoativas são consideradas na perspectiva sócio-histórica. Daí não ser possível atribuir uma causa universal para o uso nocivo24, abuso25 ou dependência26 de substâncias psicoativas. (ESPINHEIRA, 2004; MACRAE, 2001). Para as diversidades dos modos de usos das substâncias psicoativas o Projeto Consultório de Rua pretende contemplar a singularidade do sujeito ao respeitar as liberdades de escolhas, propondo alternativas que reduzam os danos à saúde durante o uso destas. Como alternativa que diminua os danos à saúde, a Redução de Danos, enquanto estratégia de trabalho se configura como importante ação na atualidade, por promover a aproximação e o acesso dos profissionais da equipe do Consultório de Rua à população usuária de droga em situação de rua. É uma alternativa de saúde pública aos modelos proibicionistas e de tratamento que reconhece a abstinência como resultado ideal, sem desconsiderar as alternativas que reduzam os danos (MARLATT, 1999). Estas estratégias em redução de danos pretendem reduzir os prejuízos de natureza biológica, social, cultural e econômica aos usuários de substâncias psicoativas, promovendo-lhes o acesso aos serviços de saúde como uma alternativa, adotando a relação profissional-usuário como um caminho para a construção de vínculos (MARLATT, 1999). Seguindo esse pensamento, o foco da Redução de Danos no Consultório de Rua não é o objeto uso nocivo, abuso ou dependência da substância psicoativa, mas a melhoria na qualidade de vida do indivíduo pela promoção da saúde. Essa reflexão também fundamenta-se em Moreira, Silveira e Andreoli (2006), quando afirmam que a Redução de Danos tem suas propostas transversalizadoras pela promoção da saúde quando ofertam ações inclusivas por intermédio das parcerias intersetoriais, investindo, assim, na autonomia dos indivíduos, concebendo-os independentemente do uso. No trajeto da Redução de Danos houve a transposição das ações únicas direcionadas à prevenção de DST/AIDS para as estratégias que investem na promoção da 24 Padrão de uso que causa prejuízo físico ou mental à saúde, sem que os critérios para dependência sejam preenchidos (GALDURÓZ, 2011). 25 Consumo contínuo, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes, causados ou aumentados pelos efeitos da substância psicoativa (GALDURÓZ, 2011). 26 Forte desejo ou senso de compulsão para consumo da substância psicoativa. Abandono progressivo de prazeres e interesses alternativos, em favor do uso com um aumento da quantidade de tempo para obter, ingerir ou se recuperar dos efeitos da substância psicoativa (GALDURÓZ, 2011). 49 saúde. Dentre essas estratégias a Redução de Danos é indicada pelo Ministério da Saúde como uma: “[...] estratégia de saúde pública que visa reduzir os danos causados pelo abuso de drogas lícitas e ilícitas, resgatando o usuário em seu papel autoregulador, sem a preconização imediata da abstinência e incentivando-o à mobilização social – nas ações de prevenção e de tratamento, como um método clínico-político de ação territorial inserido na perspectiva da clínica ampliada” (BRASIL, 2004b p. 25). A clínica ampliada, enquanto diretriz da Política Nacional de Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde, concebe os usuários de substância psicoativa como sujeitos corresponsáveis pela produção de saúde ao se posicionarem de modo ativo na relação clínica. Outro ângulo a ser explorado na clínica ampliada, dentro da relação terapêutica, são as ações de território. Nas ações de território a escuta ativa do profissional volta-se para o sujeito em atendimento, considerando sua singularidade. Nesse contexto, o saber do especialista não será o único a ser relevante, pois no processo da produção de saúde consideram-se os sujeitos singulares na sua autonomia (CAMPOS, 1997). É interessante perceber que na Redução de Danos a clínica ampliada se molda por intermédio do procedimento clínico-político ao criar novos dispositivos na atenção e assistência a usuários de substâncias psicoativas. Esses novos dispositivos podem ser percebidos por intermédio de supervisões, assembleias, incentivos ao conhecimento dos direitos humanos e direitos constitucionais, criação dos cachimbos de madeiras para prevenção de Hepatite C entre usuários de crack, substituição de crack por maconha, dentre outras ações (CAMPOS, 2000). Por intermédio desses novos dispositivos a transversalização e a operacionalização da Redução de Danos passam a exigir diferentes respostas e encaminhamentos das diferentes disciplinas e serviços ao integrar questões como AIDS e drogas nas ações de atenção à saúde (CAMPOS, 2000). Nessa perspectiva, tem-se nas diretrizes da Política Nacional de Álcool e outras Drogas a Redução de Danos como mais uma possibilidade de intervenção da prática em saúde na ação de território sobre o tema drogas. Acrescenta-se que dentre as ações de atenção à saúde na Redução de Danos, o desenvolvimento da ação territorial e a promoção da acessibilidade ao SUS ancoram-se na Política de Atenção Básica, em que a abstinência27 não é o único objetivo a ser alcançado quando se lida com as singularidades dos sujeitos (BRASIL, 2004b). Nas singularidades temos aqueles sujeitos que querem parar de usar a substância psicoativa, porém não conseguem ficar abstênico e os que optam por continuar a usar de um modo que 27 A abstinência é a ausência da substância psicoativa no organismo. 50 não venha a prejudicar as suas atividades diárias como trabalho, atividades de lazer, estabilidade na relação com família e amigos, alimentação e sono regulares. Em Laranjeira (2004) se esclarece mais essa questão da abstinência na Redução de Danos quando “reconhece a abstinência como resultado ideal, mas aceita alternativas que reduzam os danos” (LARANJEIRA, 2004, p. 425). No Brasil, essa questão da abstinência versus políticas públicas manifesta-se no âmbito do Ministério da Saúde sob o seguinte pensamento: “A abstinência não pode ser, então, o único objetivo a ser alcançado. Aliás, quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos que, necessariamente, lidar com as singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitas. As práticas de saúde, em qualquer nível de ocorrência, devem levar em conta esta diversidade. Devem acolher, sem julgamento, o que em cada situação, com cada usuário, é possível, o que é necessário, o que está sendo demandado, o que pode ser ofertado, o que deve ser feito, sempre estimulando a sua participação e o seu engajamento. Aqui a abordagem da redução de danos nos oferece um caminho promissor. E por que? Porque reconhece cada usuário em suas singularidades, traça com ele estratégias que estão voltadas não para a abstinência como objetivo a ser alcançado, mas para a defesa de sua vida. Vemos aqui que a redução de danos oferece-se como um método (no sentido de methodos, caminho) e, portanto, não excludente de outros. Mas, vemos também, que o método está vinculado à direção do tratamento e, aqui, tratar significa aumentar o grau de liberdade, de co-responsabilidade daquele que está se tratando. Implica, por outro lado, o estabelecimento de vínculo com os profissionais, que também passam a ser coresponsáveis pelos caminhos a serem construídos pela vida daquele usuário, pelas muitas vidas que a ele se ligam e pelas que nele se expressam” (BRASIL, 2004b p.10). Resulta que o desafio da Redução de Danos é o desenvolvimento da democracia que garanta às minorias a possibilidade de expressão e cooperação política, assim como a disponibilidade para as formas de sustentabilidade financeira a fim de exercerem funções públicas entendidas como gestão comum (MESQUITA, 1994; CAMPOS, 2000). Nas estratégias de Redução de Danos tem-se o princípio da transversalidade na gestão comum. Como exemplos desse princípio podem ser citados, entre os diferentes serviços de atenção à saúde e espaços políticos, a inserção dos usuários de drogas, travestis e profissionais do sexo no desenvolvimento das discussões sobre as práticas em saúde. Esse princípio, para ser legitimado, requer o estabelecimento de vínculos, confiança e cooperação entre os profissionais da saúde e os usuários de substâncias psicoativas visando uma maior eficácia na intervenção. Por esse ponto de vista, no campo das discussões sobre saúde a Redução de Danos direciona sua abordagem para o foco da relação cuidador-paciente (MERHY, 2002). Merece destaque na abordagem da Redução de Danos, que a relação cuidadorpaciente segue o princípio metodológico da produção de conhecimento segundo a qual 51 primeiro se deve conhecer para, só após, se intervir. Essa indicação advém das imprevisibilidades, tanto clínicas quanto políticas, no contexto dos usuários de substâncias psicoativas de modo que, nas abordagens terapêuticas, se parte do seu saber (BRASIL, 2006). Ademais, na Redução de Danos se concebe o sujeito em sua dimensão sóciohistórica, pertencente a um lócus, na medida em que o mesmo interage com seu entorno, fazendo-se sujeito (SARACENO, 2001; TURCK, 2002; BOMFIM, 2003). Acrescente-se que princípios como dignidade da pessoa humana e direitos humanos aos usuários de drogas e membros de outros grupos, também estigmatizados e oprimidos, são ofertados nas diferentes estratégias da Redução de Danos. Nessa perspectiva, a Redução de Danos pode ser compreendida como um paradigma às intervenções clínicas de diferentes áreas (MATOS, 2007). Por fim, a Redução de Danos procura minimizar os possíveis danos que o consumo de uma substância psicoativa pode causar à saúde na dimensão biopsicossocial da pessoa, visando à promoção da saúde, cidadania e direitos humanos, levando em consideração a necessidade real do indivíduo e não o direcionando à lógica da abstinência ou da internação. Deste modo as intervenções em redução de danos assumem um modo de cuidado que acolhe o sujeito em seu sofrimento frente às fragilidades sociais circundantes. Assim, dentre as estratégias e intervenções interdisciplinares e multiprofissionais no Projeto Consultório de Rua, as práticas em saúde, embasadas pela Redução de Danos, se voltam para a promoção, prevenção e tratamento por intermédio dos cuidados primários no espaço da rua (BRASIL, 2010c). No município de Fortaleza, o Projeto Consultório de Rua, intitulado “Consultórios de Rua e Redução de Danos: atenção integral ao usuário de álcool e outras drogas em espaços coletivos”, durante a realização desta pesquisa, não direcionou o desenvolvimento das atividades em redução de danos para o desenvolvimento das discussões políticas junto aos usuários de substâncias psicoativas, no período considerado. As atividades de redução de danos desenvolvidas pela equipe do Projeto Consultório de Rua, no município de Fortaleza, serão ainda discutidas nos capítulos seguintes, durante a análise dos dados. A discussão será focada em torno das questões relacionadas às práticas do cuidar e da territorialização, as quais os usuários de drogas lícitas e ilícitas estão submetidos. 52 3. PRÁTICAS TERAPÊUTICAS EM REDUÇÃO DE DANOS: PROJETO CONSULTÓRIO DE RUA EM FORTALEZA-CE Neste capítulo discorre-se sobre as terapêuticas realizadas pelos profissionais do PCR em confronto com as dimensões referentes aos saberes em redução de danos e práticas de território, no município de Fortaleza. A fim de se situar o leitor quanto ao recorte do estudo em questão apresentamos algumas características do município de Fortaleza: território localizado no litoral norte do estado do Ceará, com área espacial de 313,8km2, que se limita ao norte e ao leste com o Oceano Atlântico e com os municípios de Eusébio e Aquiraz; ao sul com os municípios de Maracanaú, Pacatuba e Itaitinga; e a oeste com os municípios de Caucaia e Maracanaú (FORTALEZA, 2007). Em termos administrativos, o município de Fortaleza possui uma estrutura físicopolítica dividida, operacionalmente, em seis Secretárias Executivas Regionais (SERs). Cada SER é responsável por desenvolver ações de caráter estrutural, assim como proporcionar o crescimento e desenvolvimento econômico-social de sua população (FORTALEZA, 2007). Essas SERs dispõem de um Distrito de Saúde, de Educação, do Meio-Ambiente, de Finanças, de Assistência Social e de Infraestrutura. Vale ressaltar que também possuem como órgão gestor a Secretária Municipal de Saúde (SMS) (FORTALEZA, 2007). Os espaços já apropriados pelos profissionais do PCR ficam localizados nos bairros Centro, Praia de Iracema e Vicente Pinzón. Para a ocupação desses espaços, o município, em 2012, contou com duas equipes no PCR, contudo, devido aos critérios de inclusão e exclusão da amostragem, somente uma equipe participou do processo de coleta dos dados, conforme já informado na introdução deste estudo. 3.1. Redução de danos e subjetividade em espaço urbano: os saberes na prática de território As relações urbanas, segundo Santos (2003), estão cada vez mais globalizadas. No Brasil, Santos (2003), reconhece que o processo de urbanização nas sociedades assumiu proporções de constante expansão em território nacional. Sobre o estudo da categoria território, Santos (1998) a compreende enquanto uma dinâmica urbana que concebe o espaço em sua totalidade. Por esse entendimento, atualmente, a noção de território assume novos arranjos em seus conceitos. Conforme Santos (2004), o espaço existe a partir da inter-relação entre os objetos e as ações humanas nele produzidas, firmando-se enquanto um produto das relações sociais. Para esse autor, espaço é concebido como “[...] um conjunto indissociável, solidário e também 53 contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como quadro único no qual a historia se dá” (SANTOS, 2004, p. 63). Por sua vez Haesbaert (2004) aponta a discussão do território a partir de seu aparecimento e desaparecimento com características de mobilidade e transitoriedade. Pereira (2000) complementa essa reflexão considerando o conceito de território na perspectiva de um lugar construído e “produto da apropriação, da valorização simbólica de um grupo em relação ao espaço vivido” (p. 52), onde, segundo Fontes (2009), as vivências cotidianas direcionam-se para as sociabilidades primárias e secundárias. Nessa primeira instância, o habitat mais íntimo e duradouro corrobora uma rede comunitária mais fechada, enquanto que na sociabilidade secundária, os espaços são compartilhados e construídos simbolicamente a partir de sociabilidades ancoradas em práticas institucionais, podendo ser observadas em templos, comunidades e políticas públicas (FONTES, 2009). Sobre os espaços, Bourdieu (1983, 1998) afirma que compreende não apenas o aspecto econômico, mas também o cultural e o social nestes. Segundo o autor, espaço social é um campo de lutas com atores na perspectiva individual e grupal que, ao elaborarem estratégias, estabilizam ou melhoram sua posição social. Essas estratégias estão relacionadas aos capitais econômicos, sociais e culturais. Bourdieu (1983, 1998) identifica três aspectos do capital social que são: a sua composição constitutiva; os acréscimos aos sujeitos mediante participação em grupos ou redes sociais; e as manifestações reprodutivas. Os elementos que irão compor esses aspectos do capital social serão as redes de relações sociais, a quantidade e a qualidade de recursos do grupo. As redes de relações sociais permitem aos diferentes atores o acesso a recursos atualizados do campo social, a potenciais subjetivos e individuais próprios dos membros do grupo e à rede durável das relações institucionalizadas de reconhecimento e interreconhecimento mútuo. As relações estabelecidas entre os indivíduos pertencentes a um determinado grupo advêm do compartilhamento das relações objetivas, do espaço econômico e social e das trocas materiais e simbólicas. Essas redes sociais proporcionam ao sujeito sentimentos de pertencimento a um determinado grupo (BOURDIEU, 1983, 1998). Quanto à quantidade e qualidade de recursos do grupo, o autor está se referindo às distintas formas de capital (econômico, cultural ou simbólico) singular aos agentes aos quais o indivíduo esteja ligado. Da mesma forma, os ganhos obtidos pelos sujeitos serão oriundos da sua participação nos referidos grupos aos quais esteja ligado, apropriando-se das benfeitorias materiais e simbólicas que contornam os componentes da rede social. Bourdieu compreende que o capital social tende a ser transformado em capital econômico ou mesmo em capital cultural (BOURDIEU, 1983, 1998). 54 O capital social é importante às classes porquanto proporciona aos sujeitos a sua participação em grupos ou redes sociais que venham a lhes absorver, trazendo-lhes benefícios simbólicos (status ocupacional, por exemplo) ou mesmo salariais. Conforme Bourdieu (1983, 1998), o campo refere-se ao espaço no qual se manifestam as relações de poder sob cuja regência ocorrem as distribuições desiguais do quantum social. O quantum social determina a posição ocupada pelo sujeito. Esse quantum é o capital social. Os sujeitos que têm o quantum social reconhecido pelo grupo assumem posições dominantes, enquanto o inverso tende a acontecer com aqueles cujo quantum o grupo não reconhece, são relegados às posições inferiores do campo. Campo, para Bourdieu (1998), é o espaço para aonde as lutas e conflitos entre os agentes convergem, conforme a posição que estejam ocupando, sem ser desconsiderada a sua preservação ou transformação. O que orienta as estratégias dos agentes (sujeitos) é a posição que detêm no interior do campo. Por sua vez ao discutir sobre o capital social, numa perspectiva do sujeito individualizado, Pol (1999), utiliza conceito cunhado por Sansot (1968) para explicar que a exposição corporal do sujeito em território demarcado, com o fim de conhecer e implicar-se ao ambiente, acontece via base sensório-motriz. Esse conhecimento e implicação do corpo no espaço favorecem o resgate do conceito de apropriação urbana em Korosec-Serfaty (1986), lembrado por Pol (1999), considerado um processo dinâmico, de interação vivencial do indivíduo com seu meio externo, suscitando “o sentimento de possuir e gerir um espaço, independente da propriedade legal, por uso habitual ou por identificação” (p. 45). A apropriação do espaço urbano enquanto um processo dinâmico exige movimento e temporalidade próprios. Sobre esse dinamismo, Pol (1996) afirma que na constituição do conceito de apropriação do espaço coexistem dois estilos circulares, um de ação-transformação e outro de identificação. Esses dois estilos podem não ocorrer de forma conjunta ou pode acontecer um e o outro não. A ação-transformação, oriunda de atividade comportamental, modifica o espaço e promove um significado para o sujeito, compartilhado ou não com a coletividade. Nesse momento, dar-se-ia o processo formativo da identidade urbana ou de lugar, em que o espaço apropriado favorece a manutenção do referencial, espacial e simbólico, e da identidade pessoal e histórica. Essa manutenção de referencial e identidade vinculados garante à capacidade da autonomia humana. Segundo Bomfim (2003), apropriar-se é “identificar-se e transformar-se a si mesmo, a coletividade e o entorno. Isto quer dizer que o que cada um de nós é inclui, de maneira determinante, os lugares que temos sido e os lugares que somos”. (p. 85). Por sua vez, Santos (2003), ao entender a categoria território enquanto uma apropriação social no âmbito político, econômico e cultural, assume ser esta possuidora de 55 característica dinâmica, cercada por conflitos inerentes à própria condição humana de relacionar-se socialmente. Por isso, nessa perspectiva, tem-se um território fragmentado e fragmentador, integrado e integrador, que externa as relações políticas e econômicas do espaço local a polos de decisões globais. Seguindo na discussão sobre território e apropriação urbana, observa-se, atualmente, que em paralelo ao desenvolvimento tecnológico e às oportunidades que as grandes cidades oferecem, no contexto da globalização, a exclusão social aumenta. Sobre a exclusão social entre as populações sobreviventes à margem da pobreza em espaços públicos reconhece-se ser derivada de um processo histórico. Ao se delimitar como campo deste estudo a cidade de Fortaleza, Costa (2007) comenta que sua organização espacial urbana foi moldada por diversos agentes no âmbito social, político e econômico em diferentes ações do poder público, setor privado e moradores, originários de um processo histórico. No século XIX, o município de Fortaleza, enquanto sede administrativa da província do Ceará, centralizou o poder político e econômico, aumentando, assim, os “investimentos governamentais e privados em edificações, infra-estrutura e serviços na capital” (COSTA, 2007, p. 51). Essa centralidade do poder político e econômico na cidade de Fortaleza proporcionou o seu crescimento populacional no século XX, que também se operou em decorrência da: “[...] crise da agricultura cearense, a concentração fundiária e os longos períodos de estiagem [...] a cidade passa a ser atraente para diferentes grupos sociais, em virtude do desenvolvimento do comércio e da indústria, da implantação de infraestrutura e serviços e da oferta de empregos urbanos. [...] Fortaleza cresceu de forma radioconcêntrica, acompanhando os grandes eixos viários, em torno dos quais se formaram os bairros mais antigos” (COSTA, 2007, p. 52). Nas décadas de 1950 e 1960, nos limites de abrangência territorial do bairro Centro surgem as favelas da Estrada de Ferro, conhecidas pelas localidades Pirambu, Morro do Ouro, Poço da Draga e Cinza. Os atrativos para a população migrante sofreram discrepância nas proporções estatísticas entre a totalidade populacional e a “oferta de emprego, condições de infra-estrutura e serviços urbanos. Nas periferias alojam-se estes migrantes, que se mobilizam e pressionam o poder público por trabalho, moradia e serviços públicos” (COSTA, 2007, p. 77). Corroborando a fala de Costa (2007) em relação ao processo de desenvolvimento dos entornos no território fortalezense, Silva (2007) assim se posiciona: “Em Fortaleza, as favelas, os conjuntos habitacionais mal conservados e as áreas de risco são marcas de territórios empobrecidos em expansão que avançam em direção aos municípios vizinhos, convertendo áreas rurais em espaços sub-urbanizados. Os fluxos migratórios atraem pessoas que vêm de toda parte em busca da cidade. A maioria chega com dificuldade de 56 ajuste à vida urbana, sem a devida qualificação profissional, numa conjuntura marcada pelo desemprego e por formas precárias de ocupação do espaço. A configuração da paisagem de Fortaleza e da área metropolitana abriga enormes grupos socialmente diferenciados, estando a maioria, no grupo dos vulneráveis constituídos, principalmente por migrantes. São pessoas em busca de um lugar na capital. Na área metropolitana de Fortaleza, os imigrantes constituem praticamente um quarto da população” (COSTA, 2007, p. 101). Silva (2007) contextualiza o centro de Fortaleza, trazendo alguns apontamentos que discutem essa paisagem: “A precariedade e o déficit que atingem os setores de infra-estrutura, equipamentos e serviços nas áreas do saneamento básico, habitação, saúde e educação agravam a situação de pobreza do centro da cidade que se transformou em centro da periferia. Eles são indicadores das diferenças estruturais que explicam os enormes desníveis e os contrastes marcantes entre o centro e outros bairros da cidade. O crescimento acentuado da população urbana do Ceará engrossa a lista das cidades de porte médio e reforça algumas das pequenas. Essa população recentemente integrada à condição de urbana, permanece elegendo o centro de Fortaleza como núcleo principal de negócios e espaço simbólico do encontro do interior com a capital” (SILVA, 2007, p. 117). Silva (2007) conclui que o centro do município de Fortaleza mostra-se “[...] repartido, fragmentado, configura diversos territórios em seu interior, confirmando sua condição de espaço privilegiado de negócios, de encontro, de trocas e de múltiplas atividades” (p. 117). Apresentada a complexidade que contorna a dinâmica do espaço urbano, temos para a prática terapêutica na perspectiva da Redução de Danos no PCR um território em constante movimento e temporalidade próprios, cercado por conflitos intrínsecos do âmbito político, econômico e cultural, onde ao transformá-lo nos identificamos. Os agentes sociais ao transformarem esse território por meio do capital social, garantido pelas experiências pregressas em grupos ou redes sociais, obtêm ganhos simbólicos que podem ser transformados em capital econômico ou mesmo capital cultural. No cenário de Fortaleza tem-se para essas discussões dois contextos entrelaçados, ou seja, de um lado profissionais assalariados que na prática, além de aumentarem o capital econômico, ampliam seu capital cultural sobre o abuso e dependência das substâncias psicoativas a partir da troca de saberes prévios oportunizados pelo desenvolvimento das práticas terapêuticas realizadas durante a abordagem de rua com os diferentes agentes sociais que são os moradores em situação de rua, os seguranças das instituições privadas e públicas, os educadores e assistentes sociais e sujeitos que realizam atividades filantrópicas. Tais ações de saúde se constituem através das informações sobre doenças sexualmente transmissíveis e os riscos causados pelo uso inadequado das substancias 57 psicoativas, distribuição de insumos, panfletagem e encaminhamento às instituições de saúde e vacinação contra hepatite B. Por outro lado, se encontram os usuários das substâncias psicoativas que ao receberem essas práticas terapêutica dos profissionais do PCR ampliam o capital cultural sobre a administração da droga no organismo sem causar muitos danos a saúde. Assim, no território de Fortaleza a prática terapêutica dos profissionais do PCR junto aos usuários de substâncias psicoativas atendidos, apresenta uma comunhão entre o saber técnico, popular e experiências vividas dos agentes sociais nos diferentes espaços urbanos onde acontece a abordagem de rua. Acerca desses saberes comungados sobre o assunto dependência de substâncias psicoativas e modo de vida urbana, na perspectiva da Redução de Danos, seguiremos no item a seguir com uma breve discussão. 3.1.1. Configuração dos saberes na Redução de Danos Os saberes regidos sob a lógica da Redução de Danos, no município de Fortaleza, por profissionais que compõem a equipe do Consultório de Rua, refletem diferentes nuanças a partir do agrupamento de capital cultural que são atualizados no decorrer da trajetória pessoal e funcional, no campo do fazer em saúde. Os saberes sobre Redução de Danos dos profissionais da equipe do PCR permitem inferir que se manifestam enquanto abordagem estratégica e diferenciada de acesso do usuário de drogas, em situação de vulnerabilidade social, aos serviços de saúde, como se verifica pelas próprias palavras de um dos entrevistados: A redução de danos é uma estratégia, uma tecnologia que seja de uma funcionalidade muito grande e vista como uma possibilidade de acesso do usuário aos seus direitos. Então, o usuário que quer continuar fazendo uso de qualquer tipo de substância, continua tendo os seus direitos para fazer algum tipo de tratamento, a pensar sobre sua saúde, a pensar sobre a forma de uso, mesmo que ele continue usando. Ele tem mais opções. (COLABORADOR 5). Trata-se de diferentes estratégias em saúde que oportunizam o diálogo, sem preconceito, com usuários em situação de abuso e dependência de drogas, pelas calçadas e guetos da cidade, garantindo-lhes o direito de optar por obter ou não tratamento. Na visão de um dos entrevistados, essa estratégia consiste na: “[...] proposta mais viável que eu encontrei, até o momento, para estabelecer um diálogo com o usuário em uso de drogas”. (COLABORADOR 4). Essa compreensão da lógica sobre Redução de Danos enquanto uma estratégia e uma política que reduza os danos à saúde daquele que se encontra em situação de rua 58 apreendida a partir das falas dos profissionais da equipe do PCR constrói o lugar destes enquanto agentes de diferentes práticas em saúde inseridos no território de zona urbana. É uma prática de saúde que agente trabalha na rua. (COLABORADOR 2). Na verdade eu entendo redução de danos como uma política, uma série de práticas que vêm tentar reduzir os danos à saúde de quem está em uso abusivo de drogas. (COLABORADOR 3). Os saberes sobre Redução de Danos são apreendidos não só por leituras científicas, mas também pela prática na abordagem de rua em que devem estar envolvidos tanto os profissionais da equipe do Consultório de Rua quanto os usuários de drogas em situação de rua atendidos, em Fortaleza. Na atenção de cuidados à saúde, atualmente se prioriza a integralidade enquanto um processo de construção dos espaços de troca e pactuação entre os profissionais entre si e os usuários, implantando normas e protocolos dentro do sistema de saúde, possibilitando que o indivíduo percorra diferentes níveis de atenção, de acordo com sua necessidade (FERREIRA, 2009). Ela pode ser observada de duas formas: no nível micro e no nível macro. No nível micro a integralidade é mais focalizada, pois existe enquanto uma avaliação individual das necessidades dos usuários, por intermédio de uma abordagem multiprofissional centrada no espaço do serviço de acolhimento28 que promove a avaliação de risco, vulnerabilidade. No nível macro segue por uma perspectiva mais ampliada a partir da articulação entre os serviços de saúde e outros (FERREIRA, 2009). Os serviços de saúde diferenciam-se a depender da referência em atenção básica, secundária ou terciária que correspondem, respectivamente, a atendimentos de baixa, média ou alta complexidade. Contudo, a depender da demanda do usuário estes serviços podem articularem-se a fim de promoverem atenção integral em saúde. À integralidade somam-se conceitos como linha de cuidado e territorialização, no âmbito da saúde, que serão discutidos mais à frente. Entretanto, adianta-se que na linha de cuidado há um acordo assistencial com foco no usuário, considerado o elemento estruturante do processo de produção da saúde. É um trabalho contínuo, articulado, horizontal, de atenção ao paciente, que se realiza por meio de uma abordagem multiprofissional de acordo com suas necessidades. A organização por linha de cuidado se dá mediante trabalho em equipe como somatório de ações específicas de cada profissional, como linha de montagem do tratamento da doença, tendo a cura como ideal (FERREIRA, 2009). 28 Conforme Pinheiro e Mattos (2004) o acolhimento faz-se importante na construção da postura dos profissionais em receber, escutar e tratar humanizadamente as demandas dos usuários que estejam sendo assistidos por estes. Implica na responsabilização dos profissionais da saúde pela condução da proposta terapêutica e corresponsabilização do usuário pela sua saúde. 59 A Linha do Cuidado Integral incorpora a ideia da integralidade na assistência á saúde, o que significa unificar ações preventivas, curativas e de reabilitação; proporcionar o acesso a todos os recursos tecnológicos de que o usuário necessita, desde visitas domiciliares realizadas pela Estratégia Saúde da Família e outros dispositivos como o Programa de Atenção Domiciliar, até os de alta complexidade hospitalar; e ainda requer uma opção de política de saúde e boas práticas dos profissionais. O cuidado integral é pleno, promovido com base no ato acolhedor do profissional de saúde, no estabelecimento de vínculo e na responsabilização diante do seu problema de saúde (FERREIRA, 2009). Já na territorialização tem-se a técnica de reordenação do trabalho em saúde de acordo com o vínculo terapêutico entre equipe e usuários, destacando-se sua importância no cenário atual da organização da rede e serviços de saúde, bem como das práticas sanitárias locais. Os objetivos da territorialização em saúde são: 1- Delimitar um território de abrangência; 2- Definir a população favorecida e apropriar-se juntamente com ela do perfil da área e da comunidade; 3- Reconhecer dentro da área de abrangência barreiras e acessibilidade; 4- Conhecer condições de infraestrutura e recursos sociais; 5- Levantar problemas e necessidades, definindo um diagnóstico da comunidade (continuo); 6Identificar o perfil demográfico, epidemiológico, socioeconômico e ambiental; 7- Identificar e assessorar-se em lideranças formais e informais; 8- Potencializar os resultados e os recursos presentes nesse território. Como produto desse processo pode se obter o estabelecimento de uma rede social solidária, que resultará em melhoria da condição de saúde da comunidade e dos trabalhadores inseridos nesse espaço e na ampliação de projetos sociais envolvendo diferentes sujeitos da comunidade na busca de recursos (FERREIRA, 2009). Além do conhecimento sobre a integralidade, linha do cuidado integral e territorialização somam-se ao saber técnico dos profissionais do PCR o conhecimento dos moradores em situação de rua sob abuso ou dependência de substâncias psicoativas, assim como também a prática de outros profissionais e supervisão institucional. Foi observado durante pesquisa de campo que profissionais noturnos como seguranças de estabelecimentos privados e públicos contribuem com a prática terapêutica do PCR ao informarem sobre os fatos ocorridos no território, onde se encontram os moradores em situação de rua. Dentre os fatos narrados temos conflitos como homicídios e agressões físicas decorrentes da disputa de território ou relações inter-pessoais entre pares afetivos que resultam na evasão destes para outros territórios. Hoje o conhecimento da redução de danos vem para mim muito mais das experiências do que vejo na rua, das coisas que leio de experiências práticas também, vem muito do que eu vejo da prática das pessoas que trabalham com a gente, dos usuários que a gente acessa (COLABORADOR 5). 60 Nas trocas de saberes entre esses atores são consideradas as condições sanitárias de uso da substância psicoativa, assim como o seu manuseio que irão variar a depender do espaço onde o usuário esteja inserido. Foram observadas durante a pesquisa de campo condições do uso das substâncias psicoativas entre os moradores em situação de rua que não consideram os devidos cuidados à saúde como por exemplo: uso da lata de alumínio para a queima e inalação da fumaça do crack sem as devidas noções de assepcia; o não descarte do preservativo durante as relações sexuais a fim de que a utilização deste ocorra para outras eventualidades; aumento no padrão de uso da substância psicoativa; a não substituição da droga de uso por outra de efeito menos nocivo; o compartilhar de instrumentais utilizados no uso da substância psicoativa; o não estabelecimento prévio de um quantitativo da droga a ser utilizada; o não uso lento da droga para que o tempo de intervalo entre um uso e outro seja aumentado; uso das drogas com estômago vazio e organismo pouco hidratado; não recusa da substância psicoativa em período noturno nos espaços públicos. Na prática terapêutica dos profissionais do PCR, em Fortaleza, orienta-se a estes moradores em situação de rua, sob o uso de substâncias psicoativas, durante a abordagem de rua: uso da lata de alumínio somente após assepcia; descarte de preservativos; diminuição para o padrão de uso da substância psicoativa; substituição da droga de uso por outra de efeito menos nocivo; não compartilhar instrumentais utilizados para o uso da substância psicoativa; estabelecer previamente um quantitativo para a droga utilizada; o uso lento da droga para que o tempo de intervalo entre um uso e outro seja aumentado; não uso das drogas com estômago vazio e organismo bem hidratado; investimento na aprendizagem em recusar a substância psicoativa oferecida durante a estadia nos espaços públicos. Questionamentos sobre o por quê do uso da substância psicoativa e a motivação do usuário para os devidos cuidados à saúde são levantados pelos profissionais do PCR durante as abordagens de rua. Recolhimento de material já utilizado como o crack na lata e informações sobre o seu descarte não foi observado como orientação dos profissionais do PCR aos moradores em situação de rua, sob o uso de substâncias psicoativas, durante pesquisa de campo. Esses saberes em desenvolvimento constante e construídos a partir da relação entre o profissional da equipe do PCR e o usuário é mediado pela dimensão cultural existente dentro do contexto de vivências subjetivas, do convívio relacional. Por isso que: Para quem trabalha com redução de danos vai muito de saberes. Um modo geral de estar sobre o uso, sobre como se faz uso, como é que se usa aquela substância, daquele contexto que você está trabalhando. Saberes para a redução de danos com as pessoas têm muito da convivência, da vivência. (COLABORADOR 5). 61 As vivências apreendidas durante a prática dos profissionais da equipe do Consultório de Rua variam ao serem considerados os usuários enquanto sujeitos singulares, contudo coletivos, que interagem uns com os outros, no ambiente urbano. Na pesquisa de campo observou-se que uma informação sobre determinada substância psicoativa ser melhor para a saúde que outra não sofre nenhum impacto na mudança do uso coletivo ao ser desconsiderado as condições financeiras e vivências anteriores do grupo. Há grupos de usuários etílicos que não tem interesse em reduzir a quantidade do uso ou mesmo a troca por outra substância devido à aquisição ser de menos custo financeiro e às experiências durante a interação entre estes proporcionar-lhes maior prazer na estadia pelas ruas do que em ambiente doméstico familiar. Isso ocorre porque: No Consultório de Rua ou em qualquer outro que você trabalha, você tem essa questão da informação coletiva, onde não só você tem o seu conhecimento, mas todo o grupo que possa repassar isso de forma clara. (COLABORADOR 3). Por intermédio das práticas dialógicas entre os diferentes grupos de moradores em situação de rua e a equipe do PCR, surgem as intervenções possíveis que reduzam os danos físicos e sociais oriundos do uso usuários das substâncias psicoativas. As intervenções dos profissionais do PCR em Fortaleza ocorrem a partir da coparticipação dos usuários em atendimento, respeitando-se os limites deflagrados por este frente às propostas viáveis para a realidade do contexto em que estão inseridos. Essa compreensão e atitude de respeito durante as intervenções na abordagem de rua podem ser observadas pelas falas dos profissionais da equipe do PCR a seguir: Você está acessando através dos diferentes saberes propostas de que você está concebendo junto com essa pessoa, a realidade de cultura, a realidade de espaço físico que ela mora, o contexto social que ela vive. (COLABORADOR 4). Muitas vezes eu penso de um modo, mas aquele sujeito, que eu estou fazendo a abordagem, já pensa de outra forma. Então, eu tenho que respeitar o direito e os limites que eu encontro na rua com o usuário. (COLABORADOR 1). Os saberes que constituem a dinâmica de determinados grupos, envolvem o respeito ao tempo e à escolha destes em relação ao consumo das substâncias psicoativas pelos profissionais do PCR durante a abordagem de rua sob a lógica da redução de danos. A abordagem de rua orientada por práticas terapêuticas requerem o conhecimento de diálogos com linguagem própria. (BRASIL, 2010c). Acerca desses diálogos que constituem a dinâmica de determinados grupos temos como exemplos da linguagem própria dos usuários de substâncias psicoativas em situação de rua, no município de Fortaleza, as seguintes frases ou palavras com seus respectivos significados, coletadas durante os registros no diário de campo, tais como: 1- “tô a fim de trocar uma ideia contigo”, significa “podemos conversar”?; 62 2- “a parada é a seguinte”, significa “o assunto é esse”; 3- “o cachimbo roda entre os usuários durante o uso”, significa “todos usam o mesmo cachimbo durante o uso da substância psicoativa”; 4- “o nêgo sabe que pode vacilar se continuar nessa linha”, significa “o sujeito pode ser abordado pela polícia, por outros moradores de rua ou traficantes e sofrer agressões físicas ou morrer caso não se retire logo de determinado território”; 5- “a turma vazou”, significa “o grupo que encontrava-se em determinado território se deslocou para outro”; 6- “a boca do soim”, significa “vagina ou ânus”; 7- “o cara colou na minha”, significa “há uma pessoa próxima a outra”; 8- “tá ligado aí?”, significa “fique atento”; 9- “pedo”, significa uma resposta negativa, como por exemplo: - João onde está sua bolsa? - Pedo, ou seja, roubaram. Em outra situação podemos ter o seguinte diálogo com essa mesma palavra: - João como está sua saúde? - Pedo, ou seja, mal. 10- “tu vasa”, significa “retire-se daqui”; 11- “Iracema”, significa “muita fome”; 12- “pipoco”, significa “alguém está pronto para atirar em você”; 13- “passar o rodo”, significa “agredir fisicamente outro até a morte”; 14- “vamos para holanda”, significa “reunião de um determinado grupo para o uso da maconha em lugar específico, como por exemplo, em um mesmo banco de praça”; 15- “pivete”, significa “amigo, companheiro”; 16- “pacatuba”, significa “homossexual passivo ou ativo. No caso o “viado” é o passivo e o “baitola” é o ativo; 17- “mora”, significa “Entende!, Compreende!” 18- “jorge” ou “bagulho”, significa maconha; 19- “basquetada”, significa a reunião de grupo para alimentação e é realizado o “piquenique” que significa: em uma lata de tinta são colocados para cozimento o feijão, arroz, gordura e verduras; 20- “siri dentro de uma lata”, significa uma pessoa com raiva; 21- “to chapado”, significa a fome foi saciada; 22- “avacalhar”, “frescar” ou “tirar sarro”, significam bulling; 23- “diague”, significa segredo; 24- “diague life”, significa um grande segredo; 25- “maricona”, significa bicha velha; 63 26- “dá uma paulada”, significa uma sensação no organismo durante o início do uso de crack; 27- “disaquenta”, significa “saia daqui”; 28- “manguea”, significa “pedir ajuda ou esmola”; 29- “perdeu play-boy”, significa “quando se é roubado”. Algumas dessas falas que compõem parte do vocabulário dos moradores em situação de rua usuários de substâncias psicoativas em Fortaleza, já eram conhecidas por um profissional do PCR, com vistas a trajetória de sua experiência social, o habitus do “menino que tava metido no tráfico, que tinha certa parceria” e depois motivou-se a trabalhar no âmbito da saúde a partir da admiração pelo trabalho de alguns membros da família como “Findei fazendo um curso de auxiliar de enfermagem, porque eu achei tipo: minha mãe já era auxiliar de enfermagem, as minhas irmãs, primas”, conforme o relato a seguir: Eu sou de comunidade, que chamavam antigamente de favela. Minha mãe teve 3 filhos. Ela casou muito cedo. Então com 35 anos ela já tinha os 3 filhos e por sua vez, já havia se separado, porque meu pai tinha se envolvido com o tráfico e ela preferiu que agente crescesse num outro ambiente que não fosse aquele. Descobriu que ainda tinha familiares aqui no nordeste. Aí nós vinhemos do Rio de Janeiro para cá. Vim primeiro aos 13 anos e voltei aos 16 anos. Tive alguns problemas de adaptação e isso acabou me deixando numa situação muito vulnerável, usando os termos de hoje. Então, dentro da situação vulnerável eu fui um menino que tava metido no tráfico, que tinha certa parceria. Agente era criança também, e não era algo tão maldoso para mim na época. O meu primeiro lugar de morada aqui foi no Morro do Moinho, ali no Oitão Preto. Então quando eu cheguei ali, eu já vinha meio malandro do Rio. Assim, já sabia muito como era a rua, porque lá agente brincava muito na rua, via como era o movimento e aqui se tornou uma coisa para mim normal, estar ali brincando com os meninos. Então, com a separação da minha mãe foi bem complicado, porque ai minhas irmãs, que eram minha família, estavam separadas: uma tava no Rio de Janeiro, outra tava morando com minha avó. Então, assim, tinha rolado aquela coisa da família ter se desagregado de certa forma. Cheguei a usar bagulho que é a maconha, porque assim: nunca gostei de cocaína, achava a cocaína uma coisa que tipo, deixava a pessoa num estado que não era legal para mim, porque eu tinha amigos que usavam e misturavam com álcool. Sempre achei, assim, dessas drogas a mais pesada da época. Assim, eu sempre tive um limite. Eu não queria decepcionar a minha mãe, nem tão pouco fazer merda da minha vida. Eu preferia usar a maconha porque me deixava mais tranquilo, ainda mais eu que sou meio agitado, mas nunca foi um uso tão presente. Tanto que assim, eu passei os últimos 10 anos sem fazer uso de nada, nem álcool, porque assim, eu não bebo, até porque tive conhecimento de história de famílias próximas da minha e isso me causou medo. Aversão mesmo a figura do bêbado. Então, eu tive essa construção. A droga, a questão de violência, o próprio preconceito que existe em torno de um espaço que é comunidade - isso meio que me rotulavam como alguém que não teria um futuro. Agente pode ver isso aí em qualquer propaganda de ONG, em que criança diz que se não tivesse naquela ONG, vai tá roubando, matando ou, sei lá, tá se drogando... Conheci o movimento negro, que me foi apresentado por outras pessoas que também eram da comunidade e lá eu me distancio da questão das drogas e passo a militar no movimento negro. Do movimento negro, conheço o movimento estudantil, o movimento hip hop que acabam agregando outros valores para as perspectivas de ser humano que eu tenho. Findei fazendo um curso de auxiliar de enfermagem, porque eu achei tipo: minha mãe já era auxiliar de enfermagem, as minhas irmãs, primas. Eu tinha uma vivência de saúde, tava ali perto, cuidando, aprendendo a cuidar. Então para mim foi natural. Só que a saúde 64 mental acontece só há 3 anos para mim. Eu tinha aversão a trabalhar com saúde mental, pois eu não tive uma experiência muito boa nos meus estágios como no Nosso Lar, onde passei três meses e chutei o balde, o pau da barraca porque eu não agüentava ver gente gente empilhada como bicho. Ai fui trabalhar no CAPS, com uma proposta inovadora, de trabalhar com aquelas pessoas numa outra perspectiva que não fosse aquela que eu vi dentro do manicômio... Foi um salto pra mim, porque assim, eu consegui compreender que outras pessoas também tinham essa mesma perspectiva ou se não tinha, pelo menos, iam para lá para fazer isso, porque eram pagas para fazê-la ... E assim, me adaptei bastante. Hoje eu tô no Consultório de Rua numa proposta nova de trabalhar com criança e adolescente no espaço de rua que são usuários de qualquer tipo de substância tentando me desenvolver o melhor possível, até para compreender com quem eu estou lidando. (COLABORADOR 3). Conforme o relato abstrai-se que o saber adquirido pela vivência nas ruas, a partir da trajetória de vida, pode oportunizar um desempenho diferenciado na construção de práticas terapêuticas na abordagem de rua. Essa narrativa ocorreu no período da coleta de dados por meio da entrevista semiestruturada. Pela observação sistemática da pesquisa de campo e nos bate-papos casuais, durante as práticas do PCR, foi possível identificar, no modo de ser/agir do profissional em destaque, uma maior intimidade para a formação de vínculos junto aos usuários durante a abordagem de rua. Foram cenas que envolveram respeito, limites relacionais e confiança como, por exemplo: enquanto esse profissional fumava tabaco um usuário manifestou uma postura agressiva, através de falas e movimento corporal, ao pedirlhe o cigarro sem obter êxito. Na ocasião, o profissional além de não compartilhar o tabaco ainda orientou ao usuário sobre a importância do desenvolvimento da atividade laboral para a aquisição deste. Essa relação resultou em encontros posteriores na rua em que o usuário sempre estava esperando o profissional nem que fosse para um aperto de mão. Tratou-se da abordagem de rua que se utilizou do diálogo e experiências pregressas do profissional, adquirido durante a infância e adolescência, narrado pelo Colaborador 3 em: “Cheguei a usar bagulho que é a maconha, porque assim: nunca gostei de cocaína, achava a cocaína uma coisa que tipo, deixava a pessoa num estado que não era legal para mim, porque eu tinha amigos que usavam e misturavam com álcool. Sempre achei, assim, dessas drogas a mais pesada da época. Assim, eu sempre tive um limite ... Conheci o movimento negro, que me foi apresentado por outras pessoas que também eram da comunidade e lá eu me distancio da questão das drogas e passo a militar no movimento negro. Do movimento negro, conheço o movimento estudantil, o movimento hip hop que acabam agregando outros valores para as perspectivas de ser humano que eu tenho. Findei fazendo um curso de auxiliar de enfermagem” (Colaborador 3). Em função destes traços e dos desdobramentos que eles acarretam, a equipe do PCR vai se institucionalizando no espaço urbano de Fortaleza a cada encontro oportunizado pela abordagem de rua. 65 A prática terapêutica da abordagem de rua do profissional Colaborador 3 envolveu ações, observadas durante pesquisa de campo, como: contação de histórias infantis voltadas a saúde bucal, distribuição de preservativos, encaminhamentos ao CAPS AD da SER II, vacinação contra hepatite B e aconselhamentos sobre formas diferentes do uso de drogas que reduz os riscos à saúde. Cabe também registrar aqui que a prática terapêutica da abordagem de rua ao promover interação entre os diferentes atores sociais em meio aos contornos do espaço urbano público favorece a formação da identidade profissional dos agentes da equipe do PCR (BRASIL, 2010c). Segundo Bourdieu (1983, 2003) o desenvolvimento da identidade profissional não desconsidera a vivência pessoal. Dessa maneira o lugar de construção da identidade profissional irá favorecer ou não a consolidação do serviço Consultório de Rua na comunidade (BRASIL, 2010c). Pierre Bourdieu (1983, 1994, 2001a, 2001b, 2003, 2007), teórico clássico da sociologia contemporânea, desenvolveu seus estudos pensando a sociedade sob o foco do espaço em sua dinamicidade, constituído pelas diferentes transformações executadas pelos sujeitos em interação. Esse autor, ao refletir sobre espaço social, desenvolveu o conceito de campo e habitus para compreender a dinamicidade mediante a inter-relação entre os sujeitos. Bourdieu (1994, 2003) compreende que na prática profissional a partir do desenvolvimento de determinadas ações dos indivíduos, estes acabam por compararem as situações atuais com outras já vividas. Durante pesquisa de campo o Colaborador 3 ao ser abordado por crianças que no momento vendiam bombons no Parque das Crianças perguntou-lhes como estava a relação delas com a escola, amigos e família. Ao ser finalizado esse diálogo, o Colaborador 3 ao relatar sobre suas vivências anteriores no espaço da rua à pesquisadora, durante pesquisa de campo, comentou sobre sua infância afirmando que: “... dentro da situação vulnerável eu fui um menino que ... quando eu cheguei já vinha meio malandro do Rio. Assim, já sabia muito como era a rua, porque lá agente brincava muito na rua, via como era o movimento e aqui se tornou uma coisa para mim normal, estar ali brincando com os meninos”. (Colaborador 3). Conforme Bourdieu (2001c), o habitus possibilita aos sujeitos fazerem escolhas na realização de suas práticas e de suas representações, evidenciando que possui uma dimensão de dinamicidade, de plasticidade, de mutabilidade. Entretanto, sempre sua pré– constituição será oriunda da classe social ou coletivo no qual esse sujeito viveu e realizou sua aprendizagem social/cultural (BOURDIEU, 2001c). O autor (2001b) ainda acrescenta que a ação prática é resultante da relação entre um habitus e uma situação concreta. Tendo em vista estas considerações 66 compreendemos a abordagem de rua como uma situação concreta da prática terapêutica em saúde, orientada sobre determinadas condições sociais e históricas específicas, através de seus profissionais que promovem ações a partir de arranjos do passado orientadores das ações do presente, sob constante reformulação. Ainda em relação ao indivíduo congregar a peculiaridade do campo de práticas em saúde a partir da mediação de sua própria trajetória social dispõe-se da seguinte fala: A demanda da rua eu tenho que saber dividir, eu tenho que deixar a demanda que encontrei na rua para não jogar na minha casa, porque muitas vezes os conflitos são tão sérios que deixa agente muito baratinada no manejo de resolver os problemas da rua”. (COLABORADOR 1). Esse colaborador apresentava maior interesse para uma abordagem de rua voltada ao público adulto, por meio dos aconselhamentos e distribuição de preservativo, verificado na pesquisa de campo. Teve como trajetória social uma infância restrita às condições do ambiente rural, sob muitas privações, principalmente no que diz respeito à rede social. Ao sair do ambiente doméstico foi oportuno o desenvolvimento de atividades laborais em espaço urbano, como também a ampliação da interação em rede social. As atividades laborais possibilitaram o desenvolvimento das práticas relacionais no ambiente doméstico. Essas reflexões são passíveis de serem observadas na fala de um dos entrevistados, na sequência: Eu não lembro da minha infância. Eu não tive infância ... Porque eu morava no interior e a minha infância foi só estudar. Trabalhava numa horta. Ia sempre porque trabalhava com meus pais. Tinha que fazer carvão, plantação, machucava no fio do roçado ... Tenho 6 irmãos e sou a mais nova. Minha adolescência passei toda em São Paulo, porque eu dei muito trabalho aos meus pais. Eu era privada de sair em festa. Diziam que eu era muito danada. Eu era muito arengueira, eu arengava muito, dei até na professora. Fui para São Paulo com meu irmão mais velho e minha irmã mais velha. Meu irmão trabalhava e morava por lá. Ele trabalhava num aeroporto, onde meu primeiro trabalho foi no Aeroporto de Congonhas. Me casei com um cearense, ai vim pra cá. Fui para São Paulo aos 12 anos e voltei com 19 anos. Depois fui para recife para passear. Tenho 2 filhos meus e 2 que eu criei ... Tenho um bebê de 1 ano e 8 meses - eu to a coisa mais linda de vó-, mas cada macaco no seu galho. (COLABORADOR 1). Na abordagem de rua, por meio do diálogo, adquirido a partir da interação do saber vivencial com o técnico, no cruzamento entre a história pessoal e a relação com a instituição, o sujeito, no seu lugar de profissional, desenvolve-se sob o senso prático, sem desconsiderar os acontecimentos históricos. Através dos processos cognitivos os profissionais do PCR podem identificar que saberes são passíveis de serem selecionados, combinados, mobilizados para a prática direcionada ao público de sujeitos em situação de rua, usuários de substâncias psicoativas (BOURDIEU, 2001c, 2003). 67 Por fim, a abordagem de rua, na perspectiva de Bourdieu (1983, 1994, 2001c, 2003, 2007), pode ser traduzida como decorrente das aprendizagens construídas ao longo das vivências pessoais, profissionais e das práticas em saúde. 3.1.2. Produção terapêutica nas práticas de território No tocante às práticas em saúde no território, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2010c) preconiza que o primeiro movimento da equipe dos profissionais do PCR deve ser o mapeamento da área de abrangência. Esse mapeamento, no município de Fortaleza, centralizou-se, inicialmente, em 2010, na área de cobertura da Secretaria Regional do Centro, expandido, por conseguinte, à Secretaria Executiva Regional II (SER II) por comportarem mais sujeitos em situação de rua. Como atividade inicial desse processo, os profissionais do Consultório de Rua realizaram contatos com outros profissionais pertencentes à Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) por já desenvolverem abordagem de rua pelo Centro da cidade, localizado na SER II. Através dessa ação, os profissionais do Consultório de Rua adquiriram informações prévias acerca da dinâmica urbana existente entre os moradores em situação de rua, usuários de substâncias psicoativas, da SER II, uma das áreas de prevalência do fluxo da população, principalmente no turno da noite. O início da abordagem pelas ruas de Fortaleza foi desenvolvido de forma processual, ou seja, os profissionais do PCR inicialmente observavam, por dentro da Kombi em movimento, os moradores em situação de rua nos espaços urbanos onde se encontravam e conforme autorização destes acontecia os primeiros contatos para explicar a proposta de trabalho em saúde. Foram espaços urbanos caracterizados por praças, ruelas e calçadas localizados no Centro da cidade. Nesse período, ações como participar da fila para receber sopas ou lanches ofertados pela caridade religiosa, ocorreram com o objetivo de vincularem-se ao grupo dos moradores em situação de rua, no bairro Centro. Contudo, essa ação foi extinta pelos profissionais do PCR, pois resultou em desconfiança e raiva por parte da população em situação de rua desse território que se constituía por mendigos, bêbados e retirantes. Durante conversa com o profissional que forneceu essas informações o mesmo analisou esse contexto do início da abordagem de rua pelo PCR em Fortaleza como: A gente tinha muita ansiedade em vincular logo com a população de rua e nos fazermos conhecidos. Agora agente não tem tanta pressa de ir até eles. Na maioria das vezes, agora, eles que veem até nós [...] A própria Kombi tem um design legal, chega a despertar curiosidade e eles se aproximam. (COLABORADOR 4). 68 Observou-se durante a pesquisa de campo que em alguns espaços aonde os profissionais do Consultório de Rua chegam para abordagem de rua, ainda permanecem próximos à Kombi. Tal fato decorre, em algumas situações, por ainda não serem conhecidos pelo grupo de usuários de substâncias psicoativas em situação de rua que, às vezes, encontra-se sob o uso coletivo da pedra de crack, na lata; outras vezes, por considerarem ser um espaço perigoso para a dispersão da equipe. Conforme o Colaborador 4, a depender da área de abordagem pelos profissionais do Consultório de Rua, o espaço da rua comporta uma população composta por grupos que ora localizam-se em praças ora migram para marquises ou mesmo outras ruas localizadas em bairros distintos. O Colaborador 3, acerca da abordagem de rua inicial, com a população em situação de extrema vulnerabilidade social, afirma que: No início começamos a abordagem na coragem mesmo, sem ter ninguém junto que já fosse conhecido pela população de rua [...] Falta retaguarda e se agente vacilar já era. (COLABORADOR 3) Essa dificuldade apresentada denuncia a não existência dos redutores de danos da própria comunidade compondo a equipe do PCR em Fortaleza. Autores como Niel e Silveira (2008) sustentam a relevância dos redutores de danos serem da própria comunidade, durante a abordagem de rua, ao afirmarem: “O fato de serem reconhecidos como membros da comunidade de usuários, faz com que não representem uma ameaça de denúncia às autoridades policiais, pelo caráter da ilegalidade do consumo de drogas. Por conhecerem as rotinas e os códigos, têm maior facilidade de reconhecer o momento mais adequado para tomar a iniciativa de como e onde abordar os usuários. A empatia e a linguagem apropriada também se tornam facilitadores da aproximação entre redutores e a população-alvo” (NIEL, SILVEIRA, 2008, p.24). Acerca desse contexto o Colaborador 4 afirma que “a rua é cheia de incertezas e inseguranças, por isso as atividades são criadas no aqui-agora de acordo com a demanda que surge”. Após esse espaço ser demarcado pelos profissionais do Consultório de Rua houve a expansão para outros bairros, como Praia de Iracema, Meireles e Vicente Pinzón. O cronograma da rota semanal para a realização das práticas terapêuticas estabelecido pela equipe do PCR opera-se conforme o Quadro 2, a seguir: 69 Quadro 2: Cronograma da rota semanal dos profissionais do PCR (Equipe 1) Segunda-feira Praça do Dragão Praça da Estação Praça do Ferreira Terça-feira Praça do Dragão do Mar Ferro de Engomar (Igreja Santa Luzia)30 Banco HSBC Travessa Jacinto Casa da Sopa Loja ACAL Rua Clarindo de Queiroz Praça do Ferreira Quarta-feira Ferro de Engomar Avenida Beira Mar Rua José Avelino (Feira do Dragão do Mar) 31 Baixa-Pau (Rua Gérson Gradval) Quinta-feira Campo 29 flutuante Banco HSBC Sexta-feira Praia Titanzinho (Vicente Pinzón) Avenida Beira Mar Avenida Mar Rua José Avelino (Feira do Dragão) Beira Viaduto da Avenida Alberto Nepomuceno 32 Casa da Sopa Baixa Pau Praça da Estação 33 Rua Clarindo de Queiroz Fonte: Pesquisa Direta, 2012. Segundo pesquisa de campo, não foi verificado o cumprimento com precisão dos horários e rotas estabelecidos. Esses destinos das rotas da equipe do PCR podem ser observados pelas Figuras 6 e 7: 29 Período em que a equipe do PCR busca outros espaços para a abordagem de rua. A equipe considera a delimitação territorial do espaço onde se localiza a Igreja Santa Luzia parecido a de um ferro de engomar roupas, por isso utiliza o termo Ferro de Engomar. 31 É um espaço conhecido por Baixa-Pau pela equipe do PCR devido ao nome da favela que a área. 32 A Casa da Sopa é o nome da instituição que fornece lanche ou sopas durante o período noturno de 19:00 às 21:00h aos moradores em situação de rua. Trata-se de uma instituição espírita. 33 Praça da Estação é o nome tradicional, porém atualmente foi renomeada para Praça Castro Carreira 30 70 Figura 6 – Cartografia da rota dos profissionais do Consultório de Rua Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012 após extrair a imagem do Google Earth. 71 Figura 7 - Cartografia da rota dos profissionais do Consultório de Rua Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012 após extrair a imagem do Google Earth. Os pontos numerados correspondem, respectivamente, aos seguintes locais: 1- Praça Parque das Crianças. 2- Praça do Dragão do Mar. 3- Baixa-Pau (Rua Gérson Gradval). 4- Rua José Avelino (Feira do Dragão). 5- Viaduto da Avenida Alberto Nepomuceno. 6- Praça da Estação. 7- Praça do Ferreira. 8- Casa da Sopa. 72 9- Rua Clarindo de Queiroz. 10- Calçada da Loja ACAL. 11- Ferro de Engomar (Igreja Santa Luzia). 12- Banco HSBC, na Travessa Jacinto. 13- Avenida Beira Mar, na lateral da Pizza Hutt. 14- Centro de Saúde da Família Flávio Marcílio, no Mucuripe. 15- Titanzinho, no Vicente Pinzón. Na Praça da Estação acontece uma feira de vestuários durante os turnos manhã e tarde. No entorno há um ponto terminal para ônibus que transitam pelos bairros da região leste do município de Fortaleza, assim como também há terminal com destino à região metropolitana por rotas que levam a Maranguape e Maracanaú, localizados no sentido sul de Fortaleza, pelas vias ferroviária e rodoviária. Acrescente-se ser um espaço de aglomeração de pessoas que fazem do ambiente um lugar de passagem para vários destinos. Ao entardecer as barracas da feira são desmontadas. O fluxo de pessoas e transportes tende a diminuir por volta das 19h. Começa, então, a configuração do espaço aos interesses destinados a furtos, prostituição e comércio de drogas. Há uma iluminação pública comprometida. A Kombi fica parada na Rua Castro e Silva, conforme Figuras 6 e 7, em frente ao Shopping Acaiaca, que se encontra quase em desuso. Os profissionais ficam próximos a Kombi a espera de demanda espontânea; quando os usuários não se aproximam, saem para trabalhar sob o foco da prevenção e promoção da saúde. Nesse horário os profissionais do Consultório de Rua desenvolvem ações junto às profissionais do sexo, crianças e adolescentes em situação de rua, na maioria das vezes há distribuição de preservativo e gel, caso o usuário seja do sexo feminino. A prevenção, promoção e intervenção na área da saúde também são realizadas com alguns vendedores ambulantes do turno da noite, focando na distribuição de camisinhas e na orientação sobre doenças sexualmente transmissíveis. As visitas nesse espaço são semanais, entre o horário das 18 às 19h. Em uma das paradas na Praça da Estação, um adolescente de 16 anos, apresentando um fenótipo de 10 anos, aproximou-se manifestando curiosidade pela Kombi. Esse adolescente estava cheirando cola e um profissional do Consultório de Rua se aproximou perguntando “se podia trocar uma ideia” (Colaborador 5). O menino, sem resposta, continuou a cheirar a garrafa de cola e a olhar o que havia dentro da Kombi. O profissional começou a batucar com as mãos, um pouco afastado do menino, que identificou o som e começou a cantar. O profissional, ao se aproximar do garoto, inicia um pequeno diálogo a fim de saber as outras drogas de uso. Através do diálogo é identificado como 73 outras drogas de uso a cocaína, desde os oito anos, e o crack, desde os 10 anos, além da cola de sapateiro. Novamente o garoto retoma o silêncio e se põe a cheirar a garrafa de cola. O profissional retoma a batucada e instiga o jovem a dizer de que música se tratava. O garoto novamente se posicionou a cantar três músicas, todas do tipo gospel. Antes de ir embora o garoto recebeu preservativos com orientações quanto ao uso e o processo de vinculação se iniciou a fim de facilitar próximas abordagens. Esse momento aconteceu no espaço representado pelas Figuras 8 e 9, na sequência: Figura 8 - Praça da Estação observada por trás da Kombi Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. 74 Figura 9 - Praça da Estação observada pela frente da Kombi Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Ainda sobre os contornos do Centro, de abrangência da abordagem de rua dos profissionais do Consultório de Rua, há o espaço da Praça do Ferreira. Esse espaço é caracterizado por possuir uma boa iluminação pública e arborização, além de bancos que comportam pessoas da terceira idade e casais de namorados, no período noturno. Constituise tanto por se tratar de um espaço de passagem quanto por ser agregador de pessoas para descanso ou descontração com amigos, no turno da manhã e da tarde. Contudo, durante o turno da noite, o movimento de pedestres fica quase que escasso. Esse cenário torna-se palco para os moradores em situação de rua durante a apropriação do espaço, sentarem nos bancos da praça e conversarem uns com os outros, conforme a Figura 10 apresenta, até o momento em que é distribuída uma sopa: 75 Figura 10: Moradores de rua esperam por ações caridosas e é oportunizada a abordagem de rua pelos profissionais do Consultório de Rua Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Nesse ambiente há a presença da população de rua composta por crianças, adolescentes, adultos e idosos. Os profissionais, ao chegarem, ficam próximos à Kombi e logo são abordados por uma demanda que busca por preservativos e gel. Há o desenvolvimento da ação de prevenção em saúde pela contação de histórias, com o auxílio do livro educativo infantil de prevenção bucal, ao público infantil, que muitas vezes, demanda, também, ações recreativas como brincar de bola, esconde-esconde e pega-pega. As visitas à Praça do Ferreira ocorrem semanalmente entre as 19 e 20h, período de maior concentração dos moradores em situação de rua, usuários de substâncias psicoativas, devido às distribuições de sopa. Segundo o Colaborador 4, na região do bairro Centro, que comporta os grupos de moradores em situação de rua, usuários de substâncias psicoativas, que se encontram pela Praça do Ferreira e Rua Tristão Gonçalves, em frente à loja Acal ocorrem muitos conflitos por causa da demarcação de território: Aqui no Centro há um público muito arredio. Os variados grupos têm lideranças com disputas constantes que dificulta as ações coletivas. Aqui na praça do Ferreira você pode ver que cada um fica na sua. Muitos desses grupos que ficam aqui vão à Casa da Sopa e dormem pela Acal. (Colaborador 4) Entre a população de rua há muitas cenas de violência por causa da demarcação de território. Basta um que já tenha demarcado o território se sentir incomodado por outro, que seja para também demarcar, há a violência física. (Colaborador 4) 76 Outro espaço no qual acontecem ações terapêuticas é a Casa da Sopa, localizada na Rua Assunção, entre a Rua General Clarindo de Queiroz e a Rua Meton de Alencar, conforme Figura 11. Figura 11 – Estabelecimento Casa da Sopa Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. A Casa da Sopa é um espaço bem pequeno, que tem disponível uma sala grande para atividades em grupo, seis banheiros, uma sala menor para dispensar alimentos e uma sala para atendimento individual ocupado por outros equipamentos sociais como o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) para População de Rua. Essa instituição desenvolve ações de cunho religioso, cuidados de higiene básicos, oferta de sopa e lanche. A proposta do Consultório de Rua é atuar em ações integradas junto ao NASF para População de Rua com atividades de promoção, prevenção e intervenção na área da saúde à população em situação de rua, conforme ilustra a Figura 12. 77 Figura 12 – Campanha de vacinação da Hepatite na Casa da Sopa Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. As visitas realizadas a essa instituição são semanais, entre 20 e 21h. Nesse espaço institucional são realizadas ações como deslocamento de usuário ao atendimento de emergência no Hospital Geral já acolhidos pelo NASF de Rua; campanhas de prevenção à Hepatite B e Tétano através da vacinação; realização dos testes de HIV e Tuberculose; palestras sobre doenças sexualmente transmissíveis. São ações que visam uma melhor qualidade de vida frente ao uso de drogas nas ruas. Certa vez, em frente à Casa da Sopa, um morador em situação de rua, ao se aproximar de profissionais do Consultório de Rua para discutir a questão da internação compulsória à população de rua usuária de drogas, em vigor a partir do Decreto nº 7.637, de 8 de dezembro de 2011(BRASIL, 2011a), afirmou que havia algumas lideranças da rua que já estavam se organizando a fim de se protegerem quando entrasse em vigor essa prática no município de Fortaleza. Após a saída desse usuário o Colaborador 4 chegou a comentar que: Esse tipo de discussão entre a população de rua do Centro é mais frequente por serem mais informados e articulados. São grupos que defendem o seu território a todo custo. (Colaborador 4) Essa avaliação do profissional em questão é fruto da observação da dinâmica dos espaços na rua vivenciada durante a abordagem do dia-a-dia. Seguindo a outra área de abrangência de abordagem dos profissionais do Consultório de Rua tem-se a calçada da Loja Acal, localizada na Rua Tristão Gonçalves. 78 Essa loja disponibiliza a venda de materiais para construção. Trata-se de um espaço público caracterizado por ser bem assistido pela iluminação pública. Contudo, em frente a Loja Acal, devido aos estabelecimentos com marquises, a iluminação pública fica escassa, oportunizando, assim, aos usuários de drogas mais pesadas, como o crack, fazerem uso do entorpecente. Esses espaços possuem grupos heterogêneos compostos por famílias, recicladores de lixo e vendedores ambulantes. Acerca desse cenário em que a função de territórios próximos varia conforme as necessidades dos sujeitos envolvidos sobre os circuitos da economia urbana trava-se uma discussão com embasamento em Santos (1979) mais à frente. Considerando a variação da função dos territórios conforme as necessidades dos sujeitos, observou-se durante a pesquisa de campo como exemplos: 1) a Praça do Ferreira, durante período diurno há a atividade comercial de vestuário, sapataria, instituições financeiras, produtos farmacêuticos, bancas de revista e muitas pessoas que transitam; ao final da tarde os bancos na praça são utilizados para o descanso e interação principalmente entre grupos da terceira idade; e no período noturno os bancos e marquises das lojas são utilizados pelos moradores em situação de rua para a espera da distribuição de sopa e acomodação dos dormitórios em pedaços de papelão ou colchões já bastante usados; 2) e a Praça da Estação em período diurno há a atividade comercial de vestuário e final de linha dos ônibus oriundos da região oeste; durante a noite torna-se uma área caracterizada por pouca presença de pessoas e veículos, furtos, homicídios e prostituição. Segundo pesquisa de campo constatou-se que em frente a Loja Acal ainda é um espaço desassistido pelas propostas estratégicas da redução de danos. O Colaborador 3 acrescentou que nessa área já foram realizadas duas tentativas de abordagem nas quais os usuários de substância etílica mostraram-se resistentes à presença dos profissionais do Consultório de Rua, ao lançar objetos tanto na Kombi quanto nos próprios profissionais. Em razão dessa dificuldade de acesso do serviço de saúde, a equipe dos profissionais procurou se articular com outros profissionais da Semas que já realizavam abordagem de rua nesse espaço há mais tempo. Essa articulação visou oportunizar um apoio inicial para o desenvolvimento da abordagem de rua e o estabelecimento de vínculos a fim de surgirem as possibilidades interventivas. Outro espaço da prática de território pelos profissionais do Consultório de Rua fica por baixo do viaduto da Avenida Alberto Nepomuceno, ao lado do Mercado Central, sob ilustração da Figura 13. Caracteriza-se por ser desprovido de luminosidade pública e existir pouquíssimo tráfego de carros no turno da noite. Comporta uma população de rua, em sua maioria, do sexo masculino e adultos. 79 Figura 13 – Viaduto da Avenida Alberto Nepomuceno Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. A abordagem ocorre pela distribuição de preservativos. Nesse espaço predomina o uso de drogas, por isso a abordagem dos profissionais ocorre com todos dentro da Kombi. Há a abordagem também na Rua Clarindo de Queiroz, entre a Avenida Visconde do Rio Branco e a Rua Jaime Benévolo, próximo à Cidade da Criança, ponto de referência da chegada e dispersão da equipe dos profissionais do Consultório de Rua. Distingue-se por comportar profissionais do sexo, no caso, travestis. Ressalte-se que alguns ainda não atingiram a maturidade civil. As visitas ocorrem a partir das 20h30min, por se tratar de período em que se vê maior número de travestis. As ações de redução de danos reservamse à distribuição de preservativos e lubrificantes. Uma maior permanência dos profissionais do Consultório de Rua no local interfere no fluxo do comércio sexual. Ressalte-se que a cada distribuição de preservativo ou kit de higiene bucal durante a abordagem de rua é recolhido o nome do usuário e a idade para controle dos atendimentos e dispensa dos insumos. No bairro Praia de Iracema há práticas nas Ruas Gérson Gradvol, que fica por traz dos Armazéns Adolfo Caminha, localizado na Rua Pessoa Anta; Rua da Feira, situada 80 na Rua José Avelino; Avenida Almirante Barroso, nas proximidades do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura; Igreja Santa Luzia, na Rua Tenente Benévolo; lateral do banco HSBC, na Travessa Jacinto. A Rua Gérson Gradvol caracteriza-se por ser um ambiente de pouca iluminação pública, não asfaltado e sem fluxo de carros. É um ambiente que se localiza próximo a um galpão de reciclagem, ao Marina Parque Hotel e a algumas boates noturnas acessíveis a um público pagante. O Marina Parque Hotel é um hotel luxuoso promotor da circulação de capital econômico abundante. Nas proximidades desses estabelecimentos predomina o trabalho informal, a exemplo da venda de lanches e bebidas, assim como o comércio de drogas realizado principalmente por adolescentes do sexo masculino que transitam apenas para o repasse a consumidores. Esse território concentra grupos de adultos jovens em condições de vulnerabilidade social e recicladores. Constitui-se enquanto espaço de uso, abuso e dependência das drogas, assim como um dos caminhos para o tráfico, no turno da noite. As ações dos profissionais do Consultório de Rua restringem-se à distribuição de preservativos e a equipe sempre se refere a esse espaço como Baixa-Pau. O acesso ao local faz-se pelas coordenadas: ao final da Avenida Almirante Barroso, sentido leste, dobra-se à direita até finalizar a área dos armazéns abandonados (Figura 14). Figura 14 - Acesso à Rua Gérson Gradvol Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. 81 Esse espaço, por ser amplo, foi indicado pelos profissionais do Consultório de Rua, durante reunião com outros profissionais do Vila das Artes, para o desenvolvimento de ações conjuntas. A reunião resultou em planejamento conjunto, entre os profissionais de ambas as instituições citadas, para a viabilidade de ações voltadas ao desenvolvimento das atividades de arte e cultura pelos espaços urbanísticos da cidade. O indicativo ficou direcionado para a equipe do Consultório de Rua mobilizar a população de rua. Esse movimento tinha como fim a exposição de filmes de curta-metragem em espaços públicos objetivando oportunizar momentos culturais, aos finais de tarde, à população de rua. Nesse ambiente, durante pesquisa de campo, aconteceu uma mobilização coletiva visando à reconstrução da identidade. Essa prática desenvolveu-se durante um diálogo em grupo que acabou por instigar o conhecimento da idade dos sujeitos envolvidos e um dos componentes do grupo não sabia a idade. Esse dado mobilizou todos os outros membros do grupo envolvidos que o instigaram a descobrir a data de nascimento a partir da rememoração de acontecimentos sociais da época de infância. Contudo, nada o fazia lembrar. Foi quando um dos profissionais (Colaborador 5) disse: “É hoje! Parabéns pra você ...”. Esse sujeito ficou muito emocionado, pois há muitos anos não ouvia um parabéns. Ainda pelo bairro Praia de Iracema há a Rua José Avelino, apresentada na Figura 15, conhecida pelos profissionais do Consultório de Rua por Rua da Feira34. Essa rua, que fica ao lado da biblioteca central no sentido leste, é um espaço de passagem dos “flanelinhas” e de uso do crack. Essa rua não é toda bem assistida pela iluminação pública, no turno da noite, e tem seu relevo irregular e não pavimentado, dificultando o tráfego de carros, ônibus e caminhões, por isso é pouco o movimento de veículos. As práticas de território ocorrem semanalmente, no período entre 17 e 18hs ou 18 e 19hs. 34 A Rua José Avelino é denominada pelos profissionais do PCR por Rua da Feira devido a sua localização próxima a uma feira de confecção, no período noturno 82 Figura 15 – Rua José Avelino Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Nesse ambiente a prática de território é direcionada para a prevenção da saúde com orientações acerca de usos que podem prevenir as hepatites virais, comuns durante o uso do crack devido à fissura nos lábios e ao compartilhamento da lata em que se queima a pedra para o uso de sua fumaça. Em algumas situações nesse espaço, durante as abordagens de rua, a presença da Kombi foi significativa, pois despertou curiosidades na comunidade, tanto de seguranças uniformizados quanto da população de rua. Certa vez um grupo que se fazia presente em uso de crack manteve-se distante até que, ao finalizar, uma moradora de rua se aproximou e perguntou o que era Consultório de Rua que estava escrito na Kombi. Inicia-se um diálogo sobre o que era o serviço, a proposta da redução de danos frente ao uso de drogas, os outros serviços que assistiam os usuários de drogas para tratamento em saúde e assistência. Na ocasião, a usuária queixava-se de dificuldades na respiração em decorrência do uso de crack e, mesmo sabendo das ações preventivas, a mesma afirmava não realizar os devidos cuidados necessários que reduzissem os danos a sua saúde. Outro momento a ser relatado foi quando um segurança que observara o trabalho da equipe do Consultório de Rua, ao vê-lo finalizado, se aproximou para ter maiores informações acerca dos atendimentos oferecidos pela rede municipal e estadual ao usuário de substância psicoativa. Nessa prática de território a equipe também teve como 83 ação a escuta de algumas queixas individuais, derivadas da experiência pessoal com a substância psicoativa, manifestadas pelo segurança. A abordagem de rua também é realizada nas proximidades do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, ilustrado pela Figura 16, na Av. Almirante Barroso. Nesse entorno há um grupo de moradores em situação de rua que fica sob um abrigo por baixo de uma árvore na Av. Almirante Barroso. A prática de território com esse grupo acontece por encaminhamentos e atendimentos clínicos. As visitas são realizadas semanalmente no período entre 17 e 18hs. Figura 16 - Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Seguindo por espaços percorridos pela equipe do Consultório de Rua no bairro Praia de Iracema, há abordagens na Igreja Santa Luzia, apresentada na Figura 17. 84 Figura 17 – Igreja Santa Luzia, popularmente conhecido por Ferro de Engomar pelos profissionais do PCR Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Esse espaço, situado na Rua Tenente Benévolo, é referenciado pela equipe por Ferro de Engomar, devido ao seu formato de ferro. Caracteriza-se por ser um ponto de renda para “flanelinhas”, devido à rotatividade de carros, favorecida por um supermercado, e é bem assistido pela iluminação pública. A prática de território assinala-se por atendimentos individuais, com demanda para as questões de ordem clínica e preventiva. As visitas são realizadas semanalmente no horário entre 17 e 18hs. No bairro Meireles, em área próxima à Beira Mar, situada na lateral da Pizza Hut, conforme Figura 18, existe um ambiente com iluminação pública precária oportunizando o comércio de drogas entre um adolescente do sexo masculino, que repassa a substância psicoativa aos vendedores ambulantes em trânsito pela feirinha da Beira Mar, observado durante o período da pesquisa. 85 Figura 18 - Lateral da Pizza Hut, na Avenida Beira Mar Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. O local apresenta um ambiente muito insalubre, escuro e com pouco tráfego de pessoas. Há uma marquise sob a qual os moradores em situação de rua se alojam à noite e é utilizada como um ponto de apoio para repasse da droga. Essa feirinha tem como público a população local adicionada a turistas. A abordagem de rua é realizada no intervalo entre 19 e 20hs. Anteriormente, a prática terapêutica de território nesse espaço contava com o apoio de uma traficante, também adolescente, assassinada em janeiro de 2012, período em que era realizada a pesquisa de campo. A equipe do PCR ao vincular com a adolescente realizou orientações sobre os ganhos que ela teria nas vendas das drogas ao também propagar a ideia da redução de danos durante o ato da comercialização, como por exemplo, um usuário de substância psicoativa que reduz os riscos a saúde em decorrência do uso da droga tem uma sobrevida maior para o consumo. Durante o período da pesquisa de campo verificou-se que a prática de território na lateral da Pizza Hut ocorre com a distribuição de preservativos aos moradores em situação de rua. 86 Há também abrangência do trabalho do Consultório de Rua no bairro Praia de Iracema, na lateral do banco HSBC, situado na Travessa Jacinto, conforme a Figura 19. Figura 19 – Travessa Jacinto Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Essa travessa caracteriza-se por ser bem assistida pela iluminação pública, contudo, há pouco tráfego de pessoas e veículos. Segundo relato de uma moradora, várias assinaturas coletadas da comunidade já foram recolhidas para a retirada da população de rua, que se encontra instalada com seus materiais de reciclagem. Nesse contexto, a equipe do Consultório de Rua exerce práticas de mediação de conflitos. Além dessa ação, a equipe desenvolve práticas de encaminhamento a atendimentos de emergência e serviços substitutivos para o tratamento das drogas oferecidos pelos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas; conscientização ambiental em relação ao material agrupado para reciclagem armazenado por boa parte do dia; atendimento clínico de primeiros cuidados para o não agravamento de doenças acometidas; e escuta terapêutica. No bairro Vicente Pinzón, especificamente no primeiro quarteirão da Avenida Zezé Diogo, que fica entre a Avenida Leite Barbosa e a Avenida Vicente de Castro, em um bar (Figura 20), há como prática de território a prevenção de doenças infectocontagiosas por meio da distribuição de preservativos e panfletagem, apresentada na Figura 21. O local comporta um banco de preservativos, organizado pela equipe e pela proprietária do estabelecimento, assim como também ocorre na Casa da Sopa. A presença da equipe do Consultório de Rua acontece semanalmente, no horário entre 17 e 18hs. 87 Figura 20 - Atuação da equipe do Consultório de Rua no Vicente Pinzón Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. Figura 21 – Prática preventiva da equipe do Consultório de Rua no Vicente Pinzón Fonte: Acervo da pesquisadora, 2012. 88 As práticas de território são oportunizadas como resultado das trocas de saberes entre profissionais e usuários de substâncias psicoativas, assim como também pelas supervisões, que acontecem quinzenalmente. A supervisão é dirigida por um supervisor psicólogo oriundo da SMS que tem experiência na saúde mental em CAPS AD há mais de cinco anos. Esse supervisor trabalha três focos: 1) relação intersubjetiva entre os membros da própria equipe; 2) textos com enfoques diversos, voltados para as temáticas do campo, como a) o efeito das substâncias psicoativas, assim como suas consequências no organismo, b) território, c) estratégias de redução de danos para o álcool, cocaína, crack e cola de sapateiro que são as mais utilizadas pelos usuários em Fortaleza, d) a relação entre profissional e usuário, e) afetividade intra e inter-pessoal, e e) doenças sexualmente transmissíveis; e 3) estudos de casos. Também são trabalhadas outras questões conforme a demanda da própria equipe, a exemplo de estratégias de articulação da rede de cuidados, aproximação, corresponsabilidades e pactuação da participação do usuário em seu próprio tratamento; e elaboração de atividades para o campo a fim de facilitar o manejo nas abordagens das ruas. As ações do supervisor a partir da problematização, indagação e cooperação, visando encontrar estratégias possíveis às diferentes formas de acesso à demanda do PCR, com fins de produção dos sentidos nas práticas terapêuticas realizadas pela equipe, procuram ampliar a dimensão de uma clínica social. O enfoque metodológico com que o supervisor trabalha envolve a lógica da Redução de Danos numa perspectiva sociocultural, referenciada por estudos de Walter Benjamin (1994) sobre a reflexão de narrativas. Essa referência propicia à equipe uma reflexão sobre as práticas para além da ordem clínica orgânica, envolvendo também aspectos sociais, estéticos, existenciais, políticos e afetivos. Segundo o supervisor “apontam-se esforços de agregar outros modos de cuidados, conforme apontado como clínica social ou clínica ampliada singular”. Essa fala do supervisor se correlaciona aos dois modelos de atenção ainda existentes nos serviços públicos ofertados à saúde, tais como, o biomédico e o psicossocial. No modelo de atenção biomédico ocorre: a) herança do modelo assistencial privatista; b) uma clínica degradada pelo pouco vínculo entre profissional e usuário; c) interesses econômicos prioritários; d) o profissional é quem detém o saber no processo da doença/cura; e) foco no atendimento medicamentoso de alto custo; f) baixa autonomia dos usuários; g) ineficácia para as doenças crônicas; h) baixo aproveitamento de trabalho em equipe; i) incapacidade de atuação em problemas de saúde coletiva; e j) gestão por procedimentos/produção. A clínica no modelo biomédico consiste em sintoma, doença e diagnóstico que ao serem definidos busca-se o alívio dos sintomas e a cura (CAMPOS, 2000). 89 No modelo de atenção psicossocial há a responsabilidade sanitária pelo território, adscrição de clientela, inserção social, promoção de saúde e gestão por resultados. A clínica no modelo psicossocial compreende o problema de saúde a partir das condições vulneráveis do sujeito e o risco que a doença oferece dentro de um contexto onde este esteja inserido (CAMPOS, 2000). A presença desses dois modelos na prática do PCR é considerada pelo supervisor ao afirmar a existência de: [...] uma tensão [...] que, ora produz ou se desvia da ordem medicamentosa / tradicional, ora vislumbra outros modos, ainda ausentes, na prática integral de cuidados. Há um paradoxo, uma contradição em cena. A prática dos profissionais em saúde, dificilmente produz sentidos com princípios dialéticos. As práticas produzidas tendem a uma posição, seja para uma visão normatizadora, sendo flagrado um certo enquadramento, para uma visão higienista, provocando toda uma inquietação e afetação aos modos de vida diversos de uma certa ordem de uma concepção reducionista e absoluta de saúde. Falo isso num sentido geral da saúde e, digo que em certos momentos, de modo específico, a equipe do Projeto Consultório de Rua acaba se deparando com práticas, também, assim. A clínica ampliada singular ou clínica social, considerada pelo supervisor da equipe do PCR constitui-se por ser uma prática terapêutica de atenção psicossocial na saúde, construída através do diálogo que busca conhecer as dimensões biológica, psicológica e social dos sujeitos nos respectivos serviços de atendimento em saúde. Esta prática terapêutica se caracteriza por: a) reconhecimento da singularidade de cada sujeito; b) busca de conhecimento em saúde para além do sintoma e da doença do sujeito ao reconhecer as múltiplas dimensões biológica, psicológica e social deste; c) realização de trabalho em equipe; d) intersetorialidade; e) investimento na autonomia e protagonismo do sujeito em atendimento (CAMPOS, AMARAL, 2007). O supervisor da equipe do PCR reconhece a relevância da pesquisa de campo sobre a prática terapêutica de território em que é possível ser observado os modelos de atenção à saúde biomédico e psicossocial em: Por isso, mais uma vez, penso ser extremamente oportuno você visualizar, de mais perto, a partir da equipe de campo, essas tensões e contradição que fazem parte do momento de um ano e quatro meses, mais ou menos, do início das atividades no campo. Esses dois lados existem... E é maior do que as práticas dos profissionais em si, é toda uma cultura dificílima de ser rompida e transformada... Durante a pesquisa de campo foi observado o modelo biomédico que incapacita os profissionais do PCR durante as práticas terapêuticas diante dos problemas de saúde coletiva como: as endemias que são as doenças de época como a dengue e as doenças respiratórias (viroses, bronquites e pneumonia); doenças crônicas como hipertensão e diabetes; tuberculose e hanseníase; doenças de pele como escabiose, dermatites; e as doenças sexualmente transmissíveis. Esses problemas de saúde coletiva apresentados 90 durante a abordagem de rua necessitam do diagnóstico médico para os devidos tratamentos e encaminhamentos aos serviços de saúde com fins de resolubilidade, que aponte soluções ao respectivo problema. Ressalte-se que o profissional médico não se encontra presente na composição da equipe do PCR, no município de Fortaleza e nem em nenhuma produção científica pública pesquisada durante a construção dessa pesquisa. Em relação às práticas terapêuticas dos profissionais do PCR enquadradas no modelo de atenção psicossocial, observou-se durante a pesquisa de campo: compreensão da situação de rua do usuário de substância psicoativa a partir do contexto sócio-histórico; realização de atividades em que se busca a autonomia do usuário a partir do incentivo ao auto-cuidado; planejamento terapêutico compartilhado, ou seja, durante a prática terapêutica é priorizado as escolhas do usuário em seu tratamento; desenvolvimento de vínculos e afetos entre profissional e usuário a partir do diálogo; responsabilização compartilhada do processo de adoecimento com a postura acolhedora do profissional ao sofrimento do usuário estabelecendo uma relação da confiança, apoio e empatia; na abordagem de rua não há julgamentos dos profissionais a usuários que querem continuar usando drogas e permanecer em situação de rua; oferta das possibilidades reais que possam reduzir os danos à saúde do usuário mediante o uso das substâncias psicoativas; perguntas durante e ao final das intervenções como, por exemplo, “você entendeu?”, que permita o estabelecimento do diálogo. Não foi observada na construção de projeto terapêutico compartilhado do usuário, momentos em que todos os profissionais do PCR estivessem envolvidos. Contudo, conforme falas entre o Colaborador 4 e supervisor, durante momentos de supervisão, descritas a seguir, as práticas terapêuticas dos profissionais do PCR enquadradas no modelo de atenção psicossocial apresentam dificuldades, tais como: Colaborador 4: As vezes pra gente é difícil. Eles só pedem dinheiro. Eles não brincam ... Daí pra vincular e trazer a nossa proposta fica difícil. Supervisor: Mas o momento aqui é o de possibilidades, vamos criar as alternativas possíveis. Claro que não vamos esquecer do cuidado em si inicialmente e depois o do sujeito no coletivo [...] vocês podem ouvir suas próprias histórias. Recontem sempre, revivam a identidade que ainda existe dos sujeitos quando em relação com vocês. Busquem a ancestralidade ao falar do presente, trazendo a figura dos antepassados para dentro dos sujeitos. A angústia move e ela nasce da necessidade de se escolher o que se quer ser no aqui-agora. Reconheçam o sujeito, no campo social do cuidado. Estas dificuldades da vinculação entre os profissionais do PCR e os usuários de substâncias psicoativas que o Colaborador 4 refere-se durante a abordagem de rua decorrem da herança cultural capitalista das moedas de troca, ou seja, a espera por distribuição de sopas das instituições caridosas pode representar mais ganhos às 91 necessidades básicas humanas imediatas do que uma espera pela escuta qualificada de um profissional da saúde. No âmbito da saúde o Brasil a partir de 1960, incorporou gradualmente a política de assistência médica previdenciária ao racionalizar e viabilizar a expansão do acesso à saúde a partir da compra de serviços privados em detrimento aos da rede pública. O posicionamento do Estado frente ao mercado de produção e consumo de serviços da saúde tentou, por um lado, responder às pressões dos consumidores, técnicos e empresários, favorecendo a organização de uma prática médica privada, orientada pelo lucro e, por outro, amenizar a intensa crise social e política pela qual passava. Viu-se então uma grande expansão da rede de serviços de saúde privados financiados por recursos públicos (ALMEIDA, 2002). Sobre essa realidade histórica brasileira inicial de promoção da saúde o Supervisor da equipe do PCR argumenta: Nossa dívida social é imensa... E não parece ser à toa... Pois a pergunta que faço e refaço a mim é: A quem produzimos práticas de saúde? De que modos cuidamos? De quem cuidamos quando afirmamos que cuidamos? Quais as armadilhas culturais de um país de exclusão com remuneração tão desiguais e gigantescas? Como produzir uma saúde que leve em consideração a sabedoria de uma produção de vida na miséria para uma diminuição efetiva de condições de vida dignas e humanas, sem assistencialismo e clientelismo? Bem!!! Essas são indagações que penso serem éticas para um profissional que trilha a saúde coletiva, saúde mental... E isso deve ser convertido em potência para gerar uma prática, se não resolutiva, menos desigual”. No que diz respeito às práticas em saúde sob as diretrizes do SUS à população de rua, o Colaborador 3 ainda considera muito a ser feito e discutido. Ele considera uma exclusão as práticas higienistas voltadas para interesses outros que não são os de inclusão da população usuária de substâncias psicoativas em situação de rua ao afirmar: Colaborador 3: O SUS é utópico. Busca-se sustentar o que é insustentável [...] Há algumas práticas pingadas de saúde à população de rua [...] o que se está propondo com maior ênfase pra nossa sociedade atual é exterminar a população de rua com as práticas higienistas. Supervisor: O que vocês trazem são os fatos das análises perversas da sociedade, mas o que você enquanto profissional do Consultório de Rua pode fazer no espaço das ruas junto aos moradores. Acerca da realidade social em que se busca uma prática terapêutica na abordagem de rua com atividades grupais com fins lúdicos, o Colaborador 4 apresenta algumas dificuldades ao afirmar: A nossa abordagem no coletivo é muito difícil porque eles não confiam falar de seus problemas para os outros ouvirem. Geralmente quando tem algo desse tipo, eles nos chamam em particular para trocar umas ideias. Às vezes são situações de que não se preveniram no dia anterior com alguma menina; outras são de que contraíram alguma doença e não querem que os outros do grupo em que estejam 92 saibam para não ficarem zoando... sabe como é que é né! Pode rolar o preconceito, a discriminação. (Colaborador 4) Ainda sobre a prática de território enquanto uma produção de saber na rua temse, na supervisão, o disparar de reflexões, como se verifica a partir das próprias falas dos entrevistados: Supervisor: Como colaborar para potencializar o campo? Qual a oferta? Colaborador 5: Teve uma vez na rota, quando paramos a Kombi para irmos lanchar, que um daqueles meninos que ficam vigiando carros me pediu para adiantar o dinheiro. Daí disse que ia dar uma coisa melhor que dinheiro. O flanelinha perguntou o que poderia ser melhor que dinheiro. Eu respondi que quando voltasse ele saberia. O flanelinha ficou encucado com minha fala e me perguntou por mais umas 3 vezes o que poderia ser melhor que dinheiro. Fomos ao lanche e ao sairmos do local lá se vem o flanelinha correndo para saber. Fiz algumas perguntas do que ele achava e a resposta foi que nada era melhor que dinheiro. Quando cheguei no carro tirei um preservativo e disse que aquilo era melhor que dinheiro. Ficamos um bom tempo conversando e ao final o flanelinha disse que trocar uma idéia era melhor que dinheiro. Supervisor: Como foi que te bateu essa idéia? Colaborador 5: Foi uma vez na abordagem quando eu estava distribuindo preservativo um dos moradores de rua disse que tinha horas que a camisinha era melhor do que dinheiro. Eu me lembrei desse fato pra começar um diálogo, porque o cara tava insistindo muito por dinheiro e nossa proposta não era essa enquanto profissionais daquela Kombi. [...] Supervisor: ... a participação da pessoa e dos profissionais podem efetivar as políticas públicas [...] Supervisor: Houve alguma situação crítica em que se criaram diálogos a partir de tensões? Colaborador 4: Na rota eu fui ascender meu cigarro e foi foda o cara vir querer que eu desse meu cigarro como se eu tivesse obrigação de dar pelo fato de ser pago pela prefeitura. Eu disse que não tinha obrigação de dar porque aquele cigarro era fruto do meu trabalho e agora eu queria fumá-lo. Assim como eu tinha comprado o meu cigarro ele também fosse comprar o dele. Quase que agente saia no tapa, mas foi indo, agente trocando ideia. [...] Supervisor: Tivemos até agora alguns marcadores de significações e implicações. Digamos que um envolvimento da prática nas ruas. [...] Colaborador 2: Esse relato da tensão sob o cigarro de X, fez com que sempre ao chegar nesse espaço agente passou a ser recebido com uma música - que sempre segue a mesma melodia, só muda a letra. Em relação a esse morador de rua agente teve algumas informações pelo porteiro de um dos condomínios e suspeitamos já ter passado por algumas internações psiquiátricas. Ele não fala de uso de substâncias, mas usa pedra. [...] Colaborador 3: Mesmo com muitas deficiências afetivas nas relações da população de rua ainda presenciamos alguns comportamentos carinhosos entre eles. Teve um dia que se estava distribuindo sopa e uma adolescente veio com a 93 boca toda suja de sopa dar um beijo em um idoso que estava sentado também tomando a sua sopa. [...] Colaborador 5: Muitas das vezes estamos em atendimento e temos que interromper porque se começa alguma confusão, seja por qual motivo for. É o que dizemos: ali já deu o que tinha que dar. Observou-se por essas falas acima entre alguns componentes da equipe do PCR e supervisor, em Fortaleza, que a prática terapêutica de território produz saberes específicos a partir: do modo de vida da população em situação de rua; das informações adquiridas por trabalhadores noturnos que observam a dinâmica da rua; e dos laços afetivos entre as diferentes faixas etárias. Por outro lado, ao se falar da produção de saberes nas práticas do Consultório de Rua em Fortaleza toma-se como uma das referências as reflexões do livro “Clínica Peripatética”, de Antonio Lancetti (2009), que discute o que vem a ser uma clínica volante, trazendo alguns apontamentos da prática de Redução de Danos a partir do diálogo que ocorre com Domiciano Siqueira e suas respectivas discussões em torno da clínica antimanicomial (LANCETTI, 2009). Segundo o autor, o termo Peripatético remete-se à escola filosófica de Aristóteles em que se ensinava andando. Daí o termo proceder da palavra peritatéo que etimologicamente significa passear, ir e vir conversando (LANCETTI, 2009). Nesse processo de aprendizagem, a dinâmica do território oportuniza a apropriação dos espaços públicos que se privatizam quando vinculadas às necessidades momentâneas dos sujeitos. É aqui nesses espaços que identificamos o perfil do usuário ou então os horários em que eles costumam vir para descansar, ou mesmo para trocar ou exercer alguma atividade financeira. Esses locais são próprios para isso à população em situação de rua”. (Colaborador 3) Acerca do funcionamento dos territórios, Haesbaert (2004) aponta as características de aparecimento e desaparecimento. O autor conclui seu pensamento afirmando que esses aspectos ocorrem devido à característica de mobilidade e transitoriedade dos territórios. Para complementar essa reflexão tem-se Pereira (2000), que considera o conceito de território na perspectiva da territorialidade enquanto um lugar de construção e “produto da apropriação, da valorização simbólica de um grupo em relação ao espaço vivido”. Ressalte-se que esse espaço físico em funcionamento também é observado por Deleuze e Guattari (2002) como espelho do domínio sobre um conjunto de elementos, no ambiente, composto por uma simbologia pré-existente ao próprio território. Dessa forma, sobre esse pensamento, acrescenta-se um território que é segmentado, refletindo a 94 distância existente entre os diferentes códigos das relações humanas entre si em um mesmo espaço. Na pesquisa de campo observou-se que os moradores em situação de rua demarcam o território a partir de suas necessidades, como por exemplo: o espaço utilizado para descanso e alimentação não será o mesmo para o uso da substância psicoativa. São territórios privatizados por grupos afins homogêneos como o grupo de dependência para o álcool, grupo de dependência para o crack e o grupo de dependência para o crack e outras drogas em que as vivências das substâncias psicoativas são passíveis de serem compartilhadas no coletivo. No território que torna-se palco das vivências coletivas um banco de praça a depender do momento de interação pode simbolizar descanso, diversão, agrupamento de sujeitos para fins específicos, esconderijo e observatório. Santos (2003), ao entender a categoria território enquanto uma apropriação social no âmbito político, econômico e cultural, assume ser esta possuidora de característica dinâmica, cercada por conflitos inerentes à própria condição humana de relacionar-se socialmente. Por isso, na perspectiva da territorialidade, segundo o autor supracitado, temse um território, fragmentado e fragmentador, integrado e integrador, que externa as relações políticas e econômicas do espaço local às decisões globais. Em Fortaleza, conforme a observação em campo, um território com dimensões de 200m na sua extensão comporta diferentes grupos de moradores em situação de rua com interesses específicos. O mesmo território que fragmenta os grupos também os integra a depender de seus interesses, como por exemplo, os grupos de usuários de álcool e crack compartilham de um mesmo espaço no momento da distribuição de sopas. Por sua vez, Pol (1996) explica a diferença entre a apropriação do espaço público e do privado. O espaço privado é apropriado basicamente por ação-transformação, em primeira instância, e por identificação, em segunda fase; a apropriação do público nem sempre segue esse processo e há uma relação maior pela identificação. Durante a pesquisa de campo em Fortaleza os grupos usuários de crack identificam-se mais com os espaços de pouca iluminação pública devido aos riscos envolvidos por usarem uma droga que é ilícita, já os grupos usuários de álcool identificamse mais com os espaços mais iluminados. No município de Fortaleza, Silva (2007) descreve o território localizado no bairro Centro a partir da: “precariedade e o déficit que atingem os setores de infra-estrutura, equipamentos e serviços nas áreas do saneamento básico, habitação, saúde e educação agravam a situação de pobreza do centro da cidade que se transformou em centro da periferia. Eles são indicadores das diferenças estruturais que explicam os enormes desníveis e os contrastes marcantes entre o centro e outros bairros da cidade. O crescimento acentuado da população urbana do Ceará engrossa a lista das cidades de porte médio e 95 reforçam algumas das pequenas. Essa população recentemente integrada à condição de urbana, permanece elegendo o centro de Fortaleza como núcleo principal de negócios e espaço simbólico do encontro do interior com a capital” (SILVA, 2007, p. 117). Silva (2007) finaliza sua análise afirmando que o centro de Fortaleza mostra-se: “[...] repartido, fragmentado, configura diversos territórios em seu interior, confirmando sua condição de espaço privilegiado de negócios, de encontro, de trocas e de múltiplas atividades”. (p. 117). Ainda sobre a produção das práticas de território têm-se diferentes concepções pelos profissionais da equipe do Consultório de Rua acerca da Redução de Danos, nas seguintes respostas: Eu posso pensar em saberes psicológicos, sociológicos, filosóficos e antropológicos para se pensar numa estratégia de como agente chega na rua. Todos esses saberes vão ser importantes para nós irmos trabalhando como chegar na rua. Hoje o conhecimento da redução de danos vem para mim muito mais das experiências do que vejo na rua, das coisas que leio de experiências práticas também. (Colaborador 5), As conversas com o pessoal que agente trabalha, no Consultório de Rua, dependem da hora de chegar, da hora de você abordar. Isso é uma coisa que você nunca sabe e quem vai te dizer é o usuário a quem você vai abordar. É muito complicado porque é totalmente diferente a prática, porque agente pega cada local barra pesada. (Colaborador 2). É aqui nesses espaços que identificamos o perfil do usuário ou então os horários em que eles costumam vir para descansar, ou mesmo para trocar ou exercer alguma atividade financeira. Acho que esses espaços merecem de uma forma serem estudados e pesquisados para agente perceber quais as melhores estratégias a serem usadas para a abordagem dessa população. O Consultório de Rua é para a população em situação de rua, mas isso não impede de que as pessoas que estejam em situação de comunidade também sejam vistas com um olhar positivo. (Colaborador 3). Conhecer o que a rua está nos ensinando para como fazer essa prática; seja nossa postura, atitude, linguagem, local, horário, o dia... É o que fazer, como fazer, em que dia fazer e qual local fazer. (Colaborador 5). Para trabalhar com redução de danos, na rua, você precisa compreender aquele espaço, que recursos tem, pensando que tipo de linha de redução de danos você vai usar. Então, o espaço vai ser muito determinante para como agente vai propor as mudanças. Porque, no caso, tem alguns locais que você faz propostas e é feito as negociações em redução de danos. Você negocia com o que você tem para negociar. Tem locais que tem como negociar alguns fatores, enquanto outros não tem como negociar aqueles mesmos fatores. E isso vai mudando como agente vai trabalhar na redução de danos. (Colaborador 5). Saliente-se que a relação com o usuário de substância psicoativa, nos espaços demarcados pela prática de território, contribui para a ampliação dos saberes adquiridos na vivência pessoal. Essa reflexão pode ser observada pela fala “Seja como for, a rua nos dá elementos para pensarmos no nosso dia-a-dia”. (Colaborador 5). 96 Assim, por meio das vivências subjetivas de cada profissional, com seu modo específico operante, a depender dos territórios singulares na abordagem das ruas, tem-se o deflagrar do estilo próprio para o desenvolvimento das práticas no Consultório de Rua, sob a lógica da redução de danos, no município de Fortaleza. 97 4. O CUIDADO EM SAÚDE: UM CAMINHO PARA A PRODUÇÃO DE PRÁTICAS TERAPÊUTICAS, NO CONTEXTO DA REDUÇÃO DE DANOS O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais do que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro. Do ponto de vista da existência o cuidado se acha no principio da vida, o que significa reconhecer o cuidado como um modo-de-ser. (BOFF, 1999, p.73). No capítulo anterior discutiu-se a Categoria I, intitulada Redução de danos e subjetividade em espaço urbano: os saberes na prática de território. Verificou-se que as práticas de território desenvolvidas a partir das estratégias de Redução de Danos objetivam oferecer um cuidado em saúde específico aos usuários de substâncias psicoativas em situação de rua. Sobre as diferentes formas de se conceber o cuidar, a partir da compreensão de autores como Remen (1993), Boff (1999), Waldow (1998), Silva et al. (2001), dentre outros, discute-se neste capítulo a Redução de Danos na perspectiva da transversalidade das práticas do cuidar. Sobre essa transversalidade das práticas do cuidar são consideradas as categorias saúde e drogas no PCR, do município de Fortaleza, conforme delegado pelo percurso metodológico, como Categoria II, diante da segunda etapa constituinte para a análise dos núcleos de sentido desta pesquisa. 4.1. A redução de danos na transversalidade das práticas do cuidar no consultório de rua 4.1.1. Saúde e drogas Na Constituição Federal de 1988 a saúde é reconhecida como um direito básico de todos os brasileiros, compromisso social regulamentado pela Lei nº 8.080/90, cujo artigo 3º traz como seus fatores determinantes e condicionantes o saneamento básico, a moradia, o meio ambiente, a alimentação, o trabalho, a renda, a educação, o lazer, entre outros aspectos. Esses fatores condicionantes influenciaram a compreensão das práticas de saúde para além do foco em assistência médica e doença. Assim, gradativamente as produções de práticas em saúde se reorientaram para ações mais complexas e amplas, 98 alinhavando os recursos entre promoção de saúde, prevenção, tratamento, reabilitação e reinserção social. Durante o percurso da luta antimanicomial (movimento político, social e econômico que defende a não hospitalização e a garantia dos direitos de cidadania aos portadores de transtorno mental), o Ministério da Saúde anunciou a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, assegurando atendimento multifatorial pelo SUS a essa população, sem necessariamente a oferta dessa atenção integral ocorrer somente pelos serviços de saúde (BRASIL, 2002). A relevância dessa política na saúde pública está no entendimento da problemática do uso de drogas como um objeto complexo que necessita de tratamento e medicamento acessível na atenção primária; educação em saúde na comunidade; ampliação de recursos humanos; incentivo à pesquisa e à constituição da rede de suporte social, em áreas como educação, trabalho e promoção social (BRASIL, 2002, 2004). Na Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas a Redução de Danos é conceituada como: “[...] um conjunto de medidas em saúde que têm a finalidade de minimizar as consequências adversas do uso/abuso de drogas. Tais ações possuem como princípio fundamental o respeito à “liberdade de escolha”, porquanto, mesmo que nem todos os usuários consigam ou desejem abster-se do uso de drogas, preconiza-se, como medida de saúde, a redução dos riscos de infecção pelo HIV e hepatite” (BRASIL, 2002, p.11). As medidas de redução dos riscos surgem a partir das expectativas probabilísticas de vulnerabilidade dos usuários de substâncias psicoativas em relação aos agravos na saúde e se propõem a reduzir o surgimento de doenças ocasionadas devido à exposição aos agentes agressores. Na Redução de Danos essas medidas se desdobram em alternativas que diminuam os riscos e danos tanto para os usuários de substâncias psicoativas quanto para a coletividade. Segundo Nardi e Rigoni (2005), as medidas em redução de danos são estimadas a partir dos saberes advindo da população usuária de substância psicoativa atendida; diálogo entre usuário e profissional da saúde; não condicionamento da prática em saúde à abstinência total e imediata; estímulo às práticas de autocuidado; construção de projeto terapêutico compartilhado; estabelecimento de objetivos a serem alcançados na busca por cidadania; aconselhamento para a diminuição da quantidade ou frequência do consumo de droga; substituição das substâncias mais danosas por outras que causem menores prejuízos à saúde; e fortalecimento de vínculos afetivos. Essas medidas parecem convergir para o estabelecimento de práticas em saúde que concebem o indivíduo numa perspectiva ampla de cuidado, e que não o distancia de sua realidade social, podendo ser observado nessa pesquisa, nas palavras do Colaborador 99 1 ao afirmar que “cuidar da saúde, cuidar de todas as formas como: saúde, sabedoria, inteligência e dignidade”. Conforme Cavalcante (2008), várias práticas de cuidado durante o consumo de drogas, embasadas na perspectiva da Redução de Danos, são oriundas de informações contidas em material educativo que é promovido por ONG e OG como: ONG Solivida, no Maranhão; Casa, Acerd e Associação Cearense de Travestis (ATRAC), do Ceará; Gapa, do Rio Grande do Sul, e os PRD municipais de São Paulo, São Vicente e Porto Alegre. Referenciada por esses materiais educativos em Redução de Danos, Cavalcante (2008) dispõe como exemplos: “Para redução de danos do álcool, é recomendado ingerir água e líquidos não alcoólicos antes, durante e depois de consumir álcool; comer antes de beber, para o álcool ser absorvido mais lentamente pelo organismo; utilizar vitaminas do complexo B regularmente; beber devagar, pois quanto mais rápido beber, mais rápido ficará bêbado; não misturar álcool com outras drogas; evitar atividades incompatíveis com a embriaguez como dirigir; e ficar atento para não se envolver em situações de violência. As recomendações para diminuir os danos do tabaco são reduzir o número de cigarros que consome; não consumir cigarros com baixos teores, pois estes podem levar ao consumo de maior número de cigarros para obter a mesma satisfação; tentar outras fontes de nicotina como adesivos e gomas de mascar; aumentar a ingestão de água e de alimentos ricos em vitamina C; controlar outros fatores de riscos para o infarto como obesidade, sedentarismo, ansiedade; fazer exercícios físicos; não fumar durante a gravidez; e não fumar em ambientes fechados de uso coletivo. No caso da cocaína, quando for cheirar, tenha seu próprio canudo e não utilize nota de dinheiro como canudo. No caso de consumo de cocaína ou outras drogas injetáveis é importantíssimo ter seu próprio material como agulha, seringa, água, colher, copo, etc; lavar as mãos antes de preparar doses injetáveis; limpar o local com álcool antes da aplicação; pressionar o local aplicado com o polegar; usar pequenas quantidades de água destilada para dissolver a droga; injetar lentamente para aliviar o efeito; usar agulhas bem pequenas para se injetar; e fracionar as doses para diminuir o risco de overdose. Ainda quanto às drogas injetáveis é importante não repetir a dose com a mesma seringa, se for reutilizar sua própria agulha e seringa, apenas por você mesmo, lave-as regularmente com cloro; fortalecer as veias, pressionando o local com as mãos ou com uma bolinha de borracha ou de papel; evitar tomar doses sucessivas na mesma veia. Os pontos mais seguros para injetar as drogas são: veias dos braços, antebraços e veias das pernas, quando se injeta nos pés, as veias são muito frágeis e pode ser muito dolorido. Evite injetar em determinadas regiões como pescoço, rosto, barriga, seio, pênis, vagina, coxas e pulsos, pois estes pontos são perigosos. Tomar cuidado ao descartar o seu equipamento de injeção, colocando os instrumentos numa lata de refrigerante vazia ou numa caixa segura. Evite misturar estas drogas, principalmente com álcool, pois a mistura aumenta o risco de overdose; retire os kits de uso seguro de drogas injetáveis com o redutor de danos ou no serviço de DST/AIDS mais próximo de sua casa; se trocar de fornecedor experimente a nova droga em quantidades menores; e saiba que drogas com impurezas podem causar infecções das válvulas do coração e dos vasos sanguíneos, feridas na pele e infecção generalizada. Os cuidados adequados para o uso do crack, são beber muita água e líquidos não alcoólicos; reservar tempo para dormir e comer; evitar usar e compartilhar latas; de preferência fumar em cachimbo individual e com filtro; esperar o cachimbo esfriar antes de usar de novo; 100 limpar o cachimbo regularmente; e tentar substituir o crack pela maconha, ou mesmo misturar, pois a maconha pode aliviar a fissura, causando menos prejuízos para a saúde. Para reduzir os danos da merla é importante beber muito líquido; consumir alimentos que contenham vitamina C como laranja, acerola, caju e limão; comer alimentos ricos em carboidratos como macarrão, arroz, batata, feijão, porque as substâncias tóxicas causam desnutrição rápida; e usar piteira individual. Quanto ao uso da maconha também se deve beber muito líquido; consumir vitamina C; procurar usar individualmente; usar piteira para evitar ferimentos nos lábios; preferir a maconha em sua forma natural, evitando suas formas prensadas, que cotem grande quantidade de agrotóxico, aditivos químicos. E por fim, para o uso mais seguro de substâncias de design, como o LSD e o ecstasy, é importante usar estas substâncias em companhia de alguém sóbrio; tomar líquidos de maneira moderada, pois o ecstasy trava o funcionamento normal da bexiga; procurar locais ventilados; evitar uso em situações incompatíveis com os efeitos, como dirigir, trabalhar, praticar esportes radicais; e usar sempre camisinha” (CAVALCANTE, 2008, p. 91-93). Durante a pesquisa de campo evidenciou-se como recomendações dos profissionais do PCR aos usuários de substâncias psicoativas com fins de reduzir os danos à saúde: 1) Álcool: ingestão de água e líquidos não alcoólicos antes, durante e depois de consumir álcool; beber devagar e em menor quantidade; não misturar álcool com outras drogas; e não se envolver em situações de violência. 2) Crack: beber muita água e líquidos não alcoólicos; estabelecimento de tempo para dormir e comer; evitar usar e compartilhar latas de alumínio não higienizadas; dar preferência ao fumo em cachimbo individual e com filtro; limpar o cachimbo regularmente; e tentar substituir o crack pela maconha, ou mesmo misturá-las; e 3) usar sempre camisinha nas relações sexuais. Essas práticas de cuidado com a saúde, sob o embasamento de um enfoque educativo, permitem ao profissional do PCR estimular a conscientização dos usuários de substâncias psicoativas a fim de que assumam uma maior autonomia sobre os seus atos. Trata-se de uma política operacional dialógica educativa entre profissional e usuário com vistas a reduzir os danos causados pelo uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. [...] percebo a Redução de Danos como uma política e uma série de práticas dialógicas e instrumentais que vem tentar reduzir os danos a saúde de quem está em uso abusivo de drogas. (Colaborador 3). Desse modo, a Redução de Danos implanta na clínica uma nova tecnologia de cuidado mediada pelo diálogo, buscando desenvolver reflexões sobre as formas de uso da substância psicoativa que possibilite melhor qualidade de vida à saúde, já citadas anteriormente, aos novos sujeitos de direito (BRASIL, 2006). Essa tecnologia do cuidado através da abordagem dialógica se legitima pela humanização, modelada por meio do cuidado e do acolhimento dos profissionais para com os usuários de substâncias psicoativas, no desenvolvimento de práticas em saúde no SUS. 101 Contudo essa abordagem dialógica sobre as substâncias psicoativas nem sempre existiu. Existiram diferentes performances e significados sobre a diversidade das tradições socioculturais de muitas sociedades, devido aos variados modos de concepção em torno de sua utilização. No Império Romano, período do cristianismo, entraram em crise as antigas noções pagãs sobre a neutralidade da droga, a embriaguez sóbria, a automedicação e o limite entre moral e direito vivenciados pelas sociedades mais antigas. Perseguiram-se os praticantes dos cultos mágicos tentando obstruir qualquer traço de suas antigas crenças e práticas. Assim as drogas foram estigmatizadas, no século X, tornando-se sinônimo de heresia por sua associação a cultos mágicos, religiosos e usos terapêuticos para aliviar o sofrimento. A dor e a mortificação da carne eram concebidas pelos cristãos como formas de aproximação com Deus. A busca por cura limitara-se ao uso de recursos simbólicos, como substâncias conhecidas por “pó de múmia”, “pó de chifre de unicórnio”, indulgências eclesiásticas, óleos santos, velas e água benta (ESCOHOTADO, 1994). No século XVIII, pela influência do racionalismo e iluminismo, as drogas “pagãs” voltam a ser utilizadas para fins lúdicos e medicamentosos. O ópio volta a ser a principal substância usada na composição de diversos medicamentos utilizados por pessoas de todas as classes sociais, contexto que favoreceu a efervescência de conflitos entre Inglaterra e China na chamada “guerra do ópio”, por ser uma das principais mercadorias de exportação do mercado europeu (ESCOHOTADO, 1994). No início do século XIX, cientistas isolaram os princípios ativos de várias plantas produzindo fármacos como a morfina (1806), codeína (1832), atropina (1833), cafeína (1841), cocaína (1860), heroína (1883), mescalina (1896) e os barbitúricos (1903). O cálculo das dosagens de plantas com maior exatidão, em laboratório, proporcionou um manejo mais fácil e puro (ESCOHOTADO, 1994). Nesse período, leis e políticas públicas que tornaram o uso de drogas legítimo ou ilegítimo foram respaldadas pela medicina científica na sociedade urbano-industrial ocidental. No cenário das discussões sobre a legalidade do uso, ascende o modelo proibicionista visando suprimir a produção e o consumo de determinadas substâncias psicoativas. Os Estados Unidos iniciaram esse modelo caracterizado por focar na natureza farmacológica das drogas, ilegalidade das mesmas, repressão e abstinência (MACRAE, 2001; RODRIGUES, 2009). Ressalte-se que na Política sobre Drogas, no Brasil, a Política de Redução de Danos se fundamenta na perspectiva sociocultural e geopolítica estrutural que, ao observar a problemática social, se propõe a realizar intervenções focadas na redução dos efeitos danosos das drogas, visando melhorar o bem-estar físico e social dos seus usuários. 102 Nessa perspectiva, reconhece-se a diversidade advinda das especificidades dos contextos histórico-sócio-culturais em que ocorrem os usos de drogas. Daí não ser possível atribuir uma causa universal para os usos, abusos ou dependência de substâncias psicoativas (ESPINHEIRA, 2004; MACRAE, 2001). Assim, atualmente no Brasil, as estratégias da Política de Redução de Danos dissipam-se no lócus das ruas, hospitais e prisões a fim de garantir o direito do acesso universal aos serviços de saúde e reabilitação social, minimizando os possíveis danos que o consumo da substância psicoativa podem causar à saúde sem desconsiderar a necessidade real do indivíduo, ao direcioná-lo à lógica da abstinência ou internação (BRASIL, 2011a). O usuário que quer continuar fazendo uso de qualquer tipo de substância continua tendo os seus direitos para fazer algum tipo de tratamento, a pensar sobre sua saúde, a pensar sobre a forma de uso, mesmo que ele continue usando. (Colaborador 5). Conforme a Organização Mundial de Saúde (2001) o termo droga significa qualquer substância natural ou sintética que, administrada por qualquer via no organismo, afeta a estrutura ou funcionamento do Sistema Nervoso Central. Esta afirma que cerca de 10% da população mundial dos centros urbanos apresentam um consumo abusivo, independentemente de idade, sexo, nível de instrução e poder aquisitivo. Mediante o consumo abusivo das substâncias psicoativas as práticas em saúde, embasadas na Redução de Danos, ampliaram o seu campo de atuação ao diminuir o uso de drogas injetáveis e aumentar outras, como a maconha, cocaína, merla, crack, álcool, tabaco, psicofármacos e anabolizantes (NARDI; RIGONI, 2005). Para alguns autores o fenômeno das drogas que direciona as práticas em saúde na atualidade está correlacionado à economia da produção e comércio legal e ilegal de entorpecentes. Sob esse pensamento “a história das drogas pertence cada vez menos à história das culturas locais e cada vez mais à história da economia capitalista” (BARATTA apud MESQUITA; BASTOS, 1994, p. 40). Acerca da relação entre o fenômeno das drogas e a economia capitalista Bucher (1992) acrescenta que nos países industrializados, o consumo de drogas se correlaciona ao bem ou mal-estar social, assim como também ao (des)equilíbrio das interações e (in)satisfação existencial dos cidadãos quanto às suas aspirações. Já nos países periféricos em desenvolvimento, o excesso do uso de drogas manifesta as condições precárias da realidade socioeconômica e cultural dos comportamentos não saudáveis. É um ciclo vicioso em que a pobreza, a marginalidade e os danos à saúde se retroalimentam. Ainda sobre a relação entre o fenômeno das drogas e a economia capitalista, Siqueira (2006) acredita ser um movimento que acompanha o desenvolvimento das 103 civilizações. O uso de “forma epidêmica” caracteriza a contemporaneidade envolvida pelo desenvolvimento de agravo das doenças. Essa realidade atual, sob o ponto de vista da legalidade na classificação lícita ou ilícita das substâncias psicoativas, sofre interferências do Estado, que é constrangido pelos determinantes culturais e econômicos diante da permissão para consumo e comercialização (SIQUEIRA, 2006). Dentre os medicamentos psicoativos comercializados no Brasil têm-se os benzodiazepínicos de efeito tranquilizante ou indutores do sono Diazepam, Clordiazepóxido, Clonazepam, Midazolam, Alprazolam, Bromazepam e Flunitrazepam, cujos nomes comerciais são, respectivamente, Valium, Psicosedin, Rivotril, Dormonid, Frontal, Lexotan e Rohypnol; os anestésicos gerais, analgésicos e antiespasmódicos derivados do ópio Fentanila, Meperidina, Morfina e Codeína, cujos nomes comerciais são Durogesic, Fentanil, Inoval, Dolantina, Dolosa, Astramorph, Dimorf, Belacodide, Setux e Tylex; e os antiparkinsonianos e antinflamatórios Triexfenidila, Diciclomina e Benzidamina, cujos nomes comerciais são Artane, Bentyl e Benflogin (Cebrid, 2007). Acrescente-se também a indústria farmacêutica transnacional de substâncias psicoativas, que incentiva a busca pela juventude eterna e o corpo perfeito, fármacos como os esteroides anabolizantes; e os moderadores do apetite ou anorexígenos, procedidos de anfetaminas como Anfepramonas, Femproporex e Metilfenidato, cujos nomes comerciais são Dualid, Hipofagin, Inibex, Desobesi e Ritalina (Cebrid, 2007). A indústria farmacêutica em constante crescimento é a terceira economia mais lucrativa do mundo, abaixo apenas dos bancos e das empresas petrolíferas. Atualmente, as empresas que dominam esse mercado lucrativo transnacional são conhecidas por Pfizer, Johnson & Johnson, Roche e Novartis (Cebrid, 2007). Somados aos fármacos sintéticos produzidos em laboratório por manipulações químicas ainda se tem, na realidade brasileira, as drogas classificadas em naturais e semissintéticas. (Cebrid, 2007). As drogas naturais são retiradas da natureza; dentre elas tem-se as seguintes plantas: maconha (Cannabis sativa), coca ou epadu (Erythroxylon coca), papoula do oriente (Papaver somniferum). Desta última se extrai o pó de ópio35. Também se tem como drogas naturais os vegetais: cogumelos, jurema, mescal ou peyot, caapi e chacrona (Cebrid, 2007). Já as drogas semissintéticas têm o seu princípio ativo oriundo da natureza, entretanto, passam por um processo químico para se adequar ao consumo, a exemplo da cocaína (pó solúvel em água), crack (pedra que quando aquecida volatiza) e merla (pasta extraída da coca), provenientes de extratos da folha de coca; charuto, rapé e cigarro, 35 A palavra ópio em grego quer dizer “suco” (Cebrid, 2007). 104 confeccionados a partir das folhas de tabaco; morfina e heroína, que têm o ópio como matéria prima (Cebrid, 2007). A apropriação de conhecimentos que revelam a variedade de substâncias psicoativas existente no Brasil, produtoras de diversas consequências danosas à saúde como dependência química e/ou doenças orgânicas, oportuniza aos profissionais do PCR o fundamento para desenvolverem práticas dialógicas promotoras do vínculo entre trabalhador e usuário. No dia-a-dia agente acaba absorvendo todo esse conhecimento. Na prática você tem que colocar isso, que é o mais difícil para agente, na abordagem. Você colocar isso para as pessoas como uma forma de realmente reduzir, o dano causado pelas substâncias. (Colaborador 3). A questão da segurança de você está propondo algo que é relativamente novo no modo da maneira de se pensar o uso que seja menos danoso. É justamente ai que o saber entra. Ele te dá a segurança para os assuntos mais subjetivos. (Colaborador 4). Menegon (1999) salienta que o diálogo produz sentidos e posicionamentos na relação cotidiana entre as pessoas, afirmando: Conversas do cotidiano pressupõem dialogia (vozes), que presentifica, também, interlocutores ausentes da situação da conversa e, além do contexto imediato da situação relacional, leva em conta a relação estabelecida entre o tempo curto (face-face) e o contexto mais amplo da circulação de ideias. (MENEGON, 1999, p. 215). O diálogo presente no cotidiano das relações que é mediado pelo olhar mútuo e o contexto das narrativas aproximam os sujeitos mesmo diante de suas ausências. Esse diálogo intercedido por conhecimentos sistematizados a partir de um arcabouço teórico respaldam as práticas terapêuticas da saúde pública. Nessa perspectiva acreditamos que os diálogos realizados durante a abordagem de rua, não desconsiderando o olhar mútuo e o contexto das narrativas, favorecem as práticas terapêuticas do cuidar dos profissionais, respaldados por um arcabouço teórico, no PCR, aos usuários de substâncias psicoativas. Logo, não sendo possível o fim das drogas, a Redução de Danos teve seu conceito ampliado durante as duas últimas décadas. Em relação a esse conceito ampliado da Redução de Danos Mesquita e Bastos (1994) acrescentam que sua definição é antes de tudo operacional e aberta, em constante desenvolvimento a partir das práticas terapêuticas em saúde pública ofertadas às diferentes extensões da vida social dos indivíduos. 105 4.1.2 Práticas do cuidar Historicamente, no campo da saúde, a prática do cuidar se aproximou do sacerdócio e da filantropia, regularizando a junção do corpo e subjetividade à lógica da divisão social do trabalho (REZENDE, 1989; PIRES, 2004). Segundo Pires (2002), a organização tecnológica dos serviços de saúde regidos sob a lógica do trabalho em favor do capital institucionalizou o cuidado. Merhy (2002) ao discutir a organização tecnológica dos serviços de saúde afirma que estes não são constituídos somente pelos equipamentos e máquinas. O autor classifica as tecnologias envolvidas no trabalho em saúde a partir de tecnologias leves36, leve-duras37 e duras38 na produção do cuidado, diante dos contextos em que o imaginário dos usuários do SUS é compreendido por um quantitativo de exames, consultas, consumo de medicamentos e insumos como sinônimo de qualidade na assistência. É oportuna a compreensão de que a expressão cuidado, na área da saúde, assume conceitos que vão desde a contraposição ao curar até uma proposta ética. Na perspectiva da proposta ética o profissional vai ao encontro do outro visando estabelecer laços de confiança e vínculo, compreendendo que a saúde como “direito de ser” que significa: “atender às pessoas em seu sofrimento com respeito e acolhida, sem perder de vista sua fragilidade, também social. Requer a aceitação do outro como sujeito e um mover-se no sentido da construção da saúde como projeto de cidadania” (ZOBOLI, 2007, p.64). Em função, dessa proposta ética durante a abordagem do profissional da saúde ao usuário não se estabelece regras e a relação é entendida como um desenvolvimento histórico no campo de conhecimentos da bioética que se caracteriza como: “abordagem secular, inter, multi, transdisciplinar, prospectiva, global, multicultural, inter-religiosa e sistemática, que considera a pluralidade dos contextos e tem por base o diálogo inclusivo de todos os afetados e envolvidos como interlocutores válidos” (ZOBOLI, 2007, p.64). 36 São tecnologias assistenciais desenvolvidas por meio do trabalho vivo em ato no processo relacional entre trabalhador-usuário em que ocorre “um encontro entre duas pessoas, que atuam uma sobre a outra, e no qual se opera o jogo de expectativas e produções, criando-se intersubjetivamente alguns momentos interessantes como momentos de falas, escutas, interpretações, no qual há a produção de uma acolhida ou não das intenções que estas pessoas colocam neste encontro: momentos de possíveis cumplicidades, nos quais pode haver a produção de uma responsabilização em torno do problema que vai ser enfrentado, ou mesmo de momentos de confiabilidade e esperança, os quais se produzem relações de vínculo e aceitação”. (MERHY, 2002, p. 307-308). 37 São os saberes estruturados que operam nos processos de trabalho em saúde, como por exemplo a clínica médica, a psicanalítica, a epidemiológica e o taylorismo. Merhy (2002) 38 São os equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, normas disciplinares e estruturas organizacionais dos serviços de saúde. Merhy (2002) 106 A relação compreendida como uma atitude interativa entre os sujeitos nas práticas de cuidado promove o acolhimento, a escuta, o respeito pelo sofrimento do outro e suas histórias de vida (LACERDA, VALLA, 2005). Assim, em função de uma prática interativa do cuidado é possível se desenvolver um trabalho na saúde em que: “interroga os modos de ação, desmancha-os, porque acompanha o movimento do vivo, que é de desconstrução e invenção permanentes. Assim, uma prática do cuidado não pode ser reduzida a uma série de passos ou procedimentos para serem usados pelos trabalhadores e, sim, um caminho de encontros e problematizações que se efetivam nos processos de trabalho” (BARROS, 2007, p. 120). Para Ayres (2001), o cuidar da saúde dos sujeitos se desenvolve a partir do processo de interação, encontro, consideração, reconstrução e desejo por construir projetos. Por sua vez, Pinheiro (2006), compreende a prática do cuidado em saúde numa perspectiva integral, com significados e sentidos direcionados para o direito de ser39. O cuidado manifestado pelo trabalho interdisciplinar, não restrito às competências e tarefas técnicas, fortalece as redes de apoio social, na perspectiva integral, moldada pela articulação ativa entre profissionais e pacientes em rede (AYRES, 2001; LACERDA, VALLA, 2005). Para Dênis Petuco (2012), esse processo do cuidar da saúde dos sujeitos usuários de substâncias psicoativas, eclode a partir do modo como estes sujeitos são vistos e ouvidos. Trata-se de uma escuta que acolhe e aceita as diferentes formas de ser e estar no mundo, perante a diversidade. Constitui-se por uma postura ética diante da vida, do trabalho, do cuidado. Escutar. Escutar esse pessoal que agente trabalha e aborda na rua. Saber escutar, em primeiro lugar, porque são muito complicados. Porque você nunca sabe como eles estão, por isso é que é uma coisa muito complicada. Às vezes você pode conversar, porque ele (o usuário) te dá espaço para você conversar. Às vezes a gente só escuta, porque naquele bate-papo o cara quer só falar. (Colaborador 2). A escuta varia conforme as necessidades de saúde do outro, que nem todas as vezes estão relacionadas a processos de adoecimentos físicos, e sim psíquicos. Enquadrase no respeito à alteridade do usuário de substâncias psicoativas. Esse respeito concretizase ao se compreender a realidade da diversidade humana, cultural e social em relação ao desenvolvimento dos processos saúde-doença (PINHEIRO et al., 2005). 39 Ser, no sentido de Heidegger (1997): ser-aí. É o direito de ser ancorado no respeito às diferenças, garantia de acesso às diferentes práticas terapêuticas e à abertura para participação do usuário nas decisões sobre a melhoria dos serviços a serem utilizados por eles. 107 O cuidado na atenção à saúde, segundo Póvoa (2002), caracteriza-se não só por processos de uma escuta respeitosa. Para o autor é necessário uma atenção envolvida por predicados como devoção, dedicação e intuição para que a escuta e a percepção do outro sejam concebidas na sua integralidade a partir do desejo do outro. Assim, apesar de você ter pensado as ações, participar da elaboração de pensamento dessas ações nesse assunto, você tem que compreender que você está se inserindo na vida do outro. Então, assim, o meu papel é muito mais de humildade, de reconhecer que esse meu trabalho é do outro e do tempo dele. É dentro dessa perspectiva que eu trabalho: para com ele, com ele e com aquilo que ele quiser. (Colaborador 4). Neste sentido, as categorias tempo e espaço são imprescindíveis para assegurar a prática do cuidar em saúde. O tempo corresponde à dedicação continuada do como cuidar. Em paralelo ao tempo há o espaço, que requer o como e onde ocorrem as práticas do cuidar. Essas categorias presumem o ato de cuidar como uma atitude processual desenvolvida por uma série de momentos envolvidos pelos encontros, olhares e subjetividades do não dito (MACHADO, MONTEIRO et al, 2007). Existem práticas que levam essa pessoa a ter assegurada a sua saúde. Aceitação das limitações, porque depende muito do outro. Então, tem que ter o tempo do outro. Eu trabalho a partir do tempo desse usuário. (Colaborador 4). Por outro lado, Paulo Freire (1996) acredita na valorização dos saberes negligenciados. Nessa perspectiva, a Educação Popular traz contribuições à clínica de pessoas que usam drogas, da mesma forma que a Redução de Danos, ao imergir nos lugares onde os usuários de substâncias psicoativas se encontram, objetivando o diálogo com essas pessoas a partir da escuta de suas práticas de cuidado. Essa experiência da escuta que valoriza as práticas de cuidado já construídas pela comunidade favorece a construção de vínculos. Você conseguir construir vínculos com aquelas pessoas de forma que você consiga ter um diálogo com elas e a partir desse vínculo e desse diálogo pode surgir a proposta da redução de danos. (Colaborador 5). Na Educação Popular, assim como nas ações de Redução de Danos, busca-se a realidade do outro, mantendo-se uma posição de curiosidade respeitosa que pressupõe o que Paulo Freire (1996) chamava “a ontológica vocação de ser mais”. A curiosidade respeitosa à realidade do outro, na perspectiva da redução de danos, se torna compreensível ao profissional que trabalha na abordagem de rua não apenas após sua formação técnica e sim durante a aplicabilidade diária desta durante a prática de território. Temos uma certa formação, passamos por capacitações para redução de danos em linhas gerais, mas percebemos que essas linhas gerais iremos percebê-la no 108 nosso dia-a-dia, como podemos aplicar. Quais os limites, quais as potencialidades de cada espaço, de cada local. (Colaborador 5). Embasados por uma formação técnica os profissionais do PCR em contato com a realidade laboral dos espaços onde acontece a abordagem de rua, esta: “coloca problemas que forçam a pensar outros jeitos de operar: um jeito de ser enfermeira, ..., médico, psicóloga, se constitui, principalmente, no agir em situação, na imanência das situações vividas. Esse plano imanente diz, portanto, da experiência concreta dos trabalhadores no curso da atividade industriosa. A análise da experiência a partir desse plano coletivo é, portanto, sempre singular e indissociável do processo de produção do trabalhador e dos mundos do trabalho” (BARROS, 2007, p. 123). Assegurar o cuidado no território, na perspectiva da integralidade, do trabalho em redes, garante uma atenção diversificada aos usuários de álcool e outras drogas. Tanto a Senad quanto o Ministério da Saúde reconhecem que a política brasileira destinada aos usuários de drogas deve oferecer o cuidado integral por meio de uma rede de atenção intersetorial, a partir de práticas diversificadas e amplas a fim de atender às diferentes necessidades da população (CRUZ, FERREIRA, 2011). Em Fortaleza a pesquisa de campo revelou que não há o cuidado integral aos usuários de substâncias psicoativas, em situação de rua, pois a rede de atenção intersetorial encontra-se fragilizada devido a dificuldades de acesso, horários de funcionamento e resistências de alguns profissionais no manejo junto a essa população. Essa rede de atenção intersetorial é composta por um Centro de Especialidades Médicas José de Alencar, seis CAPS GERAIS, seis CAPS AD e dois CAPS Infantil, duas Ocas de Saúde Comunitária, cinco Centros de Especialidades Odontológicas, seis Urgências Odontológicas, noventa de dois Centros de Saúde da Família, dez Hospitais Municipais e um Instituto Dr. José Frota. Durante a pesquisa de campo foram observadas práticas terapêuticas de encaminhamentos pelos profissionais do PCR ao Hospital Geral e um Centro de Saúde da Família de terceiro turno. Na ocasião do encaminhamento o usuário era deslocado com toda a equipe do PCR através da Kombi. A prática do cuidado no domínio da integralidade do SUS, compreende a saúde enquanto um direito às diferenças, dignas de respeito público. Finalmente, este capítulo buscou analisar a prática do cuidar em saúde a partir do reconhecimento da realidade das substâncias psicoativas que por meio da relação processual construída entre profissional e usuário não se desconsidera o contexto sóciohistórico dos modos de uso do sujeito, assim como a liberdade de escolha. 109 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a realização dessa pesquisa procurou-se mostrar que as práticas terapêuticas desenvolvidas pelos profissionais da equipe do PCR, em Fortaleza, existem devido ao crescimento do consumo de drogas lícitas e ilícitas entre os grupos sociais menos favorecidos, os quais sofrem pela dependência de substâncias psicoativas. O cenário das drogas em ambiente público urbano, expresso no conteúdo desta dissertação, requisita que as proposições para o campo da práxis terapêutica sejam flexíveis, no sentido de reconhecer o outro na sua transparência, e não sobre os a priori de como estes devem conduzir suas vidas. Verificou-se nas práticas em saúde da abordagem de rua que mesmo existindo o modelo de atenção biomédico orientador dos critérios diagnósticos, condutas e resultados clínicos, prevalece para o profissional do PCR o modelo de atenção psicossocial. Este último se caracteriza pelo distanciamento da imposição de condutas e delimitações dos enquadres terapêuticos, buscando efetivar a cidadania e inclusão social aos usuários de substâncias psicoativas, em situação de rua. No que se refere particularmente ao campo das práticas terapêuticas em abordagens de rua no Brasil, observou-se uma modalidade que ainda necessita de mais pesquisas, alicerçadas pelos trabalhos de campo que analisem este fazer em saúde e possam (ou não) legitimá-lo. Em Fortaleza, a abordagem de rua realizada pelos profissionais que compõem a equipe do PCR, confirma uma tendência para práticas terapêuticas com enfoque na perspectiva da Redução de Danos aos sujeitos envolvidos em cotidianos urbanos, socialmente instáveis. Sobre esses cotidianos urbanos, no capítulo REDUÇÃO DE DANOS E CONSULTÓRIO DE RUA: CONQUISTAS, LIMITES E DESAFIOS observou-se a abordagem de rua destinada a uma população vulnerável socialmente, estabelecida em espaços ambientalmente frágeis, caracterizados por áreas de risco, favelas, cortiços e vazios urbanos. Esse contexto caracterizou condições de trabalho insalubre aos sujeitos do estudo. Destaca-se ao capítulo das PRÁTICAS TERAPÊUTICAS EM REDUÇÃO DE DANOS: O PROJETO CONSULTÓRIO DE RUA EM FORTALEZA-CE, frente à configuração ambiental urbana da prática de território, uma fragmentação da integralidade na rede local de saúde. Os profissionais essenciais para a lógica da integralidade na rede local de saúde, ou seja, os sujeitos da amostra manifestaram ser relevante para a prática de território a comunicação entre as diferentes instituições sociais e de saúde durante as intervenções diretas com base psico-sócio-biológica. 110 As práticas terapêuticas em saúde desenvolvidas pelos profissionais estudados se adéquam ao inesperado e improvisado durante a troca entre conhecimento científico e popular no cotidiano urbano. Essa realidade reproduz a prevalência da abordagem de rua com práticas terapêuticas flexíveis no Projeto Consultório de Rua. A integralidade da atenção destas práticas terapêuticas, junto aos usuários de substâncias psicoativas na situação de rua, é operada através de acolhimento, vínculo, escuta, (re)socialização, responsabilização e autonomia. No entanto, a resolubilidade da terapêutica voltada para Redução de Danos à saúde é relativizada pelo modo de uso das drogas por parte da população assistida. Isto ocorre, principalmente, na relação entre a demanda e a oferta de insumos, assim como na intersetorialidade interna (rede de atendimento em saúde) e externa (dispositivos comunitários e sociais). No capítulo O CUIDADO EM SAÚDE: UM CAMINHO PARA A PRODUÇÃO DE PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NO CONTEXTO DA REDUÇÃO DE DANOS observou-se que a partir da conduta terapêutica flexível na abordagem de rua, o cuidado em saúde manifesta-se como uma possibilidade para a produção de práticas urbanas. O atendimento individual terapêutico, com formulação de estratégias conjuntas na (re)construção dos laços afetivos e acomodações sociais, objetivou consolidar a cidadania de cada usuário por meio das atividades de intervenção, assistência, cuidados e troca de saberes através da prática dialógica. Contudo, a prática do cuidado em saúde na perspectiva da Redução de Danos só será possível de ser efetivada no espaço urbano se a responsabilização do usuário durante o uso da substância psicoativa também existir. Finalmente, sugere-se a elaboração de uma política de formação permanente aos trabalhadores pesquisados com fins de que estes transponham suas limitações e dificuldades. A ampliação dos espaços disponibilizados para o debate e a exposição de necessidades da equipe devem ser respaldados e promovidos continuamente, não só durante as supervisões institucionais. 111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AYRES, J. R. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. 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Serão realizadas entrevistas semi-estruturada, as quais serão registradas através de gravação. Dessa forma, pedimos a sua colaboração nesta pesquisa, respondendo a uma entrevista sobre o tema acima proposto se o (a) Sr. (a) concordar. Garantimos que a pesquisa não trará nenhuma forma de prejuízo, dano ou transtorno para aqueles que participarem. Todas as informações obtidas neste estudo serão mantidas em sigilo e sua identidade não será revelada. Vale ressaltar, que sua participação é voluntária e o (a) Sr. (a) poderá a qualquer momento deixar de participar deste, sem qualquer prejuízo ou dano. Comprometemo-nos a utilizar os dados coletados somente para pesquisa e os resultados poderão ser veiculados através de artigos científicos e revistas especializadas e ou encontros científicos e congressos, sempre resguardando sua identificação. Todos os participantes poderão receber quaisquer esclarecimentos acerca da pesquisa e, ressaltando novamente, terão liberdade para não participarem quando assim não acharem mais conveniente. Contatos com a mestranda Maria Eniana Araújo Gomes Pacheco, fone: (85) 99241553, e-mail: [email protected]. O Comitê de Ética da UECE encontra-se disponível para esclarecimentos pelo telefone: (85) 3101.9890 – Endereço Av. Parajana, 1700 – Campos do Itaperi – Fortaleza Ceará. Este termo está elaborado em duas vias sendo um para o sujeito participante da pesquisa e outro para o arquivo do pesquisador. Eu, _______________________________________________________ tendo sido esclarecido (a) a respeito da pesquisa, aceito participar da mesma. Fortaleza, ______ de ___________________ de __________ . __________________________ Assinatura do (a) participante _____________________________ Assinatura do (a) Pesquisador (a) 122 APÊNDICE B – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido à Coordenadora de Saúde Mental O trabalho intitulado “Saberes e práticas dos profissionais do Consultório de Rua, no município de Fortaleza, no contexto da Redução de Danos”, coordenado pela Profa. Dra. Maria Regianne Leila Rolim Medeiros, tem por objetivos: 1. Compreender as concepções dos profissionais atuantes no Consultório de Rua quanto a Redução de Danos; 2. Perceber como os profissionais atuantes no Consultório de Rua se apropriam de estratégias de Redução de Danos; 3. Verificar como as concepções dos profissionais atuantes no Consultório de Rua exercem influência na sua prática profissional; 4. Quais saberes são relevantes na construção da prática desses profissionais. Há como pesquisador(a) Maria Eniana Araújo Gomes Pacheco – mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Para a concretização do referido estudo, solicitamos a permissão para entrarmos em campo junto ao Projeto Consultório de Rua para que seja possível realizar observação sistemática da prática e entrevistas com os profissionais atuantes. A sua participação no estudo consiste em consentir a realização das atividades citadas. Será assegurando o anonimato e o sigilo das informações fornecidas, bem como a liberdade para retirar-se da pesquisa a qualquer momento, retirando o consentimento como possibilidade de minimizar o risco de constrangimento dos participantes. Assim, afastamos a obrigatoriedade de sua participação. Caso recuse participar do estudo, não terá nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com a instituição. As informações obtidas na pesquisa serão tratadas de forma confidencial, sendo utilizadas somente para escrever o trabalho que atribuirá o título de mestre em Políticas Publicas e Sociedade ao pesquisador e para publicação em periódicos científicos na área da saúde, antropologia e sociologia. O que trará como benefícios a compreensão de como se dá a relação dos saberes nos profissionais atuantes no Consultório de Rua, no município de Fortaleza, quanto a Redução de Danos no que diz respeito a sua aplicabilidade no campo atuante, contribuindo para reflexão no meio acadêmico e nos serviços, pelos gestores. Após a transcrição e digitação das entrevistas, estas serão destruídas. No momento em que desejar entender melhor a pesquisa ou quando desejar desistir da participação, retirando o consentimento, poderá fazê-lo entrando em contato com a pesquisadora no Departamento de Políticas Públicas e Sociedade da UECE, localizado no campus do Itaperi, Fortaleza, telefone: (85) 3101-9887. Caso concorde em participar do estudo, assine este documento, que também será assinado pelo pesquisador, o qual você ficara com uma cópia. Fortaleza – Ceará, 20/10/2011. ________________________ Participante ______________________________________ Maria Eniana Araújo G. Pacheco-Pesquisadora Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Eu, _______________________________, após tomar conhecimento da forma como será realizada a pesquisa: “Saberes e práticas dos profissionais do Consultório de Rua, no município de Fortaleza, no contexto da Redução de Danos”, concedo permissão, de forma livre e esclarecida, para a pesquisadora adentrar a rota do Consultório de Rua a fim de realizar pesquisa de campo. Fortaleza – Ceará, _______/________/2011. _______________________________ Participante ________________________________ M. Eniana A. G. Pacheco-Pesquisadora 123 APÊNDICE C – Roteiro da Entrevista I– 1. 2. 3. 4. 5. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO IDADE (ANOS) ___________________ FORMAÇÃO PROFISSIONAL _______________________ PÓS-GRADUAÇÃO: ( ) SIM. QUAL? ________________________ ( ) NÃO TEMPO DE FORMADO (ANOS) _____________________ TEMPO DE ATUAÇÃO NA SAÚDE MENTAL E/OU CONSULTÓRIO DE RUA ________________________________ 6. VÍNCULO EMPREGATÍCIO __________________________________ 7. ESTADO CIVIL ______________________________________ II – QUESTÕES SOBRE OS SABERES E AS PRÁTICAS 1. O QUE VOCÊ ENTENDE POR REDUÇÃO DE DANOS. 2. COMO O CONHECIMENTO DA ESTRATÉGIA DE REDUÇÃO DE DANOS CHEGA ATÉ VOCÊ? 3. QUAIS SABERES SÃO IMPORTANTES PARA A CONSTRUÇÃO DA SUA PRÁTICA? 4. QUE MUDANÇAS OS SABERES PROPORCIONAM À PRÁTICA NO CONSULTÓRIO DE RUA. 5. QUE MUDANÇAS A PRÁTICA PROPORCIONA AOS SABERES NO CONSULTÓRIO DE RUA. 6. OS ESPAÇOS OCUPADOS NA PRÁTICA EXERCEM INFLUÊNCIA NOS SEUS SABERES? 124 APÊNDICE D – Roteiro da Observação Sistemática ELEMENTOS DE REFERÊNCIA 1. Condições de ambiente de trabalho 2. Áreas de maior prevalência de atendimento 3. Relações entre os trabalhadores 4. Ações e atividades intersetoriais desenvolvidas 5. Relações dos trabalhadores com os usuários do serviço 6. Parcerias com outros serviços 125 ANEXO 126 ANEXO 1- Quantitativo de 2011 SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE REDE ASSISTENCIAL DE SAÚDE MENTAL, ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS PROJETO CONSULTÓRIO DE RUA 1(Tarde) – FORTALEZA Rua do Rosário, nº 283 – Centro Telefone: (85) 34526941/ 34337146 MAPA DE REGISTRO DE ATENDIMENTOS Nº 1 Data Nome / Apelido Sexo M/ F Idade Situação *1 Uso de drogas SIM / NÃO Substância atual *2 Avaliação Saúde *3 Ação realizada *4 Insu -mo Encami nhame n to Campo