DEBATES O agente comunitário de saúde não deve ser um “super-herói” The community healthcare agent should not be a “super-hero” José Batista Cisne Tomaz 1 A primeira experiência de agentes comunitários de saúde, ACS, como uma estratégia abrangente de saúde pública estruturada, ocorreu no Ceará em 1987, com o objetivo duplo de criar oportunidade de emprego para as mulheres na área da seca e, ao mesmo tempo, contribuir para a queda da mortalidade infantil, priorizando a realização de ações de saúde da mulher e da criança. Esta estratégia expandiu-se rapidamente no Estado, atingindo praticamente todos os municípios em três anos, sendo encampada pelo Ministério da Saúde (MS) mais ou menos nos mesmos moldes, em 1991. As primeiras experiências do Programa de Saúde da Família, PSF, nos moldes atuais, também surgiram no Ceará em janeiro de 1994, sendo encampadas pelo MS em março do mesmo ano, como estratégia de reorganização da atenção básica no país. A partir daí o Programa de Agentes Comunitários de Saúde, PACS, passou a ser incorporado pelo PSF. O PACS e o PSF, apesar do “p”, não devem ser vistos como programas, e sim como estratégias estruturantes, já que se propõem a reorganizar a atenção básica e não apenas aumentar a extensão de cobertura para as populações marginalizadas. O próprio artigo esclarece que os princípios e pressupostos do PSF contidos em documentos do MS vão muito além da extensão da cobertura da atenção básica para a população pobre. O PACS e o PSF, embora no início tenham sido implantados prioritariamente em áreas marginalizadas, devem ser vistos como uma estratégia que, a médio e a 1 Médico, Coordenador do Curso de Especialização em Saúde da Família da Escola de Saúde Pública do Ceará/ESP-Ce. <[email protected]> 84 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 DEBATES longo prazo, irá prover atenção básica em saúde para toda a população, de acordo com os princípios da integralidade, universalidade e eqüidade do SUS. A reorganização da atenção básica deve também pressionar os outros níveis de atenção no sentido de que se reestruturem para atender com qualidade a demanda advinda da atenção básica. Se a concepção não for essa, sou obrigado a concordar com os críticos que dizem tratar-se de uma “cesta básica da saúde” utilizando uma “medicina pobre para os pobres” mediante ações de baixa tecnologia. Infelizmente, na prática, o trabalho de muitas equipes do PSF ainda está limitado ao aumento da extensão de cobertura, conseqüência de várias questões operacionais, mas também da falta de uma adequada qualificação dos profissionais, inclusive dos gestores. O perfil, as atribuições, e as competências do ACS A discussão do perfil, atribuições e competências dos ACS é um pouco polêmica. Ainda não se conseguiu determiná-los de maneira clara e efetiva. O artigo aborda muito bem as atribuições e as competências, mas trata muito pouco sobre o perfil. Fala de um “novo” perfil profissional – um novo saber, um novo fazer, um novo ser -, mas não especifica qual seria esse novo perfil. É consenso que o ACS seja da própria comunidade, seja “alguém que se identifica, em todos os sentidos, com a sua própria comunidade, principalmente na cultura, linguagem, costumes”, como afirma um ACS de Recife. O que temos de refletir é sobre o grau de escolaridade. Após a implantação do PSF o papel do ACS foi ampliado, saiu do foco maternoinfantil para a família e a comunidade, além de exigir novas competências no campo político e social. Desse modo, é necessário que o ACS tenha um grau de escolaridade mais elevado, para dar conta desse novo papel, bem mais complexo e abrangente. Concordo plenamente com as autoras que, historicamente, uma atribuição fundamental do ACS é servir de elo entre a comunidade e o sistema de saúde. No documento do MS: Diretrizes para elaboração de programas de qualificação e requalificação dos agentes comunitários de saúde (1999), de cuja elaboração participei, é proposto um conjunto de atribuições que podem ser resumidas no tripé: identificar sinais e situações de risco, orientar as famílias e comunidade e encaminhar/ comunicar à equipe os casos e situações identificadas. Esse conjunto de atribuições deve ter como pano de fundo as questões de cunho político e social, principalmente as ligadas à competência de promoção da saúde. Achei interessante a análise das dimensões do papel do ACS em termos técnicoassistencial e político-social. No entanto, nesta discussão, estou começando a perceber duas tendências que se têm mostrado constantes nos escritos e nas falas sobre o papel do ACS, (permitam-me usar dois neologismos): a “superheroização” e a “romantização” do ACS, que está bem expresso nos depoimentos que abrem o texto de Silva e Dalmaso. Ora, não se pode colocar nas costas do ACS o árduo e complexo papel de ser a “mola propulsora da consolidação do SUS”. Na prática, a consolidação do SUS depende de um conjunto de fatores técnicos, políticos, sociais e o envolvimento de diferentes atores, incluindo os próprios ACS, que, sem Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 85 DEBATES dúvida, têm um papel fundamental. Na realidade, o ACS precisa incorporarse de fato ao sistema de saúde, fazer parte efetivamente das equipes de saúde da família, deve participar das diferentes ações, na dimensão técnicoassistencial ou político-social. Por falta de uma clara delimitação de suas atribuições, seu papel tem sido distorcido sobrecarregando, muitas vezes, seu trabalho. Qualquer ação que deva ser desenvolvida nas famílias e na comunidade é atribuída ao ACS. Assim, a identificação de crianças fora da escola, a limpeza das caixas d’água para combater o mosquito da Dengue, a reclamação ao proprietário de uma pocilga instalada numa área urbana, tudo isso e muito mais é de responsabilidade do ACS. Isso tem implicação direta no processo inadequado de qualificação, pois passa a receber diversos micro-treinamentos, fragmentados, dados por diferentes programas, fora do contexto e sem uma seqüência lógica. Não há a menor dúvida de que o ACS deve contribuir para o processo de transformação social. No entanto, é preciso ter em mente que a transformação social é um processo lento, requer esforços conjuntos e permanentes e é papel de todos os cidadãos. O setor saúde no Brasil tem, historicamente, um papel de vanguarda nessa transformação. Por isso considero que esse processo deve envolver todos os profissionais de saúde (técnicos e gestores) e de outros setores da sociedade. Assim, a dimensão política deve ser exercida pelo ACS, não só como profissional, mas como cidadão. O que quero dizer é que esse dilema permanente no qual a dimensão social e política convive com a dimensão técnico-assistencial não é privilégio do agente, mas de todos os outros profissionais da Saúde. A dimensão técnica é necessária, deve ser exercida com qualidade, sem perder de vista a dimensão social e política. Isso vale para todos os profissionais. Considero, ainda, que as diferentes formas de atuação do ACS e da equipe de saúde não devem ser necessariamente antagônicas, mas sim complementares. A vertente de vigilância a situações de risco e assistência a doenças mais freqüentes deve ser realizada conjuntamente e em consonância com a da promoção da saúde e da qualidade de vida. Em suma, o ACS não é e não deve ser um super-herói! Suas atribuições devem ser claramente estabelecidas, como profissional, como parte de uma equipe de saúde. Seu papel deve ser menos “romântico” e mais claro e específico. O desafio: processo de formação e qualificação Quando se pretende discutir processo de formação ou qualificação de recursos humanos é fundamental termos clareza de três aspectos: o perfil do profissional a ser capacitado, suas necessidades de formação e qualificação e que competências devem ser desenvolvidas ou adquiridas no processo educacional. Desse modo, a complexidade e a dimensão dos desafios colocados para o processo de formação e qualificação do ACS estão intrinsecamente ligados aos aspectos discutidos anteriormente. Concordo plenamente com as autoras que “os desafios para os processos de preparação do “novo” perfil, referem-se aos mecanismos de seleção, aos 86 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 DEBATES processos de capacitação, aí incluídos os treinamentos introdutórios, a educação continuada e a sistemática de supervisão adotada”. No entanto, acho que urge a implantação de formas mais abrangentes e organizadas de formação e capacitação dos profissionais de saúde, incluindo os ACS, mediante um projeto nacional, estimulado pelo MS, incorporando-se e utilizando experiências existentes, como os Polos de Capacitação de Formação e Educação Permanente dos Profissionais de Saúde da Família e a série de vídeos educativos produzidos numa parceria entre o MS e a Escola de Saúde Pública do Ceará - Agentes em Ação, entre outras. O processo de qualificação do ACS ainda é desestruturado, fragmentado, e, na maioria das vezes, insuficiente para desenvolver as novas competências necessárias para o adequado desempenho de seu papel. Os programas educacionais devem ser elaborados e baseados no desenvolvimento de competências, utilizando métodos de ensino-aprendizagem inovadores, reflexivos e críticos, centrados no estudante, e, quando possível, incluindo novas tecnologias, como a educação à distância. Além disso, dentro desse contexto, o desenvolvimento de algumas competências transversais, como a capacidade em trabalhar em equipe e a comunicação, devem fazer parte de qualquer programa educacional do ACS e dos outros profissionais de saúde. Em suma, o tema tratado no artigo é complexo, relevante e carece mais discussão. A formação e a qualificação de recursos humanos têm sido grandes entraves para a efetiva consolidação do SUS. Enfermeira visitadora, 1895 Recebido para publicação em: 15/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02. Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 87 DEBATES O agente comunitário de saúde: algumas reflexões The community healthcare agent: a few thoughts Mário Roberto Dal Poz 1 O texto de Silva & Dalmaso, ao examinar aspectos da competência e das atividades do cotidiano dos agentes comunitários de saúde, alimenta e estimula o debate sobre certos desafios para sua formação. Tradicionalmente, agentes comunitários de saúde têm assumido importantes tarefas no cuidado de saúde, em diferentes sistemas e contextos. A atenção ao parto tem sido uma função tradicional e importante de parteiras tradicionais (comunitárias ou empíricas). Diferentes países utilizam membros da comunidade para o desenvolvimento de outras funções de atenção à saúde, como primeiros socorros e vigilância à saúde. Em países em desenvolvimento, há muitos anos utiliza-se o treinamento de membros da comunidade como estratégia para aumentar a qualidade da atenção (Nair et al., 2001). Um dos desafios e tendências atuais é a introdução de novos papéis e responsabilidades para esse grupo junto ao sistema de saúde. A expansão do papel das parteiras tradicionais em Zimbabwe e o treinamento de agentes comunitários de saúde no Brasil para desenvolver cuidado clínico são exemplos dessa tendência. Sparks (1990), num estudo com parteiras tradicionais (TBAs) em Zimbabwe, mostrou que seu papel vem mudando gradualmente, a partir da 1 Médico, Coordenador de Recursos Humanos para a Saúde, Departamento de Provisão de Serviço de Saúde, Organização Mundial de Saúde. <[email protected]> 88 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 DEBATES decisão das mulheres de usarem clínicas para dar à luz seus bebês. Parteiras tradicionais representam um recurso importante no cuidado básico de saúde em muitos países em desenvolvimento. Cursos de formação ou capacitação para atualizar ou aumentar as habilidades das parteiras são comuns e encorajadas por diferentes agências. O foco da formação é a realização de um parto seguro e o reconhecimento de que a gravidez de alto-risco necessita ser referenciada para uma unidade de saúde mais especializada. Atualmente, os programas de formação introduzem outras habilidades para aumentar a participação desses agentes de saúde em atividades primárias de cuidado de saúde, mais na linha de promoção de saúde e prevenção de problemas específicos nos grupos populacionais das mães e das crianças. A experiência do Brasil também ilustra este ponto. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde, PACS, foi formulado tendo como objetivo central contribuir para a redução da mortalidade infantil e mortalidade materna, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, por meio de uma extensão de cobertura dos serviços de saúde para as áreas mais pobres e desvalidas. Porém, a partir da experiência acumulada pelo estado do Ceará com o programa de agentes comunitários, ali implantado, houve a percepção, pelo próprio Ministério da Saúde, de que os agentes poderiam também ser peça importante para a organização do Serviço Básico de Saúde no município. A partir de uma formação básica inicial para ações baseadas em vigilância de saúde, os agentes comunitários visitam as famílias das comunidades e proporcionam cuidado a doenças comuns, imunização, medicação e educação de saúde. Esta iniciativa, que se tornou o modelo seguido pelo Ministério da Saúde, operado em diversos níveis, pelos Estados e municípios brasileiros, tem apresentado resultados que o fazem um dos esforços mais eficientes de saúde no mundo. Desde sua implementação tem havido um declínio significativo em mortalidade infantil, um aumento de níveis de imunização, avaliação de necessidades e recursos e uma intervenção profissional mais rápida quando necessária (Svitone et al., 2000). Em geral, em áreas rurais do sul da África, o papel do pessoal de enfermagem e outros trabalhadores de saúde é crucial para estender a cobertura dos cuidados de saúde. Reconhece-se que este pessoal, em muitos casos, tem o âmbito de seu trabalho severamente limitado pela falta de formação adequada e reconhecimento social. A enfermeira é normalmente a única profissional disponível na área reduzindo, assim, as alternativas para diagnosticar e tratar pacientes. No Brasil, duas questões tomaram relevância no processo de implantação do PACS: a escolha do agente (envolvendo questões como processo seletivo, capacitação, avaliação etc.) e as condições institucionais da gestão da saúde no nível local (grau de participação dos usuários – formação dos Conselhos de Saúde; grau de autonomia da gestão financeira; recursos humanos disponíveis; capacidade instalada disponível etc.). Pelo fato de o programa de agentes comunitários ter tomado essa forma, ele não constituiu apenas mais um programa vertical do Ministério da Saúde (uma ação paralela ao sistema de saúde) tendo sido, também, um braço Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 89 DEBATES auxiliar do sistema de saúde na organização dos sistemas locais de saúde (Dal Poz & Viana, 1999). Isto porque, no momento em que a adesão do município ao PACS exigiu e exige certos requisitos, como o funcionamento dos Conselhos Municipais de Saúde, a existência de uma unidade básica de referência do programa, a disponibilidade de um profissional de nível superior na supervisão e no auxílio às ações de saúde, a existência de Fundo Municipal de Saúde para receber os recursos do programa, este se tornou, sobretudo, um instrumento de (re)organização dos modelos locais de saúde. Ressalte-se, entretanto, que não foi apenas por ter definido essa estratégia de implantação que fez do programa um instrumento de (re)organização do sistema de saúde, mas também pelo grau de articulação que este desenvolveu com os diferentes níveis (estadual e municipal), além do papel desempenhado pelos atores participantes do processo de implementação do programa (agentes e comunidade) (Dal Poz & Viana, 1999). Referências DAL POZ, M.R., VIANA, A.L. Estudo sobre o processo de reforma em saúde no Brasil. In: MARTINIC, S., AEDO, C., CORVALAN, J. (org.) Reformas en Educacion y Salud en America Latina y el Caribe. Santiago do Chile: Centro de Investigación y Desarrollo de la Educación - CIDE, 1999. p.187-217. NAIR, V.M., THANKAPPAN, K.R., SARMA, P.S., VASAN, R.S. Changing roles of grass-root level workers in Kerala, India. Health Policy Plan., v.16, n.2, p.171. SPARKS, B. T. A descriptive study of the changing roles and practices of traditional birth attendants in Zimbabwe. J. Nurse-Midwifery, v. 35, n.3, May/June, 1990. SVITONE, E. C., GARFIELD, R., VASCONCELOS, M. I., CRAVEIRO, V. A. Primary health care lessons from the Northeast of Brazil: the Agentes de Saúde Program. Pan. Am. J. Public Heath, v.7, n.5, p.293-302, 2000. TRAJANO SARDENBERG, 2001 Recebido para publicação em: 18/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02. 90 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 DEBATES O trabalho do agente comunitário de saúde: entre a dimensão técnica “universalista” e a dimensão social “comunitarista” The work of the community healthcare agent: between the technical “universalist” dimension and the social “communitarian” dimension Roberto Passos Nogueira 1 O agente comunitário de saúde, ACS, continua a ser o fulcro de inúmeras controvérsias que põem em discussão se suas características de recurso humano de origem comunitária marcam a continuidade do formato das políticas de saúde do passado recente ou constituem sinais de uma tendência efetiva de renovação. Representaria o ACS nada mais que uma versão atualizada do agente de saúde pública dos anos setenta, participando de um novo processo de “extensão de cobertura” à população carente por meio dos serviços básicos do SUS? Ou será ele uma figura nova e destacada no processo que podemos chamar de “extensão da solidariedade”, conforme propagado pela linha de política social do Comunidade Solidária nos anos noventa? Seu trabalho deve ter objetivos estratégicos e padrões de desempenho válidos para todos os lugares, como parte de um programa nacional que visa a aumentar o alcance e a eficácia dos serviços proporcionados pelo SUS? Ou deve ser visto como a expressão ampliada da ação comunitária, com base nas capacidades de liderança e de auto-ajuda sistemática, dentro de um modelo de desenvolvimento autônomo local e cujos problemas não sejam predefinidos segundo o setorialismo típico dos programas de Estado? Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília. <[email protected]> 1 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 91 DEBATES Essas são as principais questões que o artigo de Silva & Dalmaso suscita e deixa sem resposta. A falta de resposta deve-se, a nosso ver, ao fato de que essa contradição entre a dimensão técnica “universalista” do trabalho do ACS e a dimensão social “comunitarista” é cultivada pelo próprio Estado e faz parte das diretrizes ditadas pelas políticas de saúde (do PACS, inicialmente, e do PSF, mais recentemente) e também da propaganda política feita pelo governo a esse respeito. A tensão entre dois paradigmas opostos de políticas de Estado acaba recaindo sobre o próprio ACS, quando este tentar cumprir o melhor possível seu papel amplamente reconhecido de servir de elo entre o sistema de saúde e a comunidade. As autoras têm razão ao dizer que o ACS suporta um “peso” excessivo de tarefas e responsabilidades, cada vez mais ampliadas, trazendo consigo múltiplas e contrapostas expectativas depositadas pelos gestores do SUS, expectativas que não podem ser correspondidas na prática e diante das quais os profissionais de desenvolvimento de recursos humanos também não sabem o que fazer. Aqui a dificuldade não decorre do fato de haver descrições discrepantes sobre essa função de ligação entre Estado e comunidade exercida pelo ACS, mas de haver visões ético-políticas muito distintas sobre como a saúde pode ser promovida nessa interface entre auto-organização comunitária e sistemas de Estado. Determinada visão tende a acentuar o potencial emancipatório das ações de solidariedade, associadas ao princípio da autonomia (no nível social local); outro tipo de visão dá ênfase à eficácia obtida pela aplicação do princípio da beneficência assistencial do Estado (no nível nacional, com ganhos de escala inegáveis). Para a visão comunitarista, o ACS jamais poderia ser definido segundo um perfil ocupacional como ocorre com outros trabalhadores de saúde: o que ele faz depende dos problemas vividos e referidos pelas famílias, como prioridades que não emanam dos programas de Estado. Suas tarefas responderiam a essas necessidades, que podem não decorrer de metas assistenciais de governo, definidas pelo SUS, bem como, por outro lado, podem não se assemelhar às tarefas peculiares ao grupo de Enfermagem (ao qual costuma ser associado). Este comunitarismo só tem sentido quando o sistema de organização do Estado promove e defende uma descentralização radical. Idéias outras, tais como as de que o ACS precisa de um perfil técnico bem estruturado, de um preparo técnico uniforme e de um cargo nas estruturas organizacionais do Estado, reflete as exigências de um modelo oposto, que é universalista e estatista. O artigo de Silva & Dalmaso deixa claro, no entanto, que tanto para a visão comunitarista quanto para a visão estatista têm faltado abordagens e instrumentos adequados de preparação do ACS – o que parece indicar que o Estado ainda não aprendeu a lidar com essa figura de um ponto de vista educacional, da mesma maneira como ainda não sabe que estatuto lhe conferir de um ponto de vista trabalhista. Pode-se afirmar que, no primeiro mandato do governo FHC, a visão comunitarista obteve bastante reforço na medida em que o PACS cultivou um relacionamento estreito com o Comunidade Solidária, que se encarregava de divulgar essa interpretação dentro do governo como um todo. Mas, no segundo mandato, a ação dos ACS foi mais diretamente vinculada às iniciativas e programas de Estado e a suas prioridades 92 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 Enfermeira visitadora, 1908 DEBATES nacionais, no caso, à política de reorganização dos serviços básicos de saúde do SUS e ao PSF como eixo estratégico desta organização. Não só por parte do governo federal, como também por parte de todas as correntes políticas que assumem o nível municipal de gestão, tem faltado muito empenho em destacar o caráter comunitário do envolvimento do ACS no SUS, distinguindo-o daquilo que é a missão mais ampla cumprida pelo PSF, enquanto um sub-sistema de prestação de serviços criado pelo Estado. Portanto, não poucas vezes os governantes apresentam o trabalho dos ACS como mais uma “obra de governo”... Se analisarmos objetivamente a proposta universalmente aceita de que o ACS é um elo de ligação entre o Estado e a comunidade, resulta evidente que, de um ponto de vista filosófico e administrativo, ele não deveria ser considerado como membro da equipe do PSF – primeiro porque não é um profissional, segundo, porque deveria manter um vínculo permanente de pertinência com a comunidade e suas organizações. Mas esta proposta está longe de receber uma expressão organizacional e política adequada de tal modo que o ACS se mistura e se confunde, na prática, com tudo o que é feito pelo PSF, pelo SUS e pelo Estado, de um modo geral. Assim, as ambigüidades e a polêmica que cercam a figura do ACS continuam e, provavelmente, ainda vão continuar por muito tempo. Com um preço que, infelizmente, é pago pelo próprio ACS. Recebido para publicação em: 08/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02. Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 93 réplica O debate continua... The debate continues... Joana Azevedo da Silva Ana Sílvia Whitaker Dalmaso Mais do que uma réplica, aproveitamos a nova oportunidade para comentar alguns pontos que julgamos relevantes e para dialogar com algumas das importantes questões levantadas pelos debatedores. Tomemos, como ponto de partida, as falas de sujeitos do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde que abrem o texto: elas são exemplares da amplitude da estratégia e indicadoras da complexidade da expectativa em relação ao trabalho do agente comunitário de saúde. A partir de inserções bastante diferentes no Programa, um mais na formulação e outro mais na realização, no dia-a-dia, naquele momento (1991), já apontavam para os desafios de um projeto em nascimento. Assinalavam a utopia da transformação social, transcendendo o campo específico da saúde. Se, de um lado, o PSF é, hoje, uma estratégia do Estado para a consolidação do SUS, de outro, ele exige conteúdos de programa. Desdobrar princípios e diretrizes em modos de fazer é uma exigência colocada para as áreas sociais. O planejamento, o desenvolvimento de tecnologias, a gerência e a avaliação são instrumentos básicos de atuação. Além disso, na área de formação de recursos humanos, mais do que a escolaridade formal, o perfil e as competências dos agentes comunitários são definidos conforme o leque de finalidades e de expectativas em relação ao seu trabalho. Como em outros campos novos, muitas vezes começamos mais pela negação — não fazer isto, não ser aquilo — e menos pela afirmação; a diferenciação é construída no processo. Se o PSF se instala pelo plano da atenção primária, a reformulação do sistema de saúde não se dá por contigüidade, mas exige uma política de transformação. Mais do que um projeto nacional, a dimensão local é capaz de apreender melhor as necessidades, organizar trabalhos e articular ações. Temos acompanhado um processo de descentralização da formação de recursos humanos, mas também a permanência de uma relativa centralização do modelo assistencial. Se, no plano dos saberes, há uma diferenciação básica na concepção de doença e de saúde, entre o conhecimento clínico e o da saúde pública, no plano das práticas trabalhase com finalidades e instrumentos específicos. O PSF toma de um e de outro os recursos necessários para a sua atuação. Em vez da funcionalidade complementar, há, como aponta Nogueira, tensão entre dois paradigmas opostos. De um lado, podemos somar esforços para desenvolver tecnologias mais adequadas, de outro, há a dinâmica social, os valores e os modos de andar a vida, os quais não são passíveis de instrumentalização. Investir na capacitação e, especialmente, na supervisão e sistematizar resultados são formas de acumular experiências e de produzir conhecimentos e, ao mesmo tempo, de visualizar limites e construir possibilidades, o que, sem dúvida, os programas implantados estão empenhados em fazer. 94 Interface - Comunic, Saúde, Educ, v6, n10, p.75-94, fev 2002 TRAJAN O SARE DE NBERG , 2001 Papeleta em xerox, de Jailtão, 1999. Utilizando a tática dos pedintes de vale transporte. 94