ERRO SINGULAR: UMA REFLEXÃO ALÉM DO CATEGORIZÁVEL ERRO FONOLÓGICO E ORTOGRÁFICO Adriana da Silva Vieira (UFAL) [email protected] Adna Almeida Lopes (UFAL) mailto:[email protected]@globo.com RESUMO O nosso trabalho se propõe a discutir algumas questões relativas ao erro ortográfico em textos de alunos do ensino fundamental, entre elas a de que os erros de escrita estão diretamente ligados à oralidade. Isso tem provocado um discurso muito comum nas práticas pedagógicas de considerar uma relação direta entre oralidade e escrita, através dos erros denominados de “interferência da fala”. Nosso estudo, contudo, contradiz esta afirmativa ao adotar outro viés teórico e metodológico, percebendo que nem sempre os erros ortográficos podem ser explicados apenas por uma interferência da fala na escrita e nem sempre podem ser encaixados nas categorias existentes. Para o estudo, apresentaremos alguns processos fonológicos e ortográficos que incidem no chamado “erro” com o objetivo de mostrar que ambas são categorias que tem processos semelhantes para explicá-lo, porém não dão conta em elucidar os erros que escapam as suas explicações. Consideramos este erro como um indicativo do funcionamento da língua e da sua relação com o sujeito, conforme estudos (LEMOS, 2000; LOPES, 2005) representativos da área de Aquisição de Linguagem. Palavras-chave: aquisição da linguagem; erro fonológico e erro ortográfico; singularidade. INTRODUÇÃO Os estudos que têm sido divulgados sobre o erro procuram, prioritariamente, adotar uma categorização possível para as ocorrências. Isto acontece tanto nas pesquisas relacionadas à teoria dos processos fonológicos (STAMPE, 1973; OTHERO, 2005; entre outros) quanto naquelas que tratam dos erros relacionados ao sistema ortográfico (CAGLIARI, 1989; CARRAHER, 1990; ZORZI, 1998; entre outros). Contudo, a categorização apenas desses erros não dá conta de uma interpretação relacionada ao funcionamento linguístico. Nas pesquisas desenvolvidas em uma das vertentes da aquisição da linguagem (LEMOS, 1996, 1997, 2000; MOTA, 1995, CARVALHO, 1995; CALIL, 2004; CALIL ET AL, 2006; CALIL E FELIPETO, 2008; FELIPETO, 2006, 2007; LOPES, 2005) nem sempre o erro pode ser explicado apenas por uma relação direta entre fonema/grafema. Para esses teóricos, as possibilidades e impossibilidades do sistema linguístico, tanto na fala quanto na escrita, podem estar relacionadas à singularidade de um sujeito sempre submetido ao funcionamento linguístico. Nesse trabalho nos propomos discutir questões relativas ao erro ortográfico1, confrontando categorias fonológicas e ortográficas para tentar mostrar a incidência da singularidade do sujeito. Procuraremos interpretar um processo de aglutinação no erro ortográfico, em texto produzido por duas alunas do ensino fundamental. Essas alunas estão inseridas em escola da rede particular de ensino de Maceió - AL. O foco da nossa análise recai sobre a emergência da singularidade do sujeito no funcionamento linguístico-discursivo. 1. PROCESSOS FONOLÓGICOS E ERROS (ORTO) GRÁFICOS A conceituação de processos fonológicos foi introduzida por Stampe (1973) e a partir de seus estudos esses foram sendo revistos e aprimorados, tendo a aquisição da linguagem a aplicado a diferentes línguas em suas pesquisas (OTHERO, 2005). Stampe (Apud OTHERO, 2005, p. 2) conceitua processos fonológicos como: 1 Decidimos aqui pela utilização do termo „erro ortográfico‟ denominação dada comumente ao erro de grafia e já adotada em trabalhos de outros autores (LOPES, 2005; CALIL & FELIPETO, 2008) mesmo sabendo que pela origem da palavra essa expressão poderia ser considerada contraditória, uma vez que a palavra „ortografia‟ significa „escrita correta‟ (orto=correto e grafia=escrita). 3 Uma operação mental que se aplica à fala para substituir, no lugar de uma classe de sons ou de uma seqüência de sons que apresentam uma dificuldade específica comum para a capacidade de fala do indivíduo, uma classe alternativa idêntica, porém desprovida da propriedade difícil (OTHERO, 2005- grifos nossos). Os processos fonológicos enfatizam que a criança ou indivíduo substitui um som ou sequência do mesmo por outro alternativo que apresenta uma menor dificuldade para sua produção, o que permite uma facilitação na produção de sons pelas crianças ao se verem em „apuros‟ na execução de um som difícil. De acordo com Othero (2005) a criança cria estratégias para pronunciar uma letra que não consegue falar, incorrendo, assim, em tentativas constantes de construção de palavras que acabam por produzir um “erro” por não se adequar a norma estabelecida fonologicamente. Segundo Othero (IDEM) as tentativas de produção de palavras pelas crianças começam por volta de um ano de idade, quando tentam reproduzir os vocábulos que ouvem do adulto, procurando adaptá-los para aproximar-se da fala adulta. Nesse sentido, as crianças teriam seu apoio na alocução adulta para reproduzi-la oralmente. Muitos educadores estendem essa idéia para as composições infantis e se apegam a idéia de que se a criança souber falar eloquentemente como um adulto, grafará corretamente as palavras. Acreditam, dessa forma, que a escrita é um reflexo da fala. Diante da grande incidência e discussões sobre o erro ortográfico, vários estudos nessa área foram surgindo numa tentativa de, assim como Othero explica os erros fonológicos, explicarem também os erros oriundos da/na escrita. Fontella (2001) faz duas distinções de erros de grafias: os fonológicos e os ortográficos. Considera os erros fonológicos como os desvios na escrita que resultam em apagamento, aumento ou troca de grafemas que altera o valor dos signos linguísticos. Os erros ortográficos, segundo Fontella (IDEM) são os desvios da escrita que versam no uso não adequado de um grafema que rompe com a convenção gráfica constituída oficialmente. Isto porque existem fonemas que são representados por mais de um grafema na escrita e ainda existe um grafema que pode representar mais de um fonema. Seriam exemplos desse caso a representação dos fonemas /s/, /z/, /x/, /sh/, /j/, /k/, /ks/. As pesquisas categóricas do sistema ortográfico de erros consideram o erro como algo inevitável e previsível de explicação, agrupando-os, assim, de acordo com as categorizações por esses estudiosos definidas. Zorzi (1998), um dos teóricos que dedica sua pesquisa em estudar o sistema ortográfico de erro por um viés categorizável, fez sua investigação com composições 4 textuais de 514 estudantes e encontrou 21.196 formas de escrever que divergiram da norma ortográfica vigente. Classificou esses “erros” ou “alterações ortográficas” em uma das dez novas categorias propostas por ele a partir de um estudo comparativo dos erros propostos por Cagliari (1989) e Carraher (1990). Ambos, entretanto, condescendem com a mesma linha de pensamento e consideram que os erros tenham como uma de suas causas a interferência da fala. Este discurso está também presente nas falas de professores que tem essa mesma concepção alojada em suas mentes e focalizam os erros num processo de oral = escrito, ou seja, acreditam na interferência da fala na composição escrita. Para este grupo de pessoas o aluno fala e escreve, por exemplo, a palavra SANGUE como JANGUE (ZORZI, 1998) porque estaria se apoiando no seu modo de falar. Mas será que esse fato só pode ser interpretado por esse viés categórico? O que estaria realmente por trás dessa questão? No decorrer do trabalho pretendemos responder a essa indagação. No quadro 1 (em anexo) estão expostas as categorias empregadas na classificação do erro por Cagliari (1989), Carraher (1990) e Zorzi (1998). Ao observálo, verificamos ser possível identificar 11 categorias propostas por Cagliari e Zorzi, ao passo que Carraher propôs 7 categorias, ausentando totalmente a aparição dos erros inexplicáveis ou singulares em suas pesquisas. Cagliari chama os erros inexplicáveis como de problemas sintáticos; Zorzi os considera como OUTRAS trocas. A palavra OUTRAS2, porém, não define que erros são esses, mas passa a idéia desses erros serem irrelevantes na investigação realizada pelo autor. Nessas OUTRAS alterações, segundo Zorzi (IDEM), se encaixam os erros que ocorreram de forma particular a uma determinada criança e que não foram vistas nas demais escritas infantis. Também não partilhavam semelhanças com as categorias anteriormente expostas, sendo assim intituladas de outras. Na busca de tentar explicar o descarte dos erros que atingiam um quantitativo minoritário na escrita de algumas crianças, e, que para Zorzi não eram passíveis de explicação por fugirem dos padrões que estabelecera nas dez categorias que propôs, o mesmo declara: Tais alterações corresponderam a ocorrências pouco comuns, às vezes revelando algum engano momentâneo, ou má compreensão de alguma palavra ditada e, outras vezes, provavelmente, alguma forma de a criança estar hipotetizando a ortografia, mas que escapou da possibilidade de compreensão do pesquisador (ZORZI, 1998, p.82). 2 Em anexo encontra-se o quadro 2 com esses „outros‟ erros elencados na pesquisa de Zorzi (1998). 5 Isto vem revelar que esse tipo de erro acaba sendo desconsiderado pelo pesquisador por escapar a sua possibilidade de explicá-lo por outro viés, que não o categórico e homogêneo em que se encontram a maioria das ocorrências. Nesse ponto emergem questões que a própria categorização não tem como dar conta, já que se trata de uma singularidade, de uma idiossincrasia que, a nosso ver, necessita de explicação e interpretação. Percebemos assim que tanto as dificuldades salientadas nos 3 processos fonológicos como as categorias do erro são de ordem generativa a uma classe de pessoas que apresentam idênticos problemas na produção dos sons/escrita. Isso implicaria dizer que os erros que não se identificam com a coletividade são descartados e se reduzirão a apenas mais uma quantificação deixada sem esclarecimento. Mas será que esses OUTROS „erros‟, levantados por Zorzi (1998) não podem ser realmente compreendidos ou não tem nenhuma outra interpretação na pesquisa de aquisição da linguagem escrita? Que erro é esse tão infrequente que não se encaixa em nenhuma categoria e são assim descartados? Sobre esse assunto é que o próximo tópico tratará. 2. ERRO ORTOGRÁFICO E SINGULARIDAE DO SUJEITO De acordo com Cegalla (2008, p.52) o termo ortografia vem do grego orthographia, que significa escrita correta. É também a parte responsável da Gramática “que trata do emprego correto das letras e dos sinais gráficos na língua escrita”. Devido a isto, a escrita que foge ao que está estabelecido no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o qual é publicado pela Academia Brasileira de Letras, é vista como erro. O erro recebeu durante muito tempo o papel de vilão na luta dos educadores contra seu aparecimento, pois sua presença incomodava não apenas ao errante, mas principalmente ao professor que atribuía sua ocorrência há uma falta de saber do aluno que, se não fosse corrigido a tempo, representaria também uma ameaça a sua capacidade de ensinar. Vários estudos sobre o erro ortográfico foram surgindo, ganhando destaque em nossa pesquisa as investigações na área da aquisição da linguagem cujos pesquisadores 3 Em anexo encontra-se o quadro 3 com as semelhanças de explicações feitas a partir dos processos fonológicos propostos por Othero (2005) e das categorias propostas por Zorzi (1998). 6 (LEMOS 1996, 1997, 2000; CALIL, 2004; LOPES, 2005; CALIL ET AL, 2006; CALIL E FELIPETO, 2008; FELIPETO, 2006; RIOLFI, 2009, entre outros) elegem o erro como um dado investigativo que pode indiciar a imprevisibilidade do erro e, na nossa visão, indicia ainda a singularidade do sujeito e do seu submetimento ao funcionamento linguístico-discursivo. Segundo Lopes (2005, p. 5) ao serem analisados os erros ortográficos podemos entender deste ponto que “o funcionamento lingüístico que rege o sistema ortográfico possui uma autonomia...” e que as ocorrências singulares “estão inscritas num funcionamento próprio do sistema ortográfico e não podem ser apagadas pela busca do regular... Elas nos revelam um sujeito sob os efeitos de um funcionamento de ordem lingüística”. O sujeito não domina a língua, pois há um escape que não o permite controlá-la, inserindo esse sujeito ao funcionamento linguístico, insurgindo nesse ponto o erro imprevisível. No ato da escrita o escrevente oscila, muitas vezes, entre formas gráficas que já pareciam estar estabilizadas e formas diferentes do padrão seguido pela normatização da língua. Nisso vemos um sujeito que está tentando adentrar na estrutura da língua, aparecendo, nesse espaço, um tipo específico de erro, não categorizável, não medível, não aceito por ser da ordem do singular e não coletivo e explicável, assim, como alegado pelas teorias que categorizam o erro. Essas mobilizações internas ou imaginárias do indivíduo sobre a língua têm sua base em dois eixos da linguagem salientados por Saussure (2006), relidos por Jakobson (1995) e reaprofundados por Lemos (1997, 2000) e que irão fundamentar os processos de combinação, substituição e seleção de palavras realizadas pelos estudantes em suas escriturações. Esses dois eixos são o sintagmático e o paradigmático. No sintagmático está o plano da combinação, da metonímia; no eixo paradigmático está o plano da seleção, da metáfora (DOR, 2003). Esses dois processos são os responsáveis “por todo funcionamento simbólico” (LANDI, 1997, p. 95) e pela inserção do sujeito na estrutura linguística. Nas questões aqui pontuadas pela aquisição da linguagem escrita, o objeto de partida que nos interessa é o erro considerado sem importância pelos categóricos da fono/ortografia, sendo foco de nossa investigação por serem diferentes e remeterem a um entrelaçamento entre o sujeito e a língua. 3. CORPUS TEXTUAL 7 Este estudo tomará como corpus de análise informações obtidas num banco de dados que contêm produções textuais de alunos da Escola Particular Monteiro Lobato, situada na cidade de Maceió. Para o desenvolvimento desta análise utilizaremos um manuscrito produzido em sala de aula por duas alunas do 2º ano (1ª série) coletado no ano de 1998, pertencentes ao acervo de Práticas de Textualização na Escola, do Projeto Escritura, Texto & Criação (grupo de pesquisa Educação e Linguagem do Programa de Pós-graduação em Educação da UFAL). O procedimento será o de verificar e analisar os erros ortográficos que as alunas cometeram em sua produção, tomando como base os estudos dos processos fonológicos (OTHERO, 2005), os erros categorizáveis (ZORZI, 1998) e os erros singulares (LEMOS, 2000; LOPES, 2005; CALIL ET AL, 2006; CALIL e FELIPETO, 2008). 4. O ESTRANHAMENTO DA AGLUTINAÇÃO NA FORMA GRÁFICA “TENQUE” O erro ortográfico que nos dispomos a analisar está presente na composição textual de título e história inventada por uma dupla de meninas pertencentes, na época, ao 2º ano do ensino fundamental, no ano de 1998. Pode ser 4classificado, à primeira vista, como “alterações ou erros decorrentes da possibilidade de representações múltiplas”, categoria salientada por Zorzi (1998, p. 34). Nessa categoria, um mesmo som pode ser representado por várias letras ou então vários sons podem representar uma mesma letra. No entanto, a forma registrada pelas alunas, “TENQUE” em vez de “TEM QUE”, nos causa um estranhamento provocado pela sobreposição de dois processos: um de substituição de letras e outro de aglutinação de dois termos. Observemos um 5trecho do texto da dupla, cujo título é “O principe e o dragão da maldade”: “[...] e o pai dela disse: - eu vou fazer um oferta para o pri- cipe. E o rei foi falar com o principe e disse: se você quiser se casar com minha filha vai tenque mata o dragão da maldade” (grifos nossos). Na Língua Portuguesa o m e o n são indicadores de som nasal, além do til sobre as vogais, podendo causar a substituição de um pelo outro na hora de escrever uma 4 Em anexo se encontra o quadro 4 com alguns erros ortográficos categorizáveis, baseados nos estudos de Othero (2005) e de Zorzi (1998), que foram localizados no texto da dupla. 5 Encontra-se em anexo o texto digitalizado da dupla. 8 palavra nasalada. Contudo, a junção das palavras TEM e QUE formando TENQUE causa estranheza por essa escrita não existir na nossa língua. Mas a nossa indagação é o que as levariam ter aglutinado as palavras tem+que e formado a palavra tenque? O que está por trás deste “erro”? Será que só pelo fato de substituírem uma letra pela outra seja a única explicação plausível para este acontecimento na escrita? Na concepção Saussuriana (2006, p. 205) “a aglutinação consiste em que dois ou mais termos originariamente distintos, mas que se encontram freqüentemente em sintagma no seio da frase, se soldem numa unidade absoluta dificilmente analisável.” A aglutinação é uma possibilidade da língua em que duas palavras se fundem para formar uma única forma significante. Na escrita da dupla, a singularidade do erro incide sobre a forma significante TENQUE, em que houve uma aglutinação efetuada na junção das palavras TEM + QUE. Essa forma tenque pode ser considerada como um possível linguístico, tendo em vista as possibilidades da língua, “porém sem pertencer à norma” (LOPES, 2005, p. 78). De acordo com a regra normativa que estrutura a Língua Portuguesa, m e n devem sinalizar o som nasal, sendo que o m vem antes de p e b e o n antes das demais consoantes. Nesse sentido o som expresso por essas duas formas significantes poderia, a exemplo da explicação dos categóricos do erro, ser resolvido pela aclaração de defini-lo como uma representação de sons idênticos e devido a isso haveria essa substituição de uma letra pela outra. Mas ao aprofundarmos mais esta questão nos estudos de Jakobson (1995) apontaremos para uma substituição e/ou aglutinação tendo em vista dois eixos da linguagem por ele elencados como metafórico e metonímico, que também compõe as formas de arrumação da organização linguística. Jakobson (1995, p. 39) salienta dois modos em que o signo linguístico pode ser arranjado, alcunhado por ele como combinação e seleção. É na seleção que ocorrem substituições entre as unidades da língua, as quais são realizadas com fundamento no código linguístico. Essas substituições podem ser semelhantes ou contrárias. Na seleção, há possibilidade de substituir um termo alternativo selecionado por outro que seja “equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro” (JAKOBSON, 1995, p. 39). Na combinação existem os processos de concorrência e concatenação. De acordo com Jackobson (IDEM) “pode-se dizer que concorrência de entidades simultâneas e a concatenação de entidades sucessivas são os dois modos segundo os quais nós, que falamos, combinamos os constituintes lingüísticos”. 9 Essas duas operações linguísticas, a seleção e a combinação, são fornecedoras aos signos linguísticos de duas fontes de “interpretantes”, que seria uma seleção relacionada ao código e uma combinação relacionada ao contexto. [...] seleção (e, correlativamente, a substituição) concerne às entidades associadas no código, mas não na mensagem dada, ao passo que, no caso de combinação, as entidades estão associadas em ambos ou somente na mensagem efetiva [...] uma dada unidade significativa pode ser substituída por outros signos mais explícitos do mesmo código, por via de que seu significado geral se revela, ao passo que seu sentido contextual é determinado por sua conexão com outros signos no interior da mesma sequência. (IDEM, p. 40 E 41) Nesse sentido, a relação de substituição de m por n ocorrida no texto da dupla se encontra na equivalência do som nasal executado por ambos. Na questão de possibilidade de uso de m por n, este encontra outro ponto a favor: dentro da possibilidade da língua o n estaria na posição correta e m ali não se encaixaria. Seguindo este modo de pensar, podemos aferir que as duas meninas aglutinaram TEM + QUE e substituíram o M pelo N, tendo como referência a convenção no sistema linguístico, onde o n é quem deve ocupar esta posição na língua. Essa estrutura é uma possibilidade na língua, tendo em vista que existem outras palavras que lembram esta escrita, como é o caso das palavras TANQUE, BANQUETE, em que o N assume posição antes do QUE. De acordo com o que é estabilizado na língua, o m não poderia entrar nessa estrutura devido ser exigida sua colocação antes de p e b. Deparamos-nos neste ponto com o erro imprevisível de um sujeito que revela sua singularidade na inserção do funcionamento da língua. Observemos o texto transcrito da dupla: TRANSCRIÇÃO NORMATIVA O Principe e o dragão da maldade CeR 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. (14-09-98) Era uma vez um principe que morava em um castelo. um dia ele o príncipe encontrou uma bela prícesa e o principe pedio a mão em casamento para a princesa. e a princesa pedio a o pai para se casa com o principe e o paí dela disse: 10 8. – eu vou fazer um oferta para o pri9. cipe. e o rei foi falar com o principe 10. e disse: 11. - se você quiser se casar com minha 12. filha vai tenque mata o dragão da 13. maldade. e o princepe foi mata o dra14. gão cortou a bari barriga do 15. dragão e foi da maldade e o pricipe 16. foi para o castelo da princesa e o 17. rei preparou uma festa de noi18. vado e o principe se casou com a 19. princesa e viveram felizes para 20. senpre. Observando o texto das meninas verificamos que elas já tinham consolidado o uso do n na língua. Exemplo disso é a escrita seguindo os padrões prescritivos linguísticos nas grafias das palavras priNcipe, eNcoNtrou, casameNto e priNcesa. Isso indica que a dupla tinha um conhecimento prévio do uso do n e m nasais na escrita. Então, o que faria com que as crianças realizassem tal ocorrência de erro particular em sua composição textual já tendo uma forma estabilizada das regras de n e m? O q é um significante importante para que a dupla resolvesse utilizar o N e não o M nessa estrutura, uma vez que não é possível no esqueleto da língua escrever TEMQUE, mas tenque é uma possibilidade, pois antes de q se escreve n. Essa forma pode mostrar a subjetividade e posição singular dessas alunas submetidas ao funcionamento linguístico-discursivo. Nessa incidência, as crianças não inventam traços nem sequências de palavras, nem utilizam vocábulos que estejam fora do contexto de sua possibilidade linguística, mas empregam o código que é de certa forma, delimitado pela língua, buscando a probabilidade por ela dada. No estoque lexical que compõe o repertório linguístico da criança é utilizada a substituição/combinação de grafemas que seguem uma lógica permissiva na língua. O processo de deslocamento e substituição desses significantes gera uma aglutinação das duas palavras (tem + que) que se sintetizam em uma única forma escrita (tenque), fazendo com que os erros ganhem evidência nesse jogo mobilizatório na “sucessão de cadeias cuja estrutura é a mesma” (LEMOS, 2000, p. 7). Nesse jogo das substituições há uma imprevisibilidade, inconsciente, por haver nesse ponto uma possibilidade de “corte” na cadeia sintagmática. [...] a semelhança entre as cadeias que se sucedem e a diferença entre os termos que nelas são substituídos criam tanto um movimento no sentido 11 oposto, isto é, o retorno das cadeias sobre si mesmas quanto um movimento de deriva que tende a desfazer o sentido prestes a se constituir e impede seus possíveis efeitos referenciais (IDEM, p. 8) Lemos (1997, p. 84) em suas pesquisas estudou as falas das crianças e concluiu que elas atuam sobre a língua, tornando-se um tipo de intérprete da fala do outro sujeito e de sua própria fala, e mesmo que sua fala contenha erros, estes sinalizam para a autora “uma mudança de posição da criança relativamente à língua e, em conseqüência, à fala do outro”. A substituição/aglutinação parece-nos revelar, assim, um efeito de retroação de alternância do som nasal entre m/n, em tem que por tenque, no qual a forma significante que mais se aproxima da estrutura gramatical (mental) de nossa dupla escritora é a segunda, fazendo emergir o inesperado no lugar do/sobre o esperado, naturalmente, ressignificando-o e o instaurando, revelando uma escuta do sujeito sobre sua própria fala/escrita. Lemos (1996) acredita, assim, que o erro não está ligado somente ao bom ou mau uso das formas linguísticas, mas ainda, como o sujeito que fala é pela língua capturado, abordando três posições relacionadas à passagem da criança de infans para falante, que seriam a relação do sujeito estabelecida com a fala do outro, com a própria língua e consigo mesmo através de sua própria fala. Segundo Lemos (2000, p.16), quando o sujeito escuta sua fala está se deslocando para a terceira posição, sendo que a “substituição/diferença não deixa de revelar uma posição aberta, onde esperado e inesperado podem colidir e nessa colisão deslocar o sujeito para uma posição de escuta”, possibilidade esta de escutar que sinaliza um ser que está, sobretudo, sobre a sequela de sua própria fala. Lopes (2005) também chama a atenção a três posições para melhor entender o processo no qual a criança passa de ouvinte a autora de suas produções: sua escrita marcada pela influência das falas dos outros, pelo próprio funcionamento estabelecido pela língua e a relação do autor com sua própria fala. Essa reflexão aponta para uma inserção do sujeito no funcionamento da língua e insere as alunas na terceira posição de trajetórias destacadas por Lemos e Lopes. É na terceira posição que o sujeito escritor “se divide entre aquele que fala e aquele que escuta sua própria fala”, observando sua escrita e sendo capaz de poder 12 retomar, reformular e reconhecer diferenças existentes entre a fala do outro e a sua própria (LEMOS, 2000, p. 5). Para explicar essas mudanças de posição Lemos (1997, p. 84) recorre também aos dois processos mobilizatórios, os metafóricos e os metonímicos, que são utilizados pela autora para “dar conta das mudanças na relação da criança com a língua no decurso de sua constituição como falante”, mostrando o envolvimento operatório da criança na construção da linguagem. Reconhecemos nesta pesquisa que as transformações ocorridas na fala/escrita das alunas resultam desses processos metafóricos e metonímicos que são estabelecidos pelas substituições e combinações de relação semelhança/diferença entre o que está manifesto nas cadeias (sintagmática e paradigmática), sendo uma falta latente submergida para a cadeia manifesta (composição estranha) na grafia da dupla. Dessa forma, é nessa constituição de substituições resultantes da relação entre as formas significantes TEM QUE e TENQUE que apresentam estruturas similares, embora produzam efeitos de disparidade, que se subscreve o erro imprevisível da segunda forma. Esse erro pode revelar a singularidade do sujeito e as possibilidades da língua, assinalando através da escrita irregular, inconsciente, que esse sujeito “também está submetido ao funcionamento da língua” nas atividades discursivas a que é exposto. (LEMOS, 2000, p.5) CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos categorizáveis dos erros fonológicos e ortográficos ocupam seu lugar nas pesquisas de aquisição da linguagem, não sendo desconsiderada sua importância nos trabalhos desenvolvidos com um quantitativo grande de alunos e que se queira dar uma resposta imediata as inquietações existentes sobre as alterações fonológicas e ortográficas que fujam do padrão normativo exigido. Contudo, nesta pesquisa buscou-se apontar outro caminho que permita ir além da categorização previsível para uma emergência imprevisível e diferente na produção do erro ortográfico. Por ter uma escrita que não se enquadra, muitas vezes, em nenhuma categoria estudada sobre os erros, leva ao pesquisador a descartá-lo ou classificá-lo como mais outro erro, por não ter uma explicação plausível deste erro distinto das demais alterações frequentes. Os estudos da aquisição da linguagem que tem teóricos que não acreditam no erro como algo inerente como afirmado pelas teorias cognitivas, vêem 13 neste uma possibilidade de pesquisa e apostam no erro como uma particularidade de cada indivíduo que, uma vez submetido ao funcionamento da língua, é capturado por ela. REFERÊNCIAS CAGLIARI, L. C. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1989. CALIL, Eduardo. Autoria: a criança e a escrita de histórias inventadas. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2004. CALIL ET ALL. O sujeito inexistente: reflexões sobre o caráter da consciência fonológica a partir do “Relatório final do grupo de trabalho alfabetização infantil – os novos caminhos”. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, p. 137-155, jan./abr, 2006. CALIL, Eduardo; FELIPETO, Cristina; A Singularidade do Erro Ortográfico nas Manifestações D’Alíngua. Estilos da Clínica, 2008, Vol. XIII, nº 25, 118-137. CARRAHER, T. N. 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As complexas relações entre fonemas e grafemas e suas implicações no processo de aquisição da escrita. Dissertação de mestrado. Niterói, UFF, 2001. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. 20a ed. São Paulo, Cultrix, 1995. LANDI, R. Com Jakobson, sobre a afasia. In: LIER-DE-VITTO, Maria F. (org.) Fonoaudiologia: no sentido da linguagem. São Paulo, Cortez, 1997. LEMOS, C. T. G. (1996) "Em busca de uma alternativa à noção de desenvolvimento na interpretação do processo de Aquisição de Linguagem". Relatório CNPQ. 14 ________________ (1997) “Processos Metafóricos e Metonímicos: seu estatuto descritivo e explicativo na aquisição de língua materna”. (Trabalho apresentado no Treton Lectures and Workshop on Metaphora and Analogy, organizada pelo Instituto per la Richerca Scientifica e Tecnologica italiano em Povo, Trenton, 18 a 21 de junho de 1997). ________________. Sobre o paralelismo, sua extensão e a disparidade de seus efeitos (2000). Trabalho apresentado na mesa-redonda sobre Aquisição e Patologia, no Primeiro Encontro Internacional sobre Aquisição de Linguagem. Porto Alegre, PUCRS, 2000. LOPES, Adna Almeida. A singularidade do erro ortográfico e os efeitos do funcionamento da língua. Tese de doutorado. Maceió, 2005. MOTA, Sônia B. V. da. O quebra-cabeça : a instância da letra na aquisição da escrita. Tese de doutorado. São Paulo: PUC, 1995. OTHERO, Gabriel de Ávila. Processos fonológicos na aquisição da linguagem pela criança. ReVEL, v.3, n.5, 2005. RIOLFI, Cláudia Rosa. A criança errante. An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006. STAMPE, David. A dissertation on natural phonology. Tese de Doutorado, Universidade de Chicago, EUA, 1973 ANEXO - QUADROS Quadro 1 - Categorias empregadas na classificação dos erros ortográficos Categorias empregadas na classificação dos erros ortográficos Cagliari - 1989 Carraher - 1990 Zorzi (1997) Transcrição fonética Transcrição da fala Apoio na oralidade Uso indevido de letras Erros ligados à origem das Representações múltiplas palavras Hipercorreção Supercorreção Generalização de regras Modificação da estrutura segmental: Erros nas sílabas de estruturas Omissão de letras trocas, supressão, acréscimo e complexas inversão Juntura intervocabular e Ausência de segmentação e Junção/separação não segmentação segmentação indevida convencional de palavras Forma morfológica diferente Erros por considerar as regras Confusão entre as contextuais terminações am x ao Erros por ausência de Trocas surdas/sonoras Forma estrana de traçar as letras nasalização Uso indevido de maiúsculas e Erros por trocas de letras Acréscimo de letras minúsculas Acentos gráficos Letras parecidas Sinais de pontuação Inversão de letras 15 Problemas sintáticos Outras trocas Fonte: Zorzi (1998, p. 41) jornal ninguém cresceu sornão ninhem dreceu cebola sozinho macarrão Quadro 2- Amostra de Erros Fonte: (Zorzi, 1998, p. 83) cemola sovinho macacão 16 mangueira ninguém contrário tempo mahera ninhe com tranho pempo trabalhar bolo cheinha já tramalha molo seinha va labirintos fraquinho Rodolfo Rodolfo cachorro sangue britos naaquinho Rodouso rodanrio chachorro jangue sardento triste combinar vez fraquinho aprendeu chargento cristi conrrinar zez frazinho aprendão feitiço viajarão bruxa palpite selva emagreceu feiticho viasrarro gurcha pampite seiva ematreceu bochechuda vezes preciso correndo estava meu buchesuda vevis parcicho coresdo estado mehor Quadro 3 - Semelhanças de explicação feita a partir dos processos fonológicos propostos por Othero e das categorias propostas por Zorzi: OTHERO (2005) – ESTRATÉGIAS DOS PROCESSOS ZORZI (1998) – CATEGORIAS DOS FONOLÓGICOS ERROS ORTOGRÁFICOS Redução de encontro consonantal – ex.: coba ['kɔ .ba] Omissões de letras – ex.: compa -compra - cobra A categoria de erros ortográficos que mais se aproximou da categoria citada de erros fonológicos foi a de omissões de letras. Pode ser observado que em ambas as palavras o r do encontro consonantal foi suprimido. Embora as omissões de letras abranjam não só os encontros consonantais, é possível aferir que em ambas ocorre um processo parecido de supressão da líquida não-lateral r. Metátese – ex.: tartor (trator) - [tay. 'toy] Inversões – ex.: pober (pobre) Em ambas as categorias há uma inversão da posição da letra r. É curioso notar que tanto no exemplo dado por Othero quanto em um dos exemplos apresentados por Zorzi as palavras possuem encontro consonantal e há uma troca da posição da vogal com a posição da consoante que produz o encontro consonantal, indo este posicionar-se no final da sílaba em que ocorre essa metátese ou inversão. Desonorização da obstruinte – Ex.: sepa (zebra) – Trocas de surdas / sonoras – Ex.: vome [se‟.pa] (fome) Plosiva - Ex.: baca (vaca) ['ba.ka] taia ( vaia) – [ta‟.ya] As duas categorias fonológicas têm semelhança com a categoria de alterações dos erros pelo fato de apresentarem a troca de letras cujos sons são surdos por sonoros ou o seu contrário. Vale lembrar que o b, o z e o v são consoantes vozeadas, enquanto que o s, o f e o t são desvozeadas. A proximidade 17 articulatória existente entre os pares fonêmicos é um propiciador para que essas substituições na fala e na escrita das letras ocorram. Fonte: Dados obtidos em Othero (2005) e Zorzi (1998). Quadro 4 – Quantidade de ocorrências de erros categorizáveis: Ocorrências Linha Quantidade Categoria Categoria (fonológica) – Othero (alterações de erros) Zorzi (2005) (1998) junção-separação não Pedio 4, 5 02 casa ( r ) e mata (r) 06 01 senpre 20 01 Apagamento da líquida convencional final Omissão de letras Generalização Fonte: dados da pesquisa ANEXO – TEXTO Possibilidades de representações múltiplas 18