A RELAÇÃO
< CIÊNCIA, FILOSOFIA >
Sumário:
A história das relações entre a filosofia e ciência
processa-se de acordo
com um padrão esquemático nítido:
da transição de um único conjunto inicial
de questões e métodos
para uma sucessiva diferenciação e
individualização de ambos.
1
2ª Sessão - Cont.
• Este processo de individualização dá origem :
i) a uma nova divisão de trabalho;
ii) a uma nova tipologia de questões:
• As novas questões:
• Q1: são as questões com solução científica, como
“O que é matéria?”
• Q2: são as questões sem solução científica como
“Por que razão existe matéria?”
2
2ª Sessão - Cont.
• Questões de tipo 2 exigem uma definição de
“solução científica”.
• Mas não existe uma ciência que contenha a
resposta à pergunta
“o que é uma solução científica?”
• Questões de tipo 2 são questões acerca de
questões de tipo 1.
• Se chamarmos a Q1 questões de 1ª Ordem,
então Q2 são questões de 2ª Ordem, questões
acerca de questões.
3
2ª Sessão - Cont.
• Existe um impacto recíproco entre a ciência e a filosofia:
1.
• No início da reflexão sobre um problema, a filosofia
institui: i) um vocabulário e
ii) uma rede de conceitos que são mais tarde
úteis para formular um problema científico:
• Exemplo típico 1.: as teorias filosóficas sobre o espaço e o
tempo de Kant foram úteis a Einstein na inspiração e na
formulação da relatividade do espaço e do tempo na sua
própria teoria.
2.
• Mas uma teoria científica impõe consequências
irrecusáveis numa teoria filosófica sobre o mesmo
complexo de temas.
4
2ª Sessão - Cont.
• Exemplo típico 2: o sistema astronómico de Copérnico refuta a teoria
filosófica do geocentrismo.
3.
• No Impacto Recíproco ficou célebre o conflito com Kepler e a sua
condenação eclesiástica :
i) pela descoberta do 7º planeta do sistema solar e
ii) pela formulação da lei da trajectória elíptica dos planetas.
• Como explicar o processo de separação da ciência da filosofia?
• O Positivismo Clássico é uma teoria que procura explicar o processo
de diferenciação e de especialização das ciências em relação ao
tronco comum inicial, a filosofia.
• Há duas contribuições básicas do Positivismo Clássico que não se
pode deixar de conhecer.
• A primeira é o instrumento conceptual mais conhecido do Positivismo
Clássico, a
Lei dos 3 Estados.
5
•
•
•
•
•
•
2ª Sessão - Cont.
A Lei dos 3 Estados foi inicialmente formulada pelo
fundador do Positivismo Clássico, Auguste Comte, no
séc. XIX.
Tem um âmbito ontogenético (válido para o indivíduo)
e filogenético (válido para a espécie).
Para Comte um estado é não só um momento na
história duma teoria mas também uma escolha de
framework, de vocabulário e de contexto para dar
sentido ao vocabulário escolhido.
No 1º. estado, chamado o estado teológico, a filosofia
e a ciência são uma e a mesma actividade.
Uma teoria neste estado tem a forma poética de uma
mitologia, em que descrever a realidade é descrever
os deuses que produzem a realidade a descrever.
Ex.: A Teogonia de Hesíodo.
6
2ª Sessão - Cont.
• No 2º Estado, chamado o estado metafísico, a acção dos
deuses é eliminada e substituída por forças ou energias
abstractas, imateriais, inverificáveis e insusceptíveis de
quantificação.
• Uma teoria tem a forma de uma descrição sugestiva e
qualitativa da realidade a descrever.
• No 3º Estado, chamado o estado positivo, uma teoria é
formulada em termos das relações quantitativas observáveis
entre os conceitos intervenientes.
• Ex.: os 3 Estados da Física.
• À pergunta “o que é o tempo?”
• Responde Hesíodo no 1º estado com o deus Cronos, por
meio do qual se explicam as propriedades do tempo.
• No 2º estado St. Agostinho procura explicar o tempo em termos
da vivência consciente da duração subjectiva (de um fenómeno
ou de um acontecimento).
• No 3º Estado as leis de Newton exprimem as propriedades do
tempo em termos das relações quantitativas entre o conceito e
os conceitos afins.
7
2ª Sessão - Cont.
• Pela 2ª. lei de Newton a força é o produto da massa
pela aceleração,
F = m x a.
• Mas a aceleração por sua vez é definida como a
primeira derivada da velocidade a respeito do tempo,
Δv
Δ t.
• Como explicar a diferença entre o tempo:
como acção do deus Cronos,
como experiência subjectiva e
como função derivável?
8
2ª Sessão - Cont.
• Segundo a Lei dos 3 Estados existe uma diferença
de valor explicativo crescente.
• A transição faz-se de uma teoria de menor valor
explicativo para uma teoria de maior valor
explicativo.
• Mas proporciona a teoria de Newton uma definição
de tempo?
• A função derivável na fórmula de Newton é uma
função da unidade de medida do tempo.
• Assim o problema consiste em saber se o conceito
de tempo é redutível ao da sua unidade de medida .
9
2ª Sessão - Cont.
• A lei dos 3 estados não pode ser interpretada como
descrevendo o percurso histórico da ciência da
Antiguidade Clássica para a Idade Média e desta
para a Idade Moderna.
• Ex.: Na Antiguidade Clássica a Aritmética e a
Geometria atingiram o estado positivo no trabalho
de Euclides.
• Em geral no Positivismo pós-clássico do Círculo de
Viena a lei dos 3 estados é aduzida em favor da
tese segundo a qual a filosofia é o resíduo dos
problemas da ciência que não atingiram o estado
positivo.
10
2ª Sessão - Cont.
Acerca do Domínio da Filosofia:
• A 2ª contribuição atribuível ao Positivismo é
a introdução, pelo Círculo de Viena, do conceito de
pseudo-questão.
• Uma pseudo-questão tem a forma (aparente ou)
gramatical de uma questão com sentido, mas não
tem uma resposta com sentido.
• Exemplos:
i)
Qual é o maior número primo?
ii)
Por que razão é que moléculas
inorgânicas deram origem à vida?
11
2ª Sessão - Cont.
• Mas ambas as questões, depois de serem
decompostas nos conceitos que nelas ocorrem,
não têm uma resposta nem na Aritmética nem
na Biologia.
• Dizer de uma questão que é uma pseudoquestão é o mesmo que dizer que não faz
sentido lógica ou metodologicamente, embora
a questão faça sentido gramaticalmente.
• E não fazer sentido lógica ou
metodologicamente é equivalente a não existir
uma teoria científica (aritmética ou biológica)
com uma resposta válida para a pergunta.
12
2ª Sessão - Cont.
• Para a descrição do domínio da filosofia a
característica básica é a heterogeneidade temática.
• A filosofia consiste em 2 classes disjuntas de temas:
i)
temas acerca do conhecimento;
ii)
temas acerca do conceito de valor.
• Os temas acerca do conhecimento são tratados de
três maneiras diferentes nas subdisciplinas de
Epistemologia, Lógica e Metafísica.
• Os temas acerca do conceito de valor são tratados
nas subdisciplinas de Ética e de Estética.
13
2ª Sessão - Cont.
• No nosso curso só são relevantes os temas relacionados com
o conhecimento, actualmente designado por cognição.
• A Metafísica é a análise do problema da existência dos
objectos do conhecimento com o intuito de fixar respostas com
sentido para perguntas com a seguinte forma:
Que espécie de coisas existe?
Só existem objectos materiais
ou também existem os objectos abstractos da matemática?
• Na Epistemologia estamos interessados em analisar questões
da seguinte forma:
É possível conhecer?
O que é que se conhece quando se conhece?
Conhece-se os objectos tal como são
ou conhece-se apenas ideias acerca de objectos?
Qual é a fonte do conhecimento?
É a experiência a única fonte possível de conhecimento?
Pode uma inferência lógica ser uma fonte de conhecimento
14
tão válida como uma experiência?
2ª Sessão - Cont.
• A Lógica é a teoria geral da inferência válida.
• As duas formas básicas de inferência são
a dedução e a indução.
• Para qualquer das formas a lógica isola os critérios que
tornam uma dedução ou uma indução válida ou inválida.
• Os termos “válido” e “verdadeiro” não são sinónimos na
teoria lógica, uma vez que representam conceitos
diferentes.
• “Válido” é invariante quanto ao conteúdo, “verdadeiro“ é
dependente do conteúdo.
• Assim para uma dedução há um total de
4 possibilidades:
1.
Verdadeira e válida
2.
Falsa e inválida
3.
Verdadeira e inválida
15
4.
Falsa e válida
•
•
•
•
•
•
2ª Sessão - Cont.
Uma dedução tem duas partes componentes:
uma ou mais premissas e uma conclusão.
Ex.:
i.
Todos os alemães são asiáticos.
Blair é alemão.
Logo Blair é asiático.
Ex.:
ii.
Todos os Gregos são europeus.
Blair é inglês.
Logo Sócrates é grego.
As premissas estão separadas da conclusão por Logo.
No ex. i. todas as proposições intervenientes são falsas
mas a dedução é válida.
No ex. ii. todas as proposições são verdadeiras mas a
dedução é inválida.
16
2ª Sessão - Cont.
• Na inferência dedutiva uma proposição universal
implica um caso particular;
• ex.: qualquer número primo maior
ou igual a 3 é ímpar; logo 13 é primo.
• Na inferência indutiva de um caso particular infere-se
uma lei geral;
• ex.:o sol nasceu hoje;
logo nasce também amanhã.
• É óbvio que uma tal inferência tem um aspecto contraintuitivo. No entanto a experiência tem mostrado a
fiabilidade da indução.
• Como conciliar a experiência com a intuição?
• Constitui-se assim o problema da
justificação da indução,
em curso na filosofia desde David Hume, no séc. XVII.
2ª Sessão - Cont.
• Vamos tratar do problema da indução com mais
pormenor mais tarde.
De momento queremos saber em que é que consiste
o problema da justificação da indução.
• No exemplo de David Hume:
o que é que permite inferir do facto
de o sol ter nascido hoje
(e todos os dias que precederam hoje)
que nascerá também amanhã?
• Esta inferência é autorizada pelo apelo ao
princípio da uniformidade da natureza,
segundo o qual os processos naturais são constantes.
18
•
•
•
•
2ª Sessão - Cont.
O problema de Hume converte-se assim em saber
o que é que legitima o princípio da uniformidade da
natureza.
Em particular, como é que se sabe que o princípio da
uniformidade da natureza é válido?
Para ter validade universal tem que ser aplicável a
todos os processos naturais. Mas para estabelecer a
proposição
“todos os processos naturais são constantes”,
não posso analisar cada processo um a um.
É apenas pela análise de alguns, eventualmente
muitos, processos naturais como constantes que me
permito inferir que todos são constantes.
19
2ª Sessão - Cont.
• Mas a inferência de
“alguns processos naturais são constantes”
para
“todos os processos naturais são constantes”
é uma inferência indutiva.
• Logo para legitimar a indução tenho que utilizar
a indução.
• A conclusão de Hume é que a indução não se
pode legitimar sem cometer a falácia do
“círculo vicioso”.
20
2ª Sessão - Cont.
• É preciso definir o emprego do termo “círculo
vicioso”, sinónimo de “demonstração circular”, uma
vez que é o conceito essencial da análise de
Hume.
• Diz-se que uma demonstração para estabelecer a
verdade de uma proposição P é circular
se a própria proposição P
ocorre na demonstração no lugar de premissa.
• A demonstração circular é ilegítima uma vez que
para se demonstrar a verdade de P já se tem que
saber que P é verdadeira.
21
2ª Sessão - Cont.
• A inferência indutiva analisada por Hume pode
ser posta sob a forma de uma implicação
como:
“Se o sol nasceu todos os dias até hoje,
então nasce também amanhã”.
• A indução que permite inferir que o sol nasce
amanhã é legitimada pelo uso de uma
premissa auxiliar, a qual não ocorre na frase
acima, mas que no entanto é pressuposta na
inferência.
22
2ª Sessão - Cont.
• A premissa auxiliar tem o nome de
Princípio da Uniformidade da Natureza,
segundo o qual a forma de ocorrência dos
processos naturais é constante.
• Logo Hume transfere o seu problema para o da
legitimação do Princípio da Uniformidade da
Natureza.
23
2ª Sessão - Cont.
• Poderia parecer à primeira vista que a Física não
tem um problema de Evidência (definindo este
termo como “fiabilidade do conhecimento”), visto
que nada pode ser mais fiável do que a
experiência empírica.
• A Reflexão no entanto mostra que a experiência
empírica depende de um modo essencial de dois
conceitos afins, a indução e a probabilidade.
• Assim também em Física se constitui um problema
de Evidência, agora sob a forma da justificação
da indução e da definição de probabilidade.
24
2ª Sessão - Cont.
• Para Hume a questão da fiabilidade do PUN
equivale a perguntar
“como é que se sabe que o PUN é correcto?”
• Para ser correcto o PUN tem que ser válido
para todos os processos naturais.
• Mas como só é possível estabelecer que todos
os processos naturais são constantes à custa
da verificação de alguns, a correcção do PUN é
obtida por uma inferência indutiva.
• Assim é necessário pressupor a indução para
legitimar a indução.
25
2ª Sessão - Cont.
• Como reagir ao argumento de Hume?
Há 3 possibilidades:
• 1. Rejeitar a indução como inferência científica
e consequentemente rejeitar o
conhecimento obtido por indução como
infiável.
• 2. Aceitar a indução mas procurar a sua
legitimação em conceitos afins, explicáveis
sem o recurso a uma demonstração circular.
• 3. Aceitar a indução e rejeitar a exigência de
que é necessário legitimar a indução.
26
2ª Sessão - Cont.
• Vamos tratar separadamente as posições 1 e 2.
• A posição 3. equivale a conceber a indução como
um padrão de medida.
• A indução tem, deste ponto de vista, a mesma
circularidade que existe na proposição:
“o metro-padrão de Paris tem de comprimento 1 metro”.
• E tal como proposições sobre uma medida-padrão
não necessitam de ser independentemente
justificadas, assim também a indução não tem que ser
justificada.
27
Download

a relação