A urgência em Freud e Lacan UNIDADE I As pulsões e seus destinos O que é a pulsão? “Um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático; ou ainda, “é o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente.” p. 142 Mente Trieb O termo em alemão é Trieb, e uma das possíveis traduções seria Urge em inglês que no português traduzir-se-ia por Ânsia. Corpo “Um instinto (uma pulsão) jamais atua como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante. Além disso, visto que ele incide não à partir de fora mas de dentro do organismo, não há como fugir dele.” p. 138 O principio do homeostase “O sistema nervoso é um aparelho que tem por função livrar-se dos estímulos que lhe chegam, ou reduzi-los ao nível mais baixo possível; ou que, caso fosse viável, se manteria numa condição inteiramente não-estimulada.” P. 140 As principais características de uma pulsão Origem em fontes de estimulação dentro do organismo Força constante. Não permite a fuga. É submetida ao principio da homeostase. Sempre busca a satisfação, mas nunca pode ser satisfeita. Toda pulsão apresenta: Fonte (Quelle) A fonte de toda pulsão é corporal, não psíquica; é “um processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo e cuja excitação é representada na vida mental pela pulsão.” p. 143 Pressão (Drang) “Por pressão de uma pulsão compreendemos seu fator motor, a qualidade de força ou a medida da exigência de trabalho que ela apresenta.” p. 142 Objetivo (Ziel) O objetivo de uma pulsão é sempre a satisfação, senda a satisfação definida como a redução da tensão provocada pela pressão. Objeto (Objekt) O objeto é a coisa em relação a qual ou através da qual a pulsão pretende atingir seu objetivo. É o que há de mais variável em uma pulsão. P.143 Qual o objeto de satisfação da fome? Comida Qual o objeto de satisfação do sexo? O sexo e a morte A pulsão não pode ser satisfeita senão parcialmente. A satisfação total da pulsão só pode ocorrer mediante a inatividade completa do aparelho psíquico. Em Além do principio do prazer, Freud descobre uma tendência interna de retorno a um estado inorgânico. Ele afirma: “Seremos então compelidos a dizer que o objetivo de toda a vida é a morte.” p. 56 A pulsão de morte, em oposição a pulsão de vida, nos ensina, portanto, que a satisfação de eros não pode ser completa senão pelo estado inanimado dos tecidos que a originam. A morte é então o objetivo ultimo da pulsão. Até a pulsão de vida tem o papel de fazer com que a realização da morte ocorra de maneira natural e preferencialmente prazerosa. Emergência Podemos definir a emergência como eventos externos geradores de perigos de morte que impõe um desvio ao modo com que o sujeito deseja morrer. É possível escapá-la pela modificação motora do mundo externo. As emergências geralmente exigem do sujeito um novo rearranjo econômico das pulsões. A urgência universal Designamos urgência universal as constantes e insistentes catástrofes internas que as pulsões impõem ao aparelho psíquico. Este impacto repetitivo é universal e, ao ser recebido pelo aparelho psíquico sofrerá transformações, já que o mesmo precisa aliviar, ou até mesmo, anular a tensão por ela provocada. Os destinos da pulsão As pulsões sempre terão o mesmo objetivo: a satisfação, no entanto essa satisfação nunca é completa mas sempre parcial, isso devido as transformações que a pulsão irá sofrer no aparelho psíquico. Quais sejam: Reversão ao seu oposto Retorno em direção ao próprio eu Recalcamento (formação do sintoma) Sublimação Psicose Neurose Para além da estrutura “Podemos resumir dizendo que o traço essencial das vicissitudes sofridas pelas pulsões está na sujeição dos impulsos pulsionais às influências das três grandes polaridades da vida mental:” p. 162 Atividade – passividade Ego – mundo externo Prazer – Desprazer Inibição, sintoma e angústia Quando a pulsão chega ao aparelho psíquico, antes de encontrar um destino que imponha-lhe uma transformação, ela pode causar angústia. Face a angustia o sujeito precisa transformar a pulsão e para isso só encontra duas saídas: A formação de um sintoma (recalque)(neurose) A inibição do processo de formação de um sintoma (forclusão)(psicose). O que será (À flor da pele) Chico Buarque/1976 O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dá Que brota à flor da pele, será que me dá E que me sobe às faces e me faz corar E que me salta aos olhos a me atraiçoar E que me aperta o peito e me faz confessar O que não tem mais jeito de dissimular E que nem é direito ninguém recusar E que me faz mendigo, me faz suplicar O que não tem medida, nem nunca terá O que não tem remédio, nem nunca terá O que não tem receita O que será que será Que dá dentro da gente e que não devia Que desacata a gente, que é revelia Que é feito uma aguardente que não sacia Que é feito estar doente de uma folia Que nem dez mandamentos vão conciliar Nem todos os unguentos vão aliviar Nem todos os quebrantos, toda alquimia Que nem todos os santos, será que será O que não tem descanso, nem nunca terá O que não tem cansaço, nem nunca terá O que não tem limite O que será que me dá Que me queima por dentro, será que me dá Que me perturba o sono, será que me dá Que todos os tremores me vêm agitar Que todos os ardores me vêm atiçar Que todos os suores me vêm encharcar Que todos os meus nervos estão a rogar Que todos os meus órgãos estão a clamar E uma aflição medonha me faz implorar O que não tem vergonha, nem nunca terá O que não tem governo, nem nunca terá O que não tem juízo O destino de todo pulsão é transformar-se em ato e/ou em linguagem. O sintoma Caso do pequeno Hans Hostilidade ao pai. Substituição de cavalo por pai. Substituição de pai por cavalo. Sintoma: fobia de cavalos. O recalque age sobre a pulsão fazendo com que o representante ideativo seja levado ao inconsciente. A consciência cria, então, um substituto para o representante ideativo reprimido. Este substituto assegurará ao sujeito a não satisfação completa da pulsão, bem como a presença de uma quantidade necessária de desprazer. “O ego debela os perigos internos e externos, de igual modo, ao longo de linhas idênticas. No caso do perigo externo, o organismo recorre a tentativas de fuga. A primeira coisa que ele faz é retirar a catexia da percepção do objeto perigoso; posteriormente, descobre que constitui um plano melhor realizar movimentos musculares de tal natureza que tornem a percepção do objeto perigoso impossível, mesmo na ausência de qualquer recusa para percebê-lo – que é um plano melhor afastar-se da esfera do perigo. A repressão é um equivalente a essa tentativa de fuga. O ego retira sua catexia (préconsciente) do representante pulsional que deve ser reprimido e utiliza essa catexia para liberar o desprazer. ” p. 114 A inibição Caso Schreber Ser uma mulher na momento do coito Tornar-se a mulher de Deus. A foraclusão age inibindo completamente a possibilidade do representante ideativo ser substituído por um outro. Não há a possibilidade de se encobrir certos representantes ideativos, por isso o sujeito fica exposto a excitação pulsional sem tratamento, sendo obrigado a concordar em satisfazê-la no real. Com a impossibilidade de fulga dos perigos internos, correspondente a tensão do aparelho psíquico, o psicótico os projeta no mundo externo, moldando a realidade conforme sua demanda pulsional. O retorno do foracluído no real possibilitaria, portanto, a satisfação completa da pulsão. A precipitação da crise A precipitação da crise se caracteriza pela produção de uma ato (acting, passagem ao ato) e/ou evento de corpo. Ela ocorre no momento em que a angústia não encontra tratamento pela linguagem (sintoma/metáfora delirante). Ou quando o sintoma ou metáfora delirante vem a falhar. (evento de) corpo Tratamento pulsão Angústia •Sintoma •Metáfora delirante Angústia O ato ocorre a partir da tentativa de se livrar de uma tensão interna modificando-se o mundo externo. O ato pressupõe portanto essa fusão momentânea entre o inwelt e o umwelt. O momento da ação jaz na crença de que modificar o mundo externo terá alguma efetividade no apaziguamento do mundo interno. Urgência generalizada Constitui-se no momento em que o Outro nomeia a precipitação da crise como algo a ser tratado com urgência. Parte do principio de que o mundo se organiza e funciona a partir de uma ordem que quando rompida precisa urgentemente ser reestabelecida. A generalização da urgência pressupõe que qualquer evento que fuja da suposta ordenação da realidade deve ser tratado e entendido como ameaçadores e portanto devem retornar o mais rápido possível ao seu estado anterior. Para isso conta com o saber científico que classifica os eventos quanto ao seu grau de periculosidade e os acolhe nas diversas modalidades de atendimento da saúde. A questão diagnóstica Individuo objeto A relação de um individuo com a realidade é atravessada pela linguagem, o que cria para ambos, tanto para o individuo quanto para o objeto uma realidade psíquica, uma outra cena, denominado por Freud de inconsciente. A pretensão de classificar os indivíduos segundo seu modo de se posicionar na realidade, tem a obrigação de levar em conta a realidade psíquica, de modo que essa só pode ser acessada através daquilo que um sujeito fala. Portanto a função diagnóstica não pode se restringir a observação dos fenômenos presentes na relação de um sujeito com um dado objeto. O diagnóstico deve ser feito, sobretudo, a partir do uso que o sujeito faz da linguagem na mediação de sua relação com a realidade. A escuta Psicanálise Psicoterapia gozo sentido real bom-senso desidentificação se haver com sua divisão fixada no imaginárias enunciação enunciado jogo das relações A psicanálise propõe a escuta de um outro discurso; de algo que diz respeito ao sujeito mas que não aparece na articulação semântica de suas frases, muito menos nas acepções a respeito de si mesmo ou de suas relações com o outro. A escuta psicanalítica está atenta àquilo que do sujeito o faz vacilar, que insiste em dizer, muitas vezes sem palavras, que o sujeito não se sustenta pela imagem que tem de si mesmo, mas pelo seu modo de gozo que encobre o desejo. O que há de comum entre a psicanálise e a psicoterapia: Ambas admitem a existência de uma realidade psíquica; A prática psicoterapêutica assenta num dispositivo de inspiração psicanalítica, numa escuta da fala do paciente; Ambas baseiam a sua ação nos efeitos da fala, trata-se de logoterapia. Em ambas está presente o efeito terapêutico. Psicanálise aplicada Psicanálise pura Psicanálise aplicada Psicoterapia “[...] a psicanálise pura corresponde à psicanálise tal como ela deveria ser e a psicanálise aplicada à psicanálise tal como ela efectivamente é. Miller propõe que se entenda por psicanálise pura o percurso analítico que conduz e se conclui no passe, enquanto que a psicanálise aplicada se circunscreveria à sua valência terapêutica. Neste último caso, o fim da análise decorre dos efeitos terapêuticos, da cura dos sintomas, ainda que o termo cura seja muito discutível em psicanálise. Em resumo, a psicanálise pura culmina no passe, a aplicada detém-se nos efeitos e benefícios terapêuticos.” (PENEDA, 2013) Efeitos terapêuticos Os efeitos terapêuticos que visa a clínica da urgência, ao contrário de uma psicoterapia qualquer, não se esgotam em si. Eles devem permitir, ainda que minimamente, a possibilidade posterior de uma entrada em análise. Enquanto a psicoterapia tem a intenção terapêutica de eliminar sintomas, a clínica da urgência tem a intenção de dar-lhes voz. Interrogar o sintoma para que ele responda não mais no corpo, na mente ou em comportamentos, mas utilizando a palavra articulada ao Outro (terapeuta). Esta orientação clínica está presente nas entrevistas preliminares de uma psicanálise pura, a diferença em relação a clínica da urgência é que, uma vez alcançado o objetivo de se produzir a retificação subjetiva o sujeito entra em análise, ao passo que na clínica da urgência quando se alcança a retificação subjetiva, preserva-se seus efeitos terapêuticos e encerra-se o processo, com a possibilidade de uma futura entrada em análise. O grafo do desejo (anos 50) Circuito da pulsão Circuito da palavra A teoria dos discursos (anos 60) Psicoterapia Psicanálise Urgência subjetiva Ocorre no momento em que a escuta clínica destaca o sujeito e sua singularidade da generalização produzida pelo discurso da ciência. A subjetivação da urgência consiste na produção pelo sujeito de significantes que o subtraiam da cena traumática permitindo-lhe recria-la. A condição para a subjetivação da urgência é a escuta psicanalítica que proporciona ao sujeito um tempo que não seja o da pressa, fazendo-o se reinserir em um novo encadeamento significante. A clínica da urgência ao exercer a escuta espera que o sujeito elabore e reestabeleça aquilo que foi arrasado, mas com a condição, desta vez, de que o que será construído possa ser destruído e reconstruído novamente. Análise A entrada em análise ocorre após a retificação subjetiva. O acolhimento feito pela clínica da urgência visa primeiramente a produção de efeito terapêutico, com a possibilidade, posteriormente, da entrada em análise em um setting analítico convencional. Para isso, frequentemente, será necessário o encaminhamento, o que redundará em um novo acolhimento e, consecutivamente, na passagem pelas entrevistas preliminares. Processo da clínica da Urgência Urgência Universal Precipitação da crise Análise Urgência Subjetiva Urgência generalizada Escuta As estruturas clínicas diante da urgência Neurose ou Psicose? O sintoma está para o neurótico assim como a inibição está para o psicótico. São os dois mecanismos primordiais no tratamento da angústia. Isso significa que diante da urgência podemos acionar um destes mecanismos, o qual terá a tarefa de amenizar a tensão pulsional despejada no aparelho psíquico. A escolha pela estrutura acontece bem cedo na infância, logo quando é oferecido a criança a possibilidade dela ser representada pela linguagem. Apesar das crises, tanto neuróticas quanto psicóticas, serem mais frequentes na ou após a adolescência; a criança, como objeto dos pais, já aponta para uma parceria sintomática com os mesmos ou senão para uma pura alienação. A nosologia psicanalítica Neurose Psicose • Neurose obsessiva • Histeria • Fobia • Esquizofrenia • Paranoia • Melancolia A noção de estrutura Uma estrutura é composta por elementos que tem uma relação entre si, sendo a posição que um dado elemento ocupa mais significativa do que o suas propriedades. O que determina a neurose ou a psicose na psicanálise é a posição que o sujeito irá ocupar frente a falta, elemento fundamental na fundação dessa estrutura. Nosso estrutura é composta portanto por esses elementos: Sujeito Outro Falta Sujeito a S1 S2 Falta $ Outro Exemplos extraídos do filme Melancolia Histeria O Outro é o que dá sentindo ao que urge. Para a histérica o Outro é o Outro que sabe, o Outro que deve lhe dar a resposta sobre o que é ser uma mulher. Entretanto, como o Outro do neurótico é sempre barrado, para a histérica o Outro é impotente e no nível da atitude nunca faz o necessário para que o seu saber a leve a satisfação de sua pulsão. O Outro sabe mas não pode fazer nada. Por isso ela se põe a fazer tudo que pode para tamponar a falta desse saber que ela supõe no Outro. Entretanto, mesmo fazendo tudo, não se assume como sujeito dessas ações. Seu fazer é tão intenso que pode ser convertido em um fazer somático, algo vivido no corpo que diz respeito ao seu desejo. Diante da urgência a histérica será aquela que não se contentará com as explicações sobre o fenômeno e tentará a qualquer custo tomar uma atitude, diante da devastação absoluta do real, ela irá por fim manifestar em seu próprio corpo aquilo do real que não pode ser tratado pelo simbólico. Neurose Obsessiva Para o obsessivo, o Outro se coloca no lugar do fazer e não do saber. O Outro é onipotente, gozador, capaz de fazer tudo a qualquer momento. Por isso o obsessivo se põe a ruminar estratégias para tentar prever e controlar qualquer tipo de acidente ou catástrofe, de modo que ele cria esquemas em que ele sempre se acha como abusado e prejudicado. Ele é o sujeito que está sempre planejando mas nunca entra em ação, nunca assume suas escolhas. Por isso ele se encontra sempre paralisado, protelando e fazendo semblant de alguém sóbrio, dono de uma sublime calma. Outra razão para a paralisia do obsessivo é o fato de o Outro não estar no lugar de suposto saber como está para a histérica. O obsessivo por não achar que o Outro possa lhe responder prefere se calar à perguntar, permanecendo assim totalmente alheio ao seu desejo. Diante da urgência, o obsessivo é aquele que diz: “Eu sabia”. Ou “eu sei o que fazer”, mas não faz nada além de se fechar em si mesmo no adoecimento de seus pensamentos conscientes. O obsessivo pensa tanto para nunca se deparar com a questão que coloca em cheque seu desejo. No caso de uma da precipitação de uma crise, onde toda cadeia significante falha e seu sintoma não mais trabalha em seu favor para mantê-lo longe de seu desejo, o obsessivo se vê diante da questão: Vivo ou morto? "O corpo, o corpo idealizado, reclama um sacrifício corporal. Esse é um ponto importantíssimo para compreender [...] a estrutura do obsessivo" (Lacan, 19681969/2008, p. 359). Saber Fazer Histérica Outro Sujeito Obsessivo Sujeito Outro Melancolia “São os melancólicos que dão voz ao que o sujeito passa a vida a evitar: a dor de existir.” p. 171 Como visto a melancolia, a esquizofrenia e a paranoia situam-se no âmbito da foraclusão do Nome-do-pai, ou seja, a questão da melancolia deve ser abordada a partir dos fenômenos da linguagem e do gozo. O melancólico se identifica puramente com a falta, mas não como um objeto que poderia oblitera-la, mas como um objeto a ser descartado, a ser perdido, assim como a falta. O psicótico foraclui a falta seja preenchendo-a com um objeto ao qual se identifica, seja se livrando dela, fazendo com que esse objeto desapareça. Trata-se da vida desapossada da falta que move o desejo. É aquilo que na vida não quer sarar, é o que na vida só quer morrer, silenciar, calar. Lugar fora do simbólico, para além do principio do prazer, onde só há o gozo impossível de ser suportado. Face ao perigo de uma emergência o melancólico permanece indiferente, já que não há nada mais a ser ameaçado. Seu mundo já ruiu, ou seja, o esforço simbólico para lidar com a angústia já falhara.