Universidade Federal da Bahia Instituto de Psicologia e S. Social Pesquisa em Psicologia I Docente: Raimundo Gouveia A PESQUISA CIENTÍFICA Projeto de pesquisa Representa as escolhas que fazemos para abordar a realidade-objeto de pesquisa • Objeto percebido: é o que vemos e sentimos como “real” e natural. Percepção sofre influências de nossas visões de mundo. • Objeto real: totalidade das relações da existência social são inapreensíveis ao conhecimento científico. • Objeto construído: tradução/versão da realidade a partir de conceitos operadores. – Weber: ciência não trabalha com conexões reais entre coisas, mas com conexões conceituais entre problemas. – Marx: ruptura com o senso comum, percepções imediatas. 2 Projeto de pesquisa • Dimensões: 1. Técnica: regras reconhecidas como científicas para a construção de um projeto – Como definir o objeto, abordá-lo e escolher os instrumentos? 2. Ideológica: escolhas do pesquisador ao definir o que pesquisar são influenciadas por uma visão de mundo condicionada social e historicamente – Posição (identidade) social e visão do momento histórico 3. Científica: articula as duas dimensões acima. O método científico articula o teórico e o empírico, construído o conhecimento científico. – Permite ir além do conhecimento do senso comum 3 Projeto de pesquisa • Esclarecer qual a questão que propomos, as definições teóricas que lhe dão suporte e as estratégias que serão utilizadas. • Mapear o caminho da investigação e permitir planejar/administrar cada etapa da investigação, esforços, recursos e empreendimentos necessários. • Comunicar os propósitos à comunidade científica, expondo-se a comentários e críticas • Obter financiamento de agências de fomento. • Pesquisador assume responsabilidade pública – Precisará esclarecer/justificar possíveis modificações do que foi preconizado inicialmente. 4 Projeto de pesquisa Objetivos gerais: o mais importante é que o investigador seja capaz de conceber e colocar em prática um dispositivo para a elucidação do real. – Compreender e interpretar fenômenos da vida social • O que é um trabalho de investigação em ciências sociais? – Compreender melhor os significados de uma situação ou conduta – Captar a lógica de funcionamento de uma organização – Compreender como determinadas pessoas apreendem um problema e tornar visíveis certos fundamentos de sua representação. 5 Projeto de pesquisa Procedimento: forma de progredir em direção a um objetivo. • “O fato científico é conquistado, construído e verificado” Bachelard: – Conquistado sobre os preconceitos: romper com os preconceitos e as falsas evidências – Construído pela razão: é graças à teoria que se pode propor explicações e prever qual o plano de pesquisa adequado – Articulado criativamente: na delimitação do objeto e aplicação dos conceitos – Verificado nos fatos: uma proposição só pode ter status científico se puder ser verificada nos fatos 6 Projeto de pesquisa Humildade: todo conhecimento científico tem sempre um caráter: • Aproximado: a partir de outros conhecimentos sobre os quais se questiona, aprofunda e critica • Provisório: realidade social e suas interpretações se modificam e podem ser superadas • Relativo: ideias e explicações sobre a realidade são mais imprecisas do que a própria realidade • Vinculado à realidade: um problema intelectual surge a partir de sua existência na vida real • Condicionado historicamente 7 Etapas do procedimento investigativo: 1. Pergunta geradora 2. Exploração: as leituras, as entrevistas exploratórias (pesquisa-piloto) 3. Fundamentação teórica 4. Construção do modelo de análise 5. Observação 6. Análise das informações 7. Conclusões ou considerações finais. 8 O que pesquisar Construção do objeto: • Definição do tema: delimitação ampla da área/assunto de interesse (ex: trabalho voluntário) – Motivador? Relevante social e cientificamente? Há fontes disponíveis? • Escolha do problema de pesquisa: aprofundamento individualizado e específico do tema – Um problema social não é a mesma coisa que um problema científico – Revisão bibliográfica ajuda a mapear as perguntas já feitas e o que é mais/menos enfatizado 9 O que pesquisar • A investigação implica hesitações, desvios e incertezas • O investigador deve escolher um fio condutor tão claro quanto possível para estruturar o trabalho com coerência • Enunciar o projeto de pesquisa na forma de uma pergunta inicial, exprimindo o mais claramente possível o que se quer saber, elucidar, compreender – Ex: as pessoas que participam de projetos sociais como voluntárias discordam mais da ideologia meritocrática* do que as que não participam? (*Lerner: crença no mundo justo) 10 O que pesquisar Pergunta geradora: clara, exequível e pertinente • Clareza: precisão e concisão no modo de formular a pergunta; não deve cobrir um campo de análise muito vasto; deve refletir os objetivos e comunicálos aos outros. • Exequibilidade: realismo no conhecimento e recursos de tempo e meios disponíveis para respondê-la • Pertinência: não deve julgar, mas compreender; captar um campo de possibilidades. – Ex. as pessoas que não participam de projetos sociais têm uma atitude egoísta? 11 O que pesquisar Como explorar o campo para identificar uma boa Fundamentação teórica? • Leituras: visam assegurar a qualidade do processo de constituição do problema de pesquisa; devem situar o trabalho nos quadros conceituais conhecidos. – Ligação com a pergunta geradora – Dimensionada de modo a evitar sobrecargas – Privilegiar textos de interpretação e análise e não só de descrição – Abordagens diversificadas do fenômeno estudado • Resumo: destacar ideias e articulações, mantendo a unidade do pensamento do autor. 12 O que pesquisar Exploração do campo: entrevistas prévias (piloto) e outros métodos que permitam o contato com a realidade dos participantes • Deve ser aberta e flexível • Poder ampliar ou retificar o campo de investigação aberto pelas leituras • Ajustar a pergunta geradora • Priorizar estudiosos do tema, testemunhas privilegiadas do fenômeno, população potencial da pesquisa – Poucas perguntas, de forma aberta, em ambiente adequado e gravada. 13 O que pesquisar Fundamentação teórica: • Confronto crítico entre as diferentes perspectivas • Formular finalmente a pergunta que fundamenta o trabalho • Explicar os conceitos fundamentais e ideias gerais que servirão de referência para a análise • Fazer um balanço e elucidar as problemáticas possíveis • Definir um ponto de vista próprio e situá-lo no campo teórico da disciplina • Pesquisadores inexperientes devem conceber a problemática conservando um quadro teórico existente: – Analisar a noção de fases de desenvolvimento emocional na obra de Freud 14 O que pesquisar • Ligação entre a fundamentação teórica e o processo de definição da análise. • O trabalho exploratório traz ideias e perspectivas que devem ser traduzidas em conceitos, numa linguagem clara. • Os conceitos servem para avaliar as hipóteses • Hipóteses são respostas provisórias à pergunta geradora • Proporcionam ordem e rigor ao processo de análise • A construção coerente das hipóteses depende da precisão da pergunta central da investigação • O modelo de análise pode priorizar os conceitos ou as hipóteses 15 O que pesquisar • Conceitos: construções seletivas sobre o que é considerado essencial na realidade – Construir um conceito consiste em determinar suas diversas dimensões e precisar sua identificação • Conceito operatório: construído através da observação direta ou de informações reunidas por outros, tem um caráter isolado. • Conceito sistêmico: construído por raciocínio abstrato, inspirado nos comportamentos dos objetos reais e no conhecimento adquirido, articulando-se com os paradigmas 16 O que pesquisar • É importante a definição clara dos pressupostos teóricos, das categorias e conceitos utilizados • Mesmo que se use conexões teóricas de diferentes origens, é necessário o domínio sobre suas implicações explicativas • Manter uma unidade lógica e coerente na abordagem proposta • Não devemos reescrever a obra dos autores – Revisão da literatura: mapear o que é dito, por quem e quando – Base teórica: foco sobre o que adotamos no estudo; deve ser sintética e objetiva, estabelecendo um diálogo com o problema. 17 O que pesquisar Hipóteses: • Podem apresentar-se como antecipação da relação entre o fenômeno e o conceito que o explica, entre dois conceitos ou entre dois fenômenos • Afirmações provisórias ou soluções possíveis ao problema proposto. Analogias com soluções dadas a outros casos comparáveis e/ou teorias sobre o tema – Estudos exploratórios (sondagem de relações, fatos e processos pouco conhecidos) dispensam elaboração de hipóteses. • Orientam/influenciam elaboração do objetivo geral estudo – Modelo hipotético-indutivo: conceitos sistêmicos, descritivo – Modelo hipotético-dedutivo: conceitos operatórios, explicativo 18 Objetivos Propósitos que almejamos ao final da pesquisa. O que pretendemos? • Objetivo geral: diz respeito ao conhecimento que o estudo proporcionará (amplo). Resultado intelectual relacionado às hipóteses – Ex> “Analisar a efetividade e continuidade das estratégias de enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes no RJ após o ECA”. • Objetivos específicos: desdobramento das ações necessárias à realização do objetivo geral. Ex: – – – – Identificar/caracterizar iniciativas de enfrentamento... Contrastar iniciativas e seus resultados Caracterizar sustentabilidade financeira/política das ações Analisar as condições de continuidade dessas ações 19 Justificativa • Motivos: – Teóricos: contribuições para a compreensão do problema – Práticos: relevância para a intervenção na questão social abordada – Pessoais: relevância da escolha diante da trajetória do pesquisador • Justificativas: – Acadêmicas: nível de conhecimento/produção acumulada da temática; avanço metodológico – Práticas: construção de subsídios para contribuir com a demanda social – Pessoais: situa o problema na trajetória profissional e biográfica do pesquisador 20 Metodologia • Conjunto de operações através das quais o modelo de análise (hipóteses-conceitos) é confrontado com os dados • O Quê? dados definidos pelos indicadores que compõem os conceitos • Em quem? circunscreve a análise no espaço (social ou geográfico) e no tempo – População total, amostra representativa ou componentes típicos desta população • Como? Elaboração de instrumentos para a observação, seja na forma direta ou indireta – Perguntas indiscretas e questionários longos aumentam recusas de participação ou respostas imprecisas e/ou enganadores 21 Metodologia • Para cada objetivo, métodos/técnicas adequados – Métodos - procedimentos reconhecidos: histórico, comparativo, experimental, etnográfico, estudo de caso... – Técnicas – procedimentos operacionais dos métodos, através dos instrumentos apropriados • Descrição da exploração do campo: descrição dos critérios e estratégia de escolha do campo e dos sujeitos da pesquisa – Distinguir se a escolha do local deve-se apenas à facilidade de encontro de sujeitos ou se é foco de análise – Seleção da amostra: quantidade de representantes da população estudada 22 Metodologia • Amostragem probabilística: estima o erro de amostragem e influi na generalização dos resultados a toda a população. • Pesquisa qualitativa: o estudo não foca os sujeitos em si, mas suas representações, conhecimentos, práticas, comportamentos e atitudes. Em vez de “amostra” usa-se “sujeitos incluídos”. – Inclusão progressiva: número de participantes não demarcado. Coleta interrompida pelo critério de saturação: concepções, conceitos, explicações e sentidos atribuídos pelos sujeitos começam a ter regularidade/repetição (sujeitos incluídos). Metodologia • Técnicas e instrumentos devem ser descritos e definidos em relação aos seus limites de produção de dados. • Exemplo: se escolhermos a técnica de entrevistas, não será possível registrar as práticas em si, mas as narrativas dos participantes sobre elas. 24 Metodologia Tipos de instrumentos: 1. Questionários: permite trabalhar com muitos dados e participantes 2. Entrevistas: permite análise mais profunda dos sentidos dados pelos participantes às suas práticas e aos acontecimentos nos quais estão implicados (valores, crenças, normas) 3. Observação direta: captam comportamentos no momentos em que eles acontecem em captam relações sociais, culturais e ideológicas 4. Análise documental: estuda documentos por si próprios ou por informações úteis para entender outros objetos de pesquisa 25 Análise das informações • Análise estatística: correlação entre fenômenos passiveis de quantificação e análise causal. Permite precisão e rigor. Muito facilitado pelo computador, tanto na análise quanto na apresentação dos resultados. Restrita dados mensuráveis • Análise de conteúdo: abrangência de aplicação. Permite cálculos de frequências relativas e coocorrências dos termos utilizados. Analisa não só o discurso, mas o locutor e as condições sociais 26 Análise das informações • Rigor metodológico é diferente de rigidez no método, que não deve ser aplicado de forma mecânica • O verdadeiro rigor não está no formalismo técnico • A necessidade de rigor não incide nos detalhes de cada procedimento, mas na coerência do processo de investigação e o modo como ele atente às exigências e à coerência epistemológicas • Os dados só fazem sentido diante dos fundamentos teóricos 27 Conclusões • Linhas de procedimento: pergunta geradora definitiva; características gerais do modelo de análise (conceitos e hipóteses; campo de observação, métodos utilizados e observações efetuadas; comparação entre resultados esperados e observados, interpretando as diferenças. • Contribuições para o conhecimento: o que sei a mais sobre o objeto de pesquisa? O que sei de novo sobre este objeto? • Novas perspectivas teóricas: novo ponto de vista, reformulação de hipóteses, redefinição de conceitos ou afinação de indicadores • Possíveis perspectivas práticas: cuidado em evitar o juízo moral e responsabilidade social; evitar conclusões normativas em nome de pretensas verdades científicas 28 Pra rir e pensar 29 Pesquisa qualitativa (Flick, cp.8) • Não representa um procedimento oposto que não possa ser combinado com o quantitativo • Pesquisa quantitativa: – Processo organizado em uma sequência linear de etapas conceituais, metodológicas e empíricas – Cada etapa considerada uma após a outra e separadamente • Pesquisa qualitativa: – Entendimento específico da relação entre o tema e o método – Interdependência mútua (circular) das etapas do processo de pesquisa 30 Pesquisa qualitativa • Quantitativa: parte da construção de um modelo das condições e das relações supostas a partir do conhecimento teórico e empírico de pesquisas anteriores – A partir daí são elaboradas hipóteses que serão operacionalizadas e testadas em condições empíricas – O objetivo é garantir a representatividade dos dados (ex. amostras aleatórias) – Decomposição de relações complexas em variáveis distintas, permitindo isolar e testar seus efeitos – As teorias e os métodos antecedem o objeto de pesquisa. As teorias são testadas e falsificadas. 31 Pesquisa qualitativa • Qualitativa: prioridade dos dados e do campo de estudo sobre as suposições teóricas – As teorias não são aplicadas nos sujeitos, mas “descobertas” e formuladas no trabalho de campo a partir dos dados encontrados – Objetos de estudos selecionados a partir de sua relevância ao tema da pesquisa, e não por constituírem uma amostra estatisticamente representativa da população – Em vez de reduzir, amplia a complexidade incluindo o contexto – Os métodos são escolhidos por serem apropriados ao assunto em estudo – A questão da pesquisa é delineada a partir da teoria, mas a elaboração não culmina em um conjunto de hipóteses 32 Pesquisa qualitativa • Freud, 1958, p.112: “Assim que uma pessoa concentra sua atenção [...] um ponto estará fixado em sua mente com particular clareza, e outro será, igualmente desconsiderado – ao fazer essa seleção, a pessoa estará seguindo suas expectativas ou propensões. [...] ao fazer essa seleção, se ela seguir suas expectativas, correrá o risco de nunca descobrir nada além do que já sabe; e, se seguir suas inclinações, com certeza, falsificará aquilo que pode perceber”. • Pesquisador pode perder a oportunidade de descoberta do que é verdadeiramente novo; pode ficar cego em relação às estruturas do campo ou às pessoas em estudo. 33 Pesquisa qualitativa • Essa abordagem concentra-se na interpretação dos dados, baseando-se na teoria que está em desenvolvimento • Essa circularidade causa problemas quando o modelo linear (teoria, hipóteses, operacionalização, amostragem, coleta e interpretação dos dados, validação) é aplicado na avaliação da pesquisa. • Porém, obriga o pesquisador a refletir permanentemente sobre o processo de pesquisa e suas etapas específicas sob a luz das outras etapas. – Até que ponto os métodos, as categorias de análises e as teorias empregadas fazem justiça ao sujeito e aos dados? 34 Pesquisa qualitativa Pressupostos: • As teorias não são representações (certas/erradas) dos fatos, mas versões/perspectivas por meio das quais o mundo é percebido. • Revisão dessas versões baseadas no material empírico, levam à construção do tema em estudo • A relativa relevância das teorias leva em conta a construção da realidade no processo de pesquisa • A parte do texto reservada à interpretação dos dados é considerada o verdadeiro material empírico e a base fundamental para o desenvolvimento da teoria. 35 Estudo de caso Glaser e Strauss, 1967: pioneiros neste tipo de pesquisa qualitativa (teoria fundamentada) no contexto da sociologia médica • Objetivo: elaborar teorias a partir da pesquisa qualitativa no campo sobre a relação entre profissionais dos hospitais, pacientes terminais e seus familiares • Questão: o que influenciou a interação de várias pessoas (pacientes, profissionais, familiares) com pacientes terminais e a forma como o conhecimento da morte iminente determina a interação com aquela pessoa? • Justificativa: obsevaram em internações de seus próprios familiares que os pessoal dos hospitais não informavam aos pacientes terminais e seus familiares sobre seu estado e expectativas de vida do paciente 36 Estudo de caso • Método inicial: observação sistemática e entrevistas em um hospital • Dados foram analisados e utilizados na elaboração de categorias • A partir destas, foram incluídos outros hospitais e comparadas suas semelhanças e diferenças • Isso levou à decisão de qual seria o próximo hospital a ser pesquisado, até que seis hospitais foram incluídos no estudo: universitário, militar, municipal, católico privado, estadual. • Nestes, foram considerados setores de geriatria, oncologia, UTIs, pediatria e neurologia, nos quais permaneceram entre 2 a 4 semanas • Foram comparados setores diferentes e semelhantes de um hospital e hospitais entre si, e depois, situações/contextos externos ao ambiente hospitalar e dos serviços de saúde. 37 Estudo de caso • Elaboração de um modelo teórico que foi transportado para outros campos para que fosse mais desenvolvido • Resultado: teoria de contextos de consciência enquanto forma de lidar com a informação e com as necessidades do paciente de saber mais sobre sua situação • Como não havia teoria disponível à época que explicasse as experiências iniciais dos pesquisadores com seus próprios familiares no hospital, a teoria a teoria foi o produto final, e não o ponto de partida da pesquisa 38 Modelo Linear teoria hipóteses Operacionalização amostragem coleta interpretação validação 39 Modelo Circular comparação Suposições preliminares Coleta Interpretação caso Coleta Interpretação caso amostragem teorias amostragem comparação comparação Coleta Interpretação caso 40