Ambiente & Energia Ciclos Térmicos de Conversão de Energia Valentim M B Nunes Unidade Departamental de Engenharias Instituto Politécnico de Tomar, Setembro, 2014 Introdução O desenvolvimento da máquina a vapor, uma invenção que garantiu os dois primeiros séculos da revolução industrial, precedeu a descoberta dos princípios científicos envolvidos, nomeadamente a produção de trabalho mecânico numa máquina que utiliza a combustão com o ar. O conhecimento cientifico que explica a produção de trabalho (energia) a partir de diferentes tipos de combustão deriva das Leis da Termodinâmica. James Watt (1736 – 1819) Vamos rever como as leis da termodinâmica determinam o funcionamento destas fontes de energia mecânica e particularmente como aquelas limitam a quantidade de trabalho mecânico que pode ser obtido a partir da combustão de uma dada quantidade de fuel. Trabalho A Termodinâmica estuda a interacção entre um dado sistema material e a sua vizinhança ou exterior. É através destas interacções que somos capazes de produzir trabalho mecânico ou outros efeitos úteis sobre o exterior. Existem duas formas de interacção entre um sistema e o seu exterior, chamados trabalho e calor. Cada um destes é um processo em que o sistema e o seu exterior sofrem modificações químicas ou físicas relacionadas com o tipo de interacção, calor, trabalho ou ambos simultaneamente. Existem muitos exemplos de interacção por realização de trabalho. Considerese um gás contido num cilindro, fechado numa extremidade e equipado com um pistão móvel. Calor A outra forma de interacção de um sistema com o exterior é por transferência de calor. A uma variação de temperatura, ΔT, corresponde uma transferência de calor Q dada por Q CT em que C é a capacidade calorífica. Usualmente designamos esta interacção por transferência de calor, embora seja a energia que é trocada num processo deste tipo. Lei zero da Termodinâmica A lei zero da Termodinâmica é uma lei de equilíbrio térmico. A energia térmica flui de uma região de alta temperatura para outra de temperatura mais baixa, havendo uma parede diatérmica entre as duas regiões. T/K = t/°C + 273.15 A 1ª Lei da Termodinâmica Uma das leis fundamentais da natureza é a lei da conservação da energia. A energia de um sistema pode assumir várias formas (por exemplo, cinética, potencial, calor, luz), mas não pode ser criada nem destruída. Etotal EC EP U Para sistemas fechados macroscopicamente em repouso e sem alterações do campo gravítico U Q W A energia interna de um sistema isolado é constante. Num sistema fechado só pode ser transferida pelo fluxo de calor ou trabalho realizado. A 2ª Lei da Termodinâmica Quando se projecta uma central térmica o objectivo é criar um sistema que converta a energia de um combustível em trabalho. Se considerarmos a combustão de um combustível fóssil, então o objectivo é converter toda a energia do fuel em trabalho, tal como a 1ª Lei permite. No entanto, a 2ª Lei da Termodinâmica estabelece que não é possível existir um processo cíclico em que o calor proveniente de uma única fonte seja inteiramente convertido em trabalho. Ao invés, apenas parte do calor pode ser convertido em trabalho; o restante tem de ser rejeitado para um reservatório de calor a mais baixa temperatura que a fonte de calor. A 2ª Lei da Termodinâmica A 2ª Lei da termodinâmica reconhece que há assimetrias fundamentais na natureza. Por exemplo, corpos mais quentes que o ambiente arrefecem espontaneamente, mas objectos á temperatura ambiente não se tornam espontaneamente mais quentes. O calor transfere-se espontaneamente de corpos quentes para corpos frios. Q A transformação de calor em trabalho é obrigatoriamente transferência de parte do calor para uma fonte fria. acompanhada da Formulações da 2ª Lei A formulação de Kelvin da 2ª Lei afirma que não é possível haver um processo em que o único resultado seja a absorção de calor de um reservatório e a sua conversão completa em trabalho. A segunda Lei diz pois que a transformação de calor em trabalho é obrigatoriamente acompanhada pela transferência de parte do calor para uma fonte fria. Mais uma assimetria da Natureza: é impossível converter calor totalmente em trabalho, mas não há restrição na conversão de trabalho em calor. Combustão de combustíveis fósseis A fonte de energia que é utilizada nos sistemas de combustão de combustíveis fósseis é a energia química que é libertada quando o fuel é oxidado por queima com o ar. Os combustíveis fósseis mais comuns são hidrocarbonetos, misturas de moléculas compostas por carbono e hidrogénio. Após a combustão completa, o fuel é oxidado a dióxido de carbono e vapor de água, libertando energia. Designando as moléculas de combustível por CnHm, onde n e m são o número de átomos de carbono e hidrogénio na molécula de fuel, o rearranjo molecular que acompanha a oxidação completa pode ser representado pela reacção: Poder calorífico dos combustíveis Quando uma mistura de fuel e ar é queimada, a temperatura dos produtos de combustão formados é muito maior que a da mistura. Em muitos casos, o calor pode ser transferido dos produtos de combustão quentes para um fluido mais frio; por exemplo, num vaporizador o calor aquece água e depois leva-a à ebulição convertendo-a em vapor de água. A quantidade de calor disponível para este processo é designado poder calorífico do combustível (fuel heating value) e é normalmente expresso em unidades de energia por unidade de massa do combustível. Ciclos térmicos ideais Para compreender as implicações das leis da Termodinâmica para a conversão da energia dos combustíveis em trabalho mecânico, é conveniente analisar dispositivos ideais, nos quais um fluido é aquecido e arrefecido e produz ou consome trabalho, à medida que completa um ciclo. Um dispositivo deste tipo pode ser chamado uma máquina térmica, uma vez que troca calor com o seu exterior enquanto produz trabalho num processo cíclico. A combustão do fuel é representada neste ciclo ideal pela adição de calor a partir de uma fonte quente. Algumas máquinas práticas, como a turbina a gás e os motores automóveis, não são aquecidos por uma fonte externa. Estes são designados motores de combustão interna. No entanto muito do seu funcionamento pode ser modelado como máquinas térmicas ideais para compreendermos o seu funcionamento. Eficiência termodinâmica Particularmente importante é a quantidade de trabalho produzida (W) em relação à quantidade de calor adicionado (Q) para representar a combustão do fuel. A esta razão chamamos eficiência termodinâmica: w Q O ciclo de Carnot O ciclo de Carnot é o protótipo de um ciclo que tem pouca importância prática mas é elegantemente ilustrativo das limitações da 2ª Lei na conversão de calor em trabalho. Trata-se do mais simples ciclo de uma máquina térmica. Consiste de dois reservatórios térmicos , um reservatório quente à temperatura Th e um reservatório frio à temperatura Tc. (podemos imaginar a fonte quente mantida a essa temperatura por transferência de calor a partir da queima de um combustível fóssil e a fria como a atmosfera) Considere-se então a máquina térmica como sendo um cilindro equipado com um pistão móvel e contendo um fluido de massa unitária. O ciclo consiste em quatro passos: uma expansão isotérmica, durante a qual uma quantidade de calor Qh é adicionada à máquina (1 → 2 na Figura); uma expansão adiabática isentrópica durante a qual a temperatura do fluido decresce de Th para Tc (2 → 3); uma compressão isotérmica enquanto o sistema transfere uma quantidade de calor Qc para o reservatório frio (3 → 4); e finalmente um compressão isentrópica para o estado inicial(4 → 1). Para este ciclo o trabalho do pistão por ciclo é: Combinando as duas relações anteriores podemos calcular a eficiência termodinâmica do ciclo de Carnot: O aspecto mais importante deste resultado é que a eficiência termodinâmica depende das temperaturas dos dois reservatórios e não depende de todo de qualquer das propriedades do fluido utilizado na máquina térmica. Princípios de Carnot A segunda Lei impõe limites ao funcionamento de dispositivos cíclicos: Uma máquina térmica não pode funcionar através da troca de calor com uma única fonte! Podemos retirar duas conclusões (princípios de Carnot) 1. O rendimento de uma máquina térmica irreversível é sempre inferior ao de uma máquina térmica reversível que funciona entre as mesmas fontes (temperaturas) 2. Os rendimentos de todas as máquinas térmicas reversíveis que funcionam entre as mesmas duas fontes são iguais. O rendimento máximo de uma central térmica a vapor que funcione entre TH = 750 K e TC = 300 K é de 60 %. A eficácia térmica real ronda os 38 – 40%. O ciclo de Rankine O ciclo de Carnot é um processo importante para compreendermos como funciona uma máquina térmica simples, mas não é util em termos práticos. Desde o início da revolução industrial até ao séc XX (e ainda actualmente), a maior parte da potência mecânica gerada pela queima de combustíveis fósseis utiliza um ciclo a vapor, chamado ciclo de Rankine. Numa central térmica com ciclo de vapor, o combustível misturado com o ar é queimado para num vaporizador converter água em vapor, que depois alimenta uma turbina. Este é um sistema de combustão externa onde o fluido de trabalho, água-vapor, é aquecido em tubos que estão em contacto com os gases quentes formados na câmara de combustão. Numa central térmica eficiente, praticamente todo o valor calorífico do fuel é transferido para o vaporizador, mas apenas uma parte é convertida em trabalho na turbina. Ciclo de Rankine Esquema de Central Termoelétrica de Produção de Energia Numa central térmica a vapor, água à temperatura ambiente é bombeada a alta pressão e injectada no vaporizador (1 → 2 na Figura), sendo aquecida até ao seu ponto de ebulição(3), completamente convertida em vapor(4), e depois normalmente aquecida até uma temperatura mais elevada(5). Este aquecimento no vaporizador ocorre a pressão constante, pb. A corrente de vapor flui através de uma turbina (5 → 6) onde sofre uma redução de pressão para um valor muito mais baixo, pc, enquanto a turbina produz potencia motor. O vapor a baixa pressão que deixa a turbina é arrefecido a um liquido à temperatura ambiente no condensador (6 → 1) e bombeada para o vaporizador onde completa o ciclo. No ciclo ideal de Rankine, o trabalho adiabático em fluxo contínuo por unidade de massa de vapor, wt produzido na turbina é igual à variação de entalpia h5 − h6 através da turbina, em virtude da primeira lei. Como se trata de um processo isentrópico, a variação de entalpia pode ser expressa através de: Existe uma expressão similar para calcular o trabalho necessário para operar a bomba. O trabalho total w produzido no ciclo pode ser expresso por: onde vs e vw são os volumes específicos do vapor na turbina e da água na bomba e pb e pc são as pressões no vaporizador e no condensador. Uma vez que o volume específico da água liquida é muitíssimo menor que o do vapor, a potência da bomba é uma pequena fracção da potencia produzida na turbina, o que é um dos grandes atributos do ciclo de Rankine. Uma vez que os passos de aquecimento e arrefecimento do ciclo ideal de Rankine (2 → 5, 6 → 1) ocorrem a pressão constante, enquanto o passo na turbina é isentrópico a eficiência térmica pode ser expressa por: Convém realçar alguns aspectos relativos ao ciclo de Rankine. Primeiro, ao contrário do ciclo de Carnot, a eficiência térmica depende das propriedades do fluido de trabalho, a água. Segundo, a eficiência do ciclo aumenta se a pressão no vaporizador (e temperatura do vapor) aumentarem. Ao mesmo tempo, elevadas pressões no vaporizador aumentam a quantidade de trabalho produzida por unidade de massa de água fluindo no sistema, e reduzindo os custos da turbina por unidade de potencia produzida. O ciclo pode ainda ser melhorado com ganhos de eficiência pela utilização de permutadores de calor as níveis de pressão intermédios. Para os ciclos de Rankine que usam água como fluido de trabalho as temperaturas do vaporizador raramente excedem os 550 ◦C. Um ciclo de mais alta pressão e mais altas temperaturas é aquele para o qual a pressão e temperatura do vapor excedem o ponto crítico da água. A eficiência termodinâmica do ciclo ideal de Rankine varia no intervalo de 30 a 45%, dependendo dos detalhes e complexidade do ciclo. As actuais centrais a ciclo de vapor têm eficiências mais baixas por vários motivos. As turbinas e bombas não são 100% eficientes, resultando em menos potencia produzida. Ciclo de Otto O mais comum dos motores movidos a combustíveis fósseis é o motor automóvel. Ao contrário das centrais a vapor, os motores automóveis não dependem da transferência de calor de um fluido de trabalho a partir de uma fonte de combustão. Em vez disso, o fuel é queimado adiabaticamente dentro do motor, e os produtos de combustão produzem mais trabalho durante o passo de expansão, do que aquele que é utilizado no passo de compressão. Os produtos de combustão que são despejados na atmosfera são substituídos por uma mistura de ar-fuel para dar inicio ao novo ciclo. Isto é designado por ciclo aberto, ao contrário do ciclo a vapor que é fechado. Ciclo de Otto O ciclo de Otto é o ciclo ideal para motores a gasolina. Na maior parte dos motores a gasolina o êmbolo realiza quatro cursos completos no interior do cilindro. A cambota realiza duas rotações completas por cada ciclo termodinâmico. 1-2: Compressão adiabática; 2-3:Adição de calor a volume constante 3-4: Expansão adiabática; 4-1: rejeição de calor a volume constante. A eficiência do ciclo de Otto aumenta em função da razão de compressão, ve/vc, e depende das propriedades termodinâmicas do fluido de trabalho. Pode ser expressa por: Para um motor a gasolina típico o ratio de compressão é cerca de 9 e cp/cv = 1.26, logo η = 43.5%. As eficiências dos motores automóveis são bastante menores que aquele valor. A fricção nos pistões, potencia necessária para operar as válvulas, bomba de arrefecimento, sistema de fornecimento do combustível, perdas de pressão nos sistemas de admissão e exaustão e perdas de calor durante os passos de compressão e expansão, tudo contribui para reduzir a eficiência. As melhores eficiências térmicas de motores automóveis variam entre 28% e 39% para os motores a gasolina e a diesel. Ciclo de Brayton Desde meados do séc XX, a turbina a gás tornou-se a tecnologia dominante para motores de grandes aeronaves, por causa da sua adequação a altas velocidades de propulsão, leveza, economia de combustível e fiabilidade. Também tem aplicação em propulsão de grandes navios e mais recentemente em centrais térmica de produção de electricidade. O ciclo ideal que modela o processo de combustão do gás através de uma central a turbina de gás é o ciclo de Brayton. Consiste numa compressão isentrópica do ar num compressor à pressão de entrada pi para a pressão de saída do compressor, pc (1 → 2 na Figura), seguido de um aquecimento a pressão constante (2 → 3) que sobe a temperatura do gás para a temperatura T3 à entrada da turbina. Os gases expandem isentropicamente enquanto fluem através da turbina, sendo a pressão reduzida de pc para pi (3 → 4). Por unidade de massa do fluido, o trabalho resultante , w, na central a turbina de gás é a diferença entre o trabalho na turbina e o trabalho no compressor: O calor adicionado ao fluido proveniente do compressor , q, que é devido à subida de temperatura causada pela combustão adiabática, é igual à variação de entalpia no processo a pressão constante: Assim, a eficiência η do ciclo de Brayton é: A eficiência do ciclo depende da razão entre as duas pressões p2/p1 = p3/p4 e das propriedades termodinâmicas do ar e dos gases de combustão. Esta eficiência é expressa por: O que mostra que a eficiência aumenta com a razão de compressão. Como exemplo p2/p1 = 10 e cp/cv = 1.3, então η = 41.2%. Para o ciclo de Brayton as melhores eficiências rondam os 33%. Ciclo combinado Os gases de combustão que saem de uma turbina a gás transportam parte do pode calorífico do fuel que não foi convertido em trabalho. Esta corrente gasosa quente pode ser utilizada para produzir vapor num vaporizador e produzir trabalho adicional sem queimar mais combustível. A utilização de uma turbina a gás e central a vapor para produzir mais trabalho a partir de uma dada quantidade de fuel é chamado ciclo combinado. A eficiência termodinâmica, ηcc de uma central térmica de ciclo combinado pode ser determinada em função das eficiências , ηg e ηs , da turbina a gás e do ciclo de vapor. Para a turbina a gás, o trabalho wg é igual a ηg × qf , onde qf é o calor adicionado por unidade de massa dos produtos de combustão. A quantidade de calor que pode ser utilizada no ciclo a vapor é qf −wg = qf (1−ηg). O trabalho produzido no ciclo a vapor ws é então ηs vezes este calor, ou ηs qf (1 − ηg). A eficiência do ciclo combinado é sempre inferior à soma das eficiências dos dois ciclos (Brayton e Rankine). No entanto a combinação é sempre mais eficiente que qualquer um dos componentes. Por exemplo se ηg = 30% e ηs = 25%, então ηcc = 47.8%. As centrais térmica de ciclo combinado que queimam gás natural ou jet fuel são muitas vezes uma boa escolha, em vez de centrais térmicas a carvão, apesar do preço favorável do carvão. As razões são financeiras e ambientais, incluindo uma menor emissão de poluentes gasosos, incluindo o CO2. Problema 1 São necessários 2.2 milhões de toneladas de carvão por ano para alimentar uma central termoeléctrica de 1000-MW que opera com um factor de capacidade de 70%. Se o poder calorífico do carvão for 12 000 Btu/lb, calcular a eficiência térmica da central. Problema 2 Dada uma razão de compressão p2/p1 = 12 ao longo de uma turbina a gás e uma razão entre calores específicos de cp/cv = 1.35 relativos ao fluido de trabalho, calcular a eficiência térmica do ciclo de Brayton. Explicar porque motivo a centrais com turbina a gás atingem eficiências térmicas de apenas 25% a 35%. Problema 3 Uma central termoeléctrica de ciclo combinado possui uma turbina a gás com eficiência de 30% e um ciclo a vapor com eficiência de 30%. Calcular a eficiência do ciclo combinado. Problema 4 Uma central termoeléctrica de 1000-MW com uma eficiência térmica de 35%, durante 100% do tempo, usa carvão com a fórmula CH e um poder calorífico de 30 MJ/kg. Quanto CO2 emite esta unidade em toneladas/ano? Bibliografia Fay, J., Golomb, D.S., Energy and the Environment, Oxford University Press and Open University, Oxford, UK, 2004 Azevedo, E.G., Termodinâmica Aplicada, 3ºed., Escolar Editora, Lisboa, 2011