Capítulo 27 – A era da imagem Os vodus O ser humano é seduzido por aquilo que cria uma ponte entre ele e o ambiente que o rodeia. Meios de comunicação funcionam como extensões do homem e como elo entre uma pessoa e outra. O que seduziu Narciso na superfície das águas não foi uma palavra ou um poema, mas uma imagem, pela qual se enamorou. Por mais que a fala tenha sido atribuída a Deus – “Ele era o verbo” (ou a palavra), diz a bíblia -, a reprodução do vivido, a fixação da imagem e o processo de imitação do visível sempre encantou o ser humano. As religiões mais antigas já desenvolviam rituais nos quais se utilizavam os vodus – pequenas imagens representando o ser humano e que, no cerimonial religioso, faziam as vezes de uma personalidade invocada. Os vodus teriam dado origem, mais tarde, às bonecas utilizadas pelas crianças em jogos infantis e às formas artísticas do teatro de bonecos e das animações. Com esses novos usos, os seres humanos puderam mostrar o grande interesse em criar réplicas e, com elas, simular o poder divino de dar vida a imagens. Segundo o filósofo Vilén Flusser, uma das principais revoluções da arte ocorreu quando, olhando para as paredes rugosas das cavernas, o ser humano foi capaz de perceber e ver imagens bidimensionais. Mesmo com o desenvolvimento da linguagem verbal, o homem procurou aperfeiçoar sua capacidade de criar imagens a fim de, sobre peles, argila, pedra, vegetais, madeira, inscrever mensagens visuais. As linguagens visuais têm uma vantagem sobre as verbais. A compreensão das formas e daquilo que elas representam convergem mais de uma sociedade para outra, permitindo uma comunicação mais ágil, enquanto os idiomas guardam uma maior especificidade, impedindo que certas mensagens sejam compreendidas por estrangeiros ou por quem não domine o idioma em que o texto está escrito. Magia e tecnologia: a invenção da fotografia A criação de imagens sempre esteve envolvida com duas práticas sociais. Por um lado, as imagens estão ligadas à religião e aos rituais sagrados, satisfazendo o desejo do ser humano de dar vida ao que é inanimado. Por outro lado, a criação de imagens sempre esteve influenciada por um crescente domínio técnico e tecnológico da linguagem gráfica. Historiadores demonstram como a arte dos mosaicos se desenvolveu a partir de técnica criptográfica que divide as imagens em linhas verticais e horizontais, resultando em um quadriculado semelhante aos pixels de um tubo de televisão, a partir do qual se identifica a figura e o fundo. Foi após a Revolução Industrial que os inventos começaram a se popularizar. No início do século XIX houve a necessidade de testemunhar determinados acontecimentos que marcavam época, levando a uma pesquisa intensa dos processos científicos e artísticos de registro de imagens. A fotografia, por sua portabilidade e flexibilidade, logo aderiu ao papel, tornando-se presença obrigatória nos jornais diários, nos cartazes, na propaganda e nos cartões-postais que corriam o mundo. A fotografia passou a fazer parte do cotidiano. No século XX, a popularização da fotografia ampliou consideravelmente nossa relação com o mundo. E hoje, com a fotografia digital, há a possibilidade de criar imagens até mesmo com o telefone celular. Isso tornou praticamente ilimitado o uso da fotografia. A imagem em movimento e a invenção do cinema Inventado inicialmente na Europa pelos irmãos Lumière, o cinema se popularizou nos Estados Unidos, onde se tornou uma das mais importantes indústrias culturais da modernidade. O cinema apresenta todas as características da grande indústria de bens simbólicos. Grande capital e tecnologia de ponta são os requisitos para essa produção coletiva, realizada por uma grande equipe em tarefas especializadas. É uma produção seriada e destina-se ao grande público, independentemente da idade, do sexo, da religião ou da formação. O sucesso alcançado foi grande desde o início. Astros e estrelas que se destacavam em grandes produções atraíam atenção e adesão apaixonada, que se estendia pelos diversos continentes por onde o cinema transitava. Hoje, o cinema é uma indústria globalizada, que une as pessoas em torno de ideias, valores e sentimentos comuns. Segundo o sociólogo francês Edgar Morin, o cinema faz contrastar a imobilidade do corpo do espectador com o movimento das imagens, criando uma sensação de prazer e abandono que favorece o que ele chamou de projeção-identificação, pelo qual nos sentimos parte daquilo a que assistimos. Invenções técnicas posteriores, como o videocassete e os computadores, tornaram a experiência cinematográfica ainda mais cotidiana a próxima. A invenção e a popularização do cinema arrancaram duras críticas dos sociólogos por considerarem que os enredos cinematográficos escondiam a proposta explícita de divulgação dos valores norte-americanos e da ideologia capitalista. O debate em torno da magia do cinema se estende até hoje. Rádio e televisão invadem as residências Inventado no século XIX, o rádio foi o veículo absoluto na primeira metade do século XX, principalmente entre as décadas de 1920 e 1940, época conhecida como a era do rádio. O rádio começou divulgando música para radioclubes. Depois vieram as notícias e – claro! – os comerciais. As rádios passaram também a transmitir entrevistas, programas de humor e esportivos. A programação disciplinava as horas da vida das famílias, que se reuniam em volta dos aparelhos. O russo Vladimir K. Kworykin criou o iconoscópio em 1923, mesma época em que Philo Taylor patenteou o tubo dissecador de imagens. Ambos os dispositivos deram origem à televisão, tecnologia que “lê” uma imagem de cima para baixo em todas as suas variações luminosas e a transmite por ondas eletromagnéticas que, convertidas, geram imagem semelhante à original. A rapidez desse processo dá ao espectador a sensação de que a transmissão é contínua e sincrônica. Iconoscópio - Tubo de raios catódicos utilizado em televisão, no qual se converte uma imagem óptica numa sequência de impulsos elétricos. Como o rádio, a indústria cultural torna-se efetiva a partir da televisão doméstica, massiva, diária, comercial e aparentemente gratuita, com uma grade horária dividida por segmentos de público e por gênero de programa. Ao contrário do cinema, a televisão convive com o espectador dentro de sua casa. O sucesso de público da televisão foi grande desde a década de 1950, quando os primeiros aparelhos foram comercializados. Tornando-se parte da vida dos espectadores, a televisão atraiu para si o grande fluxo do comércio, a atenção das pessoas e também as maiores críticas dos cientistas sociais. Aldeia global e analógica Marshall McLuhan foi capaz de compreender que esse mundo, com pessoas conectadas pelas mídias, com países e continentes interligados nos mesmos fatos e emoções, teria dimensões globais. Mas compreendeu também que seria um mundo mais próximo, conhecido e cotidiano, como uma aldeia, ou, uma aldeia global. As relações sociais, os papéis desempenhados pelo ser humano na sociedade, o jargão com o qual se expressa, os mitos com os quais se identifica, os desejos que o mobilizam, tudo isso tem relação direta com a cultura midiática. Esse mundo integrado por mídias que repetem ao infinito as mesmas imagens é um jogo de espelhos e reflexos que reproduz a realidade e com ela se confunde e nos confunde. É a aparência da realidade que primeiro encanta e engana o olhar humano e que aparece na fotografia, no cinema e na televisão como cópia quase perfeita do mesmo original. Na sociedade atual valorizam-se as imagens e as mídias. Essa busca tem sentido duplo. Busca-se o “eu” e o outro, que surge, seja por semelhança, seja por diferença, contra a imagem de mim mesmo na qual me reconheço. É o emaranhado das imagens com o qual convivemos cotidianamente que descobrimos a nós mesmos e aos outros. Esse processo depende da familiaridade que adquirimos com esse mundo imagético, cujos equívocos e simulações somos capazes de desvendar e identificar. Depende também de uma sensível capacidade de distinguirmos o que é real do que é mera reprodução. Representação, alienação e comunicação A aquisição da linguagem nos torna seres especiais que lidam, se comportam e se conhecem não apenas por intermédio da experiência direta com a realidade circundante, mas também por meio de formas de representação simbólica dessa realidade. A imagem depende da coisa que representa para existir, mas não é a própria coisa. A consciência que temos disso nos leva a uma desconfiança em relação ao mundo das imagens, colocando-nos numa atitude sempre interpretativa, em busca da veracidade de suas referências. Os sociólogos, em razão disso, preocuparam-se com a relação entre as linguagens e os comportamentos individual e coletivo, procurando compreender a forma como as representações sociais mobilizam os sujeitos e lhes oferecem determinada visão da realidade. À medida que os meios de comunicação se desenvolveram, a necessidade de compreender as novas formas de produção simbólica se acentuou. As questões relativas à comunicação humana, à cultura, à produção simbólica e às tecnologias da comunicação tornaram-se proeminentes. Para explicar certo mal-estar diante da proliferação de mensagens, imagens e interpretações da realidade, muitos estudiosos recorreram aos autores clássicos da sociologia. Das teorias clássicas, o marxismo foi o que mais influenciou as análises explicativas da sociedade da comunicação, ou sociedade midiática. O conceito de ideologia de Karl Marx – percepção distorcida da realidade concreta pela hegemonia do pensamento burguês disseminado pelas instituições e pelos meios de comunicação de massa – foi um dos pilares das críticas à produção cultural e simbólica do século XX. Como defenderam os autores da Escola de Frankfurt, a aliança direta e indireta do poder constituído com os meios de comunicação promove uma submissão das mensagens por eles veiculadas aos interesses desse poder, transformando-os em veículos essenciais de massificação ideológica. As mensagens e as imagens com as quais lidamos são ideologicamente deformadas, aumentando a alienação do ser humano diante da realidade. Por essa razão, as ciências da comunicação adquiriram a centralidade de que gozam na atualidade – elas permitem aferir o grau de fidedignidade do nosso conhecimento, da cultura e das imagens que povoam nosso imaginário.