O poeta lírico – intérprete de si mesmo, tradutor de sua comunidade Perguntado certa vez sobre o que era ser poeta, Manuel Bandeira responde com uma pergunta: “O que é ser poeta senão isso: exprimir o que os outros sentiram e não souberam dizer?” A partir destes dizeres, podemos dizer que o poeta lírico atua como um intérprete / tradutor de uma comunidade; Ao exprimir seus pensamentos sobre si mesmo, sua época ou seu cotidiano, ele dá voz àquilo que os outros pensam (e sentem) mas não conseguem dizer. Ou seja, o poeta lírico, ao expressar seus pensamentos sobre ele mesmo, “dá voz” aos sentimentos, preocupações e problemas de seu tempo. Mãos dadas (extraído de O Sentimento do Mundo) Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Três variantes de leitura da poesia lírica • Emocional • Social • Racional (cerebral) Estas três interpretações não se dissociam por completo, já que decorrem da própria particularidade da lírica – a experiência de captar artisticamente a realidade do mundo. É o predomínio de um dos aspectos sobre os demais que leva à conceituação deste tipo de poesia em emocional, social ou racional (cerebral). Todas estas variantes decorrem do próprio ponto de partida, que é a manifestação da subjetividade – expressão do sujeito diante do mundo. A lírica emocional (ou erótico) Aparentemente, é mais comum que os outros tipos, por ser mais divulgada e pela associação com o romantismo; Supervaloriza as emoções e os diferentes sentimentos, notadamente os de tônica amorosa ou erótica. Não é o tema, porém o tom, o que permite considerar um poema como emocional, traço reforçado pela musicalidade. Soneto XXII, de Francesco Petrarca Se amor não é qual é este sentimento? Mas se é amor, por Deus, que cousa é a tal? Se boa por que tem ação mortal? Se má por que é tão doce o seu tormento? Se eu ardo por querer por que o lamento? Se sem querer o lamentar que val? Ó viva morte, ó deleitoso mal, Tanto podes sem meu consentimento. E se eu consito sem razão pranteio. A tão contrário vento em frágil barca, Eu vou para o alto mar e sem governo. É tão grave de error (1), de ciência é parca Que eu mesmo não sei bem o que eu anseio E tremo em pleno estio e ardo no inverno. (1) N. T.: Alude à barca A lírica social perspectiva proposta pelo filósofo alemão Theodor Adorno; a poesia funciona como uma crítica da cultura; de acordo com tal proposta, a lírica moderna reflete o conflito entre indivíduo e sociedade; pode-se atribuir à lírica um traço abertamente social, quando ela manifesta seu repúdio a situações provocadas pelo referente na sociedade; nestes casos, o EU vale por um NÓS. Exemplos: Ferreira Gullar, Mário de Andrade O açúcar, de Ferreira Gullar O branco açúcar que adoçará meu café nesta manhã de Ipanema não foi produzido por mim nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro e afável ao paladar como beijo de moça, água na pele, flor que se dissolve na boca. Mas este açúcar não foi feito por mim. Este açúcar veio da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. Este açúcar veio de uma usina de açúcar em Pernambuco ou no Estado do Rio e tampouco o fez o dono da usina. Este açúcar era cana e veio dos canaviais extensos que não nascem por acaso no regaço do vale. Em lugares distantes, onde não há hospital nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome aos 27 anos plantaram e colheram a cana que viraria açúcar. Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura produziram este açúcar branco e puro com que adoço meu café esta manhã em Ipanema. A lírica racional/cerebral poesia que se contrapõe às facilidades da inspiração; busca desfazer o mito romântico do poeta como gênio inspirado em favor do poeta como construtor; Crítica ao excesso de sentimentalismo da poesia romântica e parnasiana; poesia é trabalho cerebral, é cálculo; o corpo possui mais órgãos do que apenas o coração; valoriza o trabalho poético, apontando para as dificuldades que tal arte exige; a emoção (sentimental) se transforma em reflexão, questionamento; poesia como festa do intelecto: a poesia é fruto de uma escolha e um trabalho consciente e lúcido, resultado de uma pesquisa infinitamente minuciosa e complexa, para ultrapassar o estágio do entusiasmo (inspiração); Catar feijão, de João Cabral de Melo Neto Catar feijão se limita com escrever: Jogam-se os grãos na água do alguidar E as palavras na folha de papel; E depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, Água congelada, por chumbo seu verbo: Pois para catar esse feijão, soprar nele, E jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a com o risco. Conclusões Atualmente, os teóricos tratam a poesia lírica menos como expressão dos sentimentos e mais como trabalho associativo e imaginativo com a linguagem; A poesia é vista como uma crítica da cultura, e não um repositório de valores ou normas culturais imutáveis. A lírica não pode ser compreendida sob uma ótica normativa que privilegie a presença de traços estilísticos; Seria mais adequado falarmos em lirismo, não em lírica; Lirismo: expressão particular da voz de cada poeta; é o modo como o poeta destaca e diferencia sua voz em relação ao conjunto de textos (a tradição) com a qual ele dialoga; Características do lirismo: relações entre som, sentido, ritmo e imagens; Por ser expressão de uma subjetividade [da realidade interior], seja individual ou coletiva, a lírica depende técnica e tematicamente do contexto social a que se pertence o artista individual. Não é possível generalizar “o que é a lírica”: é preciso examinar cada poeta, cada texto, cada circunstância histórica.