QUANDO SE ESCOLHE AS DROGAS, ABANDONA-SE A VIDA TRABALHO APRESENTADO NO I ENCONTRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO SOBRE DROGAS NO CEARÁ EXPOSITOR: GEORGE HAMILTON GUSMÃO SOARES MÉDICO PSIQUIATRA NÚCLEO DE CLÍNICA CETAD/UFBA FORTALEZA – CEARÁ 22 AGOSTO 2013 PROBLEMATIZAÇÃO “QUANDO SE ESCOLHE AS DROGAS, ABANDONA-SE A VIDA” QUANDO SE FALA EM TRATAMENTO, FALA-SE DO QUE? • • • • DO FENÔMENO DROGA (DAS SUBSTÂNCIAS)? DO FENÔMENO CLÍNICO (DA DEPENDÊNCIA)? DO FENÔMENO SOCIAL (O FLAGELO, AS MAZELAS)? DO FENÔMENO JURÍDICO (NARCOTRÁFICO, CRIME ORGANIZADO, ENVOLVIMENTO COM ROUBOS, HOMICÍDIOS)? I - APORTE TEÓRICO • “Quando trata, ..., o terapeuta trata desse pouco que lhe é familiar (e esse será o erro fundamental de todo atendimento que não seja específico do toxicômano); negligencia o essencial: a construção específica da personalidade do sujeito, o caráter específico da droga e o encontro não menos específico do corpo, do psiquismo e da droga, que irá acarretar uma modificação irredutível a qualquer outra, pois afeta indissoluvelmente o corpo e a mente, criando uma “instantaneidade” organizadora de unidade que lhe escapava até então” (In: A Vida do Toxicômano, Claude Olievenstein) A EQUAÇÃO FUNDAMENTAL INDIVÍDUO SUBSTÂNCIA PSICOATIVA CONTEXTO SÓCIO CULTURAL I - PRESSUSPOSTOS TEÓRICOS • Os aspectos da existência de um indivíduo são determinantes para a relação que o mesmo estabelece com uma substância psicoativa, a qual vem ocupar um lugar e uma função na economia psíquica do usuário; • Tomamos como premissa de que as toxicomanias não se estruturam fundamentalmente a partir da experiência com uma substância psicoativa; • A estruturação mental de cada sujeito empresta significações singulares às experiências vivenciadas com as mais diversas substâncias psicoativas, funcionando como um filtro que possibilita a produção de vários sentidos, a depender da função que estas assumem para cada um. Dessa forma salientamos que, independentemente do efeito farmacológico da cada droga, existem funções que lhes são atribuídas e vinculadas por cada existência em particular. (SINGULARIDADE) QUE PESO OCUPA O “SUJEITO”NESTA EQUAÇÃO? SUBSTÂNCIA PSICOATIVA Economia Psíquica, Função Subjetiva (que Revela, que Amortece, que Capacita, que Anestesia, que Suprime), Presença de Comorbidades (Aparelho Psíquico e Existência vulneráveis, Neuroadaptação, entre outros. INDIVÍDUO CONTEXTO SÓCIO CULTURAL I - APORTE LITERÁRIO É antes do ópio que a minh’alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um oriente ao oriente do oriente ... ... Ao toque adormecido da morfina Perco-me em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes Ergue-se a lua como a minha sina...” FERNANDO PESSOA II - PRESSUSPOSTOS TEÓRICOS • As características farmacológicas de algumas substâncias psicoativas podem desencadear efeitos particulares em alguns indivíduos, uma vez que promovem modificações nas experiências sensoriais e emocionais, podendo funcionar como um catalisador e criando “a ambiência necessária para uma nova partida, para um reinício”. • Vale salientar que a repetição crônica poderá acarretar importantes modificações nos sistemas de neurotransmissão (neuroadaptação), contribuindo para a estruturação da dependência per se, haja vista se sustentar em alterações neuroquímicas, comportamentais e motivacionais subjacentes. • Estas modificações, por sua vez, tornariam, os sistemas sensibilizados à droga e aos estímulos associados a elas determinando a ocorrência do craving (fissura), assim como a perda do controle pela busca e consumo da droga SISTEMA DE RECOMPENSA: ao atingir o cérebro, as substâncias psicoativas ativam o sistema límbico (vias mesolímbica e mesocortical), aumentando a disponibilidade de dopamina nas fendas sinápticas, através do bloqueio da recaptura deste neurotransmissor, o que resulta numa enorme reação de prazer vivenciada pelo indivíduo (reforço positivo dos psicoestimulantes). QUE PESO OCUPA A “DROGA” NESTA EQUAÇÃO? INDIVÍDUO SUBSTÂNCIA PSICOATIVA CONTEXTO SÓCIO CULTURAL II - APORTE LITERÁRIO “É preciso saber sentir, mas também saber como deixar de sentir, porque se a experiência é sublime pode tornar-se igualmente perigosa” (In Obsessão, Clarice Lispector) III - PRESSUSPOSTOS TEÓRICOS • O consumo de substâncias psicoativas, em contextos culturais específicos, pode influenciar nos modos e padrões de consumo. • Importância da regulação exercida por normas formais e sanções informais de uso, notadamente quando os agrupamentos humanos estão inseridos em determinados, os quais podem funcionar como fatores de proteção ou agravo, dependendo de como os pares se comportam, reprovando o consumo indevido ou, ao contrário, estimulando o uso abusivo e persistente de determinadas drogas; • Toda e qualquer intervenção deverá ser fundamentada a partir do contexto social e cultural da população alvo, envolvendo inclusive o sistema de valores e crenças, e tudo isto em consonância com o referencial teórico da equipe. Não existe uma conceituação “universal” na definição de droga e de toxicomanias. • Todas as ações não devem jamais desconsiderar a economia das drogas que sustenta toda a rede de distribuição e o lucro bilionário advindo deste comércio. QUE PESO OCUPA O “CONTEXTO” NESTA EQUAÇÃO? INDIVÍDUO SUBSTÂNCIA PSICOATIVA CONTEXTO SÓCIO CULTURAL III - APORTE LITERÁRIO • “Por que nós, estimulados a agir pelos desconfortos e riscos endêmicos do modo como vivemos, mudamos nossa atenção com muita frequência e concentramos nossos esforços nos objetos e objetivos que não possuem relação de causa com as fontes genuínas desses desconfortos e riscos? Como acontece de a energia gerada pelas ansiedades da vida continuar sendo desviada de seus alvos “racionais” e ser usada para proteger, em vez de remover as causas do problema? Quais são as razões pelas quais as histórias que contamos hoje e que tão raramente queremos ouvir, se é que queremos, vão além do estreito e esmeradamente cercado recinto do privado e do “ser subjetivo”? (In Sociedade Individualizada, Zygmunt Bauman) IV - PRESSUSPOSTOS TEÓRICOS O vínculo ao tratamento deverá sempre ter um caráter voluntário, salvo quando o indivíduo se apresente numa situação clínica e/ou psiquiátrica que envolva risco para si ou para terceiros e seja considerado psiquicamente incapaz de optar pela adesão ao tratamento. Na abordagem ao usuário, pretende-se resgatar a dimensão de responsabilidade implicada em toda a escolha, tomando-o sempre como sujeito de seu destino; O limite temporal do tratamento deve ser estabelecido a partir de critérios técnicos (indicadores clínicos) e institucionais. TRATAMENTO • • • • • • • • Acolhimento e Avaliação Situacional: DIAGNÓSTICO Co-morbidades (Ex: Esquizofrenia e Dependência ao Crack) Problemas Clínicos (BK, Pneumonias, Desnutrição, Enfisema) Implicações Psiquiátricas (Quadros psicóticos e depressivos, síndromes de abstinência) PENSAR NO PLANO TERAPÊUTICO Proposta Ambulatorial; Intervenção Psicoterápica (Entrevista Motivacional, Intervenções Breves, Terapia de base analítica; Terapia Cognitivo Comportamental, Abordagem Sistêmica, Grupos de Ajuda Mútua, entre outros); Acompanhamento Psiquiátrico e uso de Farmacoterapia; Seguimento e Acompanhamento Terapêutico (Reinserção e Reabilitação). TRATAMENTO EM REDE • Integrar os mais diversos Serviços e ampliar o acesso. Facilitar o acolhimento e admissão. Ressuscitar o sistema de referência e contra-referência; • Otimizar os recursos financeiros e humanos; • Capacitar os profissionais dos mais diversos serviços (PSFs, UPAs, NASFs, CRAS, CREAS, CAPS); • Fazer o levantamento de todas as repercussões relacionadas ao uso de drogas (co-morbidades, problemas clínicos, repercussões psiquiátricas, problemas jurídico-legais e práticas ilícitas, desestruturação sócio-familiar, absenteísmo e acidentes de trabalho); • A Proposta Terapêutica deve levar em consideração os principais indicadores de gravidade citados acima, para que se possa gerenciar cada caso de modo singular. QUANDO INDICAR UMA INTERNAÇÃO? ? RAZÕES PARA O DEBATE SOBRE INTERNAÇÃO INVOLUNTÁRIA • Indignação com a proposta apresentada e divergência clara e tácita com a primazia deste modelo de abordagem; • Ausência de evidências científicas que sustentem tais práticas, como um modelo de intervenção eficaz na condução clínica dos usuários; • Absoluta privação vivenciada pela maior parte destes usuários (populações de extrema e permanente vulnerabilidade social, expostas a todos os tipos de violência); • Privação social, étnica, educacional, laboral, familiar, afetiva, política, à saúde e aos bens de consumo; • Interrogar o DITO e denunciar o NÃO-DITO, que aparece por trás destas ações e , desta forma, assumir um posicionamento políticoinstitucional. O NÃO-DITO • Incapacidade e incompetência do Estado (nos três Níveis) em estruturar os Serviços de Saúde previstos nas portarias do Ministério da Saúde, em consonância com a Reforma Psiquiátrica e obedecendo a Lei 10.216 (MS, 06/04/2001), que redefine a Política de Saúde Mental e que aponta para a implantação de distintos dispositivos, estabelecendo critérios determinados para o uso destes recursos; • Refiro-me especificamente à Portaria 336 (MS, 19/02/2002), que definiu as normas e diretrizes dos novos serviços de saúde mental (CAPS e leitos de atenção integral em hospitais gerais) e à Portaria 816 (MS, 30/04/2002), que instituiu o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos usuários de Álcool e outras Drogas. AINDA SOBRE O NÃO-DITO PRINCIPAIS PROBLEMAS • • • • • INACESSIBILIDADE AOS SERVIÇOS DO SISTEMA DE SAÚDE MENTAL Atinge o modelo na sua essência, haja vista observarmos uma impossibilidade de acolhimento destes usuários nos dispositivos instalados; Número insuficiente de Serviços; Isolamento dos CAPS em relação à rede de saúde, à rede de assistência social e aos mais diversos sistemas de proteção social, incluindo à assistência jurídica; dispositivos distanciados do território, o que limita ainda mais o acesso; Modelos rígidos de atendimento, que não contemplam as especificidades de cada indivíduo e as variáveis clínicas, que dificultam muitas vezes a adesão às propostas de tratamento ofertadas; Inexistência de equipamentos de saúde de maior complexidade: a brutal resistência dos gestores para a instalação dos leitos de atenção integral em hospitais gerais. AINDA SOBRE O NÃO-DITO PRINCIPAIS PROBLEMAS • • • • • PROCESSO DE TRABALHO Equipes insuficientes, com grande instabilidade, em decorrência da “precarização” dos vínculos contratuais (TAC, REDA, REDINHA, TERCEIRIZAÇÃO), o que resulta em extrema volatilidade dos profissionais e, por conseguinte, instabilidade institucional; Gestão política autoritária, sem diálogo com a sociedade civil organizada, e sem nenhum planejamento; Equipes compostas por profissionais que não tiveram nenhuma formação especializada, tampouco qualificação na área de atenção em álcool e outras drogas; Falta de suporte e supervisão clínico-institucional; Espaços físicos precários: refiro-me à manutenção, ambiência e humanização; O FENÔMENO SOCIAL E A MÍDIA CRACK 80% DO HOMICÍDIOS PRINCIPAL CAUSA DA VIOLÊNCIA NA BAHIA CRACK: CADEIA OU CAIXÃO “... esta propaganda servirá para desviar a atenção da escandalosa afronta aos direitos humanos a que assistimos diariamente: a violência policial que é responsável pela morte de jovens negros e pobres na periferia”. (Ricardo Henrique Andrade, em Retórica dos Números) AS CONSEQUÊNCIAS DO NÃO QUERER SABER: A EXCLUSÃO E A PENALIZAÇÃO DO USUÁRIO VICIADOS EM “CRACK” FICAM MAIS TEMPO PRESOS DO QUE EM TRATAMENTO Uma pesquisa da UNIFESP acompanhou 107 dependentes por 12 anos: os usuários permaneceram presos, em média, por um período de 01 ano e 08 meses, e em tratamento, por três meses; Verificou, ainda, que: 29% dos usuários estavam abstinentes, sem usar a droga há cinco anos ou mais; 20% relataram períodos de consumo alternados com períodos de abstinência; e 13% mantiveram o consumo de crack por mais de uma década, com uso mais controlado e em menores quantidades e frequência. Após o período da análise, 25% haviam morrido, sendo que 59% das mortes foram homicídios, e 12% estavam presos Apesar do alto índice de violência relacionado ao uso da droga, o estudo detectou que os dependentes tem conseguido, com o tempo, evitar situações de risco. EVOLUÇÃO CLÍNICA DOS DEPENDENTES DE “CRACK” PROJETO DO DEPUTADO OSMAR TERRA • • • • • Claríssima a estratégia instruída por parte do Câmara de Deputados e do Senado Federal de incluir as comunidades terapêuticas no sistema oficial de financiamento público do setor de saúde; transferência de recursos públicos para uma rede privada; Claríssima também a regulamentação prevista para a implantação e preservação desta rede complementar e para garantir a internação (involuntária) do público demandante, com a argumentação de que estas medidas servem para assegurar a suposta atenção ao assistido; O texto exibe pontos divergentes, inconstitucionais e controversos, com a clara intenção de confundir e de abrir diversas brechas na Lei, para que possam oficialmente criar os “campos” de exclusão e de locupletar tais serviços e assim garantir a lucratividade; Com a disseminação de que enfrentamos uma EPIDEMIA, o Projeto de Lei transfere o poder de internação para os “empresários morais”da nossa sociedade, na ausência dos seus responsáveis legais, avalizando o sequestro de homens e mulheres doentes e desprotegidos da nossa sociedade. Por fim, sobrecarrega ainda o serviço público já sucateado, quando propõe que os acolhidos tenham prioridade de atendimento nas Unidades do SUS. ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO EM CURSO: INTERNAÇÕES COMPULSÓRIAS, REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL E INSERÇÃO DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS NO SISTEMA DE FINANCIAMENTO PÚBLICO “Aqui chegamos a um problema especialmente delicado. Até que ponto nós colaboramos para o agravamento da violência que gostaríamos de reduzir, quando acolhemos com empatia e compreensão aqueles sobre os quais a sociedade lança toda a culpa? Eles são muito jovens, quase sempre, e amargaram muitas rejeições ao longo da vida. Foram privados dos benefícios mais elementares da cidadania e acabaram cedendo à sedução do crime. São vítimas, também, ainda que façam outras vítimas... Seria muito cínico lavar as mãos, manter as estruturas sociais como estão, projetar neles todo o mal e mandá-los arder na fogueira. A violência deixaria de ser o fruto venenoso da sociedade que construímos. Nós nos sentiríamos aliviados de qualquer responsabilidade. As elites, os políticos, as instituições apontariam o dedo para os criminosos, exigindo punição e a interrupção da sangria desatada pela adoção de medidas duras.” (In Cabeça de Porco, Luiz Eduardo Soares) A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE USUÁRIOS DE DROGAS: UMA ESTRATÉGIA OFICIAL PARA A REATUALIZAÇÃO DA “STULTIFERA NAVIS” STULTIFERA NAVIS “...a navegação entrega o homem a incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. Esta navegação do louco é simultaneamente a divisão rigorosa e a Passagem absoluta. (...) Ele é colocado no interior do exterior e inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até nossos dias, se admitirmos que aquilo que outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo da nossa consciência” (In História da Loucura, Michel Foucault) IV - APORTE LITERÁRIO “A falta de respeito, embora seja menos agressiva que o insulto direto, pode assumir uma forma igualmente ofensiva. Nenhum insulto é feito ao outro, mas ele tampouco recebe reconhecimento; ele não é visto – como um ser humano pleno, cuja presença tem importância. Quando uma sociedade trata a grande maioria das pessoas desta forma, julgando apenas alguns poucos dignos de reconhecimento, é criada uma escassez de respeito, como se não houvesse o bastante desta preciosa substância para todos. Como muitas formas de escassez, esta é produzida pelo homem; ao contrário da comida, o respeito nada custa. Por que, então, haveria uma crise de oferta?” ( IN RESPEITO, A FORMAÇÃO DO CARÁTER EM UM MUNDO DESIGUAL, RICHARD SENNETT)