SEMINARIO INTERNACIONAL NUCLEO DE ESTUDOS AVANÇADOS SOBRE ALCOOL E OUTRAS DROGAS CENRTO DE ESTUDOS E TERAPIA DO ABUSO DE DROGAS – CETAD/UFBA SALVADOR, NOVEMBRO DE 2010. Palestra de Abertura Maria Luiza Mota Miranda Este Seminário sobre usos e usuários de drogas no século XXI é uma atividade do Núcleo de Estudos Avançados sobre Drogas, formado por técnicos do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas – CETAD/UFBA que, em 2010, comemora vinte e cinco anos. Foi viabilizado graças à Emenda Parlamentar da atual Deputada Federal e Senadora eleita Lídice da Mata, cuja sensibilidade para o tema a tem colocado como nossa parceira em todos esses anos. Agradeço aos participantes dessa mesa de abertura, o professor Robert Verhaine, representando a Reitoria da UFBA e o Sr. Pedro Gabriel, coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Agradeço aos convidados e inscritos de outros países, outros estados e da Bahia, em nome do nosso coordenador geral Antônio Nery Filho, que pronunciará a conferência de Abertura, e sem o qual algo importante nesse campo se perderia. Agradeço ainda em nome do Núcleo de Estudos Avançados e de toda a equipe técnica e administrativa do CETAD, onde caberia citar um por um, os sessenta, por suas presenças essenciais, na instituição e na organização do Seminário, para o qual a garra de Andréa Leão foi imprescindível. Os resultados de uma vivência profissional e de uma prática de cuidados com usuários de drogas fazem do CETAD um campo experimental e de pesquisa, promotor de subsídios para ações clínicas, políticas e socioculturais. A disponibilidade e o entusiasmo que prevaleceram na consecução desse evento, só reafirmam a importância de se abrir um espaço de interlocução ampliada sobre um tema que é hoje objeto de atenção da sociedade civil, do Estado, do Ministério da Saúde, e um dos motes principais da mídia e até das campanhas políticas brasileiras. Muitas questões vêm sendo discutidas. Cito algumas que serão destaques em nossa pauta: - a insuficiência de informações consistentes sobre o tema; - a carência de subsídios clínicos e socioantropológicos na elaboração e implantação de projetos e estratégias; 1 - as intensas persuasões ao uso de drogas, pelas propagandas de álcool, as cervejarias, e o monopólio abusivo das indústrias farmacêuticas, as drogas legais; - o poderio do narcotráfico, que amplia as devastações pela violência da criminalidade, dos embates entre traficante e traficante, polícia e traficante, colocando em dúvida as políticas proibicionistas; - os problemas clínicos conseqüentes de determinados usos como do álcool, tabaco, medicamentos e dos usos de determinadas drogas; - mais recentemente, a violência assoladora do crack no Brasil, que vem provocando, numa velocidade espantosa, uma mudança qualitativa no quadro da drogadição, em direção à rápida marginalização dos usuários; Certamente a complexidade desse campo não pode ser reduzida às estúpidas e perversas concepções generalizadoras das drogas, que servem a interesses ideológicos, políticos e econômicos, condenando o usuário ao lugar de marginal, excluído ou doente. Proferimos o nosso interesse pela sociedade humana e o individuo em sua relação com os objetos, onde a droga aí se inclui. Acreditando que nem o uso de drogas nem o usuário são objetos que se possam conceber fora de suas referências individuais, sócioantropológica, econômica e política, sem as quais esse debate não caberia. Pois não há notícias históricas de uma sociedade sem drogas. As propriedades psicoativas dessas substâncias revelaram-se um potente recurso no decorrer de nossa história, na lida pela sobrevivência, anestesiando dores das intempéries, da fome e do frio. Como solução para a angústia e a dor da existência; como medicamento, aliviando tensões, stress e sofrimentos. O que dizer do vinho, o maior dos afrodisíacos, símbolo do prazer, louvado pelos poetas? E a cocaína, desde há muito, inscrita na cultura de povos, em suas religiões, rituais e no auxílio à força produtiva? Se há tantos séculos e de tantas formas e o álcool e as outras drogas perfilam na história dos homens, por que o uso dessas substâncias ganha um destaque tão intenso em nossa cultura, transformando-se em fenômeno e em sintoma social contemporâneo, especialmente a partir da segunda metade do século XX? Eis uma questão essencial para esses dias de debate. Assistimos a um fenômeno surpreendente na lógica capitalista, da ciência e do avanço tecnológico: a capacidade de transformar certas substâncias em negócios de larga escala e de grande valor econômico, entre elas, as SPA que hoje ocupam um dos primeiros lugares na economia mundial, junto com a indústria de armas. Produtoras de satisfação globalizada e comercializável, sua utilização em massa gera lucros e, quanto 2 maior for o potencial de criar dependência, maior o ganho, sejam legais ou ilegais. Nesse movimento, se engajam o narcotráfico e a corrupção, envolvendo o Estado, policiais e funcionários públicos em crimes relacionados a drogas. Esses usos estão em sincronia com o desenvolvimento social contemporâneo, ocupando aí um lugar estruturado, onde beber, por exemplo, se torna um recurso cotidiano. É o hedonismo da sociedade pós-moderna. Termina o trabalho, cai na gandaia. Assim falava Gey Espinheira (2008), a propósito dos festejos juninos na Bahia: “nesse mês, três santos nos convidam à orgia: Antônio, Pedro e João. Se em tudo que fazem há bebida, por que a bebida tem de ser interditada? Há como uma espécie de cinismo”. Ainda assim, para que sofrer, diante da promessa de alívio rápido pela droga? Nosso mundo atual é do analgésico, do anestésico, da vacina, do antibiótico, da longevidade, da medicina cosmética, corrigindo defeitos e estabilizando humores. As ideologias dos tratamentos e o determinismo absoluto do fármaco que serve à indústria e a propósitos políticos passam a definir os ideais de eficácia, transformando a clínica e as instituições médicas. Mas o medicamento jamais se reduz à substância, é inseparável da definição de suas regras de uso e por isso ele convoca uma posição ética, em torno de seus poderes, seus imperativos e suas experimentações (Laurent,2002). Cada vez mais se delega ao campo da saúde o poder de gestão sobre a satisfação. Nessa esteira as drogas perdem sua auréola de heresia e de ritual, exilando-se das tradições e da dimensão do prazer, para se incluírem na condição de remédio “científico”. Portanto, a democratização do uso das drogas afirma o poder do medicamento. Examinaremos ainda nesses dias o peso das representações sociais das drogas para o indivíduo, a força de uma rotulação que pode determinar uma existência, provocando estragos, já que o efeito da droga depende do que se afirma, do que se sabe, de quem, do que e de como se prescreve. Essa “intoxicação atual do discurso”, que generaliza qualquer uso de drogas a uma condição de toxicomania, não corresponde ao que se mostra no campo da clínica e da socioantropologia, onde encontramos uma população em que o uso de drogas não se configura como um fato de clínica. Considerar os usos álcool e outras drogas, ainda que se apresentem intensivos em algumas situações, uma doença sem cura, um desvio de comportamento, uma perversão, transforma a substância em mito, reduz o problema à dimensão clínica, deixando ao indivíduo somente a condição de impotência, sem alternativa que a da marginalização. Estamos falando de nossos filhos, nossos amigos, de nossos próximos. 3 Resta saber como e por que o usuário responde a isso, como a proibição e a estigmatização de um uso se inscreve na realidade humana de cada um? Onde muitos passam a aceitar essa condição e até mesmo reivindicá-la, fazendo desses rótulos alcoolista, toxicômano - a sua condição de existência, deixando-se submeter “a uma profecia”, determinados a cumprir, sem saber por que, mesmo que funcionem bem no trabalho e na família. Na perspectiva clínica é possível afirmar que as transformações sociais produzem mutações subjetivas e, com isso, respostas sintomáticas características. Ou seja, os sintomas mudam com o tempo, cada época produz e/ou alimenta seus próprios sintomas. Assim, falar sobre a clínica das toxicomanias, da drogadição, é falar dos sintomas na atualidade, quando assistimos à erupção das anorexias, das bulimias, das síndromes de pânico e das psicoses ordinárias. Quando o sintoma vira problema, tem que tratar o sintoma, mas tem que buscar as causas do problema. É o que se pretende nesse seminário. Não cabe ilusão. Nossas perspectivas de tratamento têm o seu limite, ao se depararem com algo que vai além de suas possibilidades. Os quatrocentos milhões destinados pelo Governo Federal a essa área é o maior investimento feito até agora, mas, ainda é pouco diante da carência de serviços para o atendimento clínico de usuários de drogas em geral. Agora, intensificada pelos enormes estragos gerados pelo crack e a difícil demanda de tratamento que aí ocorre. Temos que cuidar. A atenção clínica é fundamental, qualitativa e quantitativamente, para atender os sofridos pelos abusos das SPA. Mais recentemente, uma população dilacerada pelo crack. Dados recentes estimam um milhão de utilizadores de crack no Brasil. Todavia, uma questão tão complexa como esta não pode ser reduzida a uma perspectiva clínica. Não é no CETAD, nem nos Centros de tratamento que vamos resolver o problema do crack e de outros usos, onde a procura pelos serviços especializados não atinge mais de 10%. Há que nos dispormos a examinar essa época de transformações sociais, onde novos paradigmas do psiquismo se destacam e os sintomas contemporâneos entram em moda. Onde se assiste à irrupção de uma satisfação desmedida, pública, escancarada, da droga, da violência sem lei. Onde a única lei é a do gozo. Na leitura de um político, trata-se de devolver à sociedade brasileira perspectivas de vida, principalmente aos jovens. A inserção do crack mostra a face diabólica da satisfação sem referência, distanciada de valores sociais. Promessa imediata que é 4 parecida com o gozo da droga, que enlouquece os jovens de hoje, onde se pode gastar, ter carros, motos, mulheres, muito rápido, e onde se morre rápido também. É esse o império do consumo, em que o gozo da droga vem se adequar muito bem às leis do mercado. Por isso, cabe ir além da busca de uma eficácia clínica, ainda que esse escopo seja fundamental, inserindo medidas políticas, econômicas e de controles ambientais. Cabem seminários, debates, com a ampla participação da sociedade civil, onde se insiram os usuários e seus familiares, do Estado, dos poderes políticos, jurídicos, para que se possa examinar essa função mais ampla das SPA na condição humana, em sua interface com a época atual. Senhores, este não é só um debate clínico, de avaliações quantitativas, de projetos de tratamento e de contenção de danos, ou que se possa limitar a questões de penalização, ou de descriminalização. Antes de tudo é uma discussão ética, política e econômica onde cabe propor medidas para a sociedade como um todo. Obrigada pela atenção, sejam bem-vindos e bom trabalho. Maria Luiza Mota Miranda 5