RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA EDUCAÇÃO: IDENTIFICAÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DOS MECANISMOS DE RECALQUE NO PROCESSO EDUCATIVO Ana Célia da Silva – Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Mestrado/Doutorado, do Departamento de Educação da Universidade do estado da Bahia – UNEB. Até então as mulheres da zona rural não conheciam “as mil utilidades do bom-bril” e, para fazer brilhar os alumínios, elas trituravam tijolos e com o resultante faziam a limpeza dos utensílios. A idéia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a tirar da panela o carvão grudado no fundo. Assim que terminou a arrumação, ela voltou para casa, e eu juntei o pó restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei e vi que diante de tanta dor era impossível tirar todo o negro da pele. GUIMARÃES, GENI. A COR DA TERNURA. SÃO PAULO: FTD, 1989, P. 69. Esse fato, que categorizo como auto-rejeição explícita, ou seja, o desamor, a recusa a aceitar-se enquanto tal, conceituado pelo senso comum como “ racismo as avessas”, constitui-se no produto da internalização de uma representação que transforma as diferenças em desigualdades e cujas conseqüências, além da não aceitação da própria diferença estigmatizada, é também a rejeição ao seu outro assemelhado, constituindo dessa forma um obstáculo de difícil transposição, para que esse indivíduo ou grupo venha a unir-se e organizar-se politicamente na obtenção dos seus direitos humanos e de cidadania. As representações sociais tem um papel significativo na modelagem da diferença, na condução das nossas atitudes e formas de agir, recalcando ou supervalorizando as diferenças, promovendo em conseqüência nos indivíduos representados atitudes de autorejeição e dissociação grupal e atitudes de sobre valor das suas diferenças hierarquizando as demais. Representação social Por representações sociais entendemos um conjunto de conceitos, proposições e explicações originadas na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais, podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso comum (Moscovici, 1981, apud Sá, 1996, p. 181). A escola, os materiais pedagógicos, as representações que professores/as, funcionários, colegas, têm do seu outro não assemelhado, podem contribuir, em grande parte, para a internalização de estigmas, preconceitos, juízos, que vão formar no indivíduo uma percepção negativa de si, do seu grupo e dos seus valores, bem como o preconceito, a discriminação e a exclusão no grupo dele diferenciado. Na representação social do negro e do indígena, entre outros, no processo de reconstituição e modelagem da sua percepção externa, estão contidos os estereótipos, os preconceitos, os julgamentos, os juízos, que são elementos ou objetos internalizados na consciência dos indivíduos, que os utiliza para construir o conceito da percepção inicial apreendida e que passa a integrar o seu universo interior. É necessário observar que as representações sociais que o professor/as tem dos seus alunos, dos pais dos seus alunos, podem influenciar, em grande parte toda a sua prática pedagógica e a expectativa que possam ter em relação aos seus alunos, pais e sua comunidade. Contudo, as representações sociais podem sofrer transformações, uma vez que os “universos socialmente construídos modificam-se transformados pelas ações concretas dos seres humanos” (Berger/Luckmann, 1976, p. 154) e muitas ações dos movimentos sociais na sociedade brasileira vêm concorrendo para essa transformação. Ideologias estereótipos, juízos prévios e imagens cristalizadas do negro e do indígena, entre outros, presentes no conceito modelado na representação social, podem ser revistos a partir da exigência de uma sociedade pluralista, constituída por diferentes universos parciais, coexistindo em um estado de mútua acomodação, substituindo a exclusão pelo respeito e cooperação. Para tanto é preciso que o professor desenvolva algumas condições desconstrutoras das representações modeladas negativa em relação às diferenças, tais como: Ter uma expectativa positiva em relação aos seus alunos; Dar voz aos alunos, para que a sua cultura e história possam penetrar na sala de aula, nos conteúdos, nos currículos; Reconhecer, respeitar e trabalhar as diferenças em sala de aula; Trabalhar os conflitos e não invisibilizá-los; Avaliar-se quanto a sua identidade étnico-racial e cultural, entre outras; Conhecer e desenvolver as determinações da Lei 10.639/03 e suas diretrizes; Ter a formação continuada como meta profissional. Apresento a seguir dois exemplos de como o livro didático pode expandir representações negativas acerca das diferenças, através dos versos dessas poesias: A BORBOLETA De manhã bem cedo COISAS DE CURUMI Uma borboleta Curumi nasceu tapuia, Saiu do casulo. Mas não gosta de ser tão moreno Era parda e preta. Curumi tem cabeça de cuia, Foi beber no açude. Diz: Eu quero ser inglês! Viu-se dentro da água. Curumi compra gravata E se achou tão feia E cachimbo redondo, pequeno, Que morreu de mágoa. Deixa o aipim, come batata, Ela não sabia Veste terno completo, xadrez. - boba! Que Deus deu Desse jeito caminha na rua. Para cada bicho Pensa mesmo, que é lorde ou A cor que escolheu. marquês. Um anjo a levou, O nariz quase espeta na lua, Deus ralhou com ela, Vai tal qual um galinho pedrês. Mas deu roupa nova Azul e amarela. Livro: Coisas de Criança, p. 72, José Odilo Costa Filho Olympio, 1973Autora: Elza Bebiano Livro: Aprenda Comigo, 2ª série, p. 12 Essas representações foram desconstruídas através da prática pedagógica de uma professora de escola comunitária e de uma aluna do curso de pedagogia da UNEB, Campus I, da seguinte forma: A borboleta De manhã bem cedo COISAS DE CURUMI Uma borboleta Curumi nasceu tapuia Saiu do casulo. E tem orgulho da sua cor Era parda e preta. - Curumi com muita alegria diz: Foi beber no açude Eu gosto de ser tapuia! Viu-se dentro da água Curumi usa colar Sentiu-se ônix, ébano, E fuma cachimbo da paz, Azeviche e jaboticaba. Sereno Ai entendeu Não dispensa um bocado de aipim, Tão linda era Veste tanga e usa penas coloridas. Porque as crianças Desse jeito caminha na floresta, Queriam pegá-la Pensa mesmo que é cacique ou pagé. Pra brincar com ela. Elisabete Santos de Jesus Crianças da Professora Eliete da Escola Mãe Hilda Vemos assim que a correção dos estereótipos, um dos objetos da representação social internalizados na nossa consciência, que não corresponde à sua percepção real, é um passo para a transformação da representação modelada negativamente. Outras formas de desconstrução da representação social constitui-se em trazer para a sala de aula o cotidiano, os valores culturais, a religiosidade dos alunos, evidenciando a sua importância, distinguindo e valorizando as suas diferenças. O conto, os mitos, os provérbios, as adivinhações, as letras de músicas, podem constituir-se em recursos para a elaboração de atividades das diversas disciplinas. A professora, o professor pode utilizar esses recursos não apenas como incentivo para a aprendizagem, mas como elementos construtores da aprendizagem. A escola como uma instituição de referência na socialização secundária de crianças e jovens, produz conhecimentos, habitus e representações muitas vezes permeados por ideologia, que podem atuar no sentido de produzir e reproduzir senso comum, naturalizações, hierarquias e subordinações das diferenças étnico-raciais e culturais, entre outras. Cabe aos educadores no momento atual, reconstruir os currículos de forma que contemplem a diversidade histórico-cultural brasileira, representada pela contribuição de todos os processos históricos culturais existentes na nossa nação, bem como reconhecer as diferenças étnico, raciais e culturais, enquanto possibilidade de riqueza, contribuição e interação efetiva dos diversos grupos que compõem a nação brasileira. Finalizando, digo que esse trabalho objetiva: A construção da identidade e auto-estima dos afrodescendentes. Objetiva: A interação entre as raças/etnias sem hierarquizações. Valorizando e incluindo as diferenças, construiremos uma real democracia sócio-econômica e cultural no Brasil. Referências: Sá, Celso, Pereira de, Núcleo das representações sociais, Petrópolis, S.P: Vozes, 1996. Berger, Peter/Luckmann, Thomas. A construção social da realidade, tradução de Floriano de souza Fernandes, 16ª edição, Petrópolis: Vozes, 1998. Silva, Ana Célia da. Branqueamento e branquitude: conceitos básicos na formação para a alteridade. In Nascimento, A. D./ Hetkowski. T. M. Memória e formação de professores, Salvador: Edufba, 2007.Machado. Vanda/ Petrovich. Carlos. Ilê Ifá – O sonho do Iaô Afonjá, Salvador: edufba, 2000.