Introdução ao pensamento de Hegel e à leitura da Fenomenologia. A dialética hegeliana: possibilidades e limites de sua ruptura com Kant e sua relação com o idealismo. Flávio Roberto Batista Advertências prévias • O foco da presente aula, originalmente, conforme consta do programa, seria uma apresentação das principais categorias que organizam o pensamento hegeliano e, especialmente do conteúdo de sua reação a Kant e das razões pela qual essa reação não elimina o idealismo da filosofia hegeliana. Advertências prévias • Diante das dificuldades enfrentadas por todos na leitura da obra Fenomenologia do espírito, este primeiro objetivo será mantido e a ele será somado, na sequência, um mergulho na introdução e nos dois primeiros capítulos da obra em questão, com apoio na bibliografia complementar, para observar as categorias da dialética hegeliana “em ação”. Advertências prévias • O recorte se justifica porque, no dizer de Kojéve, “não é possível compreender a Fenomenologia do espírito se não forem percebidas suas articulações dialéticas”, as quais “raramente são explicitadas pelo próprio Hegel”. Assim, além de “começar pelo início”, sem pressuposições, por assim dizer, como faria o próprio Hegel em sua Ciência da lógica, a exposição deste trecho preparará o terreno para as duas aulas seguintes, que demandarão uma compreensão profunda da sequência da obra, especificamente os capítulo III e IV, que serão trabalhados pelo Prof. Marcus ao lidar com o direito e os direitos humanos em Hegel. A reação hegeliana a Kant • Hegel propõe uma ruptura epistemológica com o pensamento kantiano baseada, principalmente, em dois pontos intrinsecamente ligados: 1. Fim da separação radical entre sujeito e objeto, que passam a ser tratados como uma unidade dialética – mudança da perspectiva científica do indivíduo para a humanidade (noção relevante para a compreensão do individualismo metodológico e de sua oposição). 2. Fim da noção de aporia, por meio da assunção da contradição como base da formulação do pensamento – fundamento do método dialético, que elimina a possibilidade de existência do incognoscível a partir das unidades dos contrários (a contradição deixa de ser um limite do conhecimento e passa a ser seu motor). A reação hegeliana a Kant • “A filosofia kantiana opõe pura e simplesmente, a esse empirismo, o princípio do pensar e da liberdade, e se junta ao primeiro empirismo sem sair, por menos que seja, do princípio geral desse. Um dos lados do seu dualismo continua sendo o mundo da percepção, e do entendimento que sobre ele reflete. Esse mundo, na verdade, é dado como um mundo de fenômenos. Contudo é isso um mero título, uma determinação apenas formal, porque a fonte, o conteúdo e o modo de considerar permanecem completamente os mesmos. O outro lado, ao contrário, é a autonomia do pensar que se compreende (a si mesmo), o princípio da liberdade, que a filosofia kantiana tem em comum com a metafísica ordinária de antes; mas que esvazia de todo o conteúdo e não lhe pode conseguir de novo nenhum conteúdo. Esse pensar – aqui denominado razão –, enquanto destituído de toda a determinação, está despojado de toda a autoridade. O efeito principal que teve a filosofia kantiana foi ter despertado a consciência dessa absoluta interioridade; que embora – por causa de sua abstração, sem dúvida – não pudesse, em direção a nada, desenvolver-se a partir de si mesma, nem produzir nenhuma determinação, nem conhecimentos nem leis morais, recusa-se absolutamente a deixar agir e ter valor nela qualquer coisa que tenha o caráter de uma exterioridade. O princípio da independência da razão, de sua absoluta autonomia em si mesma, deve ser considerado de agora em diante como princípio universal da filosofia, e também como um dos preconceitos da época”. (HEGEL, George W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. V. I. São Paulo: Loyola, 1995, p. 136). A reação hegeliana a Kant • “Como já se mencionou na nota do parágrafo anterior, embora a indicação das antinomias deva considerar-se um progresso muito importante do conhecimento filosófico, pois assim se descartou o dogmatismo rígido da metafísica-do-entendimento, e se chamou atenção para o movimento dialético do pensar, é preciso ao mesmo tempo notar, sobre esse ponto, que Kant também aqui ficou no resultado simplesmente negativo da incognoscibilidade do Em-si das coisas, e não penetrou até o conhecimento da verdadeira e positiva significação das antinomias”. (HEGEL, George W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. V. I. São Paulo: Loyola, 1995, p. 121). A origem da lógica • Pensar sem pressuposições: a busca por uma lógica autofundamentada e a radicalização do racionalismo • O ser puro e sua dupla natureza: a contradição determinada A origem da lógica • A questão da razão e de sua “pureza”: “Outrora tinham um céu dotado de vastos tesouros de pensamentos e imagens. A significação de tudo que existe estava no fio de luz que o unia ao céu; então, em vez de permanecer neste [mundo] presente, o olhar deslizava além, rumo à essência divina: a uma presença no além – se assim se pode dizer. O olhar do espírito somente à força poderia ser dirigido ao terreno e ali mantido. Muito tempo se passou antes de se introduzir na obtusidade e perdição em que jazia o sentido deste mundo, a claridade que só o outro mundo possuía; para tomar o presente, como tal, digno do interesse e da atenção que levam o nome de experiência. Agora parece haver necessidade do contrário: o sentido está tão enraizado no que é terreno, que se faz mister uma força igual para erguê-lo dali. O espírito se mostra tão pobre que parece aspirar, para seu reconforto, ao mísero sentimento do divino em geral – como um viajante no deserto anseia por uma gota d’água. Pela insignificância daquilo com que o espírito se satisfaz pode-se medir a grandeza do que perdeu”. (HEGEL, George W. F. Fenomenologia do Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 27). O funcionamento da lógica • A ideia de crítica imanente: “Do mesmo modo, a determinação das relações que uma obra filosófica julga ter com outras sobre o mesmo objeto introduz um interesse estranho e obscurece o que importa ao conhecimento da verdade. Com a mesma rigidez com que a opinião comum se prende à oposição entre o verdadeiro e o falso, costuma também cobrar, ante um sistema filosófico dado, uma atitude de aprovação ou de rejeição. Acha que qualquer esclarecimento a respeito do sistema só pode ser uma ou outra. Não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como desenvolvimento progressivo da verdade, mas só vê na diversidade a contradição”. (HEGEL, George W. F. Fenomenologia do Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 23-24). O funcionamento da lógica • A verdade como processo: “Como eu poderia supor que o método que persigo nesse sistema da lógica – ou melhor, que esse sistema persegue nele mesmo – não seria ainda capaz de maior aperfeiçoamento, de muita lapidação quanto aos detalhes? Mas ao mesmo tempo sei que ele é o único veraz. Isso já fica claro pelo fato de que ele não é nada distinto de seu objeto e conteúdo; – pois é o conteúdo em si, a dialética que ele tem nele mesmo que o move para frente. É claro que nenhuma exposição pode valer como científica se ela não percorre o caminho desse método e se não é adequada ao seu ritmo simples, pois é o percurso da questão mesma”. (HEGEL, George W.F. Ciência da lógica: excertos. São Paulo: Barcarolla, 2011, p. 34). O funcionamento da lógica • A contradição e a negação: “A única coisa para alcançar a progressão científica – e em vista de cuja intelecção inteiramente simples é necessário se empenhar de modo essencial – é o conhecimento do enunciado lógico de que o negativo é igualmente positivo ou que o que se contradiz não se dissolve no que é nulo, no nada abstrato, mas essencialmente apenas na negação de seu conteúdo particular ou que uma tal negação não é toda negação, e sim a negação da questão determinada que se dissolve, com o que é negação determinada; que, portanto, no resultado está contido essencialmente aquilo do qual resulta – o que é propriamente uma tautologia, pois de outro modo seria um imediato, não um resultado. Na medida em que o que resulta, a negação, é negação determinada, ela possui um conteúdo. Ela é um novo conceito, mas conceito mais elevado, mais rico do que o precedente; pois ela se tornou mais rica devido a essa negação ou oposição; ela, portanto, o contém, mas também mais do que ele, e é a unidade dele e do seu oposto. – Nesse caminho tem de se formar em geral o sistema dos conceitos – e se consumir em um percurso irresistível, puro, que não traz nada de fora para dentro”. (HEGEL, George W.F. Ciência da lógica: excertos. São Paulo: Barcarolla, 2011, pp. 34). O funcionamento da lógica • Ainda a contradição e a negação – o exemplo da planta: “O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. E essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo. Mas a contradição de um sistema filosófico não costuma conceber-se desse modo; além disso, a consciência que apreende essa contradição não sabe geralmente libertá-la - ou mantê-la livre - de sua unilateralidade; nem sabe reconhecer no que aparece sob a forma de luta e contradição contra si mesmo, momentos mutuamente necessários”. (HEGEL, George W. F. Fenomenologia do Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 23-24). O funcionamento da lógica • A reunificação de realidade e consciência em unidade dialética: “Nos tempos modernos, ao contrário, o indivíduo encontra a forma abstrata pronta. O esforço para apreendê-la e fazê-la sua é mais o jorrar-para-fora, não-mediatizado, do interior, e o produzir abreviado do universal, em vez de ser um brotar do universal a partir do concreto e da variedade do ser-aí. Por isso o trabalho atualmente não consiste tanto em purificar o indivíduo do modo sensível imediato, e em fazer dele uma substância pensada e pensante; consiste antes no oposto: mediante o suprassumir dos pensamentos determinados e fixos, efetivar e espiritualizar o universal. No entanto é bem mais difícil levar à fluidez os pensamentos fixos, que o ser-aí sensível. O motivo foi dado acima: aquelas determinações têm por substância e por elemento de seu ser-aí o Eu, a potência do negativo ou a efetividade pura; enquanto as determinações sensíveis têm apenas a imediatez abstrata impotente, ou o ser como tal. Os pensamentos se tomam fluidos quando o puro pensar, essa imediatez interior, se reconhece como momento; ou quando a pura certeza de si mesmo abstrai de si. Não se abandona, nem se põe de lado; mas larga o [que há de] fixo em seu pôrse a si mesma – tanto o fixo do concreto puro, que é o próprio Eu em oposição ao conteúdo distinto, quanto o fixo das diferenças, que postas no elemento do puro pensar partilham dessa incondicionalidade do Eu. Mediante esse movimento, os puros pensamentos se tornam conceitos, e somente então eles são o que são em verdade: automovimentos, círculos. São o que sua substância é: essencialidades espirituais”. (HEGEL, George W. F. Fenomenologia do Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 42). A fenomenologia e sua posição na obra de Hegel • “Daí porque muitos comentadores insistiram que a Fenomenologia do Espírito seria na verdade um palimpsesto: um livro no qual encontramos dois livros distintos, ou melhor, o abandono progressivo de um livro e a constituição de um outro. Pois um dos resultados será que a “Introdução” é introdução a um projeto que, de uma certa maneira, fracassará, enquanto o “Prefácio” dirá respeito a um outro livro que acabou se impondo” (SAFATLE, p. 13). A fenomenologia e sua posição na obra de Hegel • “Daí porque muitos comentadores insistiram que a Fenomenologia do Espírito seria na verdade um palimpsesto: um livro no qual encontramos dois livros distintos, ou melhor, o abandono progressivo de um livro e a constituição de um outro. Pois um dos resultados será que a “Introdução” é introdução a um projeto que, de uma certa maneira, fracassará, enquanto o “Prefácio” dirá respeito a um outro livro que acabou se impondo” (SAFATLE, p. 13). A fenomenologia e sua posição na obra de Hegel • A Fenomenologia deixa de ser uma introdução à Lógica, em sua primeira formulação (refletida inclusive em seu título primitivo) para ser uma parte da filosofia do Espírito na formulação final da Enciclopédia (KOJÈVE, p. 35). A fenomenologia e sua posição na obra de Hegel • A formulação da enciclopédia foi repetidamente colocada por Hegel como inadequada, de modo que se deve ponderar a pertinência de colocar a Fenomenologia como parte do sistema da Enciclopédia. “A decisão hegeliana de realizar uma nova edição da Fenomenologia, trabalho que não foi realizado devido à morte de Hegel, apenas demonstra que a Fenomenologia do Espírito continuava como peça fundamental do projeto filosófico hegeliano. E se sabemos da intenção de Hegel em retirar do título: ‘Sistema da ciência. Primeira parte’ é porque a Fenomenologia já nos fornece um sistema de apresentação da ciência que é autônomo em relação a um ‘sistema enciclopédico’” (SAFATLE, p. 40). A fenomenologia e sua posição na obra de Hegel • Daí Heidegger ter dito que “o espírito não é o objeto da fenomenologia, nem ‘fenomenologia’ é o título de uma pesquisa e de uma ciência sobre algo, como o espírito, por exemplo, mas a Fenomenologia é a modalidade (e não apenas um modo dentre outros) segundo a qual o espírito é” (apud SAFATLE, p. 41). • Daí também a conclusão de Safatle de que a gramática fundada sem a necessidade do entendimento, destruído pela Fenomenologia na forma de uma “gramática da finitude”, é a Lógica, não a Enciclopédia. A introdução à fenomenologia • Tornou-se uma introdução apenas em publicações póstumas. No texto original, tratava-se de um comentário ao primitivo título da obra: Ciência da experiência da consciência. • Constitui propriamente o início do projeto da fenomenologia: partir do “nível da ‘representação natural’, ou seja, do que se apresentava em seu tempo como uma evidência ao saber filosófico” (SAFATLE, p. 42) e desenvolver suas contradições, à maneira da crítica imanente. Todo o restante da obra constituirá, afinal, um desdobramento desta crítica imanente e sua distensão até seu limite, em que a distinção entre o em si e o para nós desaparece (KOJÈVE, p. 538). A introdução à fenomenologia • “Não é segredo para ninguém que, quando Hegel fala da representação do conhecimento como instrumento, ele tem em mente a filosofia crítica kantiana e sua compreensão de que a submissão necessária do objeto ao sujeito cognoscente é, na verdade, submissão dos fenômenos às categorias do entendimento” (SAFATLE, p. 42). Trata-se, portanto, de formular uma crítica imanente da filosofia kantiana. A introdução à fenomenologia • Conhecimento como instrumento que serve para apoderar-se do absoluto ou meio pelo qual o absoluto é contemplado gera algumas dificuldades, já que tanto o instrumento quanto o meio passivo modelam e alteram a coisa, não a deixando tal como é para si, e propor-se a conhecer o modo de atuação do instrumento ou meio para descontá-lo do resultado devolve ao ponto de partida e é absolutamente ineficaz A introdução à fenomenologia • O medo de errar constitui o próprio erro, porque pressupõe representações do conhecimento como instrumento e meio, a diferença entre nós e o conhecimento e a separação entre o absoluto e o conhecimento como algo para si e real. A pressuposição de tais representações é consequência da identificação entre absoluto e verdadeiro, que ignora a possibilidade de outra verdade para o conhecimento. As aparências do saber em sua relação com a ciência levam à necessidade de abordar a exposição do saber tal e como se manifesta. A introdução à fenomenologia • A exposição do saber que se manifesta não é ciência livre, mas o caminho da consciência natural (que é conceito do saber e não saber real) que pugna por chegar ao verdadeiro saber. Esse é o caminho negativo da perda de si mesma, da dúvida, do desespero, a penetração consciente na não verdade do saber que se manifesta. Autoridade e autoconvencimento não se distinguem. O ceticismo sobre a manifestação da consciência permite desesperar das representações, pensamentos e opiniões naturais. A exposição da consciência não verdadeira em sua não verdade não é um movimento puramente negativo: o ceticismo que vê em seu resultado o puro nada abstrai que ele determina o nada de que resulta, sendo, portanto, resultado verdadeiro, determinado e com conteúdo, uma negação determinada. A meta está implícita no processo. A morte é o ser empurrado de seu lugar por outro, já que a vida natural não pode por si mesma ir além de sua existência imediata. A introdução à fenomenologia • A consciência impõe a si mesma a violência de ir além de si mesma (morte) por ser para si seu conceito, o que pode levá-la a voltarse a si e bastar-se com o entendimento. O método do desenvolvimento é o comportamento da ciência para o saber tal como se manifesta e como investigação e exame da realidade do conhecimento. Isso parece demandar um ponto de partida (essência ou em si). E eliminação dessa contradição injustificável demanda um exame das determinações abstratas do saber e da verdade tal como se dão na consciência. A introdução à fenomenologia • A consciência distingue de si algo com que se relaciona. Ela é algo para si mesma e se relaciona com algo que é para ela, o saber. O que se refere ao saber (ser para a consciência, ser para outro) é distinto dele e se põe como o que é fora da relação (ser em si), a verdade. Na investigação da verdade do saber, parece que o investigamos em si, mas o investigamos para nós. O que afirmamos como sua essência não é sua verdade, mas apenas nosso saber acerca dele. A essência estaria em nós. A natureza do saber enquanto objeto desfaz a aparência de separação, porque a consciência dá sua própria pauta, compara-se consigo mesma. "Há nela um para outro, ou bem há nela, em geral, a determinabilidade do momento do saber; e, ao mesmo tempo, este outro não é somente para ela, mas é também fora dessa relação, é em si: o momento da verdade. Assim, pois, no que a consciência declara dentro de si como o em si ou o verdadeiro temos a pauta que ela mesma estabelece para medir por ela seu saber“ (p. 57). Há, portanto, uma indiferença do que é conceito e do que é objeto, o essencial é perceber que os dois momento estão no saber que investigamos, o que leva à desnecessidade de pauta ou de pensamentos e ideias pessoais. A introdução à fenomenologia • Nossa intervenção é supérflua não apenas porque conceito e objeto estão na própria consciência, mas também em seu esforço de comparação, já que se a consciência encontra uma não correspondência entre saber e objeto, tanto um como outro não se sustentam. "Este movimento dialético que a consciência leva a cabo em si mesma, tanto em seu saber como em seu objeto, enquanto brota diante dela o novo objeto verdadeiro, é propriamente o que se chamará experiência". "A consciência sabe algo, e este objeto é a essência ou o em si, mas este é também o em si para a consciência, com o que aparece a ambiguidade deste algo verdadeiro“ (p. 58). A introdução à fenomenologia • Ser para a consciência do em si é o verdadeiro (essência, objeto) que contem a anulação do primeiro objeto, é a experiência feita sobre ele. Parece que a experiência da não verdade do primeiro objeto se faz "em outro objeto com o qual nos encontramos de modo contingente e puramente externo“ (p. 59), de modo que se dê em nós a pura apreensão do que é em si e para si. Essa é uma aparência falsa, porque o segundo objeto se revela como algo que chegou a ser por meio de uma inversão da própria consciência. Graças a esse modo de considerar se eleva a série das experiências da consciência a processo científico. Trata-se da mesma circunstância segundo a qual a negação do saber não verdadeiro é determinada, não vazia, e portanto contém o que o saber anterior encerra de verdadeiro. A introdução à fenomenologia • O processo que cria o segundo objeto da consciência aparece para ela como dado, mas "para nós" como movimento e vir a ser. "Esta necessidade faz que este caminho para a ciência seja já ele mesmo ciência e seja, por isso, quanto a seu conteúdo, a ciência da experiência da consciência“ (p. 60). A experiência da consciência sobre si compreende a totalidade do reino da verdade do espírito, de modo que os momento da verdade se apresentam tal e como são para a consciência e ou como ela aparece em sua relação com eles: os momentos do todo são figuras da consciência. Sua exposição leva ao ponto da autêntica ciência do espírito: manifestação igual à essência, indicação da natureza do próprio saber absoluto. I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • Saber é saber imediato. Devemos manter diante dele um comportamento imediato ou receptivo, isto é, não alterar nada nele tal como se oferece e manter a apreensão separada da concepção. A certeza sensível manifesta-se como o conhecimento mais rico e infinito, o mais verdadeiro, por ter a plenitude do objeto, mas é a verdade mais abstrata e mais pobre, pois contém apenas o ser da coisa: eu, este, isto. No saber sensível, é o puro ser, a imediatez, que constitui a verdade da coisa. A certeza, como relação, é uma relação imediata. I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • A certeza sensível não é imediatez pura, mas o eu e a coisa são mediados um pelo outro. A diferença entre a essência da certeza sensível (o ser puro) e seu exemplo (a certeza sensível real) não é estabelecida por nós, mas encontrada na própria certeza sensível. Há dois momentos na certeza sensível: o objeto, que está posto como o que é de modo simples e imediato, a essência; e o saber, não essencial e mediato, que não é em si, mas por meio de um outro, o eu. O saber pode ser ou não ser (não será se o objeto não for), mas o objeto é independentemente de ser sabido. É necessário considerar o objeto para ver se ele é na própria certeza sensível uma essência, se seu conceito de ser essência corresponde a como se encontra na certeza sensível. I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • A inserção do tempo e do espaço na certeza sensível (o agora e o aqui do isto) revela a negatividade que a caracteriza: o agora é e não é dia e noite. "O agora que é noite se conserva, isto é, se lhe trata como aquilo pelo qual se faz passar, como algo que é; mas se mostra antes como algo que não é. O agora mesmo se mantém, sem dúvida, mas como algo que não é noite; e assim mesmo se mantém com respeito ao dia que agora é como algo que não é tampouco dia ou como algo negativo em geral. Portanto, este agora que se mantém não é algo imediato, mas algo mediado, pois é determinado como algo que permanece e se mantém pelo fato de que um outro, a saber, o dia e a noite, não é. O que não impede que continue sendo, tão simplesmente como antes, o agora e que seja, nesta simplicidade, indiferente ao que segue acontecendo em volta dele; do mesmo modo que a noite e o dia não são seu ser, tampouco ele é dia ou noite, não lhe afeta para nada este seu ser outro. A este algo simples, que é por meio da negação, que não é isto nem aquilo, chamamos um universal; o universal é, pois, o verdadeiro da certeza sensível“ (p. 64-65). I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • O sensível também é enunciado (mas não representado) como um universal. Daí que a linguagem, que é o mais verdadeiro, expressa o universal e não é de modo algum possível expressar o ser sensível que supomos (visamos). O mesmo se dá com o aqui (espaço). "Esta certeza sensível, ao mostrar nela mesma o universal como a verdade de seu objeto, permanece, portanto, o ser puro como sua essência, mas não como algo imediato, senão como algo ao qual é essencial a negação e a mediação e, por conseguinte, não como o que nós supomos como o ser, mas como o ser determinado com a abstração ou o universal puro; e nossa suposição, para a qual o verdadeiro da certeza sensível não é o universal, é tudo que resta frente a este agora e aqui vazios e indiferentes“ (p. 65). Isso inverte os termos da relação entre saber e objeto na certeza sensível: o objeto essencial passa a estar no saber, na suposição: "é porque eu sei dele“ (p. 66). I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • A certeza sensível carrega uma verdade relativa: cada eu singular afirma uma verdade que possui a mesma legitimidade do ver, mas uma desaparece na outra. O que não desaparece é o eu como universal. Não podemos dizer o que supomos no aqui, no agora e tampouco no eu: dizer um singular é dizer um universal. É impossível dizer o singular. I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • Essência e imediatez da certeza sensível não estão nem no objeto nem no eu: apenas a totalidade da certeza, e não seus momentos, é sua essência. "Sua verdade se mantém como uma relação que permanece igual a si mesma, que não estabelece entre o eu e o objeto diferença alguma a respeito do essencial e do não essencial e na qual, portanto, não pode tampouco penetrar nenhuma diferença“ (p. 67). A certeza sensível de cada eu singular exige que nós nos coloquemos no mesmo ponto de tempo e espaço que ele. Não há sentido nessa verdade afastado do eu no tempo e espaço, pois fica superada a imediatez que lhe é essencial. I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • Trajetória do movimento da indicação: "1) Indico o agora, que se afirma como o verdadeiro, mas o indico como algo que foi, ou como algo superado, com o que supero a primeira verdade. 2) Agora, afirmo como a segunda verdade que o que foi está superado. 3) Mas o que foi não é; supero o que foi ou o ser superado, ou seja, a segunda verdade, negando com isso a negação do agora e retornando assim à primeira afirmação: o agora é. O agora e a indicação do agora estão constituídos, pois, de tal modo que nem o agora nem a indicação do agora são algo imediatamente simples, mas um movimento que leva em si momentos distintos; se põe o isto, mas o que se põe é antes um outro ou o isto é superado; e este ser outro ou superação do primeiro é novamente superado, por sua vez, retornando-se assim ao primeiro. Mas este primeiro refletido em si não é exatamente o mesmo que primeiramente era, isto é, algo imediato, mas é cabalmente algo refletido em si ou algo simples, que permanece no ser outro o que é: um agora que é absolutamente muito agora; e isto é o verdadeiro agora“ (p. 68). I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • É surpreendente que se apresente como experiência universal ou como resultado do ceticismo que a realidade das coisas exteriores tem verdade absoluta para a consciência. Tal afirmação sustenta o contrário do que pretende. A certeza da realidade dos objetos sensíveis cede diante de seu aniquilamento por seu consumo (até pelos animais). I - A certeza sensível ou o isto e a suposição • O isto sensível, que é suposto (visado) é inatingível pela linguagem, que pertence à consciência, ao universal em si. "Se dizemos de algo que é uma coisa real, um objeto externo, dizemos somente o mais universal de tudo, e deste modo enunciamos antes sua igualdade com tudo que sua diferença. Se digo uma coisa singular, a digo antes como totalmente universal, pois tudo é uma coisa singular; igualmente esta coisa é tudo que se quiser“ (p. 70). Tanto no falar como no indicar a suposição (visada) é invertida no universal e, assim, a coisa é apreendida tal como é em verdade e, em vez de saber algo imediato, eu o percebo (apreendo verdadeiramente). II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • "A certeza imediata (sensível) não se apossa do verdadeiro, pois sua verdade é o universal; mas quer captar o isto. A percepção, pelo contrário, capta como universal o que para ela é o que é. E sendo a universalidade seu princípio em geral o são também os momentos que de um modo imediato se distinguem nela: o eu e o objeto são universais“ (p. 71). A apreensão da certeza sensível é aparente, fenomenal, se manifesta; a da percepção é necessária. O movimento e o objeto são a mesma coisa. O movimento é o desdobramento dos momentos, o objeto é sua reunião, o movimento é a percepção (contingente e não essencial), o objeto é a essência que é indiferente a ser ou não percebida. II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • "A superação apresenta sua verdadeira dupla significação, que vimos no negativo: é ao mesmo tempo um negar e um manter (conservar); o nada, como nada disto, mantém (conserva) a imediatez e é ele mesmo sensível, mas é uma imediatez universal“ (p. 72). A coisidade, ou a pura essência, é o meio universal em que coexistem lado a lado, para si e sem se tocar (relacionando-se consigo mesmas), as múltiplas propriedades (determinações) do ser. II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • A coisa é o verdadeiro da percepção: "É a universalidade passiva indiferente, o também das múltiplas propriedades ou matérias, a negação como o simples ou o uno, a exclusão das propriedades contrapostas, e as múltiplas propriedades mesmas, a relação entre os dois primeiros momentos” (p. 73). Sendo a coisa, assim, constituída o objeto da percepção e puramente apreendida, a consciência não acrescenta ou omite nada e portanto há o risco da ilusão, de que o percipiente é consciente. II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • "O objeto que eu capto se oferece como puramente uno, mas eu descubro também nele a propriedade que é universal, mas que, por sê-lo, ultrapassa a singularidade. Portanto, o primeiro ser da essência do objeto como uno não era seu verdadeiro ser; e, sendo o objeto o verdadeiro, a nãoverdade recai em mim, e a apreensão não era correta. A universalidade da propriedade me obriga a captar a essência do objeto antes como uma comunidade em geral. Percebo, ademais, a propriedade como determinada, contraposta a outra e que a exclui. Portanto, não apreendia corretamente a essência do objeto quando a determinava como uma unidade com outras ou como a continuidade, e devo antes, graças à determinabilidade da propriedade, separar a continuidade e pôr aquela essência como uno excludente. No uno separado encontro muitas propriedades destas que não se afetam umas às outras, mas que são indiferentes entre si, portanto, não percebia corretamente o objeto quando o apreendia como excludente, mas que assim como antes somente era continuidade em geral, agora é um meio comum universal em que muitas propriedades, como universalidades sensíveis, são cada uma para si e, como determinadas, excluem às outras. Mas, ainda com isto, o simples e o verdadeiro que eu percebo não é tampouco um meio universal, mas a propriedade singular para si, mas que assim não é nem propriedade nem um ser determinado; pois agora não é no uno nem tampouco em relação com outros. Mas propriedade só é no uno, e determinada somente em relação com outros. Como este puro relacionar-se consigo mesma, já não tem em si o caráter da negatividade, permanece somente como ser sensível em geral; e a consciência para a qual agora há um ser sensível somente é um supor, isto é, saiu completamente da percepção e retornou a si mesma. Mas o ser sensível e o supor formam-se eles mesmos na percepção; eu me vejo repelido para o ponto de partida e arrastado de novo ao mesmo ciclo, que se supera em cada um de seus momentos e como totalidade“ (p. 74-75). II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • O novo percurso do ciclo não é feito do mesmo modo, em razão da experiência. A percepção não é pura apreensão, porque na apreensão a consciência se reflete dentro de si partindo do verdadeiro, o que o transforma. Objeto, entretanto, mantém-se puro, de modo que a consciência é empurrada sobre si mesmo como na certeza sensível, mas com uma diferença central no tocante à verdade: "não no sentido em que ali acontecia, como se a verdade do perceber recaísse nele, mas, ao contrário, o perceber reconhece que o que recai nele é a não verdade ali presente. Agora, através deste conhecimento a consciência é, ao mesmo tempo, capaz de superar essa não verdade; distingue sua apreensão do verdadeiro da novidade de seu perceber, corrige este e, quando empreende ela mesma esta retificação, recai nela, evidentemente, a verdade como verdade do perceber“ (p. 75). • O exemplo do sal em si e para a consciência. II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • Não só a apreensão, mas a própria coisa, apresenta-se à consciência de modo duplo como apreensão e retorno a si mesma. • O ser para si e também para o outro da coisa, sua duplicidade, contradiz sua unidade. Essa contradição distribui-se em coisas diversas, mas nem por isso deixa de dar-se a diferença na coisa singular e separada. Cada coisa se determina como algo diferente, não de si mesma, mas das outras coisas. A determinação oposta é o essencial, e a múltipla variedade o não essencial. II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • "Essa determinabilidade, que constitui o caráter essencial da coisa e a distingue de todas as outras se determina agora de modo que a coisa se encontra assim em contraposição às outras, pois nesta relação se põe antes como a conexão com o outro, e a conexão com o outro é o cessar do ser para si. É precisamente por meio de seu caráter absoluto e de sua contraposição como a coisa se comporta diante das outras e somente é, essencialmente, esse comportar-se; mas o comportar-se é a negação de sua independência, e a coisa se derruba antes por meio de sua propriedade essencial“ (p. 78-79). II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • A determinidade essencial é a negação de si mesma, o ter sua essência num outro. A diversidade é inessencial, mas por ser também necessária, é também a negação de si mesma: não há inessencial que seja necessário. Com isso se esvai a separação do ser para si e do ser para outro. Unidade de ser para si e ser para outro apresenta a universalidade absoluta incondicionada em que a consciência entra verdadeiramente pela primeira vez no reino do entendimento. II - A percepção, ou a coisa e a ilusão • "Estas abstrações vazias da singularidade e da universalidade contraposta a ela, assim como da essência enlaçada a algo não essencial, e de um algo não essencial que é, ao mesmo tempo, sem embargo, necessário, são as potências como jogo é o entendimento humano percipiente, que com frequência se chama o bom senso (senso comum)“ (p. 80). O entendimento toma os momentos da verdade como a verdade.