Introdução ao pensamento de
Hegel e à leitura da
Fenomenologia. A dialética
hegeliana: possibilidades e
limites de sua ruptura com
Kant e sua relação com o
idealismo.
Flávio Roberto Batista
Advertências prévias
• O foco da presente aula, originalmente,
conforme consta do programa, seria uma
apresentação das principais categorias
que organizam o pensamento hegeliano e,
especialmente do conteúdo de sua reação
a Kant e das razões pela qual essa reação
não elimina o idealismo da filosofia
hegeliana.
Advertências prévias
• Diante das dificuldades enfrentadas por
todos na leitura da obra Fenomenologia
do espírito, este primeiro objetivo será
mantido e a ele será somado, na
sequência, um mergulho na introdução e
nos dois primeiros capítulos da obra em
questão, com apoio na bibliografia
complementar,
para
observar
as
categorias da dialética hegeliana “em
ação”.
Advertências prévias
• O recorte se justifica porque, no dizer de Kojéve, “não
é possível compreender a Fenomenologia do espírito
se não forem percebidas suas articulações dialéticas”,
as quais “raramente são explicitadas pelo próprio
Hegel”. Assim, além de “começar pelo início”, sem
pressuposições, por assim dizer, como faria o próprio
Hegel em sua Ciência da lógica, a exposição deste
trecho preparará o terreno para as duas aulas
seguintes, que demandarão uma compreensão
profunda da sequência da obra, especificamente os
capítulo III e IV, que serão trabalhados pelo Prof.
Marcus ao lidar com o direito e os direitos humanos
em Hegel.
A reação hegeliana a Kant
• Hegel propõe uma ruptura epistemológica com o
pensamento kantiano baseada, principalmente, em
dois pontos intrinsecamente ligados:
1.
Fim da separação radical entre sujeito e objeto,
que passam a ser tratados como uma unidade
dialética – mudança da perspectiva científica do
indivíduo para a humanidade (noção relevante
para
a
compreensão
do
individualismo
metodológico e de sua oposição).
2.
Fim da noção de aporia, por meio da assunção da
contradição como base da formulação do
pensamento – fundamento do método dialético,
que elimina a possibilidade de existência do
incognoscível a partir das unidades dos contrários
(a contradição deixa de ser um limite do
conhecimento e passa a ser seu motor).
A reação hegeliana a Kant
•
“A filosofia kantiana opõe pura e simplesmente, a esse empirismo, o
princípio do pensar e da liberdade, e se junta ao primeiro empirismo sem
sair, por menos que seja, do princípio geral desse. Um dos lados do seu
dualismo continua sendo o mundo da percepção, e do entendimento que
sobre ele reflete. Esse mundo, na verdade, é dado como um mundo de
fenômenos. Contudo é isso um mero título, uma determinação apenas
formal, porque a fonte, o conteúdo e o modo de considerar permanecem
completamente os mesmos. O outro lado, ao contrário, é a autonomia do
pensar que se compreende (a si mesmo), o princípio da liberdade, que a
filosofia kantiana tem em comum com a metafísica ordinária de antes; mas
que esvazia de todo o conteúdo e não lhe pode conseguir de novo nenhum
conteúdo. Esse pensar – aqui denominado razão –, enquanto destituído de
toda a determinação, está despojado de toda a autoridade. O efeito
principal que teve a filosofia kantiana foi ter despertado a consciência
dessa absoluta interioridade; que embora – por causa de sua abstração,
sem dúvida – não pudesse, em direção a nada, desenvolver-se a partir de
si mesma, nem produzir nenhuma determinação, nem conhecimentos nem
leis morais, recusa-se absolutamente a deixar agir e ter valor nela qualquer
coisa que tenha o caráter de uma exterioridade. O princípio da
independência da razão, de sua absoluta autonomia em si mesma, deve
ser considerado de agora em diante como princípio universal da filosofia, e
também como um dos preconceitos da época”. (HEGEL, George W. F.
Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. V. I. São Paulo:
Loyola, 1995, p. 136).
A reação hegeliana a Kant
• “Como já se mencionou na nota do parágrafo
anterior, embora a indicação das antinomias
deva considerar-se um progresso muito
importante do conhecimento filosófico, pois
assim se descartou o dogmatismo rígido da
metafísica-do-entendimento, e se chamou
atenção para o movimento dialético do pensar, é
preciso ao mesmo tempo notar, sobre esse
ponto, que Kant também aqui ficou no resultado
simplesmente negativo da incognoscibilidade do
Em-si das coisas, e não penetrou até o
conhecimento da verdadeira e positiva
significação das antinomias”. (HEGEL, George
W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em
compêndio. V. I. São Paulo: Loyola, 1995, p.
121).
A origem da lógica
• Pensar sem pressuposições: a busca por
uma lógica autofundamentada e a
radicalização do racionalismo
• O ser puro e sua dupla natureza: a
contradição determinada
A origem da lógica
• A questão da razão e de sua “pureza”: “Outrora tinham um céu
dotado de vastos tesouros de pensamentos e imagens. A
significação de tudo que existe estava no fio de luz que o unia ao
céu; então, em vez de permanecer neste [mundo] presente, o olhar
deslizava além, rumo à essência divina: a uma presença no além –
se assim se pode dizer. O olhar do espírito somente à força poderia
ser dirigido ao terreno e ali mantido. Muito tempo se passou antes
de se introduzir na obtusidade e perdição em que jazia o sentido
deste mundo, a claridade que só o outro mundo possuía; para
tomar o presente, como tal, digno do interesse e da atenção que
levam o nome de experiência. Agora parece haver necessidade do
contrário: o sentido está tão enraizado no que é terreno, que se faz
mister uma força igual para erguê-lo dali. O espírito se mostra tão
pobre que parece aspirar, para seu reconforto, ao mísero
sentimento do divino em geral – como um viajante no deserto
anseia por uma gota d’água. Pela insignificância daquilo com que o
espírito se satisfaz pode-se medir a grandeza do que perdeu”.
(HEGEL, George W. F. Fenomenologia do Espírito. 8ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1992, p. 27).
O funcionamento da lógica
• A ideia de crítica imanente: “Do mesmo modo, a
determinação das relações que uma obra
filosófica julga ter com outras sobre o mesmo
objeto introduz um interesse estranho e obscurece
o que importa ao conhecimento da verdade. Com
a mesma rigidez com que a opinião comum se
prende à oposição entre o verdadeiro e o falso,
costuma também cobrar, ante um sistema
filosófico dado, uma atitude de aprovação ou de
rejeição. Acha que qualquer esclarecimento a
respeito do sistema só pode ser uma ou outra.
Não concebe a diversidade dos sistemas
filosóficos como desenvolvimento progressivo da
verdade, mas só vê na diversidade a contradição”.
(HEGEL, George W. F. Fenomenologia do
Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 23-24).
O funcionamento da lógica
• A verdade como processo: “Como eu poderia
supor que o método que persigo nesse sistema da
lógica – ou melhor, que esse sistema persegue
nele mesmo – não seria ainda capaz de maior
aperfeiçoamento, de muita lapidação quanto aos
detalhes? Mas ao mesmo tempo sei que ele é o
único veraz. Isso já fica claro pelo fato de que ele
não é nada distinto de seu objeto e conteúdo; –
pois é o conteúdo em si, a dialética que ele tem
nele mesmo que o move para frente. É claro que
nenhuma exposição pode valer como científica se
ela não percorre o caminho desse método e se
não é adequada ao seu ritmo simples, pois é o
percurso da questão mesma”. (HEGEL, George
W.F. Ciência da lógica: excertos. São Paulo:
Barcarolla, 2011, p. 34).
O funcionamento da lógica
• A contradição e a negação: “A única coisa para alcançar a
progressão científica – e em vista de cuja intelecção inteiramente
simples é necessário se empenhar de modo essencial – é o
conhecimento do enunciado lógico de que o negativo é igualmente
positivo ou que o que se contradiz não se dissolve no que é nulo, no
nada abstrato, mas essencialmente apenas na negação de seu
conteúdo particular ou que uma tal negação não é toda negação, e
sim a negação da questão determinada que se dissolve, com o que
é negação determinada; que, portanto, no resultado está contido
essencialmente aquilo do qual resulta – o que é propriamente uma
tautologia, pois de outro modo seria um imediato, não um resultado.
Na medida em que o que resulta, a negação, é negação
determinada, ela possui um conteúdo. Ela é um novo conceito, mas
conceito mais elevado, mais rico do que o precedente; pois ela se
tornou mais rica devido a essa negação ou oposição; ela, portanto,
o contém, mas também mais do que ele, e é a unidade dele e do
seu oposto. – Nesse caminho tem de se formar em geral o sistema
dos conceitos – e se consumir em um percurso irresistível, puro,
que não traz nada de fora para dentro”. (HEGEL, George W.F.
Ciência da lógica: excertos. São Paulo: Barcarolla, 2011, pp. 34).
O funcionamento da lógica
• Ainda a contradição e a negação – o exemplo da planta: “O
botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se
que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor
parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua
verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem,
mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém,
ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da
unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos
são igualmente necessários. E essa igual necessidade que
constitui unicamente a vida do todo. Mas a contradição de um
sistema filosófico não costuma conceber-se desse modo;
além disso, a consciência que apreende essa contradição
não sabe geralmente libertá-la - ou mantê-la livre - de sua
unilateralidade; nem sabe reconhecer no que aparece sob a
forma de luta e contradição contra si mesmo, momentos
mutuamente necessários”. (HEGEL, George W. F.
Fenomenologia do Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p.
23-24).
O funcionamento da lógica
•
A reunificação de realidade e consciência em unidade dialética: “Nos
tempos modernos, ao contrário, o indivíduo encontra a forma abstrata
pronta. O esforço para apreendê-la e fazê-la sua é mais o jorrar-para-fora,
não-mediatizado, do interior, e o produzir abreviado do universal, em vez de
ser um brotar do universal a partir do concreto e da variedade do ser-aí.
Por isso o trabalho atualmente não consiste tanto em purificar o indivíduo
do modo sensível imediato, e em fazer dele uma substância pensada e
pensante; consiste antes no oposto: mediante o suprassumir dos
pensamentos determinados e fixos, efetivar e espiritualizar o universal. No
entanto é bem mais difícil levar à fluidez os pensamentos fixos, que o ser-aí
sensível. O motivo foi dado acima: aquelas determinações têm por
substância e por elemento de seu ser-aí o Eu, a potência do negativo ou a
efetividade pura; enquanto as determinações sensíveis têm apenas a
imediatez abstrata impotente, ou o ser como tal. Os pensamentos se
tomam fluidos quando o puro pensar, essa imediatez interior, se reconhece
como momento; ou quando a pura certeza de si mesmo abstrai de si. Não
se abandona, nem se põe de lado; mas larga o [que há de] fixo em seu pôrse a si mesma – tanto o fixo do concreto puro, que é o próprio Eu em
oposição ao conteúdo distinto, quanto o fixo das diferenças, que postas no
elemento do puro pensar partilham dessa incondicionalidade do Eu.
Mediante esse movimento, os puros pensamentos se tornam conceitos, e
somente então eles são o que são em verdade: automovimentos, círculos.
São o que sua substância é: essencialidades espirituais”. (HEGEL, George
W. F. Fenomenologia do Espírito. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 42).
A fenomenologia e sua posição na
obra de Hegel
• “Daí
porque
muitos
comentadores
insistiram que a Fenomenologia do
Espírito seria na verdade um palimpsesto:
um livro no qual encontramos dois livros
distintos, ou melhor, o abandono
progressivo de um livro e a constituição de
um outro. Pois um dos resultados será
que a “Introdução” é introdução a um
projeto que, de uma certa maneira,
fracassará, enquanto o “Prefácio” dirá
respeito a um outro livro que acabou se
impondo” (SAFATLE, p. 13).
A fenomenologia e sua posição na
obra de Hegel
• “Daí
porque
muitos
comentadores
insistiram que a Fenomenologia do
Espírito seria na verdade um palimpsesto:
um livro no qual encontramos dois livros
distintos, ou melhor, o abandono
progressivo de um livro e a constituição de
um outro. Pois um dos resultados será
que a “Introdução” é introdução a um
projeto que, de uma certa maneira,
fracassará, enquanto o “Prefácio” dirá
respeito a um outro livro que acabou se
impondo” (SAFATLE, p. 13).
A fenomenologia e sua posição na
obra de Hegel
• A Fenomenologia deixa de ser uma
introdução à Lógica, em sua primeira
formulação (refletida inclusive em seu
título primitivo) para ser uma parte da
filosofia do Espírito na formulação final da
Enciclopédia (KOJÈVE, p. 35).
A fenomenologia e sua posição na
obra de Hegel
• A formulação da enciclopédia foi repetidamente
colocada por Hegel como inadequada, de modo
que se deve ponderar a pertinência de colocar a
Fenomenologia como parte do sistema da
Enciclopédia. “A decisão hegeliana de realizar
uma nova edição da Fenomenologia, trabalho que
não foi realizado devido à morte de Hegel, apenas
demonstra que a Fenomenologia do Espírito
continuava como peça fundamental do projeto
filosófico hegeliano. E se sabemos da intenção de
Hegel em retirar do título: ‘Sistema da ciência.
Primeira parte’ é porque a Fenomenologia já nos
fornece um sistema de apresentação da ciência
que é autônomo em relação a um ‘sistema
enciclopédico’” (SAFATLE, p. 40).
A fenomenologia e sua posição na
obra de Hegel
• Daí Heidegger ter dito que “o espírito não é o
objeto
da
fenomenologia,
nem
‘fenomenologia’ é o título de uma pesquisa e
de uma ciência sobre algo, como o espírito,
por exemplo, mas a Fenomenologia é a
modalidade (e não apenas um modo dentre
outros) segundo a qual o espírito é” (apud
SAFATLE, p. 41).
• Daí também a conclusão de Safatle de que a
gramática fundada sem a necessidade do
entendimento, destruído pela Fenomenologia
na forma de uma “gramática da finitude”, é a
Lógica, não a Enciclopédia.
A introdução à fenomenologia
• Tornou-se uma introdução apenas em publicações
póstumas. No texto original, tratava-se de um
comentário ao primitivo título da obra: Ciência da
experiência da consciência.
• Constitui propriamente o início do projeto da
fenomenologia: partir do “nível da ‘representação
natural’, ou seja, do que se apresentava em seu
tempo como uma evidência ao saber filosófico”
(SAFATLE, p. 42) e desenvolver suas
contradições, à maneira da crítica imanente. Todo
o restante da obra constituirá, afinal, um
desdobramento desta crítica imanente e sua
distensão até seu limite, em que a distinção entre
o em si e o para nós desaparece (KOJÈVE, p.
538).
A introdução à fenomenologia
• “Não é segredo para ninguém que,
quando Hegel fala da representação do
conhecimento como instrumento, ele tem
em mente a filosofia crítica kantiana e sua
compreensão de que a submissão
necessária
do
objeto
ao
sujeito
cognoscente é, na verdade, submissão
dos fenômenos às categorias do
entendimento” (SAFATLE, p. 42). Trata-se,
portanto, de formular uma crítica imanente
da filosofia kantiana.
A introdução à fenomenologia
• Conhecimento como instrumento que
serve para apoderar-se do absoluto ou
meio pelo qual o absoluto é contemplado
gera algumas dificuldades, já que tanto o
instrumento quanto o meio passivo
modelam e alteram a coisa, não a
deixando tal como é para si, e propor-se a
conhecer o modo de atuação do
instrumento ou meio para descontá-lo do
resultado devolve ao ponto de partida e é
absolutamente ineficaz
A introdução à fenomenologia
• O medo de errar constitui o próprio erro,
porque pressupõe representações do
conhecimento como instrumento e meio, a
diferença entre nós e o conhecimento e a
separação
entre
o
absoluto
e
o
conhecimento como algo para si e real. A
pressuposição de tais representações é
consequência da identificação entre absoluto
e verdadeiro, que ignora a possibilidade de
outra verdade para o conhecimento. As
aparências do saber em sua relação com a
ciência levam à necessidade de abordar a
exposição do saber tal e como se manifesta.
A introdução à fenomenologia
• A exposição do saber que se manifesta não é ciência livre,
mas o caminho da consciência natural (que é conceito do
saber e não saber real) que pugna por chegar ao verdadeiro
saber. Esse é o caminho negativo da perda de si mesma, da
dúvida, do desespero, a penetração consciente na não
verdade do saber que se manifesta. Autoridade e
autoconvencimento não se distinguem. O ceticismo sobre a
manifestação da consciência permite desesperar das
representações, pensamentos e opiniões naturais. A
exposição da consciência não verdadeira em sua não
verdade não é um movimento puramente negativo: o
ceticismo que vê em seu resultado o puro nada abstrai que
ele determina o nada de que resulta, sendo, portanto,
resultado verdadeiro, determinado e com conteúdo, uma
negação determinada. A meta está implícita no processo. A
morte é o ser empurrado de seu lugar por outro, já que a vida
natural não pode por si mesma ir além de sua existência
imediata.
A introdução à fenomenologia
• A consciência impõe a si mesma a violência
de ir além de si mesma (morte) por ser para
si seu conceito, o que pode levá-la a voltarse a si e bastar-se com o entendimento. O
método
do
desenvolvimento
é
o
comportamento da ciência para o saber tal
como se manifesta e como investigação e
exame da realidade do conhecimento. Isso
parece demandar um ponto de partida
(essência ou em si). E eliminação dessa
contradição injustificável demanda um exame
das determinações abstratas do saber e da
verdade tal como se dão na consciência.
A introdução à fenomenologia
• A consciência distingue de si algo com que se relaciona. Ela é algo
para si mesma e se relaciona com algo que é para ela, o saber. O
que se refere ao saber (ser para a consciência, ser para outro) é
distinto dele e se põe como o que é fora da relação (ser em si), a
verdade. Na investigação da verdade do saber, parece que o
investigamos em si, mas o investigamos para nós. O que afirmamos
como sua essência não é sua verdade, mas apenas nosso saber
acerca dele. A essência estaria em nós. A natureza do saber
enquanto objeto desfaz a aparência de separação, porque a
consciência dá sua própria pauta, compara-se consigo mesma. "Há
nela um para outro, ou bem há nela, em geral, a determinabilidade
do momento do saber; e, ao mesmo tempo, este outro não é
somente para ela, mas é também fora dessa relação, é em si: o
momento da verdade. Assim, pois, no que a consciência declara
dentro de si como o em si ou o verdadeiro temos a pauta que ela
mesma estabelece para medir por ela seu saber“ (p. 57). Há,
portanto, uma indiferença do que é conceito e do que é objeto, o
essencial é perceber que os dois momento estão no saber que
investigamos, o que leva à desnecessidade de pauta ou de
pensamentos e ideias pessoais.
A introdução à fenomenologia
• Nossa intervenção é supérflua não apenas porque
conceito e objeto estão na própria consciência,
mas também em seu esforço de comparação, já
que se a consciência encontra uma não
correspondência entre saber e objeto, tanto um
como outro não se sustentam. "Este movimento
dialético que a consciência leva a cabo em si
mesma, tanto em seu saber como em seu objeto,
enquanto brota diante dela o novo objeto
verdadeiro, é propriamente o que se chamará
experiência". "A consciência sabe algo, e este
objeto é a essência ou o em si, mas este é
também o em si para a consciência, com o que
aparece a ambiguidade deste algo verdadeiro“ (p.
58).
A introdução à fenomenologia
• Ser para a consciência do em si é o verdadeiro
(essência, objeto) que contem a anulação do primeiro
objeto, é a experiência feita sobre ele. Parece que a
experiência da não verdade do primeiro objeto se faz
"em outro objeto com o qual nos encontramos de
modo contingente e puramente externo“ (p. 59), de
modo que se dê em nós a pura apreensão do que é
em si e para si. Essa é uma aparência falsa, porque o
segundo objeto se revela como algo que chegou a ser
por meio de uma inversão da própria consciência.
Graças a esse modo de considerar se eleva a série
das experiências da consciência a processo científico.
Trata-se da mesma circunstância segundo a qual a
negação do saber não verdadeiro é determinada, não
vazia, e portanto contém o que o saber anterior
encerra de verdadeiro.
A introdução à fenomenologia
• O processo que cria o segundo objeto da
consciência aparece para ela como dado, mas
"para nós" como movimento e vir a ser. "Esta
necessidade faz que este caminho para a ciência
seja já ele mesmo ciência e seja, por isso, quanto
a seu conteúdo, a ciência da experiência da
consciência“ (p. 60). A experiência da consciência
sobre si compreende a totalidade do reino da
verdade do espírito, de modo que os momento da
verdade se apresentam tal e como são para a
consciência e ou como ela aparece em sua
relação com eles: os momentos do todo são
figuras da consciência. Sua exposição leva ao
ponto da autêntica ciência do espírito:
manifestação igual à essência, indicação da
natureza do próprio saber absoluto.
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• Saber é saber imediato. Devemos manter
diante dele um comportamento imediato ou
receptivo, isto é, não alterar nada nele tal
como se oferece e manter a apreensão
separada da concepção. A certeza sensível
manifesta-se como o conhecimento mais rico
e infinito, o mais verdadeiro, por ter a
plenitude do objeto, mas é a verdade mais
abstrata e mais pobre, pois contém apenas o
ser da coisa: eu, este, isto. No saber
sensível, é o puro ser, a imediatez, que
constitui a verdade da coisa. A certeza, como
relação, é uma relação imediata.
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• A certeza sensível não é imediatez pura, mas o eu
e a coisa são mediados um pelo outro. A diferença
entre a essência da certeza sensível (o ser puro)
e seu exemplo (a certeza sensível real) não é
estabelecida por nós, mas encontrada na própria
certeza sensível. Há dois momentos na certeza
sensível: o objeto, que está posto como o que é
de modo simples e imediato, a essência; e o
saber, não essencial e mediato, que não é em si,
mas por meio de um outro, o eu. O saber pode ser
ou não ser (não será se o objeto não for), mas o
objeto é independentemente de ser sabido. É
necessário considerar o objeto para ver se ele é
na própria certeza sensível uma essência, se seu
conceito de ser essência corresponde a como se
encontra na certeza sensível.
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• A inserção do tempo e do espaço na certeza sensível (o agora e o
aqui do isto) revela a negatividade que a caracteriza: o agora é e
não é dia e noite. "O agora que é noite se conserva, isto é, se lhe
trata como aquilo pelo qual se faz passar, como algo que é; mas se
mostra antes como algo que não é. O agora mesmo se mantém,
sem dúvida, mas como algo que não é noite; e assim mesmo se
mantém com respeito ao dia que agora é como algo que não é
tampouco dia ou como algo negativo em geral. Portanto, este agora
que se mantém não é algo imediato, mas algo mediado, pois é
determinado como algo que permanece e se mantém pelo fato de
que um outro, a saber, o dia e a noite, não é. O que não impede que
continue sendo, tão simplesmente como antes, o agora e que seja,
nesta simplicidade, indiferente ao que segue acontecendo em volta
dele; do mesmo modo que a noite e o dia não são seu ser,
tampouco ele é dia ou noite, não lhe afeta para nada este seu ser
outro. A este algo simples, que é por meio da negação, que não é
isto nem aquilo, chamamos um universal; o universal é, pois, o
verdadeiro da certeza sensível“ (p. 64-65).
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• O sensível também é enunciado (mas não representado)
como um universal. Daí que a linguagem, que é o mais
verdadeiro, expressa o universal e não é de modo algum
possível expressar o ser sensível que supomos (visamos). O
mesmo se dá com o aqui (espaço). "Esta certeza sensível, ao
mostrar nela mesma o universal como a verdade de seu
objeto, permanece, portanto, o ser puro como sua essência,
mas não como algo imediato, senão como algo ao qual é
essencial a negação e a mediação e, por conseguinte, não
como o que nós supomos como o ser, mas como o ser
determinado com a abstração ou o universal puro; e nossa
suposição, para a qual o verdadeiro da certeza sensível não
é o universal, é tudo que resta frente a este agora e aqui
vazios e indiferentes“ (p. 65). Isso inverte os termos da
relação entre saber e objeto na certeza sensível: o objeto
essencial passa a estar no saber, na suposição: "é porque eu
sei dele“ (p. 66).
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• A certeza sensível carrega uma verdade
relativa: cada eu singular afirma uma
verdade que possui a mesma legitimidade
do ver, mas uma desaparece na outra. O
que não desaparece é o eu como
universal. Não podemos dizer o que
supomos no aqui, no agora e tampouco
no eu: dizer um singular é dizer um
universal. É impossível dizer o singular.
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• Essência e imediatez da certeza sensível não
estão nem no objeto nem no eu: apenas a
totalidade da certeza, e não seus momentos, é
sua essência. "Sua verdade se mantém como
uma relação que permanece igual a si mesma,
que não estabelece entre o eu e o objeto
diferença alguma a respeito do essencial e do não
essencial e na qual, portanto, não pode tampouco
penetrar nenhuma diferença“ (p. 67). A certeza
sensível de cada eu singular exige que nós nos
coloquemos no mesmo ponto de tempo e espaço
que ele. Não há sentido nessa verdade afastado
do eu no tempo e espaço, pois fica superada a
imediatez que lhe é essencial.
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• Trajetória do movimento da indicação: "1) Indico o agora, que
se afirma como o verdadeiro, mas o indico como algo que foi,
ou como algo superado, com o que supero a primeira
verdade. 2) Agora, afirmo como a segunda verdade que o
que foi está superado. 3) Mas o que foi não é; supero o que
foi ou o ser superado, ou seja, a segunda verdade, negando
com isso a negação do agora e retornando assim à primeira
afirmação: o agora é. O agora e a indicação do agora estão
constituídos, pois, de tal modo que nem o agora nem a
indicação do agora são algo imediatamente simples, mas um
movimento que leva em si momentos distintos; se põe o isto,
mas o que se põe é antes um outro ou o isto é superado; e
este ser outro ou superação do primeiro é novamente
superado, por sua vez, retornando-se assim ao primeiro. Mas
este primeiro refletido em si não é exatamente o mesmo que
primeiramente era, isto é, algo imediato, mas é cabalmente
algo refletido em si ou algo simples, que permanece no ser
outro o que é: um agora que é absolutamente muito agora; e
isto é o verdadeiro agora“ (p. 68).
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• É surpreendente que se apresente como
experiência universal ou como resultado
do ceticismo que a realidade das coisas
exteriores tem verdade absoluta para a
consciência. Tal afirmação sustenta o
contrário do que pretende. A certeza da
realidade dos objetos sensíveis cede
diante de seu aniquilamento por seu
consumo (até pelos animais).
I - A certeza sensível ou o isto e a
suposição
• O isto sensível, que é suposto (visado) é
inatingível pela linguagem, que pertence à
consciência, ao universal em si. "Se dizemos de
algo que é uma coisa real, um objeto externo,
dizemos somente o mais universal de tudo, e
deste modo enunciamos antes sua igualdade com
tudo que sua diferença. Se digo uma coisa
singular, a digo antes como totalmente universal,
pois tudo é uma coisa singular; igualmente esta
coisa é tudo que se quiser“ (p. 70). Tanto no falar
como no indicar a suposição (visada) é invertida
no universal e, assim, a coisa é apreendida tal
como é em verdade e, em vez de saber algo
imediato,
eu
o
percebo
(apreendo
verdadeiramente).
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• "A certeza imediata (sensível) não se apossa do
verdadeiro, pois sua verdade é o universal; mas
quer captar o isto. A percepção, pelo contrário,
capta como universal o que para ela é o que é. E
sendo a universalidade seu princípio em geral o
são também os momentos que de um modo
imediato se distinguem nela: o eu e o objeto são
universais“ (p. 71). A apreensão da certeza
sensível é aparente, fenomenal, se manifesta; a
da percepção é necessária. O movimento e o
objeto são a mesma coisa. O movimento é o
desdobramento dos momentos, o objeto é sua
reunião, o movimento é a percepção (contingente
e não essencial), o objeto é a essência que é
indiferente a ser ou não percebida.
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• "A superação apresenta sua verdadeira
dupla significação, que vimos no negativo:
é ao mesmo tempo um negar e um manter
(conservar); o nada, como nada disto,
mantém (conserva) a imediatez e é ele
mesmo sensível, mas é uma imediatez
universal“ (p. 72). A coisidade, ou a pura
essência, é o meio universal em que
coexistem lado a lado, para si e sem se
tocar (relacionando-se consigo mesmas),
as múltiplas propriedades (determinações)
do ser.
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• A coisa é o verdadeiro da percepção: "É a
universalidade passiva indiferente, o também
das múltiplas propriedades ou matérias, a
negação como o simples ou o uno, a
exclusão das propriedades contrapostas, e
as múltiplas propriedades mesmas, a relação
entre os dois primeiros momentos” (p. 73).
Sendo a coisa, assim, constituída o objeto da
percepção e puramente apreendida, a
consciência não acrescenta ou omite nada e
portanto há o risco da ilusão, de que o
percipiente é consciente.
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
•
"O objeto que eu capto se oferece como puramente uno, mas eu descubro também nele a
propriedade que é universal, mas que, por sê-lo, ultrapassa a singularidade. Portanto, o primeiro ser
da essência do objeto como uno não era seu verdadeiro ser; e, sendo o objeto o verdadeiro, a nãoverdade recai em mim, e a apreensão não era correta. A universalidade da propriedade me obriga a
captar a essência do objeto antes como uma comunidade em geral. Percebo, ademais, a propriedade
como determinada, contraposta a outra e que a exclui. Portanto, não apreendia corretamente a
essência do objeto quando a determinava como uma unidade com outras ou como a continuidade, e
devo antes, graças à determinabilidade da propriedade, separar a continuidade e pôr aquela
essência como uno excludente. No uno separado encontro muitas propriedades destas que não se
afetam umas às outras, mas que são indiferentes entre si, portanto, não percebia corretamente o
objeto quando o apreendia como excludente, mas que assim como antes somente era continuidade
em geral, agora é um meio comum universal em que muitas propriedades, como universalidades
sensíveis, são cada uma para si e, como determinadas, excluem às outras. Mas, ainda com isto, o
simples e o verdadeiro que eu percebo não é tampouco um meio universal, mas a propriedade
singular para si, mas que assim não é nem propriedade nem um ser determinado; pois agora não é
no uno nem tampouco em relação com outros. Mas propriedade só é no uno, e determinada somente
em relação com outros. Como este puro relacionar-se consigo mesma, já não tem em si o caráter da
negatividade, permanece somente como ser sensível em geral; e a consciência para a qual agora há
um ser sensível somente é um supor, isto é, saiu completamente da percepção e retornou a si
mesma. Mas o ser sensível e o supor formam-se eles mesmos na percepção; eu me vejo repelido
para o ponto de partida e arrastado de novo ao mesmo ciclo, que se supera em cada um de seus
momentos e como totalidade“ (p. 74-75).
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• O novo percurso do ciclo não é feito do mesmo modo, em
razão da experiência. A percepção não é pura apreensão,
porque na apreensão a consciência se reflete dentro de si
partindo do verdadeiro, o que o transforma. Objeto,
entretanto, mantém-se puro, de modo que a consciência é
empurrada sobre si mesmo como na certeza sensível, mas
com uma diferença central no tocante à verdade: "não no
sentido em que ali acontecia, como se a verdade do perceber
recaísse nele, mas, ao contrário, o perceber reconhece que o
que recai nele é a não verdade ali presente. Agora, através
deste conhecimento a consciência é, ao mesmo tempo,
capaz de superar essa não verdade; distingue sua apreensão
do verdadeiro da novidade de seu perceber, corrige este e,
quando empreende ela mesma esta retificação, recai nela,
evidentemente, a verdade como verdade do perceber“ (p.
75).
• O exemplo do sal em si e para a consciência.
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• Não só a apreensão, mas a própria coisa,
apresenta-se à consciência de modo duplo
como apreensão e retorno a si mesma.
• O ser para si e também para o outro da
coisa, sua duplicidade, contradiz sua
unidade. Essa contradição distribui-se em
coisas diversas, mas nem por isso deixa de
dar-se a diferença na coisa singular e
separada. Cada coisa se determina como
algo diferente, não de si mesma, mas das
outras coisas. A determinação oposta é o
essencial, e a múltipla variedade o não
essencial.
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• "Essa determinabilidade, que constitui o caráter
essencial da coisa e a distingue de todas as
outras se determina agora de modo que a coisa
se encontra assim em contraposição às outras,
pois nesta relação se põe antes como a conexão
com o outro, e a conexão com o outro é o cessar
do ser para si. É precisamente por meio de seu
caráter absoluto e de sua contraposição como a
coisa se comporta diante das outras e somente é,
essencialmente, esse comportar-se; mas o
comportar-se é a negação de sua independência,
e a coisa se derruba antes por meio de sua
propriedade essencial“ (p. 78-79).
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• A determinidade essencial é a negação de
si mesma, o ter sua essência num outro. A
diversidade é inessencial, mas por ser
também necessária, é também a negação
de si mesma: não há inessencial que seja
necessário. Com isso se esvai a
separação do ser para si e do ser para
outro. Unidade de ser para si e ser para
outro apresenta a universalidade absoluta
incondicionada em que a consciência
entra verdadeiramente pela primeira vez
no reino do entendimento.
II - A percepção, ou a coisa e a
ilusão
• "Estas abstrações vazias da singularidade
e da universalidade contraposta a ela,
assim como da essência enlaçada a algo
não essencial, e de um algo não essencial
que é, ao mesmo tempo, sem embargo,
necessário, são as potências como jogo é
o entendimento humano percipiente, que
com frequência se chama o bom senso
(senso comum)“ (p. 80). O entendimento
toma os momentos da verdade como a
verdade.
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Aula 4 - Introdução ao pensamento de Hegel