EPISÓDIOS EL NIÑO E LA NIÑA E A FREQUÊNCIA DE EVENTOS EXTREMOS DE PRECIPITAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE NO LITORAL DA REGIÃO SUL Alice Marlene Grimm 1 e Renata Gonçalves Tedeschi1 RESUMO Este estudo examina como episódios El Niño (EN) e La Niña (LN) modificam a freqüência de eventos extremos de precipitação no Brasil em relação a anos normais e porque ocorrem estas modificações. Eventos extremos são aqueles em que o percentil correspondente à precipitação média de três dias é maior que 90. A diferença entre a média de eventos extremos para anos EN e Normais e para LN e Normais mostram que os episódios EN e LN influenciam significativamente a freqüência de eventos extremos em várias regiões do Brasil em certos períodos. As relações entre perturbações de grande escala e as variações na freqüência de eventos extremos de precipitação são estudadas para o litoral da Região Sul, onde diferenças significativas foram encontradas. As características gerais das anomalias atmosféricas durante eventos extremos são semelhantes, quer eles ocorram durante episódios EN, LN ou em anos normais. Elas são comparadas com as anomalias médias mensais de campos atmosféricos durante esses episódios. A freqüência de eventos extremos aumenta (diminui) quando as perturbações de grande escala favorecem (desfavorecem) as anomalias de circulação associadas com eles. A correlação da temperatura da superfície do mar com a chuva mensal e com a frequência de eventos extremos na área focalizada mostra que, embora variações da chuva mensal na região sejam associadas com episódios ENOS, a ocorrência de eventos extremos depende de certas condições produzidas pela modulação destes episódios por oscilações interdecadais. ABSTRACT This study examines how El Niño (EN) e La Niña (LN) episodes modify the frequency of extreme precipitation events in Brazil, and the reason for this modification. Extreme events are those with a three-day average percentile above 90. The difference between the mean frequencies of extreme events for EN and normal years, and for LN and normal years show that EN and LN episodes influence significantly the frequency of extreme events in several regions in Brazil during certain periods. The relationships between large-scale atmospheric perturbations and variations in the frequency of extreme events are analyzed for the coast of southern Brazil, where significant differences are found. The general features of the anomalous atmospheric fields during extreme events are similar, no matter if they occur during EN or LN episodes or in normal years. They are compared with composites of monthly atmospheric anomalous fields during those episodes. The frequency of extreme events increases (decreases) when large-scale perturbations favor (hamper) the circulation anomalies associated with them. The correlation analysis of sea surface temperature with monthly total precipitation and with the frequency of extreme events in the focused area shows that although the monthly rainfall is associated with ENSO, the occurrence of extreme events depends also on interdecadal oscillations. Palavras-chave: Eventos extremos; precipitação; ENOS. 1 Universidade Federal do Paraná, Departamento de Física , Centro Politécnico, Bloco 2. Caixa Postal 19044, CEP 81531-990, Curitiba, Fone (41) 3361-3669, e-mails: [email protected], [email protected] INTRODUÇÃO As anomalias de temperatura da superfície do mar (TSM) associadas com episódios El Niño (EN) e La Niña (LN) produzem fluxos anômalos de calor e vapor de água do Oceano Pacífico para a atmosfera. As anomalias de convecção associadas causam anomalias de divergência em altos níveis que perturbam a circulação atmosférica global. Ondas de Rossby são produzidas e as circulações divergentes de Walker e de Hadley são perturbadas. Há significativos impactos sobre diversas regiões da América do Sul (AS) durante as diferentes fases do El Niño-Oscilação Sul (ENOS) (e. g., Ropelewski e Halpert, 1987; Aceituno, 1988; Grimm, 2003, 2004). Gershunov (1998) mostra que há significativa diferença entre probabilidades associadas com eventos extremos de precipitação nos Estados Unidos durante episódios EN e LN. Esta diferença representa maior previsibilidade potencial de aumento ou redução desses eventos extremos durante estes episódios. Em vista do significativo impacto de episódios ENOS sobre os totais mensais e sazonais de precipitação em diversas regiões da América do Sul (AS), este estudo está focalizado no impacto de episódios EN e LN sobre a freqüência de eventos extremos de precipitação no continente. Esta informação é útil para refinar a previsão climática durante estes episódios e para aumentar o preparo para enfrentar desastres naturais. Além de apresentar uma avaliação quantitativa das modificações de freqüência dos eventos extremos de precipitação, o presente estudo compara os campos de anomalias atmosféricas médias durante episódios EN e LN com as condições atmosféricas durante eventos extremos de precipitação nas regiões mais afetadas pelas alterações de freqüência durante esses episódios para esclarecer as razões para estas modificações. DADOS E MÉTODOS Os dados diários de precipitação de do período 1956-2002 são interpolados numa grade de 1° para se obter distribuição mais homogênea de dados. Médias móveis de três dias são calculadas e os valores atribuídos aos dias centrais. Distribuições gama são ajustadas a estas médias, uma para cada dia do ano. Os dados de precipitação são então substituídos por seus respectivos percentis. Eventos extremos são aqueles com percentil acima de 90. O número de eventos extremos é calculado para cada mês de cada ano. Os anos são classificados como EN, LN e anos normais (Tabela 1), considerando, de acordo com o ciclo médio EN/LN, que o ano começa em agosto (ano 0) e termina em julho (ano +1). A frequência média de eventos extremos para cada mês, dentro de cada categoria de ano, e a diferença entre estas freqüências médias para EN e anos normais, e para LN e anos normais são calculadas, assim como sua significância estatística. Tabela 1. Anos El Niño e La Niña incluidos na análise. El Niño (0) 1957, 1963, 1965, 1969, 1972, 1976, La Niña (0) 1964, 1967, 1970, 1971, 1973, 1975, 1982, 1986, 1987, 1991, 1997 1985, 1988, 1999 As relações entre perturbações atmosféricas de grande escala durante episódios ENOS e modificações na freqüência de eventos extremos de precipitação são examinadas através dos campos atmosféricos anômalos durante episódios EN e LN e durante eventos extremos em regiões nas quais há alteração significativa na freqüência destes eventos. Esta análise, realizada com os dados da reanálise do NCEP/NCAR, abrange os ventos em 850 hPa e 200 hPa, e fluxo de umidade verticalmente integrado e sua divergência. As anomalias dos campos atmosféricos são calculadas, como foi feito para os dados de precipitação, para médias móveis de três dias, com relação aos valores climatológicos para cada uma destas médias, suavizadas por uma média móvel de 30 dias. Aqui são apresentados os resultados desta análise somente para os extremos de precipitação em novembro, no litoral da Região Sul do Brasil, incluindo principalmente o litoral de Santa Catarina (Fig. 1). RESULTADOS E DISCUSSÃO Episódios EN e LN influenciam significativamente a freqüência de eventos extremos de precipitação em várias regiões do Brasil durante certos períodos do ciclo ENOS. Somente os resultados para novembro e janeiro são mostrados na Fig. 2. Em novembro há notável impacto sobre a freqüência no Sul do Brasil, com efeitos postos em episódios EN e LN. Em anos EN há mais eventos extremos, enquanto eles são reduzidos em anos LN. No norte da AS parece também haver mudanças opostas no número de eventos extremos, com menos eventos durante anos EN e mais eventos em anos LN. Contudo, nesta região não há suficientes dados diários no período estudado para permitir análise mais clara. Estes resultados são consistentes com os impactos sobre totais sazonais e mensais de precipitação (Grimm et al. 2000; Grimm 2003; 2004). A mudança na frequência de eventos extremos de precipitação sofre uma reversão no Centro-Leste do Brasil, de novembro (0) para janeiro (+), tanto nos anos EN como LN (Fig. 2). Enquanto há diminuição (aumento) de eventos nesta região em novembro (0) de anos EN (LN), há aumento (diminuição) em janeiro (+) de anos EN (LN). O efeito é mais forte em episódios LN. A mesma reversão ocorre para anomalias de totais mensais de precipitação, como mostrado em Grimm (2003; 2004). O aumento significativo de eventos extremos afeta uma área menos extensa que sua significativa redução, tanto em anos EN como LN. Isto é especialmente visível quando se compara o impacto sobre o Sul do Brasil em novembro (0), e sobre o Centro-Leste do Brasil em janeiro (+). As figuras 3 e 4 mostram as anomalias médias de vento e fluxo de umidade durante novembro (0) de episódios EN e LN, respectivamente. Durante episódios EN anomalias ciclônicas predominam sobre o sudoeste da AS, enquanto anticiclônicas prevalecem nos subtrópicos a leste. Anomalias opostas são características de episódios LN, embora um pouco deslocadas para sudoeste. Em baixos níveis, as anomalias associadas com EN fortalecem o jato de baixos níveis a leste dos Andes, enquanto as associadas com LN tendem a enfraquecer este jato. Estas anomalias fortalecem o fluxo de umidade para dentro (fora) do Sul do Brasil e convergência (divergência) de fluxo de umidade nesta região durante episódios EN (LN). As anomalias médias de vento e fluxo de umidade durante eventos extremos no litoral de SC não apresentam significativas diferenças na vizinhança desta região para anos EN e LN (Figuras 5 e 6). Há anomalia ciclônica em baixos níveis e em altos níveis anomalia ciclônica a sudoeste e anticiclônica a nordeste, com fortalecimento do jato subtropical sobre a região. O fluxo de umidade apresenta convergência na região, embora a máxima convergência esteja situada a nordeste. Portanto, os aspectos gerais destes campos anômalos são similares, não importando se os eventos extremos ocorrem durante episódios EN ou LN. Eles mostram os ingredientes essenciais para precipitação fortalecida: convergência de umidade e situação favorável para levantamento de ar até o nível de condensação. A comparação das composições para os eventos extremos nas figuras 5 e 6 com as anomalias mensais nas figuras 3 e 4 mostra porque a freqüência de eventos extremos se altera significativamente entre eventos EN e LN no litoral sul do Brasil. Os padrões anômalos nas vizinhanças desta região durante eventos extremos (tanto em EN como em LN) são muito semelhantes às anomalias mensais associadas com episódios EN, mas muito diferentes e até opostas às anomalias mensais observadas durante anos LN. O grande aumento na freqüência de eventos extremos é, portanto, devido a condições muito favoráveis de grande escala, enquanto a redução é causada por condições de grande escala que não favorecem precipitação forte e persistente. É interessante lembrar que as composições da Fig. 5 foram baseadas em 68 eventos extremos ocorridos na região focalizada durante 11 episódios EN, enquanto as composições da Fig. 6 foram obtidas de 21 eventos extremos ocorridos durante 9 episódios LN, o que mostra claramente a grande diferença entre a freqüência de eventos extremos durante estas fases opostas de ENOS. Uma análise de correlação entre TSM e freqüência de eventos extremos é realizada para verificar se há algum outro mecanismo responsável por eventos extremos no litoral da Região Sul em novembro que não atue durante outros eventos de precipitação neste mês (Fig. 7). A correlação entre TSM e chuva média apresenta um padrão típico de TSM associado com ENOS em novembro, o que mostra a associação entre a variação da precipitação mensal com os episódios ENOS. Contudo, a correlação com a freqüência de eventos extremos mostra que nem todos episódios ENOS estão associados com eventos extremos na região, mas aqueles em que as anomalias de TSM no Pacífico central e leste se estendem para latitudes maiores em ambos os hemisférios e com mais fortes anomalias no Pacífico norte. Isto indica a importância da modulação de episódios ENOS por variabilidade interdecadal para ocorrência de eventos extremos. Além disto, no Atlântico norte há inversão do sinal de anomalias, o que também indica a interferência de variabilidade interdecadal. Por último, há importante mudança no Atlântico Sul, onde a TSM é maior junto ao litoral da Região Sul quando há aumento de eventos extremos. CONCLUSÕES Episódios EN e LN afetam significativamente a frequência de eventos extremos em várias regiões do Brasil. Na região aqui focalizada as composições de anomalias atmosféricas durante eventos extremos mostram que a freqüência destes eventos aumenta (diminui) quando as perturbações de grande escala favorecem (dificultam) as anomalias de circulação associadas com eventos extremos nesta região. Contudo, embora as variações de chuva mensal na região sejam associadas com episódios ENOS, a ocorrência de eventos extremos está associada a episódios ENOS com certas condições particulares, que podem ser produzidas pela modulação destes episódios por oscilações interdecadais. Agradecimentos. Este trabalho foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Brazil) e o Inter-American Institute for Global Change Research (IAI-CRN 055). REFERÊNCIAS Aceituno, P., 1988: On the functioning of the Southern Oscillation in the South American sector. Part I: Surface climate. Mon. Wea. Rev., 116, 505-524. Grimm, A. M., A. M., 2003: The El Niño Impact on Summer Monsoon in Brazil: Regional Processes versus Remote Influences. Journal of Climate, 16, 263-280. _____, 2004: How do La Niña events disturb the summer monsoon system in Brazil? Climate Dynamics, 22, n. 2-3, 123-138. Gershunov, A., 1998: ENSO influence on intraseasonal extreme rainfall and temperature frequencies in the contiguous United States: implications for long-range predictability. J. Climate, 11, 3192-3203. Ropelewski, C.F., and M.S. Halpert, 1987: Global and regional scale precipitation patterns associated with the El Niño/Southern Oscillation. Mon. Wea. Rev., 115, 1606-1626. Figura 1: Área focalizada na análise das condições associadas com eventos extremos Figura 2: Diferença no número de eventos extremos entre anos El Niño e anos Normais (1ª e 3ª figuras) e entre anos La Niña e anos Normais (2ª e 4ª figuras), para novembro (0) (1ª e 2ª) e janeiro (+) (3ª e 4ª). As diferenças significativas a um nível melhor que 0.10 estão em cinza. Figura 3: Composição das anomalias mensais do vento 850hPa (1ª figura), e de 200hPa (2ª), do fluxo de umidade vertical (3ª) e do seu divergente (4ª), para novembro (0) de anos El Niño. Figura 4: Composição das anomalias mensais do vento 850hPa (1ª figura), e de 200hPa (2ª), do fluxo de umidade vertical (3ª) e do seu divergente (4ª), para novembro (0) de anos La Niña. Figura 5: Composição das anomalias de vento 850hPa (1ª figura), e de 200hPa (2ª), do fluxo de umidade vertical (3ª) e do seu divergente (4ª), para os eventos extremos na região leste do Sul do Brasil, para novembro (0) de anos El Niño, obtida a partir de 68 eventos extremos. Figura 6: Composição das anomalias de vento 850hPa (1ª figura), e de 200hPa (2ª), do fluxo de umidade vertical (3ª) e do seu divergente (4ª), para os eventos extremos na região leste do Sul do Brasil, para novembro (0) de anos La Niña, obtida a partir de 21 eventos extremos. Figura 7: Coeficientes de correlação entre TSM e a precipitação mensal na região leste do Sul do Brasil mostrada na Fig. 1 (figura à esquerda), e entre TSM e a freqüência de eventos extremos da precipitação na mesma região (figura à direita). As regiões em amarelo (azul) indicam a correlação significativa a um nível melhor que 0.05.