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Uma idéia não é responsável pelos que nela acreditam
Marcello Chamusca1
Vivemos em um mundo de simbologias, onde cada idéia levantada pode ter – e tem –
uma carga considerável de significados e significâncias. Cada pessoa é estereotipada pelos ideais
que diz acreditar e defende ao longo da vida. Contudo, podemos perceber que existe um grande
abismo entre os discursos produzidos pelas pessoas e as suas práticas.
Nesse sentido, notamos que um grande incômodo começa a permear o inconsciente
coletivo, fazendo brotar dos grotões da efervescência intelectual e cultural do nosso país
questões referentes à salvaguarda das idéias, independentemente de quem as cunhou ao longo da
história.
As idéias, definitivamente, não podem ser responsáveis pela irresponsabilidade de quem
quer que seja, porque quando temos uma idéia e ficamos pra nós mesmos, ela pertence a nós,
mas, quando a tornamos pública, perdemos o direito sobre ela. Não do ponto de vista legal,
porque para isso existem as leis que garantem a produção intelectual e a propriedade da autoria,
mas, do ponto de vista simbólico essa idéia já não pertence ao seu autor e sim à sociedade, que
faz uso dela da maneira que achar mais adequada. Disso não podemos fugir, não está sob o nosso
controle.
Propagação de uma idéia à revelia do autor
Uma idéia quando assimilada pela sociedade pode tomar proporções incalculáveis e
colocar o seu articulador em situações muito complicadas. O conceito de esfera pública, por
exemplo, já inseriu o seu autor, o frankfurtiano Jünger Harbermas, em algumas discussões que,
certamente, quando sistematizou o conceito, nunca imaginaria estar.
Segundo o professor da UFBA, Wilson Gomes, Harbermas quando desenvolveu esse
conceito na sua tese de doutorado, com toda certeza, não tinha a mínima noção de que estaria
trazendo a tona uma discussão que atravessaria gerações e provocaria tamanha comoção na
comunidade científica internacional. Gomes comenta que Harbermas não desejava revolucionar
as ciências da comunicação social, quebrar antigos paradigmas ou mesmo instituir outros novos.
1
Estudante de Comunicação Social/Habilitação em Relações Públicas, pesquisador do Terceiro Setor e da Linguagem Gestual no
Brasil. É atualmente, assessor de comunicação da AESOS – Associação Educacional Sons no Silêncio, ONG baiana que educa e
profissionaliza jovens e adolescentes surdos na cidade do Salvador/BA. Apresentou os artigos (1) A Comunicação e Linguagem
Gestual: Compartilhando Vozes e (2) Panorama das Relações Públicas na Bahia: Percepções Sobre o Ensino e o Mercado
Profissional no IIº Seminário de Pesquisa da FTC.
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Ele queria apenas concluir o seu doutorado para assumir, como titular, uma cadeira em uma
universidade na qual era professor substituto.
O conceito de esfera pública, entretanto, virou conteúdo obrigatório no currículo dos
cursos de comunicação social por todo o mundo, colecionando fervorosos adeptos e opositores
ao longo da história. O próprio Harbermas, por conta da grande dimensão alcançada pela sua
idéia, teve que ir, durante sua carreira acadêmica, modificando-a e adequando um ou outro ponto
do seu conceito inicial, baseado nas questões levantadas pelos críticos da sua idéia. E, acredite,
não foram poucas. Na realidade, podemos dizer que ele teve que dedicar o resto da sua vida para
tentar defender uma idéia que publicou há décadas e é o que faz até hoje.
O conceito habermasiano de esfera pública, portanto, fundamenta a concepção de que o
autor perde totalmente o controle da sua idéia a partir do momento em que ele a torna pública.
Além disso, existem muitas outras questões que são preciso levar em conta nessa discussão,
dentre elas, algumas variáveis que se encontram, invariavelmente, contidas naquilo que
chamamos de ruído na comunicação.
O ruído na comunicação
Quando um indivíduo (emissor) transmite uma idéia (mensagem) para outro indivíduo
(receptor) se estabelece um processo comunicativo que pode conter muitas nuances. A
mensagem quando transmitida pelo emissor, quase nunca é percebida pelo receptor com toda a
significação pretendida por quem a emitiu. Quando a mensagem consegue chegar ao receptor,
com a base semântica pretendida pelo emissor, podemos dizer que o processo comunicativo teve
sucesso.
Entretanto, conseguir a transmissão de uma mensagem por meio de um processo
comunicativo positivo, em que os signos utilizados pelo emissor sejam percebidos pelo receptor
nos mesmos padrões de significado pretendidos, não é tarefa fácil, não.
Quando esse processo não se dá com sucesso, falamos que houve ruído na comunicação.
Ou seja, a mensagem do emissor não chegou fidedigna ao receptor; houve alguma variável,
durante o processo comunicativo, que interferiu no conjunto de signos sistematizados pela
mensagem, dando-lhe outro significado.
Não é raro uma idéia de um autor ser utilizada por outro de forma totalmente destorcida e
o próprio autor dizer que não era exatamente aquilo que ele queria dizer quando a publicou.
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Quando o processo comunicativo se dá presencialmente, no corpo a corpo, reduz-se a
possibilidade disso acontecer, pois, nessas condições, é possível a adaptação do discurso de
forma personalizada e a utilização da linguagem mais adequada entre as pessoas envolvidas
naquele processo comunicativo.
Já no processo escrito, por mais que sejamos claros, há sempre a possibilidade de
surgimento de uma figura de linguagem que chamamos de vazio de sentido que sempre faz com
que o leitor tenha uma margem de liberdade interpretativa e compreensiva muito grande e que
acaba por interferir nos processos de comunicação.
Essa interferência, entretanto, nem sempre é negativa. Na realidade, se formos analisá-la
do ponto de vista da inteligência coletiva, cada vez que acontecem esses “ruídos”, um novo
ponto de vista passa a ser acrescentado àquela idéia e a construção de um conhecimento mais
rico e mais complexo é fundado.
É claro que o ruído pode ser apenas um problema no processo comunicativo e não
acrescentar absolutamente nada à idéia, mas, se esse ruído for relativo aos significados da
mensagem e não relativos ao conjunto estrutural dos signos que a compõem, não só pode como
deve ser considerado como uma contribuição da inteligência coletiva àquela idéia.
Seria eu o verdadeiro autor das minhas idéias?
Ora, será que não estamos indo longe demais com esse texto?
Primeiramente chegamos à conclusão de que não somos donos das nossas próprias idéias
a partir do momento em que a tornamos pública e por isso não podemos prescindir, por exemplo,
do conteúdo ideário da obra do nosso ex-presidente da república Fernando Henrique Cardoso
(FHC), simplesmente, porque na prática do poder, ele resolveu relegá-lo, mandando-nos
esquecer toda sua produção intelectual e todo o legado sociológico que produziu e que foi, sem
dúvida, fator preponderante e responsável por ter ele chegado até onde chegou.
Os ideais socialistas e libertários gerados por FHC no seu passado profícuo não podem e
não devem, como ele mesmo pediu, serem esquecidos. Porque aquelas idéias que produziu, boa
parte em exílio político, além de não pertencerem mais a ele, desde o momento em que as
publicou, analisando a questão já por uma outra interface, foram produzidas a partir de um
contexto social e, portanto, de uma situação coletiva, onde a sua contribuição para a idéia
sistematizada nem sempre faz jus ao que realmente foi pensado exclusivamente por você.
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Nesse sentido, se pensarmos que em uma sociedade, independentemente dos seus
padrões, os indivíduos se interrelacionam, invariável e ininterruptamente, com os seus pares e
com o meio ambiente, como sistemas interdependentes, podemos acreditar que toda idéia é uma
construção da inteligência coletiva, e, portanto, não pode ter um único dono ou autor. O conjunto
da sociedade que contextualizou uma determinada idéia, por meio de ingerências das suas
diversas variáveis – econômica, político-legal, social, cultural, demográficas, dentre outras - e
contribuiu com a formação do conhecimento como um todo a partir de pequenas partes
independentes, essa sim pode ser considerada a autora e responsável pela idéia produzida.
A salvaguarda das idéias
Seja pela sua propagação na sociedade, independente e à revelia de quem a articulou; seja
pela noção de que não somos donos dela a partir do momento que a divulgamos; seja pelas
interferências positivas geradas por “ruídos” na comunicação; ou mesmo porque entendemos que
ela não é propriedade de ninguém, pois faz parte de uma construção coletiva; o que podemos
perceber, claramente, é que urgem ações sociais práticas no sentido de que as idéias produzidas
no âmbito da nossa sociedade possam ser salvaguardadas, independentemente dos seus autores
e/ou articuladores, das suas condutas e seus desmandos.
Não é possível, por exemplo, deixarmos de amar a arte greco-romana, simplesmente,
porque Hitler era um dos seus mais fervorosos amantes e defensores. Não é admissível que
deixemos de crer na justiça social e num regime político em que a sociedade possa ser
igualitária, porque o comunismo soviético foi estigmatizado por ditadores que se distanciaram do
real socialismo. Enfim, é chegada a hora de entendermos que as idéias não podem mais ser
responsabilizadas pelos que nela acreditam ou dizem acreditar.
Para citar este trabalho copie as linhas abaixo trocando o X pela data que acessou esse
trabalho:
CHAMUSCA, Marcello. Uma idéia não é responsável pelos que nela acreditam [online] Disponível na internet via WWW URL: http://www.rpbahia.com.br/trabalhos/paper/jornalisticos/uma_ideia_não_e_responsavel_pelos_que_nela_acred
itam.pdf - Capturado em XX/XX/200X.
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