O tempo calculável do indivíduo e o tempo originário dos povos, a partir da meditação de Martin Heidegger em “Hinos de Hölderlin” MARCO ANTONIO BARROSO MEMBRO DO NÚCLEO DE ESTUDOS IBÉRICOS E IBERO-AMERICANOS DA UFJF. FORMADO EM FILOSOFIA PELA UFJF. ALUNO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DAS RELIGIÕES DA UFJF. [email protected] Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais mais persistentes, mais fieis – o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando aguardando esperando sobre as ruínas de todo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso das recordações. (Marcel Proust) Introdução Porque falar sobre o tempo, o que é o tempo, ele existe de fato tempo ou é apenas uma invenção do homem para melhor racionalizar sua vida? Para cada resposta que dermos a essas perguntas estaremos modificando e reestruturando toda uma mundividência que nos permeia e envolve. Defendo que a reposta para a primeira pergunta esteja na própria história da filosofia, onde grandes vultos do passado dedicaram boa parte de – senão toda – sua meditação responder as perguntas seguintes. Longe, ainda, destes grandes nomes temos as mesmas dúvidas em nossa mentes, mas possuímos a desconfiança, como muitos afirmaram, de que nele – no tempo – encontraremos a verdade do ser em sua imutabilidade-mutável, que apreendemos com a figura do rio de Heráclito. É na descoberta do tempo que poderemos, também, desvelar os fundamentos da liberdade – ainda tão debatidos. E é na busca histórica de algumas respostas dadas a essas perguntas que justiçaremos nosso texto. Nas próximas linhas propomos o estudo do tempo a partir do sexto parágrafo do livro Hinos de Hölderlin do filósofo alemão Martin Heidegger, onde o autor fazendo uma leitura hermenêutica do poema hölderliniano Germânia criando uma relação comparativa entre o tempo mensurável do sujeito e o tempo originário dos povos que está as ocultas, e que só pode ser alcançado pelos poetas em seu poetar, num jogo onde este se abalança para fora do tempo de seus contemporâneos, e que os torna incompreendidos por esses. O tempo calculável do indivíduo e o tempo originário dos povos Deuses? – Em planos ousados nós os concebemos E novamente o destino os destrói para nós. Mas somos os imortais. Vede: agora podemos Ouvir Aquele que um dia ouvirá nossa voz... (Rainer Maria Rilke) O tempo é, para Heidegger, fundamento do ser, e no sexto parágrafo da primeira parte de seu livro “Hinos de Hölderlin” o filósofo explora a diferenciação do tempo comensurável dos indivíduos do tempo originário dos povos, para definir quem o “nós” da poesia de Hölderlin. Mas o que buscamos aqui é enfatizar como se apresenta a relação temporal presente neste livro, entre o tempo indivíduo e os dos povos. O tempo do indivíduo é curto, comensurável e pode ser calculado entre a data de seu nascimento e de seu óbito, mas este não é o tempo originário e fundamental dos povos que se encontra em oculto. Para Heidegger, aquele que questiona sobre verdadeiro tempo em seu próprio tempo coloca-se fora da atualidade, de seu hoje, tornando-se um incompreendido por estar fora e perceber o mundo de forma diferente dos outros a seu redor. Ele diz que: “... se alguém se abalança para fora de do próprio tempo e da sua atualidade calculável, se tem, tal como o poeta, de se abalançar para fora e chegar ao ar livre, terá de alhear-se, por outro lado, daqueles a que pertence no tempo da sua vida. Nunca conhece os seus e, por sua vez, é um escândalo para eles...” [Heidegger,s/d.:55] A hora verdadeira dos povos e-nos oculta, “não conhecemos nosso tempo histórico propriamente dito. Não sabem0os quem somos quando perguntamos pelo nosso ser verdadeiramente temporal”. Não é por que conhecemos um dado pensamento do passado que este tenha realmente presença em nossa vida hodierna, esse conhecer pode não passar de “interesse erudito”, não efetivando uma realidade vivencial de fato em nossa historicidade. Ao passo que “objetos” outros que não fazem parte de nosso interesse cultural erudito, que mesmo que não presentes em nossa memória, podem existir como ligação de nosso ser com este passado “desconhecido”. Mas “a decisão sobre isso,no entanto, não depende de uma apreciação cientifica da medida que em que a antiguidade sobrevive no presente, ou, sequer, do aferimento do estado de nossos liceus atuais[Idem.:55] “Não a eles...” são as palavras que dão início ao poema Germânia sobre o qual se desenvolve a meditação a qual estamos estudando aqui, e é entorno dessas palavras que Heidegger questiona o tempo para ele “este ‘Não a eles...’ com que se inicia o poema é uma decisão temporal em prol do tempo originário dos povos”. Portanto é a partir dessas palavras que parte a meditação sobre o tempo originário dos povos, ou tempo histórico dos povos ou o tempo dos criadores, para podermos compreender melhor esta colocação precisamos entender que “...o ser-aí histórico dos povos, (...), deriva da poesia (introdução do livro p,20), desta, o saber propriamente dito, no sentido de Filosofia, e de ambas o ser-aí de um povo como tal pelo estado – pela política. Este tempo primitivo, histórico dos povos é, por isso, o tempo dos poetas, pensadores e fundadores de estados, daqueles portanto que verdadeiramente fundam e fundamentam o ser-aí histórico de um povo. São eles os verdadeiros criadores...”[Heidegger, s/d: 56] Mais a frente continua o filósofo afirmando que “...o tempo dos criadores sobressaem do mero encadeamento dos dias apressados e absorvidos pela superficialidade dos afazeres do dia-a-dia e, mesmo assim, não são uma transgressão da normalidade rígida e intemporal mas sim tempos que se abatem sobre a Terra seguindo seu próprio fluir e as suas próprias leis...” [Idem] O tempo dos criadores é o tempo acidentado e solitário de quem habita os altos patamares, das montanhas mais íngremes dos tempos dos povos, todavia é um tempo que aproxima, pois quem está cercado pelos abismos tem plena consciência de sua destinação e compreende profundamente aqueles que se encontram em outros cumes, na mesma situação. O tempo dos povos e dos criadores é diferente do tempo acelerado daqueles que passam apressados pelas planuras e não tem de estar próximos para se encontrarem, ele difere profundamente do tempo da cotidianidade onde as pessoas não buscam pelo ser. Como acentuado acima, o tempo dos criadores se encontra nos cumes do tempo dos povos porém, como ressalta Heidegger, estes cumes não são uma passagem para uma esfera intemporal ou supratemporal, no sentido de eterno. O filósofo alemão defende que a idéia de eternidade já é em si determinada pelo conceito dominante que temos de tempo: “Geralmente são conhecidas duas concepções de eternidade: 1. como sempiternitas – a continuação ininterrupta do tempo, um por-aí-fora imparável, nunca último agora; 2. como aeternitas – o nunc stans, o agora parado, o presente infindável. Ambos os termos provem do pensamento antigo ou cristão e encontram-se onde, desde então, a eternidade foi pensada da forma mais rica e profunda, a saber, na filosofia de Hegel. O que vem a seguir a esta é uma má imitação. Mas estas duas concepções da eternidade provêm de uma determinada experiência do tempo, que é o tempo como mero passar do agora na sucessão. Primeiro, o tempo é sem-fim da sucessão do agora. Segundo, é o sucessivo parar de um agora abrangente. No entanto, tal concepção do tempo nem abrange a essência do tempo, nem a concepção da eternidade de que depende inteiramente dela se coaduna com a essência da eternidade, na medida em que a conseguimos pensar.”[idem: 59]”. Se não é eterno o tempo dos criadores, o tempo dos povos, o que ele é? São tempos que tem sua própria medida, “...Longo é/ o tempo, mas acontece/ o verdadeiro.”[Idem: 59] . É um tempo longo o dos cumes onde se encontram os criadores, mas longo também é o tempo do dia-a-dia porém ambos de forma diversas. “ O tempo do dia-a-dia é longo no tédio (...), quando o tempo nos faz esperar e, ao mesmo tempo, nos deixa vazios, quando nos entregamos, afanosamente sem critério, a algo que faça passar o longo tempo, nos divertindo(...). o tempo dos cumes é longo porque nos cumes se espera por e se aguarda ininterruptamente o acontecimento, o que nem é aborrecido, nem divertido. Aí nada se empreende para fazer passar o tempo, ou até para matar, antes pugna-se pela sua duração e plenitude e conserva-se pela espera. O tempo dos cumes é essencialmente longo, já que a preparação do verdadeiro que deve, um dia, acontecer, não se faz de um dia para o outro e por encomenda e, pelo contrário, consome muitas vidas humanas e até <<gerações>>. Este <<tempo longo>> mantém-se inacessível a todos aqueles que são suscetíveis ao tédio e que nem calculam em que medida eles próprios são aborrecidos. Este tempo longo, no entanto, é o que permite que, <<um dia>>, aconteça o verdadeiro – a revelação do Ser.” [Idem: 60] Portanto não saberemos quem somos enquanto não soubermos este tempo fundante que é o tempo dos povos, enquanto não soubermos nosso tempo, como povo. Mas como saber este tempo sendo apenas um entre vários povos? Talvez para essa pergunta seja melhor não haver o atrevimento de uma de uma resposta, não imediata, pelo menos. Mas podemos nos arriscar a falar da disposição fundamental e do tempo histórico, sobre o qual está fundada a missão do povo. Pois a geografia da terra pátria não é uma geografia restrita: “A terra pátria não é,(...), um mero espaço de limitado por fronteiras exteriores, uma região natural , uma localidade como teatro possível deste ou daquele acontecimento” para Heidegger “a terra pátria esta educada para ser esta terra pátria dos deuses”, dos criadores. Tal educação é que converte a terra em pátria, mas pode, igualmente, fazer com que esta volte a degradar-se e reduzir-se a um mero local de residência, o que por conseguinte vai de mãos dadas com o ateísmo.” [Idem:103] Para que a Terra se torne pátria, preciso é que ela seja educada para tal ofício, não basta o mero estabelecimento, a Terra para que seja pátria precisa passar pelo jogo das estações e por suas festas “confrontada constantemente com o rítimo dos deuses”. Mas isso já acontece como afirma Heidegger na seguinte passagem: “Isso já acontece no <<prelúdio>> de um tempo mais rude, para a que a Terra, só aí, entre plenamente no jogo propriamente dito, isto é, a História e o tempo histórico. Ela é o grande jogo que os deuses jogam com os povos e com o povo; são um jogo as grandes épocas do tempo do mundo, segundo diz o velho filósofo grego, Heráclito, (...): <<O tempo do mundo – ele é uma criança que brinca, coloca as pedras do tabuleiro para aqui e ali, a uma (tal) criança pertence o poder (sobre o ser)>>. Em tal jogo dos deuses se encontra a terra.”[Idem: 103] Passando pelo turbilhão das heras e pelos jogos do tempo a Terra se torna pátria, e tem seus abismos abertos, abismos e fundamentos. São nos abismos que se encontram as possibilidades de um no devir, pois são neles que desaparecem a firmeza e a individualidade de todos os fundamentos. “Os grandes tempos de viragem dos povos vêem do abismo e na medida em que um povo acede ao seu fundo, quer dizer, acede à sua terra e tem pátria. Por isso os tempos de viragem dos povos não são experimentados e, muito menos, compreendidos, ao nível rasteiro da superficialidade da conversa do dia-a-dia, das considerações sempre mal adequadas e de todas as contingências de que ficaram suspensas, cegas para a origem do necessário. Isso não pode ser calculado a partir do cômputo de causa e efeito, mas está apenas no fundamento do abismo.”[Idem: 104] Como já colocado a cima, para Heidegger a superficialidade – ou falatório, como aparece em sua obra “Ser e Tempo” – da cotidianidade afasta o homem da “reflexão” sobre o Ser e não lhe permite pensar sobre o problema do Tempo horiginário dos povos, dos criadores. Mas existe um homem – ou melhor, uma “categoria” de homens – que pode alcançar este almejado tempo, pelomenos de alguma forma. São os poetas, que se abre a sua disposição fundamental da aflição “disponível em um luto sagrado”, permitindo que por si já fale mais um eu e sim um nós. Aberto a esta disposição o poeta perscruta os limites do tempo, mas sabe que o uso da língua é perigoso e pode aniquilar aquilo que consegue auscultar do tempo originário dos criadores. A procura do poeta e pelo delicado dizer do já ter sido e do passado, em sua disposição fundamental. Disposição essa que é mobilidade e reciprocidade intrínsecas e por isso não deve ser nomeada “com uma palavra de forma imediata”.Heidegger afirma que: “O que já foi e sua qualidade de já ter sido são algo de fundamentalmente diferentes do que passou e de sua de já ter passado”.[Idem: 105] Pra ele a linguagem é portadora de deturpações e seu uso é na maioria das vezes arbitrário e indevido causando grande confusão – isso fica bem expresso em várias de suas obras, onde da busca incansável do filósofo pelo esmero do uso lingüístico na busca de palavras adequadas para expressar seu pensamento, chegando mesmo a criar novos termos para o desenvolvimento de filosofia: mas a explicação desse cuidado com a linguagem ser encontra em sua crença de que é pela linguagem que o Ser se desvela e como esse é constantemente mutável (como o rio de Heráclito) não podemos engessa-lo com a rigidez das palavras e seus conceitos já dados. Com relação aos termos temporais do “passado” e “do que foi” ele diz que : “mesmo no que diz respeito à sua denominação, tal acontece devido à necessidade de estabelecer uma diferença essencial na essência do tempo. Se, no entanto chamarmos o <<que foi>> a uma coisa e <<passado>> a outra, ou vice-versa, isto é, até certo ponto arbitrário...” Fica a pergunta: o que podemos definir como “o que passou” (ou passado)? “O que passou (passado) está impreterivelmente encerrado, nada no-lo trará de volta; está firmemente colocado no passado, o qual como a língua diz tão certamente, é um espaço de tempo, por assim dizer uma despensa, em que acumula tudo o que expirou e se foi embora. Mesmo que algo de passado ainda pudesse verificar-se novamente em todos os pormenores e circunstâncias, nunca mais seria o mesmo, visto que aquele ponto no tempo,(...), do qual a coisa passageira caiu no passado levando-o consigo, passou e não pode ser repetido. O passado encontra-se perante o portão do presente e nunca mais pode voltar a este e nele dar entrada.”[Idem; 106] Após a definição de passdo, continua o pensador, agora nos dando uma definição mais exata do que para ele pode se expressa como “o que foi”: “No entanto aquilo que foi é o que continua sendo e o que, até certo ponto, nós próprios somos, na medida em que, trazendo-o à nossa frente, conservando-o e levando-o para diante para diante ou, também, recusando-o ou querendo esquece-lo, permitimos que se prolongue no interior de nosso ser-aí. As sombras dos que foram revisitam-nos, vem ao nosso encontro e são vindouras.”[Idem] O passado está preso atrás das grades tempo e não pode votar, adentrar às portas do agora, todavia o que foi é parte daquilo que somos.É nele que está antecipação do futuro que nos aguarda. “O que foi” revela aquilo que “já anteriormente se preparou” e que “vem a nosso encontro”. Entre estes dois (o futuro e “o que foi”) encontra-se o tempo originário. “Este tempo originário desloca o nosso ser aí para um futuro e um tempo que já foi, ou melhor: faz com que no ser como tal seja um ser deslocado, ser for um ser autêntico.”[Idem: 106], este átimo temporal é designado pelo filósofo de tempo de arrastamento: “já que ele é arrastamento para o futuro, que vibra em si próprio, e o ser-se atirado para trás, para aquilo que foi. No decorrer das horas desta oscilação da conservação sempre nova do que foi e da espera sempre nova daquilo que será, amadurece aquele tempo de um povo pelo qual este ingressa naquele estado em que o vale e os rios se encontram abertos para o que é dito, dos montes, sobre o futuro, daqueles cumes do tempo que são habitados pelos criadores. Em tal tempo, tal como ele estremece na disposição fundamental – ou, dito de um modo mais verdadeiro: tal como ele estremece enquanto a referida disposição fundamental – no ser-aí de um povo, em tal tempo, o tempo <<torna-se tempo>>...”[Idem: 107] Arriscamos a deduzir que, o tempo originário dos criadores, ou o tempo dos povos, pelo qual buscamos durante nossa exposição é o “presente”, mas não o presente calculável dos indivíduos, sim o “presente” vivencial, aquele experienciado de forma autêntica e que desvela o ser em um flagrante de sua constante mobilidade no bailado das águas do rio (Heráclito) que arrastam. Um presente que “é” a ponte entre “aquilo que foi” e o que se projeta a partir daquilo que já fora preparado. Presente. Bibliografia HEIDEGGER, Martin. Hinos de Hölderlin, (tradução: Numir Nahodil). Lisboa: Instituto Piaget, s/d.