Sérgio Sant’Anna e o conto brasileiro contemporâneo Liane Bonato* Resumo Esse artigo tem como objetivo discutir alguns aspectos da obra de Sérgio Sant’Anna, enfatizando a inovação na Literatura brasileira através da paródia, da ironia, do jogo, da metaficção, especialmente no que se refere ao conto brasileiro contemporâneo. Também se preocupa em apresentar o autor, enfatizando o importante lugar que ocupa na série literária da ficção brasileira contemporânea. Palavras-chave: auto-referencialidade paródica, jogo, ironia, mescla de gêneros, identidade. Vou fazer a arte do meu tempo. Sérgio Sant’Anna O mundo só é verdadeiramente vivido quando passa a ser narrado. Michel Foucault L emos a obra de Sérgio Sant’Anna, sentindo-a e intuindo-a, revendo pensamentos, comportamentos e uma nova atitude, um novo olhar surge diante do mundo, olhar esse que só a literatura permite. E nos perguntamos, em primeiro lugar, em que medida a ficção de Sant’Anna, criando um mundo que simula, sugerindo a vida, questionando e desconstruindo identidades hegemônicas, é capaz de redimensionar a história. O jogo metaficcional, a auto-reflexividade paródica, a mistura de gêneros presentes na obra desse autor podem, sem dúvida, ajudar a pensar o mundo também mesclado que aí está e, ao mesmo tempo, através dos recursos utilizados, remeter-nos às questões sócio-políticas e às atitudes culturais do Brasil contemporâneo. Do lugar em que nos encontramos, dirigindo o olhar para a obra de Sérgio Sant’Anna, nos sentimos co-narradores da personagem que escreve “A carta” e que, ao transformar o desejo em narrativa, aponta para a possibilidade de construção da realidade através das palavras. Construindo a história, organizando a experiência vivida, construímos um mundo outro, esse mais verdadeiro que o real? *Professora do Departamento de Letras e Artes da Fundação Universidade do Rio Grande (FURG). Mestre em Teoria da Literatura – PUCRS. Doutora em Literatura Brasileira – UFRGS. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 171 E agora estamos no palco! Somos Ralfo, somos Jacira, a virgem morta, somos Carlos Santeiro na sua angústia de escrever o romance de uma geração! Somos também, todos ao mesmo tempo, os personagens de Simulacros, cobaias como Vedetinha e Jovem Promissor, esse, na sua busca pelas palavras do romance que quer escrever, manipulados pela insanidade de um Dr. Ph .D. Somos caçadores de realidades e espetáculos, de análises e críticas, tentando apresentar o nosso próprio espetáculo. Mas voltemos novamente ao palco: “O espetáculo não pode parar”: o moribundo em seu catre, ouvidos atentos aos sussurros de sua mulher e do amante, a vida que se esvai e a vida que vive. Mas o espetáculo não pára por aqui, os mecanismos midiáticos farão de Ele um grande espetáculo enquanto durar a fama e enquanto a máquina desumana assim o desejar. Tudo é espetacularizado: o operário que, ingenuamente, aproxima-se da janela do edifício e atrai a faminta multidão sedenta de mais uma tragediazinha e, enquanto o narrador, numa bakthiniana dialogia passa toda a vida da personagem em revista, acionam-se a polícia, camisas de força e mais um “maluco” é encarcerado. Autor desse espetáculo, Sérgio Sant’Anna nasceu em 1941, no Rio de Janeiro e iniciou sua carreira de escritor, em 1969, com os contos de O sobrevivente, livro que o levou a participar do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Confissões de Ralfo (Uma autobiografia imaginária), 1975, foi seu primeiro romance, seguido por Notas de Manfredo Rangel (A respeito de Kramer), 1973, contos e Simulacros (1977), romance. Com O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982) e Amazona (1986) recebeu o prêmio Jabuti e por duas vezes foi o ganhador do prêmio Status de literatura. Suas publicações incluem ainda: A tragédia brasileira (1987), A senhorita Simpson (1989),1 Breve história do espírito (1991), O monstro (1994), Um crime delicado (1997) e Contos e Novelas reunidos (1997), uma seleção de contos e novelas já publicados com a inclusão de quatro contos inéditos. Em fevereiro e março de 1998 esteve nos Estados Unidos onde fez oficinas sobre conto e abordou seu romance, Um crime delicado. Recentemente, mais uma obra do autor foi publicada pela Companhia das Letras, O vôo da madrugada (2003), contos, sem dúvida, o gênero preferido por Sant’Anna. Híbrida, impura2 a obra de Sérgio Sant’Anna vem desconstruir, desmistificar, desmascarar ilusões e tabus, conceitos, preconceitos e condicionamentos numa abordagem de temas e problemas sócio-políticos e cultu1 A novela Senhorita Simpson foi adaptada para o cinema por Bruno Barreto. Convém ressaltar que podem ser encontradas várias críticas e abordagens sobre o filme Bossa nova, tanto na internet quanto em jornais e revistas. Contudo, as referências à obra original e ao autor são mínimas ou inexistentes. No 2º Caderno do jornal O Estado de São Paulo, de 7 de outubro de 2000, em entrevista incluída no livro de Luis Alberto Brandão, Sérgio Sant’Anna declara seu descontentamento com o filme, dizendo que o cineasta “ não entrou no espírito da coisa”. 2 No sentido que Guy Scarpetta apregoa em L’impureté,, 1988. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 172 rais, fazendo emergir através de diferentes níveis narrativos, os silêncios e as omissões, gerando ambigüidade, subvertendo o discurso hegemônico, abalando as certezas monolíticas, desconstruindo previsibilidades, o que nos permite refletir sobre o que significa escrever quando não é mais representar? O que se pode narrar quando, paradoxalmente, não se pode narrar? Questionando, subvertendo e reinventando a literatura, Sérgio Sant’Anna nos permite resgatar o longo processo de exclusão que caracterizou a história brasileira pós-64 e, através do narrar, preservar a memória de uma história possível. Existe um mundo novo e para narrar esse mundo é preciso uma nova linguagem, é preciso atingir o máximo de expressividade com a palavra. A invenção, a inovação, a experimentação, a plasticidade, o jogo, o interesse pela encenação e montagem da emoção estética, ou como ele próprio afirma: “pelo espetáculo” fazem parte da técnica narrativa de Sérgio Sant’Anna. Linguagem como espetáculo, não para mascarar as coisas, mas para buscar a emoção que nelas há. Linguagem como construção, narrativa construindo a história. Não há dúvida de que a idéia de que a realidade só existe se for narrada, se for organizada em linguagem, se repete na obra de Sant’Anna, como, por exemplo, no conto “A carta” de O monstro. Assim, para o autor, A apreensão do real é uma coisa muito difícil e a linguagem em geral nos afasta do real (...) Quanto mais você fala, mais distante fica da realidade. Ao mesmo tempo, a possibilidade de brincar com a linguagem, de destruir formas estratificadas, permite que se amplie por outras vias a visão que se tem do real. (Couto, 1991) E é justo nesse desmonte da linguagem, na exposição de seus mecanismos automáticos de repetição, no jogo, na ironia, na paródia, na metaficcionalidade, na subversão dos gêneros, na espetacularização, num certo voyeurismo duchampiano que ancoram as constantes ficcionais da obra de Sérgio Sant’Anna. No dizer de Malcon Silverman, os contos de Sant’Anna são imbuídos de certas constantes, como introspecção, movimento circular e amplo comentário social, ao passo que os romances se distinguem notadamente por entonações cômicas e autobiográficas. Seus enredos estão baseados ou no ramerrão da vida diária (urbana), ou, inversamente, em alguma forma de romântico escapismo. (Silverman,1981, p.278) Consideramos a produção de Sérgio Sant’Anna, dentro da literatura brasileira das últimas três décadas, de uma diversidade notável, marcada pelo exercício contínuo da experimentação e da crítica. Afastando-se do cânone tradicional ou pouco preocupado com canonizações, Sant’Anna apresenta uma literatura que desmonta a linguagem cotidiana, submetendo-a a uma crítica implacável, da qual nada escapa. E, ao mesmo tempo que inventa, reapropria, desestrutura as formas literárias, mesclando gêneros Sant’Anna privilegia uma linguagem predominantemente reflexiva que se desenvolve no sentido de investigar a própria arquitetura narrativa e questiona o papel do escritor/intelectual na cultura contemporânea. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 173 Representante típico do conto brasileiro contemporâneo, Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) 1977, possui características ficccionais básicas que se refletem nos textos “Ele” e “A fábrica” os quais integram a obra. Em primeiro lugar, o contista usa a reiteração e é na reincidência de imagens e repetição de palavras ou frases que a trama é construída de modo que as várias histórias guardam relações entre si e dentro das próprias histórias,3 mantendo uma estrutura circular em função da qual é apreendido o sentido existencial das contradições, sobretudo o conflito entre ascensão e descensão, de cuja consciência resulta toda a tragédia do destino humano. Ou não é assim que em “Ele” o protagonista tem sua ascensão e queda, condenado, enfim pela sua própria notoriedade, percorrendo um círculo completo de ninguém para alguém e de volta para o anonimato? A tônica dramática em Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) pontua os textos através da ficcionalização da problemática conflitante do homem com a realidade. A imagem desse homem em Notas de Manfredo Rangel, repórter é múltipla, inquietante e ao mesmo tempo grotesca, brutal, enigmática. Os heróis são medíocres, vencidos pela impotência que lhes tolhe as atitudes, conduzindo-os à humilhação e ao desespero. Desespero e humilhação que levam a personagem de “Ele” a tentar o suicídio, desespero e humilhação que fazem as personagens de “A fábrica” constituírem uma ameaça ao sistema que os oprime. A crítica cáustica faz-se presente na contística de Sérgio Sant’Anna fazendo emergir um discurso ficcional situado no tempo e no espaço sem, contudo, cair no essencialmente mimético e linear, embora remeta a questões históricas da década de 70. O círculo vicioso em que se debate o homem moderno aflora no conto “Ele”, onde se aponta a denúncia dos processos de informação massificada e do mito do herói na sociedade de consumo. Por outro lado, em “A fábrica”, temos a paródia da anulação da personalidade pela máquina que, na era da tecnologia exacerbada embota a inteligência e a percepção sensorial do homem. A rotina, a circularidade, a monotonia, a frieza nas relações entre os indivíduos aparecem nesse conto anulando as aspirações, quando a responsabilidade do homem acaba por ser diluída na roda-viva dos acontecimentos e apesar da sua vontade de atuar e não interferir não lhe sobra espaço nem forças para mudar o fluxo da vida. Personalidades condicionadas e absorvidas pela máquina ou pela máquina da mídia, personagens sem nome, sem identidade povoam, pois, esses dois contos de Sérgio Sant’Anna. O espaço desempenha um papel importante em Notas de Manfredo Rangel, constituindo-se mesmo na força externa que impulsiona o desenvol3 Esse aspecto bem caracteriza uma das tendências de Sant´Anna que é o jogo metaficcional. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 174 vimento interno das personagens. Assim, em “A fábrica” encontramos personagens que, num espaço fechado, acabam por apresentar características físicas e psicológicas marcadas pelo meio em que se movem. Em “Ele”, o espaço que sobressai é o palco onde se desenvolve a maioria das ações – e é esse espaço que modela as características da personagem principal uma vez que o seu condicionamento está intrinsicamente ligado à fabricação de um herói pela mídia, herói esse que só se concretiza no palco – projeção também de sua ascensão e queda4 . Segundo Antônio Hohlfeldt, o conto de atmosfera pode se confundir com o conto psicológico e estrutura-se geralmente através de personagens e através de sua psicologia desenvolve-se. No entanto, Por vezes as personagens ocorrem e centralizam a atenção da narrativa, em outros momentos elas não são o cerne do conto. De qualquer maneira, o que guardamos de cada um destes escritores, de cada uma dessas obras, é justamente uma atmosfera, um clima, uma espécie de “aura” que envolve a narrativa tornando-a quase inconfundível: não importa qual o personagem que aí surja, ela terminará envolvida pela mesma atmosfera. (Hohlfeldt, 1988, p.137) Massaud Moisés acrescenta a noção de cenário ao conto de atmosfera, dizendo que, muitas vezes, a tônica dramática pode transferir-se para o cenário, o ambiente, de modo que este quase se transforma no herói do conto. Em “Ele”, temos um narrador onisciente que conta a ascensão e a queda de um ídolo. Homem ou animal, esse herói criado pelos meios de comunicação vai sendo composto ao longo do percurso narrativo apenas pelas palavras do próprio narrador e das intromissões da imprensa. O clima que vai se criando em torno da personagem é de extrema ambigüidade, como podemos ver na sua própria caracterização: metade homem, metade animal, (um pouco vegetal?) vaidoso embora ingênuo, narcisista, indefinivelmente um produto da raça humana em decadência ou da evolução animal. O narrador refere-se à personagem como ele (com minúscula!) quarenta vezes ao longo do conto. Ora, sabemos a partir de Emile Benveniste que a noção de pessoa é própria apenas do eu e do tu (pessoas do discurso) e que ele é a não pessoa, o que imediatamente remete à questão da identidade criada pela atmosfera do conto, onde o herói já não é pessoa, mas uma mera projeção da mídia. Na verdade, é isso que o narrador quer ressaltar, ele não existe, é algo criado pela publicidade e treinado por “métodos reflexocondicionadores”. (Benveniste,1988, p.277-283) É interessante notar a total ausência de diálogos nesse conto, o que reforça ainda mais a impessoalidade. Por outro lado, a alteridade de gênero, através da presença do texto de jornal e de revista, contribui para a verossi4 Aqui podemos perceber nitidamente a questão do espetáculo, tão caro a Sant’Anna, temática explorada pelo escritor em toda a sua obra. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 175 milhança interna e para a manutenção da atmosfera de ambigüidade criada desde o início do conto5 . A voz do narrador em terceira pessoa possui um tom de contador de histórias enquanto usa o discurso indireto e dirige-se a ouvintes como em: “veja bem”. Ao mesmo tempo, esse narrador inclui-se como participante dos acontecimentos relativos a ele, conforme podemos ver em: mas para nós que gostávamos dele, (p.48) Mas se este texto emocionou a nós, seus admiradores incondicionais, foi com profunda revolta que tomamos conhecimento de uma noticia, foi com grande emoção que lemos um pequeno texto (p. 48-49) Este artifício usado pelo narrador induz o leitor a compactuar com o narrador na participação dos fatos, mantendo a tensão dramática e, no dizer de Poe, fisgando o leitor para que nele se opere o efeito único. A linguagem desse conto de Sant’Anna é espontânea, coloquial, fluente. Uma ironia fina marca algumas passagens apontando parodicamente situações possíveis na realidade brasileira da década de 70. Podemos comprovar isso através de um levantamento do universo semântico que compõe o conto, universo esse que, obviamente não foi jogado ao acaso, mas está aí para legitimar a temática e a atmosfera criada pelo conto, conforme podemos comprovar em: sem qualquer condicionamento prévio, ninguém entende o povo, Censura, o programa esteve suspenso, ele foi vetado, tráfico de influências, censores, autorização, autoridades, ele foi preparado durante semanas, métodos reflexo-condicionadores, castradores especializados, execução no sentido do ato do carrasco executar um condenado, providência secreta da polícia, manicômio judiciário. Note-se também a ironia presente nas passagens que seguem: Pois as autoridades, embora desejando evitar influências maléficas sobre o povo, não querem impedir – até mesmo incentivam – as diversões mais sadias desse mesmo povo como no caso do futebol, que vive, atualmente um momento de grande incrementação. (p.44) E ele deve ter acreditado que as pessoas, inclusive aquelas belas mulheres, o amavam por ele mesmo e não por sua fama, alem de uma imagem habilmente explorada por seu empresário (proprietário?) (p. 45) e uma piada maldosa circulou no meio artístico, contando que ele fora vendido a um jardim zoológico estrangeiro. (p. 48) Fabricado o herói, levado ao topo, a circularidade estrutural e a temática cumprem-se na derrocada vertiginosa, outros ídolos sobem, pois, “O espetáculo não pode parar”. Existiu? Não existiu? Foi preso? Condenado? Internado no manicômio? Vendido ao exterior ou (expatriado?) Quem é ele afinal? 5 Aqui, a mescla de gêneros, outra técnica narrativa utilizada por Sant’ Anna em sua obra. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 176 Não poderíamos deixar de destacar neste conto o efeito produzido que, sem dúvida, remete à história brasileira pós-64. No universo ficcional de “Ele” a paródia da identidade perdida pelo povo brasileiro em sua trajetória de paciente e não agente da história, impõe-se ironicamente através de um discurso que busca recuperar na memória do povo a história dos fracassos ocorridos durante a ditadura militar. Está aí, no espaço da literatura, a possibilidade de leitura de uma outra história: a dos vencidos, dos sonhos desfeitos, das esperanças destruídas. Está aí o herói produzido, o homem (animal?) sem identidade, sem memória, sem futuro. Como tão bem expressa Fernando Pessoa na “pessoa” de seu heterônimo Álvaro de Campos, no poema “Pecado original”: Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? será essa, se alguém a escrever, a verdadeira história da humanidade. (Campos, 1986, p. 299) Se, em “Ele” temos a anulação da personalidade e da identidade pela mídia, em “A fábrica”, sem dúvida o embotamento, a castração se dá pela máquina, pelo automatismo, pelo meio desumano da sincronia orwelliana, da regimentação coletiva e impessoal automação. Já não temos ele como personagem, mas eles: o grupo verde, os operários, os homens, o grupo amarelo, os burocratas, os capatazes e o homem da torre. Enfim, todos indeterminados, sem identidade própria, massificados, treinados apenas, incitados para o trabalho alienador. Aqui o universo semântico é indicador da massificação, parodiando a era capitalista. Podemos ver isso através da escolha lexical, como por exemplo: tudo era previsto e organizado, uniformes verdes, cartões de ponto, um homem… submetido a vários meses e anos de pressão, incitados para o trabalho, somente executassem suas tarefas, os burocratas experientes podiam prever nos mínimos detalhes todo o ritual de um empregado… por medo, por condicionamento, treinados, trabalhavam sem uma relação aparente com qualquer comando intencional do cérebro, braços e olhos mecânicos, ordens… como cadência militar, repetição diária de um esforço quase limite, tão uniformes que eram idênticos e foram selecionadamente construídos… A circularidade e a reiteração são uma constante do universo diegético de “A fábrica”: uma mentalidade de linha de montagem é uma constante – uma ramificação da monótona miséria econômica onde os personagens são apenas uma parte integrante dessa linha de montagem que embora enriquecendo os bolsos dos patrões não vêem “a menor relação do seu trabalho e o rodar dos caminhões” que levam os produtos por elas fabricadas. As personagens vão sendo compostas pelo ambiente em que se movem e podemos perceber nitidamente a hierarquia na estrutura da fábrica. O grupo verde que trabalha na sala de controle, chefe de vendas, os técnicos, os burocratas (administradores), embora não houvesse “nada a ser invejado naquelas funções, dos burocratas para baixo”. Apenas um homem dominava Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 177 a todos – talvez o presidente, o maior acionista… O homem da torre, na verdade, poderia ser qualquer coisa, até Deus – embaixo, o pessoal, mas ambos sem identidade. Se a reificação do homem nesse texto expressa uma garantia de produção e manutenção do capitalismo, podemos ver também no discurso do narrador a preocupação em alertar para a ameaça que eles, os verdes, os amarelos, os roxos podem constituir-se para o perfeito funcionamento do sistema, conforme constatamos nas citações que seguem: uma possibilidade ameaçadora e às vezes desejável de explodir todo o resto. (p.93) E um homem destes, submetido a vários meses e anos de pressão, poderia, em casos raros, agir de modo estranho e sucumbir às diversas tentações. (p.94) Um dos operários a qualquer dia e num acesso de fúria poderia tomar de um martelo e destruir tudo. (p.95) E qualquer descuido seria o suficiente para uma pequena explosão ou mesmo várias explosões ou, ainda, o explodir da fábrica inteira. (p.96) E esta ameaça, constitui-se não em perder um homem ou mais mas em estacionar por várias horas todo o processo de produção, por isso, os instantes de folga tornam-se um perigo e o narrador deixa bem claro que: Qualquer descuido seria um contra-senso, senão pelo perigo, mas também pelos capatazes vestidos com os trajes mascarados, a impedir qualquer identificação; a evitar assim, o contato prejudicial para a disciplina que inevitavelmente ocorre com homens que convivem diariamente. Ali era bom que não houvesse individualidades a dispersarem-nos do serviço. (p.99) Isto é, não pode haver identidade e assim, Os que trabalhavam na sala de controle, que só conheciam o verde como significado, que era a cor de suas funções, acabavam por deduzir que o vermelho, roxo, amarelo e as demais cores eram o verde dos outros, traduzindo uma rotina semelhante, infernal, científica. (p.97) O tempo no conto é marcado pelo aperto de botões, fiscalizar relógios. E eles haviam se habituado a medir o tempo pelo próprio desgaste – soava a sirena do grande intervalo. A hora que tinham para o almoço… Porque se haviam construído uma espécie de liberdade sobre o tempo… Um pão com gosto de eternidade era o que buscavam. (p.100) E parece que não há mais muito a dizer, pois, a reflexão, ali na fábrica, sempre conduzia a dúvidas e era melhor, portanto, que eles deixassem as coisas ocorrerem por si mesmas… dependentes um do outro, quando um deles baqueasse – tão uniformes que eram e idênticos que foram selecionadamente construídos – seria o sinal de que soava a hora certa e, inadiável de todos eles e da fábrica e do mundo inteiro em que se fundaram. (p.101) Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 178 A ficção “O monstro” (1994), apresenta um universo diegético cuja tônica é uma entrevista publicada na revista Flagrante, em duas partes, envolvendo, a princípio, duas personagens: o repórter Alfredo Novalis e Antenor, professor universitário, condenado a trinta anos de prisão pelo estupro e assasssinato de Frederica Stucker, uma garota cega, de vinte anos. A estrutura formal de “O monstro” torna evidente a metaficcionalidade do texto. Em primeiro lugar, a narrativa apresenta a estrutura popular não ficcional da entrevista: FLAGRANTE: O que o senhor sentiu depois do ato? ANTENOR: Um aniquilamento total, pois não havia mais nenhum desejo a impulsionar-me. E me vesti imediatamente, com vergonha do meu corpo. (Sant’Anna, 1994, p. 63) O emprego da entrevista como recurso cria um contraste entre a linguagem seca e formal do jornalismo e o ato bárbaro cometido pelo personagem. Para Sant’Anna, “tem que causar estranheza”. O drama da vítima é o drama óbvio com o qual todos se solidarizam. Queria entrar na cabeça do assassino. A literatura permite isso: compreender o monstruoso, o aberrante”. (Trigo, 1994, p. 9) Em segundo lugar, podemos constatar a subversão do próprio gênero do conto tradicional, pois apesar de apresentar elementos daquele, como número reduzido de personagens: Antenor, Marieta, Frederica e o repórter, desloca a unidade temática já que a narrativa reconstrói o crime cometido descrevendo os pormenores da ação, aspecto esse que no conto tradicional tende a anular-se. Também subverte as unidades de tempo e espaço porque, na narração do crime pelo estuprador, o texto vai identificando datas, locais, acentuando um antes e um depois não específicos do gênero. A entrevista realizada na Penitenciária Lemos de Brito, por exemplo, é publicada em duas datas: 2 de junho de 1993 e 3 de junho de 1993 - no entanto, a narração do estupro remete a uma data anterior à entrevista: 18 de julho de 1992. Conforme teoriza Massaud Moisés, o conto (...) abstrai tudo quanto, no tempo, encerre importância menor, para se preocupar apenas com o centro nevrálgico da questão. Isso explica que ao conto repugne a ‘duração’ bergsoniana ou a complicada inserção de fatos passados, ou de outro expediente análogo. O conto caracteriza-se por ser ‘objetivo’, atual: vai diretamante ao ponto, sem deter-se em pormenores secundários. (Moisés, 1987, p. 23)6 6 Antônio Hohlfeldt situa Sérgio Sant’Anna na série brasileira junto a Clarice lispector, Caio Fernando Abreu, Osman Lins. Segundo Hohlfeldt, Sant’Anna “enveredou para um caminho relativamente novo em nossa literatura, identificável a partir de “O alienista”, de Machado do Assis”. (HOHLFELDT, 1988, p. 150). De outra parte, levando-se em conta a questão da ruptura e inovação podemos aproximar o contista S’érgio Sant’Anna de Anton Tchekov que, afastando-se dos padrões clássicos, mostrou as múltiplas possibilidades de realização que o conto oferece. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 179 Em terceiro lugar, temos que considerar o papel dos narradores. A voz narrativa que introduz a história é a da Revista Flagrante. Segue-se a entrevista propriamente dita, onde é dada voz ao estuprador que narra a sua versão dos ‘fatos’. Deixando de lado o discurso oficial, Sérgio Sant’Anna dá voz ao criminoso, ao marginal, ao “ex-cêntrico”7 , parodiando, assim, o mito do monstro, pois crimes hediondos como o cometido por Antenor configuram imediatamente um ato socialmente condenado. No entanto, a narrativa de Antenor, ao construir a sua história, organiza os fatos de tal maneira que o leitor passa a envolver-se com a personagem quando não a justificar o seu ato criminoso e a perversão nele contida. O conto “O monstro” está calcado na figura do oxímoro que marca ao mesmo tempo as características dos gêneros massivos e a ambigüidade inerente aos textos pós-modernos: “apesar de toda a agressividade contida no meu ato, houve nele uma mistura de crueldade e amor, o que talvez a sexualidade sempre implique”. (Sant’Anna, 1994, p. 63) Mesclando gêneros diversos e subvertendo formas tradicionais, Sant’Anna mais uma vez mostra em que medida a narrativa pode construir a história e até que ponto, através do ato narrativo, realidade e ficção podem imbricar-se. Nas palavras do estuprador instala-se o paradoxo: ANTENOR: Está certo, não lhe posso dar essa certeza. E, ainda quando se trata de fatos concretos, como os que levaram à morte de Frederica, eu próprio duvido, algumas vezes, se a reprodução deles que tenho em mente e procuro transmitir é a mais correta possível. No decorrer desta entrevista, pareceu-me, várias vezes, que enxergava os acontecimentos sob novos ângulos e que eu mesmo me transformava, falando deles. As coisas acontecem velozmente, não podemos fixálas nos momentos em que as vivemos e, não fosse por suas conseqüências, eu chegaria a duvidar que tais coisas puderam acontecer comigo. (Sant’Anna, 1994, p. 78) Se não passar tudo isso de uma miragem projetada pelo desejo, resta-me o consolo de antecipar o vazio da morte sem memória de coisa alguma, como se nada disso, nunca, houvesse acontecido. (Sant’Anna, p. 80) O que equivale a dizer: “pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada”. (Saramago, 1992, p. 13) No conto “Desígnios secretos”, incluído em Contos reunidos (1997), temos novamente a temática de estupro e morte praticados por um narradorpersonagem que conta a história sob uma ótica muito semelhante ao narrador de “O monstro”, acentuando sua posição de juiz, “as pessoas se perguntam como um homem da minha posição pôde fazer isso?” (p.715) Novamente as constantes ficcionais orbitam a reiteração a sensualidade, o voyeurismo, o espetáculo, a encenação. Também aqui as personagens que povoam a diegese 7 Termo empregado por Linda Hutcheon em A poética do pós-modernismo. Também o narrador de Um crime delicado, o crítico Antônio Martins é considerado pela “crítica” como um narrador ex-cêntrico, conforme a visão de Hutcheon. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 180 não têm nome, mas remetem à violência, à insanidade que impregna os grandes centros urbanos, levando o homem a perder-se em seus objetivos, legitimando o que Stuart Hall pontua: “ as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”. (Hall, 1997, p.7) E fica, afinal a possibilidade de queda, como em “Ele”, a reificação do homem, presente no conto “A fábrica”. Fica a constatação de que os “monstros” circulam por aí e é possível derrubar o mito. Fica a pergunta “se os atos humanos obedecem aos desígnios secretos de Deus”. (Sant’Anna, 1997, p.715). Fica em nós, leitores, o gosto amargo e intragável da revolta pela constatação de uma realidade que nos é tão próxima, tão cotidiana, tão rigorosamente rotineira. Ah, o fantástico Poe, com sua teoria de economia de meios e o efeito que conduz à verdade. Ah, a nossa história transfigurada em contos, aparentemente tão despretensiosos! Ah, o milagre daqueles que, através da literatura, “ao contar o que somos, nos ajudam a ser, porque como vai converter-se em protagonista da história no lugar de padecê-la, um povo que ignora a sua identidade?” (Galeano, 1990, p.44). Recebido: setembro/2003 Aprovado: outubro/2003 Abstract This paper intends to discuss some aspects of Sérgio Sant’Anna’s work. Its aim is to emphasize his innovation in Brazulian Literature scene through parody, game, irony , metaficction, specially in his short stories. It also presents the author and his important place in our contemporary literature. Key words: Parodic auto reflexibility, game, irony, genres, identity. Referências bibliográficas CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. COUTO, José Geraldo. Sant’Anna quer conciliar o rigor e as trevas. Folha de São Paulo, São Paulo, 12-1091. GALEANO, Eduardo. A descoberta da América (que ainda não houve). Porto Alegre: Ed. da Universidade, UFRGS, 1990. HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Ed., 1997. HOHLFELDT, Antônio. Conto brasileiro contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto,1988. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985. MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 1987. PESSOA, Fernando. Obras completas de Fernando Pessoa: Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1986 SANT’ANNA, SÉRGIO . O monstro. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. SANT’ANNA, SÉRGIO. Contos e novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SANT’ANNA, Sérgio. Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 181 SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. SCARPETTA, Guy. L’impureté. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1988. SILVERMAN, Malcon. Moderna ficção brasileira - 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p.278310. TRIGO, Luciano. O monstro com face humana. O Globo, Rio de Janeiro, 13-02-1994. Ciênc.let., Porto Alegre, n.34, p.171-182, jul/dez. 2003 182