POSSIBILIDADE
- Scilicet
Ram Mandil
« Impossible is nothing »
(Adidas)
A epígrafe deste texto reproduz o slogan publicitário lançado pela Adidas, em 2006.
Esta campanha foi reforçada por vários spots televisivos, no qual diversos atletas de
renome internacional relatam passagens de suas vidas e o modo como superaram seus
limites.
Seria esta uma característica da ordem simbólica contemporânea, a saber,
a de
constituir uma miragem de eliminação do impossível? Sabemos que é justamente sobre
o impossível que Lacan assinala a emergência do real na dimensão simbólica. Essa
redução do impossível a nada não poderia estar indicando que, no horizonte da ordem
simbólica contemporânea, estaria sendo reduzida a perspectiva de uma apresentação do
real pela via do impossível? A isto não corresponderia uma preponderância da
apresentação do real sob a forma do mais-gozar, um mais-gozar associado à extensão
ilimitada do possível?
Vale ressaltar que uma das definições lógicas do possível se dá, exatamente, pela sua
relação com o impossível: possível é aquilo que não é impossível. Outras definições do
possível também caminham pela negativa: “o que não é necessariamente falso” ou “o
que não inclui a contradição”.
Outro aspecto da definição do possível decorre de sua relação com o necessário.
Em “Introduction à l’érotique du temps”, Jacques-Alain Miller examina esta relação
entre o possível e o necessário1. Para tanto, recorre ao paradoxo do futuro contingente e
à perspectiva de Lacan de considerar a lógica a partir de sua relação com o tempo. Um
acontecimento possível é aquele que pode ou não acontecer. Se ele se efetiva, será
sempre necessariamente verdadeiro que ele tenha acontecido: “De nosso ponto de vista,
o nervo desse sofisma é a conversão do possível em necessário, que é um efeito de
retroação”2. O possível se dá na dimensão de um tempo que passa, sobre o qual incide
uma temporalidade que vai ao sentido contrário, e que produz o necessário por efeito de
1
Miller, Jacques-Alain. Introduction à l’érotique du temps. Revue de la Cause freudienne, Paris :
Navarin Éditeur, n.56, março 2004, p.63-85.
2
Idem, p.69.
retroação: a partir do momento em que o possível se realiza, será sempre verdadeiro
que ele tenha acontecido.
Esta reabsorção do possível no necessário, a partir de um efeito de significação, pode
ser a razão pela qual o possível não será destacado nas elaborações de Lacan sobre as
categorias modais no Seminário livro 20.
Ali, o necessário, o impossível e o
contingente são redefinidos a partir de dois aspectos fundamentais: a sua conversão em
escrito - recurso de literalização que reduz as categorias modais “às dimensões de
superfície” – e a incidência do tempo (e da duração) como elemento indissociável
destas modalidades. Desse modo, o necessário se define como “o que não cessa de se
escrever”, o impossível como “o que não cessa de não se escrever” e o contingente
como “o que cessa de não se escrever”. Tudo gira em torno do esforço de formalização
do real próprio à psicanálise, que faz sua emergência na ordem simbólica como um
impasse de inscrição.
Isso não quer dizer que o possível esteja excluído da experiência analítica. A entrada em
análise se dá sob o impulso do possível, na perspectiva de que, para o sujeito, as coisas
podem ser diferentes do que elas são, por exemplo, em relação ao seu sintoma.
A
conversão do possível em necessário, como efeito da própria experiência, pode ser
evidenciada em dois aspectos: pelo efeito de significação que se depreende da própria
instalação do sujeito suposto saber, e pela verificação, no decurso de uma análise, do
que, no sintoma, “não cessa de se escrever”.
O possível também se faz presente ao nível da fantasia. Este aspecto é ressaltado por
Jacques-Alain Miller, ao assinalar que a fantasia é um pareamento de duas ordens3. O
losango do matema da fantasia, $<>a, símbolo lógico do possível, indica que há toda
sorte de possibilidades entre as dimensões envolvidas.
Arriscamos uma hipótese: na experiência analítica, a possibilidade está sempre
associada à idéia de que a relação sexual é possível de ser escrita.
O possível e o contingente
Nesse aspecto é fundamental fazer a distinção entre as categorias do possível e do
contingente quando examinadas à luz da psicanálise.
O cerne desta distinção está na relação que o possível e o contingente estabelecem com
o impossível, com a relação sexual que “não cessa de não se escrever”.
3
Conforme a terceira lição de seu Curso, de 09 de fevereiro de 2011 ( inédito).
Ao estabelecer a contingência, “o que cessa de não se escrever” como o que se realiza a
partir do campo do impossível, “do que não cessa de não se escrever”, Lacan não
estaria indicando o apagamento deste impossível, mas a emergência “de tudo que em
cada um marca o traço de seu exílio, não como sujeito, mas como falante, de seu exílio
da relação sexual”4.
O caráter contingencial do encontro amoroso – o seja, o encontro no parceiro dos traços
desse exílio - permite esclarecer a sua diferença com o possível. É preciso distinguir “o
traço” que acompanha esse encontro, da “via de miragem” que daí se deriva, ilusão não
apenas de que a relação sexual “pára de não se escrever”, mas de que, a partir daí, algo
se trama como destino. Podemos dizer que o “parlêtre” procura fazer da contingência do
seu encontro a realização de uma possibilidade, a ser convertida em necessidade: “Todo
amor, por só subsistir pelo pára de não se escrever, tende a fazer passar a negação ao
não pára de se escrever, não pára, não parará”5. Aí está o drama do amor. Drama este,
podemos acrescentar, que tem sua raiz trágica – e porque não dizer, também cômica –
no engano, como se o amor fosse a realização de um possível, quando, na verdade, o
que o desencadeia é uma contingência que se destaca do fundo de impossibilidade da
relação sexual.
4
Lacan, J. Seminário livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.198. ( O rato no
labirinto).
5
Idem, p.199.
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